Era a última noite que passávamos em San Blas. Estávamos fundeados junto à povoação de Corazón de Jesús e já tínhamos recolhido aos nossos beliches.
Relativamente às noites anteriores, estranhei que não houvesse uma ponta de brisa fresca a entrar pela escotilha e que não sentisse o tac tac das ondas a acariciar as quilhas do catamaran. Durante algum tempo espreitei a povoação, vendo perfeitamente pessoas a passar na ponte entre as duas ilhas que a compõem. Ouvia uma espécie de aparelhagem de feira. Parecia uma animação de uma festa que durou até por volta das onze da noite. Depois veio o sossego e tentei dormir. Mas...
Comecei a sentir um incómodo ardor nos pés e pernas que foi alastrando ao corpo todo não coberto com roupa. Comecei a cogitar que estaria a sofrer um ataque de ou pulgas ou percevejos. Afinal, na boxe em que dormíamos, a coberta do colchão não apresentava um esmerado cuidado de limpeza. Desesperado, torcía-me e retorcía-me tentando esmagar com as mãos os predadores que tentavam devorar-me. Tentei aguentar porque não sentia sinais de que os meus companheiros estivessem a passar pela mesma sensação. Tapava-me com tudo o que me veio à mão. O ardor era cada vez maior.
Acabei por sentir ruídos que me levaram a presumir que todos os meus companheiros estavam a passar pelo mesmo.
A certa altura acendi a luz.
As partes brancas da cabine estavam polvilhadas de minúsculos pontos pretos.
Comecei a esmagá-los e resultavam pequenas manchas de sangue. Estávamos a sofrer um temível ataque de minúsculos mosquitos que, disse-nos o Chico, se chamam chitras. Aparecem quando não há vento. Vêm dos bosques com humidade e árvores em enxames compactos e agarram-se a tudo o que é ser vivo, picando e sugando sangue e deixando microscópicas babas que, no prazo de um a três dias, produzem erupções semelhantes à varíola, levando cerca de uma semana a desaparecer.
É claro que a alvorada foi muito cedo. Quando me levantei já o Chico estava sentado na sala-cozinha do barco. A primeira coisa que me disse foi:
- Também fui atacado!
E explicou o que eram as chitras.
O pequeno almoço já não teve o sabor do dos dias anteriores. O ardor sentido e a ansiedade de ir começar uma viagem aérea não deixaram apreciar devidamente o pão quente que o Chico preparou.
Às seis e meia estávamos no barco de borracha para irmos para o aeroporto. Já estávamos perto do cais quando o Chico desviou a marcha na direcção de uma barco de kunas que estava ali parado, dizendo:
- Vamos fazer como fazem os kunas.
Chegou ao pé deles, deu-lhes os bons dias e disse:
- Too many chitras.
E respondeu um dos homens kunas:
- Demasiado.
Ali ficámos naquela sala de espera no meio do estuário do rio, colados a um barco kuna. As pessoas que já estavam no cais meteram-se novamente nos barcos e vieram juntar-se a nós naquela exótica e aquática sala de espera do aeroporto de Corazón de Jesús.
Às sete e meia começamos a ouvir o avião e só houve tempo para lhe tirar uma fotografia no momento em que passou perto de nós.
P. S. - A certa altura, ouvi o Chico dizer que uma amiga que tinha sido tocada por uma alforreca se lavou com vinagre e que isso deu bom resultado.
Quando regressámos a casa, ao 49.º andar do Aqualina da Punta Pacífica, eu vinha desesperado e lavei-me todo com vinagre. Os meus companheiros olharam com piedade para a solução que eu encontrei para o meu desespero. Na verdade vi que estavam convencidos de que as chitras os tinham poupado e que estavam livres de perigo e que até se sentiram incomodados com o meu cheiro a vinagre.
Hoje, dia 16 de Fevereiro, data em que escrevo este post, os meus companheiros têm os corpos que nem as chagas de Cristo, sentem uma coceira desesperante, recorrem ao vinagre para se aliviarem e até não tiveram receios de ir para o cinema a cheirar ao dito.
Na verdade eu tenho verdadeira pena deles. No meu corpo não há uma borbulha sequer.
quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011
Panamá 2011 - Um temível ataque de chitras
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1 comentário:
Mas que relato tão completo!!!! Espero que já estejam melhor das borbulhas! Beijinhos da Ana
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