0. A já ida discussão entre o presidente Hugo Chavez e o rei Juan Carlos é ainda motivo para que em Portugal, à esquerda do governo PS, recrudesçam elogios à figura do primeiro-ministro espanhol Zapatero: entre o presidente venezuelano e o rei bourbon, salve-nos o primeiro-ministro espanhol, sugerem entre outros os cronistas
Daniel Oliveira e
Rui Tavares. Se bem entendo, por detrás destes elogios a Zapatero está a vontade de colocar em cima da mesa, para debate, questões importantes.
1. Em primeiro lugar, os elogios a Zapatero valorizam o seu perfil de líder sóbrio, sobriedade celebrada por oposição à excentricidade de Hugo Chavez. Se é assim, compreendo este elogio; compreendo que depois de tantas experiências históricas em que inúmeros “Grandes Homens” caíram em desgraça, quanto menos aventureiro nos (a)parecer o líder, mais seguros estamos de que tudo continue a correr mal e não pior do que mal. Note-se porém que há qualquer coisa de paradoxal nesta atracção pela sobriedade; em bom rigor, se a crítica à excentricidade de Chavez pretende ser uma crítica ao “culto da personalidade”, então a solução não poderá ser um outro culto de uma outra personalidade.
2. Não se trata aqui – no sublinhar deste “paradoxo” – de uma questão meramente “lógica”. Trata-se de uma questão com implicações políticas. Veja-se que se focalizarmos a crítica ao “culto da personalidade” na figura de Chavez, estaremos a proceder de modo semelhante ao que fazem vários sectores políticos de direita que hoje criticam o “populismo” do presidente eleito da Venezuela e que ontem elogiaram outros “Grandes Líderes”, de Margaret Tatcher a Augusto Pinochet. Esta semelhança com a direita, que em si mesmo não é um problema, faz com que, todavia, percorramos um mesmo caminho com ela: o caminho de – e para usar uma imagem de gosto duvidoso – deitar fora o menino com a água do banho, isto é, o caminho de secundarizar os processos anticapitalistas que decorrem na Venezuela por causa da crítica à personalidade de Chavez.
3. Ou seja: tal como criticamos o elogio de direita à figura do “Grande Homem” que quer comandar a História a golpe de espada, devemos criticar Chavez; mas, e por esta mesma razão, a nossa crítica a Chavez não pode ser simétrica àquela crítica da direita, uma crítica especificamente dirigida a Chavez. A menos, claro está, que queiramos adoptar uma posição de neutralidade num dos processos políticos e sociais mais conflituosos da actualidade, um processo onde de novo se decidem vários enlaces das lutas de classes. Devemos criticar o “culto da personalidade” de Chavez, mas devemos fazê-lo, antes de mais, por razões que não o seu famigerado estilo “populista”: devemos fazê-lo porque queremos que os processos políticos de transformação social se desenvolvam em termos de não-líderes e de não-heróis; e queremos que assim seja porque entendemos que só assim é que tais processos podem ser processos de transformação do poder, processos de alteração da natureza do poder – à imagem do “nosso” PREC –, processos que revolucionam as lógicas de liderança do poder antigo.
4. O processo político e social em curso na Venezuela tem em Chavez uma figura cimeira mas não se reduz – e muito menos queremos que se reduza – à graça ou à desgraça de Chavez. Na realidade, o significado revolucionário do auto-culto de Chavez é contraditório: ele ambiciona alimentar um processo de mobilização de “massas” mas ele também procura manter este mesmo processo de mobilização, que tem implicado rupturas políticas com o capitalismo em variados domínios, “sob controlo” da elite chavista, elite entretanto instalada no topo da velha máquina do poder antigo, o Estado. É criticando este “controlo” que interessa fazer a crítica a Chavez.
5. Julgo também compreender que, no contexto português, os elogios a Zapatero tenham o condão de manter vivas as esperanças na possibilidade de uma política socialista diferente da política vigente no governo Sócrates. São esperanças que não me animam porque não as acho realistas – cada um tem o “seu” pragmatismo… – e porque entendo que a crítica do “socialismo real” implica a crítica da tradição marxista-leninista mas também a crítica da tradição social-democrata: o “socialismo num só país” e a “revolução a partir de cima” fracassaram e a alternativa não é regressar à “social-democracia num só país” ou ao “reformismo a partir de cima”.
6. Resumindo, podemos simpatizar com a figura de Zapatero mas não me parece que o zapaterismo possa fazer sombra ao processo revolucionário em curso na Venezuela, um processo que é parte das viragens sociais e políticas sul-americanas e que é motivo de alento, aprendizagem e experiência para todos os que se encontram sobre o lado esquerdo.