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Este artigo demonstrará o potencial indisciplinar do que definiremos como escritas insubmissas da história. Isso será feito em dois momentos: inicialmente através da procura de Hortense Spillers por uma "nova gramática", capaz de redefinir a forma estereotipada como os negros são pensados e escritos no presente; em seguida, terá como foco o conceito de "fabulação crítica", proposto por Saidiya Hartman, que é tanto uma alternativa teórica para exceder ou negociar lacunas do arquivo da escravidão, quanto uma reflexão indisciplinar sobre o que faz o historiador. Antes, porém, explicaremos como essas escritas insubmissas da história fazem parte de uma tradição radical negra, que, desde o final do século XIX, tem se insurgido contra o disciplinamento epistêmico ocidental. Desafios teóricos, veremos, que semprem estiveram profundamente conectados com as demandas político-sociais dos protestos radicais contra a violência antinegra nos Estados Unidos. Ao término, a partir das considerações de Spillers e Hartman, este texto enseja pensar a indisciplina como um fim radical possível em um mundo antinegro.

HISTÓRIA DA HISTORIOGRAFIA Dossiê temático Escritas insubmissas: indisciplinando a História com Hortense Spillers e Saidiya Hartman Unsubmissive writings: undisciplining history with Hortense Spillers and Saidiya Hartman Allan Kardec Pereira a E-mail: [email protected] https://orcid.org/0000-0003-2283-4826 a 481 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de História, Porto Alegre, RS, Brasil Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 HISTÓRIA DA HISTORIOGRAFIA Artigo original RESUMO Este artigo demonstrará o potencial indisciplinar do que definiremos como escritas insubmissas da história. Isso será feito em dois momentos: inicialmente através da procura de Hortense Spillers por uma “nova gramática”, capaz de redefinir a forma estereotipada como os negros são pensados e escritos no presente; em seguida, terá como foco o conceito de “fabulação crítica”, proposto por Saidiya Hartman, que é tanto uma alternativa teórica para exceder ou negociar lacunas do arquivo da escravidão, quanto uma reflexão indisciplinar sobre o que faz o historiador. Antes, porém, explicaremos como essas escritas insubmissas da história fazem parte de uma tradição radical negra, que, desde o final do século XIX, tem se insurgido contra o disciplinamento epistêmico ocidental. Desafios teóricos, veremos, que semprem estiveram profundamente conectados com as demandas político-sociais dos protestos radicais contra a violência antinegra nos Estados Unidos. Ao término, a partir das considerações de Spillers e Hartman, este texto enseja pensar a indisciplina como um fim radical possível em um mundo antinegro. PALAVRAS-CHAVE Histórias não convencionais. Cultura historiográfica. Compreensão histórica. ABSTRACT This text aims to demonstrate, in two moments, the undisciplinary potential of what we will term as unsubmissive writings of history. Initially, it will focus on Hortense Spillers’ quest for a “new grammar,” capable of redefining the stereotypes underlying current thoughts and writings about Black people. Then, the analysis will be centered on Saidiya Hartman’s concept of “critical fabulation,” which is both a theoretical alternative to bridge or negotiate gaps in the archive about slavery and an undisciplined reflection on the work of the historian. However, before approaching these concepts, we will explain how these unsubmissive writings of history are part of a Black radical tradition that has risen against Western epistemic disciplining since the end of the 19th century. This analysis will show that theoretical challenges have always been deeply connected with the political and social demands of the radical protests against anti-Black violence in the United States. Based on the considerations of Spillers and Hartman, this text deems indiscipline as a possible radical purpose in an anti-Black world. KEYWORDS Uncoventional history. Historiographical culture. Historical understanding. 482 Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 Allan Kardec Pereira Introdução Vivemos em um cenário global marcado pelo acirramento das disputas em torno do passado, ataques sistemáticos às humanidades e o avanço de negacionistas/ falsificadores da história. Nesse contexto, o público consumidor e as formas de se escrever história se transformaram. A composição das universidades também não é mais a mesma e, diante das demandas dos seus novos atores, a atuação do historiador na sociedade ganha cada vez mais destaque. Preocupações envolvendo “a autoridade sobre o passado, decorrente da relação entre o historiador e o público” (MALERBA, 2017), as implicações do que seria um “giro ético-político” (RANGEL, 2019), ou a necessidade de que a disciplina histórica, assim como as demais ciências humanas, “enfrentem as suas tradições na busca de novas formas de identidade disciplinar e de inserção social” (TURIN; AVILA; NICOLAZZI, 2019) parecem transmitir a ideia de que estaríamos diante de uma nova urgência. Nosso argumento reconhece as mesmas preocupações. Mas questiona, justamente, a localização delas como uma oferta/imposição do presente. Afinal, quando se fala em um “giro ético-político” na disciplina histórica, a atuação de que tipo de atores sociais está se levando em conta? Como não reconhecer que o tratamento indisciplinar da história, a dimensão afetiva e a preocupação estética com uma escrita assumidamente intervencionista no seu presente perpassam a história da intelectualidade negra em toda a diáspora? Por qual motivo, então, esse ainda é um saber “impensado”, até mesmo nos limites de uma gramática mais crítica da historiografia? Uma tentativa de responder a essas indagações passa pelo entendimento da ligação entre disciplinamento antinegro e a exclusão epistêmica. Por mais que hoje vejamos a disciplina histórica como uma alternativa crítica a um cenário turbulento do presente, é preciso também recordar o quanto sua reificação disciplinar e a patrulha de fronteiras teóricas estiveram intimamente conectadas a projetos coloniais. Não é de hoje, porém, que intelectuais radicais negros se insurgem e enfrentam convenções disciplinares que, nos limites da prática historiográfica estabelecida, só conseguiam racionalizar a negritude como algo “fora da história”, como um “problema” a ser resolvido. Isso é especialmente impactante quando pensamos a recepção dos Black Studies no cenário acadêmico dos Estados Unidos, uma situação na qual o modelo de “inclusão” da negritude tentava, ao mesmo tempo, domesticar demandas radicais e disciplinar aqueles saberes. Inseridas naquele ambiente universitário, mas procurando superar o mero reconhecimento da humanidade negra nos moldes liberais, Hortense Spillers e Saidiya 483 Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 Escritas insubmissas Hartman serão descritas como praticantes dessas escritas insubmisass da história. Spillers, escrevendo no final dos anos 1980, analisa de que forma as noções racistas de inferioridade biológica haviam migrado para percepções liberais de inferioridade cultural e criminalização da negritude. Sua conceituação sobre “a carne” interpreta de que maneira um poderoso conjunto de discursos tem “marcado” mulheres negras com estereótipos degenerativos por gerações. Essa teoria, porém, vai além da mera descrição da opressão e oferece “a carne” como um potencial indisciplinar, como uma forma de ver o Ocidente, como um modo distinto de lidar com o passado, com a história. A próxima sessão, centrada em parte do pensamento de Saidiya Hartman, elabora as notáveis aproximações entre as duas autoras, especialmente, os seus ímpetos indisciplinares. A postura auto-reflexiva de Hartman, que ela intitula de “fabulação crítica”, oferece não apenas uma alternativa teórica para exceder ou negociar lacunas do arquivo da escravidão, mas uma reflexão sobre o que a escrita da história tem a oferecer a futuros abolicionistas. Ao fim, inspirados nessas contribuições trazidas por Spillers e Hartman, faremos uma meditação provocativa sobre o que poderia ser uma história indisciplinada em um contexto no qual os debates antirracistas parecem fazer parte de uma recente moda/ tendência editorial. Se os historiadores negros ainda são sujeitos “marcados” por um passado que sempre desconsiderou o seu conhecimento, o que podem oferecer a uma história que se queira indisciplinada? A violência da razão disciplinar No barco negreiro, o único escrito é o livro de contabilidade listando o valor de troca dos escravos. No espaço do barco, o grito dos deportados é sufocado, como o será no universo das Plantations. Esse confronto ainda reverbera até nós.1 (GLISSANT, 1997, p. 5) Quando pensado etimologicamente, o termo “disciplina” guarda sua origem no latim disciplina, significando a foma como um discipulus era educado por seu mestre. Com o tempo, suas conotações foram se modificando, adicionando um referencial ligado a 1 Pensando nesse texto como um meio de divulgação de conhecimento e ciente de que no Brasil, devido a processos histórico-sociais, há um defict de proficiência em inglês entre alunos negros, optei por traduzir diretamente todas as citações. Não faria sentido discutir exclusão epistêmica e contribuir, de alguma forma, para mais esssa. Para uma consulta mais elaborada acerca dessas disparidades, cf.: BRITISH COUNCIL, 2015. 484 Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 Allan Kardec Pereira regramentos (em uma acepção militar), regulamentos (que assegurem o bem-estar coletivo e o bom funcionamento de uma organização hospitalar, por exemplo), um sentido de ordem (enquanto bom comportamento de alunos), constância (algo necessário para vencer na vida) e, até mesmo, serviu para descrever as cordas com que frades, devotos e penitentes se flagelavam. Para além de tais expansões conceituais, a conexão primeira entre disciplina e educação se manteve. Sendo assim, na cultura acadêmica, tem-se que as disciplinas são usadas para se referir não apenas à organização do conhecimento, mas a sua própria produção. Disciplinas propõem modelos epistemológicos “que oferecem métodos comprovados que se impõem a qualquer realidade” (GORDON, 2013, p. 16). Questionando essas condições, o filósofo afro-americano Lewis R. Gordon comenta que muitas disciplinas perderam sua capacidade de ver a si mesmas como tentativas de compreender o mundo e, presas em arrogância, terminavam por entrar em “decadência”, posicionando-se como o mundo. Essa postura seria marcada por uma ontologização e reificação das disciplinas, como se elas tivessem sempre existido e nunca fossem mudar ou – em alguns casos – vir a morrer. Ao invés de uma busca por conhecimento como finalidade aberta, disciplinas decadentes estariam presas a práticas autolimitantes de patrulhamento de objetivos e métodos. Ironicamente, argumenta Gordon, as disciplinas são criadas e mantidas “considerando as provas de sua decomposição como evidências de sua saúde” (GORDON, 2013, p. 23). A formação disciplinar, tal como a conhecemos atualmente no quadro das universidades ocidentais, teve origem na cultura Iluminista da Europa, junto com a constituição do Estado-Moderno, as noções de democracia, de cidadania e a consolidação da economia de acumulação (FERREIRA da SILVA, 2007). No estabelecimento da História como campo do saber, a verdade disciplinar era um privilégio de poucos e tudo aquilo que a isso não adequasse terminava por ser considerado uma ameaça ao pensamento racional. Nos termos de Lewis Gordon: “o autoengano de seus guardas de fronteiras disciplinares imaginava que a eliminação da oposição, a erradicação do mundo externo, seria a consecução da imortalidade epistêmica” (GORDON, 2013, p. 23). Desde o final do século XIX, porém, escritas insubimissas da história insurgiram-se contra essa patrulha disciplinar, especialmente porque perceberam a imbricada ligação entre aquele regramento epistêmico e violências as mais diversas. No caso dos Estados Unidos, a tradição intelectual negra representativa dos estudos afro-americanos é caracterizada por três grandes eixos. Primeiro, ela sempre foi descritiva, ou seja, expôs o real da vida e das experiências negras, partindo do ponto de vista dos próprios negros, como uma espécie de participante observador. Segundo, ela frequentemente foi corretiva, pois sempre bateu de frente com o racismo e os estereótipos racias e 485 Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 Escritas insubmissas epistêmicos presentes no discurso dominante das instituições acadêmicas brancas. Por último, a tradição intelectual negra também foi prescritiva, haja vista que teve como estratégia central o empoderamento dos negros, numa imbricação fundamental entre análise e transformação da sociedade (MARABLE, 2000, p. 17-18). Keguro Macharia enumera autores africanos e afro-diaspóricos cuja escrita estava consciente de que a luta por liberdade passava pelo desafio às convenções disciplinares que os patologizavam como “fora da história”: Pauline Hopkins escreveu filosofia especulativa (A Primer of Facts Pertaining to the Early Greatness of the African Race and Possibility of Restoration by Its Descendants) e ficção (Of One Blood); W.E.B Du Bois publicou um trabalho fundamental em sociologia (The Philadelphia Negro) e ficção (Dark Princess); Zora Neale Hurston publicou ficção (The Eyes Were Watching God) e etnografia (Tell My Horse: Voodoo e Life in Haiti and Jamaica); Aimé Césaire publicou poesia (Return of a Native to the Native Land) e crítica anticolonial (Discourse on Colonialism); C.L.R James escreveu ficção (Minty Alley) e história política (The Black Jacobins); e Léopold Sédar Senghor publicou poesia e filosofia política (MACHARIA, 2019, p. 69-70). Trata-se de exemplos que demonstram como a urgência indisciplinada não é uma novidade para a autoria negra na diáspora. Interdisciplinaridade e indisciplinaridade caminhavam juntas, em um claro desafio à normatividade de estruturas de saber que eram bastante resistentes a suas interpelações. Em meio ao ostracismo e à má interpretação, esses autores estavam mais do que concientes de que, éticopoliticamente, era preciso levar em conta a forma estética em que o negro era figurado narrativamente, pois isso era tão ou mais importante do que desafiar dados falsos e argumentos racistas. Resta, então, questionar: de que formas essas escritas insubmissas da história foram posteriormente recepcionadas/incluídas em um espaço tão antinegro como as universidades dos Estados Unidos? Jodi Melamed comenta que, no pós-Segunda Guerra Mundial, a visão de mundo supremacista branca passou por uma significativa crise de legitimidade. O conflito, em sua dimensão global, revelou os laços conceituais que uniam o fascismo europeu, a segregação racial e o domínio colonial – não por acaso, o ativismo antirracista nos Estados Unidos teve forte inspiração na luta dos movimentos anticoloniais mundo afora. Naquele cenário, buscando ganhar a opinião pública no início da extensa Guerra Fria, a União Soviética enfatizou a segregação racial nos Estados Unidos como um elemento que 486 Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 Allan Kardec Pereira indicaria o quanto o sistema capitalista ocidental projetaria aquele modelo de dominação ao mundo. Isso contribuiu, segundo Melamed, para que essa nova formação histórica mundial, que iria moldar a ascensão global dos Estados Unidos, fosse marcada por uma “modernidade antirracista no plano formal e liberal-capitalista no projeto políticoeconômico”. Como prova da condição excepcional dos Estados Unidos, a democracia e o capitalismo que lhes seriam próprios, seriam atualizados por meio da integração dos afro-americanos na sociedade, numa demonstração de que a economia de mercado era “cega às cores” e não estruturada pelo racismo antinegro (MELAMED, 2011, p. 9). Naquele embate ideológico contra o inimigo soviético, as “reformas” no campo das humanidades buscavam uma “modernização” dos seus temas e uma transformação dos seus quadros através de um impulso por “mais diversidade”. Se nos dias atuais, essas instituições e seus departamentos disciplinares majoritariamente brancos se espantam com o que chamam de “cultura do cancelamento” dos “identitários” inspirados no Black Lives Matter, é preciso lembrar que as universidades norte-americanas tiveram susto e ressentimento semelhante quando da erupção de protestos estudantis negros entre 1968 e 1972. Naquele contexto, os Black Studies deixam de ser apenas um discurso e campo de pesquisa confinado em instituições segregadas racialmente e se tornam um currículo empolgante em centenas de programas arquitetados por jovens pesquisadores envolvidos em organizações culturais e políticas de protesto negras. Eles queriam muito mais do que práticas inclusivas em currículos e disciplinas excludentes, de maneira que sua dúvida fundamental era: como criar um espaço de pensamento negro militante dentro de uma instituição branca conservadora que era, invariavelmente, antinegra? (MARABLE, 2000, p. 22). A indisciplina foi uma necessidade primordial, uma forma de afirmar que aqueles desafios ao saber estabelecido importavam. Entretanto, a agenda escancaradamente neoliberal após a eleição de Ronald Reagan, em 1980, trouxe uma repressão significativa aos Black Studies. Em paralelo com a expansão do Complexo Prisional Industrial (GILMORE, 2007), houve significativo desinvestimento público nas universidades. Enquanto muitos daqueles que compunham as fileiras das revoltas na década anterior haviam abandonado seus tecidos Kente, trocado seus dashikis por camisas poliéster e passado a ocupar cargos públicos, dentro e a favor da maquinaria antinegra, um grupo de “intelectuais radicais aprisionados”, como Assata Shakur, George Jackson, Angela Y. Davis, Leonard Peltier, Mumia AbuJamal, Marilyn Buck pautavam seu abolicionismo penal, dentre outros pontos, em uma redefinição da narrativa sobre o passado escravocrata nos Estados Unidos (RODRIGUEZ, 2006). 487 Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 Escritas insubmissas Naquele contexto deveras arredio ao pensamento radical, não foram poucas as intelectuais negras que ousaram escritas insubmissas da história. Alice Walker, Audre Lorde, Toni Cade Bambara, June Jordan, bell hooks, Sylvia Wynter, Kimberlé Crenshaw e Toni Morrison, entre outras, criticaram a intersecção do racismo e do sexismo em sua relação com o legado ainda presente da escravidão. A publicação de Amada, em 1987, romance que catapultou Toni Morrison ao Prêmio Nobel de Literatura de 1993, deve ser considerado um episódio decisivo no debate público sobre o passado dos Estados Unidos. Aquela narrativa centralizava a maneira como os espectros da escravidão colapsavam o tempo da história disciplinar e colocavam em xeque um projeto nacional de esquecimento. Diante das celebrações ufanistas do bicentenário da Abolição nos Estados Unidos, aquelas escritas insubmissas foram responsáveis por questionar a memória abolicionista (branca) que restou nos arquivos e no imaginário nacionalista dos EUA, ou seja, havia por parte daquelas autoras negras um forte desejo de cumprir o chamado de Sylvia Wynter para “desfazer seu status narrativamente condenado” (WYNTER, 1994, p. 70). Seguindo esses caminhos, a produção teórica de Hortense Spillers e Saidiya Hartman, examinada nas páginas seguintes, buscou combater o opressivo silenciamento dos arquivos da história dos negros da diáspora e, através disso, revelar uma “história potencial”, no duplo significado atribuído a esse conceito por Ariella Azoulay: tanto uma reconstrução de possibilidades, práticas e sonhos não realizados que motivaram e dirigiram as ações de distintos atores no passado, quanto a transformação do passado em um evento interminável (AZOULAY, 2013, p. 565-566). Essas escritas insubmissas da história negra, que emergem no interior da academia e reforçam uma posição intersticial das intelectuais que as promovem, buscam desestabilizar a episteme moderna-colonial, sem perder de vista a capacidade de imaginar uma transformação social radical desse nosso mundo. A história indisciplinada que surge daí é algo que vai além da mera crítica, da simples denúncia ou de um relato distanciado e imparcial sobre o passado. Trata-se, muito mais, de um direcionamento a outro modo de viver com o passado. Em outras palavras, a questão que inquieta essas escritas insubmissas da história é: em uma realidade social no qual, como diria Audre Lorde, “nunca fomos feitos para sobreviver” (LORDE, 2000, p. 255), como lidar com os ditames disciplinares da história? 488 Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 Allan Kardec Pereira Eu, mulher negra, estou aqui, agora: o que você vai fazer? No ano de 1987, quando a crítica literária afro-americana Hortense Spillers escreveu Mama’s Baby, Papa’s Maybe, o abandono da rede de seguridade social e o ethos de responsabilização pessoal já haviam deixado de ser mero discurso de campanha do Partido Republicano e se tornado uma política estatal com forte penetração nos mais distintos setores da sociedade norte-americana. Naquele segundo mandato de Ronald Reagan, o estereótipo antinegro das “Rainhas do bem-estar”, que usavam todos os meios possíveis para burlar o governo (era comum que essas mulheres negras fossem associadas ao recebimento de cupons de alimentação e benefícios de veteranos de guerra para maridos inexistentes), era largamente empregado para se referir ao “problema” da estrutura matriarcal das famílias negras. Como analisado por Spillers, uma grande base para aqueles discursos era o relatório Moynihan, de 1965. Uma peça de direcionamento político-social que, apropriando-se de métodos disciplinares da Sociologia e da História, criticava a predominância matriarcal nas famílias negras, por manter aquela comunidade em um emaranhado patológico que limitava seu desenvolvimento nos mais distintos aspectos. Esses argumentos se davam, vale ressaltar, por meio de “codificações telegráficas” (SPILLERS, 1987, p. 65), ou seja, Moynihan apelava ao cientificismo e à disciplinaridade para camuflar e transmitir uma “condenação da negritude”2 de longa data. O “problema” permanecia o mesmo: a mulher negra. Spillers estava particularmente desesperançosa com aquele lugar comum, afinal, eram discursos que reverberavam na própria pouca consideração acadêmica que as pesquisadoras negras recebiam. Por mais que ela estivesse, desde então, vivenciando relativa ascenção acadêmica nos Estados Unidos, lecionando em uma boa instituição como Haverford College, não havia como reagir de forma amistosa diante daquele arsenal de estereótipos: eles sempre transcendiam à classe e ela própria também se via atingida. Assim sendo, tentando dar seguimento às reflexões da coletânea All the Women Are White, All the Blacks Are Men, But Some of Us Are Brave (1982), organizada por Gloria Hull, Bell Scott e Barbara Smith, ela procurava “encontrar uma categoria que respeitasse o histórico”, que conseguisse expor, através de uma linguagem própria à academia pós-moderna de então, um conteúdo que alguns historiadores negros vinham tentando escrever há um bom tempo, mas que sua linguagem disciplinar não estava expressando adequadamente (SPILLERS; HARTMAN; GRIFFIN et al., 2007, p. 308). 2 cf. MUHAMMAD, 2010. 489 Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 Escritas insubmissas Como mulher negra, o cenário acadêmico onde Spillers escrevia lhe provocava uma dramática solidão, como se ela fosse “o elefante branco no quarto”. Seu ensaio Mama’s Baby, Papa’s Maybe, antes de tudo, deve ser pensado como um ato acadêmico insurrecional, no qual uma voz negra grita ao saber disciplinado: “estou aqui agora (...) e você não vai me ignorar. (...) O que você vai fazer?” (SPILLERS; HARTMAN; GRIFFIN et al. 2007, p. 308). Prova disso é que, anos depois, ao responder um questionamento sobre a notória relevância que aquele ensaio conquistou, ela iria se expressar da seguinte maneira: O que eu vi acontecer foi que as pessoas negras estavam sendo tratadas como uma espécie de matéria-prima. Que a história dos negros era algo que você poderia usar como uma nota de inspiração, mas nunca foi nada que tivesse qualquer relação com você - você nunca poderia usá-la para explicar algo em termos teóricos. Não havia discurso, em termos da academia mainstream, que lhe desse uma espécie de reconhecimento. Então, minha ideia era tentar criar um discurso ou um vocabulário que não apenas tornasse desejável, mas exigisse que as mulheres negras participassem da conversa. (...) estamos agora num período de reação tão forte que, se não formos cuidadosas, o trabalho que estamos fazendo agora terá de ser “redescoberto” em algum momento. Você sabe, as pessoas vão ter que continuar fazendo isso, ou redescobri-lo novamente, ou reafirmá-lo porque as forças da oposição são tão fortes e tão poderosas e estão sempre empurrando contra nós, elas sempre querem impor o esquecimento. Eles sempre querem fazer algo que esqueça a presença africana ou a reabsorva, reapropriando-a de outra maneira. A necessidade de confrontar a violência psicológica, a violência epistêmica, a violência intelectual é realmente poderosa (SPILLERS; HARTMAN; GRIFFIN et al. 2007, p. 300-301). É notável como essa fala de Spillers assumia um tom marcial, um desejo de “teorizar para a batalha” (SEXTON, 2016, p. 4). A violência real que massacrava as comunidades negras nos Estados Unidos neoliberal dos anos 1980 transmutava-se no discurso “cego às cores” dos preceitos disciplinares, da vigilância de suas fronteiras. Um tipo de violência epistêmica, psicológica e intelectual extremamente poderosa, que se dava de forma dissimulada através do discurso da “inclusão de minorias raciais”. Nesse sentido, a norma do que era uma verdadeira família americana, do que sustentava o progresso nacional, codificava uma sujeição de corpos negros de longa data. Em Mama’s Baby, Papa’s Maybe, Spillers procurava ressaltar o quanto o Relatório Moynihan estava inserido em uma classe de “paradigmas simbólicos” que reatualizavam o chicote das plantations por outras vias. Essa genealogia disciplinar, que sempre definia 490 Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 Allan Kardec Pereira o negro como um “problema”, circunscrevia um tipo de negação por meio do discurso da “etnicidade”. Em seus termos: A própria “etnicidade” identifica uma objetificação total dos motivos humanos e culturais - a família “branca”, por implicação, e a “Família Negra”, por afirmação direta, em uma constante oposição de significados binários. Aparentemente espontâneos, esses “actantes” são inteiramente produzidos, sem passado nem futuro, como correntes tribais movendo-se fora do tempo (...). “Etnicidade”, neste caso, congela-se em significado, adquire constância, assume a aparência e os afetos do Eterno (SPILLERS, 1987, p. 66, grifo da autora). Esse discurso da “etnicidade” possui uma predisposição tão mítica em sua hegemonia, que é como se as mulheres negras fossem marcadas (e o uso desse termo é uma evidente associação com os escravizados que eram marcados a ferro pelos seus senhores) por discursos tão poderosos, que “não há maneira fácil de os agentes enterrados embaixo deles serem limpos”. Spillers chega a citar uma lista de estereótipos como “Peaches” e “Brown Sugar”, “Sapphire” e “Earth Mother”, “Aunty”, “Granny”, “Holy Fool”, “Miss Ebony First” ou “Black Woman at the Podium”, cuja função coletiva seria patologizar e culpar as mulheres negras pelo atraso de sua comunidade (SPILLERS, 1987, p. 65). O Relatório Moynihan, nesse caso, usava uma linguagem técnica e disciplinada de análise da etnicidade com o disfarçado objetivo de reforçar esse lugar designado às mulheres negras e à sua comunidade. Num movimento muito próprio às escritas insubmissas, Mama’s Baby, Papa’s Maybe traça o imbricado entrelaçamento temporal desses discursos no presente e o ordenamento sociopolítico do Novo Mundo, que se inicia no final do século XV, definindoos por uma “sequência humana escrita em sangue”. Um dos elementos centrais daquela racionalidade seria o disciplinamento dos cativos. E é precisamente aqui que Spillers traça uma distinção entre “corpo” e “carne”. Muito mais do que uma violação física do escravizado, aquilo era um ordenamento teórico sobre quem poderia ser considerado humano e quem não. Em suma: enquanto o captor, cuja existência daria sentido ao entendimento do que era um sujeito “livre”, teria um “corpo”, os escravos, o “grau zero de conceituação social”, seriam transformados em “carne”. A “carne” dá forma à existência negra, sendo algo próximo de um fundamento ontológico, que a antinegridade reiteradamente promove (WARREN, 2018). Toda escrita insubmissa da história parece “redescrobrir” isso. Como Spillers comenta, essa modalidade de sujeição foi transmitida às gerações posteriores de “libertos”, porém 491 Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 Escritas insubmissas de maneira “oculta à visão cultural pela cor da pele” (SPILLERS, 1987, p. 67), ou seja, os eventos históricos vistos como progressos raciais teriam sido interpretados, na verdade, com o objetivo de ocultar essa narrativa primeira. Logicamente que a disciplinariedade e o saber histórico tiveram papel preponderante em legitimar esse “status narrativamente condenado” dos negros. Para Spillers, então, as violações da “carne” seriam uma forma de pensar o quanto a história da sujeição antinegra supera a delimitação epocal da Escravidão. Trata-se de uma ferida violentamente inscrita e violentamente impensada, afinal, esquecer esse trauma original é o que dá sustentação à sociedade civil e, logicamente, a estrutura disciplinar de conhecimento tem sua contribuição nisso (HARTMAN; WILDERSON, 2003). Como Spillers coloca: Embora a carne/corpo cativos tenha sido “liberada”, e ninguém precise fingir que nem mesmo as aspas importam, a atividade simbólica dominante, a episteme em vigor que libera a dinâmica da nomeação e valoração, permanece fundamentada nas metáforas originárias de cativeiro e mutilação, de modo que é como se nem o tempo, nem a história, nem a historiografia, nem seus temas, mostrassem movimento, visto o sujeito humano é “assassinado” uma e outra vez pelas paixões de um arcaísmo anônimo e sem sangue, mostrando-se em disfarces sem fim (SPILLERS, 1987, p. 68, grifo da autora). Essa ordem simbólica primária, que Spillers chama de “gramática americana”, tem forte peso na forma como os negros são pensados e escritos no presente. A “Família Negra”, do Relatório Moynihan: “empresta suas energias narrativas da rede de associações, das dobras semânticas e icônicas enterradas profundamente no passado coletivo, que vêm cercar e significar a pessoa cativa” (SPILLERS, 1987, p. 69). Essa violência contra a carne cativa define uma objetificação total, sem que isso desencadeie uma crise ética, haja vista que os corpos desses sujeitos e os territórios em que eles habitam geralmente “já significam violência” (FERREIRA da SILVA, 2014, p. 69). Ecoando o “mundo cindido em dois”, de Frantz Fanon, para Spillers, toda a comunidade cativa se torna um “laboratório vivo” (SPILLERS, 1987, p. 68).3 No sentido acadêmico, essa condição se dava na forma em que, para a historiografia tradicional contra o qual Spillers e outras escritas insubmissas da história se insurgiam, as experiências serviriam apenas como “matéria prima” (SPILLERS; HARTMAN; GRIFFIN et al., 2007, p. 300). 3 Cf. FANON, 1968, p. 29; SNORTON, 2017, p. 17-54. 492 Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 Allan Kardec Pereira Tal qual a epígrade de Édouard Glissant, anteriormente citada, Spillers percebeu que sob “os poderosos destroços da contagem detalhada” (SPILLERS, 1987, p. 69) característico da racionalidade econômica do navio negreiro, havia corpos que sofriam. Afinal, o que o arquivo dessa narrativa original permitia? O que restou revelava apenas a mesma matemática da morte negra que ainda dá corpo ao neoliberalismo e ao saber disciplinado atuais (MCKITTRICK, 2014). Os empreendedores europeus, gestores daquela tumba flutuante: não estavam curiosos sobre aquela “carga” que sangrava, embalada como tantas sardinhas vivas entre os objetos imóveis. Tal cegueira obscena inveterada pode ser negada, categoricamente, como uma possibilidade por quaisquer pessoas, exceto que sabemos que aconteceu. (...) Por tudo o que os “exploradores” pré-colombianos sabiam sobre as ciências da navegação e da geografia, surpreende-nos que mais partes deles não acabado por “descobrir” a Europa. Talvez, de certo ângulo, seja precisamente tudo o que encontraram - uma leitura alternativa do ego (SPILLERS, 1987, p. 70, grifo da autora). Na desumanização da Passagem do Meio, os verdadeiros cancelados estavam literalmente “suspensos” no oceano: no limbo que separava sua terra nativa das Américas, esses cativos perdiam o nome, o gênero, sendo transformados em pura estatística comercial. Nessa passagem repleta de ironia, Spillers expôe o quanto essa racionalidade mercantil do navio negreiro, tão objetiva e distanciada com relação à sua “carga”, era uma “cegueira obscena”, um tipo de disciplina cujo único idioma seria a objetificação total dos cativos. Mama’s Baby, Papa’s Maybe, porém, não é apenas um texto denunciativo. Na belíssima invertida operada por Spillers, devido a essas condições mesmas, o navio negreiro e sua “carga” também representariam “uma riqueza selvagem e não reinvindicada de possibilidades que não é interrompida, nem ‘contada’/‘contabilizada’” (SPILLERS, 1987, p. 72). Se o fato de ter nascido “na penumbra das culturas oficiais (...) da modernidade” concedia à cultura da diáspora negra uma “propriedade analítica” (SPILLERS, 2017, p. 87), era preciso que o silêncio do arquivo e seu detrimento no simples cálculo fossem imaginados como um convite à indisciplina historiográfica, como “uma porção das lacunas inquietantes que a investigação feminista procura preencher” (SPILLERS, 1987, p. 73). Essa conceitualização da carne, em Spillers, deve ser tomada pela historiografia em sua potencialidade indisciplinar, como algo que não se situa meramente no plano da 493 Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 Escritas insubmissas impossibilidade, da invisibilidade, do esquecimento e do inenarrável. O arquivo, mesmo em suas lacunas, é um convite à imaginação, à indisciplina, vista aqui como uma força geradora. Como demonstrou Alexander Weheliye, diretamente inspirado por Hortense Spillers, a sujeição política violenta ativa “um excedente carnal que simultaneamente sustenta e desfigura essa brutalidade”, ou seja, a sujeição inimaginável daqueles que vivem no rastro da escravidão nunca pode exterminar as possibilidades de fuga, os sonhos de abolição, as possibilidades de imaginar outros mundos. Isso não significa, ele continua, replicar a forma como vários discursos de direitos humanos têm endossado “feridas políticas” desde o Iluminismo, centralizando a questão do sofrimento como o elemento definidor daqueles sujeitos alijados da lei, da comunidade nacional, da definição do Humano etc. Esse potencial da carne colocaria em xeque os léxicos de resistência e agência, conceitos geralmente associados a recusas enfáticas, nas quais sujeitos completos e autoconscientes de seus atos atuam, seguindo projetos preestabelecidos (WEHELIYE, 2014, p. 2). Mama’s Baby, Papa’s Maybe tanto parece ser um desabafo pessoal de uma mulher negra acadêmica, quanto um manifesto àquela altura dos Black Studies nos Estados Unidos. Por isso, é um texto tão atual para se falar sobre indisciplina. À época, ele conseguiu reverberar em um conjunto massivo de interlocutoras, que compartilhavam de angústias semelhantes. A fabulação crítica como uma escrita insubmissa da história em Saidiya Hartman Grande parte do trabalho da opressão é sobre policiar a imaginação. Saidiya Hartman, Under the Blacklight (HARTMAN, 2020) Não à toa que, ao descrever a proximidade entre o seu trabalho e o de Hortense Spillers, a escritora norte-americana e professora da Universidade de Columbia, Saidiya Hartman, usa o termo “endividamento” (SPILLERS; HARTMAN; GRIFFIN et al., 2007, p. 300). Ter sido tocada pela carne, no sentido de ser engajada pelo pensamento de Spillers, iria inspirar de forma decisiva sua visão historiográfica em Scenes of Subjection (1997) e Lose Your Mother: A Journey Along the Atlantic Slave Route (2008). Tratava-se, cabe salientar, de contextos acadêmicos em que os debates raciais haviam atingido outro patamar, em que um conceito como interseccionalidade, cunhado por Kimberlé Crenshaw em 1989, havia se tornado a mercadoria feminista da moda, sendo celebrado por diversos setores acadêmicos. Como Hartman via aquele momento? 494 Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 Allan Kardec Pereira Vozes, como a da teórica literária feminista negra Ann duCille, já questionavam a ânsia acadêmica e disciplinar por “ter aquele ‘significante da diferença racial’ sem a diferença da negritude que importa” (duCILLE, 1994, p. 600), ou seja, mesmo em um cenário de maior aceitação institucional, as teóricas feministas negras estavam cientes de que a inclusão de seu conhecimento e de sua força de trabalho racializada poderiam ser apropriados pela branquitude acadêmica como prova de que o “problema racial” havia sido superado (BILGE, 2020, p. 3). Hartman escreveu Scenes of Subjection ciente daqueles riscos. Ela entendia muito bem sobre as armadilhas disciplinares de uma academia baseada em modelos de governança neoliberal. Seu próprio livro era uma resposta aquela sensação de que até mesmo o pensamento negro estava sucetível a se separar (consciente ou inconscientemente) “da força e do terror que as evidências trazem” (HARTMAN; WILDERSON, 2003, p. 183). Isso, costumeiramente, se dava com o objetivo de buscar alternativas coerentes e otimistas sobre a história das relações raciais nos Estados Unidos. Como ela posteriormente advertiu: E esse projeto é algo que considero obsceno: tentar transformar uma história de derrota em uma ocasião para comemorar, o desejo de observar os estragos e a brutalidade dos séculos anteriores, mas sempre encontrar uma maneira de se sentir bem consigo mesmo. Não é meu projeto, apesar de acreditar que, na verdade, é o projeto de um certo número de pessoas. Infelizmente, o tipo de revisionismo na história social realizado por muitos esquerdistas na década de 1970, que tentaram situar o poder de grupos dominados, resultou em histórias de celebração dos oprimidos (HARTMAN; WILDERSON, 2003, p. 185-186). Sua maior preocupação era desfazer certo otimismo tanto de caráter liberal, quanto da esquerda ligada à História Social, e ressaltar como a cidania no pós-abolição e a constituição desse ideal no presente são inevitavelmente integracionistas, mesmo quando juram estar propondo demandas radicais. Ela concluía: “o objeto metanarrativo sempre tende à integração no projeto nacional e, especialmente quando este projeto está em crise, os negros são chamados para reafirmá-lo” (HARTMAN; WILDERSON, 2003, p. 185). Esse projeto nacional esteve em crise/ameaçado no contexto da rebelião aberta do anti-imperialismo global e descolonização das tradições radicais negras nos anos 1960-70, e esse projeto estava em crise nos anos 1990 após as rebeliões de Los Angeles, em 1992. Scenes of Subjection, portanto, partia do interesse da autora em expor a dissimulação do projeto democrático de inclusão nos Estados Unidos, pois tal projeto, contando com apoios diretos (da Historiografia Liberal) ou indiretos (da 495 Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 Escritas insubmissas História Social), reforçava um discurso de superação e esquecimento sobre o passado escravocrata e sobre a própria condição dos negros no presente. Nesse sentido, um dos pontos centrais da crítica à história disciplinar em Scenes of Subjection é quando Hartman, tendo em mente o protótipo do progressista branco do século XX, analisa o discurso do abolicionista John Rankin. Escrevendo do Velho Sul, o açoite dos escravos só consegue fazer sentido para Rankin quando ele começa a imaginar que aquele corpo que sofre poderia ser o dele e de sua família. O corpo branco de seus familiares e o dele próprio termina por substituir imageticamente os corpos de negros escravizados reais, ou seja, o objeto real de identificação, o escravo, desaparecia. (HARTMAN, 1997, p. 19) Por meio dessa leitura à contrapelo de um texto escrito por um abolicionista branco em 1837, Hartman endereça uma crítica mordaz ao que julgava ser um tipo de revisionismo na História Social da escravidão dos anos 1970, como representado nos livros From Sundown to Sunup: The Making of the Slave Community (1972), de George Rawick e The Slave Community: Plantation Life in the Antebellum South (1972) de John Blassingame. À maneira do que Hortense Spillers falava sobre os “exploradores” pré-colombianos reencontrarem o próprio ego através de uma análise do Outro, Hartman questionava àquelas obras por uma espécie de “celebração dos oprimidos”. Como ela posteriormente complementou: Essa é a lógica dos discursos políticos e morais que vemos todos os dias – a necessidade de ver o inocente negro sendo perseguido por um estado racista, a fim de ver o racismo do estado racista. Você tem que ser exemplar em sua bondade (HARTMAN; WILDERSON, 2003, p. 189). A historiografia disciplinada, mesmo em sua versão de esquerda, selecionava sujeitos históricos específicos: marcados por uma autoconsciente resistência e um sentido de agência que mais parecia confirmar expectativas teóricas precondicionadas. Os negros do passado só “teriam voz”, só seriam “resgatados” e “úteis” ao saber disciplinado, se falassem uma gramática da revolta que fizesse coro aos anseios dos seus pesquisadores. O subalterno, nesse caso, só falava a linguagem de um mestre que não se via como tal. A escrita insubmissa da história desenvolvida em Scenes of Subjection opera, também, um rompimento com as divisões absolutas entre escravidão e liberdade. Hartman é bastante incisiva, ao demonstrar como todas as tentativas de integrar os antigos escravizados em uma narrativa de direitos liberais resultou em sua sujeição. O liberalismo pós-abolição discutido no livro tinha muito a cara do governo de Bill Clinton (1993-2001), o que, ela ressaltava, não significava “apagar as descontinuidades 496 Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 Allan Kardec Pereira e transformações inauguradas pela abolição da escravidão”, mas de problematizar os “emaranhados de escravidão e liberdade”, numa demonstração dos limites das “noções fáceis de progresso que se esforçam para erguer distinções absolutas” entre essas duas épocas (HARTMAN, 1997, p. 172). Portanto, endividada com a gramática desejada por Hortense Spillers, Hartman buscava em Scenes of Subjection um questionamento incisivo à temporalidade disciplinada, que, tão paranóica com anacronismo e distanciamento, insistia em negar qualquer possibilidade do entrelaçamento temporal entre nosso presente e aquele passado. Não por acaso, Scenes of Subjection também deve ser pensado na esteira dos questionamentos à disciplinaridade levantados pela teórica pós-colonial Gayatri Spivak e seu Pode o Subalterno Falar? (2014). Para Saidiya Hartman, não se tratava apenas de interrogar as narrativas dominantes, com sua notável contingência e partidarismo, escrever a história dos dominados demandava a “recuperação do material de arquivo para fins contrários”, afinal, não havia a possibilidade de a consciência subalterna estar fora das representações dominantes ou dos documentos da elite (HARTMAN, 1997, p. 10). Tomando por base Walter Benjamin, ela argumentava que foi preciso ler os arquivos (autobiografias de negros alfabetizados por brancos, revistas e documentos de plantations, relatos de jornais, folhetos missionários, escritas de viagens, etnografias amadoras, relatórios governamentais etc.) à contrapelo, sem deixar, contudo, de entender o risco de reforçar a autoridade daqueles documentos (HARTMAN, 1997, p. 10-11). Essa prática indisciplinada de escrever a história seria, como ela coloca: “uma luta dentro e contra as restrições e silêncios impostos pela natureza do arquivo - o sistema que governa a aparência de declarações e gera significado social” (HARTMAN, 1997, p. 11). Posteriormente, ela intitularia seu método como “fabulação crítica”, “história especulativa”, “narração estreita” e “poética documental” (HARTMAN, 2020), um tipo de escrita insubmissa da história, ciente da performance intervencionista do historiador e da impossibilidade de uma reconstrução do passado separada das “desfigurações das preocupações atuais” (HARTMAN, 1997). Em seu livro seguinte, Lose Your Mother: A Journey Along the Atlantic Slave Route (2007), Hartman continuaria sua frontal ruptura com a estrutura narrativa disciplinar da história. Tentando fazer emergir histórias sobre o comércio de escravos, ela viajou até Gana, na África, mas só conseguiu se deparar com a reticência dos ganenses em discutir a escravidão, cansados que estavam de ver mais uma pessoa dos Estados Unidos querendo saber de “suas origens”. Esse desejo autobiográfico dá conta da intenção do estudo de Hartman: indisciplinar a prática historiográfica convencional e refletir sobre as “pós-vidas da escravidão”. Há um trecho em que ela chega a colocar: 497 Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 Escritas insubmissas Na minha cidade, os homens negros têm uma vida útil vinte anos menor que os homens brancos, e a taxa de mortalidade infantil entre mulheres negras rivaliza com a de um país do terceiro mundo. Os negros têm cinco vezes mais chances de morrer de homicídios e dez vezes mais probabilidade de serem HIV positivos. Metade de todas as crianças negras crescem na pobreza e um terço de todos os afro-americanos vive na pobreza. Quase metade dos homens negros entre dezoito e vinte e cinco anos está na prisão, em liberdade condicional ou em liberdade supervisionada, e tem quatro vezes mais chances de serem sentenciados à morte do que brancos (HARTMAN, 2007, p. 129–30). É notável o caráter emocional de tais afirmações, o sentido de confronto que essa confissão assume. Mais do que isso, é interessante como tudo é exposto sem que seja necessário a verificação por estatísticas reais ou extensas notas de rodapé. Por qual motivo? Esse cálculo da morte negra é de conhecimento de todos, ao ponto de que sua replicação em dados, muitas vezes, apenas ratifica a desumanização daqueles sujeitos. Essa parece ser a estratégia indisciplinar em jogo. É menos uma questão de seguir métodos disciplinados e mais um posicionamento ético, que tenta expurgar a objetificação de seu objeto: há sempre vidas por trás dos números. Documentos mantidos por capitães de navios negreiros e companhias de seguros, utilizados como material de arquivo em Lose Your Mother, seriam o impulso para o debate proposto no artigo “Vênus em Dois Atos”, uma espécie de post scriptum do livro. Nele, Hartman acompanha a história de uma garota morta, que ela nomeia de “Vênus”, fichada em uma acusação judicial contra um capitão de navio negreiro julgado pelo assassinato de duas garotas negras. Como Hartman observou: Há centenas de milhares de outras garotas que compartilham as suas circunstâncias, e essas circunstâncias geraram poucas histórias [stories]. E as histórias [stories] que existem não são sobre elas, mas sobre a violência, o excesso, a falsidade e a razão que se apoderaram de suas vidas, transformaram-nas em mercadorias e cadáveres e identificaram-nas com nomes lançados como insultos e piadas grosseiras. O arquivo, nesse caso, é uma sentença de morte, um túmulo, uma exibição do corpo violado, um inventário de propriedade, um tratado médico sobre gonorreia, umas poucas linhas sobre a vida de uma prostituta, um asterisco na grande narrativa da história [history] (HARTMAN, 2008, p. 2). Se a história disciplinada tende a ser tão fascinada pelo arquivo transparente, que tudo comprove, pelo excesso mesmo dessas provas, o que fazer com um arquivo 498 Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 Allan Kardec Pereira onde o maior excesso seria, justamente, a violência constituinte da escravização? Essas pergunas interpelavam a escrita insubmissa da história de Hartman. O silêncio do arquivo sobre “Vênus” talvez gritasse algo, impondo uma aporia ao historiador no presente, algo que tinha a ver tanto com a dimensão do que mostrar, quanto sobre como mostrar: Como se reescreve a crônica de uma morte prevista e antecipada, como uma biografia coletiva de sujeitos mortos, como uma contra-História do humano, como prática da liberdade? (...) Quais são os tipos de histórias a serem contadas por e sobre aqueles que vivem em um relacionamento tão íntimo com a morte? Romances? Tragédias? Gritos que fazem seu caminho para a fala e a canção? Quais são os protocolos e limites que moldam as narrativas escritas como contra-História, uma aspiração que não é profilática contra os riscos impostos pela reiteração da fala violenta e pela gramática da violência? (…) As possibilidades superam os perigos de olhar (de novo)? (HARTMAN, 2008, p. 3-4). Como Hartman percebeu, os símbolos definidores da violência absoluta, o baracoon de escravos e o porão do navio negreiro, devem ser encarados não apenas como precursores das prisões Supermax, mas como símbolos da racionalização do Ocidente moderno, que detinham também o poder de controlar as práticas da história e a memória coletiva, estabelecendo uma “segunda ordem de violência” que transcendia temporalmente a abolição formal (HARTMAN, 2008, p. 5). Mesmo através do ímpeto indisciplinado de uma contra-História, havia sempre o perigo de se reproduzir, novamente, o “espetáculo do corpo negro em sofrimento” (ALEXANDER, 1994), de expor ao deleite disciplinar por arquivos abundantes aquilo que Hortense Spillers chamou de o caráter “pornotrópico” (SPILLERS, 1987, p. 67) da história dos escravizados. Partindo de uma postura autorreflexiva e indisciplinar, a fabulação crítica de Saidiya Hartman entendeu que, para “exceder ou negociar os limites constitutivos do arquivo”, foi necessário: propor uma série de argumentos especulativos e, ao explorar as capacidades do subjuntivo (um modo gramatical que expressa dúvidas, desejos e possibilidades), ao moldar uma narrativa que se baseia na pesquisa de arquivo, e, com isso, quero dizer uma leitura crítica do arquivo que mimetiza as dimensões figurativas da história [history], eu pretendia tanto contar uma história [story] impossível quanto amplificar a impossibilidade de que seja contada. A temporalidade condicional do “que poderia ter sido”, segundo Lisa Lowe, “simboliza adequadamente o espaço de um tipo diferente de pensamento, um espaço de atenção produtiva à cena da perda, um pensamento com atenção duplicada que procura abranger 499 Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 Escritas insubmissas simultaneamente os objetos e métodos positivos da história [history] e da ciência social e as questões ausentes, emaranhadas e indisponíveis pelos seus métodos” (HARTMAN, 2008, p. 11, grifo da autora). Aqui, a indisciplina não significa uma negação completa do saber historiográfico. Por isso ela fala em “atenção dupla”, uma maneira de lidar, de forma desnaturalizada, com os métodos dessa disciplina, através de um rearranjo da história, por meio da confrontação dos pontos de vista em questão. Se o arquivo que restou dos navios negreiros apenas reinscrevia uma violência contra corpos negros tornados anônimos, Hartman procura exercer a imaginação, pensar outras possibilidades do que “poderia ter acontecido ou poderia ter sido ou poderia ter sido feito” (HARTMAN, 2008, p. 11). A legibilidade disciplinar não consegue captar os sussurros do porão, da mesma forma que a justiça reparativa não capta o sofrimento daquela “carga”. Os gemidos da “mercadoria” não são ouvidos nos tradicionais arquivos históricos. Isso tudo, afinal, é da ordem do impensado para determinada historiografia disciplinada. Daí por que Hartman ressalta que não busca “dar voz” aos subalternos. Ela reconhece que, mesmo em sua insubmissão, a escrita que ela produzia era “incapaz de ultrapassar os limites do dizível ditados pelo arquivo” (HARTMAN, 2008, p. 12), ou seja, a “dívida impagável” da escravização (FERREIRA da SILVA, 2019) também se faz presente na impossibilidade de se conhecerem e se recuperarem histórias como aquelas, na incapacidade de cumprir requisitos básicos da “ilusão realista usual na escrita da História” (HARTMAN, 2008, p. 12). Esse jogo com as possibilidades e a imaginação remete a algo que parece cobrir todo o trabalho de Saidiya Hartman: o sentimento de incompletude da abolição. O que significa essa palavra no presente? Como a escrita da história relaciona-se com essa questão? Hartman anseiava que os pequenos atos de insurgência e contestação apresentados em Scenes of Subjection sugerisse “uma pequena medida de encorajamento e sirvam para nos lembrar que as falhas da Recontrução ainda nos assombram” (HARTMAN, 1997, p. 14). Esses atos contestatórios não seriam encontrados em atividades políticas tradicionais, como comícios abolicionistas, convenções negras, na luta sufragista ou mesmo em atividades eleitorais etc., mas sim nos interstícios de um arquivo marcado por violência antinegra. Sendo assim, a “fabulação crítica” de Hartman está interessada em tornar audível desejos de liberdade, incômodos e utópicos, que excedem os valores dos direitos civis e políticos ressaltados por parte da história disciplinada. Se aqueles atos “indóceis”, “exorbitantes” e “excessivos” (HARTMAN, 1997, p. 6-7) eram tidos como a-históricos ou irrelevantes, essa escrita 500 Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 Allan Kardec Pereira insubmissa da história buscava interpretá-los como uma poderosa reivindicação sobre nosso presente, como algo que exige a imaginação de um futuro no qual as pós-vidas da escravidão tenham sido abolidas. Partindo de uma posição de feminista negra, escrevendo em uma academia branca com suas tendências disciplinares, integracionistas e pacificadoras, Hartman procurou, como queria Spillers, outra gramática. Ela entendeu que, para “abandonar o catálogo absurdo da história oficial” (GLISSANT, 1992, p. 89), sua prática deveria ser indisciplinada, no nível da forma e em seu impulso retórico. Aqui não há o que Lewis Gordon chama de “o indicador mais evidente da declinação do pensamento” (GORDON, 2013, p. 19): a tendência a nunca parecer estar equivocado. A escrita insubmissa da história de Hartman convida o leitor a contruir o texto em conjunto. Nos termos de Toni Morrison: “a narrativa é radical, cria-nos a nós próprios no momento exato em que está a ser criada” (MORRISON, 1993). Fins indisciplinados para a história Nos últimos anos, em paralelo à difusão global da agenda descolonizadora do Black Lives Matter, o Brasil vê uma explosão de dossiês, traduções, eventos acadêmicos etc. sobre a questão racial. Em um cenário que também é marcado por ataques, em sua maioria, apressados e/ou ressentidos, contra “identitários” em sua “cultura do cancelamento”, é notável o quanto um combate ao racismo antinegro assume um lugar significativo no discurso público, tornando-se, sobretudo, um produto rentável. Numa situação contemporânea em que as práticas coercitivas foram atualizadas e que passamos de um sistema de captividade absoluta para um de “captividade fractal”, no qual a violência se dá de outras maneiras, tornando possível, “a concomitância de nossa morte e de nosso sucesso”, Jota Mombaça estabelece uma meditação sobre como as representações artísticas e pensamento negros e anticoloniais, sob o ponto de vista de algumas instituições, vêm conquistando uma tendência de mercado e sendo vistas como uma “moda”. De que maneira essa commodityficação está amparada diretamente em uma imbricação entre as representações anticoloniais e a posição sócio-histórica dos negros? O fato de que o “debate antirracista” tenha se tornado uma tendência editorial/uma moda, reatualiza, como é algo corrente historicamente, os regimes de captura dos corpos negros que estão na origem do sistema capitalista ocidental? (MOMBAÇA, 2020). Retornamos aqui a questão central deste texto e adicionamos outras perguntas: em uma realidade social no qual, como diria Audre Lorde, “nunca fomos feitos para 501 Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 Escritas insubmissas sobreviver” (LORDE, 2000, p. 255), como lidar com os ditames disciplinares da história? Se é possível perceber uma abertura de espaços editoriais e acadêmicos a produções sobre raça e racismo, como não imaginar que essa sirva para reinscrever um saber histórico disciplinado sobre os estudos negros? Não chega a ser curioso o quanto uma das principais reclamações sobre pesquisadores negros recaia, justamente, em sua falta de vigor teórico/disciplinar? O que deve pautar os estudos negros no campo da história? Reconhecimento? Reparação? Se a história é uma disciplina filha do colonialismo, se seu estabelecimento acadêmico se deu, em parte, através da forma em que ela trabalhava no projeto colonial, do que ela nos serve, se, afinal, “o ‘fim’ é a única coisa razoável que se pode fazer desse mundo capitalista racial”? (FERREIRA da SILVA; LEEB, STAKEMEIER, 2020). Dar outros sentidos e redefinir a própria prática da disciplina, ou seja, fazer com que a história não seja unicamente um patrulhamento de fronteiras disciplinares é um bom caminho, mas que, por si só, não basta. Não se trata, é preciso deixar claro, de uma atualização neoliberal na qual o “letramento racial” do historiador seria importante para seu know-how. Para historiadores negros, escrever em uma disciplina que sempre nos convidou a “sair um pouco da sala de jantar e deixar a história começar outra vez” (SCHWARCZ, 2020), nos fez perceber que a indisciplina histórica e a imaginação radical são intensidades políticas poderosas. Indisciplinar a história não significa meramente “incluir diversidade” ou “trazer cor” à universidade-empresa, muito menos tomar culturas de passado não ocidentais como se elas fossem um mero antídoto que purificasse a historiografia dominante de sua histórica disciplinaridade antinegra. Essas escritas insubmissas da história não aceitam o trabalho de servir (como se domésticas submissas o fossem) à historiografia ocidental e ao neoliberalismo academicista, que buscam extrair dali experiências que contribuam para sua autodescoberta e engrandecimento pessoal. O que fazer, então? Quando pensamos a história daqueles que vivem as “pósvidas da escravidão” (HARTMAN, 2007, p. 6), esses projetos devem assumir uma dimensão ainda mais radical: a história indisciplinada deve atuar em conjunto com sonhos por abolição, desejos pelos quais tantos ainda se sacrificam nas ruas. A história indisciplinada, ainda, deve ter em mente, como demonstram as escritas insubmissas de Hortense Spillers e Saidiya Hartman, o quanto os protocolos disciplinares da história e a violência da razão são ferramentas do senhor as quais não estão dispostas a derrubar a casa-grande (LORDE, 2019, p. 137). Da mesma maneira que Denise Ferreira da Silva está interessada em como a poética (entendida em termos gerais) pode mudar os termos do discurso e da prática intelectual (FERREIRA da SILVA, 2019, p. 86), a fabulação crítica e a rebeldia da carne dessas escritas insubmissas oferecem, como 502 Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 Allan Kardec Pereira vimos, novas modalidades de escrever a história e de pensar o nosso mundo. Durante esse processo, certamente, outro tipo de historiador e de disciplina não será apenas possível, como também necessário. 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É membro do GT de Teoria e História da Historiografia da UFRGS. Pesquisa temas relacionados ao racismo antinegritude, Afro-Pessimismo e o Black Lives Matter. ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA Rua Baraúnas, n. 351, Campina Grande, PB, CEP 58429-500, Brasil. FINANCIAMENTO Essa pesquisa contou com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). AGRADECIMENTO Sou grato a colegas que leram versões iniciais desse artigo e ofereceram sugestões críticas/ incentivos, em especial Gabriel Gonzaga (Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP), Pedro Telles da Silveira (Universidade de Campinas - UNICAMP), Marcello Felisberto (UFRGS), Marcelo Ribeiro (Universidade Federal da Bahia - UFBA), Fernanda Sousa (Universidade de São Paulo USP), Renan Porto (University of Westminster), Kênia Freitas (Universidade Católica de Brasília - UCB) e Arthur Lima de Ávila (UFRGS). 507 Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719 Escritas insubmissas CONFLITO DE INTERESSE Nenhum conflito de interesse declarado. APROVAÇÃO EM COMITÊ DE ÉTICA Não se aplica. MODALIDADE DE AVALIAÇÃO Duplo-cega por pares. EDITORES RESPONSÁVEIS Alexandre Avelar – Editor convidado Flávia Varella – Editora chefe Lidiane Soares Rodrigues – Editora convidada María Inés Mudrovcic – Editora convidada DIREITOS AUTORAIS Copyright (c) 2021 Allan K. Pereira. LICENÇA Este é um artigo distribuído em Acesso Aberto sob os termos da Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional. HISTÓRICO DE AVALIAÇÃO Recebido em: 31 de agosto de 2020. Alterado em: 10 de junho de 2021. Alterado em: 30 de junho de 2021. Aprovado em: 8 de julho de 2021. 508 Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 14, n. 36, p. 481-508, maio-ago. 2021 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v14i36.1719