HISTÓRIA DA
HISTORIOGRAFIA
Dossiê temático
Escritas insubmissas: indisciplinando a História com
Hortense Spillers e Saidiya Hartman
Unsubmissive writings: undisciplining history with Hortense
Spillers and Saidiya Hartman
Allan Kardec Pereira a
E-mail:
[email protected]
https://orcid.org/0000-0003-2283-4826
a
481
Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Departamento de História, Porto Alegre,
RS, Brasil
Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719
HISTÓRIA DA
HISTORIOGRAFIA
Artigo original
RESUMO
Este artigo demonstrará o potencial indisciplinar do que definiremos como escritas insubmissas da história. Isso
será feito em dois momentos: inicialmente através da procura de Hortense Spillers por uma “nova gramática”,
capaz de redefinir a forma estereotipada como os negros são pensados e escritos no presente; em seguida, terá
como foco o conceito de “fabulação crítica”, proposto por Saidiya Hartman, que é tanto uma alternativa teórica
para exceder ou negociar lacunas do arquivo da escravidão, quanto uma reflexão indisciplinar sobre o que faz o
historiador. Antes, porém, explicaremos como essas escritas insubmissas da história fazem parte de uma tradição
radical negra, que, desde o final do século XIX, tem se insurgido contra o disciplinamento epistêmico ocidental.
Desafios teóricos, veremos, que semprem estiveram profundamente conectados com as demandas político-sociais
dos protestos radicais contra a violência antinegra nos Estados Unidos. Ao término, a partir das considerações de
Spillers e Hartman, este texto enseja pensar a indisciplina como um fim radical possível em um mundo antinegro.
PALAVRAS-CHAVE
Histórias não convencionais. Cultura historiográfica. Compreensão histórica.
ABSTRACT
This text aims to demonstrate, in two moments, the undisciplinary potential of what we will term as unsubmissive
writings of history. Initially, it will focus on Hortense Spillers’ quest for a “new grammar,” capable of redefining
the stereotypes underlying current thoughts and writings about Black people. Then, the analysis will be centered
on Saidiya Hartman’s concept of “critical fabulation,” which is both a theoretical alternative to bridge or negotiate
gaps in the archive about slavery and an undisciplined reflection on the work of the historian. However, before
approaching these concepts, we will explain how these unsubmissive writings of history are part of a Black radical
tradition that has risen against Western epistemic disciplining since the end of the 19th century. This analysis
will show that theoretical challenges have always been deeply connected with the political and social demands of
the radical protests against anti-Black violence in the United States. Based on the considerations of Spillers and
Hartman, this text deems indiscipline as a possible radical purpose in an anti-Black world.
KEYWORDS
Uncoventional history. Historiographical culture. Historical understanding.
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Allan Kardec Pereira
Introdução
Vivemos em um cenário global marcado pelo acirramento das disputas em torno
do passado, ataques sistemáticos às humanidades e o avanço de negacionistas/
falsificadores da história. Nesse contexto, o público consumidor e as formas de se
escrever história se transformaram. A composição das universidades também
não é mais a mesma e, diante das demandas dos seus novos atores, a atuação do
historiador na sociedade ganha cada vez mais destaque. Preocupações envolvendo
“a autoridade sobre o passado, decorrente da relação entre o historiador e o público”
(MALERBA, 2017), as implicações do que seria um “giro ético-político” (RANGEL, 2019),
ou a necessidade de que a disciplina histórica, assim como as demais ciências humanas,
“enfrentem as suas tradições na busca de novas formas de identidade disciplinar e de
inserção social” (TURIN; AVILA; NICOLAZZI, 2019) parecem transmitir a ideia de que
estaríamos diante de uma nova urgência.
Nosso argumento reconhece as mesmas preocupações. Mas questiona, justamente,
a localização delas como uma oferta/imposição do presente. Afinal, quando se fala em
um “giro ético-político” na disciplina histórica, a atuação de que tipo de atores sociais
está se levando em conta? Como não reconhecer que o tratamento indisciplinar da
história, a dimensão afetiva e a preocupação estética com uma escrita assumidamente
intervencionista no seu presente perpassam a história da intelectualidade negra em
toda a diáspora? Por qual motivo, então, esse ainda é um saber “impensado”, até
mesmo nos limites de uma gramática mais crítica da historiografia?
Uma tentativa de responder a essas indagações passa pelo entendimento da ligação
entre disciplinamento antinegro e a exclusão epistêmica. Por mais que hoje vejamos a
disciplina histórica como uma alternativa crítica a um cenário turbulento do presente, é
preciso também recordar o quanto sua reificação disciplinar e a patrulha de fronteiras
teóricas estiveram intimamente conectadas a projetos coloniais. Não é de hoje, porém,
que intelectuais radicais negros se insurgem e enfrentam convenções disciplinares que,
nos limites da prática historiográfica estabelecida, só conseguiam racionalizar a negritude
como algo “fora da história”, como um “problema” a ser resolvido. Isso é especialmente
impactante quando pensamos a recepção dos Black Studies no cenário acadêmico dos
Estados Unidos, uma situação na qual o modelo de “inclusão” da negritude tentava, ao
mesmo tempo, domesticar demandas radicais e disciplinar aqueles saberes.
Inseridas naquele ambiente universitário, mas procurando superar o mero
reconhecimento da humanidade negra nos moldes liberais, Hortense Spillers e Saidiya
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Escritas insubmissas
Hartman serão descritas como praticantes dessas escritas insubmisass da história.
Spillers, escrevendo no final dos anos 1980, analisa de que forma as noções racistas
de inferioridade biológica haviam migrado para percepções liberais de inferioridade
cultural e criminalização da negritude. Sua conceituação sobre “a carne” interpreta de
que maneira um poderoso conjunto de discursos tem “marcado” mulheres negras com
estereótipos degenerativos por gerações. Essa teoria, porém, vai além da mera descrição
da opressão e oferece “a carne” como um potencial indisciplinar, como uma forma de ver
o Ocidente, como um modo distinto de lidar com o passado, com a história. A próxima
sessão, centrada em parte do pensamento de Saidiya Hartman, elabora as notáveis
aproximações entre as duas autoras, especialmente, os seus ímpetos indisciplinares.
A postura auto-reflexiva de Hartman, que ela intitula de “fabulação crítica”, oferece
não apenas uma alternativa teórica para exceder ou negociar lacunas do arquivo da
escravidão, mas uma reflexão sobre o que a escrita da história tem a oferecer a futuros
abolicionistas.
Ao fim, inspirados nessas contribuições trazidas por Spillers e Hartman, faremos
uma meditação provocativa sobre o que poderia ser uma história indisciplinada em um
contexto no qual os debates antirracistas parecem fazer parte de uma recente moda/
tendência editorial. Se os historiadores negros ainda são sujeitos “marcados” por um
passado que sempre desconsiderou o seu conhecimento, o que podem oferecer a uma
história que se queira indisciplinada?
A violência da razão disciplinar
No barco negreiro, o único escrito é o livro de contabilidade listando o valor de troca
dos escravos. No espaço do barco, o grito dos deportados é sufocado, como o será no
universo das Plantations. Esse confronto ainda reverbera até nós.1
(GLISSANT, 1997, p. 5)
Quando pensado etimologicamente, o termo “disciplina” guarda sua origem no latim
disciplina, significando a foma como um discipulus era educado por seu mestre. Com
o tempo, suas conotações foram se modificando, adicionando um referencial ligado a
1
Pensando nesse texto como um meio de divulgação de conhecimento e ciente de que no Brasil, devido a
processos histórico-sociais, há um defict de proficiência em inglês entre alunos negros, optei por traduzir
diretamente todas as citações. Não faria sentido discutir exclusão epistêmica e contribuir, de alguma
forma, para mais esssa. Para uma consulta mais elaborada acerca dessas disparidades, cf.: BRITISH
COUNCIL, 2015.
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regramentos (em uma acepção militar), regulamentos (que assegurem o bem-estar
coletivo e o bom funcionamento de uma organização hospitalar, por exemplo), um sentido
de ordem (enquanto bom comportamento de alunos), constância (algo necessário para
vencer na vida) e, até mesmo, serviu para descrever as cordas com que frades, devotos
e penitentes se flagelavam. Para além de tais expansões conceituais, a conexão primeira
entre disciplina e educação se manteve. Sendo assim, na cultura acadêmica, tem-se que
as disciplinas são usadas para se referir não apenas à organização do conhecimento, mas
a sua própria produção. Disciplinas propõem modelos epistemológicos “que oferecem
métodos comprovados que se impõem a qualquer realidade” (GORDON, 2013, p. 16).
Questionando essas condições, o filósofo afro-americano Lewis R. Gordon comenta
que muitas disciplinas perderam sua capacidade de ver a si mesmas como tentativas de
compreender o mundo e, presas em arrogância, terminavam por entrar em “decadência”,
posicionando-se como o mundo. Essa postura seria marcada por uma ontologização e
reificação das disciplinas, como se elas tivessem sempre existido e nunca fossem mudar
ou – em alguns casos – vir a morrer. Ao invés de uma busca por conhecimento como
finalidade aberta, disciplinas decadentes estariam presas a práticas autolimitantes de
patrulhamento de objetivos e métodos. Ironicamente, argumenta Gordon, as disciplinas
são criadas e mantidas “considerando as provas de sua decomposição como evidências
de sua saúde” (GORDON, 2013, p. 23).
A formação disciplinar, tal como a conhecemos atualmente no quadro das
universidades ocidentais, teve origem na cultura Iluminista da Europa, junto com a
constituição do Estado-Moderno, as noções de democracia, de cidadania e a consolidação
da economia de acumulação (FERREIRA da SILVA, 2007). No estabelecimento da História
como campo do saber, a verdade disciplinar era um privilégio de poucos e tudo aquilo
que a isso não adequasse terminava por ser considerado uma ameaça ao pensamento
racional. Nos termos de Lewis Gordon: “o autoengano de seus guardas de fronteiras
disciplinares imaginava que a eliminação da oposição, a erradicação do mundo externo,
seria a consecução da imortalidade epistêmica” (GORDON, 2013, p. 23).
Desde o final do século XIX, porém, escritas insubimissas da história insurgiram-se
contra essa patrulha disciplinar, especialmente porque perceberam a imbricada ligação
entre aquele regramento epistêmico e violências as mais diversas. No caso dos Estados
Unidos, a tradição intelectual negra representativa dos estudos afro-americanos é
caracterizada por três grandes eixos. Primeiro, ela sempre foi descritiva, ou seja, expôs
o real da vida e das experiências negras, partindo do ponto de vista dos próprios
negros, como uma espécie de participante observador. Segundo, ela frequentemente
foi corretiva, pois sempre bateu de frente com o racismo e os estereótipos racias e
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Escritas insubmissas
epistêmicos presentes no discurso dominante das instituições acadêmicas brancas.
Por último, a tradição intelectual negra também foi prescritiva, haja vista que teve
como estratégia central o empoderamento dos negros, numa imbricação fundamental
entre análise e transformação da sociedade (MARABLE, 2000, p. 17-18).
Keguro Macharia enumera autores africanos e afro-diaspóricos cuja escrita estava
consciente de que a luta por liberdade passava pelo desafio às convenções disciplinares
que os patologizavam como “fora da história”:
Pauline Hopkins escreveu filosofia especulativa (A Primer of Facts
Pertaining to the Early Greatness of the African Race and Possibility
of Restoration by Its Descendants) e ficção (Of One Blood); W.E.B Du
Bois publicou um trabalho fundamental em sociologia (The Philadelphia
Negro) e ficção (Dark Princess); Zora Neale Hurston publicou ficção (The
Eyes Were Watching God) e etnografia (Tell My Horse: Voodoo e Life in
Haiti and Jamaica); Aimé Césaire publicou poesia (Return of a Native
to the Native Land) e crítica anticolonial (Discourse on Colonialism);
C.L.R James escreveu ficção (Minty Alley) e história política (The Black
Jacobins); e Léopold Sédar Senghor publicou poesia e filosofia política
(MACHARIA, 2019, p. 69-70).
Trata-se de exemplos que demonstram como a urgência indisciplinada não é uma
novidade para a autoria negra na diáspora. Interdisciplinaridade e indisciplinaridade
caminhavam juntas, em um claro desafio à normatividade de estruturas de saber
que eram bastante resistentes a suas interpelações. Em meio ao ostracismo e
à má interpretação, esses autores estavam mais do que concientes de que, éticopoliticamente, era preciso levar em conta a forma estética em que o negro era figurado
narrativamente, pois isso era tão ou mais importante do que desafiar dados falsos e
argumentos racistas. Resta, então, questionar: de que formas essas escritas insubmissas
da história foram posteriormente recepcionadas/incluídas em um espaço tão antinegro
como as universidades dos Estados Unidos?
Jodi Melamed comenta que, no pós-Segunda Guerra Mundial, a visão de mundo
supremacista branca passou por uma significativa crise de legitimidade. O conflito,
em sua dimensão global, revelou os laços conceituais que uniam o fascismo europeu,
a segregação racial e o domínio colonial – não por acaso, o ativismo antirracista nos
Estados Unidos teve forte inspiração na luta dos movimentos anticoloniais mundo afora.
Naquele cenário, buscando ganhar a opinião pública no início da extensa Guerra Fria, a
União Soviética enfatizou a segregação racial nos Estados Unidos como um elemento que
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indicaria o quanto o sistema capitalista ocidental projetaria aquele modelo de dominação
ao mundo. Isso contribuiu, segundo Melamed, para que essa nova formação histórica
mundial, que iria moldar a ascensão global dos Estados Unidos, fosse marcada por
uma “modernidade antirracista no plano formal e liberal-capitalista no projeto políticoeconômico”. Como prova da condição excepcional dos Estados Unidos, a democracia e
o capitalismo que lhes seriam próprios, seriam atualizados por meio da integração dos
afro-americanos na sociedade, numa demonstração de que a economia de mercado
era “cega às cores” e não estruturada pelo racismo antinegro (MELAMED, 2011, p. 9).
Naquele embate ideológico contra o inimigo soviético, as “reformas” no campo das
humanidades buscavam uma “modernização” dos seus temas e uma transformação dos
seus quadros através de um impulso por “mais diversidade”.
Se nos dias atuais, essas instituições e seus departamentos disciplinares
majoritariamente brancos se espantam com o que chamam de “cultura do cancelamento”
dos “identitários” inspirados no Black Lives Matter, é preciso lembrar que as universidades
norte-americanas tiveram susto e ressentimento semelhante quando da erupção de
protestos estudantis negros entre 1968 e 1972. Naquele contexto, os Black Studies
deixam de ser apenas um discurso e campo de pesquisa confinado em instituições
segregadas racialmente e se tornam um currículo empolgante em centenas de programas
arquitetados por jovens pesquisadores envolvidos em organizações culturais e políticas
de protesto negras. Eles queriam muito mais do que práticas inclusivas em currículos
e disciplinas excludentes, de maneira que sua dúvida fundamental era: como criar um
espaço de pensamento negro militante dentro de uma instituição branca conservadora
que era, invariavelmente, antinegra? (MARABLE, 2000, p. 22). A indisciplina foi
uma necessidade primordial, uma forma de afirmar que aqueles desafios ao saber
estabelecido importavam.
Entretanto, a agenda escancaradamente neoliberal após a eleição de Ronald
Reagan, em 1980, trouxe uma repressão significativa aos Black Studies. Em paralelo
com a expansão do Complexo Prisional Industrial (GILMORE, 2007), houve significativo
desinvestimento público nas universidades. Enquanto muitos daqueles que compunham
as fileiras das revoltas na década anterior haviam abandonado seus tecidos Kente,
trocado seus dashikis por camisas poliéster e passado a ocupar cargos públicos, dentro
e a favor da maquinaria antinegra, um grupo de “intelectuais radicais aprisionados”,
como Assata Shakur, George Jackson, Angela Y. Davis, Leonard Peltier, Mumia AbuJamal, Marilyn Buck pautavam seu abolicionismo penal, dentre outros pontos, em
uma redefinição da narrativa sobre o passado escravocrata nos Estados Unidos
(RODRIGUEZ, 2006).
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Escritas insubmissas
Naquele contexto deveras arredio ao pensamento radical, não foram poucas as
intelectuais negras que ousaram escritas insubmissas da história. Alice Walker, Audre
Lorde, Toni Cade Bambara, June Jordan, bell hooks, Sylvia Wynter, Kimberlé Crenshaw
e Toni Morrison, entre outras, criticaram a intersecção do racismo e do sexismo em sua
relação com o legado ainda presente da escravidão. A publicação de Amada, em 1987,
romance que catapultou Toni Morrison ao Prêmio Nobel de Literatura de 1993, deve
ser considerado um episódio decisivo no debate público sobre o passado dos Estados
Unidos. Aquela narrativa centralizava a maneira como os espectros da escravidão
colapsavam o tempo da história disciplinar e colocavam em xeque um projeto nacional
de esquecimento. Diante das celebrações ufanistas do bicentenário da Abolição nos
Estados Unidos, aquelas escritas insubmissas foram responsáveis por questionar a
memória abolicionista (branca) que restou nos arquivos e no imaginário nacionalista
dos EUA, ou seja, havia por parte daquelas autoras negras um forte desejo de cumprir
o chamado de Sylvia Wynter para “desfazer seu status narrativamente condenado”
(WYNTER, 1994, p. 70).
Seguindo esses caminhos, a produção teórica de Hortense Spillers e Saidiya Hartman,
examinada nas páginas seguintes, buscou combater o opressivo silenciamento dos
arquivos da história dos negros da diáspora e, através disso, revelar uma “história
potencial”, no duplo significado atribuído a esse conceito por Ariella Azoulay: tanto
uma reconstrução de possibilidades, práticas e sonhos não realizados que motivaram e
dirigiram as ações de distintos atores no passado, quanto a transformação do passado
em um evento interminável (AZOULAY, 2013, p. 565-566).
Essas escritas insubmissas da história negra, que emergem no interior da academia
e reforçam uma posição intersticial das intelectuais que as promovem, buscam
desestabilizar a episteme moderna-colonial, sem perder de vista a capacidade de
imaginar uma transformação social radical desse nosso mundo. A história indisciplinada
que surge daí é algo que vai além da mera crítica, da simples denúncia ou de um relato
distanciado e imparcial sobre o passado. Trata-se, muito mais, de um direcionamento a
outro modo de viver com o passado. Em outras palavras, a questão que inquieta essas
escritas insubmissas da história é: em uma realidade social no qual, como diria Audre
Lorde, “nunca fomos feitos para sobreviver” (LORDE, 2000, p. 255), como lidar com os
ditames disciplinares da história?
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Allan Kardec Pereira
Eu, mulher negra, estou aqui, agora: o que você vai fazer?
No ano de 1987, quando a crítica literária afro-americana Hortense Spillers escreveu
Mama’s Baby, Papa’s Maybe, o abandono da rede de seguridade social e o ethos de
responsabilização pessoal já haviam deixado de ser mero discurso de campanha do
Partido Republicano e se tornado uma política estatal com forte penetração nos mais
distintos setores da sociedade norte-americana. Naquele segundo mandato de Ronald
Reagan, o estereótipo antinegro das “Rainhas do bem-estar”, que usavam todos os
meios possíveis para burlar o governo (era comum que essas mulheres negras fossem
associadas ao recebimento de cupons de alimentação e benefícios de veteranos de guerra
para maridos inexistentes), era largamente empregado para se referir ao “problema” da
estrutura matriarcal das famílias negras. Como analisado por Spillers, uma grande base
para aqueles discursos era o relatório Moynihan, de 1965. Uma peça de direcionamento
político-social que, apropriando-se de métodos disciplinares da Sociologia e da História,
criticava a predominância matriarcal nas famílias negras, por manter aquela comunidade
em um emaranhado patológico que limitava seu desenvolvimento nos mais distintos
aspectos. Esses argumentos se davam, vale ressaltar, por meio de “codificações
telegráficas” (SPILLERS, 1987, p. 65), ou seja, Moynihan apelava ao cientificismo e à
disciplinaridade para camuflar e transmitir uma “condenação da negritude”2 de longa
data. O “problema” permanecia o mesmo: a mulher negra.
Spillers estava particularmente desesperançosa com aquele lugar comum, afinal,
eram discursos que reverberavam na própria pouca consideração acadêmica que as
pesquisadoras negras recebiam. Por mais que ela estivesse, desde então, vivenciando
relativa ascenção acadêmica nos Estados Unidos, lecionando em uma boa instituição
como Haverford College, não havia como reagir de forma amistosa diante daquele
arsenal de estereótipos: eles sempre transcendiam à classe e ela própria também se
via atingida.
Assim sendo, tentando dar seguimento às reflexões da coletânea All the Women
Are White, All the Blacks Are Men, But Some of Us Are Brave (1982), organizada por
Gloria Hull, Bell Scott e Barbara Smith, ela procurava “encontrar uma categoria que
respeitasse o histórico”, que conseguisse expor, através de uma linguagem própria à
academia pós-moderna de então, um conteúdo que alguns historiadores negros vinham
tentando escrever há um bom tempo, mas que sua linguagem disciplinar não estava
expressando adequadamente (SPILLERS; HARTMAN; GRIFFIN et al., 2007, p. 308).
2
cf. MUHAMMAD, 2010.
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Escritas insubmissas
Como mulher negra, o cenário acadêmico onde Spillers escrevia lhe provocava
uma dramática solidão, como se ela fosse “o elefante branco no quarto”. Seu
ensaio Mama’s Baby, Papa’s Maybe, antes de tudo, deve ser pensado como um
ato acadêmico insurrecional, no qual uma voz negra grita ao saber disciplinado:
“estou aqui agora (...) e você não vai me ignorar. (...) O que você vai fazer?”
(SPILLERS; HARTMAN; GRIFFIN et al. 2007, p. 308). Prova disso é que, anos depois, ao
responder um questionamento sobre a notória relevância que aquele ensaio conquistou,
ela iria se expressar da seguinte maneira:
O que eu vi acontecer foi que as pessoas negras estavam sendo tratadas como
uma espécie de matéria-prima. Que a história dos negros era algo que você
poderia usar como uma nota de inspiração, mas nunca foi nada que tivesse
qualquer relação com você - você nunca poderia usá-la para explicar algo em
termos teóricos. Não havia discurso, em termos da academia mainstream,
que lhe desse uma espécie de reconhecimento. Então, minha ideia era tentar
criar um discurso ou um vocabulário que não apenas tornasse desejável, mas
exigisse que as mulheres negras participassem da conversa. (...) estamos
agora num período de reação tão forte que, se não formos cuidadosas, o
trabalho que estamos fazendo agora terá de ser “redescoberto” em algum
momento. Você sabe, as pessoas vão ter que continuar fazendo isso, ou
redescobri-lo novamente, ou reafirmá-lo porque as forças da oposição
são tão fortes e tão poderosas e estão sempre empurrando contra nós,
elas sempre querem impor o esquecimento. Eles sempre querem fazer
algo que esqueça a presença africana ou a reabsorva, reapropriando-a
de outra maneira. A necessidade de confrontar a violência psicológica,
a violência epistêmica, a violência intelectual é realmente poderosa
(SPILLERS; HARTMAN; GRIFFIN et al. 2007, p. 300-301).
É notável como essa fala de Spillers assumia um tom marcial, um desejo de
“teorizar para a batalha” (SEXTON, 2016, p. 4). A violência real que massacrava as
comunidades negras nos Estados Unidos neoliberal dos anos 1980 transmutava-se no
discurso “cego às cores” dos preceitos disciplinares, da vigilância de suas fronteiras.
Um tipo de violência epistêmica, psicológica e intelectual extremamente poderosa, que
se dava de forma dissimulada através do discurso da “inclusão de minorias raciais”.
Nesse sentido, a norma do que era uma verdadeira família americana, do que
sustentava o progresso nacional, codificava uma sujeição de corpos negros de longa
data. Em Mama’s Baby, Papa’s Maybe, Spillers procurava ressaltar o quanto o Relatório
Moynihan estava inserido em uma classe de “paradigmas simbólicos” que reatualizavam
o chicote das plantations por outras vias. Essa genealogia disciplinar, que sempre definia
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o negro como um “problema”, circunscrevia um tipo de negação por meio do discurso
da “etnicidade”. Em seus termos:
A
própria
“etnicidade”
identifica
uma
objetificação
total
dos motivos humanos e culturais - a família “branca”, por implicação, e
a “Família Negra”, por afirmação direta, em uma constante oposição de
significados binários. Aparentemente espontâneos, esses “actantes” são
inteiramente produzidos, sem passado nem futuro, como correntes tribais
movendo-se fora do tempo (...). “Etnicidade”, neste caso, congela-se em
significado, adquire constância, assume a aparência e os afetos do Eterno
(SPILLERS, 1987, p. 66, grifo da autora).
Esse discurso da “etnicidade” possui uma predisposição tão mítica em sua hegemonia,
que é como se as mulheres negras fossem marcadas (e o uso desse termo é uma evidente
associação com os escravizados que eram marcados a ferro pelos seus senhores) por
discursos tão poderosos, que “não há maneira fácil de os agentes enterrados embaixo
deles serem limpos”. Spillers chega a citar uma lista de estereótipos como “Peaches”
e “Brown Sugar”, “Sapphire” e “Earth Mother”, “Aunty”, “Granny”, “Holy Fool”, “Miss
Ebony First” ou “Black Woman at the Podium”, cuja função coletiva seria patologizar e
culpar as mulheres negras pelo atraso de sua comunidade (SPILLERS, 1987, p. 65). O
Relatório Moynihan, nesse caso, usava uma linguagem técnica e disciplinada de análise
da etnicidade com o disfarçado objetivo de reforçar esse lugar designado às mulheres
negras e à sua comunidade.
Num movimento muito próprio às escritas insubmissas, Mama’s Baby, Papa’s
Maybe traça o imbricado entrelaçamento temporal desses discursos no presente e o
ordenamento sociopolítico do Novo Mundo, que se inicia no final do século XV, definindoos por uma “sequência humana escrita em sangue”. Um dos elementos centrais daquela
racionalidade seria o disciplinamento dos cativos. E é precisamente aqui que Spillers
traça uma distinção entre “corpo” e “carne”. Muito mais do que uma violação física do
escravizado, aquilo era um ordenamento teórico sobre quem poderia ser considerado
humano e quem não. Em suma: enquanto o captor, cuja existência daria sentido ao
entendimento do que era um sujeito “livre”, teria um “corpo”, os escravos, o “grau zero
de conceituação social”, seriam transformados em “carne”.
A “carne” dá forma à existência negra, sendo algo próximo de um fundamento
ontológico, que a antinegridade reiteradamente promove (WARREN, 2018). Toda
escrita insubmissa da história parece “redescrobrir” isso. Como Spillers comenta, essa
modalidade de sujeição foi transmitida às gerações posteriores de “libertos”, porém
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Escritas insubmissas
de maneira “oculta à visão cultural pela cor da pele” (SPILLERS, 1987, p. 67), ou
seja, os eventos históricos vistos como progressos raciais teriam sido interpretados,
na verdade, com o objetivo de ocultar essa narrativa primeira. Logicamente que a
disciplinariedade e o saber histórico tiveram papel preponderante em legitimar esse
“status narrativamente condenado” dos negros.
Para Spillers, então, as violações da “carne” seriam uma forma de pensar o
quanto a história da sujeição antinegra supera a delimitação epocal da Escravidão.
Trata-se de uma ferida violentamente inscrita e violentamente impensada,
afinal, esquecer esse trauma original é o que dá sustentação à sociedade civil e,
logicamente, a estrutura disciplinar de conhecimento tem sua contribuição nisso
(HARTMAN; WILDERSON, 2003). Como Spillers coloca:
Embora a carne/corpo cativos tenha sido “liberada”, e ninguém precise
fingir que nem mesmo as aspas importam, a atividade simbólica
dominante, a episteme em vigor que libera a dinâmica da nomeação
e valoração, permanece fundamentada nas metáforas originárias de
cativeiro e mutilação, de modo que é como se nem o tempo, nem a
história, nem a historiografia, nem seus temas, mostrassem movimento,
visto o sujeito humano é “assassinado” uma e outra vez pelas paixões de
um arcaísmo anônimo e sem sangue, mostrando-se em disfarces sem fim
(SPILLERS, 1987, p. 68, grifo da autora).
Essa ordem simbólica primária, que Spillers chama de “gramática americana”,
tem forte peso na forma como os negros são pensados e escritos no presente. A
“Família Negra”, do Relatório Moynihan: “empresta suas energias narrativas da rede de
associações, das dobras semânticas e icônicas enterradas profundamente no passado
coletivo, que vêm cercar e significar a pessoa cativa” (SPILLERS, 1987, p. 69). Essa
violência contra a carne cativa define uma objetificação total, sem que isso desencadeie
uma crise ética, haja vista que os corpos desses sujeitos e os territórios em que eles
habitam geralmente “já significam violência” (FERREIRA da SILVA, 2014, p. 69).
Ecoando o “mundo cindido em dois”, de Frantz Fanon, para Spillers, toda a comunidade
cativa se torna um “laboratório vivo” (SPILLERS, 1987, p. 68).3 No sentido acadêmico,
essa condição se dava na forma em que, para a historiografia tradicional contra o qual
Spillers e outras escritas insubmissas da história se insurgiam, as experiências serviriam
apenas como “matéria prima” (SPILLERS; HARTMAN; GRIFFIN et al., 2007, p. 300).
3 Cf. FANON, 1968, p. 29; SNORTON, 2017, p. 17-54.
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Tal qual a epígrade de Édouard Glissant, anteriormente citada, Spillers percebeu
que sob “os poderosos destroços da contagem detalhada” (SPILLERS, 1987, p. 69)
característico da racionalidade econômica do navio negreiro, havia corpos que sofriam.
Afinal, o que o arquivo dessa narrativa original permitia? O que restou revelava apenas
a mesma matemática da morte negra que ainda dá corpo ao neoliberalismo e ao saber
disciplinado atuais (MCKITTRICK, 2014). Os empreendedores europeus, gestores
daquela tumba flutuante:
não estavam curiosos sobre aquela “carga” que sangrava, embalada como
tantas sardinhas vivas entre os objetos imóveis. Tal cegueira obscena
inveterada pode ser negada, categoricamente, como uma possibilidade
por quaisquer pessoas, exceto que sabemos que aconteceu. (...) Por
tudo o que os “exploradores” pré-colombianos sabiam sobre as ciências
da navegação e da geografia, surpreende-nos que mais partes deles
não acabado por “descobrir” a Europa. Talvez, de certo ângulo, seja
precisamente tudo o que encontraram - uma leitura alternativa do ego
(SPILLERS, 1987, p. 70, grifo da autora).
Na desumanização da Passagem do Meio, os verdadeiros cancelados estavam
literalmente “suspensos” no oceano: no limbo que separava sua terra nativa das
Américas, esses cativos perdiam o nome, o gênero, sendo transformados em pura
estatística comercial. Nessa passagem repleta de ironia, Spillers expôe o quanto essa
racionalidade mercantil do navio negreiro, tão objetiva e distanciada com relação à sua
“carga”, era uma “cegueira obscena”, um tipo de disciplina cujo único idioma seria a
objetificação total dos cativos.
Mama’s Baby, Papa’s Maybe, porém, não é apenas um texto denunciativo.
Na belíssima invertida operada por Spillers, devido a essas condições mesmas, o
navio negreiro e sua “carga” também representariam “uma riqueza selvagem e não
reinvindicada de possibilidades que não é interrompida, nem ‘contada’/‘contabilizada’”
(SPILLERS, 1987, p. 72). Se o fato de ter nascido “na penumbra das culturas oficiais
(...) da modernidade” concedia à cultura da diáspora negra uma “propriedade analítica”
(SPILLERS, 2017, p. 87), era preciso que o silêncio do arquivo e seu detrimento no
simples cálculo fossem imaginados como um convite à indisciplina historiográfica, como
“uma porção das lacunas inquietantes que a investigação feminista procura preencher”
(SPILLERS, 1987, p. 73).
Essa conceitualização da carne, em Spillers, deve ser tomada pela historiografia em
sua potencialidade indisciplinar, como algo que não se situa meramente no plano da
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impossibilidade, da invisibilidade, do esquecimento e do inenarrável. O arquivo, mesmo
em suas lacunas, é um convite à imaginação, à indisciplina, vista aqui como uma força
geradora. Como demonstrou Alexander Weheliye, diretamente inspirado por Hortense
Spillers, a sujeição política violenta ativa “um excedente carnal que simultaneamente
sustenta e desfigura essa brutalidade”, ou seja, a sujeição inimaginável daqueles que
vivem no rastro da escravidão nunca pode exterminar as possibilidades de fuga, os
sonhos de abolição, as possibilidades de imaginar outros mundos. Isso não significa, ele
continua, replicar a forma como vários discursos de direitos humanos têm endossado
“feridas políticas” desde o Iluminismo, centralizando a questão do sofrimento como o
elemento definidor daqueles sujeitos alijados da lei, da comunidade nacional, da definição
do Humano etc. Esse potencial da carne colocaria em xeque os léxicos de resistência
e agência, conceitos geralmente associados a recusas enfáticas, nas quais sujeitos
completos e autoconscientes de seus atos atuam, seguindo projetos preestabelecidos
(WEHELIYE, 2014, p. 2).
Mama’s Baby, Papa’s Maybe tanto parece ser um desabafo pessoal de uma mulher
negra acadêmica, quanto um manifesto àquela altura dos Black Studies nos Estados
Unidos. Por isso, é um texto tão atual para se falar sobre indisciplina. À época, ele
conseguiu reverberar em um conjunto massivo de interlocutoras, que compartilhavam
de angústias semelhantes.
A fabulação crítica como uma escrita insubmissa da história em Saidiya
Hartman
Grande parte do trabalho da opressão é sobre policiar a imaginação.
Saidiya Hartman, Under the Blacklight (HARTMAN, 2020)
Não à toa que, ao descrever a proximidade entre o seu trabalho e o de Hortense
Spillers, a escritora norte-americana e professora da Universidade de Columbia, Saidiya
Hartman, usa o termo “endividamento” (SPILLERS; HARTMAN; GRIFFIN et al., 2007,
p. 300). Ter sido tocada pela carne, no sentido de ser engajada pelo pensamento
de Spillers, iria inspirar de forma decisiva sua visão historiográfica em Scenes of
Subjection (1997) e Lose Your Mother: A Journey Along the Atlantic Slave Route (2008).
Tratava-se, cabe salientar, de contextos acadêmicos em que os debates raciais haviam
atingido outro patamar, em que um conceito como interseccionalidade, cunhado por
Kimberlé Crenshaw em 1989, havia se tornado a mercadoria feminista da moda, sendo
celebrado por diversos setores acadêmicos. Como Hartman via aquele momento?
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Vozes, como a da teórica literária feminista negra Ann duCille, já questionavam a ânsia
acadêmica e disciplinar por “ter aquele ‘significante da diferença racial’ sem a diferença
da negritude que importa” (duCILLE, 1994, p. 600), ou seja, mesmo em um cenário
de maior aceitação institucional, as teóricas feministas negras estavam cientes de que
a inclusão de seu conhecimento e de sua força de trabalho racializada poderiam ser
apropriados pela branquitude acadêmica como prova de que o “problema racial” havia
sido superado (BILGE, 2020, p. 3).
Hartman escreveu Scenes of Subjection ciente daqueles riscos. Ela entendia
muito bem sobre as armadilhas disciplinares de uma academia baseada em modelos
de governança neoliberal. Seu próprio livro era uma resposta aquela sensação de
que até mesmo o pensamento negro estava sucetível a se separar (consciente ou
inconscientemente) “da força e do terror que as evidências trazem” (HARTMAN;
WILDERSON, 2003, p. 183). Isso, costumeiramente, se dava com o objetivo de buscar
alternativas coerentes e otimistas sobre a história das relações raciais nos Estados
Unidos. Como ela posteriormente advertiu:
E esse projeto é algo que considero obsceno: tentar transformar uma
história de derrota em uma ocasião para comemorar, o desejo de observar
os estragos e a brutalidade dos séculos anteriores, mas sempre encontrar
uma maneira de se sentir bem consigo mesmo. Não é meu projeto,
apesar de acreditar que, na verdade, é o projeto de um certo número de
pessoas. Infelizmente, o tipo de revisionismo na história social realizado
por muitos esquerdistas na década de 1970, que tentaram situar o poder
de grupos dominados, resultou em histórias de celebração dos oprimidos
(HARTMAN; WILDERSON, 2003, p. 185-186).
Sua maior preocupação era desfazer certo otimismo tanto de caráter liberal, quanto
da esquerda ligada à História Social, e ressaltar como a cidania no pós-abolição e
a constituição desse ideal no presente são inevitavelmente integracionistas, mesmo
quando juram estar propondo demandas radicais. Ela concluía: “o objeto metanarrativo
sempre tende à integração no projeto nacional e, especialmente quando este projeto
está em crise, os negros são chamados para reafirmá-lo” (HARTMAN; WILDERSON, 2003,
p. 185). Esse projeto nacional esteve em crise/ameaçado no contexto da rebelião
aberta do anti-imperialismo global e descolonização das tradições radicais negras nos
anos 1960-70, e esse projeto estava em crise nos anos 1990 após as rebeliões de Los
Angeles, em 1992. Scenes of Subjection, portanto, partia do interesse da autora em
expor a dissimulação do projeto democrático de inclusão nos Estados Unidos, pois
tal projeto, contando com apoios diretos (da Historiografia Liberal) ou indiretos (da
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História Social), reforçava um discurso de superação e esquecimento sobre o passado
escravocrata e sobre a própria condição dos negros no presente.
Nesse sentido, um dos pontos centrais da crítica à história disciplinar em Scenes
of Subjection é quando Hartman, tendo em mente o protótipo do progressista branco
do século XX, analisa o discurso do abolicionista John Rankin. Escrevendo do Velho
Sul, o açoite dos escravos só consegue fazer sentido para Rankin quando ele começa
a imaginar que aquele corpo que sofre poderia ser o dele e de sua família. O corpo
branco de seus familiares e o dele próprio termina por substituir imageticamente os
corpos de negros escravizados reais, ou seja, o objeto real de identificação, o escravo,
desaparecia. (HARTMAN, 1997, p. 19) Por meio dessa leitura à contrapelo de um texto
escrito por um abolicionista branco em 1837, Hartman endereça uma crítica mordaz
ao que julgava ser um tipo de revisionismo na História Social da escravidão dos anos
1970, como representado nos livros From Sundown to Sunup: The Making of the Slave
Community (1972), de George Rawick e The Slave Community: Plantation Life in the
Antebellum South (1972) de John Blassingame. À maneira do que Hortense Spillers
falava sobre os “exploradores” pré-colombianos reencontrarem o próprio ego através
de uma análise do Outro, Hartman questionava àquelas obras por uma espécie de
“celebração dos oprimidos”. Como ela posteriormente complementou:
Essa é a lógica dos discursos políticos e morais que vemos todos os dias
– a necessidade de ver o inocente negro sendo perseguido por um estado
racista, a fim de ver o racismo do estado racista. Você tem que ser exemplar
em sua bondade (HARTMAN; WILDERSON, 2003, p. 189).
A historiografia disciplinada, mesmo em sua versão de esquerda, selecionava sujeitos
históricos específicos: marcados por uma autoconsciente resistência e um sentido de
agência que mais parecia confirmar expectativas teóricas precondicionadas. Os negros
do passado só “teriam voz”, só seriam “resgatados” e “úteis” ao saber disciplinado, se
falassem uma gramática da revolta que fizesse coro aos anseios dos seus pesquisadores.
O subalterno, nesse caso, só falava a linguagem de um mestre que não se via como tal.
A escrita insubmissa da história desenvolvida em Scenes of Subjection opera,
também, um rompimento com as divisões absolutas entre escravidão e liberdade.
Hartman é bastante incisiva, ao demonstrar como todas as tentativas de integrar os
antigos escravizados em uma narrativa de direitos liberais resultou em sua sujeição.
O liberalismo pós-abolição discutido no livro tinha muito a cara do governo de Bill
Clinton (1993-2001), o que, ela ressaltava, não significava “apagar as descontinuidades
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e transformações inauguradas pela abolição da escravidão”, mas de problematizar os
“emaranhados de escravidão e liberdade”, numa demonstração dos limites das “noções
fáceis de progresso que se esforçam para erguer distinções absolutas” entre essas duas
épocas (HARTMAN, 1997, p. 172). Portanto, endividada com a gramática desejada por
Hortense Spillers, Hartman buscava em Scenes of Subjection um questionamento incisivo
à temporalidade disciplinada, que, tão paranóica com anacronismo e distanciamento,
insistia em negar qualquer possibilidade do entrelaçamento temporal entre nosso
presente e aquele passado.
Não por acaso, Scenes of Subjection também deve ser pensado na esteira dos
questionamentos à disciplinaridade levantados pela teórica pós-colonial Gayatri
Spivak e seu Pode o Subalterno Falar? (2014). Para Saidiya Hartman, não se tratava
apenas de interrogar as narrativas dominantes, com sua notável contingência e
partidarismo, escrever a história dos dominados demandava a “recuperação do material
de arquivo para fins contrários”, afinal, não havia a possibilidade de a consciência
subalterna estar fora das representações dominantes ou dos documentos da elite
(HARTMAN, 1997, p. 10). Tomando por base Walter Benjamin, ela argumentava que
foi preciso ler os arquivos (autobiografias de negros alfabetizados por brancos, revistas
e documentos de plantations, relatos de jornais, folhetos missionários, escritas de
viagens, etnografias amadoras, relatórios governamentais etc.) à contrapelo, sem
deixar, contudo, de entender o risco de reforçar a autoridade daqueles documentos
(HARTMAN, 1997, p. 10-11). Essa prática indisciplinada de escrever a história seria, como
ela coloca: “uma luta dentro e contra as restrições e silêncios impostos pela natureza
do arquivo - o sistema que governa a aparência de declarações e gera significado
social” (HARTMAN, 1997, p. 11). Posteriormente, ela intitularia seu método como
“fabulação crítica”, “história especulativa”, “narração estreita” e “poética documental”
(HARTMAN, 2020), um tipo de escrita insubmissa da história, ciente da performance
intervencionista do historiador e da impossibilidade de uma reconstrução do passado
separada das “desfigurações das preocupações atuais” (HARTMAN, 1997).
Em seu livro seguinte, Lose Your Mother: A Journey Along the Atlantic Slave Route
(2007), Hartman continuaria sua frontal ruptura com a estrutura narrativa disciplinar
da história. Tentando fazer emergir histórias sobre o comércio de escravos, ela viajou
até Gana, na África, mas só conseguiu se deparar com a reticência dos ganenses em
discutir a escravidão, cansados que estavam de ver mais uma pessoa dos Estados Unidos
querendo saber de “suas origens”. Esse desejo autobiográfico dá conta da intenção do
estudo de Hartman: indisciplinar a prática historiográfica convencional e refletir sobre
as “pós-vidas da escravidão”. Há um trecho em que ela chega a colocar:
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Escritas insubmissas
Na minha cidade, os homens negros têm uma vida útil vinte anos menor
que os homens brancos, e a taxa de mortalidade infantil entre mulheres
negras rivaliza com a de um país do terceiro mundo. Os negros têm cinco
vezes mais chances de morrer de homicídios e dez vezes mais probabilidade
de serem HIV positivos. Metade de todas as crianças negras crescem na
pobreza e um terço de todos os afro-americanos vive na pobreza. Quase
metade dos homens negros entre dezoito e vinte e cinco anos está na
prisão, em liberdade condicional ou em liberdade supervisionada, e tem
quatro vezes mais chances de serem sentenciados à morte do que brancos
(HARTMAN, 2007, p. 129–30).
É notável o caráter emocional de tais afirmações, o sentido de confronto que essa
confissão assume. Mais do que isso, é interessante como tudo é exposto sem que seja
necessário a verificação por estatísticas reais ou extensas notas de rodapé. Por qual
motivo? Esse cálculo da morte negra é de conhecimento de todos, ao ponto de que
sua replicação em dados, muitas vezes, apenas ratifica a desumanização daqueles
sujeitos. Essa parece ser a estratégia indisciplinar em jogo. É menos uma questão de
seguir métodos disciplinados e mais um posicionamento ético, que tenta expurgar a
objetificação de seu objeto: há sempre vidas por trás dos números.
Documentos mantidos por capitães de navios negreiros e companhias de seguros,
utilizados como material de arquivo em Lose Your Mother, seriam o impulso para o
debate proposto no artigo “Vênus em Dois Atos”, uma espécie de post scriptum do livro.
Nele, Hartman acompanha a história de uma garota morta, que ela nomeia de “Vênus”,
fichada em uma acusação judicial contra um capitão de navio negreiro julgado pelo
assassinato de duas garotas negras. Como Hartman observou:
Há centenas de milhares de outras garotas que compartilham as suas
circunstâncias, e essas circunstâncias geraram poucas histórias [stories].
E as histórias [stories] que existem não são sobre elas, mas sobre a
violência, o excesso, a falsidade e a razão que se apoderaram de suas vidas,
transformaram-nas em mercadorias e cadáveres e identificaram-nas com
nomes lançados como insultos e piadas grosseiras. O arquivo, nesse caso,
é uma sentença de morte, um túmulo, uma exibição do corpo violado,
um inventário de propriedade, um tratado médico sobre gonorreia, umas
poucas linhas sobre a vida de uma prostituta, um asterisco na grande
narrativa da história [history] (HARTMAN, 2008, p. 2).
Se a história disciplinada tende a ser tão fascinada pelo arquivo transparente,
que tudo comprove, pelo excesso mesmo dessas provas, o que fazer com um arquivo
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onde o maior excesso seria, justamente, a violência constituinte da escravização?
Essas pergunas interpelavam a escrita insubmissa da história de Hartman. O silêncio
do arquivo sobre “Vênus” talvez gritasse algo, impondo uma aporia ao historiador no
presente, algo que tinha a ver tanto com a dimensão do que mostrar, quanto sobre
como mostrar:
Como se reescreve a crônica de uma morte prevista e antecipada, como
uma biografia coletiva de sujeitos mortos, como uma contra-História do
humano, como prática da liberdade? (...) Quais são os tipos de histórias
a serem contadas por e sobre aqueles que vivem em um relacionamento
tão íntimo com a morte? Romances? Tragédias? Gritos que fazem seu
caminho para a fala e a canção? Quais são os protocolos e limites que
moldam as narrativas escritas como contra-História, uma aspiração que
não é profilática contra os riscos impostos pela reiteração da fala violenta
e pela gramática da violência? (…) As possibilidades superam os perigos de
olhar (de novo)? (HARTMAN, 2008, p. 3-4).
Como Hartman percebeu, os símbolos definidores da violência absoluta, o baracoon
de escravos e o porão do navio negreiro, devem ser encarados não apenas como
precursores das prisões Supermax, mas como símbolos da racionalização do Ocidente
moderno, que detinham também o poder de controlar as práticas da história e a
memória coletiva, estabelecendo uma “segunda ordem de violência” que transcendia
temporalmente a abolição formal (HARTMAN, 2008, p. 5). Mesmo através do ímpeto
indisciplinado de uma contra-História, havia sempre o perigo de se reproduzir, novamente,
o “espetáculo do corpo negro em sofrimento” (ALEXANDER, 1994), de expor ao deleite
disciplinar por arquivos abundantes aquilo que Hortense Spillers chamou de o caráter
“pornotrópico” (SPILLERS, 1987, p. 67) da história dos escravizados. Partindo de uma
postura autorreflexiva e indisciplinar, a fabulação crítica de Saidiya Hartman entendeu
que, para “exceder ou negociar os limites constitutivos do arquivo”, foi necessário:
propor uma série de argumentos especulativos e, ao explorar as capacidades
do subjuntivo (um modo gramatical que expressa dúvidas, desejos e
possibilidades), ao moldar uma narrativa que se baseia na pesquisa
de arquivo, e, com isso, quero dizer uma leitura crítica do arquivo que
mimetiza as dimensões figurativas da história [history], eu pretendia tanto
contar uma história [story] impossível quanto amplificar a impossibilidade
de que seja contada. A temporalidade condicional do “que poderia ter
sido”, segundo Lisa Lowe, “simboliza adequadamente o espaço de um
tipo diferente de pensamento, um espaço de atenção produtiva à cena
da perda, um pensamento com atenção duplicada que procura abranger
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simultaneamente os objetos e métodos positivos da história [history] e da
ciência social e as questões ausentes, emaranhadas e indisponíveis pelos
seus métodos” (HARTMAN, 2008, p. 11, grifo da autora).
Aqui, a indisciplina não significa uma negação completa do saber historiográfico.
Por isso ela fala em “atenção dupla”, uma maneira de lidar, de forma desnaturalizada,
com os métodos dessa disciplina, através de um rearranjo da história, por meio da
confrontação dos pontos de vista em questão. Se o arquivo que restou dos navios
negreiros apenas reinscrevia uma violência contra corpos negros tornados anônimos,
Hartman procura exercer a imaginação, pensar outras possibilidades do que “poderia
ter acontecido ou poderia ter sido ou poderia ter sido feito” (HARTMAN, 2008, p. 11).
A legibilidade disciplinar não consegue captar os sussurros do porão, da mesma
forma que a justiça reparativa não capta o sofrimento daquela “carga”. Os gemidos
da “mercadoria” não são ouvidos nos tradicionais arquivos históricos. Isso tudo,
afinal, é da ordem do impensado para determinada historiografia disciplinada. Daí por
que Hartman ressalta que não busca “dar voz” aos subalternos. Ela reconhece que,
mesmo em sua insubmissão, a escrita que ela produzia era “incapaz de ultrapassar
os limites do dizível ditados pelo arquivo” (HARTMAN, 2008, p. 12), ou seja, a “dívida
impagável” da escravização (FERREIRA da SILVA, 2019) também se faz presente
na impossibilidade de se conhecerem e se recuperarem histórias como aquelas, na
incapacidade de cumprir requisitos básicos da “ilusão realista usual na escrita da História”
(HARTMAN, 2008, p. 12).
Esse jogo com as possibilidades e a imaginação remete a algo que parece cobrir
todo o trabalho de Saidiya Hartman: o sentimento de incompletude da abolição. O
que significa essa palavra no presente? Como a escrita da história relaciona-se com
essa questão? Hartman anseiava que os pequenos atos de insurgência e contestação
apresentados em Scenes of Subjection sugerisse “uma pequena medida de encorajamento
e sirvam para nos lembrar que as falhas da Recontrução ainda nos assombram”
(HARTMAN, 1997, p. 14). Esses atos contestatórios não seriam encontrados em
atividades políticas tradicionais, como comícios abolicionistas, convenções negras,
na luta sufragista ou mesmo em atividades eleitorais etc., mas sim nos interstícios
de um arquivo marcado por violência antinegra. Sendo assim, a “fabulação crítica”
de Hartman está interessada em tornar audível desejos de liberdade, incômodos e
utópicos, que excedem os valores dos direitos civis e políticos ressaltados por parte
da história disciplinada. Se aqueles atos “indóceis”, “exorbitantes” e “excessivos”
(HARTMAN, 1997, p. 6-7) eram tidos como a-históricos ou irrelevantes, essa escrita
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insubmissa da história buscava interpretá-los como uma poderosa reivindicação sobre
nosso presente, como algo que exige a imaginação de um futuro no qual as pós-vidas
da escravidão tenham sido abolidas.
Partindo de uma posição de feminista negra, escrevendo em uma academia
branca com suas tendências disciplinares, integracionistas e pacificadoras, Hartman
procurou, como queria Spillers, outra gramática. Ela entendeu que, para “abandonar
o catálogo absurdo da história oficial” (GLISSANT, 1992, p. 89), sua prática deveria
ser indisciplinada, no nível da forma e em seu impulso retórico. Aqui não há o que
Lewis Gordon chama de “o indicador mais evidente da declinação do pensamento”
(GORDON, 2013, p. 19): a tendência a nunca parecer estar equivocado. A escrita
insubmissa da história de Hartman convida o leitor a contruir o texto em conjunto. Nos
termos de Toni Morrison: “a narrativa é radical, cria-nos a nós próprios no momento
exato em que está a ser criada” (MORRISON, 1993).
Fins indisciplinados para a história
Nos últimos anos, em paralelo à difusão global da agenda descolonizadora do Black
Lives Matter, o Brasil vê uma explosão de dossiês, traduções, eventos acadêmicos
etc. sobre a questão racial. Em um cenário que também é marcado por ataques, em
sua maioria, apressados e/ou ressentidos, contra “identitários” em sua “cultura do
cancelamento”, é notável o quanto um combate ao racismo antinegro assume um
lugar significativo no discurso público, tornando-se, sobretudo, um produto rentável.
Numa situação contemporânea em que as práticas coercitivas foram atualizadas e que
passamos de um sistema de captividade absoluta para um de “captividade fractal”, no
qual a violência se dá de outras maneiras, tornando possível, “a concomitância de nossa
morte e de nosso sucesso”, Jota Mombaça estabelece uma meditação sobre como as
representações artísticas e pensamento negros e anticoloniais, sob o ponto de vista
de algumas instituições, vêm conquistando uma tendência de mercado e sendo vistas
como uma “moda”. De que maneira essa commodityficação está amparada diretamente
em uma imbricação entre as representações anticoloniais e a posição sócio-histórica
dos negros? O fato de que o “debate antirracista” tenha se tornado uma tendência
editorial/uma moda, reatualiza, como é algo corrente historicamente, os regimes
de captura dos corpos negros que estão na origem do sistema capitalista ocidental?
(MOMBAÇA, 2020).
Retornamos aqui a questão central deste texto e adicionamos outras perguntas:
em uma realidade social no qual, como diria Audre Lorde, “nunca fomos feitos para
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Escritas insubmissas
sobreviver” (LORDE, 2000, p. 255), como lidar com os ditames disciplinares da história?
Se é possível perceber uma abertura de espaços editoriais e acadêmicos a produções
sobre raça e racismo, como não imaginar que essa sirva para reinscrever um saber
histórico disciplinado sobre os estudos negros? Não chega a ser curioso o quanto uma
das principais reclamações sobre pesquisadores negros recaia, justamente, em sua falta
de vigor teórico/disciplinar? O que deve pautar os estudos negros no campo da história?
Reconhecimento? Reparação? Se a história é uma disciplina filha do colonialismo, se seu
estabelecimento acadêmico se deu, em parte, através da forma em que ela trabalhava
no projeto colonial, do que ela nos serve, se, afinal, “o ‘fim’ é a única coisa razoável que
se pode fazer desse mundo capitalista racial”? (FERREIRA da SILVA; LEEB, STAKEMEIER,
2020). Dar outros sentidos e redefinir a própria prática da disciplina, ou seja, fazer com
que a história não seja unicamente um patrulhamento de fronteiras disciplinares é um
bom caminho, mas que, por si só, não basta.
Não se trata, é preciso deixar claro, de uma atualização neoliberal na qual o “letramento
racial” do historiador seria importante para seu know-how. Para historiadores negros,
escrever em uma disciplina que sempre nos convidou a “sair um pouco da sala de
jantar e deixar a história começar outra vez” (SCHWARCZ, 2020), nos fez perceber
que a indisciplina histórica e a imaginação radical são intensidades políticas poderosas.
Indisciplinar a história não significa meramente “incluir diversidade” ou “trazer cor” à
universidade-empresa, muito menos tomar culturas de passado não ocidentais como
se elas fossem um mero antídoto que purificasse a historiografia dominante de sua
histórica disciplinaridade antinegra. Essas escritas insubmissas da história não aceitam
o trabalho de servir (como se domésticas submissas o fossem) à historiografia ocidental
e ao neoliberalismo academicista, que buscam extrair dali experiências que contribuam
para sua autodescoberta e engrandecimento pessoal.
O que fazer, então? Quando pensamos a história daqueles que vivem as “pósvidas da escravidão” (HARTMAN, 2007, p. 6), esses projetos devem assumir uma
dimensão ainda mais radical: a história indisciplinada deve atuar em conjunto com
sonhos por abolição, desejos pelos quais tantos ainda se sacrificam nas ruas. A história
indisciplinada, ainda, deve ter em mente, como demonstram as escritas insubmissas de
Hortense Spillers e Saidiya Hartman, o quanto os protocolos disciplinares da história e
a violência da razão são ferramentas do senhor as quais não estão dispostas a derrubar
a casa-grande (LORDE, 2019, p. 137). Da mesma maneira que Denise Ferreira da
Silva está interessada em como a poética (entendida em termos gerais) pode mudar
os termos do discurso e da prática intelectual (FERREIRA da SILVA, 2019, p. 86), a
fabulação crítica e a rebeldia da carne dessas escritas insubmissas oferecem, como
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vimos, novas modalidades de escrever a história e de pensar o nosso mundo. Durante
esse processo, certamente, outro tipo de historiador e de disciplina não será apenas
possível, como também necessário.
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INFORMAÇÕES ADICIONAIS
BIOGRAFIA PROFISSIONAL
Allan K. Pereira é doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS) e professor substitudo do curso de História da Universidade Estadual da Paraíba
(UEPB). É membro do GT de Teoria e História da Historiografia da UFRGS. Pesquisa temas
relacionados ao racismo antinegritude, Afro-Pessimismo e o Black Lives Matter.
ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA
Rua Baraúnas, n. 351, Campina Grande, PB, CEP 58429-500, Brasil.
FINANCIAMENTO
Essa pesquisa contou com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES).
AGRADECIMENTO
Sou grato a colegas que leram versões iniciais desse artigo e ofereceram sugestões críticas/
incentivos, em especial Gabriel Gonzaga (Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP), Pedro
Telles da Silveira (Universidade de Campinas - UNICAMP), Marcello Felisberto (UFRGS), Marcelo
Ribeiro (Universidade Federal da Bahia - UFBA), Fernanda Sousa (Universidade de São Paulo
USP), Renan Porto (University of Westminster), Kênia Freitas (Universidade Católica de Brasília
- UCB) e Arthur Lima de Ávila (UFRGS).
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Escritas insubmissas
CONFLITO DE INTERESSE
Nenhum conflito de interesse declarado.
APROVAÇÃO EM COMITÊ DE ÉTICA
Não se aplica.
MODALIDADE DE AVALIAÇÃO
Duplo-cega por pares.
EDITORES RESPONSÁVEIS
Alexandre Avelar – Editor convidado
Flávia Varella – Editora chefe
Lidiane Soares Rodrigues – Editora convidada
María Inés Mudrovcic – Editora convidada
DIREITOS AUTORAIS
Copyright (c) 2021 Allan K. Pereira.
LICENÇA
Este é um artigo distribuído em Acesso Aberto sob os termos da Creative Commons Atribuição
4.0 Internacional.
HISTÓRICO DE AVALIAÇÃO
Recebido em: 31 de agosto de 2020.
Alterado em: 10 de junho de 2021.
Alterado em: 30 de junho de 2021.
Aprovado em: 8 de julho de 2021.
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