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Mate-me quando quiser
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E-book196 páginas2 horas

Mate-me quando quiser

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Sobre este e-book

Decidindo que sua vida deveria chegar ao fim, mas sem coragem de cometer suicídio, uma mulher contrata Soares, um matador de aluguel. Resolve que sua morte acontecerá na bela cidade de Barcelona, e para isso envia ao seu futuro algoz a passagem de avião e o endereço de onde ficará na Espanha. Ele deverá matá-la no prazo de quatro meses, quando for mais conveniente. Junto com o pagamento, manda também uma foto sua, para que ele saiba quem ela é. Mas ela não quer saber como é a aparência de seu matador. O destino, porém, nem sempre cumpre à risca os planos que costumamos traçar para ele.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento24 de set. de 2014
ISBN9788582351826
Mate-me quando quiser

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    Mate-me quando quiser - Anita Deak

    Para os mortos que a terra acalenta

    Manuel Gomes

    Maria do Perpétuo Socorro Martins Baptista

    Luciano Martins Baptista

    Ricardo Martins Baptista

    Para os vivos que ainda há de comer

    Maria da Piedade Gomes

    Sylvio José Martins Baptista

    Francisco Bela Martins Deak

    Janaína Maura Martins Baptista

    Maria Aparecida Ferraz

    Ainda assim, a presença da morte sempre

    renova nossa experiência – é sua função

    ajudar-nos a refletir sobre a estranheza

    disso que chamamos tempo.

    Lawrence Durrell

    Justine, O Quarteto de Alexandria

    Parte um

    Caro Soares, fico satisfeita de que já tenha recebido todo o dinheiro. Em anexo, estão a sua passagem para Barcelona e a minha fotografia. Abaixo, o endereço do hotel onde ficarei hospedada. Mate-me quando quiser, ou melhor, no dia que lhe convier dentro dos próximos quatro meses. A única coisa que peço é discrição. Você sabe quem eu sou, mas não quero saber quem você é.

    A mulher que tinha encomendado a própria morte estava no La Flor del Camino, restaurante no Paseo de Colón, em Barcelona. Seus dedos finos e longos percorriam uma taça de vinho branco, e comia presunto pata negra com pequenos recortes de pão, enquanto observava o movimento. Pessoas entravam e saíam, um fluxo de mulheres e homens, alegres e tristes, crianças birrentas, chefes de família que checavam os preços no cardápio. À direita da entrada, um casal aproveitava o intervalo do almoço para namorar.

    Enquanto os clientes moviam-se como se feitos de fumaça, a única presença constante, vértice que movia a engrenagem do La Flor del Camino, era Mário, o garçom. Aos 62 anos, ele se desdobrava para atender toda a clientela. Ágil, tirava os pedidos, buscava-os, colocava as bandejas sobre as mesas e voltava ou para a cozinha ou para perto do balcão. Apesar das olheiras profundas, servia de forma descansada, serena. Oferecia o mesmo olhar prestativo e formal a todos os fregueses. Ou melhor, a quase todos.

    A exceção era o cliente da mesa dos fundos. Mário acercara-se dele, pousando, informalmente, as mãos calejadas no encosto de sua cadeira. O moreno, de barba cerrada e olhos pretos, não estranhou a proximidade. Disse qualquer coisa sem mirar o garçom, enquanto o funcionário lhe prestava uma atenção devotada.

    O freguês tinha os lábios cheios, o olhar perdido. Apoiava as mãos descomunais na toalha branca da mesa, alisando-a de tempos em tempos. Estava lá para almoçar sozinho, assim como a mulher que o observava. Enquanto os outros frequentadores comiam acompanhados ou refugiavam-se em celulares, ambos sustentavam-se ímpares. A solidão da espera não lhes causava nenhum desconforto.

    Quando Mário voltou da cozinha, trouxe duas bandejas com travessas de arroz, salada, batatas e minipolvos apimentados. Organizou a comida à frente do Homem, abriu a garrafa de água mineral, e foi até a mulher servi-la do mesmo prato.

    Ela comia sem pressa, derramando fios de azeite a cada garfada. Sentia primeiro o sal nas batatas bravas, depois a pimenta nos minipolvos, o tempero suave do arroz e, por último, o refrescante molho de limão que se derramava sobre a salada. Cada gosto de uma vez, tudo a seu tempo.

    O Homem, por sua vez, comia a ponto de engasgar. Misturava tudo, fazendo uma festa de cores; juntava salada, batata, polvo e arroz como se separados lhes faltasse a liga indispensável à boa comida espanhola. Era curioso: primeiro, a calma em esperar pela comida. Depois, a ansiedade em terminá-la. Fosse apenas fome, ele teria diminuído o ritmo assim que as primeiras garfadas lhe tivessem forrado o estômago. Mas não. A pressa crescia em proporção ao esvaziamento do prato.

    É difícil explicar por que, entre uma garfada e outra do Homem, a Mulher resolveu segui-lo. Se ele tivesse pedido um prato diferente do dela, talvez isso não acontecesse. Se houvesse comido com mais calma, também não. Tivesse Mário o tratado como qualquer um, tudo poderia ser diferente. Fosse feio, outro desfecho. Mas é do somatório de pequenos fatos, aparentemente sem sentido, que se faz a história.

    Ela não tinha nada programado para fazer à tarde. Além disso, estudara, durante muitos anos, certas correntes esotéricas cujas bases afirmam categoricamente que a vida é composta de sinais. Que não se cisma com uma pessoa à toa. Que coincidências não existem. E, por mais que achasse que se livrara do misticismo, a verdade é que não. Certas crenças incrustadas demoram muito a sair do sangue.

    Tomada pela ideia de seguir um desconhecido, acenava para Mário, preocupada em pedir a conta antes que o homem, apressado, pagasse e fosse embora. Buscava um gesto harmonioso, forte o suficiente para o garçom notar e sutil o bastante para o homem não reparar.

    Mário viu a ansiedade dela no canto do olho, avançou entre as mesas e parou ao lado de algumas, sem ser solicitado, para perguntar aos clientes se desejavam algo mais. Quando estava a meio caminho entre a mesa da Mulher e a do Homem, notou que o último também levantara a mão. Virou a cabeça em direção a um, em direção à outra e definiu os rumos da narrativa.

    Foi o girar do calcanhar de Mário em direção à Mulher que mudou a vida de ambos, Homem e Mulher. E se tal frase dá a entender o surgimento de um romance, ela diz mais sobre o leitor que interpreta além do que está escrito. Foi literalmente o girar do calcanhar de Mário em direção à Mulher que mudou a vida de ambos, Homem e Mulher. Nem sempre a vida se justifica com romances.

    Há que se ter certo talento para seguir uma pessoa sem que ela note. A Mulher nunca fizera nada semelhante e, por isso, a cada passo, ouvia martelar o coração. A boca secava, as pernas entortavam e muitas foram as vezes em que tropeçou nas pedras do bairro gótico, quase levandose ao chão. Não ajudava o Homem ter pernas bem mais compridas do que as dela.

    Ele andava a passos firmes. Levava uma marmita com alguma sobra do almoço. Olhado de trás, parecia um soldado em movimento. Ombros eretos, quadris encaixados, braço direito à frente, braço esquerdo atrás, braço esquerdo à frente, braço direito atrás. Ela o acompanhava a uma distância de dez metros, o justo para não perder o contato nem despertar suspeita. A margem de segurança, porém, não a impediu de sobressaltar-se quando ele entrou numa rua estreita e parou diante de um prédio.

    Prevendo todo o ridículo da situação se ele virasse para trás e perguntasse Você não estava no restaurante?, ela sentou-se no meio-fio oposto ao que o Homem estava. Sacou a câmera digital da bolsa e se pôs a examiná-la, fingindo-se preocupada em perder preciosas fotos de viagem. O Homem, de costas para ela, ignorava o teatro.

    Depois de tatear os bolsos uma, duas, três vezes, em busca da chave para entrar no prédio, sacou o celular do bolso, digitou um número e mirou a sacada de um dos apartamentos. Desfez-se da postura de soldado, distribuindo o peso entre as pernas abertas, e perdeu altura com as costas menos eretas. Do meio-fio, a Mulher não resistiu. Tirou uma fotografia daquele homem que só parecia confortável em situações de espera.

    Uma morena de cabelos enrolados abriu a porta da entrada do edifício. Trouxe um menino de seis anos pela mão. O menino fez festa para o Homem. O Homem fez festa para o menino. A morena beijou o Homem na boca. E, curiosidade satisfeita, a Mulher, que a tudo assistia, levantou-se e tomou o caminho da rua. O Homem, no entanto, não subiu com a Morena e o menino. Apenas deixou-se conversar por algum tempo, entregou a marmita, despediu-se e seguiu na direção da Mulher.

    Desta vez, era ela quem estava de costas para ele, atenta a uma vitrine que exibia luminárias japonesas. Ele passou rente, de perfil, e quis Deus, o destino, o mago das penas, o protetor de quem escreve, ou seja lá quem for que do outro lado manda dicas, que ela tivesse olhado exatamente a direita da vitrine no exato momento em que a silhueta do Homem ali se refletiu.

    E do susto ao pensamento de que ele ter aparecido certamente queria dizer alguma coisa decorreram poucos segundos. Novamente, com o coração descompassado e as pernas curtas a acelerarem-se, ela voltou a segui-lo, sem entender racionalmente o porquê do próprio comportamento. Seria curiosidade, um parafuso a menos, ou apenas falta do que fazer? Talvez tudo isso junto. Não podemos esquecer que a personagem pagou para morrer. Logo, normal – ao menos aos olhos da maioria dos leitores – ela não deve ser.

    A perseguição não foi das mais fáceis. Entre o Homem e a Mulher, houve uma passeata no Palácio de la Generalidad, uma feira conduzida por paquistaneses barulhentos e sinais de trânsito que quase os separaram. Ela vencia a Babelbarcelona para continuar no encalço dele.

    E se alguém com o pensamento menos analítico pudesse ver na fresta desta cena um pouco da história da mulher que andava, saberia que, para certas pessoas, vale mais o propósito do que o resultado. Ela não sabia por que andava, quando pararia e o que esperava ver da vida do Homem. Existia apenas a necessidade – desde o La Flor del Camino – de andar, andar e andar, tendo como ponto de referência aquelas costas aprumadas.

    E então ele parou novamente em frente a um prédio, já em outro bairro. E ela sentou-se no meio-fio oposto com a câmera digital nas mãos. Repetiu o ritual de fotografá-lo de costas, fosse para passar o tempo, fosse para suportar o medo de que ele se virasse. Comparou a foto com a que havia tirado antes. Na última, porém, a postura contraída revelava outra faceta daquele homem. Subiu os olhos, mas ele já havia aberto a porta e sumido pela escada.

    O edifício era daqueles que costumam encantar os turistas em Barcelona, sobretudo os que não vivem no continente europeu. Estreito, cinza, com paredes manchadas e ornado por varandas e gradis em art nouveau, deixava à mostra flores e roupas a saudar, da sacada, os passantes.

    A Mulher reparava nesses detalhes que, anos antes, tinham lhe apresentado a cidade catalã, quando subiu o olhar para uma das varandas do terceiro andar. Lá, uma mulher loira, pequena, estendia uma saia longa num varal portátil. Ao seu lado, uma menina de seis anos observava o trabalho. De tão semelhantes, as duas pareciam separadas somente pelo tempo, que coloca em gerações diferentes pessoas que apenas continuam outras.

    Subitamente, o Homem apareceu na sacada e pegou a criança no colo. Inclinou-se e beijou a Loira na boca. Conversaram, enquanto ela terminava de estender outras peças de roupa. No meio-fio, a Mulher era só interrogação.

    Era a última missão de Soares. Em vinte anos de carreira, nunca quisera saber o que levava cada um de seus clientes a contratá-lo para acabar com a vida de alguém. Aquele caso, porém, era único: a mulher tinha encomendado a própria morte. E uma coisa era matar alguém a mando de outra pessoa; o dinheiro caía na conta e ele não perguntava nada. Outra coisa era prestar serviço a uma suicida.

    Não que tivesse algo contra quem quisesse se matar. Mas já vinha há tantos anos seguindo o mesmo roteiro – o de matar quem, teoricamente, queria viver – que se sentia estranho em assassinar alguém que sabia e apreciava o fato de que ia morrer. Alguém que, ao contrário de todas as suas outras vítimas, sabia da existência e do trabalho dele. Era como se, para matá-la, Soares fosse obrigado a sair das sombras.

    Enquanto a Mulher tomava banho, algumas horas antes de ir para o La Flor del Camino – na fatídica tarde em que seguira o Homem –, Soares se preparava no apartamento que alugara em Barcelona. A pistola HK preta, calibre nove milímetros, fazia contraste com o lençol imaculado da cama king size. Do banheiro, ao passo que fazia a barba, ele podia vê-la no reflexo do espelho amplo. Deixara a porta aberta só para dar uma espiada. Puta arma bonita.

    Ele encomendara a peça a um colega do bairro chinês especialmente para a missão. A HK pesava 700 gramas, tinha chassi de polímero, e o silenciador adaptável reduzia 85% do barulho causado pelo disparo. A munição perfuro-contundente, por sua vez, dificultava o trabalho de balística por parte das autoridades: a bala se espatifava dentro do corpo atingido. Uma arma tão interessante quanto a vítima.

    Soares barbeava-se com esmero. Ao contrário de outros matadores, que deixavam crescer a barba para disfarçar os ângulos do rosto, ele gostava de sentir-se nu. Antes de chegar à Espanha, havia raspado todos os pelos do corpo, num

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