Consultório sentimental - XV
Números
E, havendo-lhe dado a beber aquela água, será que, se ela se tiver contaminado, e contra seu marido tiver transgredido, a água amaldiçoante entrará nela para amargura, e o seu ventre se inchará, e consumirá a sua coxa; e aquela mulher será por maldição no meio do seu povo. E, se a mulher se não tiver contaminado, mas estiver limpa, então será livre, e conceberá filhos. Esta é a lei dos ciúmes, quando a mulher, em poder de seu marido, se desviar e for contaminada; ou quando sobre o homem vier o espírito de ciúmes, e tiver ciúmes de sua mulher, apresente a mulher perante o Senhor, e o sacerdote nela execute toda esta lei. E o homem será livre da iniquidade, porém a mulher levará a sua iniquidade.Bíblia Sagrada, Números (5, 27-31)
De um ponto de vista bíblico, por assim dizer, não existe qualquer dúvida sobre a culpabilidade inata da mulher, naquilo que ao sexo diz respeito. Fenómeno comum, de resto, a qualquer outra confissão religiosa, pelo menos no hemisfério ocidental, primando todas elas, religiões, pela regra geral da condenação apriorística do belo sexo em tudo aquilo que se relacione com o dito. Segundo este princípio universal, mulher que é mulher, se não é de forma patente galdéria, é porque anda a esconder alguma coisa; se não se lhe conhecem amantes, andará por certo a preparar alguma coisa pouco recomendável; duvidemos sistematicamente nós outros, homens, em suma, da virtude feminina - com a óbvia excepção, que primordialmente confirma a regra, a do ícone dos ícones, aquela mulher única e ideal que foi capaz de engravidar sem qualquer intervenção masculina e sem nunca ter sequer experimentado tão universal mas tão condenável acto, o mesmo desde o início, o mesmo do pecado original.
Porém, e mesmo dando de barato o carácter absolutamente alegórico das Escrituras, as coisas mudaram bastante nos últimos tempos, em especial desde a invenção do "soutien" e do direito a férias pagas, ou seja, mais ou menos a partir dos anos cinquenta do século XX. Se bem que persista, numa franja cada vez mais residual do universo feminino, algum sentimento de culpa em relação ao sexo e, por arrastamento, alguma contenção de ordem moral, podemos agora dizer, em boa verdade, que a esmagadora maioria da humanidade, homens e mulheres, se está altamente cagando para toda e qualquer espécie de prurido moral, em se tratando de laurear a pevide, e nomeadamente, especialmente, quando não exclusivamente por via sexual. Trata-se, de certa forma, da total inversão de valores ou, melhor dito, de total ausência dos mesmos, como forma de ao menos compensação pela longuíssima noite moralista, de raiz religiosa, infinita e estupidamente castradora.
Os números, nos tempos que correm, são totalmente diferentes dos poeirentos tempos bíblicos. Basta, actualmente, utilizar a palavra "números", em qualquer circunstância diferente de uma aula de Matemática, para que aflore de imediato um sorrisinho entendido, nas faces dos circunstantes e, por vezes, um ligeiro rubor comprometido, nas das presentes. É cada vez mais difícil, como sabemos, entabular uma simples conversa, entre um homem e uma mulher, ou entre vários e várias, sem que o tema descaia, ou descambe, conforme a perspectiva, sobre assuntos de cama; portanto, quando se fala de números, em qualquer tertúlia, toda a gente pensa de imediato no mais conhecido deles, aquele cujo símbolo é também o de um signo do Zodíaco; igualmente conhecido pela abreviatura, ou seja, simplesmente "69", corresponde este número à única "posição sexual" com direito a logótipo e, de certa forma, a marca registada universal.
O povinho português tem, quanto a este número em particular, e provavelmente devido ao seu idiossincrático gosto pela piadética, a estranha mania de falar dele evitando-o; qualquer labrego que tenha a "sorte" de cumprir o 69º aniversário nunca por nunca dirá esse número exacto, duplamente redondo; diz sempre, pelo contrário, e achando-se a si mesmo muito engraçado e original, que fez "sessenta e oito mais um" ou, ainda mais engraçado, hilariante mesmo, que foi o seu aniversário 68B. O que vale igualmente para uma página de qualquer jornal A Bola, assim mais espessa, entalada entre a 68 e a 70: diz-se "vê aí na página sessenta e oito bê"; uma outra variante surge nos jogos de azar, em especial nas sociedades recreativas, desportivas e culturais, por esse Portugal profundo; quando sai da tômbola a bola 69, logo o "cantador" ou a "cantadeira" anunciam "aquilo de que todos gostam" e de imediato toda a sala se desmancha a rir, de tal força é a piada.
O 69, enquanto "posição sexual gratificante", como diria a inefável Marta Crawford, não tem afinal graça nenhuma, muito pelo contrário; é mesmo um assunto sério, muito sério. Para aferir da sua importância, no contexto dos números em geral, bastará espreitar uma página de anúncios de qualquer jornal: são às dezenas, às centenas, diariamente, os pedidos de almas "solitárias e sensíveis" procurando as respectivas "almas gémeas" mas, note-se bem, sempre, absolutamente sempre jurando que é "para assunto sério". Assim mesmo. Gente à procura do 69, portanto. Nada de mais sério, também portanto. E reforce-se o conceito: não há nada de engraçado no 69, já porque o riso é o pior inimigo do sexo e já porque é necessário alguma experiência, diria treino intensivo, em tal actividade específica, para que se possam atingir níveis de proficiência minimamente aceitáveis.
De facto, antes de avançar, assim às cegas, para tão extraordinário número, é imprescindível conhecer os seus antecedentes ou, digamos, os respectivos radicais, respectivamente o 6 (mais conhecido por "minete") e o 9, seu oposto (também designado por "
broche"); aqui, evidentemente, a ordem dos factores é arbitrária, pode muito bem ser ao contrário, o que vem a dar rigorosamente no mesmo. Acontece que, depois de adquiridos os conhecimentos devidos quanto aos radicais, mesmo estando apto o menino para o
cunnilingus e a menina para o
felácio, é ainda necessário obter alguma destreza e maleabilidade físicas para que broche e minete funcionem em simultâneo, a contento para ambas as partes. Devido à mútua posição de encaixe, e dependendo de quem fica por cima e quem fica por baixo, ou se estão ambos democraticamente de lado, existe sempre algum risco de que a um ou a ambos possa suceder alguma coisinha má, tipo sufocar, ou engasgar-se, ou assim. A coisa, ao contrário do que pensam as mulheres em geral e as inexperientes em particular, é de muito mais difícil execução para o homem; não apenas este tem de se aguentar à bronca durante um porradal de tempo, a ver se evita o inevitável antes dela, como, ainda por cima, aquilo acaba fatalmente por dar cãibras, não na língua mas, mais exactamente, nos encaixes da cremalheira, ou seja, na articulação dos maxilares; às vezes, como poderá afiançar qualquer gajo minimamente batido, aquela merda até estala, tac, é fodido, fica ali o caramelo com o focinho entalado entre as pernas da chavala, e as queixadas népia, foderam-se, não fecham, e ainda para mais dói que se farta. Tecnicamente, chama-se a isto "desenculatrar" os queixos, o que é fodidíssimo para ambos, para o mineteiro porque vai ter de parar, desencabeçar das pernas e fechar aquela merda com as mãos, e também para a minetada, porque vai ter de parar a função quando por certo já estava no melhor da festa, e ainda vai ter de ajudar ao curativo.
Mas deixemos, ao menos por ora, estas minudências aborrecidas, se bem que aconteçam ao mais pintado e mesmo à mais pintada, e falemos de outros números, não menos interessantes. Como, por exemplo, o número 3, ou trio, para os amigos e apreciadores. No catálogo posicional, poderíamos baptizar este número como 878, o que desde logo manda às urtigas o antiquíssimo e conservador Kama Sutra. Trata-se, como já todos adivinharam e como alguns estão carecas de saber, daquele número em que um gajo se amanha e lambuza com duas mulheres. Supremo petisco, ao qual os franceses chamam, com o seu linguajar requintado, "ménage à trois"; deve porém ser recomendado ao comensal mais
fução que se abstenha de tal prática, dado o alto grau de exigência física envolvido; se o bacano não aguenta duas horas com uma, muito menos irá aguentar o dobro com duas e, portanto, é melhor nem se meter nisso, com a agravante de que aqui apenas são referidos os requisitos mínimos, muito longe dos ideais, que rondarão o dobro do dobro. Aliás, a propósito disto mesmo, escusado será dizer que a mesma lógica algébrica se aplica a números derivados de 3, como 4, ou 5, ou 6, isto é, mano que não queira passar vergonhas é melhor evitar meter-se ao barulho com mais do que duas - ou, vá lá, três mulheres, no máximo - ao mesmo tempo. Isto, claro, quando nos referimos a exclusividade masculina, só a nossa no meio delas, primeiro porque não há lugar neste consultório para números circenses e segundo porque, de acordo com as regras elementares da álgebra, o número de variáveis é directamente proporcional à probabilidade de ocorrência de erros, e vice-versa.
Apenas como nota de rodapé, e funcionando como ilustração de como são infinitos os números, refira-se um outro, do qual pouca gente fala, ainda que sejam cada vez mais os seus praticantes, com uma boa parcela daqueles que o fazem exclusivamente. É algo que ainda nem sequer está classificado e que se tornou possível apenas muito recentemente, com o advento da Internet. Falo, evidentemente, do sexo virtual, aquela variante que se inicia, como todas as outras, por uma fase de engate, através dos blogs, passa por um período mais ou menos longo de namoro, via e-mail, com ou sem "chat-room" de permeio, e termina em sexo puro e duro, como sempre, mas desta vez com a inovação de não haver qualquer espécie de contacto físico. Ora aí está, se a moda pega - como vai pegando - uma excelente forma de resolver de uma assentada dois dos problemas que mais afligem a humanidade: as doenças sexualmente transmissíveis e o excesso de população.
Realmente, quanto a esses dois aspectos, o sexo virtual é a descoberta do século - e bem poderá ser a última de todos os tempos - e não perde quase nada em relação a outras modalidades: o grau de "satisfação" pode ser igual ou mesmo maior, as "relações" através de áudio e vídeo podem ser tão "gratificantes" como gosta Marta, nossa referência, e sempre sem chatices, dispensa-se por fim a estopada do preservativo, está cada qual em sua casa, a sós com as suas manias que o outro não terá de aturar. São quase só vantagens. Claro que há esse pormenor de não ser possível o contacto físico, penetração natural incluída, e (ainda) nem sequer é possível incorporar coisas essenciais na relação, como os cheiros; mas isso o que importa? Ao fim e ao cabo, sexo por cabo ou por onda hertziana cumpre a mesma função do tradicional, segundo os ditames actuais, a saber, a fruição do prazer. Com a instauração da ditadura juvenil, e com o que isso implica de normalização compulsiva de padrões estéticos e comportamentais, a tendência natural será com certeza que este número cresça exponencialmente até absorver todos os outros, esmagando-os por exclusão de partes.
Como haveremos de designar este novo número? Pelo valor máximo de um byte? 11111111? Será este o número final? Quando não restar mais nada, será possível que haja alguma coisa para além de 256?
Talvez seja o princípio da solidão total e absoluta. Ou talvez o seu fim definitivo. Um novo paradigma bíblico, absolutamente imprevisto: ide e desmultiplicai-vos.