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Teoria feminista
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E-book294 páginas5 horas

Teoria feminista

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Sobre este e-book

Crítica e propositiva, bell hooks defende uma revolução feminista que transcenda reformas, com enfrentamento das ideologias do sexismo, do racismo e do capitalismo, entre outras. Defender o feminismo é não admitir qualquer tipo de opressão sobre (ou entre) mulheres. É considerar homens como potenciais opressores, mas também potenciais camaradas na luta. Em linguagem acessível, a autora faz críticas aos problemas ainda atuais do feminismo, que costuma ser branco, de classe média, acadêmico, heteronormativo e desigual. Em contrapartida, propõe a revolução feminista idealizada por mulheres negras. Diferentes mulheres, provenientes do centro e das margens, em solidariedade política, com a parceria de homens, tendo como foco a ressignificação das relações. A revolução feminista negra é uma luta por libertação, de todxs. Obra basilar do feminismo negro que, ao abordar os processos de opressão das mulheres negras, das mulheres situadas na margem, dá sentido à centralidade da luta feminista, ao enfrentamento do racismo patriarcal heteronormativo. Feminismo é um compromisso ético, político, teórico e prático com a transformação da sociedade a partir de uma perspectiva antirracista, antissexista, antilesbofóbica, anti-homofóbica, antitransfóbica, anticapitalista. Teoria Feminista: Da Margem ao Centro é, assim, uma convocação para a construção de uma nova ordem social.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento13 de mar. de 2020
ISBN9788527312011
Teoria feminista

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    Teoria feminista - Bell Hooks

    fora.

    Prefácio à Nova Edição

    Vendo a Luz: Feminismo Visionário

    O movimento feminista continua sendo uma das frentes mais poderosas de luta por justiça social no mundo de hoje. Aos dezenove anos de idade, concluí o primeiro esboço de meu primeiro livro feminista – Ain’t I a Woman: Black Women and Feminism (Não Serei Eu Mulher? As Mulheres Negras e o Feminismo). O livro foi publicado quase dez anos depois. Nesse meio tempo, me envolvi cada vez mais com a criação de uma teoria feminista. Geralmente, quando as pessoas falam ou escrevem sobre o movimento feminista contemporâneo, dão a entender que, em seus começos, havia um conjunto de princípios e crenças lhe servindo de base. Na verdade, quando a marcha feminista teve início no final dos anos 1960, ela foi protagonizada por mulheres que, em geral, sequer sabiam da existência umas das outras. Não havia uma plataforma comum definida com clareza.

    Enquanto Betty Friedan escrevia sobre o problema que não tem nome, denunciando o modo como a discriminação sexista afetava as mulheres brancas, com diplomas e privilégios de classe, Septima Clark, Ella Baker, Fannie Lou Hamer e Ann Mood, juntamente com mulheres negras de toda parte dos Estados Unidos, desafiavam o sexismo dentro do movimento pelos direitos civis.

    Não sabemos quem usou pela primeira vez a expressão libertação das mulheres nem consideramos que isso tenha alguma importância. Significativo é antes o fato de que, como mostra a história do movimento feminista contemporâneo, em toda parte havia mulheres lutando contra o sexismo. Quando essas mulheres começaram a se encontrar e trocar experiências, aquela rebelião coletiva passou a ser conhecida como libertação das mulheres (women’s liberation), desdobrando-se posteriormente no movimento feminista. A luta feminista ocorre a qualquer época onde quer que uma mulher ou um homem se erga contra o sexismo, contra a exploração sexista e a opressão. O movimento feminista acontece quando grupos de pessoas se reúnem em torno de uma estratégia organizada no intuito de combater o patriarcado.

    Cresci e fui educada no seio de uma família patriarcal; e foi a partir dela que desenvolvi uma consciência feminista. Meu grito de revolta feminista ocorreu quando decidi ingressar na universidade, desafiando as crenças patriarcais de meu pai e o receio de minha mãe, pois, na visão deles, estudar demais não combinava com os interesses de uma mulher de verdade. Envolvi-me com o movimento feminista na época da faculdade. Em toda parte, as mulheres engajadas em causas políticas radicais (a libertação do povo negro, socialismo, pacifismo, direitos ambientais) tinham sua atenção voltada para a questão de gênero. Apoiando-se no trabalho das ativistas que lançaram o movimento de libertação das mulheres, escrevendo manifestos e artigos acadêmicos com tomadas de posição, as estudantes foram encorajadas a examinar o passado, a encontrar e revelar as histórias soterradas das mulheres, a trazer à tona nosso legado feminista. E, enquanto isso acontecia, um outro campo de estudos acadêmicos centrado na mulher estava surgindo: a teoria feminista.

    Diferentemente dos estudos feministas focados na recuperação do passado, da história de heroínas esquecidas, de escritoras, e assim por diante, ou preocupados em documentar pelo prisma das ciências sociais as várias realidades da mulher contemporânea, a teoria feminista, a princípio, se apresentou como espaço para colocar em discussão os papéis de gênero herdados de uma tradição sexista. Tratou-se de conferir um caráter revolucionário ao movimento, a partir do qual se pretendia chegar a uma transformação da cultura patriarcal. No final dos anos 1970, as pensadoras feministas já haviam se engajado numa crítica dialética daquele pensamento feminista forjado na esteira do radicalismo de dez anos atrás. Tal crítica lançou as bases para uma teoria feminista revisionista.

    O pensamento e a prática feministas foram profundamente alterados quando mulheres negras e brancas de postura radical começaram, juntas, a desafiar a ideia de que o gênero era o fator que, acima de todos, determinava o destino de uma mulher. Ainda me recordo do incômodo que causei numa turma de estudos da mulher que frequentei – uma turma formada só por mulheres brancas, sendo eu a exceção, mulheres que, em sua maior parte, provinham de um ambiente privilegiado – quando interrompi uma discussão sobre a origem da dominação em que se argumentava que, quando uma criança vem ao mundo, o fator mais importante a ser considerado era o gênero. Afirmei que, quando uma criança nasce de mãe e pai negros, o fator de maior importância é a cor da pele, depois o gênero, porque a raça e o gênero irão determinar o destino dessa criança. Atentar para a inter-relação entre gênero, raça e classe social foi a perspectiva que mudou a orientação do pensamento feminista.

    No começo do movimento feminista era mais fácil aceitar que a combinação de gênero, raça e classe social determinava o destino das mulheres, porém muito mais difícil era compreender como isso deveria concretamente moldar e elucidar a prática feminista. Enquanto as feministas geralmente falavam da necessidade de se construir um movimento feminista de massas, não havia nenhuma fundação sólida sobre a qual edificar esse movimento. Ter sido estruturado em cima de uma plataforma estreita não foi o único problema do movimento de libertação das mulheres; não menos grave foi ter dado prioridade a questões relevantes primordialmente para mulheres com privilégios de classe (em maior parte, brancas). Precisávamos de uma teoria capaz de mapear ideias e estratégias para um movimento de massas, uma teoria que examinasse nossa cultura de um ponto de vista feminista enraizado numa compreensão das questões de raça, gênero e classe social. Foi em resposta a essa necessidade que escrevi Teoria Feminista: Da Margem ao Centro.

    Hoje em dia é tão comum para a militância feminista evocar a tríade gênero, raça e classe social que as pessoas frequentemente se esquecem de que, no início, a maior parte das pensadoras feministas, muitas delas brancas e provenientes de classes privilegiadas, era refratária a essa perspectiva. As pensadoras feministas radicais/revolucionárias que queriam falar sobre gênero com base na tríade raça, sexo e classe social eram chamadas de traidoras e acusadas de destruírem o movimento mediante uma mudança de foco. De modo geral, nosso trabalho era ignorado e impiedosamente criticado, considerado pouco acadêmico e excessivamente polêmico. Naqueles dias, as mulheres de cor eram normalmente encorajadas pelas companheiras brancas a falar sobre raça, ao passo que nossas ideias sobre todos os outros aspectos do movimento feminista eram deixadas de lado. Protestamos contra essa marginalização de nossa perspectiva partilhando nosso compromisso com a criação de uma teoria feminista abrangente, endereçada a um amplo leque de questões. Esse compromisso é a base ética de Teoria Feminista: Da Margem ao Centro.

    Um dos aspectos mais afirmativos do movimento feminista tem sido a formação de um ambiente intelectual alimentado por um fluxo contínuo de críticas e trocas dialéticas. Abrir os ouvidos para o que as pensadoras radicais (incluindo as de cor) tinham a dizer mudou a fisionomia da teoria e da prática feministas. Muitas daquelas mulheres brancas pouco esclarecidas a esse respeito conseguiram quebrar as amarras de seu preconceito e começaram a examinar por um novo prisma o modo como a questão de gênero vinha sendo abordada até aquele momento. Em nossa sociedade não se encontra outro movimento por justiça social tão autocrítico quanto o movimento feminista. Essa disposição para mudar de direção sempre que necessário tem sido a principal fonte de vitalidade e força para a luta feminista. Essa crítica interna é essencial para qualquer política de transformação. Assim como nossas vidas não são estáticas, estão sempre mudando, nossa teoria tem de permanecer fluida, aberta, permeável ao novo.

    Quando saiu a primeira edição deste livro, ela foi saudada e celebrada por pensadoras feministas ávidas de uma nova visão. Mesmo assim, algumas pessoas consideraram a teoria aqui exposta como provocativa e desconcertante. Expressões como dissecação cruel foram usadas por críticos que resenharam o livro. Naquela época, o mainstream do movimento feminista simplesmente fez vista grossa a este trabalho, como costumava fazer diante de qualquer teoria feminista considerada excessivamente crítica e excessivamente radical.

    Como uma obra visionária, Teoria Feminista: Da Margem ao Centro foi apresentada a um mundo feminista que ainda não estava preparado para ela. Lentamente, à medida que as pensadoras feministas (principalmente as brancas) foram entendendo a questão do gênero pela perspectiva da tríade raça, sexo e classe social, este livro começou a receber a atenção que merecia. Hoje, ele ocupa seu lugar junto a outros textos visionários que vieram alterar de uma forma positiva e construtiva o pensamento feminista contemporâneo.

    O plano do movimento feminista presente nesta obra é perfeitamente razoável. Tão relevante para a situação atual quanto o foi há alguns anos, oferece diretrizes para a edificação de um movimento feminista de massa, algo que ainda buscamos desesperadamente. Escrito numa linguagem bem mais acessível do que boa parte da teoria feminista atual, encarna a esperança feminista de que podemos encontrar uma linguagem comum a ser disseminada mundo afora. De lá para cá, o pensamento feminista acadêmico se afastou da vida da maior parte das pessoas nessa sociedade. E é justamente essa distância que faz com que o pensamento feminista pareça rarefeito e irrelevante para a maioria das pessoas. Neste livro enfatizo que precisamos de escritos feministas que falem para qualquer um, pois, do contrário, a educação feminista para uma consciência crítica não poderá vingar.

    O movimento feminista gerou mudanças profundamente positivas na vida de meninos e meninas, mulheres e homens, que vivem em nossa sociedade sob um sistema político fundado num patriarcado capitalista, imperialista e de supremacia branca. E embora o feminismo trashing – que pratica críticas abusivas ou até mesmo verdadeiras campanhas de desmoralização pública contra indivíduos – venha se tornando um lugar comum, o fato permanece: todos se beneficiaram de uma revolução cultural empreendida pelo movimento feminista contemporâneo. Ele mudou nossa forma de ver o mundo, de trabalhar e de amar. E mesmo assim o movimento feminista não produziu uma revolução sustentável. Não acabou com o patriarcado, não erradicou o sexismo nem a exploração e a opressão sexistas. Em consequência, os ganhos feministas estão sempre em risco.

    Já estamos testemunhando grandes perdas na arena dos direitos reprodutivos. Assiste-se a uma escalada da violência contra a mulher. A força de trabalho está diariamente reinstaurando o viés de gênero. Críticos raivosos do feminismo culpam o movimento pela violência familiar, conclamando mulheres e homens a darem as costas ao pensamento feminista e a retornarem aos seus papéis de gênero definidos em termos sexistas. A mídia patriarcal ou difama o feminismo ou o apresenta ao público como desnecessário, já morto e enterrado. Mulheres oportunistas aplaudem o sucesso feminista, mas nos dizem que o movimento já não é necessário, pois todas as mulheres melhoraram suas vidas; isso a despeito do fato de estarmos num mundo em que as mulheres estão se tornando a maioria entre os pobres de nossa nação, em que mães solteiras são patologizadas, em que nenhuma assistência social está disponível para socorrer necessitados e indigentes, em que a maior parte das mulheres de todas as idades não tem acesso a um plano básico de saúde. E apesar dessa crua realidade, o discurso feminista visionário se acha cada vez mais restrito aos ambientes da elite culta. Se permanecer confinada, a mensagem feminista não será ouvida, e o movimento acabará fenecendo.

    Se quisermos renovar a luta feminista e garantir que estamos na direção certa, ainda precisamos de uma teoria feminista que fale a todos, que deixe todos cientes de que o movimento feminista pode mudar suas vidas para melhor. Essa teoria, assim como a análise oferecida em Teoria Feminista, sempre irá nos desafiar, sacudir, provocar, mudar nossos paradigmas e nosso modo de pensar, dando uma guinada em nossas vidas. É o que fazem as revoluções. E a revolução feminista é necessária caso queiramos viver num mundo livre de sexismo; em que a paz, a liberdade e a justiça prevaleçam; um mundo sem dominação. Se trilharmos um caminho feminista, é aonde chegaremos. Teoria Feminista: Da Margem ao Centro pretende continuar iluminando essa necessária caminhada.

    Prefácio à Primeira Edição

    Estar na margem é fazer parte de um todo, mas fora do corpo principal. Para a maioria dos habitantes negros de uma pequena cidade do estado de Kentucky, os trilhos da estrada de ferro nos faziam recordar diariamente nossa marginalidade. Do lado de lá desses trilhos, havia ruas pavimentadas, lojas em que não podíamos entrar, restaurantes onde não podíamos nos sentar e comer, e pessoas que não podíamos olhar diretamente no rosto. Do lado de lá desses trilhos, havia um mundo em que podíamos trabalhar como empregadas domésticas, zeladoras e prostitutas, claro, desde que fôssemos capacitadas para o serviço. Podíamos frequentar esse mundo, mas não viver nele. Tínhamos sempre de retornar à margem, cruzar de volta os trilhos da estrada de ferro e nos recolher a barracos e casas abandonadas na periferia da cidade.

    Havia leis para assegurar nosso retorno. Não retornar implicava risco de punição. E por viver como vivíamos – nas extremidades – desenvolvemos um modo particular de enxergar as coisas. Olhávamos tanto de fora para dentro quanto de dentro para fora. Focávamos nossa atenção no centro assim como na margem. Compreendíamos ambos. Essa forma de ver nos lembra da existência de todo um universo, um corpo principal com sua margem e seu centro. Nossa sobrevivência depende de uma conscientização pública contínua da separação entre margem e centro e de um contínuo reconhecimento privado de que nós somos uma parte necessária, vital, desse todo.

    Esse senso de inteireza, gravado em nossas consciências pela estrutura de nossas vidas cotidianas, haveria de nos prover de uma visão de mundo contestadora – um modo de ver desconhecido de nossos opressores – que nos sustentava, ajudando-nos em nossa luta para superar a pobreza e o desespero, fortalecendo nossa percepção de nós mesmas e nossa solidariedade.

    O desejo de explorar todas as possibilidades foi a perspectiva que norteou a escrita de Teoria Feminista: Da Margem ao Centro. Muitas teorias feministas foram elaboradas por mulheres privilegiadas que vivem no centro, cujas perspectivas sobre a realidade raramente incluem o conhecimento e a experiência vivida por aquelas mulheres e homens que vivem na margem. Como consequência, falta inteireza à teoria feminista, falta aquela amplitude analítica capaz de abarcar uma variedade de experiências humanas. Embora as teóricas do feminismo estejam conscientes da necessidade de desenvolver ideias e análises que abarquem um grande número de experiências e que sirvam para unificar e não para gerar polarizações, esse tipo de teoria é complexo e sua formação é lenta. Em sua constituição mais visionária, irá emergir daqueles indivíduos que possuam um conhecimento tanto da margem quanto do centro.

    Foi a escassez de material de e sobre mulheres negras que me levou a pesquisar e escrever Ain’t I a Woman: Black Women and Feminism. Foi a ausência de uma teoria feminista que desse conta tanto da margem quanto do centro que me levou a escrever este livro. Nas páginas que seguem, exploro as limitações de vários aspectos da teoria e da prática feministas, propondo novas direções. Tento não repetir ideias já amplamente conhecidas e discutidas, procurando, em vez disso, explorar novos temas ou novas perspectivas sobre velhos temas. Como consequência, alguns capítulos são longos, e outros bastante curtos; nenhum deles pretende fornecer uma análise completa. Ao longo de todo o trabalho, meus pensamentos foram moldados pela convicção de que o feminismo precisa se tornar um movimento político de massa para que possa ter algum impacto revolucionário, transformador, em nossa sociedade.

    "

    O movimento feminista continua sendo uma das frentes mais poderosas de luta por justiça social no mundo de hoje.

    Como grupo, as mulheres negras estão numa posição peculiar na sociedade, não apenas porque, em termos coletivos, estamos na base da pirâmide ocupacional, mas também porque o nosso status social é inferior ao de qualquer outro grupo. Isso signifi ca que carregamos o fardo da opressão sexista, racista e de classe.

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    Mulheres Negras:

    Moldando a Teoria Feminista

    Nos Estados Unidos, o feminismo nunca foi protagonizado pelas mulheres que mais sofrem com a opressão sexista; que são diariamente subjugadas, mental, física e espiritualmente – mulheres sem o poder de mudar suas condições de vida. Elas formam uma maioria silenciosa. E é característico dessa condição de vítima que elas aceitem o destino que lhes é imposto sem nenhum questionamento, sem nenhum protesto organizado, sem articular de forma coletiva sua raiva e sua fúria. The Feminine Mystique (A Mística Feminina), de Betty Friedan, ainda é apontado como um precursor do movimento feminista contemporâneo – ora, ele foi escrito como se essas mulheres não tivessem existido. (Embora A Mística Feminina tenha sofrido críticas e ataques de várias frentes, chamo novamente a atenção para ele porque certas premissas enviesadas sobre a natureza do status social da mulher sugeridas por esse texto continuam a moldar o teor e a direção do movimento feminista.)

    A famosa frase de Friedan, o problema que não tem nome, geralmente citada para descrever a condição da mulher nessa sociedade, na verdade se referia ao drama de um seleto grupo de esposas brancas das classes média e alta, com nível superior – mulheres do lar, entediadas pelas horas de lazer, atividades domésticas, crianças e compras, e que esperavam mais da vida. Friedan termina o primeiro capítulo de seu livro com a seguinte assertiva: Não podemos continuar ignorando aquela voz dentro das mulheres que diz: ‘Quero algo mais do que meu marido, meus filhos e minha casa.’ Ela definiu esse algo mais como a carreira. Ela não discute quem seria chamado a tomar conta das crianças e manter a casa, no caso de mais mulheres como ela serem liberadas de seu trabalho doméstico e conseguirem ingressar no mundo profissional em condições equivalentes às dos homens brancos. Ela não fala das necessidades das mulheres sem homens, sem filhos, sem um lar. Ela simplesmente ignora a existência de todas as mulheres que não são brancas ou que são brancas, porém pobres. Ela não diz aos leitores se a vida de uma empregada doméstica, de uma baby-sitter, de uma operária, de uma secretária ou de uma prostituta traz mais realizações do que a vida de uma esposa da classe do lazer¹.

    Ela fez de seu drama e do drama de mulheres brancas como ela o sinônimo da condição de todas as mulheres da América. Com isso, disfarçou suas atitudes classistas, racistas e sexistas em relação à população feminina da América. No contexto de seu livro, Friedan deixa claro que as mulheres vistas por ela como vítimas do sexismo eram as mulheres brancas com ensino superior e condenadas pelo sexismo ao confinamento doméstico. Ela diz:

    É urgente entender como a condição de dona de casa pode criar na mulher um sentimento de vazio, de não existência, de nulidade. Existem aspectos nesse papel que tornam quase impossível para uma mulher intelectualmente adulta preservar um senso de identidade humana, aquele núcleo chamado de si-mesmo [self], sem o qual um ser humano não está verdadeiramente vivo. Para as mulheres dotadas de alguma habilidade na América de hoje, estou convencida de que existe algo na condição de esposa e dona de casa que é em si mesmo perigoso.

    Os problemas e dilemas específicos das esposas brancas da classe do lazer eram questões reais dignas de preocupação e mudança, mas não eram as questões políticas prementes da maior parte da população feminina. A maior parte das mulheres estava preocupada com a sobrevivência econômica, a discriminação racial e étnica etc. Quando Friedan escreveu A Mística Feminina, mais de um terço das mulheres estavam na força de trabalho. Embora muitas mulheres desejassem se tornar esposas, apenas as com tempo livre e dinheiro podiam realmente moldar sua identidade segundo os termos da mística feminina. Essas mulheres, nas palavras de Friedan, "eram aconselhadas pelos mais avançados pensadores de nossa época a recuar e viver suas vidas como se fossem Noras², confinadas à casa de bonecas em virtude de preconceitos vitorianos".

    A julgar por seu escrito de juventude, é como se Friedan nunca tivesse se perguntado se o drama das esposas brancas e com ensino superior era um ponto de referência adequado para aferir o impacto do sexismo ou da opressão sexista na vida das mulheres na sociedade estadunidense. Nem foi além de sua própria experiência de vida para adquirir uma perspectiva expandida sobre a vida das mulheres nos Estados Unidos. Não digo isso para desacreditar seu trabalho. Ele permanece sendo uma discussão útil sobre o impacto da discriminação sexista dentro de um seleto grupo de mulheres. Por outro lado, podemos considerá-lo útil como um estudo de caso sobre narcisismo, insensibilidade, sentimentalismo, autoindulgência, cujo momento mais extremo ocorre quando Friedan, no capítulo intitulado Desumanização Progressiva, traça uma comparação entre os efeitos

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