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Isto não é um telefone

Este artigo consiste numa revisão teórica sobre algumas implicações sociais da incorporação do telefone celular à nossa cultura material, principalmente entre os adolescentes. Ainda que o senso comum defina o celular como uma versão portátil do telefone fixo, esse dispositivo desempenha uma série de outros papéis sociais para seus quase 740 milhões de usuários em todo o mundo (ITU, 2005), participando ativamente da expressão de imagens socialmente desejáveis – moda, status, pertencimento a grupos etc – e contribuindo para a constituição de identidades sócias cada vez mais fluidas, condizentes com o contexto social contemporâneo.

Isto não é um telefone – Hugo Cristo (2006) – www.hugocristo.com.br Isto não é um Telefone This is not a telephone Hugo Cristo Sant’Anna [email protected] Resumo Este artigo consiste numa revisão teórica sobre algumas implicações sociais da incorporação do telefone celular à nossa cultura material, principalmente entre os adolescentes. Ainda que o senso comum defina o celular como uma versão portátil do telefone fixo, esse dispositivo desempenha uma série de outros papéis sociais para seus quase 740 milhões de usuários em todo o mundo (ITU, 2005), participando ativamente da expressão de imagens socialmente desejáveis – moda, status, pertencimento a grupos etc – e contribuindo para a constituição de identidades sócias cada vez mais fluidas, condizentes com o contexto social contemporâneo. Palavras Chave: telefonia celular, moda, tecnologia Abstract This paper consists of a theorical review about some social implications of incorporing the mobile phone to our material culture, mainly between teenagers. Even though common sense defines the mobile phone as a portable version of the fixed telephone, this device performs a series of other social holes for its almost 740 milion users around the world (ITU, 2005), participating actively on the expression of socially desired images – fashion, status, group-belonging relations etc – contributing to the constitution of even more fluid social identities in accordance to the contemporary social context. Keywords: mobile telephony, fashion, technology Isto não é um telefone – Hugo Cristo (2006) – www.hugocristo.com.br Ligação para Foucault A inquietação do filósofo francês Michel Foucault frente à contradição do célebre desenho de René Magritte, em Isto não é um cachimbo (Foucault, 2002), nos parece apropriada para demonstrar nossa própria inquietação no que diz respeito à introdução da telefonia celular na no cotidiano das pessoas. Para Foucault, o paradoxo de Magritte se desenvolvia através da articulação do enunciado e do desenho, que juntos definiam uma multiplicidade de leituras possíveis para o conjunto. O enunciado, formado pelo encadeamento das palavras (“isto não é um cachimbo”) que davam margem às interpretações ambíguas do desenho (que era realmente o desenho de um cachimbo, mas não um cachimbo), foi cuidadosamente desmontado e re-significado pelo filósofo, que buscou pacientemente, em diversas direções, compreender o que Magritte pretendia. Numa perspectiva semelhante, o motivador deste artigo também é uma enunciação, no sentido deleuziano1 do termo: a que transformações incorpóreas estaríamos submetendo o celular no momento em que o enunciamos como um telefone? Nosso objetivo é, através de uma revisão crítica de vários estudos sobre o artefato, demonstrar que o celular nunca foi, não é e nunca será um telefone, e que essa enunciação que parece fazer sentido teve como único objetivo preparar as pessoas para uma tecnologia de comunicação até então presente apenas no repertório da ficção científica. A era da comunicação celular A incorporação da telefonia celular ao dia a dia da grande maioria das pessoas nas mais diversas partes do planeta já é uma realidade. Embora os mais de 738 milhões de assinantes2 em todo o mundo tenham em suas mãos um dispositivo de comunicação que é vulgarmente entendido como a versão portátil do telefone fixo, o celular é sem dúvidas muito mais do que isso. Extremamente poderoso e dotado de recursos muito superiores àqueles encontrados em computadores que usávamos há pouco mais de 10 anos, o celular tornou-se um dos principais símbolos da tecnologia da sociedade pós-moderna. O ritmo intenso característico da vida nos grandes centros urbanos somado à alta velocidade de circulação de informações parece configurar o campo ideal o desenvolvimento da telefonia celular. Em um único dispositivo de propósitos múltiplos (Hulme e Peters, 2001) e de dimensões cada vez mais reduzidas encontram-se disponíveis um número cada vez maior de facilidades: relógio com alarme, agenda pessoal, secretária eletrônica, jogos, câmera fotográfica digital, serviços de envio de mensagens de texto (SMS)3 e imagem (MMS)4, global 1 Um agenciamento coletivo de enunciação é a ação dos enunciados sobre os corpos, provocando transformações incorpóreas instantâneas (Deleuze, 1995). 2 Censu ITU 2005 – International Telecommunications Union – www.itu.int 3 Short Messaging System – Sistema de Mensagens Curtas 4 Multimedia Messaging System – Sistema de Mensagens Multimídia Isto não é um telefone – Hugo Cristo (2006) – www.hugocristo.com.br positioning system (GPS)5, Internet sem fio entre outros. Se lembrarmos que fundamentalmente o telefone celular é um aparelho que possibilita a realização de chamadas de voz para telefones fixos ou para outros celulares em qualquer lugar e a qualquer hora, poderemos concluir que a função primária dessa tecnologia já não é o único atrativo para seus milhões usuários. Breve histórico da telefonia móvel O telefone, cuja invenção é tradicionalmente atribuída a Graham Bell, na verdade é a conseqüência natural de uma série de inventos anteriores relacionados à investigação da condução de sons e eletricidade através de meios sólidos iniciada no séc XVII pelo físico inglês Robert Hooke (1635-1703), inventor do telefone de cordel. Segundo Siqueira (1998), a palavra telefone foi provavelmente utilizada pela primeira vez na França em 1682, quanto um monge chamado dom Gauthley propôs à academia de Ciências de Paris a instalação de um sistema de propagação da voz por tubos metálicos acústicos. Alguns outros cientistas que merecem destaque nesse processo são: Michael Faraday (1771-1867), que demonstrou em 1831 que as vibrações numa peça de ferro podem ser convertidas em impulsos elétricos; Charles Wheatstone (1802-1875) mostrou a possibilidade de transmitir sons musicais por meio de hastes metálicas; Samuel Morse (1791-1872) inventa o telégrafo em 1844; o professor alemão Johann Philipp Reis (1834-1874) projeta por volta de 1861 diversos aparelhos destinados à transmissão do som, especialmente sons musicais. No entanto, mesmo entre tantas iniciativas no séc XIX, o telefone propriamente dito só teve sua patente registrada em 14 de fevereiro de 1876. Dois inventos praticamente idênticos foram registrados com duas horas de diferença: o primeiro, pelo escocês residente nos EUA Alexander Graham Bell (1847-1922) consistia no “método e o aparelho para transmitir a voz e outros sons telegraficamente [...] pelas variações da corrente elétrica, similares na forma às variações do ar, que acompanham cada palavra pronunciada ou outros sons” (Siqueira, 1998, p.28); o segundo projeto, de autoria do prof. Elisha Gray (18351901), era denominado telephonio e compunha-se de três partes, conforme noticiou o jornal A Província de São Paulo de 20 de fevereiro de 1976 (Ibid, p.28): 1) o instrumento que transmites os sons; 2) os fios condutores que vão a uma distância determinada; 3) o aparelho que recebe os sons transmitidos. A relação do Brasil com o invento de Graham Bell vai além da mera informação dos jornais. Dom Pedro II era amigo pessoal do inventor, de maneira que o primeiro telefone chega ao país como presente ao Imperador em 1877, colocando o Rio de Janeiro na frente de várias cidades do mundo. Inicialmente as ligações entre aparelhos telefônicos eram completadas manualmente por uma telefonista, situada numa central 5 Sistema via satélite desenvolvido pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos que permite determinar a localização precisa de alguém em qualquer lugar da Terra ou da órbita terrestre. Isto não é um telefone – Hugo Cristo (2006) – www.hugocristo.com.br telefônica, até que em 1892 o americano Almon Brown Strowger cria o que seria o embrião das centrais telefônicas automáticas. A automatização efetiva só se acentua no início do séc XX, acompanhando o crescimento acentuado da utilização do serviço em cidades como Nova York e Paris (500 mil e 93 mil telefones manuais em 1913, respectivamente). A conexão entre as centrais telefônicas e os aparelhos, automáticos ou manuais, era feita normalmente por fios metálicos, de maneira que as ligações interurbanas só eram possíveis entre cidades ligadas pelo cabeamento telefônico. A primeira tentativa de transmissão telefônica sem fios de sinais e sons musicais foi realizada pelo padre brasileiro Landell de Moura em 1893, entre a avenida Paulista e o alto de Santana, numa distância de 8km. A tecnologia que permitiu as transmissões telefônicas sem fios foi desenvolvida ao longo do séc XX permitindo avanços nas transmissões de rádio, televisão, áudio de alta fidelidade, comunicações em ondas curtas e microondas, além de interligar centrais telefônicas distantes dispensando o uso de fios. A telefonia móvel propriamente dita começou a ser desenvolvida nos laboratórios da Bell no final da década de 1940 nos EUA. No Brasil, em 1970, foi instalada a primeira central com tecnologia anterior à telefonia celular contando com 150 terminais. No início dos anos 80 vários países começam a utilizar efetivamente a tecnologia celular: Japão e Suécia desenvolvem tecnologias próprias; a AT&T nos EUA implanta em Chicago pela primeira vez uma tecnologia específica para comunicação celular. O Brasil adota em 1984 o modelo americano AMPS de telefonia celular analógica e o serviço torna-se disponível no Rio de Janeiro e Brasília (1990), Rio Grande do Sul (1992), Bahia e São Paulo (1993). O número de usuários brasileiros salta de 667 em 1990 para 65.605.577 em 2004, atingindo uma proporção de 36,36 celulares para cada 100 habitantes6. O que é o telefone celular Considerando a função primária dos telefones celulares, podemos dizer que este é um dispositivo (hardware) que somado a programas de computador (software), estrutura física de transmissão e recepção de dados e serviços de atendimento e gestão, compõe a chamada telefonia celular móvel. O celular, como é conhecido no Brasil, corresponde ao aparelho transmissor que efetua e recebe chamadas. Plant (2001) aponta algumas denominações sociais interessantes: na França o aparelho é chamado de le portable ou le G em alusão à tecnologia GSM7 utilizada no país; na Finlândia é chamado de kanny que significaria extensão da mão; Alemães chamam-no de handy (útil); Espanhóis de le movil; Americanos de cell phone; Árabes às vezes chamam-no de telephone sayaar ou makhmul, ambos significando “portáteis”, ou ainda telephone 6 Dados obtidos através da Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL (18/03/2005) 7 Global System for Mobile Communications, padrão de comunicação celular digital de segunda geração (2G) utilizado em mais de 200 países por mais de um bilhão de usuários. Isto não é um telefone – Hugo Cristo (2006) – www.hugocristo.com.br gowal, “telefone pelo ar”; Tailandeses o denominam moto; Japoneses keitai denwa, “telefone de carregar”, ou simplesmente keitai e ke-tai; Na China o celular é conhecido como sho ji, que significa “máquina de mão”, mas anteriormente o dispositivo era curiosamente apelidado de dageda, que significa literalmente big brother (grande irmão), em decorrência das proporções desajeitadas dos primeiros exemplares que chegaram ao mercado. No final dos anos 70 e ao longo da década de 80 era muito comum nas séries de TV e no cinema observarmos dispositivos de comunicação muito semelhantes ao que reconhecemos atualmente como os celulares, especialmente dentro de carros de luxo ou como equipamento de uso militar, fato que certamente contribuiu para a difusão social da tecnologia antes mesmo de estar disponível. Em outras palavras, quando o celular começou a ser vendido, os consumidores já o esperavam e sabiam exatamente como usá-lo, em parte pela informação transmitida pelos meios de comunicação de massa, em parte pela similaridade operacional do novo dispositivo com seu antecessor direto, o telefone fixo. O celular no meio social A revisão bibliográfica dos trabalhos acerca da absorção social da telefonia celular indica a existência de diversos papéis sociais para o dispositivo que vão além da mera comunicação móvel entre os indivíduos, antecipada pela ficção cinematográfica. Uma primeira observação diz respeito à necessidade de uma compreensão mais ampla do potencial da comunicação móvel, uma vez que essa tecnologia permite o rompimento tanto das barreiras geográficas associadas ao telefone fixo, sempre situado em um lugares definidos e necessariamente conhecidos; quanto da noção de uso coletivo dos dispositivos de comunicação, uma vez que o celular é um aparelho na maioria das vezes de uso pessoal. Srivastava (2004) citando Wellman (2001) argumenta que os telefones celulares permitem aos usuários estarem “em casa” o tempo todo, independentemente de onde se encontram no espaço físico. Segundo o autor, na telefonia fixa uma ligação toca em um lugar definido, não importando quem esteja sendo chamado, enquanto na telefonia celular uma única pessoa seria chamada não importando o lugar. Nesse sentido, o celular passaria a ser associado à identidade do indivíduo, enquanto no caso telefone fixo a localização geográfica desempenharia esse papel. Questões semelhantes sobre a relação entre identidade, papéis sociais e espaço físico são colocadas por Hulme e Truch (2004), ao abordarem a mudança nos paradigmas a partir da substituição da telefonia fixa pela celular na organização das atividades do dia-a-dia. Segundo os autores, a comunicação entre indivíduos e sua rede social, assim como o conseqüente desempenho de determinados papéis sociais era originalmente definida pela desconexão física, ou seja, pelas pausas, ou sensações de presença e ausência do indivíduo dentro de sua rede de relacionamentos. Nesse contexto, o indivíduo permaneceria identificado com um determinado papel até que o próximo papel fosse assumido, Isto não é um telefone – Hugo Cristo (2006) – www.hugocristo.com.br fazendo com que fosse reconhecido e categorizado nos espaços públicos através desse comportamento visivelmente identificável: ao estar no trabalho uma mulher seria a funcionária; em casa seria a mãe; a caminho do jogo de futebol seria uma torcedora e assim sucessivamente. A partir da introdução da comunicação celular, os autores argumentam que haveria uma quebra da linearidade da sucessão de papéis e a conseqüente dominância da simultaneidade de papéis e abstração das limitações do espaço físico: a mãe poderia se transformar em funcionária mesmo estando no supermercado ao receber uma ligação do trabalho, ou poderia ser a torcedora no ambiente de trabalho ao se comunicar com alguém de fora daquele lugar que traz informações sobre o seu time. O pensamento de Hulme e Truch de que os sistemas sociais seriam cada vez menos baseados em locais e cada vez mais baseados em pessoas (p. 7) é reforçado por Srivastava (2004, p.125), que sugere que a telefonia celular tende a enfraquecer laços mantidos com comunidades ou grupos pré-determinados e mais estáticos, e a fortalecer redes descentralizadas e em desenvolvimento constante organizadas pelos próprios indivíduos. No que diz respeito aos espaços público e privado, pode-se dizer que a distinção entre as duas esferas é cada vez menos evidente. Plant (2001) defende a idéia de que os celulares criaram uma simultaneidade de espaços que consistiria num espaço físico e num espaço virtual de interações conversacionais, ou ainda que o espaço físico foi estendido através da criação e justaposição de um espaço social celular. Srivastava (2004, p.122) fala em uma intimidade tecnológica, referindo-se ao fato de que o indivíduo leva o celular consigo para todos os lugares, em diversas situações sociais ou profissionais, indo ao encontro de resultados de pesquisas que já apontam o celular como uma extensão do corpo humano e conseqüentemente do self (Hulme e Peters, 2001, p. 3; Lemish e Cohen, 2005, p.517; Davide et al, 2004, p.2; entre outros). Uma outra questão que precisa ser abordada diz respeito às formas de comunicação que são empregadas no celular ou através dele. Essa distinção precisa ser feita uma vez que alguns autores argumentam que o celular enquanto objeto é utilizado para evidenciar relações de pertencimento a determinados grupos sociais ou mesmo para comunicar traços da identidade do seu proprietário. Ao mesmo tempo, a conversação no aparelho não está restrita à voz, podendo ser realizada de diversas formas. Considerando este nível mais elementar de comunicação, a conversação efetiva entre dois indivíduos, é nas mensagens de texto que podemos observar o desenvolvimento de uma forma particular de interação extremamente curiosa. Os usuários digitam mensagens de até 160 caracteres utilizando o próprio teclado alfanumérico do celular e enviam para outro aparelho, com diversas finalidades: no Japão, por exemplo, é comum enviar uma mensagem de texto antes de efetuar uma chamada de voz, visando confirmar que o a pessoa estará em condições de atender a ligação (BBC News 2003); entre os jovens, é comum o envio de mensagens de texto durante as aulas, no caminho da escola para casa, ou mesmo em casa enquanto realizam atividades diárias – banho, refeições etc – o importante é manter-se disponível para seu circuito de amizades (Ling, 2002). Isto não é um telefone – Hugo Cristo (2006) – www.hugocristo.com.br Pensando o celular como objeto, podemos dizer que as pessoas tenderiam a exibirem seus celulares em lugares públicos como parte da imagem que pretendem projetar de suas identidades, fazendo com que as escolhas dos elementos externos – cor, forma, tamanho, modelo, acessórios, adesivos – e internos – toques (ringtones), papéis de parede (wallpapers), jogos, número de mensagens e ligações recebidas dos amigos etc – que compõem a percepção geral do dispositivo pelos demais indivíduos não sejam feitas ao acaso (Srivastava, 2004, p. 115). Homens e mulheres tendem a demonstrar comportamentos diferenciados ao exibirem celulares, assim como pares ou grupos compostos por homens e mulheres, apenas mulheres ou apenas homens, conforme observou Plant (2001, p. 40-43): Uma mulher sozinha em um bar deixaria seu celular à mostra sobre a mesa com o objetivo de dizer aos demais que não está sozinha ou que espera o contato de alguém; no casal, o homem exibiria o celular e a mulher não como uma forma de demonstrar que a centralização dos contatos com o “mundo exterior” estaria concentrada nele; em um par de amigos, um exibiria o celular e o outro não como uma forma de definir o indivíduo dominante na relação, entre outros exemplos. No mesmo estudo, o autor cita um exemplo crítico do celular enquanto objeto capaz de construir de imagens sociais de status através do stagephoning ou “atuação com telefone”, que seria uma cena comum de ser observada em lugares públicos, principalmente meios de transporte coletivo, onde as pessoas fingiriam falarem ao telefone com o objetivo de comunicarem para a audiência que possuem uma vida própria. A telefonia celular como mediadora da comunicação No momento do advento do telefone por Graham Bell, era comum encontrar questionamentos sobre a real finalidade da invenção. Siqueira (1997, p. 29) cita que diversos jornais da época ridicularizavam a utilidade prática de um aparelho que possibilitava a transmissão da voz humana à distância. Talvez os jornalistas da época, profissionais de comunicação, não tiveram sensibilidade suficiente para compreender que a voz humana não é um conjunto desconexo de sons sem sentido, mas o veículo fundamental da expressão oral e conseqüentemente da comunicação entre os indivíduos. Mas será que poderíamos resumir a telefonia celular ao papel de cenário (meio) das interações na comunicação contemporânea? Autores como Ling (2003) apontam para a emergência de interações observadas exclusivamente nos processos comunicativos mediados pelos celulares – microcoordenação, a coordenação física das atividades ao longo do dia com os pares; e hipercoordenação, coordenação da expressão individual e pertencimento a grupos, constituição de identidade social etc – sugerindo que esse dispositivo está proporcionando o surgimento de novas formas de interação social. Isto não é um telefone – Hugo Cristo (2006) – www.hugocristo.com.br A idéia do celular como mediador da comunicação não apenas resgata o sentido original do adjetivo8 como também o extrapola. Jay Bolter (2000) citando Paul Levenson (1999) sugere o termo remediação, para explicar como os novos meios de comunicação não só absorvem e superam como também modificam os meios que os antecederam. Partindo dessa abordagem, o telefone celular não apenas sucede o fixo, mas também transforma a existência dele no meio social. Guattari e Rolnik (2005, p.41) apresentam argumentos similares, ao sugerirem que as novas tecnologias não se limitam a melhorar ou otimizar as formas de comunicação, mas estabelecem novas relações comunicativas, produzem novas subjetividades, agenciam os indivíduos na estrutura social. Podese concluir que o mundo da comunicação mediada pela telefonia celular apresentaria interações distintas daquelas existentes em outros contextos, não apenas quando o dispositivo se faz presente, mas nas interações como um todo. O enunciado Considerando todas as informações apresentadas sobre a utilização do celular no contexto social contemporâneo, retomamos a questão motivadora do presente artigo: a que transformações incorpóreas estaríamos submetendo esse dispositivo no momento em que o enunciamos como um telefone? Ainda que o elo funcional elementar se mantenha – tratam-se de dispositivos que permitem a comunicação da voz à distância, “tele fonia” – parecem evidentes diferenças existentes entre o ato de usar um telefone fixo e um aparelho celular. No momento quando os celulares chegaram ao mercado a partir dos anos 80, a idéia de um “telefone” portátil remetia não apenas ao propósito do artefato, mas também à sua forma e modo de operação. Estruturalmente, os primeiros celulares eram similares aos telefones fixos (Dynatac da Motorola, 1983 – Fig. 01), especialmente quando comparados aos modelos sem fio: mesmo corpo alongado, antena na parte superior, teclado numérico, ausência de display. Com o desenvolvimento da tecnologia e o aumento da demanda por aparelhos mais leves e mais fáceis de carregar, deu-se início a um processo de distanciamento formal entre o celular e os terminais de telefone fixo. O Microtac da Motorola, (1989 – Fig. 02), possuía proporções reduzidas, bateria com maior autonomia, teclado alfanumérico para permitir a entrada de nomes na agenda eletrônica, além de um modo de operação que remetia à idéia de uma comunicação realizada em qualquer lugar: a abertura do flip inicia e encerra o atendimento das chamadas, dispensando o pressionamento de qualquer botão (Ulrich e Eppinger, 1995). De lá para cá, os celulares distanciaram-se cada vez mais dos telefones fixo não apenas nos modos de operação, mas também na forma, de maneira que quanto mais o aparelho acumula funções além da comunicação da voz, mais distante ele se coloca formalmente do telefone fixo (ver Figs. 03 e 04). 8 adj. sm. que(m) intervém ou concilia. Mini Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Ed. Objetiva (2001) Isto não é um telefone – Hugo Cristo (2006) – www.hugocristo.com.br Fig. 01 – Dynatac (1983) Fig. 02 – Microtac (1989) Fig. 03 – Treo Smartphone (Palm, 2005) Fig. 04 – Nokia 9300 (2005) Observando os exemplos dos últimos lançamentos da Nokia e Palm, pode-se questionar se a conexão semântica entre o telefone fixo e o celular ainda será possível daqui a cinco ou dez anos. Por outro lado, o mesmo raciocínio pode sugerir que o celular consiste em um artefato completamente diferente daquele inventado por Graham Bell, e que poderia ter recebido, desde o primeiro momento, uma forma distinta, que refletisse o diferencial de suas funcionalidades. Parafraseando Foucault, poderíamos sugerir que o celular não é um telefone, nem o desenho de um telefone. O enunciado que ainda conecta esses dois dispositivos está condenado a tornar-se obsoleto, ou no mínimo inapropriado para as futuras gerações. Referências BBC News (2003) Young ‘prefer texting to calls’ (http://news.bbc.co.uk/go/pr/fr/-/2/hi/business/2985072.stm) BOLTER, Jay e GRUSIN, Richard. Remediation: Understanding New Media. Massachussets: The MIT Press, 2000 Isto não é um telefone – Hugo Cristo (2006) – www.hugocristo.com.br DAVIDE, A. et al. Fashion Victims: an unconventional research approach in the field of mobile communication. ISMID '04, Istanbul (Turkey), January 2004. 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