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04 dezembro, 2007

Variações sobre o NÃO venezuelano

Está difícil a vida para muitos que nos jornais e nos blogues têm criticado Chavez de todas as formas e feitios. É que mesmo quando Chavez sofre uma derrota política, os anti-chavistas não podem comemorar alegremente o facto para não terem que assumir, perante o comportamento democrático de Chavez no pós-referendo e perante a própria realidade da sua derrota, quão exageradas eram as suas denúncias acerca da eminência de uma ditadura. Entretanto, não significa isto que o NÃO possa ser lido univocamente e deva ser efusivamente celebrado à esquerda. Se é verdade que ele em parte representa a recusa das tendências de concentração democrática do poder em Chavez, verdade é que ele também poderá representar a derrota de algumas propostas cuja não efectivação terá que ser necessariamente lida à esquerda como uma derrota... É excelente encontrarmos nestes resultados um sinal de que o "poder popular" não se deixa controlar sequer por um líder "bom". É péssimo encontrarmos nestes resultados um sinal de que houve uma recusa à modificação da antiga concepção de propriedade. O sentido deste Não só se decidirá, é claro, no futuro. Pergunto no entanto, e dando seguimento ao que propuseram sectores políticos venezuelanos situados à esquerda de Chavez, se um outro tipo de processo constitucional - mais participado e como tal capaz de debater separadamente a questão da concentração do poder político e a questão das reformas sociais e económicas - não teria sido um caminho melhor...

25 novembro, 2007

A Democracia, Tipologia de uma História?


Entre algumas poucas outras coisas, ali atrás procurei dizer que uma crítica de esquerda a Chavez não tem por que ser uma crítica semelhante à crítica da direita a Chavez. E procurei também dizer que falar sobre a Venezuela hoje não pode ser apenas falar sobre Chavez. Entretanto, somaram-se várias reacções ao meu artigo no Público e também ao que escrevi ali em baixo. A talhe de foice quero pegar em dois pontos, o segundo (qual o grau de anarquicidade das minhas posições) num próximo post e o primeiro (uma dúvida avançada por um peão) aqui e agora: diz o Renato do Carmo, entre uma e outra consideração especulativa sobre o que eu escrevi, que não percebe se eu critico a democracia em si mesma ou se critico o modelo liberal de democracia. Devido à minha péssima formação liberal e ao meu não menos parco conhecimento dos debates da “ciência política”, confesso que ambas as formulações – democracia em si mesmo e modelo liberal de democracia – escapam-se-me facilmente por entre os dedos. Por isso sou forçado a colocar a questão noutros termos, contando que ainda assim não escape à questão colocada pelo Renato.
Uma das coisas que me faz alguma confusão nos debates sobre “existe ou não democracia na Venezuela?” é a facilidade – e creio que ela de alguma forma se precipita nas críticas de Pedro Magalhães a Daniel Oliveira – com que tais debates se transformam em discussões tipológicas e taxonómicas, do género, e passe a caricatura: é democracia se renovar-as-licenças-a-canais-de-televisão-mesmo-que-tenham-promovido-um-golpe-de-estado, não é democracia se puser-em-causa-as-propriedades-privadas-de-uns-poucos-num-país-em-que-milhões-estão-privados-de-toda-e-qualquer-propriedade, é democracia se não-houver-possibilidade-de-renovação-ad nauseum-dos-mandatos, não é democracia se as-armas-forem-parar-às-mãos-do-povo, etc..
Esta análise tipológica terá as suas virtudes, por certo que as terá; entre elas, por exemplo, evitarmos um relativismo conceptual insuportável para qualquer debate. Mas não é só isso que a tipologia evita. Ao aprisionar a ideia de democracia na figura do sistema (ou do modelo) – uma figura que necessariamente tende a ser estática e a-histórica – este tipo de análise deixa recorrentemente de lado a necessidade, que julgo imperiosa, de se pensar a democracia enquanto movimento constituinte e enquanto forma da própria resistência. (Questão que aliás me parece estar em jogo no debate travado no dito peão a propósito das lutas estudantis em França).
A limitação higénica da ideia de democracia à figura de um sistema é um problema maior sobretudo para aqueles que se reclamem de uma tradição comunista/libertária e que necessariamente se esforçam por imaginar um estádio humano em que a vida política dispensa o Estado (e, portanto, a democracia representativa). Creio, no entanto, que a idealização da democracia deveria igualmente preocupar democratas como o próprio Renato. Não o digo apenas – ou tanto – pelo que essa idealização pode ter de afim aos projectos neoconservadores de exportação da democracia. Falo sim de algo que me parece anterior a isso: as análises tipológicas sobre a democracia correm muitas vezes o risco de só existirem “fora da história” e de só servirem num tal contexto. Neste dia 25, não queria deixar de referir que é nesse erro que uma e outra vez se incorre quando se procura abstrair a liberdade e a democracia das lutas pela libertação e contra a didatura. Lutas travadas por figuras tão impuras como o senhor da foto, alguém a quem os diagnósticos tipológicos fazem questão de interditar o acesso à condição de democrata e de homem da liberdade.

* o título deste post manipula o título de um livro de Luciano Canfora, A Democracia – História de uma Ideologia, livro que não li mas que será objecto de um interessante debate na próxima 5ª feira no ISCTE.

21 novembro, 2007

Uma Esquerda sem Heróis

(publicado no Público de hoje)
0. A já ida discussão entre o presidente Hugo Chavez e o rei Juan Carlos é ainda motivo para que em Portugal, à esquerda do governo PS, recrudesçam elogios à figura do primeiro-ministro espanhol Zapatero: entre o presidente venezuelano e o rei bourbon, salve-nos o primeiro-ministro espanhol, sugerem entre outros os cronistas Daniel Oliveira e Rui Tavares. Se bem entendo, por detrás destes elogios a Zapatero está a vontade de colocar em cima da mesa, para debate, questões importantes.

1. Em primeiro lugar, os elogios a Zapatero valorizam o seu perfil de líder sóbrio, sobriedade celebrada por oposição à excentricidade de Hugo Chavez. Se é assim, compreendo este elogio; compreendo que depois de tantas experiências históricas em que inúmeros “Grandes Homens” caíram em desgraça, quanto menos aventureiro nos (a)parecer o líder, mais seguros estamos de que tudo continue a correr mal e não pior do que mal. Note-se porém que há qualquer coisa de paradoxal nesta atracção pela sobriedade; em bom rigor, se a crítica à excentricidade de Chavez pretende ser uma crítica ao “culto da personalidade”, então a solução não poderá ser um outro culto de uma outra personalidade.

2. Não se trata aqui – no sublinhar deste “paradoxo” – de uma questão meramente “lógica”. Trata-se de uma questão com implicações políticas. Veja-se que se focalizarmos a crítica ao “culto da personalidade” na figura de Chavez, estaremos a proceder de modo semelhante ao que fazem vários sectores políticos de direita que hoje criticam o “populismo” do presidente eleito da Venezuela e que ontem elogiaram outros “Grandes Líderes”, de Margaret Tatcher a Augusto Pinochet. Esta semelhança com a direita, que em si mesmo não é um problema, faz com que, todavia, percorramos um mesmo caminho com ela: o caminho de – e para usar uma imagem de gosto duvidoso – deitar fora o menino com a água do banho, isto é, o caminho de secundarizar os processos anticapitalistas que decorrem na Venezuela por causa da crítica à personalidade de Chavez.

3. Ou seja: tal como criticamos o elogio de direita à figura do “Grande Homem” que quer comandar a História a golpe de espada, devemos criticar Chavez; mas, e por esta mesma razão, a nossa crítica a Chavez não pode ser simétrica àquela crítica da direita, uma crítica especificamente dirigida a Chavez. A menos, claro está, que queiramos adoptar uma posição de neutralidade num dos processos políticos e sociais mais conflituosos da actualidade, um processo onde de novo se decidem vários enlaces das lutas de classes. Devemos criticar o “culto da personalidade” de Chavez, mas devemos fazê-lo, antes de mais, por razões que não o seu famigerado estilo “populista”: devemos fazê-lo porque queremos que os processos políticos de transformação social se desenvolvam em termos de não-líderes e de não-heróis; e queremos que assim seja porque entendemos que só assim é que tais processos podem ser processos de transformação do poder, processos de alteração da natureza do poder – à imagem do “nosso” PREC –, processos que revolucionam as lógicas de liderança do poder antigo.

4. O processo político e social em curso na Venezuela tem em Chavez uma figura cimeira mas não se reduz – e muito menos queremos que se reduza – à graça ou à desgraça de Chavez. Na realidade, o significado revolucionário do auto-culto de Chavez é contraditório: ele ambiciona alimentar um processo de mobilização de “massas” mas ele também procura manter este mesmo processo de mobilização, que tem implicado rupturas políticas com o capitalismo em variados domínios, “sob controlo” da elite chavista, elite entretanto instalada no topo da velha máquina do poder antigo, o Estado. É criticando este “controlo” que interessa fazer a crítica a Chavez.

5. Julgo também compreender que, no contexto português, os elogios a Zapatero tenham o condão de manter vivas as esperanças na possibilidade de uma política socialista diferente da política vigente no governo Sócrates. São esperanças que não me animam porque não as acho realistas – cada um tem o “seu” pragmatismo… – e porque entendo que a crítica do “socialismo real” implica a crítica da tradição marxista-leninista mas também a crítica da tradição social-democrata: o “socialismo num só país” e a “revolução a partir de cima” fracassaram e a alternativa não é regressar à “social-democracia num só país” ou ao “reformismo a partir de cima”.

6. Resumindo, podemos simpatizar com a figura de Zapatero mas não me parece que o zapaterismo possa fazer sombra ao processo revolucionário em curso na Venezuela, um processo que é parte das viragens sociais e políticas sul-americanas e que é motivo de alento, aprendizagem e experiência para todos os que se encontram sobre o lado esquerdo.