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segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Sim, eles — ditos deficientes — fodem. E querem falar sobre isso

Primeira conferência do Sim, Nós Fodemos, movimento que se bate por desmistificar a sexualidade dos deficientes, realiza-se simbolicamente a 14 de Fevereiro, no Maus Hábitos, no Porto


Sim, eles — as pessoas com diversidade funcional, vulgo deficientes — fodem. Ou, para "os ouvidos e mentes mais sensíveis", eles amam, namoram, desejam, fazem amor, excitam-se e, por isso, "têm direito a uma sexualidade digna e adequada". Palavras do Sim, Nós Fodemos, movimento que tem como objectivo abordar e desmistificar a sexualidade dos deficientes, e que a 14 de Fevereiro nos quer pôr a falar, lá está, de Sexualidade e Deficiência.

A data não é inocente. "Queríamos fazer uma coisa diferente para o Dia dos Namorados", explica Rui Machado, um dos organizadores. "E algo que desse visibilidade ao tema." Isto porque, mesmo quando se realizam conferências sobre deficiência, raramente "é abordada a questão da sexualidade". Aproveitando a "boa receptividade" que o movimento sempre teve junto da comunidade académica, decidiram que era então tempo de dar à letra.

A jornada arranca às 10h e prolonga-se até meio da tarde (ainda dá tempo para os jantares românticos com direito a peluches pirosos). Em cima da mesa, conta Rui, estão os mais variados temas: a psicóloga Ana Garrett aborda a reabilitação da sexualidade em pessoas com alterações sensitivas ("Será uma intervenção virada para soluções e alternativas"), enquanto que as investigadoras Lia Raquel Neves e Ana Lúcia Santos, do projecto Intimidade e Deficiência, reflectem sobre estereótipos discriminatórios ("Um dos nossos cavalos de corrida") e sobre a existência de diferentes orientações sexuais e identidades de género dentro da deficiência.

"Sim, Nós Fodemos", um nome "político"

O sexólogo Manuel Damas, uma figura polémica dentro do meio LGBT e também científico, mas que tem feito um "trabalho muito interessante na área da Sexualidade e Deficiência", sublinha Rui, terá a primeira intervenção ("Vamos falar claro?"). O sexólogo e psicólogo clínico Jorge Cardoso dá a perspectiva dos profissionais, "de quem recebe as queixas e anseios dos deficientes", enquanto que Manuela Ralha oferece a sua visão enquanto paraplégica. O dia termina com a intervenção "As fodas não se medem aos palcos" de David Almeida, actor com nanismo, alguém "que vai falar de sexualidade de forma muito franca". Está prometido.

Depois das intervenções haverá debates com moderação de membros do Sim, Nós Fodemos, neste caso Jorge Falcato e o próprio Rui Machado, 31 anos, doente neuromuscular e mestre em Psicologia Clínica, que vê este encontro como uma forma de "quebrar o preconceito e estereótipo" entre os "ditos normais", mas também entre as pessoas com deficiência. "Para terem consciência de que podem ter uma vida plena." "Curiosamente", em ano e pouco de activismo, as poucas críticas que receberam vieram de outros como eles. Também por causa do "Sim, Nós Fodemos", nome sem medo, "político, intencional, provocatório".

Criado em Novembro de 2013, o grupo Sim, Nós Fodemos surgiu dentro do movimento (d)Eficientes Indignados, onde a "necessidade" de abordar a questão da sexualidade ia sendo debatida. Missão: abordar o tema com naturalidade, não ter um discurso patologizante, dar voz, informar. E, encarando a sexualidade como um motor de desenvolvimento pessoal e social, discutir possíveis apoios sociais para pessoas com diversidade funcional. O nome e a imagem foram inspirados pelo documentário espanhol "Yes, We Fuck", mas depressa o grupo ganhou uma identidade própria — quanto mais não seja pelo design (a cargo de Rui), pela frontalidade, pelo humor da página de Facebook. "Vivemos numa realidade em que aquilo de que não se fala é porque não existe. Então vamos falar. De foder."

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Ahhh… a sexualidade das pessoas com deficiência…

Sempre me intrigou o exacerbado interesse que existe sobre a sexualidade das pessoas com deficiência (PCD). Digo exacerbado e explico porquê. Recentemente numa inquirição sobre quais os temas de formação permanente que eram preferidos por educadoras de infância (surgiu o “inevitável “ tema da “sexualidade e deficiência”). Este interesse é obviamente legítimo e racional e vou tentar explicar porque é que o é, na minha perspetiva, é claro.

O ponto de partida é que se deve passar algo de estranho com a sexualidade das Pessoas com Deficiência (PCD). A sua sexualidade é vista como um problema e até algo de patológico. Se o ponto de partida é este, os resultados só podem ser ainda piores. Se é um problema o melhor é não falar nisso. Existem investigações que recolheram opiniões de pais de PCD que dizem que não falam de sexualidade aos seus filhos para evitar que esse assunto ainda se agrave. A ideia é que tratar o assunto como se as PCD fossem assexuadas: o problema não existe. Mas, como sabemos ele existe e não adianta varrê-lo para debaixo do tapete. 

São conhecidas as dificuldades que as PCD têm de desenvolver uma sexualidade saudável e feliz. Descreveria três delas:

a) Antes de mais a diminuição de contatos sociais. As PCD têm por norma uma rede de contatos sociais muito mais restrita do que as pessoas sem deficiência. Este aspeto tem várias consequências: antes de mais reduz as oportunidades de informação. Na verdade, muita da informação que qualquer pessoa dispõe sobre sexualidade é transmitida entre pares, quer dizer que muita desta informação é transmitida e discutida em situações de interação e contactos interpessoais. Ora as PCD tendo redes sociais e de interação menos alargadas acabam por ter menos informação.

b) Para além da informação que é veiculada pelos contatos interpessoais, sabe-se que as PCD têm menos informação proveniente de outras fontes (família, professores, etc.) do que as pessoas sem deficiência. E doaremos um exemplo: em Portugal a educação sexual está regulamentada pelo dec-lei 60/2009 que indica que a educação sexual no meio escolar deve ser abrangente de todos os alunos. Mas os alunos que frequentam uma unidade (de multideficiência ou de ensino estruturado) têm um acesso mais restrito às salas de aula “regulares” onde é dada esta informação. Este é só um exemplo em que se verifica que há menos informação disponível.

c) A sexualidade das PCD é frequentemente entendida de uma forma “infantil”, isto é como sendo algo que apesar de real não poderá ser assumido plena e responsavelmente. A infantilização é uma forma de recusar que as PCD têm uma sexualidade e que não existe nada de especial nisso. Se se fizer regredir a sexualidade ao bebé, não se passa nada de especial…

O tema é extraordinariamente complexo e lato mas deixaria algumas sugestões de linhas de pensamento e de atuação:

1. A PCD tem uma sexualidade que tem de ser encarada e claramente assumida. Ignorar, desvalorizar, “desviar o assunto”, não é só uma inconsciência mas constitui também um atentado ao direito da pessoas levar uma vida com felicidade e qualidade.

2. A Inclusão continua a ser a grande alavanca. É através da inclusão que se podem potenciar as redes sociais que por sua vez favorecem o debate, a informação e a formulação das questões como sendo reais e suscetíveis de uma solução.

3. Precisamos de mais informação/formação para as famílias, para os professores, para os agentes comunitários e para as próprias pessoas com deficiência. Este trabalho com as pessoas que educam, ensinam e cuidam das crianças e jovens é essencial porque frequentemente a forma como estas pessoas vivem a sua própria sexualidade (os seus medos, tabus e fantasias) tornam-se “leis” que são transmitidas de forma inquestionável. Esta informação e formação é decisiva para que não se pense que o que temos que ensinar está dependente da racionalização das nossas próprias vivências saber a nossa sexualidade. 

Antes, como agora, é necessária mais ação para assegurar os direitos à sexualidade das PCD. E isso começa na escola.

Por: David Rodrigues

Presidente da Pró-Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial e professor universitário

In: Revista Plural & Singular, p. 54.

Via: Incluso

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

SEXUALIDADE E DEFICIÊNCIA

O Público de hoje, a propósito da situação de um cidadão francês com deficiência significativa, aborda uma questão que para a maioria de nós passa despercebida mas que, no entanto, é de extrema importância para muitas pessoas com deficiência. Trata-se das questões relativas à sexualidade.

Este cidadão reclama algo que se pode designar por reconhecimento do direito a “assistência sexual” e que se pode traduzir pela aceitação de uma “prostituição voluntária”, ou seja, a existência de voluntários e voluntárias que proporcionassem assistência sexual a pessoas que dada a sua condição de deficiência e por razões muito variadas não encontram parceiros sexuais.

Como muitas vezes aqui tenho referido, algumas das questões que respeitam às condições de vida das pessoas com deficiência envolvem mais os valores das comunidades que questões de natureza técnica ou funcional. No caso mais particular da sexualidade, a situação é ainda mais permeável a valores devido, obviamente, à forma como é percebida esta dimensão da nossa vida e a multiplicidade de ideias e valores de que é objecto.

São conhecidas as situações, aliás, já abordadas na comunicação social, de recurso por parte de deficientes à prostituição como forma de aceder a algo que naturalmente faz parte da globalidade do ser humano, a actividade sexual. Este recurso à prostituição, alvo de forte discussão, é ainda visto de forma diferenciada e mais discutida, consoante se trate de homens ou mulheres. Estas questões, tal como agora em França, suscitam sempre um forte debate decorrente do entendimento da prostituição e dos valores morais e éticos envolvidos. Este cidadão francês que também acusado de fomentar a prostituição introduz como dado novo a ideia de voluntariado.

É minha convicção de que o debate agora na agenda não será conclusivo. Apenas me parece de sublinhar que algumas das posições podem ser informadas por alguma hipocrisia com que, frequentemente as questões da prostituição e da sexualidade são encaradas e, sobretudo, a necessidade de estarmos atentos a um enorme equívoco que com muita frequência enuncio, sexualidade e deficiência não significa de todo deficiência na sexualidade.

Como sempre afirmo, um dos mais fortes indicadores de desenvolvimento das comunidades é a forma como percebem e lidam com os problemas das minorias.

Texto de Zé Morgado

domingo, 11 de novembro de 2012

Diaulas Ribeiro. “Autorizo as mães de rapazes com paralisia cerebral a levá-los às prostitutas”

Promotor brasileiro critica a Justiça do seu país, assume que é controverso e defende medidas polémicas, como o conceito de prostituta social

Conhecido por levar para o Brasil o debate sobre temas sensíveis, como a possibilidade de abortar fetos sem cérebro, a transexualidade e até o direito ao sexo de quem tem paralisia cerebral, Diaulas assume ser um homem polémico. Por ser irmão do advogado brasileiro de Duarte Lima preferiu não falar sobre o caso em concreto, mas explicou o que acontece neste tipo de situações. Aceitou ser entrevistado pelo i, a semana passada, durante uma visita a Lisboa _– no âmbito do programa universitário Erasmus Mundus.

É apontado pela imprensa brasileira como um homem polémico. Concorda com essa imagem?

Sim, admito que vesti sempre a capa do homem que não tem medo de causas polémicas.

Ter estudado fora do Brasil contribuiu para que tenha um papel tão activo em assuntos sensíveis?

Sem dúvida. Há uns anos, o Ministério Público brasileiro não imaginava que lhe pudessem bater à porta os casos com que hoje se depara. Mas eu estava preparado porque vivi em Portugal nos anos 90 e, nas horas vagas dos estudos, trabalhava teoricamente temas que no Brasil ainda não estavam sequer sedimentados. Durante a minha estada aqui, em 1995, já começavam a surgir no Brasil casos de aborto de fetos sem cérebro, mas ainda era uma novidade. É_bom lembrar que as ecografias eram exames que já se faziam há dez anos lá – há três décadas no resto do mundo –, mas não havia qualquer discussão sobre as consequências jurídicas desse exame.

O que quer dizer com isso?

É simples, a ecografia servia até então para fazer enxovais. A grande utilidade quando surgiu, até porque tinha uma imagem muito ruim, era ver o sexo da criança e começar a comprar roupa azul ou rosa. Na altura em que os médicos começaram a tirar outros proveitos do exame eu me perguntei: qual será a consequência jurídica disso? Na medida em que passa a ser possível se identificar doenças intratáveis no feto e que em muitos casos são incompatíveis com a vida. Isso teria de ter consequências jurídicas.

E quando é que a sociedade brasileira despertou para este problema?

Em 1997, quando passou a ser possível detectar se os fetos eram anencéfalos, as mães começam a se interrogar sobre qual o poder de um Estado que obriga a continuar uma gravidez com um feto tecnicamente morto. E digo tecnicamente morto porque o Brasil já em 1970 tinha definido os critérios da morte encefálica. E é um dado adquirido que quem cessa a actividade eléctrica no encéfalo está tecnicamente morto. O coração e o pulmão a trabalhar não são à luz da legislação referência para a morte.

Portanto, para si esses fetos não têm vida...

Exactamente. Ora se a vida termina, segundo a lei brasileira, quando se cessa a actividade eléctrica no encéfalo, se não há cérebro, ela nem começou. A partir daí, estamos em 1997, regresso a Brasília e reassumo a minha função de magistrado do Ministério Público, que no Brasil se diz promotor de justiça, e comecei a autorizar a interrupção de gravidez nesses casos.

Como se designa esse tipo de interrupção de gravidez?

Chamamos ATP (antecipação terapêutica de parto), uma expressão criada por mim e por uma professora de Brasília e que hoje é reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina, o equivalente à vossa Ordem dos Médicos.

Nunca sentiu qualquer pressão por estar a lutar contra algo que ainda não estava instituído?

Claro que sim. Quando comecei a autorizar essas interrupções enfrentei alguns opositores de peso, sobretudo os que são contra o aborto. Tratam este tema como se fosse um aborto normal, sem entender que se trata de um feto sem viabilidade, ou seja, que nunca terá vida.

Como se manifestaram?

Na verdade, toda essa oposição se intensificou quando decidi dar uma entrevista a um jornal dizendo que, em três anos, já tinha autorizado 62 interrupções. Achava que este assunto não era secreto e resolvi contar isso a uma jornalista da minha confiança. O jornal – O “Correio Braziliense” – faz disso capa e a partir daí a minha vida entra numa rota de colisão com tudo e com todos. Eu era professor titular da Universidade Católica e em 2002 fui demitido sumariamente. Um grupo de um segmento religioso começa a ter problemas comigo e abrem processos criminais contra mim. Nenhum foi a avante porque a acção penal é de iniciativa do MP e os movimentos religiosos não romperam nem conseguiram convencer o procurador-_-geral da República, que no meu caso era o meu acusador natural, a tomar uma iniciativa contra mim. A partir daí houve avanços e recuos. Chegou-se mesmo a proibir que o MP emitisse novos alvarás para abortos. O momento de viragem foi quando um desses processos foi para o poder judiciário e os juízes não autorizam decidir sobre a interrupção determinando que os autos me fossem entregues. Autorizei a interrupção e a partir daí não voltou a haver problemas.

Mas no anos 90 a interrupção da gravidez também não era um tema consensual em Portugal...

Quando nos anos 90 Portugal fala na interrupção da gravidez por má formação fetal até às 23 semanas refere-se ao feto que tem alguma viabilidade, ou seja, que pode ou não nascer. O que se discute no Brasil não estava ainda aí, estava ainda a tentar tornar legal a interrupção de gravidezes cujo feto não teria nunca vida.

E hoje isso já é aceite de forma generalizada?

Agora sim, mas é recente. A 12 de Abril deste ano, eu estava em Lisboa com uma dúvida cruel, porque nestes 15 anos autorizei mais de 800 casos, não que Brasília tenha muitos, mas porque como o Brasil maltrata muito as mulheres, elas saíam do Norte, do Nordeste e do Centro e me procuravam. Nesse mês esta matéria tinha entrado na pauta de julgamento do Supremo Tribunal de Justiça – e por isso aterrei em Lisboa no dia 4 – eu contava com alguma tragédia. Na prática, se o Supremo dissesse que era crime este tipo de interrupções, teria 800 crimes para responder e ia pegar cadeia. Ao fim e ao cabo eu não teria prisão imediata mas responderia a um processo.

Chegou a ponderar um pedido de asilo?

Sim, vim para Lisboa com um propósito: se tudo desse errado, pediria asilo político a Portugal ou a França. Mas no dia 12 de Abril eu vi que no Supremo a maioria votou a favor do que preguei a vida inteira e regressei ao Brasil.

Sentiu-se reconfortado por lhe terem dado razão?

Veja: consegui em 15 anos mudar uma mentalidade – quando havia qualquer dúvida eu era o bandido –, mas quando foi a hora de virar o herói ninguém se lembrou de mim. E muitas pessoas agora são defensores da causa desde criancinha, como dizemos no Brasil. Não estou preocupado com a glória das minhas decisões nem queria que o Brasil se ajoelhasse para me elogiar. Sou um servidor público pago pelo povo e o meu dever é proteger o povo. Eu juntei os meus conhecimentos jurídicos e de medicina e formei uma tese.

Hoje isso já está regulamentado?

Sim, o Conselho Federal de Medicina em seguida, porque o Supremo disse que não ia regulamentar, convidou-me para fazer parte da comissão que fez o texto. O meu papel foi reunir todas as posições e colocá-las numa resolução que tem quatro artigos. Esta é a lei brasileira que hoje regula estas situações. São 15 anos e batalha que acabam bem, mas é muito pouco. Comparando com Portugal e com a Europa é um passinho para o nada.

Está de acordo com a lei portuguesa no que respeita à interrupção da gravidez?

Sim. É de bom tamanho, aliás a proposta que vai a discussão no Brasil é idêntica, mas penso que não vai passar. Porque o Brasil é ainda um país muito sensível a determinados movimentos religiosos. Os abortos por violação são os únicos que não precisam de autorização de uma autoridade pública.

Alem das interrupções abraçou temas como a mudança de sexo. Esse ainda era tabu no Portugal dos anos 90, onde estudou. Como despertou para ele?

Bom, em Portugal nos anos 90 já se debatia a transexualidade. Havia médicos muito prestigiados que debatiam isso na televisão, mas, como você diz, ainda era um assunto tabu. Aí comecei a ver como funcionava em países como Inglaterra e EUA e apercebi-me de que havia um tratamento já mais avançado. Quando volto para o Brasil também começo a agir nesta matéria. Senti que todos teriam de entender que os transexuais não expressam a sua sexualidade e muitos nem sequer têm práticas sexuais. Sentem uma rejeição ao corpo físico. Como se costuma dizer, são pessoas com um corpo e uma alma oposta, uma maldade da natureza.

O que fez nos primeiros anos?

Em vez de olhar para os transexuais como falsificadores de documentos, passo a recebê-los como cidadãos e combino com toda a equipa do MP receber como mulheres os homens que chegavam lá com corpo de mulher e roupa de mulher. Pedia-lhes que não fizessem perguntas, que não constrangessem as pessoas. No Instituto Médico Legal (IML), que tem uma parceria connosco para fazer os exames prévios – verificando se já se mutilaram, se tomam hormonas ou se se amputaram – também dei indicações para que quando chegassem estas “moças exuberantemente bem vestidas” que as tratassem pelo nome social e não pelo nome dos documentos.

E quando insiste que a cirurgia de mudança de sexo é uma questão de saúde não enfrenta oposições?

Claro. Quando começou um processo de preparação para cirurgia, algumas pessoas diziam que eu estava gastando dinheiro público para tratar dessa “veadagem” – veado é um termo grosseiro no Brasil para tratar os homossexuais. Eu respondia dizendo que aquele dinheiro era tão útil como o que se gastava com quimioterapia. A diferença é que quem me criticava não sabia se um dia viria a ter cancro, mas sabia que nunca viria a ser transexual. Porque a transexualidade não começa aos 50 anos, mas aos quatro.

As primeiras cirurgias deste género acontecem em que ano?

Em 1998. É nesse ano que o Conselho Federal de Medicina autoriza esta cirurgia, mas com carácter experimental. Ou seja, não se poderia cobrar pela operação e só poderia ser feita em hospitais de ensino, limitando assim os privados. Felizmente, hoje já é possível de forma generalizada, mas ainda há entraves na criação de um pénis, por exemplo para as mulheres que gostariam de ser homens. Brasília foi em 2001, o primeiro local do Brasil onde o transexual entrou para a operação e saiu com uma vagina e todos os documentos de identificação com nome feminino. Hoje é até normal alguém que não alterou a genitália ter outro nome e sexo contrário.

Porque é tão sensível a estas matérias?

Bom, começo por dizer que não faço defesa de causas pessoais. Tenho é uma angústia muito grande de viver num país com tanta injustiça, um país rico com muitos pobres.

Mas a sua experiência de vida fá-lo olhar para estes problemas de outra forma?

A sua pergunta é interessantíssima. Nasci numa tradicional família mineira com uma formação rural... Não sei como consegui abrir a minha mente e passar a enxergar estes problemas do mundo moderno. A única explicação que encontro é o sofrimento constante que sinto. E deixe-me dizer uma coisa. É muito fácil você defender coisas que o atingem directamente, é fácil engajar uma campanha sobre um assunto que lhe toca. Mas comigo não foi assim e eu me sinto um privilegiado por nenhum dos temas que enfrentei me ter batido à porta.

Quando começa a interessar-se pelo direito de quem tem paralisia cerebral ao sexo?

Em primeiro lugar, queria frisar que esta preocupação existe aqui em Portugal. Lembro-me que a SIC fez aqui há uns anos uma matéria sobre isso e eu vim até falar sobre o assunto.

Mas a sua proposta é diferente do que acontece aqui, não são técnicas que sugere, mas sim o direito de essas pessoas recorrerem a prostitutas...

Sim, eu explico. O Brasil tem um crime de que não pretende abrir mão: a intermediação de relações sexuais. Quer haja quer não haja dinheiro. Mas quando o Brasil fez esta lei estava pensando – anos 80 – nos gigolôs, nos homens que exploravam mulheres e viviam da prostituição e até em máfias que ganhavam com isso. Mas uma coisa é você não precisar de um intermediário porque ele explora a vítima, outra coisa é precisar de um intermediário porque de outro modo o homem não consegue chegar na mulher. E é para essas pessoas que eu tenho vindo a trabalhar...

E porquê prostitutas e não técnicas para fazerem esse trabalho?

Bom, temos que ver o contexto. Chegam--me várias cartas de famílias, de mães que querem uma autorização para levar os seus filhos a prostitutas. Para quê isto? Estas mães e pais querem o conforto da legalidade.

E autoriza sempre?

Sim, mas evidente que dos meus enfrentamentos este é o que está tendo os piores resultados, porque não consigo envolver a mulher nos meus debates. Às mães que me procuram eu dou autorização – sem me responsabilizar por gravidez ou doenças –, por isso, o medo de ser apanhado numa batida da polícia deixa de existir. Essa pessoa não será presa. Esta autorização serve mais para o conforto dos pais.

Mas o que idealiza para o Brasil neste campo?

A minha proposta é abrir a discussão, mas há quem defenda que estou a instrumentalizar a mulher. E eu confesso que não estou preparado para esse debate, por isso tenho deixado o assunto em stand by. Se me procuram eu resolvo, mas não consigo ir mais longe sozinho. Até porque entrou o movimento feminista... e aí...

A eutanásia, em Portugal, é um assunto que não reúne consenso. Como é no Brasil?

Esse é um outro tema meu. No âmbito jurídico normativo formal, uma lei não há. Mas propostas de reforma do Código Penal nos últimos 20 anos são para mais de quatro e nenhuma andou. Quem está fazendo um trabalho fantástico nesta área é o Conselho Federal de Medicina. A eutanásia é também uma forma de cuidado e terá de ser debatida a sério em todo o mundo. Ninguém precisa de sofrer para morrer.

Que tipo de trabalho é esse?

O Conselho Federal de Medicina na resolução 1805 de 2006, em que eu participei, autoriza um médico a suspender tratamentos fúteis em caso de pessoas com doenças incuráveis em fase terminal. Porém, mais tarde, um juiz federal suspendeu esta resolução a pedido do MP Federal e ficou suspensa três anos. No ano passado foi retomada e a justiça julgou a acção do MP improcedente – a pedido do próprio MP, que voltou atrás. Um outro juiz federal validou a resolução de novo. Agora o Conselho Federal avançou um pouco mais nesta matéria e decidiu usar a vossa a directiva antecipada de vontade – porque a equipa envolvida estudou na maioria no Porto. Hoje os médicos estão sujeitos às directivas antecipadas, ao testamento vital do paciente.

Em 2006 escreveu que o direito de morrer é o mesmo que o direito à vida...

Exactamente, veja que eu já entendia isso há uns anos. E a única coisa que posso dizer é que hoje a justiça aplica o que já defendia há 20 anos.

Qual a importância do parlamento brasileiro?

Resumindo a história, nunca se andou tanto no Brasil em matérias como esta, mas todas as grandes mudanças aconteceram fora do parlamento.

Porquê?

O activismo judiciário e a omissão do parlamento ditam esta realidade. Primeiro porque o parlamento brasileiro tem tradicionalmente se envolvido em outras matérias. É o Mensalão, o mensalinho, o orçamento. Escândalo atrás de escândalo, o parlamento tem vindo a fazer o mínimo necessário. O inquérito político em vez de ser uma excepção virou uma regra. O Brasil está numa letargia absoluta e o parlamento tem de tomar uma vitamina porque a sua actuação está abaixo da mediocridade. Qualquer patrão já teria demitido este parlamento. Começa a criar-se a sensação na opinião pública de que é indispensável.

Falou do Mensalão. Este caso e o do senador Demóstenes, que foi apanhado com um dos maiores bicheiros – Carlinhos Cachoeira – no jogo ilegal é a prova de que a justiça brasileira está a mudar?

Tenho a convicção de que é uma mudança de paradigma e que o Mensalão, sobretudo, será histórico, não só pelos nomes envolvidos mas também pelos novos padrões de interpretação da lei penal que estão sendo adoptados. O caso Mensalão não é a meu ver uma fachada só para jogar nos media. Conheço uma boa parte das pessoas envolvidas – até porque fui conselheiro nacional do MP durante a gestão do ex--procurador-geral da República, António Fernando de Sousa, que foi quem ofereceu a acusação. Mas também estive na gestão do Roberto Gurgel, que era o vice de Fernando de Sousa e que assumiu o cargo de procurador depois. Portanto conheço bem os valores que estão por trás destas pessoas.

Na prática o que acha que mudou radicalmente?

A posição do Supremo de fazer uma justiça penal mais a sério perdendo a tradição brasileira da justiça para os três P – pretos, pobres e prostitutas. Porque mudar os juízes de primeira instância não é difícil, eles estão no início de carreira e sonham mudar o mundo para melhor, mas quando se passa para as instâncias superiores o pensamento já é que não vale a pena lutar. O julgamento do Mensalão no Supremo Tribunal Federal ficou marcado em cima do ministro Joaquim Barbosa, que é o relator e será o próximo presidente do Supremo, a partir de meados desse mês. Ele seria o grande adversário político da presidente da República, Dilma Rousseff, caso as eleições presidenciais fossem amanhã. Joaquim Barbosa mostrou algumas coisas que devem ficar para a história, desde logo que os presidentes da República têm de perceber que o cargo de ministro do Supremo não tem de ser entregue a pessoas da sua confiança, coisa que quase sempre aconteceu. Por exemplo, o presidente Lula achava isso.

A presidente Dilma tem sido correcta no acompanhamento deste caso?

Sim, a presidenta tem tido uma postura correcta. Ainda que neste caso eu ache que ela é quase coagida a dar algumas posições de protecção aos camaradas da confiança do ex-presidente Lula.

É inevitável fugir à acusação de homicídio de Duarte Lima no seu país. É normal que o MP elogie “investigações policiais feitas por encomenda”?

Sobre o caso o caso Duarte Lima só falo em tese, mas é possível no Brasil o Ministério Público ser enganado pela polícia. A polícia não tem uma relação de subordinação funcional do MP. É o modelo mais absurdo que existe na Terra, o MP tem o dever constitucional de apenas controlar externamente o trabalho policial, um controlo burocrático. Por isso posso dizer que há possibilidade de o MP ser enganado pela investigação. Ou porque a polícia quis enganar ou porque a polícia também está enganada. Agora é perfeitamente possível e há inúmeros casos em que o MP prendeu o polícia que o enganou.

Neste caso o MP_elogiou a polícia...

Como disse no início, prefiro não comentar. Se o MP elogiou o trabalho da polícia neste caso é porque terá as razões para o fazer. Mas não é normal dar uma de elogiador.

As relações entre os dois países são suficientemente fortes para tratar casos complexos como este, ou existem lacunas?

Brasil e Portugal têm um acordo de cooperação em matéria penal que fez há pouco tempo 20 anos e que por isso é um acordo muito firme e seguro, que tem permitido muitas cooperações.

Que imagem fica para um brasileiro que acaba de aterrar neste pequeno país europeu a enfrentar uma grave crise económica?

Bom, eu conheço bem Portugal e quando aterrei notei que, do táxi à pastelaria, a população está atravessando grandes dificuldades. Mas não é essa a imagem que fica para nós e Portugal nunca será pequeno por ter 10 milhões de habitantes. É o país de referência primeira de qualquer brasileiro. Aliás, posso mesmo dizer que, no âmbito jurídico, Portugal é uma potência para o Brasil. Decisões de tribunais portugueses são tomadas por referência, inclusivamente em casos como o Mensalão.

In: I online