O referendo do próximo dia 11 está ferido de morte à nascença, e deveria por isso ser imediatamente abortado. Esse ferimento letal resulta da formulação da pergunta que o constitui:
Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?
Num referendo, tipicamente, o cidadão vota em uma de duas respostas possíveis: Sim ou Não. Pode abster-se, não votando, ou pode anular o seu voto, caso escreva no boletim qualquer outra coisa que não um X, no quadrado à frente de uma das duas opções, ou ainda no caso de entregar o boletim completamente em branco.
Sucede que, neste referendo, aquilo que é sujeito a plebiscito difere substancialmente do significado não apenas da pergunta no seu conjunto, enquanto fórmula a referendar, como quanto ao significado dos termos que a compõem.
No seu conjunto, porque envolve não uma mas três perguntas diferentes, cada uma das quais podendo ser formulada individualmente:
A. Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez?
B. Concorda com a realização da interrupção voluntária da gravidez em estabelecimento de saúde autorizado?
C. Concorda com a interrupção voluntária da gravidez realizada por opção da mulher?
Estas três diferentes questões, se sujeitas cada qual a referendo nacional, teriam necessariamente resultados diferentes.
1. Há quem esteja de acordo com as três questões, e por isso responderia Sim às três fórmulas.
2. Há quem esteja de acordo com a primeira e a segunda das questões, mas não quanto à terceira, e portanto votaria Sim quanto às formulações A e B, e optaria pelo Não no referendo à pergunta C.
3. Há quem esteja de acordo com as fórmulas referendárias A e C, mas que votaria Não quanto à B.
4. Há quem esteja de acordo com a despenalização voluntária da gravidez (referendo A), mas contra a realização da interrupção voluntária da gravidez em estabelecimento de saúde autorizado (referendo B), e contra a interrupção voluntária da gravidez realizada por opção da mulher (referendo C).
5. Há quem esteja contra, em qualquer dos casos, e por isso votaria Não no referendos A, B e C.
Por conseguinte, incluir na mesma formulação posta a referendo conceitos distintos - sujeitos a formulações autónomas - resulta num voto improcedente, já que as opções são apenas duas quando deveriam ser cinco.
1. Sim A, Sim B, Sim C.
2. Sim A, Sim B, Não C.
3. Sim A, Não B, Sim C.
4. Sim A, Não B, Não C.
5. Não A, Não B, Não C.
Isto quanto à fórmula posta a referendo, no seu conjunto ou, dizendo de outra forma, no seu todo de código significante. Porque, quanto às partes que o compõem, a esse código verbalizado, muito mais se pode constatar naquilo que respeita a rigor e isenção na terminologia utilizada, ou na ausência de ambas as coisas.
De facto, é completamente diferente utilizar a expressão "interrupção voluntária da gravidez" ou o substantivo "aborto". Mesmo dando de barato a improcedência da fórmula produzida, pelas razões anteriormente aduzidas, seria no mínimo espectável que os resultados do referendo fossem completamente diferentes, caso se substituísse a expressão pelo substantivo:
Concorda com a despenalização do aborto, se realizado, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?
Fosse esta a pergunta, mesmo admitindo como boa a formulação de três em uma, apenas alterando a designação do acto em si, e certamente os resultados seriam também diferentes daqueles que teremos em breve.
Muita gente desconhece em rigor, ou mesmo em absoluto, o significado de "interrupção" e de "voluntária", se bem que saiba perfeitamente (presume-se, em maioria) o que quer dizer "gravidez"; de igual modo, é provável que os dois primeiros termos em sequência ("interrupção voluntária"), mesmo para quem tenha uma ideia daquilo que significam isoladamente, se torne confuso quando em conjunto.
"Interrupção voluntária da gravidez" é, mais do que um evidente eufemismo, uma forma politicamente correcta de encobrir o facto, ou o acto em causa, com a aparente inocuidade de uma designação já de si armadilhada e tendenciosa; se bem que um dos significados de "interrupção" seja "cessação", não é essa a sua acepção mais comum; a "interrupção", associa-se geralmente a ideia de que algo que sucedia pára, temporária ou transitoriamente, mas que depois continua, retoma o seu curso; ora, este conceito é inaplicável ao aborto, como é evidente; a escolha deste termo em concreto revela, portanto, um indisfarçável tendenciosismo, já que tenta atenuar o vigor (e o rigor) do facto pela suavidade não determinista (ou terminal) da designação.
Outro tanto sucede com o adjectivo utilizado. As palavras contêm uma carga expressiva intrínseca, à qual não é estranho o uso e as escolhas que delas fazemos no quotidiano. A adjectivação como "Voluntária" implica uma percepção positiva que remete para o campo da valorização, quanto mais não seja por analogia: os voluntários, o voluntariado, a voluntariedade, são hoje em dia pessoas, fenómenos, actos extremamente apreciados e enaltecidos. A pragmática linguística, bem como a Retórica dos Clássicos, são pistas e disciplinas úteis para a compreensão daquilo que é o uso da Língua não como mero instrumento de comunicação, mas antes ou principalmente como arma de arremesso ou condicionador mental, para formatação da opinião e, em última análise, para a prossecução de determinados objectivos.
Aliás, como já várias pessoas referiram, a fórmula resulta em perfeito, completo, simples disparate, se atendermos ao facto de que postula duas vezes (em duplicado, portanto) o carácter voluntário do acto de abortar: depois de "interrupção voluntária", ainda se acrescenta "por opção da mulher"! Então, se é voluntária, havia de ser por opção de quem ou de quê? Ou, pela inversa mas na mesma, se é "por opção da mulher" poderia alguma vez não ser "voluntária"?
Note-se que, ao nível da discussão sobre o tema em apreço e, por consequência, ao nível do discurso interpessoal, a expressão completa "interrupção voluntária da gravidez" foi substituída pela sua sigla (IVG), que rapidamente se transformou em simples acrónimo: não se diz "aborto", é claro, e já nem sequer se utiliza a expressão politicamente arranjada para o efeito; depois de abolido da argumentação o significante mais próximo do significado, trocado aquele por uma expressão carregada de inocuidade, liquida-se ainda esta, através da lei do menor esforço, e passa a utilizar-se simplesmente um conjunto de letras que soa a algo de indefinível e, agora sim, despido de qualquer valor referencial: IVG, "a ivêgê", tem reminiscências de coisa técnica, avançada, progressista, qualquer coisa parecida com TGV, BCG ou RGB.
A acronimia representa, quando aplicada a uma questão tão delicada como o aborto, mais uma prova de que as palavras estão realmente armadilhadas, com a finalidade última e única de acabar por vencer pela força o que a razão impede: pela força da engenharia linguística, utilizando as palavras como bombas, pretende-se rebentar a capacidade de discernimento das pessoas.
E poderá perfeitamente ser isso o que vai acontecer no próximo dia 11: as palavras vão rebentar nas mãos daqueles que já se julgam vencedores e na consciência dos que se deixaram enganar.
Enganados, porque lhes dizem que se trata apenas de uma questão legal, quando essa é apenas a primeira de três questões.
Enganados, porque lhes sugerem que "ivêgê" não é o mesmo que "aborto".
Enganados, porque ninguém os avisou de que "a pedido" é o mesmo que "sempre que quiser".
Enganados, porque - se depois das dez semanas é crime - então o aborto clandestino depois das dez semanas continuará a existir.
Enganados porque - se depois das dez semanas é crime - o aborto antes das dez semanas passa a ser urgência hospitalar, gratuita e prioritária.
Mas enfim, se foram enganados, é natural, a culpa foi das palavras, não foi de ninguém em particular.