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Isto não é um diário

| www.zahar.com.br As citações da obra O caderno, de José Saramago (São Paulo: Companhia das Letras, 2009), foram aqui reproduzidas com a autorização da editora. Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98) Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Zygmunt Bauman ISTO NÃO É UM DIÁRIO Tradução: Carlos Alberto Medeiros Obras de Zygmunt Bauman: ▪ 44 cartas do mundo líquido moderno ▪ Amor líquido ▪ Aprendendo a pensar com a sociologia ▪ A arte da vida ▪ Bauman sobre Bauman ▪ Capitalismo parasitário ▪ Comunidade ▪ Confiança e medo na cidade ▪ Em busca da política ▪ Ensaios sobre o conceito de cultura ▪ A ética é possível num mundo de consumidores? ▪ Europa ▪ Globalização: As consequências humanas ▪ Identidade ▪ Isto não é um diário ▪ Legisladores e intérpretes ▪ O mal-estar da pós-modernidade ▪ Medo líquido ▪ Modernidade e ambivalência ▪ Modernidade e Holocausto ▪ Modernidade líquida ▪ A sociedade individualizada ▪ Tempos líquidos ▪ Vida a crédito ▪ Vida em fragmentos ▪ Vida líquida ▪ Vida para consumo ▪ Vidas desperdiçadas • Sumário • Setembro de 2010 Sobre o sentido e a falta de sentido de se fazer um diário, • Sobre a utilidade de lutar contra moinhos de vento, • Sobre a eternidade virtual, • Sobre cultivar palavras, • Sobre a superpotência superquebrada, • Sobre médias, • Sobre multitarefas, • Sobre cegos guiando impotentes, • Sobre ciganos e a democracia, • Sobre a erosão da confiança e o florescimento da arrogância, • Sobre o direito de ter raiva Outubro de 2010 Sobre o direito de ficar mais rico, • Sobre muitas culturas e um disfarce, • Sobre “Não digam que não foram avisados”, • Sobre os dilemas de se acreditar, • Sobre Cervantes, pai das ciências humanas, • Sobre mais uma guerra de atrito, 2010 EC? Novembro de 2010 Sobre por que os americanos não enxergam a luz no fim do túnel Dezembro de 2010 Sobre a guerra que poria fim a todas as guerras, • Sobre ferir moscas e matar pessoas, • Sobre Jerusalém versus Atenas revisitada, • Sobre por que os estudantes se agitam de novo, • Sobre respeito e desdém, • Sobre algumas de minhas idiossincrasias (não todas!), • Sobre a nova aparência da desigualdade, • Sobre a ressocialização do social, • Sobre os amigos que você tem e os que pensa ter, • Sobre a manchete dos jornais e outras páginas, • Sobre (alguns) dilemas, • Sobre se “democracia” ainda significa alguma coisa – e, se significa, o que é? Janeiro de 2011 Sobre o Anjo da História, reencarnado…, • Sobre encontrar consolo em lugares inesperados, • Sobre crescimento: precisamos dele?, • Sobre sustentabilidade: desta vez, da social-democracia…, • Sobre o consumo cada vez mais rico e o planeta cada vez mais pobre, • Sobre a justiça e como saber se ela funciona, • Sobre internet, anonimato e irresponsabilidade, • Sobre as baixas e os danos colaterais provocados pelos cortes, • Sobre uma das muitas páginas extraídas da história da cruzada democrática, • Sobre machados imorais e carrascos morais, • Sobre Berlusconi e a Itália, • Sobre mantê-lo do lado de dentro, e no entanto do lado de fora, • Sobre as pessoas nas ruas Fevereiro de 2011 Sobre a maturidade da glocalização, • Sobre o que fazer com os jovens, • Sobre as virtudes que não são para todos, • Sobre as bênçãos e maldições de não tomar partido, • Sobre um tsunami humano – e depois, • Sobre o piso por baixo do piso, • Sobre estar fora dentro, e dentro, mas fora, • Sobre acontecimentos milagrosos e nem tanto, • Sobre Facebook, intimidade e extimidade, • Sobre construir fortalezas sob estado de sítio, • Sobre o sonho americano: é hora de obituários? Março de 2011 Sobre o último sonho e o testamento de H.G. Wells, e os meus também Notas • Setembro de 2010 • 3 DE SETEMBRO DE 2010 Sobre o sentido e a falta de sentido de se fazer um diário Confesso: ao começar a escrever (são 5h), não tenho a menor ideia do que está por vir, se é que virá alguma coisa, quanto vai durar e por quanto tempo vou precisar dela, sentir o impulso de realizá-la e desejar mantê-la em andamento. E a intenção ainda não está clara, que dirá o propósito. A questão do “para quê” é difícil de responder. No momento em que me sentei à mesa do computador, não havia um novo assunto candente à espera para ser mastigado e digerido, nenhum livro novo a ser escrito, nenhum material antigo a ser revisado, reciclado ou atualizado, nada de novo para saciar a curiosidade do entrevistador, nenhuma palestra a ser esboçada por escrito antes de ser proferida – nenhuma solicitação, incumbência ou prazo final… Em suma, não havia nem uma estrutura montada, à espera de ser preenchida, nem um prato cheio de material bruto à espera de molde e de fôrma. Creio que a questão “por quê” é mais adequada nesse caso que a pergunta “para quê”. Os motivos para escrever são abundantes, uma multidão de voluntários alinhados até serem notados, destacados e escolhidos. A decisão de escrever é, por assim dizer, “sobredeterminada”. Para começar, não consegui aprender outra forma de ganhar a vida a não ser escrevendo. Um dia sem escrita parece um dia perdido ou criminosamente abortado, um dever omitido, uma vocação traída. Prosseguindo, o jogo das palavras é para mim o mais celestial dos prazeres. Gosto muito desse jogo – e o prazer atinge os píncaros quando, reembaralhadas as cartas, meu jogo parece fraco e preciso forçar o cérebro e lutar muito para preencher as lacunas e superar as armadilhas. Esqueça o destino: estar em movimento, e pular sobre os obstáculos ou afastá-los com um chute, é isso que dá sabor à vida. Outro motivo: sinto-me incapaz de pensar sem escrever. Imagino que eu seja primeiro um leitor e depois um escritor – pedaços, retalhos, fatias e frações de pensamentos em luta para nascer, suas aparições fantasmagóricas/espectrais rodopiam, comprimindo-se, condensando-se e novamente se dissipando; devem ser captados primeiro pelos olhos, antes que se possa detê-los, colocá-los no lugar e lhes dar contorno. Primeiro precisam ser escritos em série para que um pensamento razoavelmente bem-acabado possa nascer; ou, se isso falhar, ser abortado ou enterrado como natimorto. Além do mais, embora eu adore o isolamento, tenho horror à solidão. Depois que Janina se foi, cheguei ao fundo mais sombrio da solidão (se é que a solidão tem um fundo), ali onde se juntam seus sedimentos mais amargos e pungentes, seus miasmas mais tóxicos. Como o rosto de Janina é a primeira imagem que vejo ao abrir meu desktop, o que se segue depois que conecto o Microsoft Word nada mais é que um diálogo. E o diálogo faz da solidão uma impossibilidade. Por fim, embora não menos importante, suspeito que eu seja um grafômano, por natureza ou criação… Um viciado que precisa de mais uma de suas doses diárias ou que se arrisca até as agonias da abstinência. Ich kann nicht Anders (Não posso fazer diferente). Esse provavelmente é o motivo profundo, aquele que torna a busca por motivos tão desesperada e inconclusiva quanto inescapável. Quanto às outras causas e motivos, realmente não é possível contá-los, e, pelo que sei, seu número continuará a crescer a cada dia. Entre os que mais se destacam no momento está o sentimento progressivo de que estou abusando da hospitalidade, de que já fiz imoderadamente o que minhas capacidades moderadas me permitiam ou me obrigavam, e que portanto chegou a hora de aplicar a mim mesmo a recomendação de Wittgenstein, de manter silêncio sobre as coisas que não devo falar ou comentar (coisas, acrescentaria eu, que não devo mencionar ou debater com responsabilidade, ou seja, com a convicção legítima de ter algo de útil a oferecer). E as coisas de que não devo falar são, cada vez mais, aquelas que vale a pena comentar hoje. Minha curiosidade se recusa a aposentar-se, contudo, minha capacidade de satisfazê-la ou pelo menos de aplacá-la e aliviá-la não pode ser levada ou persuadida a prosseguir. As coisas fluem rápido demais para dar lugar à esperança de captá-las em pleno voo. É por isso que a análise de um novo tema, um novo assunto para estudo prolongado, à espera de que se faça justiça a seu objeto, já não está entre minhas cartas. Não porque falte conhecimento disponível para consumo – mas em razão de seu excesso, que desafia todas as tentativas de absorvê-lo e digeri-lo. Talvez essa inviabilidade da absorção seja resultado do envelhecimento e da perda de vigor – uma questão total ou principalmente física e biológica, cujas raízes podem ser encontradas, em última instância, na mutabilidade de meu próprio corpo e de minha mente (uma conjectura plausível, tornada ainda mais digna de crédito pela impressão de que os recursos necessários para obter e processar novas informações, fornecidos em minha juventude sob a forma de um número limitado de cédulas monetárias de grande valor, são agora oferecidos em enormes pilhas de moedas de cobre, grandes em volume e peso, mas abominavelmente reduzidas em matéria de poder de compra – o que as torna, tomando de empréstimo uma expressão de Günther Anders, “supraliminares” para um corpo envelhecido e uma mente que se cansa com facilidade). Nossa época esmera-se em pulverizar tudo, mas nada de modo tão profundo quanto a imagem do mundo: essa imagem se tornou tão pontilhista quanto a do tempo que preside sua fragilização e fragmentação. Concluo que, finalmente, o mundo fragmentado se emparelhou com os pintores de sua aparência. Uma antiga fábula indiana me vem à cabeça; meia dúzia de pessoas, topando com um elefante no caminho, tenta avaliar a natureza do estranho objeto que encontraram. Cinco delas são cegas, nenhuma é alta o suficiente para tocar e sentir o elefante como um todo, de modo a juntar as impressões fracionadas formando uma visão da totalidade; a única que tem olhos para ver, no entanto, é muda… Ou me lembro da advertência de Einstein, de que, embora, em princípio, uma teoria possa ser provada por experimentos, não há um caminho que leve dos experimentos ao nascimento de uma teoria. Einstein devia saber muito sobre o assunto. O que ele não imaginava nem podia imaginar era o advento de um mundo, e de uma forma de viver nele, composto apenas de experimentos, sem teoria para planejá-los nem instruções confiáveis sobre como iniciá-los, dar-lhes sequência e avaliar seus resultados. Qual é, afinal, a diferença entre viver e contar a vida? Não faria mal aproveitar uma dica de José Saramago, fonte de inspiração que descobri há pouco tempo. Em seu próprio quase-diário, reflete ele: “Creio que todas as palavras que vamos pronunciando, todos os movimentos e gestos, concluídos ou somente esboçados, que vamos fazendo, cada um deles e todos juntos, podem ser entendidos como peças soltas de uma autobiografia não intencional que, embora involuntária, ou por isso mesmo, não seria menos sincera e veraz que o mais minucioso dos relatos de uma vida passada à escrita e ao papel.”a Exatamente. 4 DE SETEMBRO DE 2010 Sobre a utilidade de lutar contra moinhos de vento No limiar do terceiro milênio, a França, tal como a maior parte do planeta, sofria as agonias da incerteza. O ingresso na nova era foi adequadamente precedido pelo que talvez tenha sido (nunca temos certeza) um dos embustes mais bem-sucedidos na história: o “bug do milênio”, que colocou milhares de empresas e agências governamentais sérias, realistas, assim como milhões de súditos e clientes seus, em estado de alerta provocado pela visão apavorante, quase apocalíptica, das rotinas da Terra interrompidas de vez, da suspensão da vida no planeta, no exato encontro entre a noite de Réveillon e o dia de Ano-novo. Não tendo acontecido esse fim do mundo, as empresas de informática contabilizaram suas bênçãos e somaram os lucros; e o desastre que jamais ocorreu logo foi esquecido, afastado da atenção do público, estimulada e cronicamente agitada por desastres que realmente ocorreram ou eram iminentes; enquanto isso, a desagregação da confiança e a condensação das incertezas públicas – o tipo de problema que a história do “bug do milênio” simbolizava – mantiveram-se firmes e se recusaram a sair do lugar, quanto mais a dizer adeus. Talvez o fim da civilização computadorizada “tal como a conhecíamos” não estivesse, afinal, tão próximo quanto se proclamou no fim do milênio anterior; mas o término dos anos de despreocupação que esse anúncio pressagiava talvez estivesse. Um a um, os alicerces habituais em que se assentava a segurança tremeram, racharam e tombaram; as perspectivas de emprego e de rendas estáveis encolheram; laços e parcerias antes sólidos debilitaram-se e fragilizaram-se; muitos faróis de credibilidade supostamente inatacáveis ruíram ou estremeceram sob o peso da corrupção, ou implodiram com aquela confiança de marinheiros iludidos e sem rumo. Quanto aos governos, dos quais se esperava que tornassem novamente seguros os inseguros e impusessem ordem à desordem, estes responderam com um curto e grosso “Não há alternativa” às queixas e aos protestos de seus súditos cada vez mais confusos e assustados, quando se dignaram a responder; em geral devolveram os pedidos de “Ajude-me” e “Faça alguma coisa” com carimbos de “Endereço errado” ou “Destinatário desconhecido”. Contra o panorama de todos os ruídos e silêncios, as palavras (e os programas de televisão que logo se seguiram) de Nicolas Sarkozy, então recém-nomeado ministro do Interior (em 2002), pareciam uma mensagem que transbordava justamente do significado correto – a primeira mensagem desse tipo em anos. Sua nomeação, feita logo depois do início do que para muitos parecia um milênio ou pelo menos um século de incerteza, parecia abrir a porta para um novo papel e uma nova estratégia governamentais; apresentava uma outra época, a do “governo ouvinte”, um governo que seguiria o exemplo estabelecido pelos bancos, que atraíam seus clientes potenciais assegurando-lhes que “adoravam dizer sim”. A nomeação de Sarkozy prometia o advento de um período que tornaria de novo confiáveis os poderes constituídos, e seus súditos confiantes uma vez mais de que não se veriam abandonados a seus próprios recursos, terrivelmente escassos, na luta desesperada para encontrar um terreno firme sob os pés. Sarkozy passava uma tripla mensagem. Primeiro, a estufa da insegurança conhecida por atormentar pessoas comuns como você e eu, esse antro de vício e fonte efusiva de horrores e pesadelos diurnos, foi encontrada, identificada e localizada: estava nos banlieues, nome genérico francês para bairros violentos e ruas perigosas, habitados por pessoas de aparência e modos estranhos (leia-se: diferentes dos nossos), e, portanto, provavelmente de hábitos e intenções igualmente estranhos (leia-se: suspeitos). Segundo, depois que se mapearam as raízes profundas das adversidades e iniquidades da sorte dos franceses, nós, as pessoas no poder, os caras poderosos, podemos e conseguiremos enfim atacar o mal “pela raiz” – o que de fato já começamos a fazer (como se viu na TV). Terceiro, o que você acabou de ver na TV (as forças da lei e da ordem flexionando os músculos e atacando as fortalezas do crime em sua própria origem, a fim de cercar e prender criminosos passados, presentes e em potencial, esses culpados elementares de nossos dias de aflição e de nossas noites sem dormir) é apenas um exemplo, embora vívido, do governo em ação, determinado desde o início a ser vitorioso. (Para que esse otimismo não confunda os leitores de hoje, permitam-me lembrar que em 2002 a ocasião era propícia para o autor da mensagem, porque dois ou três anos depois ele poderia ter acrescentado, para sua vergonha posterior ainda maior, que as ações do governo estavam “destinadas a terminar em triunfo como as guerras no Afeganistão e no Iraque”.) Em suma, o que é dito pelo governo é feito pelo governo… ou pelo menos já começa a ser feito. Agora estamos em 2010. No decorrer dos últimos anos, aquele ministro do Interior apostou no bilhete da “morte à insegurança” e foi eleito presidente da França (em 2007), mudando-se de uma propriedade mais humilde na Place Beauvau para o esplendor estonteante do Palais de l’Elisée. E agora, oito anos depois da mensagem convocando franceses e francesas a ouvir e tomar nota, uma tripla mensagem idêntica é transmitida de novo, com endosso e bênção apaixonados do presidente, por Brice Hortefeux, seu sucessor na Place Beauvau. Segundo Denis Muzet, que escreve no Le Monde, o substituto e herdeiro de Sarkozy seguiu ponto a ponto a façanha realizada em 2002 por seu chefe e mentor, aumentando sua jornada de trabalho para 20 horas e usando seu tempo impressionantemente ampliado para se mostrar e ser visto “no local da ação”. Ele supervisionou ao vivo a demolição dos acampamentos do povo roma,b reunindo os expulsos e mandando-os de volta para o “lugar de onde vieram” (ou seja, à miséria anterior), convocando prefeitos para emitir relatórios e instruções, ou apanhando-os de surpresa “no campo de batalha” para admoestá-los e instigá-los a agir: em mais uma tentativa, mais um esforço, mais uma nova ofensiva de verão (outono, inverno, o que seja) contra os responsáveis e culpados pelo infortúnio de pessoas decentes conhecido pelo nome de “insegurança”; mais um impulso final para acabar com outra guerra em tese destinada a ser a última. Ele está assombrado por monstros? Vamos começar nos livrando dos moinhos de vento. Isso não faz sentido? Talvez, mas pelo menos você sabe que não estamos perdendo tempo. Estamos fazendo alguma coisa – não estamos? Como se viu na TV! Os guerreiros franceses na luta contra a “insegurança por procuração” não estão sozinhos quando prometem queimar a falta de segurança sob a forma de efígies dos povos roma e sinti. Seu aliado mais próximo é Il Cavaliere – O Cavalheiro –, que governa a vizinha Itália. Tanto assim que hoje há uma reportagem no New York Times escrita por Elisabetta Povoledo, italiana, na qual o governo de Silvio Berlusconi, de olho nos roma, aprovou um decreto em 2007 permitindo expulsar cidadãos da União Europeia após três meses de permanência no país, caso se possa demonstrar que eles não têm meios para se sustentar; seguiu-se outro decreto, em 2008, conferindo às autoridades do Estado novos poderes para expulsar cidadãos da União Europeia por motivos de segurança pública – se você representar uma ameaça, pode, deve ser, será apanhado e escoltado para o aeroporto mais próximo. Para lucrar com as novíssimas e maravilhosas armas da guerra declarada à insegurança, é preciso primeiro garantir que os odiados ciganos se tornem, e acima de tudo sejam vistos como, uma ameaça suprema à segurança pública, só para garantir que o verbo dos poderes constituídos de fato se torne carne, e que as forças da lei e da ordem não flexionem os músculos em vão. Ou, de modo ainda mais direto, para transformar uma previsão em profecia autorrealizada: tendo vaticinado no Bom Dia TV um incêndio na floresta, prosseguir imediatamente aspergindo petróleo sobre as árvores e acendendo fósforos, de modo a que, no fim do dia, sua credibilidade e confiabilidade possam ser documentadas no Jornal da Noite. “Quando se constroem acampamentos autorizados pela Prefeitura”, relata Povoledo, com frequência isso se dá na periferia das cidades, segregados do resto da população, com condições de vida bem abaixo do padrão. Isso permite aos governos “ignorar a questão da integração, processo que incluiria dar aos roma residências permanentes e acesso às escolas”. Os governos estimulam as suspeitas em relação aos roma com base em suas tendências nômades. Então, esses mesmos governos os forçam a permanecer nômades a despeito de seu desejo de se estabelecer; fazem o possível para forçar os que já o fizeram, de boa vontade e há um bom tempo, a voltar à vida de nômades – de modo que a rejeição original a todo o grupo étnico rotulado de “viajantes” possa afinal ser corroborada de maneira convincente pelas estatísticas, essas “realidades” pouco sujeitas a debate. Os roma provocam rancor por ser mendigos impertinentes? Certo, vamos garantir que não tenham a chance de ganhar a vida “de modo decente”. E quanto à nossa alegoria da floresta em chamas, os acampamentos temporários são um perigo. Semana passada, em Roma, um garoto cigano de três anos morreu queimado quando o fogo irrompeu na cabana em que morava com a família, num acampamento ilegal perto do aeroporto de Fiumicino. Depois disso, o prefeito da cidade, Gianni Alemanno [outro político eleito com o tíquete da “guerra à insegurança”], disse que este mês a cidade começaria a desmontar duzentos acampamentos ilegais. Num lampejo de previsão, pouco depois de ser coroada, a rainha Vitória, jovem, sincera e franca, observou em seu diário, em 28 de dezembro de 1836: “Sempre que ciganos pobres acampam em algum lugar, e crimes, roubos etc. ocorrem, isso é invariavelmente atribuído a eles, o que é chocante: e se eles sempre são vistos como vagabundos, como podem se tornar boas pessoas?” Marx disse que a história tende a se repetir: da primeira vez, ela é drama, da segunda, farsa. Essa regra prevaleceu de novo no caso das duas guerras sucessivas contra a insegurança declaradas por Sarkozy no curso de uma década. Sobre a segunda, Alain Touraine observou com ironia que, de forma muito distinta das multidões que aplaudiram a declaração da primeira guerra do presidente, “ninguém acredita que os roma ou os ciganos sejam responsáveis por nossos infortúnios”. De fato, poucos creem, embora alguns ainda engulam a isca e demorem a cuspi-la. Mas não foi para debater as causas do mal ou para fazer a nação acreditar na versão oficial que se lançou essa campanha do medo. Touraine põe o dedo na ferida ao observar que todas as manchetes de primeira página, todo o tumulto e toda a empolgação do público acontecem “num ambiente distante das grandes catástrofes que temos vivenciado”. Os efeitos da política ao estilo Sarkozy não devem ser avaliados pelo número de pessoas convertidas a culpar os roma, ou que continuam aderindo a esse comportamento, mas pelo número de olhares desviados (ainda que por pouco tempo) do que é relevante para suas vidas e expectativas – assim como da avaliação de quanto o governo do país está se eximindo das tarefas que, como proclama, legitimam suas prerrogativas, suas pretensões e sua própria presença. Se avaliada à sua – própria – maneira, a política ao estilo Sarkozy não pode ser facilmente descartada como um fracasso total. Nem se pode considerá-la falida – do que é vívido testemunho o número crescente de governos que correm a produzir imitações locais e a colocá-las em operação. É improvável, você poderia comentar, que se possam afastar para sempre os olhares da nação. Assim, o adiamento ganho pelos governantes não teria curta duração? Mas, desculpem-me a pergunta, o que tem longa duração hoje? E quantos otários ainda creem em soluções finais ou de longo prazo? Seria suficiente, obrigado, que o adiamento durasse o bastante para permitir aos governantes encontrar outra atração também capaz de focalizar em si os olhares antes que estes tenham a oportunidade de se voltar para o que de fato importa, para as coisas sobre as quais os governantes não podem nem querem fazer nada de importante. Há também outra baixa colateral do estilo Sarkozy de governo. Surpreendentemente, embora nem tanto, ela é o mesmíssimo valor que esse estilo prometia, e continua a promover e a servir: os sentimentos de proteção e segurança, de estar protegido e seguro em relação a um destino adverso. Os franceses podem ser agora mais céticos ou mesmo cínicos sobre a efetividade das promessas do governo – assim como sobre o valor das realizações governamentais gravadas e televisionadas – do que eram no começo da primeira guerra de Sarkozy; mas é óbvio que estão hoje mais apavorados que nunca. Perderam muito da antiga fé na possibilidade de melhorar um pouco sua situação. Começam a acreditar que a insegurança chegou para ficar e possivelmente vai se tornar a condição normal dos seres humanos; e, com toda certeza, que os governos dos Estados não são o tipo de instrumento a ser usado para tentar remendar esse veredicto particular da natureza, da história ou do destino humano. Seja por ação ou por omissão, as ações bélicas de Sarkozy araram e fertilizaram o solo para viçosas colheitas tribais e fundamentalistas… O terreno assim preparado é uma tentação para conquistadores aventureiros, e poucos aspirantes à carreira política acharão fácil resistir a ele. Esse tipo de governo também precisa de vítimas nomeadas. Nos eventos relatados por Denis Muzet e Elisabetta Povoledo, essas vítimas são, evidentemente, os povos roma e sinti. Mas, no tipo de política cada vez mais à la mode, as vítimas, sejam elas nomeadas ou “colaterais”, não são apenas peões nos jogos de outros povos; nos jogos agora encenados, são também extras anônimos e descartáveis, fáceis de substituir – extranumerários cuja morte ou afastamento nenhum jogador e apenas um ou outro espectador tenderiam a observar e a lembrar, que dirá lamentar e deplorar. 5 DE SETEMBRO DE 2010 Sobre a eternidade virtual Um ônibus chegado de Tóquio despejou o grande grupo de jovens numa praia em Atami, pequeno resort costeiro e um dos points de fim de semana favoritos dos moradores da capital em busca de aventuras eróticas – é o que se sabe pela edição de hoje do Yahoo! News. Se os ônibus chegam de Tóquio várias vezes por dia, como só um ganhou espaço nesse boletim on-line amplamente lido? É que esse ônibus levava a Atami o primeiro grupo de novos jogadores do Nintendo Love+; o ônibus era uma isca anunciando uma longa e lucrativa primavera para os donos de restaurantes e hotéis do lugar. O grupo mais jovem que desceu do ônibus, ao contrário dos habituais passageiros, não deu atenção às “moças que se divertiam na areia”, minimamente vestidas. Agarrados às câmeras de seus smartphones, armados com o software AR (augmented reality, ou “realidade ampliada”), eles correram direto para os verdadeiros objetos de seu desejo, a coisa autêntica: as namoradas virtuais, encantadas num minúsculo código de barras colado à base de uma escultura representando um par amoroso. O software embutido nos smartphones dos rapazes permitia-lhes “desencantar” do código de barras a única e absoluta garota de seus sonhos virtuais, levá-la a passear, distraí-la, insinuar-se e ganhar seus favores simplesmente seguindo as regras claras e sem ambiguidades apresentadas nas instruções interativas exibidas na tela – resultado garantido ou seu dinheiro de volta. Eles podem até passar uma noite juntos no hotel: beijar é permitido e estimulado, embora o sexo, infelizmente, ainda seja proibido; há limites que mesmo a tecnologia de ponta é incapaz de ultrapassar. Mas pode-se apostar que os tecnobruxos irão romper essa fronteira, como já ocorreu com tantas outras no passado, na época em que for lançado o Love++ ou o Love2. O dbtechno.com, site tecnológico sério, convencido de que a tecnologia existe para satisfazer necessidades e desejos humanos, mostrou-se impressionado: “Love+ é um novo game dedicado ao homem que não consegue ter uma mulher real, e no Japão ele ganhou imensa popularidade.” Quanto aos serviços prestados, o site é otimista: “Para os homens por aí que não desejam ter de lidar com uma mulher, a namorada virtual pode ser a saída.” Outro “nicho de serviços” que almeja ser preenchido foi identificado pelo cream-global.com: “Uma geração que cresceu com o Tamagotchi” (infelizmente fora de moda, e portanto fora do mercado) desenvolveu o “hábito de cuidar”, na verdade, uma espécie de vício em cuidar (virtualmente) de pessoas (virtuais) que estão (virtualmente) vivas – hábito que eles já não podem satisfazer por não possuírem as tecnobugigangas adequadas para exercê-lo. Precisam de uma nova engenhoca para praticar o hábito adquirido, e possivelmente de uma forma ainda mais empolgante e prazerosa (por algum tempo). Graças ao Love+, contudo, a preocupação acabou: “Para manter a namorada, o jogador deve pressionar uma caneta no touch-screen do DS, onde então os dois podem caminhar de mãos dadas para a escola, trocar olhares, mensagens de texto e até se encontrar no pátio da escola para o beijinho da tarde. Pelo microfone embutido, o jogador até tem uma conversa doce, embora trivial.” Observe: inserir “embora” não significa necessariamente demonstrar arrependimento; lembre-se de que o Tamagochi não conseguiu transformar a conversa, muito menos a conversa não trivial, em hábito. No site ChicagoNow.com, Jenina Nunez quer saber: “Na era do namoro e da realidade virtual, será que ficamos tão solitários (e desistimos do amor verdadeiro, humano) que nos dispomos a cortejar a imagem de uma companhia perfeita?” E elabora uma hipótese em resposta a essa pergunta: “Começo a achar que o Love+, que parece eliminar totalmente a companhia humana dessa equação, é o exemplo claro do ponto a que podem chegar as pessoas para não se sentir sozinhas.” A suposição que sustenta essa resposta – uma ideia que Jenina Nunez infelizmente não quis explicitar e deixou de desenvolver – vai no caminho certo. Sim, a revolução representada pelo novo game da Nintendo – e o segredo de seu sucesso de marketing instantâneo – é a eliminação total de uma companhia de carne e osso no jogo das relações humanas. Embora apresentado sob a forma de bebida não alcoólica, manteiga sem gordura ou alimento sem calorias, isso é algo feito de forma maldosa, sub-reptícia, no estilo e maneira inadequados, primitivos, artesanais, em sua aplicação àquilo que, para os tecnossábios e tecnocomerciantes, é o supremo desafio e o equivalente mais próximo de uma lata de vermes ou do covil de um leão: a esfera das parcerias, dos laços, da amizade, do amor entre os seres humanos. Esse Love+ é um jogo novo e ambicioso. Ao fornecer substitutos virtuais (leia-se: desinfetados, livres de “amarras”, de efeitos colaterais, de “consequências imprevistas” e do medo de entravar a liberdade futura), ele mira no topo: no próprio futuro. Oferece a eternidade para consumo instantâneo, imediato. Concede uma forma de manter a eternidade a uma distância segura, sob controle, e a capacidade de interrompê-la no momento em que ela deixar de ser agradável e desejada. Oferece “amor eterno” a ser ingerido e degustado plenamente numa curta viagem de ônibus a Atami – sem necessidade de trazê-lo de volta. Como diz Naoyuki Sakazaki, homem na faixa dos quarenta: “O Love+ é divertido porque a relação continua para sempre” (grifo nosso). Ele devia saber: a campanha do Love+ em Atami começou em 10 de julho e no final de agosto já havia terminado. Para esse tipo de realização, que eu saiba, houve apenas um precedente, ainda que apócrifo e impossível de provar. Shah Jahan, imperador Mogul, estava tão apaixonado pela terceira esposa, Mumtaz Mahal, que quando esta morreu reuniu, contratou e pagou os maiores arquitetos da época, e passou 21 anos supervisionando a construção de um monumento que fizesse jus ao charme e à beleza dela: o Taj (“coroa de edifícios”) de Mahal. Quando o último friso foi gravado e o último ornamento polido, diz-se que Shah Jahan inspecionou a obra-prima e teve seus anelos amorosos finalmente satisfeitos, e a nostalgia pelo amor perdido afinal saciada. O que estragava seu deleite, contudo, distorcendo obviamente a harmonia e a elegância da composição suprema, era uma estranha caixa, parecida com um caixão, colocada bem no centro. A retirada daquela caixa deve ser vista como o toque final pleno a coroar o amor de Jahan e Mumtaz. 11 DE SETEMBRO DE 2010 Sobre cultivar palavras Sobre dar entrevistas, assim como outros costumes impostos de nossa época, José Saramago tinha suas dúvidas. Em 16 de novembro de 2008, ao completar 86 anos, um ano a mais do que eu tenho agora, Saramago observou: “Dizem-me que as entrevistas valeram a pena. Eu, como de costume, duvido, talvez porque já esteja cansado de me ouvir.” Também eu… Mais de uma vez, pressionado por entrevistadores a revelar o que eles pensavam que não sabiam, mas seus leitores estavam ávidos por aprender, sentime humilhado por ser forçado a repetir o que “tornou-se para mim, com o decorrer do tempo, em caldo requentado”: descobertas antes empolgantes e impacientes no desejo de se compartilhar agora pareciam soporíferas em sua banalidade. “Ou pior”, como Saramago se apressou em acrescentar, “amarga-me a boca a certeza de que umas quantas coisas sensatas que tenha dito durante a vida não terão, no fim de contas, nenhuma importância. E por que haveriam de tê-la?” Uma vez mais, estou familiarizado com essa dor: quando pressionado por entrevistadores e recitando meu próprio punhado – incomparavelmente menos denso – de pensamentos iconoclásticos, com muita frequência só pude ver e pensar sobre ícones que deveriam – e deles se esperava isso – se fragmentar de vergonha e remorso atrasado, mas que em vez disso ficam me atingindo, ainda mais disformes que em minha lembrança deles; e tão autoconfiantes como o eram em seus anos de juventude, se é que não mais – agora me encarando com arrogância, zombando, ridicularizando, escarnecendo. “Falamos pela mesma razão que transpiramos? Apenas porque sim?”, pergunta Saramago. O suor, como sabemos, logo se evapora ou é lavado com diligência, e, “mais tarde ou mais cedo chegará às nuvens”. Talvez este seja, à sua própria maneira, o destino das palavras. E então Saramago relembra seu avô Jerônimo, que, “nas suas últimas horas, se foi despedir das árvores que havia plantado, abraçando-as e chorando porque sabia que não voltaria a vê-las. A lição é boa. Abraço-me pois às palavras que escrevi, desejo-lhes longa vida e recomeço a escrita no ponto em que tinha parado.” Acrescenta ele: “Não há outra resposta.” Assim seja. 12 DE SETEMBRO DE 2010 Sobre a superpotência superquebrada Ontem, os Estados Unidos celebraram / prantearam / regurgitaram outro aniversário do 11 de Setembro. “Os pacifistas americanos não precisam mais se preocupar com ‘as guerras por opção’”, insinuou Thomas L. Friedman alguns dias antes. “Não estamos mais fazendo esse tipo de coisa. Hoje não poderíamos nos dar ao luxo de invadir Granada.” A superpotência agora está superquebrada, opina ele, e tende a se tornar – ainda por muitos anos – superfrugal. “Os Estados Unidos estão aprendendo uma lição muito dura: a curto prazo, você pode tomar emprestados os recursos para a prosperidade, mas não para manter o poder geopolítico a longo prazo.” Isso não quer dizer que a opinião de Friedman seja universalmente aceita. Hillary Clinton, por exemplo, foi flagrada, apenas quatro dias atrás, tentando convencer os membros do Conselho de Relações Exteriores que os “Estados Unidos podem e devem ser os líderes, e de fato o são”, do mundo neste início de século. Ora, que mais poderia ter dito a chefe da diplomacia? Outro funcionário do governo federal, Robert Gates, encarregado da área militar, toca um acorde diferente. Recomenda que se insira boa dose de realismo e modéstia nas iniciativas internacionais americanas. Ele não elabora essa ideia, contando com os leitores de Foreign Affairs para decifrar seu significado sem pressa nem atropelo. As nações relutam em aprender; e, quando o fazem, é sobretudo a partir de seus erros e equívocos passados, do funeral de suas antigas fantasias. “Enquanto o Pentágono rebatiza a Operação Liberdade no Iraque de Operação Nova Aurora”, diz Frank Rich, citando o professor Andrew Bacevich, de Boston, “nome que sugere creme para a pele ou detergente líquido”, 60% dos americanos creem – agora – que a Guerra do Iraque foi um engano, mais 10% a condenam como algo que não vale a vida de americanos, e apenas um em cada quatro acredita que essa guerra o tenha tornado mais seguro em relação ao terrorismo. O custo oficial da guerra para os americanos é hoje (no momento em que o presidente Obama pede aos americanos que “virem a página sobre o Iraque”) estimado em US$ 750 bilhões. Por esse dinheiro, cerca de 4.500 americanos e mais de 100 mil iraquianos foram mortos, e pelo menos 2 milhões de iraquianos foram forçados a se exilar, enquanto o Irã acelerou seu programa nuclear, e “Osama bin Laden e seus fanáticos” foram liberados “para se reagrupar no Afeganistão e no Paquistão”. Um erro provoca outro. “A maior herança da Guerra do Iraque em termos domésticos”, observa Rich, “foi codificar a ilusão de que os americanos podem tudo a custo zero.” Ora, o que os americanos aprendem agora, ainda com relutância, é que mesmo coisas repulsivas e detestáveis pelas quais nem sequer barganhavam só podem ser adquiridas por um preço elevado; e um dos aspectos mais repulsivos dessas coisas repulsivas é não ter dinheiro suficiente para comprar outra coisa – boa ou ruim, desejada ou temida, deliciosa ou abjeta. “A sinergia cultural entre a descuidada irresponsabilidade que praticamos no Iraque e nosso colapso econômico no plano doméstico não poderia ficar mais exposta”, conclui Rick. A guerra do “lute agora e pague depois”, assim como a cegueira quase universal diante de seus custos humanos, foi amparada e incitada por um desprezo à realidade semelhante à crise das hipotecas subprime, à bolha imobiliária e a outros jogos de azar praticados por Wall Street. O cômputo real de todos esses anos de imprevidência só está começando, mas os juros a pagar sobre o débito federal irão atingir, pelo que se espera, US$ 516 milhões em 2014, o que supera o orçamento doméstico americano – e metade deve ser paga a investidores estrangeiros. Ouve-se, de tempos em tempos, a verbalização de temores do Armagedon que irá ocorrer se os credores estrangeiros decidirem vender o débito americano. Esses medos são atenuados, se não totalmente aplacados, por uma aposta na prudência dos estrangeiros: a venda maciça desse débito iria provocar uma desvalorização radical das ações das bolsas de valores no mundo todo; assim, parece razoável – não é mesmo? – que os credores aceitem um pagamento constante proveniente do “serviço da dívida” – pelo menos enquanto o Tesouro americano conseguir pagar os juros. As outras vítimas colaterais da temerária aventura no Iraque são a confiabilidade e a credibilidade dos dois polos do establishment político-partidário dos Estados Unidos, da mídia noticiosa americana e dos experts, gurus e especialistas de prestígio; todos eles – com poucas e nobres exceções, em geral superadas e perseguidas por uma maioria combativa e vociferante – superestimaram os portavozes belicosos da irracionalidade. Mas há outro tipo de dano colateral que pode muito bem assombrar (quem pode ter certeza de que não o fará?) os Estados Unidos, juntamente com cúmplices que ainda não foram anunciados, sejam eles dispostos, relutantes ou inadvertidos, por um tempo cuja duração ninguém conhece. “Se é que produziu alguma coisa, em lugar de levar a democracia e a liberdade ao estilo americano para o Iraque”, lamenta Rich, “a dispendiosa guerra que ali travamos tem trazido o gosto amargo da disfunção daquele país para os Estados Unidos.” Estaria se reproduzindo a história do “efeito helenização”, de conquistadores romanos culturalmente absorvidos, engolidos, convertidos, assimilados e reciclados pelos derrotados e conquistados, ainda que apenas como uma caricatura pavorosa? 13 DE SETEMBRO DE 2010 Sobre médias Os americanos não estão sendo honestos consigo mesmos quanto às mudanças estruturais na economia que proporcionaram uma riqueza fabulosa à reduzida fatia situada no topo, enquanto degradavam os padrões de vida da classe média e esmagavam totalmente os pobres. Nem democratas nem republicanos têm uma estratégia viável para reverter esse terrível estado de coisas. Assim escreve Bob Herbert no New York Times de hoje: Houve muito crescimento, mas os benefícios econômicos foram predominantemente – e de forma injusta – para os que já estavam no topo. [Robert] Reich (em seu novo livro intitulado Aftershock) cita o trabalho de analistas que acompanharam a crescente parcela da renda nacional apropriada pelo centésimo da população situado no topo da pirâmide desde a década de 1970, quando essa parcela era de 8% a 9%. Na década de 1980, ela subiu de 10% para 14%. No final da década de 1990, era de 15% a 19%. Em 2005, passava de 21%. Em 2007, o último ano para o qual se dispõe de dados completos, o centésimo mais rico apropriou-se de 23% da renda total. A décima parte do centésimo mais rico, representando apenas 13 mil domicílios, apropriou-se de mais de 11% da renda total em 2007. Aprender com o passado, mesmo que a partir de erros e equívocos, não é fácil. Em particular para aqueles que os cometeram. Exatamente um ano atrás, Alex Berenson observou no New York Times. “Poucas mudanças em Wall Street.” Hoje ele poderia republicar sua conclusão sem alterá-la, apenas com um estoque de dados muito mais amplo e uma base factual bem mais robusta. Poderia repetir, talvez com uma autoconfiança ampliada, que “os maiores bancos se reestruturaram apenas em torno das margens”; e que a remuneração dos banqueiros – responsáveis pela catástrofe de dois anos atrás e ainda impunes por suas contravenções – está de volta aos níveis anteriores ao desastre, senão acima, com 30 mil empregados da Goldman Sachs (a empresa salva da bancarrota pela dívida federal) ganhando, em média, US$ 700 mil por ano. Segundo Kian Abouhossein, analista do J.P. Morgan, oito grandes bancos americanos e europeus pagam, em média, US$ 543 mil a seus 141 mil empregados. O “sistema”, qualquer que seja o significado da palavra nesse ambiente profundamente desregulamentado, tornou-se ainda mais arriscado. Os investidores emprestam seu dinheiro à indústria financeira em condições favoráveis. As instituições financeiras, por sua vez, usam esse dinheiro barato para fazer empréstimos e negócios arriscados. Quando as apostas dão certo, os bancos ficam com os lucros; mas se dão errado e ameaçam o sistema, os contribuintes engolem as perdas. Os banqueiros têm um nome para essa tática, ED: no momento em que as apostas derem errado, “eu desapareço” (com um simpático bônus, claro, e uma gorda indenização). Essa é a outra face da desregulamentação do mercado de trabalho que já lançou milhões de pessoas, e outras que as seguem a cada dia, na pobreza desesperançada; ou, tomando de empréstimo uma expressão de Goodman, no “deserto do desemprego”. É um deserto para os 15 milhões de pessoas declaradas redundantes, 3 milhões das quais já viram expirar seu segurodesemprego, e muitas mais que observam em desespero a aproximação inexorável do mesmo destino. Em suas vidas, ao contrário do que ocorre em Wall Street, tudo mudou, e de modo a ficar irreconhecível. Pessoas a quem foram prometidos rendimentos de classe média (fraudulentamente, como agora descobriram), levadas a gastar como classe média, agora não têm (a maioria pela primeira vez na vida) outra escolha a não ser esperar pelo bote salva-vidas da assistência pública. Mesmo essa última esperança, porém, se torna cada dia mais tênue, frágil e fugaz. Quarenta e quatro Estados americanos cortaram pagamentos previdenciários a domicílios com rendimento total de um quarto abaixo da linha oficial da pobreza. Segundo os cálculos de Randy Abelda, da Universidade de Massachusetts, o direito à assistência pública cessa quando uma família de três pessoas atinge uma renda de US$ 1.383 por mês (ou seja, cerca de US$ 15 por pessoa por dia, embora, no momento em que escrevo, isso também possa ter diminuído). Sua sociedade é de classes, madame, sua sociedade é de classes, senhor – e não se esqueçam disso, a menos que desejem que sua amnésia se cure com uma terapia de choque. Também é uma sociedade capitalista operada pelo mercado – e é atributo dessa sociedade pular de uma recessão/depressão a outra. Como é de classes, ela distribui os custos da recessão e os benefícios da recuperação de maneira desigual, usando toda oportunidade para reforçar sua espinha dorsal: a hierarquia de classes. A profundidade da queda e o tempo de permanência no fundo, sem perspectivas de futuro, também se diferenciam de acordo com a classe. Tudo depende da parte da rampa de que você caiu: se foi da parte alta, suas chances de voltar ao topo são grandes. Mas se você caiu da parte baixa, a volta do sol às salas da diretoria não será suficiente para aumentar suas esperanças. A cada rodada sucessiva de depressão econômica encontram-se menos trabalhadores empregados do que se registravam antes de a economia se contrair. No ano 2000, no começo da recessão anterior à atual, 34 milhões estavam empregados; mas esse número jamais voltou a subir acima de 30 milhões, apesar de “a economia crescer de novo”. Não admira. Os investidores institucionais estão sedentos por um killing – um superlucro rápido sobre o investimento –, e nada sacia sua sede com mais rapidez e profundidade que um sólido corte na folha de pagamentos. Desarmados e incapacitados, os sindicatos permitiram que os empregos estáveis se transformassem em ocupações casuais. Acredita-se que a automação seja responsável pelo desaparecimento de cerca de 5,6 milhões de empregos industriais na última década. Por fim, porém não menos importante, grande número de empregos, tanto blue-collar (empregados uniformizados) quanto white-collar, “emigrou” recentemente – e continua emigrando – para países da Ásia e da América Latina caracterizados por baixos salários e inexistência de sindicatos. Nesse momento, a duração média do desemprego entre trabalhadores redundantes americanos tem crescido duas semanas a cada mês. Os especialistas acreditam que essa tendência irá prosseguir. As crises têm a reputação de ocorrer aleatoriamente, mas suas consequências, sobretudo as de longo prazo, são gerenciadas de acordo com a classe. A gravidade das crises pode resultar da intensidade da desregulamentação, mas a severidade e a pungência de seus efeitos humanos permanecem teimosamente – e estritamente – controladas segundo as classes. Até agora me concentrei na experiência americana. Mas tendências bastante similares caracterizam o resto deste nosso mundo desregulamentado. Como observa Margaret Bounting numa advertência vigorosa dirigida a uma sessão das Nações Unidas: Com o progresso atual, mais de 1 bilhão de pessoas em todo o mundo ainda estará vivendo na extrema pobreza em 2015; metade das crianças da Índia sofre de desnutrição; na África Subsaariana, a cada sete dias uma criança morre antes de completar cinco anos. … Três quartos das pessoas mais pobres do mundo vivem agora em países de renda média, como Índia ou Nigéria. Enquanto a “ONU prefere falar da desigualdade global, em vez de desigualdade nos países em desenvolvimento, a Índia, apesar de todo o seu festejado crescimento econômico, mal tocou no percentual dos que passam fome nos últimos vinte anos.” A maioria dos integrantes e administradores da ONU não usaria a palavra “equidade”, muito menos “igualdade”, pensando no varejo. Continuamos, de modo rotineiro, entediante e diligente, a computar médias estatísticas. Algumas delas são animadoras, outras simplesmente deliciosas, chegando a justificar certo grau de autocongratulação. Determinados números são bem menos comoventes, enquanto outros sinalizam um fracasso abominável e inspiram perguntas para as quais não se encontram (nem se buscam de forma honesta) boas respostas. Mas, ao contrário das médias, as estatísticas das vítimas colaterais do jogo dos mercados, da competição aberta a todos e do “pegue o que puder” – os pobres e famintos deixados fora do impulso de enriquecimento individual e superatingidos pelos seus resultados – são rotineira, invariável, obstinada e monotonamente pessimistas e tristes. E a cada golpe sucessivo de depressão econômica seu estado se acentua. Como insinua Margaret Bounting, não se trata de uma forma diferente de manipular recursos de assistência cronicamente insuficientes. Em lugar disso, trata-se de uma questão política, um desafio e uma tarefa profundamente políticos. 14 DE SETEMBRO DE 2010 Sobre multitarefas Desde a aurora da era consumista, a principal preocupação dos especialistas em marketing foi a brevidade do tempo que os potenciais clientes poderiam devotar ao consumo; o tempo tinha seus limites naturais e não podia ser estendido além de 24 horas por dia, sete dias por semana. Por sua vez, a inflexibilidade do tempo parecia impor limites naturais à expansão do mercado de consumo. Como ampliar o tamanho do dia ou da semana estava fora de questão, a maneira óbvia de enfrentar essa preocupação era tentar aumentar o volume de consumo por unidade de tempo – treinando as pessoas a consumir mais de uma mercadoria por dia. Comer e beber foram os candidatos mais evidentes para ocupar o topo das atividades de consumo: você pode ingerir fast-food enquanto dirige um carro, quando está na fila para comprar um ingresso de teatro ou assistindo a um filme ou jogo de futebol. Isso foi feito com facilidade: diferentes partes dos órgãos do corpo e diferentes sentidos estimulantes do prazer se engajaram no consumo de diferentes bens, nenhum deles exigindo concentração plena e total; podiam ser empregados ao mesmo tempo, reduzindo minimamente a intensidade do prazer (o deleite sensual total talvez fosse um pouco menor que a soma das delícias que cada um dos bens consumidos poderia oferecer em seu próprio e distinto tempo – mas não havia tempo suficiente para consumi-los). Mas, e se os bens em oferta atraíssem os mesmos sentidos e exigissem o mesmo aspecto de nossa atenção? Você pode ter música para jantar, praticar corrida, dormir ou acordar – mas será que pode ter música para ouvir música? Bem, parece que afinal os mercados de consumo encontraram sua pedra filosofal. O tempo pode ser estendido além de seus limites “naturais”. Contudo, pelo menos até agora, só um dos muitos mercados foi capaz de ganhar com essa descoberta/invenção: o das engenhocas e bugigangas eletrônicas. Como revelou recente pesquisa orientada pela Ofcom, as “multitarefas” hoje ocupam 20% do total de tempo gasto com mídia. Isso significa que um cidadão britânico médio consegue comprimir oito horas e 48 minutos de tempo de mídia em pouco mais de sete horas de consumo nessa área. Sem dúvida consideráveis diferenças se ocultam por trás dessa média. O consumo simultâneo de mídias é rotina para um terço das pessoas entre 16 e 24 anos, mas para apenas um oitavo daquelas que estão acima dessa faixa etária. A geração mais jovem é muito mais habilidosa que os mais velhos no que se refere a abarrotar-se de atividades de consumo de mídia: sabem como espremer 9,5 horas de consumo de mídia em pouco mais de 6,5 horas de “tempo real” – e se adestram nessa perícia rotineiramente, dia após dia. Como sugerem os dados coletados pela Ofcom, esses hábitos de “multitarefas” só decolaram de vez com a introdução dos smartphones. O impacto das últimas novidades ainda não foi avaliado, mas a previsão geral é de que venham a intensificar a tendência das multitarefas. Os dados indicam que hoje essa aceleração cresce nos grupos mais velhos da população: pela primeira vez, mais de metade da população acima de 55 anos instalou uma conexão de banda larga cujo principal benefício é precisamente sua agilidade em termos de multitarefas. Ver TV enquanto se usa um laptop ou smartphone (e, em hipótese, também um iPad) é agora hábito compartilhado por todas as faixas etárias. É como Krishnan Guru-Murthy – jornalista do Canal 4, um assumido viciado em mídia – descreve sua própria rotina diária: “Num dia de trabalho, passo a maior parte das horas de vigília na companhia de algum dispositivo de mídia e posso facilmente perceber como as pessoas tiram do dia mais ‘horas de mídia’ que as horas reais.” A partir das 6h30min, Guru-Murthy se prepara para o dia de trabalho na companhia da Breakfast TV, da Radio 4 e de sites de notícias em seu computador, enquanto “digito num iPhone ou Blackberry para acessar meu Twitter”. Ele leva seus headphones para a academia de ginástica e, sobre a esteira, vê “um pouco de TV”. Na mesa do escritório, tem dois computadores sempre ligados: um como espaço de trabalho, outro para acompanhar o noticiário de TV e tuitar. De volta para casa, Guru-Murthy verifica seu iPhone em busca das últimas reações a seus programas enviadas pelo Twitter. Só às 20h45min ele tem (não necessariamente todo dia) “mais ou menos uma hora sem mídia”. Mas, “se meu filho de cinco anos não desligou o iPad, eu o utilizo para verificar o que os jornais vão estampar na primeira página antes de encostar a cabeça no travesseiro”. Em minha juventude, viviam me aconselhando: “Aprendeu rápido, esqueceu logo.” Mas quem falava era uma sabedoria diferente: a sabedoria de uma época que tinha o “longo prazo” na mais alta estima, quando as pessoas situadas no topo marcavam sua posição cercando-se de coisas duráveis, deixando as transitórias para quem estava na base da pirâmide; um tempo em que a capacidade de herdar, manter, guardar, preservar, transmitir coisas e simplesmente cuidar delas valia muito mais que a facilidade (lamentável, vergonhosa e deplorável) de jogá-las fora. Mas esse não é o tipo de sabedoria que muitos de nós aprovaríamos hoje. O que antes era mérito agora se transformou em vício. A arte de surfar tirou da arte de se aprofundar o título de número 1 na hierarquia das habilidades úteis e desejáveis. Se esquecer logo é a consequência de aprender rápido, longa vida ao aprendizado rápido (curto, temporário)! Afinal, se o que você precisa produzir é um comentário sobre os eventos de amanhã, a memória dos eventos de anteontem será de pouco valor. E já que a capacidade de memória, ao contrário da capacidade dos servidores na computação, não pode ser ampliada, essa memória é capaz de restringir sua capacidade de absorver e acelerar a assimilação recente. As multitarefas são, portanto, duplamente bem-vindas: não apenas aceleram o aprendizado como o tornam redundante. Quando uma série de fragmentos desconexos de informação atinge ao mesmo tempo seus diversos órgãos dos sentidos, as chances são de que nenhum deles penetre tão profundamente que não possa logo ser erradicado – e sem dúvida nenhum deles vai sobreviver à sua utilidade. As multitarefas são ainda mais bem-vindas quando você não está se expondo àqueles aplicativos que transportam informações para buscar conhecimento, não importa quão breve seja a utilidade que elas tenham para você, mas para dar ao material agora transportado uma oportunidade de agradá-lo e diverti-lo. A perspectiva do esquecimento instantâneo não é, portanto, nem mal-recebida nem bem-vinda. É pura e simplesmente irrelevante. A antiga advertência “Aprendeu rápido, esqueceu logo” não seria levada a sério nem ridicularizada. É provável que fosse recebida com incompreensão. 19 DE SETEMBRO DE 2010 Sobre cegos guiando impotentes Houellebecq… Autor de A possibilidade de uma ilha, a primeira grande e até agora inigualada distopia da era líquida, desregulamentada, individualizada, obcecada pelo consumo… Os autores das maiores distopias de outrora, como Zamyatin, Orwell ou Aldous Huxley, descreveram suas visões dos horrores que assombram os habitantes do mundo sólido moderno: um mundo de produtores e soldados estritamente regulados e maníacos pela ordem. Esperavam que essas perspectivas chocassem seus companheiros de viagem rumo ao desconhecido, sacudindo-os do torpor de ovelhas marchando com humildade para o abatedouro: será esse o nosso destino, avisavam eles – a menos que vocês se revoltem. Zamyatin, Orwell e Huxley, tal como Houellebecq, eram filhos de seu tempo. Assim, em contraste com Houellebecq, apresentavam-se intencionalmente como alfaiates especializados em trajes sob medida: acreditavam em encomendar o futuro à ordem, desprezando como enorme incongruência a ideia de um futuro que se fizesse por si mesmo. Medidas erradas, modelos disformes e/ou malfeitos, alfaiates bêbados ou corruptos os assustavam; não tinham medo, contudo, de que as alfaiatarias pudessem falir, perder as encomendas ou ficar defasadas – e de fato não previam o advento de um mundo sem alfaiates. Houellebecq, porém, escreve a partir das vísceras de um mundo exatamente assim, sem alfaiates. O futuro nesse mundo é autoproduzido: um futuro do tipo “faça você mesmo” que nenhum viciado nessa modalidade consegue, deseja ou poderia controlar. Uma vez colocados em sua órbita própria, que jamais atravessa nenhuma outra, os contemporâneos de Houellebecq precisam tanto de despachantes e condutores quanto os planetas e estrelas de projetistas de estradas e monitores de tráfego. São perfeitamente capazes por si mesmos de encontrar a estrada que leva ao abatedouro. E o fazem – como fizeram os dois principais protagonistas da história, esperando (em vão, infelizmente, em vão…) encontrar-se no caminho. O abatedouro na distopia de Houellebecq também é do tipo “faça você mesmo”. Numa entrevista concedida a Susannah Hunnewell, Houellebecq não lança mão de rodeios – e, tal como fizeram seus antecessores, como fazemos nós e fizeram nossos ancestrais, transforma num projeto de sua escolha condições que não foram escolhidas por ele: “O que penso, fundamentalmente, é que não se pode fazer coisa alguma no que se refere a grandes mudanças sociais.” Seguindo a mesma linha de pensamento, algumas frases depois, ele assinala que, mesmo lamentando o que hoje ocorre no mundo, não tem “interesse em fazer o relógio voltar atrás porque não acredito que isso possa ser feito” (grifo nosso). Se os antecessores de Houellebecq estavam preocupados com o que os agentes no posto de comando das “grandes mudanças sociais” poderiam fazer para reprimir a irritante aleatoriedade do comportamento individual, a preocupação dele é onde essa aleatoriedade vai levar na ausência de postos de comando e de agentes dispostos a guarnecê-los tendo em mente uma “grande mudança social”. Não é o excesso de controle e a coerção (sua companheira leal e inseparável) que preocupa Houellebecq; sua escassez é que torna qualquer preocupação ineficaz e supérflua. Ele fala de uma aeronave sem piloto na cabine. “Não acredito muito na influência da política sobre a história. … Também não acredito que a psicologia individual tenha qualquer efeito sobre movimentos sociais”, conclui Houellebecq. Em outras palavras, a pergunta “O que deve ser feito?” é invalidada e esvaziada pela enfática resposta à pergunta “Quem vai fazê-lo?”: “Ninguém.” Os únicos agentes à vista são “fatores tecnológicos e, algumas vezes, nem sempre, religiosos”. Mas a tecnologia é conhecida pela cegueira; ela reverte a sequência humana de ações dotadas de um propósito (a própria sequência que distingue o agente de todos os outros corpos em movimento) e se ela se move é porque pode fazer isso (ou porque não pode ficar parada), não porque deseja chegar; enquanto Deus, além da impenetrabilidade que deslumbra e cega aqueles que o veem, representa a insuficiência dos seres humanos e sua inadequação à tarefa (ou seja, a incapacidade humana de enfrentar as disputas e agir de modo eficaz de acordo com suas intenções). Os impotentes são guiados pelos cegos; sendo impotentes, não têm escolha. Não, pelo menos, se forem abandonados para depender dos próprios recursos, desagradável e abominavelmente inadequados; não sem um piloto de olhos bem abertos – um piloto que olhe e veja. Fatores “tecnológicos” e “religiosos” comportam-se de maneira tão misteriosa quanto a natureza: não se pode saber com certeza onde vão descer até que aterrissem em algum lugar; mas isso, como diria Houellebecq, só até que não seja mais possível fazer voltar o relógio. Houellebecq, que deve ser louvado tanto pela autoconsciência quanto pela franqueza, faz um registro da futilidade das esperanças, para o caso de alguém teimoso e ingênuo o bastante para continuar a alimentá-las. Descrever as coisas, insiste ele, não leva mais a mudá-las, e prever o que vai acontecer não leva mais a evitar que aconteça. Finalmente atingiu-se um ponto sem retorno? Está confirmado o veredicto de Fukuyama sobre o fim da história, mesmo que seus fundamentos tenham sido refutados e ridicularizados? Estou questionando o veredicto de Houellebecq ao mesmo tempo que concordo em quase tudo com o inventário que ele faz de seus fundamentos. Quase – já que o inventário contém a verdade, apenas a verdade, mas não toda a verdade. Algo muitíssimo importante ficou fora de sua avaliação: como a debilidade dos políticos e da psicologia individual não é o único fator responsável pela triste perspectiva como se apresenta (corretamente!), o ponto a que fomos trazidos até agora não é um ponto sem retorno. A desesperança e o derrotismo de Houellebecq derivam de uma crise de agência em duas fronteiras. Na camada superior, no plano do Estado-nação, a agência foi levada a uma situação perigosamente próxima da impotência, e isso porque o poder, antes preso num apertado abraço com a política do Estado, agora se evapora num “espaço de fluxos” global, extraterritorial, muito além do alcance de uma política de Estado territorial. As instituições do Estado hoje arcam com a pesada tarefa de inventar e fornecer soluções locais para problemas produzidos no plano global; em função de uma carência de poder, trata-se de um peso que o Estado não pode carregar e de uma tarefa que é incapaz de realizar com as forças que lhe restam e dentro do reduzido domínio das opções que lhe são viáveis. A reação desesperada, embora generalizada, a essa antinomia é a tendência a abandonar uma a uma as numerosas funções que o Estado moderno deveria realizar, e de fato realizava, ainda que com sucesso apenas duvidoso – enquanto sustenta sua legitimidade na promessa de continuar a desempenhá-las. As funções sucessivamente abandonadas ou perdidas são relegadas à camada inferior, à esfera da “política de vida”, a área em que os indivíduos são nomeados para a função dúbia de se tornar suas próprias autoridades legislativas, executivas e judiciárias reunidas numa só. Agora espera-se dos “indivíduos por decreto” que imaginem e tentem pôr em prática, com seus próprios recursos e habilidades, soluções individuais para problemas gerados no nível social (esse é, em suma, o significado da “individualização” atual – um processo em que o aprofundamento da dependência é disfarçado e ganha o nome de progresso da autonomia). Como na camada superior, também na inferior as tarefas são confrontadas com dificuldade pelos recursos disponíveis para realizá-las. Daí os sentimentos de desespero, de impotência: a experiência do tipo plâncton de ter sido condenado a priori, irreparável e irreversivelmente à derrota num confronto muito desigual contra marés de uma intensidade irresistível. Enquanto persistir, a lacuna crescente entre a grandiosidade das pressões e a debilidade das defesas tende a alimentar e estimular sentimentos de impotência. Esse hiato, contudo, não deve continuar: só parece intransponível quando se extrapola o futuro como “mais do mesmo” em relação às tendências atuais – e a crença de que já se atingiu o ponto sem retorno acrescenta credibilidade a essa extrapolação sem necessariamente torná-la correta. Muitas vezes as distopias se transformam em profecias que refutam a si mesmas, como pelo menos sugere o destino das visões de Orwell e Zamyatin. 21 DE SETEMBRO DE 2010 Sobre ciganos e a democracia Maria Serena Natale, do Corriere della Sera, sugeriu-me que uma possível interpretação das expulsões do povo roma é vê-las como outro exemplo do velho hábito das sociedades de expelir elementos que resistam à assimilação e à classificação. Concordei com sua hipótese. A decisão das autoridades italianas de expurgar os roma, como assinalei, é um dos inumeráveis casos daquilo que Norbert Elias descreveu, meio século atrás, como “estabelecidos versus outsiders” – um conflito perpetuamente efervescente e quase universal. Os “estabelecidos”: pessoas instaladas numa área da cidade que subitamente veem um número crescente de rostos estranhos na rua, pessoas vestidas de forma esquisita, com um comportamento peculiar, falando de modo incompreensível – em suma, de “outsiders”, que “não são daqui”. Os “outsiders”: estranhos – nem amigos nem inimigos, e portanto imprevisíveis, provocando ansiedade e medo. Estranhos representam perigo, pois – ao contrário dos amigos ou inimigos, de quem sabemos o que esperar, como reagir a suas manobras – é impossível dizer o que os estranhos vão fazer, como responderão às nossas ações ou como devemos nos comportar em sua presença para evitar problemas. Não havendo como saber de que forma decodificar sua conduta e suas intenções, nós nos sentimos… ignorantes; e, não tendo certeza do que fazer para evitar possíveis perigos (não se pode nem saber quais são eles, e tendemos a imaginar o pior), também nos sentimos impotentes. E sentir-se ignorante e impotente é uma condição indigna, humilhante! É como se a própria presença de estranhos ofendesse e negasse nossa dignidade. Não admira que surja um desejo de que desapareçam, apenas para se recuperar a tranquilidade e o equilíbrio mental. Os políticos estão ávidos por satisfazer esses anseios. Estão prontos a lucrar com a intranquilidade, o desconforto e a ansiedade dos “estabelecidos” diante dos “outsiders”, mostrando que as autoridades de fato se interessam pela segurança de seus súditos e estão preparadas para protegê-los do perigo. Os roma são em particular vulneráveis a esse tratamento. São os mais comuns entre os “suspeitos habituais” – a própria encarnação da “estranheza”… São nômades vagando entre sedentários. Sem vínculos com lugar algum, estão livres para se movimentar; vão e voltam, não gostam de viver em residência fixa. Portanto, ao contrário dos membros de outras diásporas, quase não passam tempo suficiente num lugar para “se enraizar” na população local, ajustar-se à rotina do lugar, tornar-se, por assim dizer, “parte indispensável da paisagem familiar” e se dissolver nos arredores, tendo negociado um modus vivendi mutuamente aceitável. Por toda parte, os roma são “estranhos perpétuos”; servem como símbolos da desordem, tornam-se “estranhos emblemáticos”, “estranhos encarnados”, a mais completa personificação da ameaça que os “estranhos” representam. Como visitam muitas comunidades em suas contínuas viagens, carregam consigo, aonde forem, as insígnias do estigma e os relatos de suas malfeitorias, sejam elas genuínas ou putativas. A lista das acusações contra eles aumenta com o tempo, sem jamais ser submetida a uma verificação ou avaliação ponderada. São culpados até provar sua inocência, mas não têm oportunidade de prová-la. Outro fator os desfavorece: em contraste com outras minorias migrantes ou diaspóricas, os roma são gritante e importunamente visíveis em qualquer espaço onde parem, ainda que por um breve instante; a um só tempo, são invisíveis (de fato, ausentes) nos locais em que as opiniões são sedimentadas, intercambiadas, debatidas e transformadas em “senso comum”. É muito raro que estejam representados em governos nacionais ou locais, e carecem de uma elite letrada, capaz de escrever e formar opinião para articular e promover seu ponto de vista. São visíveis, mas não vistos. Audíveis, mas não ouvidos. Maria Natale perguntou-me se, não obstante, há diferenças entre os países da Europa Ocidental e Oriental no que se refere à forma como os roma (ciganos, gypsies) são tratados. Respondi que o sentimento de ser discriminado é obviamente mais doloroso nos países mais pobres que nos mais ricos; o pão a ser fatiado é menor nos primeiros, onde há menos possibilidade de se levar uma vida decente. Sendo ou tentando ser tão racionais quanto nós, os migrantes que se põem a viajar em busca de pão e manteiga (e há um número enorme deles pelo planeta, de todos os tons de pele, credos religiosos, línguas, costumes e formas de subsistência preferidas) prefeririam ir para os países mais abastados, e não para os mais pobres. A esse respeito, nada há de peculiar quanto às opções expressas pelos “ciganos”: “mudar-se para o oeste”. Em terras com padrão de vida mais elevado, as perspectivas de uma existência satisfatória são mais amplas, e as oportunidades, mais numerosas; até os pobres locais são mais ricos! Ser pobre num país rico pode parecer uma espécie de paraíso quando comparado a estar afundado na miséria e desesperançado num país pobre. Substituindo a interferência programática anterior – pelo chamado “Estado de bem-estar social”, pela incerteza e a insegurança existenciais produzidas pelo mercado –, e, ao contrário, proclamando a remoção de toda e qualquer restrição às atividades orientadas para o lucro como tarefa principal de um poder político que realmente cuide do bem-estar de seus súditos, os Estados contemporâneos são obrigados a buscar outras variedades, não econômicas, de vulnerabilidade e incerteza para sustentar sua legitimidade. Esse tipo de legitimação alternativa foi agora localizado no tema da proteção individual: nos temores já existentes ou ainda pressagiados, abertos ou ocultos, genuínos ou putativos, de ameaças a corpos, posses e hábitats humanos, quer provenham de pandemias e dietas, quer de estilos de vida insalubres, ou de atividades criminosas, da conduta antissocial da “subclasse”, de imigrantes estrangeiros, ou, mais recentemente, do terrorismo global. Em contraste com a insegurança existencial emanada das incertezas dos mercados – real, profusa e óbvia demais para que se possam confortar seus portadores –, a insegurança alternativa que agora serve de base para a restauração do monopólio perdido do Estado sobre o papel de guardião do povo deve ser alimentada de forma artificial, ou pelo menos altamente dramatizada, para inspirar um volume suficiente de temores; e também para sobrepujar, obscurecer e relegar a uma posição secundária a insegurança economicamente gerada – o tipo de insegurança em relação à qual a administração do Estado quase nada pode fazer, e sobre a qual sua disposição é não fazer coisa alguma. Ao contrário das ameaças geradas pelo mercado à subsistência e ao bem-estar, a gravidade e a extensão dos perigos para a segurança pessoal devem ser apresentadas nos tons mais sombrios, a fim de que a não materialização das ameaças divulgadas (na verdade, a ocorrência de qualquer desastre menos horroroso do que se previa) possa ser aplaudida como grande vitória da razão governamental sobre um destino hostil; e como resultado da vigilância, do cuidado e da boa disposição louváveis dos órgãos do Estado. “Nessas condições, culpar os imigrantes” – os estranhos, os recém-chegados e em particular os estranhos recém-chegados – por todos os aspectos do mal-estar social (e acima de tudo pelo enjoativo e paralisante sentimento de Unsicherheit, incertezza, précarité, incerteza) é uma tentadora fonte alternativa de legitimação de um governo. Assim, está se tornando depressa um hábito global. Um estado de alerta permanente: proclama-se que há perigos à espreita em cada esquina, vazando e gotejando de acampamentos terroristas sob o disfarce de escolas e congregações religiosas islâmicas; nos subúrbios habitados por imigrantes; nas ruas perigosas infestadas de membros da subclasse, em “distritos problemáticos”, todos alimentando endemicamente a violência nas áreas interditadas das grandes cidades; há pedófilos e outros delinquentes sexuais à solta, mendigos inoportunos, gangues juvenis sedentas de sangue, vagabundos e maníacos… São muitas as razões para ter medo, e é impossível calcular sua dimensão e volume verdadeiros a partir de uma experiência estritamente pessoal. E acrescenta-se outra razão para ter medo, talvez mais poderosa: não se sabe quando e onde as palavras de advertência irão se materializar. Minha entrevistadora estava preocupada com as perspectivas da democracia sob essas circunstâncias. Lembrei, em relação a isso, o artigo de Roger Cohen publicado no New York Times de 20 de setembro de 2010. Ele falava do “declínio da democracia”, e explicava: “Não que as nações com sistemas democráticos tenham encolhido em número, mas a democracia perdeu seu esplendor. É uma ideia sem brilho.” Há muitas razões para isso: a sangrenta desordem provocada pelas guerras travadas no Iraque e no Afeganistão em nome da democracia contribui para abalar sua reputação. Em particular quando a ela se justapõe o regime chinês, estável, eminentemente pacífico e antimilitarista, embora ditatorial, responsável por um crescimento econômico de 10% ao ano. Cohen chegou a ponto de sugerir que a “dicotomia entre liberdade e tirania de repente parece algo tão século XX”. Para os países libertados da tirania comunista, a democracia ao estilo ocidental prometia prosperidade, crescimento e paz; em todas essas áreas ela ofereceu bem menos do que se esperava. Entre as antigas democracias, a Bélgica se paralisou num conflito claramente incapaz de ser resolvido; em Israel, a política está saturada de corrupção; na Itália, a democracia se transformou em sua própria paródia. O Congresso americano viu-se imobilizado por um impasse interpartidário, e a única ação que é capaz de endossar ou promover é a inação. Eu poderia facilmente acrescentar outros motivos para a democracia perder o fascínio antes inconteste. Por exemplo, o fato de os Estados Unidos serem líderes mundiais da democracia não impediu que eles também se tornassem líderes ou cúmplices mundiais de desrespeito aos direitos humanos, em particular no ressurgimento da tortura no século XXI. Ou que democracias de todas as partes tenham fracassado para desencorajar suas populações a se recolher nos abrigos privados, voltar as costas ao espaço público e ao dever cidadão de cuidar do bem comum. Ou que as democracias falharam gritantemente em proteger suas minorias, o direito de elas serem respeitadas e terem uma vida digna. Ou que também falharam no dever de reforçar a disposição de seus súditos a se engajar no diálogo ininterrupto, na compreensão mútua, na cooperação e na solidariedade – esses atributos definidores, sine qua non, da vida democrática. A democracia não pode se sustentar na promessa do enriquecimento individual. Sua maior e singular distinção é o serviço prestado à liberdade de todos. Tudo isso é preocupante. Em particular numa época como a nossa, de interdependência global, que nos confronta com um desafio sem precedentes: a necessidade de erguer os princípios sacrossantos da coexistência democrática do plano dos Estadosnação – para onde nossos ancestrais os elevaram e no qual os deixaram para nós – até o nível da humanidade planetária. 22 DE SETEMBRO DE 2010 Sobre a erosão da confiança e o florescimento da arrogância Já por algum tempo, a confiança e os tempos difíceis que ela parece atravessar têm estado no foco da atenção dos farmacêuticos políticos e sociais, preocupados com a obstinação das múltiplas moléstias que afligem os pacientes, desesperados diante da enorme resistência da doença ao tratamento e também da evidente ineficácia dos remédios encontrados nas prateleiras das drogarias. A confiança, como a maior parte desses farmacêuticos hoje crê, é o ingrediente cuja ausência carrega uma grande responsabilidade, talvez a maior, pela futilidade dos regimes terapêuticos antes eficazes – ainda recomendados e amplamente considerados perfeitos, a despeito do rápido acúmulo de evidências em contrário. É na ressurreição da confiança que os curandeiros políticos sociais agora investem suas esperanças; e é o suprimento irritantemente escasso dessa matéria que eles costumam culpar pelo fracasso contínuo dos remédios sociais próprios da tradição. A ideia de que é pela confiança que se sustenta a ordem econômica, política e social, e de que em sua ausência essa ordem desaba, tornou-se agora a doxa da ciência política – o alicerce do atual discurso da ciência política, já estabelecido, enrijecido e raramente revisitado. Quando se dirigiu aos participantes dos Rencontres de Pétrarque, realizados em Montpellier em 19 de julho de 2010, Dominique Schnapper reconheceu como axioma e apresentou como fato indiscutível, a dispensar provas teóricas ou empíricas, que as práticas da vida econômica, assim como a legitimidade da política (“e portanto, a ordem social”), “não podem ser mantidas sem um mínimo de confiança entre as pessoas e sem que estas confiem nas instituições”. Tendo dito isso, o diagnóstico da semiologia sobre as atuais dificuldades da vida econômica, política e social parecia a Schnapper inevitável: na “sociedade da provocação generalizada” em que vivemos, “os argumentos da tradição ou da legalidade não são mais considerados válidos”. Não confiamos nessas explicações, prosseguiu Schnapper – pelo menos, não como nossos ancestrais. E se não confiamos, então não admira que nossos arranjos econômicos, políticos e sociais estejam se fragmentando, rangendo, se afrouxando, fragilizando e ameaçando desmoronar. Uma pergunta, porém, deixou de ser feita: no emaranhado de fatores multifários que produziu essa situação, qual é a carruagem e quais são os cavalos? Em entrevista concedida ao Le Monde e publicada em 21 de setembro, Pierre Rosanvallon indica a substância da crença e da confiança nos agentes como a “capacidade de formular hipóteses sobre seu comportamento futuro”. Ele sugere que, na política ao estilo antigo (nem tão antigo, com certeza – no máximo com meio século), organizada em torno de grandes partidos, cada qual armado de ideias firmemente arraigadas e programas bastante inflexíveis, essa capacidade era relativamente simples de praticar e ainda mais fácil de inferir. Podemos portanto presumir que, na política atual, transformada como foi num jogo de personalidades que vêm e vão, e cujas idas e vindas são apenas frouxamente relacionadas (se é que o são) a ideias e programas ainda existentes, está fora de questão qualquer certeza sobre o comportamento futuro dos poderes constituídos. Em contraste com os grandes partidos de outrora, estabelecidos e em grande medida impessoais, as “personalidades políticas” tremeluzentes e bruxuleantes não podem ser objeto de confiança, já que seus movimentos futuros são tão arriscados como são incertos os papéis que desempenham, e uma vez que é impossível prever de modo fidedigno o elenco do próximo ato do drama político. Loïc Blondieu, por outro lado, sugere (em Le nouvel esprit de la démocratie) que a responsabilidade pelo novo ceticismo do público em relação às atividades nos corredores do poder cabe ao caráter cada vez mais escandalosamente ilusório da participação dos cidadãos no processo político, reduzido como está, cada vez mais, às eleições periódicas de seus “representantes” – cuja “representatividade” escapa de suas mãos no momento em que são eleitos e tomam posse. Porém, como apontou Bastien François (no Le Monde de 22 de julho), pouco se pode fazer para consertar esse estado de coisas enquanto a ideia de responsabilidade dos governantes eleitos não for transferida da área da política para a da criminalidade. As personalidades agora assumem o papel das ideias no banco dos réus. Para todos os fins e propósitos práticos, a menos que os ocupantes de cargos públicos sejam pegos em flagrante aceitando propinas, fraudando relatórios financeiros, se engajando em negócios ilícitos ou aventuras sexuais escandalosas, eles são livres para rasgar seus programas eleitorais sem qualquer punição. De todo modo, esses programas se tornam cada vez mais adornos que quase ninguém estuda e nem considera dignos de estudo; breves declarações, como “Confiem em mim” ou “Nós podemos”, sem necessidade de programas elaborados, funcionam muito bem, obrigado. A “vontade do povo”, de modo muito semelhante ao interesse dos viciados no programa Big Brother, está relacionada e ajustada ao charme e ao glamour, aos delitos e pecados das pessoas da casa, à sua ascensão e, principalmente, à sua queda, suas entradas em cena e, mais ainda, suas demissões desonrosas e expulsões brutais; mas dificilmente se correlacionam às atividades que se passam nos corredores da casa, nem ao que lá é produzido, descartado como lixo, e não um produto útil, como coisas ou eventos eminentemente esquecíveis e sem consequência, exceto pelos fãs dos shows televisivos de perguntas e respostas. Algo alinhado à opinião apócrifa expressa por um agricultor irlandês: “Aquele porco não pesa tanto quanto eu pensava; mas na verdade eu não pensei que pesasse.” Essa é, permitam-me observar, uma transformação que já se devia esperar, dados os graduais mas incansáveis desmantelamento e colapso das estruturas sociais e comunais, e sua substituição (ou melhor, quase substituição), também gradual e incansável, por “redes” frágeis, caleidoscópicas e de curta duração – organizadas ad hoc, e também ad hoc desmembradas com pouca ou nenhuma advertência, privadas de todo potencial executivo, ou não exigindo poderes dessa natureza, para começo de conversa. Como relata Hervé de Tellier, sobre uma dessas redes, na edição de hoje do Le Monde: “Fantástico, tenho um Facebook móvel: centenas de amigos que não conheço me conectam para me contar coisas que não me interessam, as quais fazem em suas vidas, a respeito das quais nada sei.” Alain Minc (em Une histoire politique des intellectuels, recém-lançado) batizou a política das redes de @gora. A força da certeza adquirida reflete o grau de credibilidade e confiança que a autoridade da qual ela foi obtida possui, ou que lhe foi imputado. A primeira não pode ser maior que a segunda. Quando nos oferecem uma informação esperando que acreditemos nela, quase de imediato perguntamos: “Quem lhe disse isso?”, ou “Onde você leu (ou ouviu) isso?” Raramente, contudo, podemos contar com respostas que se aproximem do que consideraríamos satisfatório. Uma autoridade confiável é mais necessária hoje do que talvez em qualquer outra época – mas, em total oposição a essa necessidade, nossa era não favorece sua chegada, e muito menos que ela venha a se estabelecer e ficar. Com o direito de fazer escolhas e a obrigação de assumir responsabilidade pelas consequências firmemente plantados sobre nossos próprios ombros, podemos nos autogovernar como nunca antes, mas também precisamos, mais que nunca, de pessoas beminformadas em que se possa acreditar; e confiar que elas desejam nos ajudar e reforçar nossa habilidade e capacidade de autogoverno. Afinal, como já previu Alexis de Tocqueville com uma intuição estranhamente profética, mesmo o maior dos filósofos tende hoje a acreditar em milhões de coisas baseado apenas na confiança em pessoas proclamadas por outras ou por si mesmas os especialistas; e até os maiores filósofos são incapazes de verificar em primeira mão a veracidade da maioria das informações de que precisam e às quais devem recorrer sempre que pensam ou agem. Mais de cem anos se passaram desde que Georg Simmel concluiu que os produtos da vitalidade e da criatividade do espírito humano já ultrapassaram o ponto em que o espírito que os invocou e os trouxe à luz ainda era capaz de reabsorvê-los e digeri-los. Desde que Tocqueville pôs no papel a observação mencionada, o volume de informações “disponíveis” para consumo tem crescido exponencialmente. Nunca antes tantos agentes livres foram amarrados e mantidos presos por tantas correntes. Nunca antes tantos movimentos de agentes autopropelidos resultaram de tamanhas pressões e influências externas que eles não podem controlar e às quais lhes é impossível resistir. Distinguir os movimentos certos dos errados tornou-se um jogo. Dificilmente poderia ser de outra maneira, se o próprio volume de informações considerado necessário para se realizar um movimento racional (ou seja, baseado no conhecimento pleno da circunstância) impede sua absorção. Como a maior parte do conhecimento só está disponível para ser processada como algo de segunda mão (ou de terceira), mesmo aquela parcela acessível à absorção e adequada à assimilação tem uma qualidade bem abaixo do indiscutível. O espectro da mentira assombra cada verdade que circula on-line ou off-line; sobre cada recomendação confiável paira o espectro da fraude. E lentamente, embora de forma constante, nos resignamos e habituamos à insinceridade e à traição, sejam elas grandes, pequenas ou médias. Mentiras e engodos não parecem mais escandalosos e ultrajantes; mentirosos e trapaceiros não são mais banidos da vida pública por consentimento comum, só pelo poder de abalar nossa confiança; ser “econômico com a verdade” e “seletivo com os fatos”, esticar e “massagear” as notícias ou produzir falsas reportagens são a substância da política atual. Poucas sobrancelhas irão se erguer hoje diante da notícia de que outro “estadista” foi apanhado em mentira. Podemos zombar e rir dos manipuladores de opinião, mas a política sem eles se tornou tão inimaginável para nós quanto um circo sem palhaços para nossos antepassados. As rotinas de mentir, negar a mentira e depois desdizê-la só agregam valor ao entretenimento dos políticos – virtude nada desprezível num mundo obcecado e viciado em infoentretenimento. Meu querido Saramago, no dia 18 de setembro de 2008, deu em seu blog uma opinião sobre George W. Bush como caubói que herdou o mundo e o confundiu com um rebanho. “Ele sabe que mente, sabe que nós sabemos que está a mentir, mas, pertencendo ao tipo comportamental de mentiroso compulsivo, continuará a mentir.” E ele não está só! “A sociedade humana atual está contaminada de mentira como da pior das contaminações morais. … A mentira circula impunemente por toda a parte, tornou-se já numa espécie de outra verdade.” Permitam-me relembrar que George Orwell nos avisou da chegada dessa “outra verdade” mais de meio século atrás, batizando-a de “novilíngua”. Tal como as coisas estão neste momento, o apelo dos políticos por mais confiança parece tão suspeito e traiçoeiro como o canto das sereias. Por que confiaríamos neles? Não seria mais razoável, e em última análise mais honesto, seguir o exemplo de Ulisses (cada vez mais pessoas já o fazem, tapando os ouvidos às vozes vindas do alto)? Ou, melhor ainda, considerando-se que as sereias são tão incapazes de alterar seu tom quanto os leopardos de mudar suas manchas, não seria legítimo tentar redesenhar o palco público a fim de que ele fique fora do alcance das sereias? Admito: é mais fácil dizer que fazer. Mas creio que vale a pena tentar. E precisa ser tentado. Urgentemente. Apenas para recuperar nossa confiança na possibilidade da verdade… 29 DE SETEMBRO DE 2010 Sobre o direito de ter raiva “A raiva está varrendo os Estados Unidos”, observou Paul Krugman no New York Times de 19 de setembro. Não seria esperável que varresse? Afinal, como ele nos lembra, “a pobreza, em especial a pobreza aguda, aumentou com o declínio econômico; milhões de pessoas perderam suas residências. Jovens não encontram empregos; cinquentões demitidos temem nunca mais voltar a trabalhar.” Após algumas décadas sonhando dia e noite o sonho americano sobre as pistas e calçadas da terra do “fim da história”, e nas praças da Disneylândia do futuro “tal como visto na TV”… um despertar súbito, brutal. A manhã depois da orgia. Para muitas pessoas, há diversas razões para ter raiva. Depois do doce sonho da certeza do “Sim! Nós podemos!”, uma amarga mistura de confusão e impotência. “A incerteza está difundida”, como observa Roger Cohen no New York Times de 27 de setembro. “A salvação de Wall Street por parte do governo, combinada às dificuldades profundas enfrentadas pela classe média para sobreviver com rendimentos estagnados ou declinantes, tem aguçado os ressentimentos.” Quem se surpreendeu quando Velma Hart, até pouco tempo atrás militante dedicada e defensora de Obama, gritou “Estou cansada de defendê-lo!”? Como observa Cohen, o grito de desespero de Hart “fez vibrar uma corda sensível, em âmbito nacional, já que tantas pessoas sentem o mesmo”. Ao contrário do que se poderia esperar, contudo, não é isso que Krugman tem em mente ao observar que “a raiva está varrendo os Estados Unidos”, nem Cohen quando insinua que a profunda insatisfação dos americanos “desceu ao nível do tribalismo” – político, econômico e social. Milhões de novos sem-teto, assim como os jovens e pessoas de meia-idade sem perspectiva de emprego, até agora têm se mantido em silêncio, e o amplo eco do grito de desespero de Velma Hart parece dever-se mais ao imenso e mudo deserto no qual reverberou do que a um crescendo de vozes de apoio. Krugman revela suas preocupações no título de seu texto opinativo, “Os ricos furiosos”. Foi o bilionário gerente de fundos Stephen Schwarzman que comparou Obama a Hitler invadindo a Polônia quando o presidente americano privou os gerentes de fundos de investimento do direito de usar uma forma de evasão fiscal. E foi a revista Forbes, a trombeta dos mais ricos entre os ricos, que proclamou ser a política fiscal de Obama de origem “anticolonialista”, anunciando que dali em diante os Estados Unidos estariam ameaçados de ser governados “segundo os sonhos de um membro da tribo luo,c da década de 1950”. Foi Dorothy Rabinowitz, do conselho editorial do Wall Street Journal, que, em 9 de junho, acusou Obama de extrair suas ideias dos salões da esquerda estrangeira – num artigo cujo título dizia tudo: “O forasteiro na Casa Branca”. Em 21 de setembro, outro barão das finanças, Mort Zuckerman, denunciou os esforços federais para desacelerar o rápido avanço das retomadas de residências invocando o ato de fé ortodoxo dos super-ricos – “devese permitir que os mercados busquem seu próprio equilíbrio”; quatro dias antes, a voz estridente e majestosa do Cato Institute, em outro ataque frontal à política fiscal forasteira (antiamericana?) da Casa Branca, reafirmou o mito – de vida longa, mas de há muito desacreditado – de que, a longo prazo, os cortes de impostos no alto da pirâmide acabarão beneficiando quem está na base. Tudo isso contra a paisagem de um canto desafinado, entoado diariamente de uma costa à outra, relatando o destino trágico de pessoas que ganham entre US$ 400 mil e US$ 500 mil por ano. Estas agora se veem confrontadas por uma volta ao nível de impostos anterior aos cortes feitos por Bush (perdendo assim cerca de US$ 700 bilhões para um Tesouro nacional enfraquecido até os ossos); e sem dúvida elas irão à bancarrota (e privarão de sossego os menos afortunados) se tentarem pagar os impostos residenciais sobre suas casas exclusivas e sobre as mensalidades das escolas privadas de elite em que as pessoas de seu tipo passam a juventude dourada. “O espetáculo proporcionado por americanos de alta renda, as pessoas com mais sorte no mundo, chafurdando na autocomiseração e no farisaísmo”, conclui Krugman, “seria engraçado não fosse por uma coisa: eles podem resolver seu problema.” Eles podem, e há muitas chances de que o consigam, porque “são diferentes de você e de mim: eles têm mais influência”. A influência é a diferença que faz a diferença. É graças a essa influência que, quando convocam a nação “a estar pronta a fazer sacrifícios”, estão querendo dizer, impunemente e sem medo da indignação popular, que “o sacrifício é para as pessoas de baixo”. Eles têm o direito de ter raiva; têm a permissão de divulgar sua raiva nos alto-falantes instalados nas praças públicas, em frente aos gabinetes dos poderes supremos – sem medo de serem acusados de egoísmo, falta de solidariedade, anarquia, antiamericanismo, ou de possuir a mentalidade de um membro da tribo luo. a) Todos os textos de Saramago aqui citados estão em O caderno de Saramago, seu blog na página da Fundação José Saramago, disponível em: josesaramago.org. No Brasil, parte deles encontra-se publicada em O caderno (Companhia das Letras, 2009). (N.T.) b) Roma e sinti, dois subgrupos dos genericamente chamados de ciganos na Europa. (N.T.) c) Tribo do Quênia à qual pertencia a família do presidente americano Barack Obama. Em 1952 houve uma rebelião anticolonialista no país liderada pela sociedade secreta Kikuiu, ou Mau Mau. (N.T.) • Outubro de 2010 • 7 DE OUTUBRO DE 2010 Sobre o direito de ficar mais rico É difícil que o crédito nos Estados Unidos já tenha sido mais barato. O Federal Reserve (Fed, o Banco Central americano) empresta dinheiro aos bancos por uma insignificância, com taxas de juros próximas de zero. Mas o que se mostra um incentivo aos ricos para que tomem empréstimos a fim de ficar mais ricos também é um obstáculo aos mais pobres e aos não tão ricos que desejam ardentemente pegar dinheiro emprestado para não afundar na pobreza. Uma vez mais, a operação “Salvar a economia do país” resulta em permitir que os ricos fiquem mais ricos. Quanto aos pobres, quem se preocupa com eles? Como Graham Bowley nos informa no New York Times de 3 de outubro, as maiores companhias americanas – como Microsoft, Johnson & Johnson, PepsiCo ou IBM – é que começaram a fazer empréstimos em profusão. Não perderiam essa oportunidade de acumular dinheiro a custo quase zero até chegar o momento em que a economia “volte ao normal”, ou seja, quando os investimentos começarem mais uma vez a dar lucros justos e adequados. Como observa Richard J. Lane, analista da Microsoft, para uma empresa, “tomar novos empréstimos no mercado da dívida pública é agora mais barato que trazer de volta o próprio dinheiro aplicado no estrangeiro”. E assim, os grandes moneyusers que se podem dar a esse luxo pegam dinheiro emprestado para guardar; quando o colocam de volta em circulação, é com a ideia de recomprar seus próprios estoques ou financiar novas (e geralmente hostis) fusões e aquisições. De modo prudente, não se apressam em construir fábricas ou empregar mais mão de obra. Até agora, as grandes corporações acumularam o impressionante tesouro de US$ 1,6 trilhão para se sentar sobre ele. Como se lamenta Michael Gapen, economista da Barclay Capital, é mais provável que pretendam usar esse dinheiro barato a fim de obter tecnologia para substituir a mão de obra e cortar empregos. Resumindo uma longa história, o tão alardeado “efeito gotejamento” (trickle-down effect) mais uma vez deixou de se concretizar. Até agora, parece que se produz o efeito oposto. Como aponta Bowley, empréstimos a juros baixos “têm de fato prejudicado muitos americanos, em especial os aposentados, cujas rendas provenientes de suas economias vêm caindo de maneira substancial” – tal como as taxas de juro, quase a zero. Mas os pensionistas obrigados a dar uma profunda mordida nas economias acumuladas durante toda uma vida são apenas uma categoria dentre aquelas que sofrem as consequências mais sombrias e dolorosas do colapso do crédito, assim como da atual moda de restabelecê-lo. A maioria dos quase 15 milhões de desempregados nos Estados Unidos, se não todos, e o incontável número de adultos e crianças a quem eles em tese deveriam sustentar estão em outra categoria. Outra, ainda, é constituída de pequenas empresas, já que o crédito barato se recusa veementemente a “gotejar” para esse setor. Para essas categorias, tomar empréstimos ainda é tarefa assustadora, exigindo um árduo esforço e pouca chance de sucesso. Muitos estão diante da perspectiva de falência; a maioria não pode sonhar em se expandir e criar empregos – o que joga mais sal na ferida dos já desempregados ou subempregados. Como uma varinha mágica, todas as medidas tomadas em nome de “salvar a economia” revelaram-se destinadas a enriquecer os ricos e empobrecer os pobres. Enquanto escrevo estas palavras, a iniciativa governamental, recebida com maior resistência e enfrentamento por parte do Congresso americano, é o fim do corte de impostos (criado por George W. Bush) para os super-ricos (a quantia em disputa é de cerca de US$ 700 bilhões). Um dos investidores de maior sucesso do mundo, muitas vezes chamado de “o lendário investidor Warren Buffett”, consistentemente classificado entre as pessoas mais ricas do mundo (de acordo com sua biografia na Wikipédia, a segunda pessoa mais rica do planeta em 2009, hoje a terceira), teria anunciado: “Há uma luta de classes, sem dúvida. Mas é a minha classe, a dos ricos, quem luta, e nós estamos ganhando.” Como tem se mostrado correta a visão desse investidor… 13 DE OUTUBRO DE 2010 Sobre muitas culturas e um disfarce A diferença cultural é o que separa você daqueles que se comportam de forma diversa; ou pelo menos essa definição ou explicação (sobretudo aceita de maneira tácita e axiomática) é um dos pilares mais inquebrantáveis tanto da doxa atual das ciências sociais quanto do senso abominavelmente não científico, pois que é senso comum. As pessoas de lá se conduzem de forma diferente das de cá? Elas tendem, estatisticamente, a ter um destino distinto destas? Em ambos os casos, a cultura é a causa – e portanto a explicação. E também a razão. O adjetivo “cultural”, por definição, aplica-se a padrões de comportamento, hábitos ou atitudes que poderiam ser diferentes caso as pessoas que os praticam fizessem outras escolhas. São atributos “flexíveis” do homo eligens, o “agente da escolha”. Podem ser adotados ou renegados à vontade (ainda que, reconhecidamente, probabilidades poderosas possam conspirar contra isso). E assim, em última instância, é o agente que as adota ou rejeita quem tem a responsabilidade por sua presença ou ausência. Quando eu lecionava, um quarto de século atrás, na Memorial University of Newfoundlands, li no Globe and Mail, o principal jornal formador de opinião do Canadá, que, segundo as então recentes pesquisas, a mortalidade entre pessoas diagnosticadas com câncer estava relacionada de forma íntima à renda: entre os ricos, o câncer causava menos mortes que entre os pobres – e se o câncer descoberto entre os canadenses mais ricos acabasse em morte, levava um tempo médio maior do que no caso de seus compatriotas menos afortunados. Os repórteres, com a ajuda de pesquisadores especializados, explicavam as estatísticas assinalando que os pobres fumavam mais que os ricos (ou seja, que as pessoas mais educadas e portanto mais prudentes e racionais); mas não havia menção a fatores menos fáceis de se livrar que o hábito de fumar – tais como, por exemplo, a subnutrição crônica e condições de vida inferiores, ou simplesmente a falta do dinheiro que uma terapia longa decerto exige. Em outras palavras, a “cultura dos pobres”, ou seja, os preceitos culturais escolhidos pelos pobres, é culpada de matá-los com mais frequência e rapidez quando eles são vitimados pelo câncer. Essa explicação, pelo que posso avaliar, foi um dos primeiros sinais da iminente era do “culturalismo”, em que os diferentes destinos de categorias distintas de seres humanos tendem a ser explicados, como regra e quase de modo automático, pelas dessemelhanças em termos das escolhas (preferências, prioridades) que essas categorias diversas tendem a fazer; enquanto isso, a possibilidade de que os “dados estivessem viciados” (de que os conjuntos de opções que confrontam as diferentes categorias, e entre os quais elas estão realisticamente aptas a escolher, pudessem ter sido alterados muito antes de surgir a questão da escolha individual) poucas vezes era invocada, se é que chegava a sê-lo, e menos ainda levada em conta de forma séria. Uma semana atrás, em texto publicado no Le Monde (“Miséria do culturalismo”), Didier e Eric Fassin relembraram os casos de envenenamento por chumbo descobertos entre crianças francesas, americanas e britânicas há alguns anos. Epidemiologistas da França correram a anunciar que os casos dessa doença grave e com frequência terminal, eram em particular numerosos entre famílias da África Subsaariana – e logo somaram dois mais dois: na cultura do Sahel, as crianças muitas vezes recolhem e chupam pedaços do reboco solto das paredes. Ao mesmo tempo, porém, as vítimas infantis do envenenamento por chumbo nos Estados Unidos estavam sobretudo em famílias afro-americanas não originárias do Sahel, e de qualquer modo estabelecidas em sua nova terra por muitas gerações. Na Grã-Bretanha, em comparação, as crianças mais afetadas pela moléstia eram de famílias que tinham chegado da Índia e do Paquistão. É evidente que as semelhanças na incidência da doença dificilmente poderiam ser atribuídas a similaridades importadas no aprendizado cultural. Os fatores comuns aos três grupos eram de ordem social, não cultural: as três categorias de imigrantes recentes ou antigos viviam em distritos urbanos empobrecidos e moravam em favelas dilapidadas, destruídas pelo tempo, esquecidas por Deus, onde inalavam todo dia a poeira da pintura das paredes ou bebiam água conduzida por canos de chumbo que já haviam ultrapassado em muito a data de validade. De qualquer modo, a tendência a colocar o rótulo “culturalista” em problemas sociais preocupantes que estejam no foco das atenções do público tem ganhado força desde que os casos de envenenamento por chumbo desapareceram das primeiras páginas e das manchetes dos jornais. Hoje, o exemplo mais evidente – já que mais frequente e mais de “senso comum” – é a interpretação “culturalista” da correlação estatística entre alta taxa de delinquência juvenil, comportamento antissocial e desempenho escolar inferior, de um lado, e áreas urbanas com grandes populações de imigrantes, de outro. Esquecido da consagrada advertência de Hume (post hoc non est propter hoc – preceder não é causar), Hugues Lagrange (autor de Le déni des cultures) confunde uma sequência temporal com uma conexão causal. Lagrange acusa os negros vindos do Sahel de “trazer para o nosso universo [urbano] amplas faixas de costumes distantes, muitas vezes rurais e muito retrógrados”. Enquanto isso, Tribalat castiga (alguns) colegas cientistas sociais “por se subordinar ao antirracismo”, quando aparentemente preferem permanecer ignorantes em relação às diferenças culturais e por tender a culpar as estruturas sociais por delitos determinados pela cultura; em outras palavras, pelo mascaramento deliberado do fato desagradável de que existe uma incompatibilidade inevitável entre “nossa” cultura e a “deles”. Pelo menos, nessa versão, o “multiculturalismo”, e de forma mais genérica o “culturalismo”, ao enfatizar a provisão de uma base intelectual (com mais precisão, de um verniz de relações públicas) para a prática multiculturalista, é em si mesmo um exercício de mascaramento. O que ele tenta encobrir e afastar do debate público são as realidades cruas da discriminação e da destituição social. 14 DE OUTUBRO DE 2010 Sobre “Não digam que não foram avisados” Isso precisa ser registrado antes que as manchetes de amanhã e de depois de amanhã façam aquilo que sua função principal (embora latente, mais que manifesta) impõe que façam: antes que apaguem a mensagem da memória humana… O que estou dizendo que exige ser registrado e salvo da extinção é o editorial de hoje do New York Times, com o título eloquente de “A próxima bolha”. Ele nos informa que comprar ações das “economias emergentes” é a última moda e paixão de Wall Street. Só este ano, Wall Street vai gastar nelas US$ 825 bilhões (um aumento de 42% em relação ao ano passado), enquanto o gasto com a compra da dívida das economias emergentes vai triplicar, alcançando US$ 272 bilhões – todo esse dinheiro poupado graças à recente relutância de Wall Street em investir nos devedores americanos, não mais solventes. Em outras palavras, como é de se esperar do capital – seguindo a familiar estratégia de um parasita que busca com ansiedade um novo organismo hospedeiro depois de matar o antigo –, uma nova terra virgem foi descoberta pelos intrépidos batedores de Wall Street: uma terra aparentemente inexplorada ou subexplorada, indômita, prometendo lucros rápidos e elevados, armazenados com rapidez antes que trabalhadores muito mal pagos se tornem cabeças-duras e exijam participar da orgia consumista em que seus correlatos americanos ou europeus se acostumaram a chafurdar, e na qual pretendem continuar chafurdando enquanto for possível. O autor do editorial observa que, não obstante os benefícios iniciais para os nativos, investimentos externos maciços elevam o valor de sua moeda, fortalecendo as importações e reduzindo as exportações, além de promover a rápida expansão do crédito – que pode causar inflação, inflar bolhas de ativos e geralmente deixar uma pilha de empréstimos podres. Ao primeiro sinal de problemas, esse dinheiro mete o rabo entre as pernas, fazendo os países afundar numa crise. Então o autor lembra aos leitores os padrões que sem dúvida irão se repetir, como tendem a se reproduzir monotonamente na vida de todos os parasitas: a Crise Tequila no México, em 1994; a crise asiática em 1997; a catástrofe russa de 1998, a debacle brasileira de 1999, ou o colapso argentino em 2002. E ainda poderíamos acrescentar o amargo despertar recente da Grécia, da Irlanda e da Lituânia. O autor não chegou a ponto de questionar a “sabedoria econômica” do atual frenesi de Wall Street: “Ainda assim, não é hora de pânico. Os países em desenvolvimento estão relativamente bem em termos de saúde econômica, enquanto as taxas de juros nos países ricos tendem a permanecer baixas durante anos.” Em outras palavras, os lucros tendem a fluir sem cessar para os bolsos e contas bancárias dos acionistas ainda por algum tempo. O que o preocupa, e deveria preocupar os leitores, é a possibilidade de que outro choque – replicando os recentes problemas na Irlanda ou na Grécia, por exemplo – venha a desmascarar os órgãos destinados a deter o capitalismo antes que ele faça secar, se consumir e definhar as pastagens que o alimentam e sustentam, por incapacidade de realizar seu trabalho; em especial, sua inabilidade para (ou relutância em) começar a fazer esse trabalho a sério antes que seja tarde. Não estariam as garantias de que “não é hora de pânico” entre as principais causas dessa inabilidade cum relutância, rotineiramente descobertas a posteriori, só para ser, de forma igualmente rotineira, prontamente esquecidas? Quantas terras virgens precisam ser forçadas à catástrofe para que se quebre essa rotina? Ou será que o capitalismo, assim como as políticas a seu serviço, significa a própria impossibilidade de aprender? 17 DE OUTUBRO DE 2010 Sobre os dilemas de se acreditar Os detratores da religião, duvidando da conveniência de seus usos humanos e do valor de seu impacto sobre a vida dos homens, buscam despir as crenças religiosas de sua autoridade assinalando que – em contraste com o conhecimento secular oferecido por “especialistas” – elas são aceitas em função da fé, não das evidências. O pressuposto explícito invocado por esse argumento é que o conhecimento baseado em evidências é mais confiável que o pautado (“apenas”) em confiança na autoridade de seus fornecedores; mas a pressuposição tácita, embora decisiva, é que a credibilidade e a autenticidade de uma proposição dependem do que possa passar por evidência e, em última instância, por “como as coisas realmente são”; por sua vez, isso se traduz na questão de quem é o porta-voz legítimo da verdade e quem é apenas um falso pretendente. Os Evangelhos, afinal, ou, nesse sentido, o Velho Testamento, estão repletos de “provas empíricas” de suas mensagens. Jesus, tal como Moisés, convencia as testemunhas de que tinha acesso ao verdadeiro conhecimento e portanto de que era digno e merecedor de confiança por demonstrar sua extraordinária habilidade de fazer coisas que transcendiam a capacidade de seus adversários e caluniadores: como observaria Tertuliano um pouco depois, devia-se acreditar na história dos feitos milagrosos de Jesus por essa razão – por “serem absurdos” (estranhos e inacreditáveis). Podemos presumir com segurança que as pessoas às quais a história dessas demonstrações foi relatada por outras que afirmavam tê-las presenciado estavam totalmente preparadas para isso, ávidas de acreditar no que ouviam e confiar nos mensageiros. Tal como nós, nascidos e criados na era da ciência e da tecnologia, estamos preparados para acreditar no que ouvimos dos cientistas e a confiar neles, os mensageiros da ciência. Ludwik Fleck, o formidável filósofo da ciência e da cognição, assinalou que a teoria precede a visão; uma pessoa não iniciada (não treinada nem doutrinada) a quem se pedisse para observar ao microscópio iria olhar sem ver. Seus olhos enxergariam um aglomerado de pontos coloridos, desordenado e sem sentido, e eles só ganhariam forma e significado quando colocados nos locais preconcebidos de uma matriz teórica. Essa matriz já precisa estar no lugar e ter adquirido o status de axioma inquestionável – de fato, nem sequer é percebido. Isso só pode acontecer como produto de “pensamentos coletivos”, que se distinguem por seu próprio “estilo de pensamento” (definido por Fleck como “percepção direta, com assimilação mental e objetiva correspondente do que assim foi percebido”), sustentados e sempre reproduzidos na comunicação mútua e permanente: “Uma comunidade de pessoas que troca ideias ou mantém uma interação intelectual.” Como comentou Wojciech Sady, autor de um artigo intitulado “Ludmik Fleck: pensamentos coletivos e estilos de pensamento”, de 2001, tais comunidade são formadas por “círculos esotéricos de especialistas, relativamente pequenos, e círculos exotéricos de professores escolares, muito maiores”: O treinamento que apresenta alguém a um estilo de pensamento é de caráter dogmático. Os estudantes ganham competência na aplicação de alguns princípios, mas sua atitude crítica em relação a esses princípios está fora de questão. Se não aceitam o conjunto de crenças comuns a todos os membros de determinado coletivo de pensamento, e se não dominam o mesmo conjunto de habilidades, não são admitidos na comunidade. E acrescenta: Isso não deve ser entendido como um conjunto de restrições impostas pela sociedade, mas como algo que torna possíveis os atos cognitivos. A palavra “conhecimento” só é significativa em relação a um pensamento coletivo. E se por algum motivo alguém formular ideias que estejam além dos limites do que é socialmente aceito em determinada época, essa pessoa continuará a ser ignorada ou incompreendida. As pessoas que falam pela ciência moderna e advogam sua superioridade metodológica sobre as crenças religiosas encobrem o fato de que, em última instância, o conhecimento transmitido pelos cientistas também é aceito com fé e confiança. Os que consentem em suas conclusões poucas vezes têm a oportunidade ou mesmo a vontade de submeter suas crenças ao procedimento de verificação que a ciência afirma ser sua marca distintiva e base de sua superioridade. O que é apresentado como “episteme” – o conhecimento sistematicamente testado –, em última instância, é aceito e empregado da mesma forma que a “doxa” tão ridicularizada e desprezada – o conhecimento com que os leigos (ou seja, as pessoas de fora dos “círculos esotéricos de especialistas” e dos “círculos exotéricos dos professores de escola”) pensam, mas sobre o qual não pensam; como especialistas e professores treinados e adestrados, acatam a adequação de seu procedimento cognitivo de uma forma que, do ponto de vista qualitativo, não se distingue da doxa. O caráter “óbvio” e “autoevidente” das descobertas científicas é obtido mediante uma longa série de atos de fé coletivamente reiterados e reafirmados. Ao levar Galileu ao tribunal, os promotores eclesiásticos não agiram com inconveniência ao questionar sua perseverança de que os borrões que via ao pressionar o olho contra o telescópio significavam manchas no sol. Eles apenas seguiam – bem antes de sua descoberta por Ludwik Fleck no funcionamento da ciência moderna, e do registro no texto de sua autoria intitulado “Gênese e desenvolvimento de um fato científico” – o padrão quase universal de “tenacidade dos sistemas de opinião e da harmonia das ilusões”. Na versão de Fleck, esse padrão consiste em tornar impensável qualquer coisa que contradiga o sistema, ao mesmo tempo ocultando da vista tudo que não se ajuste a ele; ou – quando as “anormalidades” forçam passagem para o campo de visão – explicá-las de uma forma que não se choque com a integridade do sistema. A verdadeira substância da moderna campanha de “secularização” foi uma luta de poder; e o objeto dessa luta, sua aposta e seu prêmio cobiçado, foi o direito de selecionar, entre um conjunto de fórmulas competindo pela legitimação, um procedimento habilitado a reivindicar o valor de verdade para os resultados, desqualificando na mesma medida as reivindicações de todos os outros competidores. Os conflitos entre episteme e doxa, ou entre conhecimento empírico e conhecimento revelado, ou mesmo entre conhecimento e fé, encobriam o embate de poder entre a Igreja estabelecida e a academia. Outra forma de dizê-lo é afirmar que o processo de “secularização” foi realizado pela redistribuição do raro recurso da confiança pública, vista por ambos os lados da principal linha de frente como objeto de um jogo de soma zero. Até aqui, vimos os dois contendores empregarem suas diferentes armas numa guerra travada com dois propósitos idênticos; eles disputam o mesmo troféu, o direito de falar com autoridade – em última instância, ou pelo menos de preferência, com uma autoridade exclusiva, indivisível e não compartilhada. Do lado religioso da linha de frente, o jogo de que os dois contendores participam ganhou o nome de monoteísmo (do lado da ciência, não se cunhou um nome – ferramenta de distinção necessária para separar certos objetos de uma pletora de outros; até então a ciência não tem sido tão desdenhosa quanto é descuidada e indiferente em relação à possibilidade de haver uma alternativa a ela mesma). A intolerância a priori da ciência a toda e qualquer pretensão alternativa de ser aquilo que fala com autoridade é uma extensão secular do monoteísmo; um monoteísmo sem Deus. Tanto inspirados quanto movidos pelo espírito de Jerusalém, os dois contendores concordam com a indiscutível necessidade de controlar, refrear, fiscalizar e suprimir o alegre e descuidado desregramento de Atenas, que deixou a verdade aos cuidados das excentricidades da ágora. 20 DE OUTUBRO DE 2010 Sobre Cervantes, pai das ciências humanas Segue-se o texto de meu discurso de aceitação do Prêmio Príncipe de Astúrias, em cerimônia realizada em Oviedo: Sua alteza real, senhor presidente da Fundação Príncipe de Astúrias, senhoras e senhores. Há muitas razões para me sentir imensamente grato pela distinção que os senhores me concedem, mas talvez a mais importante seja o fato de terem classificado meu trabalho como pertinente às ciências da humanidade e como um esforço relevante para a comunicação humana. Toda minha vida tentei fazer sociologia da maneira como dois professores de Varsóvia, Stanislaw Ossowski e Julian Hochfeld, me ensinaram sessenta anos atrás. E o que eles ensinaram foi tratar a sociologia como uma disciplina humana, cujo propósito único, nobre e grandioso é possibilitar e facilitar a compreensão e o diálogo constante entre os seres humanos. Isso que me leva a outro motivo crucial de minha alegria e gratidão: a distinção concedida a meu trabalho vem da Espanha, a terra de Miguel de Cervantes Saavedra, não apenas o autor do maior romance jamais escrito como também, e por meio dele, o pai fundador das ciências humanas. Cervantes foi o primeiro a realizar aquilo que todos nós da área das ciências humanas tentamos fazer, com êxito apenas duvidoso e com nossas habilidades limitadas. Como disse Milan Kundera, outro romancista: Cervantes fez com que Dom Quixote rompesse as cortinas remendadas de mitos, máscaras, estereótipos, preconceitos e pré-interpretações, cortinas que envolvem estritamente o mundo que habitamos e que lutamos para compreender – mas tendemos a lutar em vão enquanto essas cortinas não forem erguidas ou rasgadas. Dom Quixote não era um conquistador – ele é que foi conquistado. Mas, em sua derrota, como mostrou Cervantes, ele demonstrou que “tudo que podemos fazer diante dessa inelutável derrota chamada vida é tentar compreendê-la”. Essa foi a grande e memorável descoberta de Miguel de Cervantes; uma vez feita, jamais se pode esquecê-la. Todos nós da área das ciências humanas seguimos a trilha que essa descoberta revelou. É graças a Cervantes que estamos aqui. Rasgar a cortina, compreender a vida… Que significa isso? Nós, seres humanos, preferiríamos habitar um mundo ordeiro, limpo e transparente, em que bem e mal, beleza e feiura, verdade e mentira fossem nitidamente separados entre si e jamais se misturassem, de modo a que pudéssemos ter certeza de como as coisas são, para onde vão e como proceder; sonhamos com um mundo onde avaliações e decisões possam ser feitas sem o trabalho árduo da compreensão. É desse nosso sonho que nascem as ideologias – essas densas cortinas que impedem o olhar de ver. Foi a essa inclinação debilitante que Étienne de la Boétie deu o nome de “servidão voluntária”. E foi o caminho para fora e para longe dessa servidão que Cervantes indicou a fim de que nós seguíssemos apresentando o mundo em toda a sua realidade nua, desconfortável, mas liberadora: a realidade da multiplicidade de significados e da irreparável ausência de verdades absolutas. É num mundo assim, em que a única certeza é a certeza da incerteza, que, sempre e a cada vez de modo inconcluso, tendemos a buscar compreender a nós mesmos e compreender-nos mutuamente, nos comunicarmos e, portanto, viver com todos os outros e para cada um deles. É nessa tarefa que as ciências humanas tentam ajudar os outros homens; ou pelo menos é o que deveriam tentar fazer, se queremos permanecer fiéis ao legado de Miguel de Cervantes Saavedra. E é por isso que sou imensamente grato, sua alteza e senhor presidente, por qualificarem meu trabalho como uma contribuição às ciências humanas e à comunicação entre os homens. 30 DE OUTUBRO DE 2010 Sobre mais uma guerra de atrito, 2010 EC? Os jornais de hoje trazem outra rodada de notícias espantosas, horríveis e chocantes. Duas mulheres iemenitas de nomes desconhecidos colocaram no correio duas variedades novíssimas de armas “altamente sofisticadas”, desta vez tão habilmente escondidas numa impressora e num cartucho que nenhum dos sofisticados aparelhos de raios X instalados nos aeroportos do mundo, grandes ou não, poderia identificá-las. (As pessoas que enviaram o press release não disseram como, apesar de tudo isso, as mulheres foram descobertas e neutralizadas; restou para nós, na extremidade receptora do canal de comunicação, presumir que, para frustrar essa trama brilhante, só mesmo a custa da percepção sobre-humana e da vigilância incansável dos agentes de segurança; da mesma forma que a descoberta das armas de destruição em massa de Saddam Hussein; e que as “bombas sujas”, as “bombas líquidas” e outros instrumentos de destruição extraordinariamente mortíferos adicionados ao arsenal dos terroristas.) Os primeiros comentários concentram-se no possível impacto desse anúncio dramático sobre as próximas eleições de meio de mandato nos Estados Unidos. Como Obama reagirá a essas notícias? Será que vai enfatizá-las ou minimizá-las? Não sei as respostas e, para ser franco, não estou interessado em encontrá-las ou imaginá-las. De uma coisa, porém, estou certo. Como o New York Times de hoje preferiu expressar: “A descoberta do complô da remessa postal foi um sensato lembrete aos agentes de todo o mundo, de que uma resposta rápida às informações oportunas está na ordem do dia” (como se os agentes precisassem ser lembrados ou, nesse sentido, quisessem ser sensatos…). Uma torrente de medidas de segurança será projetada e logo colocada em prática; novas táticas de espionagem serão desenvolvidas e apoiadas por instrumentos técnicos de produção recente; e se introduzirá um “novo e aperfeiçoado” regime de verificações e buscas em aeroportos. Para pagar por todas e cada uma dessas medidas, uma série de pedidos já enche os registros de encomendas das empresas de segurança; novos rombos são cavados no orçamento nacional, assim como nos fundos destinados a enfrentar necessidades sociais, culturais e educacionais urgentes em cada um deles. Duas bombas “altamente sofisticadas” foram interceptadas. Para apreender o incontável número de réplicas possivelmente produzidas, serão necessários milhões de novos “e até mais sofisticados” aparelhos, e milhares de pessoas para operálos. Como tem acontecido desde a descoberta da escalada autopropelida dos gastos com segurança, que agora se mostram a herança mais seminal e permanente da Guerra Fria, os estábulos serão consertados por um custo equivalente ao dobro do preço do(s) cavalo(s) que fugiu(iram) em disparada. Não só os generais estão sempre prontos a lutar a última guerra vitoriosa. A atual “guerra ao terrorismo” (lamento adotar esse paradoxo, por falta de outro nome que seja aceito e publicamente reconhecido), em alguns aspectos básicos e fundamentais, é uma repetição da Guerra Fria. Os combatentes, as armas e as formas de ação militar mudaram – mas não a doxa estratégica, a lógica e acima de tudo o mecanismo interno de autoexpansão exponencial (creio que essa expectativa estava no foco do plano de guerra de Bin Laden). Essa foi a característica permanente das refregas da Guerra Fria, que não precisavam ser travadas no campo de batalha. Novas armas foram produzidas a um ritmo cada vez mais intenso, não para ser usadas numa ação, mas para tornar inúteis as armas armazenadas pelo inimigo e forçá-lo a substituí-las por outras, obrigando o esvaziamento dos próprios depósitos e levando os fornecedores a reabastecê-los. A história agora se repete. A cada passo cresce a possibilidade de que o fim também se repita. A Guerra Fria, lembrem-se, terminou com um dos contendores do jogo de rearmamento na pobreza e na bancarrota. Implodindo, não explodindo. • Novembro de 2010 • 30 DE NOVEMBRO DE 2010 Sobre por que os americanos não enxergam a luz no fim do túnel Frank Rich escreve no New York Times de hoje, num artigo sob o título eloquente de “O melhor Congresso que o dinheiro pode comprar”: A Grande Depressão pôs fim à última era de ouro, a da década de 1920, e provocou grandes reformas no governo e no mundo empresarial americanos. A Grande Recessão, nem tanto. Semana passada, quando as novas projeções de crescimento do Fed reduziram a esperança de um declínio significativo na taxa de desemprego, o Departamento de Comércio relatou que os lucros das corporações bateram recorde. Esses lucros não estão gotejando em novos empregos ou nos salários mais elevados para os que não ocupam as salas dos executivos. E a perspectiva de uma regulação séria dos que estão no topo do topo – o setor financeiro – é uma fantasia maior no novo Congresso que em seu antecessor. Ele escreveu essas palavras, ao que se presume, para explicar o motivo pelo qual – depois que as últimas eleições puniram o governo Obama, considerado pela opinião unívoca, incitada pela mídia, o principal motivo do sentimento generalizado de que algo vai mal nos Estados Unidos – a proporção dos entrevistados por uma pesquisa do Wall Street Journal, avaliando se os Estados Unidos estão no caminho certo, cresceu de 31% para… 32%. “A despeito do partido ou da política”, conclui Rich, “existe a percepção de um país quebrado e que não se pode consertar.” Como Peter Drucker profetizou alguns anos atrás, poucas pessoas hoje têm esperança de que a salvação vai cair do céu. Na perspectiva de Rich, descarregar a ira popular sobre a maioria democrata do Congresso é ultrapassar, e muito, os limites; como seria de se esperar, nada mudou – o clima não é menos melancólico agora que antes, e ainda se procuram os culpados. Aquela maioria se desfez tão depressa quanto se formara, mas não houve motivos de regozijo. Evidentemente, esse “algo” que “deu errado” nos Estados Unidos precisa ser procurado e (tomara, tomara…) talvez seja encontrado alhures. E, como também é óbvio, esse “algo” não se moveu um centímetro e permanece firme em seu lugar. E onde fica esse “lugar” a ser encontrado e esse “algo” a ser removido? A resposta é uma indústria que agarra, engole e digere um quarto dos lucros das empresas americanas (tendo quase dobrado sua parcela em apenas um quarto de século), em nítida oposição aos outros setores da economia (nas palavras de John Cassidy, outro colunista do New York Times, ela “não projeta, constrói ou vende qualquer coisa tangível”); um setor cuja especialidade é a aquisição maciça e o consumo conspícuo de… políticos. Só o lobby dos seguros, reunido para enfrentar a reforma da saúde de Obama, contribuiu com US$ 86 milhões para um “fundo de aquisições” de tamanho não revelado, mas que a opinião comum considera sem precedentes. De acordo com uma agência noticiosa independente, a Pro Publica, 69 membros do Congresso, e mais centenas de lobistas ligados a grandes empresas, pertencem hoje a uma “Nova Coalizão Democrata”, altamente secreta, descrita pela agência como “uma das máquinas de dinheiro político mais bemsucedidas” (na história americana ou na memória humana?). Na visão de David Axelrod, que também escreve no New York Times, esse gênio não pode ser recolocado na garrafa. Ele pensa, presumo eu, o que a maioria de nós também pensa – porque, seguindo as convulsões de um Capitólio incuravelmente paralisado, ele (como nós) não consegue ver um poder forte e resoluto o bastante para obrigar esse gênio a voltar para seu controle. O que resta é atualizar a profecia de Drucker: não se pode mais esperar que a salvação venha daquele “cume” em que residem os poderes que agora governam os Estados Unidos. • Dezembro de 2010 • 2 DE DEZEMBRO DE 2010 Sobre a guerra que poria fim a todas as guerras Numa das sequências em longa metragem da série de TV Jornada nas estrelas, nós, espectadores, somos convidados a visitar um planeta (chamado bem a propósito “Nimbo”, um halo ou auréola que se acredita emanar das cabeças dos santos, heróis e governantes poderosos) onde o uso de armas é terminantemente proibido. Com o rápido desenrolar da trama, passamos a perceber (ainda que – quem sabe? – possa não ter sido essa a intenção dos cineastas) quantas armas, armas supremas, atualizadas, de ponta e extremamente caras, aquele que as proíbe usa e precisa usar para garantir que a proibição do emprego de armas seja obedecida. Deliberadamente ou não, planejando ou não, os cineastas marcaram uma posição: aquela de que brotam todas as outras antinomias endêmicas ao modo de ser humano, somente humano, caracteristicamente humano – e da qual ele se alimenta. O modo de ser específico e singular dos homens é caracterizado pela recusa de dar as coisas como favas contadas e pelo esforço de torná-las diferentes do que são. Os nomes mais comuns para a combinação desses dois atributos são “ordenamento”, “construção da ordem” ou “pôr as coisas em ordem”: em suma, os seres humanos são “seres que constroem a ordem”. Quando estão engajados em colocar as coisas em ordem (ou seja, ao longo de suas vidas), os homens se ocupam em manipular a probabilidade dos eventos: tornar mais favorável a ocorrência de alguns deles do que seria possível na ausência de esforços seus, enquanto reduzem e, ao que se espera, eliminam de vez a probabilidade de outros. Se eles obtêm êxito, estão “no controle (ou ‘no comando’) das coisas”: não são mais apanhados de surpresa, desprevenidos, forçados a improvisar defesas contra alternações de eventos de que não gostam e que não provocaram. Estar “no comando”, por seu turno, exige serem eles os únicos “agentes livres”, capazes de fazer escolhas e mudar de opinião, ao mesmo tempo reduzindo outros atores potenciais à recitação de versos especificados e à reiteração de movimentos estabelecidos – em essência, à condição de objetos (alvos, sofredores), mas não sujeitos (causadores e planejadores) da ação. Vamos reunir tudo isso e tirar (inescapáveis) conclusões: construção da ordem significa forçar algumas pessoas – cuja exclusão da companhia de atores (nomeados, convidados, autorizados ou involuntários) distingue um ambiente ordeiro que se pretende construir de um ambiente que se pretende ordenar – a aceitar uma condição da qual se ressentem e se engajar em ações para as quais jamais tiveram gosto nem estômago. Sempre que se constrói uma ordem (e isso significa 24 horas por dia, sete dias por semana), aplica-se a força para obrigar alguns a abandonar suas ambições e desistir de agir de acordo com suas preferências; assim é impor-lhes a condição (citando mais uma vez a expressão de Étienne de la Boétie) de “servidão voluntária”. A grande questão, portanto, é se a eliminação do uso da violência para compelir, coagir, desqualificar e incapacitar é de todo concebível como objetivo realista do processo de construção da ordem. Em outras palavras, se – dada a natureza do modo de ser que caracteriza os homens – tal resultado é uma tarefa possível e viável. Ou se, pelo contrário, cada esforço para “eliminar a compulsão e a imposição” constitui a fonte mais profusa e inexaurível dessas mesmas compulsão e imposição. Joanna Tokarska-Bakir relembrou pouco tempo atrás a observação de Arthur Koestler, de que uma característica comum às utopias altruístas é a crueldade perpetrada em nome do amor, condenando ou autorizando as pessoas a fazer o que as repugna e revolta. Tais utopias exortam o assassinato com a finalidade de acabar com os assassinatos; chicotear pessoas para ensiná-las a recusar o chicoteamento; deixar de lado os escrúpulos em nome do cumprimento do supremo mandamento moral; e despertar, alimentar e fomentar o ódio entre os seres humanos, em nome do amor pela humanidade. Koestler não foi o único a expor essas misturas tóxicas. Longe disso: a necessidade delas (de fato, sua inevitabilidade) já estava estabelecida com firmeza na sabedoria popular, assim como na prática do porta-voz mais devotado, ávido e de estilo empresarial dessa sabedoria, desde a Antiguidade: si vis pacem, para bellum. Quer a paz? Prepare-se para a guerra. Os que estão preparados são os vencedores. Os que acabaram perdendo não estavam obviamente preparados. CQD (como se queria demonstrar). Quem ousaria contestar? Quem o desejaria? Decerto não os responsáveis por conduzir as nações que presidiam o mundo da modernidade – esse admirável (e belicoso) mundo novo clamoroso em relação aos vencedores, mas mudo no que respeita aos derrotados. O mundo que promete usar a violência (perdão, a coerção legítima) só para pôr fim à violência de uma vez por todas (coerção ilegítima). Universo a ser feito traçando-se uma linha clara e indiscutível entre violência (de agora em diante significando coerção ilegítima) e coerção legítima; e assegurando que essa linha se mantenha intransponível e seja observada com rigor: por cortesia, claro, da coerção legítima – recurso disponível somente para aqueles engenhosos o bastante para estabelecer a linha e mantê-la intacta. O próprio Koestler, no primeiro volume de sua monumental autobiografia, observa que em 5 de setembro de 1905, dia de seu nascimento, o Times de Londres tomou-se de lirismo e louvou a vitória do Japão sobre a Rússia.a Seja quem for, a pessoa que escreveu o editorial do Times deve ter ficado impressionada e desejosa de que seus leitores partilhassem de seu entusiasmo: os exemplos do Japão, segundo ele, “indicam uma ou duas direções pelas quais isso talvez tenda a moldar o pensamento e o caráter no mundo”. E faz o possível para explicitar como iriam, deveriam e teriam de ser esse pensamento e esse caráter tão bem-vindos: O grande final de todo esse treinamento foi a subordinação do indivíduo à família, à tribo e ao Estado. … Ele ensina que [o principal dever do homem] é seu dever coletivo em relação aos diferentes grupos sociais nos quais nasce. Desde os tempos de menino ele é treinado, de modo contínuo e cuidadoso, para cumprir esse dever. Aprende não apenas a disciplinar suas ações e características, mas seus próprios pensamentos, sentimentos e impulsos, em obediência ao dever. “Era essa a lição”, comentou Koestler com sarcasmo, “que, na sua [do autor do editorial] opinião, o Ocidente, com seu individualismo excessivo, devia aprender com a ‘disciplina monástica’ do primeiro Estado totalitário moderno.” Para quê? Em tese, para retesar seus próprios músculos a fim de atingir o nobre propósito que a história havia colocado sobre seus ombros: a missão do homem branco de extirpar todos os resíduos de barbarismo e abrir caminho para o triunfo final da civilização sobre a selvageria, do progresso sobre o atraso, do poder sobre a impotência. As atrocidades mais pavorosas, sangrentas e chocantes da história foram cometidas em nome dos objetivos mais elevados e nobres – e, por esse motivo, elogiáveis e fascinantes. Foi em nome da salvação de suas almas que hereges e bruxas foram queimados em fogueiras, e em nome do estabelecimento do Reino de Deus na Terra que pagãos foram passados a fio de espada e tiveram seus lares incendiados. Foi para tornar redundantes o Estado e seus órgãos de repressão que Stálin proclamou a necessidade de desencadear, desenvolver e aperfeiçoar, de modo perpétuo, a repressão do Estado. Foi para promover e garantir o domínio da raça alemã sobre o mundo que Hitler enviou os homens jovens e velhos da Alemanha para a morte, fazendo com que seus lares fossem destruídos e suas famílias dizimadas. É em nome da coexistência pacífica com os vizinhos de Israel que as tropas israelenses recebem ordens de demolir e arrasar os lares dos palestinos, erradicar suas plantações de oliveiras e destruir seus meios de subsistência. Foi para promover a causa da democracia que a aliança ad hoc de potências democráticas enviou suas forças expedicionárias para bombardear e destruir as terras em que os inimigos da democracia se ocultavam, presumia-se que se ocultassem ou onde se suspeitava que estivessem procurando abrigo. O aspecto mais triste de tudo isso é que todos nós consideramos quase impossível conceber outra forma de proceder. Mal conseguimos imaginar a criação sem destruição. E tendemos a ver a destruição como um preço aceitável a ser pago pela criação. Coçamos a cabeça em descrença quando alguém sugere que possa ser de outra forma. Deixamos escapar uma ou duas lágrimas quando ouvimos falar das “vítimas inocentes”, das “baixas colaterais” do avanço para uma vida melhor, da marcha para o progresso ou da guerra santa contra os fomentadores de guerras; tudo somado, do movimento em direção a um mundo que não mais permita a violência nem precise dela. Mas então sempre podemos nos consolar lembrando que não se faz omelete sem quebrar alguns ovos. E que, por enquanto, não chegou a nossa vez de encarnamos esses ovos. Conta-se que perguntaram a Michelangelo como conseguia transformar suas visões nas extraordinariamente belas e perfeitas esculturas que o tornaram famoso. Também conta-se que ele teria respondido que seu método era a própria simplicidade: apenas pegava um bloco de mármore e o cortava, jogando fora as partes desnecessárias. Todos nós tentamos fazer como Michelangelo, seguindo sua técnica com o material (não importa qual) com que esculpimos nossos projetos. Às vezes é mármore. Às vezes é carne humana. Não encontramos outro procedimento. Na verdade, nem procuramos um método de forma entusiástica. Por ora, parece que paramos até de procurar. 4 DE DEZEMBRO DE 2010 Sobre ferir moscas e matar pessoas Slavenka Drakulic, infatigável jornalista e ensaísta croata, documentou as vidas e os feitos dos criminosos levados ao Tribunal Internacional de Haia na sequência da guerra civil que dividiu o país (e também sua população) conhecido durante setenta anos pelo nome de Iugoslávia. Ela compilou os resultados de sua investigação singular, feita ao vivo, num livro intitulado They Would Never Hurt a Fly (2004). Uma das reportagens reúne as reflexões de uma testemunha num dos primeiros julgamentos do tribunal, cujos réus eram Dragoljub Kunarac, Radomir Kovac e Zoran Vukovic, respectivamente, um motorista, um garçom e um auxiliar de vendas, três sérvios da Bósnia, da cidadezinha de Foca. Tendo assistido às audiências, Drakulic relata seus sentimentos: se ela tivesse encontrado com algum deles antes da guerra, não imaginaria que fosse uma pessoa brutal. Eram apenas três sujeitos comuns, do tipo que ela encontra todos os dias. Mas houve a guerra, e agora sabemos que os três foram considerados culpados de tortura, sequestro, estupro e assassinato a sangue-frio. Isso é possível? Procura-se em vão algum sinal evidente de perversão que possa revelar o potencial para o assassinato. Em vão, em vão! E deve haver uma multiplicidade de casos como esses, já que, durante aquela guerra, 60 mil mulheres foram violentadas e 200 mil indivíduos foram mortos. Centenas de milhares de pessoas deviam acreditar que tinham razão para fazer tudo isso… Outro réu que enfrentou o tribunal, Goran Jelisic, sentenciado a quarenta anos de prisão por matar treze homens e mulheres detidos na delegacia de polícia que comandava, “parece alguém em quem se pode confiar”. Um homem que “em geral ajuda pessoas mais velhas a atravessar a rua, se levanta num bonde para oferecer o lugar a um inválido, deixa outras pessoas passarem à sua frente na fila do supermercado. Ele seria capaz de devolver uma carteira perdida a seu legítimo dono. … Grande amigo, vizinho confiável, genro ideal.” Seriamente, não se encontraria o menor traço de patologia em sua vida no pré-guerra. Foi um rapaz quieto, na verdade bem tímido, retraído, mas pronto a ajudar os outros. Bem, a partir de 7 de maio de 1992, dia em que matou sua primeira vítima, e por dezoito dias consecutivos, Goran Jelisic, 23 anos de idade, reencarnou como uma besta sádica. Prisioneiros sobreviventes lembram-se dele andando e atirando como se estivesse drogado ou em transe. Seu olhar congelava as vítimas antes que a pistola as matasse. Ele as escolhia aleatoriamente (embora não fosse seletivo, em particular: matou um velho por jogar uma garrafa no chão e um jovem por ter se casado com uma moça sérvia), mandava que se ajoelhassem e colocassem a cabeça sobre um bueiro de esgoto, e então pressionava a arma contra seus pescoços. Às vezes chamava Monica, sua namorada, para assistir e admirar sua eficiência. Tudo isso diariamente, por dezoito dias… Por quê? Qual era o segredo? O genro de Slavenka Drakulic, também croata, em vários aspectos era apenas um jovem como Jelisic, tal como ele adepto da pesca. Mas, em contraste com este, que se apresentou como voluntário para a recém-formada polícia croata, foi para o Canadá antes que se iniciasse a guerra civil. “Poderia ter acontecido o contrário?”, pergunta Drakulic, tentando desesperadamente resolver o mistério. “Meu genro teria sido voluntário na polícia croata?” “Foi a primeira vez em sua vida que Goran Jelisic teve poder. … Deramlhe uma arma de fogo e lhe disseram para usá-la livremente”, pondera ela. E acrescenta: Ainda acho que, embora de fato ele se tenha transformado em opressor, num sentido mais profundo foi uma vítima. Ele e toda a sua geração foram enganados. Abraçaram a ideologia nacionalista e nada fizeram para interromper a guerra que dela nasceu. Eram muito oportunistas e estavam amedrontados demais para se recusar a seguir seus comandantes. Antes de 7 de maio de 1992, qualquer um que pousasse os olhos sobre um jovem simpático e bem-apessoado de nome Goran Jelisic poderia jurar que esse homem seria incapaz de ferir uma mosca. 16 DE DEZEMBRO DE 2010 Sobre Jerusalém versus Atenas revisitada Deus é o protótipo do “fato social”. A se acreditar em Émile Durkheim, existe da mesma forma que todos os outros fatos sociais: não pode, por um simples esforço do pensamento, ser removido (nem, para o que nos interessa, inserido), desaparecer (ou aparecer) em função de nosso desejo nem ser atacado (ou defendido) com base na razão. Deus “existe” porque se impõe e brota sem ser convidado nem convocado – piscando de cada espaço em branco, de cada non sequitur na cadeia de explicações e na sequência da compreensão, se esgueirando em cada vão da série de atos que separa o desejo da realização e a expectativa das coisas tal como elas são, recusando-se firmemente a sair do lugar. Deus existe enquanto existe a incerteza existencial humana, e isso quer dizer para sempre. O que significa que Deus vai morrer com a espécie humana, nem um segundo mais cedo. “Deus” é outro nome que tendemos a dar à prática da insuficiência humana: nossa ignorância (incapacidade de compreender e, portanto, de saber como prosseguir) e incapacidade (impossibilidade de agir com sucesso) – assim como do impacto conciso de ambas, nossa humilhação (o golpe em nossa autoconfiança e autoestima). Mas este não é o único nome: ele tem competidores, entre os quais natureza, destino ou uma conspiração de forças cegas, surdas e mudas que tendem a ser mais importantes que as demais. O que une todos os nomes é a sugestão de supra-humanidade das entidades que designam; e, por implicação, a incapacidade humana de apreender sua lógica (ou melhor, a capacidade dessas entidades de ignorar e violar a “lógica” tal como os seres humanos a conhecem); e a incapacidade do homem de atingir os objetivos que estabelece – sugerida pela expressão popular de que o homem propõe, mas Deus é quem dispõe (em suma, a capacidade das entidades de ignorar, confundir e contrariar as intenções humanas). Em face dessas entidades, mendigar favores ou piedade é o único expediente a que os seres humanos podem recorrer, embora não lhes caiba decidir se seus suplícios ou preces serão ouvidos ou aceitos. As entidades são “decisionistas” no sentido da condição atribuída por Carl Schmitt aos soberanos humanos: no sentido de não dever explicação alguma a seus súditos, e muito menos desculpas. O próprio Schmitt não tinha dúvidas de que atribuir aos governantes seculares o status de decisionistas equivalia a deificálos – situá-los entre os deuses. A desrotinização das decisões dos governantes e sua isenção relativa às normas impostas por lei e voltadas para a regularidade, monotonia e repetição são, aos olhos de Schmitt, os equivalentes políticos dos milagres de Deus na área da religião. Os deuses são aqueles que não devem nada a seus subalternos – em particular, nenhuma explicação de suas divinas ações ou inações em referência a uma regra de que elas constituem a aplicação. Deuses são aqueles a que se é obrigado a ouvir sem ter o direito de ser ouvido. Ser Deus significa ter o inalienável e indivisível direito ao monólogo. Política e religião operam no mesmo espaço: o da incerteza humana. Visam a conquistar, colonizar e anexar o mesmo território, vacilando sempre entre aliança, competição e inimizade. Aliadas ou inimigas, miram o mesmo eleitorado: pessoas gemendo sob o peso de uma incerteza que transcende sua capacidade singular ou coletiva de compreensão e ação terapêutica. Aliadas ou inimigas, tendem a aprender e tomar emprestados uma à outra seus expedientes e estratagemas. E ambas almejam o direito ao monólogo. Daí uma permanente – latente e por vezes manifesta – tentação e inclinação a “religionalizar a política”. A política está sendo “religionalizada” sempre que oscila no sentido do padrão schmittiano de concentrar-se em “apontar e nomear um inimigo” como função básica do administrador político; e quando as políticas e seus objetivos declarados são acomodados na fraseologia do absolutismo, como por exemplo na linguagem de George W. Bush: a linguagem de uma batalha final entre o bem e o mal, o certo e o errado – o “meio-termo” é excluído a priori, assim como o diálogo com o inimigo ou a construção de algum tipo de ponte sobre o abismo entre “nós” e “eles”. O modelo schmittiano de poder político soberano foi feito sob medida para o Estado ditatorial, tirânico ou totalitário – e à sua imagem. Muito provavelmente, sua súbita ressurreição e sua crescente popularidade em ciência política foram ativadas pela acumulação gradual, mas contínua, de sintomas da inaptidão cada vez mais evidente dos regimes democráticos (de há muito vistos como alternativa a toda e qualquer variedade de Estado autoritário) para lidar com as atuais transformações do ambiente social em que operam: em particular, a condição emergente da “diferença” (ou, mais especificamente, do polimorfismo combinado com o policentrismo) como atributo permanente e inseparável tanto da política quanto da vida social. A conversa e o diálogo, com os quais a democracia está comprometida desde o início, como princípios reguladores das tomadas de decisão públicas, costumavam ser vistos como um procedimento provisório que levava ao consenso; no memorável ataque que faz à “comunicação distorcida”, Jürgen Habermas presume que um polílogo aberto e ilimitado funciona por si mesmo: ele é um meio, não um fim. Foi um procedimento que distinguiu a democracia dos regimes autoritários; um modo mais humano, mas também, afinal, mais efetivo para se atingir uma unidade da vontade popular, compartilhada com outros sistemas políticos. Esse procedimento era considerado mais humano e portanto preferível graças ao emprego da liberdade, e não da servidão e do conformismo, como motor principal de seu movimento rumo ao consenso; e era considerado mais eficaz porque (como se presumia de forma tácita) se baseava na comunicação não distorcida (ou seja, irrestrita, aberta, livre de coerção e de qualquer interferência dos poderes constituídos) – uma comunicação que, em algum estágio, deve encerrar toda controvérsia sobre preferências e escolhas carregadas de valores. A suspeita de que pudesse haver controvérsias resistentes à reconciliação, tais como as que surgem de algo mais que uma incompreensão unilateral ou recíproca (e, portanto, de um obstáculo do tipo que não pode ser removido por um longo, dedicado, sério e sincero debate sobre suas diferenças, por debatedores de boa vontade), não aparece no modelo de comunicação não distorcida; também não apareceu nos modelos de democracia da (agora antiga) era da profana trindade constituída por TEN (Território, Estado e Nação). A situação presente – em que numerosas questões divisionais se revelam traços permanentes da vida que compartilhamos, imunes aos argumentos e teimosamente inegociáveis, e em que inúmeras controvérsias parecem ter de continuar sem conclusão, em vez de se suavizar e abafar no curso de um número finito de sessões em torno de uma mesa de negociações –, essa situação total e verdadeiramente nova, pegou de surpresa e despreparadas a teoria e a prática políticas. A nova situação em questão é o produto conjunto de dois acontecimentos relativamente recentes e decerto inter-relacionados: um planeta policêntrico e o caráter cada vez mais diaspórico das populações que se abrigam no interior das fronteiras da maioria de suas unidades estatais ou quase estatais. Os dois acontecimentos assinalaram o declínio das hierarquias planetárias e interestatais – tanto espaciais quanto temporais; em termos espaciais, de uma hierarquia de culturas simultâneas; em termos temporais, do pressuposto da existência de uma evolução unilinear da cultura. Num sentido prático, o desaparecimento dessas duas hierarquias que se apoiavam mutuamente torna quase impossível o imaginaire construído com a ajuda de oposições como superioridade versus inferioridade e “progressista” versus “atrasado” ou “retrógrado”. Todos esses termos parecem cada vez mais destituídos de sentido, e as tentativas de aplicá-los, em geral, são bastante contestadas. Nessas circunstâncias, as atuais relações entre culturas, credos ou modos de vida tendem a ser reconhecidas como arranjos temporários, renegociáveis e voláteis; de maneira mais correta, a direção de suas mutações futuras parece tudo, menos preordenada e em geral previsível. Assim, parecemos estar uma vez mais confrontando a antiga alternativa Jerusalém-Atenas: ou seja, a escolha entre projetos monoteístas ou politeístas de credos religiosos e fórmulas políticas. Com poucas exceções, como o Japão, onde uma pessoa não vê incongruência entre frequentar santuários xintoístas em ocasiões específicas, casar-se segundo ritos cristãos e ser enterrada por um monge budista, a maioria das populações do planeta tem vivido por muitos séculos à sombra de três cultos monoteístas, todos eles originários de Jerusalém. É provável que essa coincidência histórica se deva a nosso reflexo condicionado, quase universalmente compartilhado, de colocar um sinal de equação entre religiosidade e monoteísmo; o que agora tendemos a identificar como “religiosidade como tal” também deriva do legado de Jerusalém. Esse reflexo, contudo, não se encaixa bem na nova realidade plural de deuses ao mesmo tempo fora e dentro das fronteiras territoriais de qualquer unidade estatal/nacional. Os deuses, da mesma forma que seus devotos, se espalharam pelo mundo numa rede de diásporas cruzadas e superpostas. Vivem dia a dia em estreita e mútua proximidade – e, não importa o quanto tentem, não podem ignorar a presença um do outro e evitar várias formas de interação e intercâmbio. Os ambientes em que a maioria de nós hoje age são, para todos os fins e propósitos práticos, rotineiramente politeístas, ainda que os três maiores jogadores tendam a se aferrar com devoção às suas pretensões monoteístas. Nossa situação, após vários séculos de domínio vigoroso, coercitivo e por vezes sangrento do princípio do cuius regio, eius religio (o governante estabelecendo a religião), está se tornando cada vez mais reminiscente do estado de coisas que precedeu a substituição do panteão romano pelo da Igreja da Europa cristã e seus postos avançados, um panteão unificado, indivisível, inflexivelmente monoteísta. Ulrich Beck, em seu mais recente estudo, vigoroso e provocativo, intitulado Der eigene Gott (traduzido para o inglês sob o título A God of One’s Own), caracterizou sucintamente a realidade emergente como uma “confrontação mundial involuntária com outros estranhos”.1 Ao longo da crescente diasporização dos habitantes do planeta e da consequente pluralidade e multiplicação constante de deuses coabitando no interior dos “mundos de vida”, outra mudança apresenta-se no horizonte e ganha rápido impulso – movimento fatal para o destino da religião, da política e do relacionamento entre ambas. Essa mudança, assinalada no título do livro de Beck, é resultado de outro aspecto da atual “modernização parte 2” (ou, na terminologia que prefiro, da passagem à fase “líquida” da condição moderna): um processo progressivo de individualização, acelerado e cada vez mais intenso (jogando sobre os ombros do indivíduo um número cada vez maior de funções até há pouco desempenhadas e guardadas com ciúme por comunidades assistidas [power-assisted] – incluindo, em particular, a tarefa da identificação, agora transformada no dever de autoidentificação, com ênfase no prefixo “auto”). Como princípios essenciais da individualização, Beck aponta “destruir a tradição, a necessidade e a possibilidade da tomada de decisão individual e, com esse pressuposto, um horizonte (mais ou menos limitado) de opções, assim como o costume de responsabilizar-se pelas consequências”. Com tais princípios em operação, “a individualização da crença simplesmente tem de ser aceita como realidade”.2 Um “Deus próprio” é um deus de uma espécie totalmente nova: um deus do tipo “faça você mesmo”. Não institucionalmente composto e promovido, mas um deus “da base” (relacionado com a variedade antes predominante, da mesma forma que as “redes” líquidas modernas se relacionam com as comunidades anteriores, sólidas modernas). Não um Deus recebido, mas inventado – e inventado individualmente, mesmo que isso seja feito a partir de retalhos cortados, de novo individualmente, das ofertas préfabricadas disponíveis e recompostos numa totalidade tecida pelo indivíduo, segundo um projeto individualmente esboçado, usando instrumentos, recursos e habilidades individuais, e seguindo a lógica das preocupações e prioridades também do indivíduo. Um “Deus próprio”, como todos os deuses, é um derivado, uma emanação ou projeção da insuficiência – mas, em contraste com os deuses institucionais, a insuficiência projetada é pessoal, individualmente sofrida; algo a se esperar na era da “política de vida” (tomando de empréstimo um termo de Giddens), que tem como marca a responsabilidade individual pela solução dos problemas da vida e pelas consequências das escolhas que nela fazemos. A “insuficiência” numa era com essas características confronta o indivíduo com uma forma de inadequação pessoal repetidas vezes revelada, sempre que justaposta à grandiosidade das tarefas a serem encaradas (sejam elas atribuídas ou assumidas): a dificuldade e, ao que se suspeita, a impossibilidade de entender, medir e manejar os desafios impostos pela condução da política de vida no cotidiano (que dirá de reagir de modo adequado). O Deus da Igreja congregacional reflete a insuficiência da espécie humana (ou de um de seus segmentos comunais) quando confrontada com os poderes aterrorizantes, incontroláveis e imprevisíveis da natureza e do destino; já o “deus próprio” reflete a insuficiência – ignorância, impotência e humilhação que ela provoca em conjunto – do indivíduo abandonado a seus próprios recursos dolorosamente inadequados, enquanto é comandado e pressionado a lidar por si mesmo com os poderes assombrosos das contingências produzidas no plano social. 17 DE DEZEMBRO DE 2010 Sobre por que os estudantes se agitam de novo Mais uma vez, alguns jornalistas italianos me enviam perguntas. De novo elas foram motivadas pelo mais recente “evento extraordinário” a chegar às manchetes, porém agora, ao contrário da penúltima, não estão preocupados com o despejo e a expulsão dos roma, mas com os protestos estudantis nas ruas. Perguntam: “Nesses últimos dias, por toda a Europa, os estudantes estão protestando. Esses jovens são chamados de ‘geração zero’: zero oportunidade, zero futuro. Como é possível reconstruir o futuro desses jovens? Que modelo de sociedade pode proporcionar esperança a pessoas com vinte anos?” Alguns de meus entrevistadores estavam claramente inquietos com o grau de violência que caracterizou as manifestações dos estudantes: “Alguns provocadores começaram, mas os jovens não os isolaram. Haverá entre os estudantes uma espécie de ódio profundo? Que semelhança ele tem com o ódio que conhecemos do passado? Que motivos podem desencadeá-lo?” Lançando mão da melhor das minhas habilidades, tentei arriscar algumas respostas. Na verdade, há muito som e fúria, o que significa uma mistura explosiva de medo justificado do futuro e busca desesperada de uma válvula de escape para despejar a ansiedade e a irritação daí resultantes. Sucessivas explosões tornam-se ainda mais prováveis porque a população estudantil é dia a dia aglomerada numa concentração de campi (enquanto concentrações comparáveis de trabalhadores da indústria são cada vez mais raras e evitadas): a intensidade do ódio, o grau de inflamabilidade e a inclinação para a violência tendem a crescer com o tamanho e a densidade da multidão. Uma vez condensado, o mais gentil e pacífico dos indivíduos pode amalgamar-se e dissolver-se numa massa furiosa. No entanto, é preciso tomar cuidado para não tirar conclusões precipitadas e resistir à tentação de fazer extrapolações fáceis. É muito cedo para concluir. Contudo, deveríamos fazer o possível para não esquecer que a lição espetacular da atual inquietação estudantil precisa ser objeto de reflexão profunda, e depois ser aprendida e absorvida. Infelizmente, esse esquecimento pode começar de imediato, tão logo as demonstrações de rua cheguem ao fim, e seu “valor de notícia” não servir mais para aumentar os índices de audiência da TV. A tendência a esquecer e a velocidade alucinante do olvido infelizmente parecem marcas indeléveis da contemporânea cultura líquida moderna. Por causa dessa angústia, tendemos a deslizar de uma explosão de raiva popular para outra, reagindo com nervosismo e superficialidade a cada uma delas separadamente, quando acontecem, em vez de tentar enfrentar seriamente as questões que elas sinalizam. A atual condição dos estudantes (futuros graduados que, ao ingressar nas universidades alguns anos atrás, eram recebidos com a promessa e a expectativa de bons empregos, uma vez armados de diplomas universitários e diante do mercado de trabalho) é outra versão do destino lamentável de milhões de compradores de imóveis residenciais igualmente frustrados; a estes se prometeu um aumento contínuo nos valores imobiliários e, portanto, o pagamento sem problema nem esforço de suas hipotecas e também dos juros acumulados. Em ambos os casos, presumiu-se a abundância baseada numa disponibilidade ilimitada (de oportunidades de emprego num dos casos, de crédito no outro), e acreditou-se que ela ia durar indefinidamente. Mais pessoas compraram casas com empréstimos cujo pagamento estava acima de suas possibilidades – e mais pessoas entraram nas universidades sonhando com empregos de um tipo com que não poderiam sonhar se não tivessem um diploma. Como ficou evidente agora, as garantias apregoadas com estrépito por bancos, empresas de cartões de crédito, marqueteiros e filósofos neoliberais, assim como por praticantes da política do neoliberalismo que fluíam com abundância do otimismo oficial (autorizado!) para o ânimo do público, eram enganosas e em grande parte desonestas. Nem o volume de bons empregos na City de Londres e nos postos avançados das empresas de tecnologia de ponta, nem a inflação dos preços imobiliários e os suprimentos de crédito ao consumidor são (ou de fato poderiam ser) infinitos. Encheu-se a bolha além de sua capacidade, e ela tinha de explodir, como logo explodiu. Os estudantes estão entre as vítimas mais frustradas e irritadas dessa explosão. São também as mais ativas e resolutas: tentam lutar contra o prejuízo e seus responsáveis. A combatividade, a disposição para a ação coletiva e a determinação de aguentar firme, ombro a ombro, são muito mais fáceis para pessoas treinadas a se reunir diariamente em salas de aulas, como é o caso dos estudantes, do que para as vítimas dispersas e em última instância solitárias da retomada de residências; ou para os milhões de trabalhadores de escritórios e de fábricas que há pouco se tornaram redundantes, os quais se acostumaram a lamentar e a lamber suas feridas na solidão – cada um por si. Pela primeira vez em décadas, toda a produção anual de graduados nas universidades enfrenta mercados de trabalho cheios e saturados de candidatos a empregos que jamais serão contratados, e, portanto, a perspectiva do desemprego a longo prazo ou a necessidade de aceitar funções bem abaixo de suas capacidades e ambições: ocupações extraordinariamente frágeis, informais e não confiáveis, sem planos de carreira embutidos. O tipo de situação em que os graduados deste ano se encontram e os do ano seguinte certamente se encontrarão não foi confrontado durante tempo suficiente para que aprendêssemos algo sobre suas consequências plausíveis; mas, no passado, o inchaço das fileiras de desempregados e jovens instruídos frustrados costumava ter como corolário o aumento da agressividade política extremista. Também era o presságio de graves problemas para a democracia. Depois desta, os entrevistadores fizeram uma série de perguntas relacionadas à necessidade de uma reforma (“renovação”, como disse um jornalista) universitária e à possibilidade de agitação estudantil caso essa demanda não seja atendida. A isso eu respondi o que se segue. Qualquer que seja a “renovação” que as universidades possam exigir, ela vai levar muito mais tempo do que compor respostas ad hoc para os desafios apresentados pelo atual protesto dos estudantes. As duas tarefas seguem escalas temporais completamente diversas. Os distúrbios estudantis têm duração relativamente curta, mas suas consequências (ou melhor, as consequências da inquietação dos estudantes é apenas um sintoma oportuno) serão duradouras; e é com esses efeitos que deveríamos ficar seriamente preocupados. Refletir sobre as possíveis maneiras de escapar dessa condição, para não falar na implementação dos resultados de nossas reflexões, vai demandar muito mais engenhosidade e esforço árduo e prolongado do que está implícito nos palpites improvisados e instantaneamente oferecidos. Um pensamento, porém, nos ocorre de imediato: todos os mercados de consumo são conhecidos por ter o hábito de passar do limite: os mercados têm o costume de contar com uma demanda muito maior do que aquela que são capazes de encontrar ou invocar – mas também têm o hábito de tentar persuadir e seduzir com seriedade muito mais clientes que aqueles para os quais os produtos oferecidos são úteis de verdade. Os mercados de consumo são altamente eficazes, mas também pródigos demais, como mecanismos de “satisfação de necessidades”: sabe-se que produzem muito lixo. Para atingir um alvo, precisam enchê-lo, inundá-lo de balas! Em nossa sociedade de consumidores, o “mercado da educação” não tem sido uma exceção à regra. A maioria dos países tem experimentado nas últimas décadas um crescimento sem precedentes em termos do número de instituições de educação superior e do volume de seus alunos. Esse desenvolvimento tende a resultar numa desvalorização da educação universitária e dos diplomas de curso superior. Além disso, como Gresham e Copérnico descobriram vários séculos atrás, numa competição de livre mercado, a moeda inferior (incluindo as fraudulentas ou forjadas) tende a deslocar e afinal marginalizar ou pressionar a variedade superior. Nenhum desses processos deixaria de afetar as universidades. Engajadas, em função de sua própria atração por estudantes, numa fútil caçada por modismos insinuados e propagados pelo mercado, cada vez mais voláteis e ilusórios, as universidades perderam de vista as tarefas para as quais elas, e somente elas, foram criadas – e que estão capacitadas a executar; ocupadas em tentar atender as necessidades ou caprichos de vida curta de uma “economia” guiada pelos negócios, as universidades estão perdendo muito de sua capacidade de realizar essas tarefas – ainda que continuem, em ocasiões festivas, a lhes prestar floreados tributos. Finalmente, havia algumas perguntas sobre igualitarismo versus democracia. Respondi como se segue. Não posso dizer se há mais meritocracia na Itália que em outros lugares. A única coisa sobre a qual posso falar é que a ideia de “meritocracia” tem sido vista já há algum tempo como argumento essencial nas atuais plataformas políticas, em que a “imparcialidade” tende a substituir a noção de “justiça”, a “equidade” toma o lugar da “igualdade de padrões de vida”, e o princípio, a promessa e o critério de alocar recompensas segundo o mérito excluem o tema da satisfação das necessidades. É muito difícil que tudo isso seja questionado, mas o problema é que os significados de “recompensa” e “mérito” infelizmente são elementos pouco definidos e contestados nessas plataformas políticas. Hoje, as “recompensas” são reduzidas à remuneração monetária e aos ornamentos associados à posição social, enquanto o “mérito” é calculado pelo preço de mercado relativo atribuído ao tipo de serviço a ser prestado pelas pessoas às quais essa posição foi concedida. O pleonasmo daí resultante (que, como todos os pleonasmos, pressupõe secretamente o que pretende de forma evidente provar) mascara o relativismo (na verdade, a possibilidade de questionar) das duas definições, assim como os tácitos pressupostos sectários que as sustentam: o que a prática da “meritocracia” pretende criar e promover não é muito mais que um verniz ideológico sobre a realidade social já existente – e essa realidade deve sua gênese mais aos jogos aleatórios das forças do mercado que a alguma política deliberada e eticamente inspirada. Para resumir uma longa história, vamos refletir sobre qual é a alternativa: as quantias de seis dígitos são pagas em reconhecimento pelo mérito, ou este é que é presumido com base nas quantias de seis dígitos que têm sido pagas? E a segunda pergunta: será que todo mérito e toda recompensa vêm com etiquetas de preço? Entre as pessoas atingidas, os jovens, alimentados com um monte de promessas sem até agora registrar qualquer experiência pessoal para submetê-las à prova, são os mais vulneráveis. Os que agora estão entrando no mercado de trabalho foram apanhados de surpresa e despreparados. Por esse motivo, seu primeiro encontro com a realidade é muito doloroso, desfavorável e desconcertante. As pessoas mais velhas têm memórias desagradáveis, mas também certo conhecimento e alguns hábitos adquiridos a que podem recorrer; assim, são capazes de tratar as atuais dificuldades como espasmos temporários, anomalias que em algum momento serão curadas, permitindo que as coisas “voltem ao normal”. Além disso, muitos têm alguma espécie de “segunda linha de trincheiras” preparada para uma ocasião como essa. Os mais jovens, não: quando se defrontam com a necessidade de dar um longo e arriscado salto da juventude protegida para a independência da vida adulta sentem suas pernas procurar inutilmente o chão – e podem com facilidade presumir que essa condição é a norma da vida adulta na qual estão ingressando. Se este for o caso, a ideia é apavorante. No final, nosso tema mudou para o aumento assustador do desemprego, tanto na Itália quanto no resto da Europa. Fizeram-me a pergunta: “Poderá haver uma sociedade pós-trabalho?” A resposta não me veio de improviso. Nós, pelo menos os habitantes da parte “desenvolvida” do planeta, estamos vivendo um longo e tortuoso período de desemprego em massa; e, para piorar ainda mais, ele é acompanhado por uma severa redução na ajuda proveniente do seguro e da assistência ao desemprego – provocada pelas enormes dívidas que nossos governos impuseram à atual e às futuras gerações em sua luta para salvar os bancos da insolvência e os acionistas dos prejuízos. Ainda não temos plena consciência do volume das dificuldades e da disfunção social que o desemprego crescente e prolongado tende a produzir para as pessoas diretamente afetadas pela redundância, assim como para nós. O preço da efêmera orgia do “aproveite agora, pague depois”, cobrado na moeda de vidas arruinadas, desperdiçadas e perdidas, ainda pode se revelar imenso. Falar de “pós-trabalho”, contudo, não faz sentido. Mesmo que o “padrão de vida consumista” venha a se extinguir e ser esquecido, os seres humanos não vão parar de ser consumidores, e o que é para ser consumido deve primeiro ser produzido. Não haverá uma era “pós-trabalho”, exceto após a extinção da espécie humana. Em vez disso, o que muda depressa é a “geografia do trabalho”. Os empregos hoje estão migrando para países em que há poucas leis e regulamentos restringindo a liberdade dos capitalistas; já os trabalhadores são compelidos a se ocupar em troca de salários de sobrevivência ou ainda menores; ao mesmo tempo, se veem privados tanto da assistência comunal quanto das organizações de autodefesa – são também despojados de qualquer poder significativo de barganha. Não admira que as últimas estatísticas mostrem que, enquanto a distância entre economias “desenvolvidas” e “emergentes” diminui, a distância entre ricos e pobres nos países “desenvolvidos” de novo aumenta, aproximandose cada vez mais dos abomináveis padrões de desigualdade que caracterizaram o início da era capitalista. 18 DE DEZEMBRO DE 2010 Sobre respeito e desdém O respeito pertence à família das atitudes morais e, tal como os outros membros desse grupo, sua natureza necessária ou obrigatória não pode ser discursivamente “provada”. O respeito pelo outro é um valor; assim como outros valores, só se pode elaborar uma argumentação a seu favor e tentar convencer os ouvintes de seus méritos apelando para sua consciência moral, a fim de persuadi-los a adotá-lo e aplicá-lo ao escolher sua própria atitude para com os outros seres humanos. Nesse trabalho de persuasão não se pode contar com argumentos empíricos nem credenciais de autoridade, e tampouco recorrer a eles. Se, por exemplo, alguém incitar uma pessoa a respeitar outros seres humanos alegando que a maioria tende a aprovar essa atitude, não estará invocando a consciência moral do ouvinte, mas seu instinto gregário. Se alguém tentasse convencê-lo de que o ato de respeitar os outros seria recompensado com o respeito destes, o apelo seria a uma preocupação egoísta com os próprios ganhos: um tipo de preocupação que dificilmente poderia coincidir ou ser compatível com um impulso moral. Por outro lado, se alguém exige respeito baseando-se na ideia de que demonstrá-lo é uma ordem que só pode ser desobedecida por um preço elevado e inaceitável para o desobediente (por causa do diferencial de poder que separa quem dá a ordem de quem a recebe), em vez de sustentar o argumento em termos do valor intrínseco do respeito, estará invocando o instinto egoísta de sobrevivência, e não a preocupação com o bem-estar dos outros que é atributo de toda postura moral; e, como Albert Camus indicou com exatidão, dificilmente haverá algo mais desprezível que o respeito que vem do medo. Permitam-me repetir, só posso aprovar, louvar e recomendar o respeito por outros seres humanos como parte e parcela de uma atitude moral, sem ser capaz de “provar” que assumir essa conduta por algum motivo seja uma “obrigação”: uma conclusão antecipada ou uma decisão necessária, inevitável e irrevogável. Necessidade e inevitabilidade pertencem ao vocabulário da razão – ficam deslocadas no discurso da moral. Ao falar de uma atitude moral cujo núcleo duro, segundo Immanuel Kant, é precisamente o respeito pelo outro como sujeito dotado de autonomia, razão e vontade, preciso abster-me de recorrer a instrumentos empregados rotineiramente em seminários acadêmicos, tais como causa e efeito, inevitabilidade e determinação, correto e incorreto, norma e exceção. Quando Emmanuel Levinas insiste em afirmar que a ética precede a ontologia, está negando à ética o direito ao tipo de autopromoção que a ciência concretamente adota: a ética não é superior à ontologia em razão do caráter inquestionável de sua verdade (sua concordância com a realidade), mas porque é melhor que a realidade (sendo “melhor” um termo familiar à ética, mas uma noção estranha à ontologia). Mas ele se apressa em acrescentar: do fato de eu ter responsabilidade por você e você por mim, não se depreende que você ou eu iremos, de modo inevitável e sem falhas, assumir nossas respectivas responsabilidades. As incitações à responsabilidade, incluindo as incitações ao respeito, podem cair em ouvidos moucos ou tapados e permanecer vagando no ar. Sobre isso, Levinas e Kant divergem de maneira radical. Na visão de Kant, com seu imperativo categórico, para seres dotados de razão, respeitar outro ser humano é, por assim dizer, uma necessidade – ponto final. Ele oferece o mandamento bíblico “Amar ao próximo como a si mesmo” com o imprimátur da razão: faça a sua regra a partir do que você desejaria que fosse uma regra universal; em outras palavras, não faça aos outros o que não desejaria que lhe fosse feito. Se você prefere ser tratado como sujeito, e não como objeto (como sem dúvida prefere), trate os outros como sujeitos; se não quer ser um instrumento a serviço dos objetivos de outras pessoas (como decerto não quer), não trate os outros como ferramentas suas; se pretende ser amado (como deve pretender), ame aqueles cujo amor você deseja – e respeite aqueles cujo respeito você almeja. O imperativo categórico extrai seu poder de persuasão do princípio da reciprocidade: a expectativa de que os outros vão tratá-lo como você os trata. Resumindo, o respeito é uma transação de troca. Quando se oferece respeito, tal como numa previsão de troca, espera-se que haja uma equivalência entre os bens intercambiados. O ideal da troca permite a simetria: os símbolos mais reveladores de uma troca justa são balanças calibradas à perfeição. Para Levinas, pelo contrário, o respeito, como a moral, é uma relação definitivamente assimétrica. Minha responsabilidade está sempre um passo adiante da sua. De antemão, sou sempre responsável por você – sou-o antes de me tornar consciente disso (e ainda que tal não venha a ocorrer), e sem a menor dúvida antes de eu começar a ruminar sobre o modo de conduta que preciso ou poderia escolher para seguir esse preceito. Questões do tipo “Que tenho a ganhar com isso?”, “Quanto esforço e sacrifício de minha parte eles merecem?”, “Posso esperar que eles retribuam minhas iniciativas de maneira semelhante?”, embora justificadas quando avalio minhas ações segundo as sugestões de Kant em relação ao “imperativo categórico”, não têm lugar no pensamento inspirado pela “responsabilidade incondicional” de Levinas. Minha responsabilidade por você não está na categoria de amitia ou de philia, que presume uma simetria no relacionamento, mas na da agape: é a responsabilidade do forte pelo fraco, do agente mais rico em recursos por alguém mais pobre, de uma pessoa sem restrições de escolha por alguém desprovido dessa possibilidade. A responsabilidade pelo outro não é a responsabilidade diante de um superior, chefe, comandante, disciplinador ou opressor. O “outro” pelo qual sou responsável não tem poder sobre mim, não pode me mandar fazer coisa alguma, nem me forçar a isso; nem pode me punir por desistir de minhas responsabilidades ou descuidar delas. Sou comandado, por assim dizer, por sua fraqueza e pelo modesto silêncio de sua presença. Nessa condição, a responsabilidade é incondicional e não tolera exceções, insiste Levinas – ele não chega a entrar em detalhes e nada revela sobre suas exigências precisas. Uma vez descoberta e reconhecida como tal (Levinas chama o momento da descoberta de “despertar”, “ficar lúcido”, “recuperar a visão”, expressões que sugerem a espontaneidade do evento e uma ruptura com qualquer tipo de continuum), ela então confronta o descobridor com a necessidade de realizá-la a contento. O despertar da responsabilidade incondicional e sua aceitação não são determinantes, mas estímulos à exploração posterior; incentivam uma busca, embora isso não garanta uma descoberta – e, acima de tudo, não definem o momento em que se pode considerar que a busca alcançou seu objetivo, e portanto deve ser interrompida. Uma vez reconhecida e aceita, a responsabilidade pelo outro coloca sobre o self moral o dever de interpretação de suas exigências práticas. Nada define essas exigências a priori, enquanto o significado que lhes é atribuído a posteriori carece de fundamentos para que sejam percebidas como um preceito universalmente válido. A descoberta da responsabilidade (o despertar, por assim dizer, para o fato de se arcar com ela) não é um ato único e singular, desencadeando uma série de eventos e incumbências que irá consolidar de uma vez por todas a incondicionalidade. A responsabilidade precisa e tende a ser descoberta repetidas vezes, a cada encontro com o outro, ou mesmo a cada estágio sucessivo de um encontro. Por conseguinte, lança o descobridor num estado de incerteza crônica, talvez incurável, que tende a aumentar (em vez de se reduzir) à medida que se prolonga a cadeia de ações. No universo da lei, a ausência de um parágrafo equivale à ausência de crime; no mundo da moral, contudo, a ausência de parágrafos significa ausência de inocência – ou pelo menos a impossibilidade de provar sua presença. Na falta de prescrições autorizadas e inequívocas para se isentar da responsabilidade, nada que um sujeito moral possa fazer irá oferecer a certeza de que tudo que a responsabilidade exige tenha sido realizado de forma plena e satisfatória. O hábitat natural da moral é um estado crônico de indefinição e indeterminação. A moral ganha voz quando e onde os imperativos da razão emudecem – ou quando e onde a voz lhes é negada: quando e onde a decisão de assumir a responsabilidade por bem-estar, autonomia, integridade e subjetividade do outro suspende a legitimidade e a autoridade dos julgamentos da razão, privando-a de suas credenciais como Tribunal de Apelações – de ser uma autoridade à qual se pode recorrer para questionar as ações induzidas por um impulso moral. Voltando à questão do respeito, conceito reconhecidamente aberto a uma variada gama de interpretações abrangentes e limitadoras: sugiro que a atenção e a autoridade do campo das relações humanas sejam transferidas do domínio da razão (racionalidade, regras, prescrições e proscrições, o cálculo de perdas e ganhos e o cálculo de probabilidades) para o da moral (ou seja, da prioridade do ser humano necessitado), em sua essência. O termo alemão que os tradutores de Kant transpuseram para “respeito” é Achtung – que significa, no sentido básico e essencial, “atenção”. O que opõe respeito e desrespeito (ou desprezo) é a diferença entre dar atenção e ignorar. “Desrespeito” significa, em primeiro lugar, indiferença ou não equanimidade. Em última instância, o postulado do respeito veta o desprezo: “ignorar” o outro sem reconhecer sua presença, não “dar atenção” – rejeitar previamente o outro como “indigno de atenção”. Em lugar disso, ele exige que se pare, ouça com cuidado a voz do outro enquanto se suspendem por algum tempo os demais interesses, detendo-se por período suficiente para apreender, digerir e compreender plenamente que tipo de conteúdo sua mensagem pode transmitir. Em outras palavras, o postulado do respeito exige dar ao outro, explícita ou implicitamente, o direito de estabelecer a agenda – ou pelo menos aceitar sua sugestão de agenda como algo digno de atenção e consideração total. Em suma, o respeito pelo outro consiste em reconhecê-lo como parceiro igual no diálogo, como um sujeito que tem algo importante a dizer; alguma coisa que – tal como os réus que são inocentes enquanto a culpa não for provada – continua digna de se ouvir com atenção até (e a menos) que a trivialidade ou futilidade de suas expressões se demonstre de forma convincente. A alternativa ao respeito, no caso de uma pessoa da qual se espera respeito, é o desdém e a humilhação. Estabelecer um diálogo (com mais exatidão, acender a luz verde para o polílogo, considerando que esse acesso aberto é atributo indispensável do diálogo) equivale na prática à suspensão da autoconfiança e à submissão a um curso de eventos incerto e imprevisível: aceitar que o resultado da troca irá derivar da interação de uma série de iniciativas, nenhuma delas capaz de invocar o direito de dar a última e decisiva palavra (ou pelo menos ter tal direito garantido e assegurado de antemão). O diálogo de boa fé não existe a menos que se aceite e observe a igualdade dos participantes. Enquanto durar o diálogo, as hierarquias que atribuem “superioridade” e “inferioridade” ficam suspensas (pelo menos de modo intencional). Além disso, também está suspensa qualquer pressuposição de que as diferenças entre os participantes são grandes demais para tornar plausíveis a comunicação mútua e o eventual consenso; os dialogadores devem presumir que o que é comum a todos eles importa mais que aquilo que os separa e, portanto, é capaz de prevalecer e neutralizar o impacto ofensivo da discórdia. Como escreveu são Paulo em sua epístola aos gálatas: “Não há diferença entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher, pois todos vocês são um só em Jesus Cristo. … A Lei, portanto, é para nós como um pedagogo que nos conduziu a Cristo, para que nos tornássemos justos mediante a fé. Chegada a fé, já não estamos mais sob os cuidados de um pedagogo.” (Gal. 3:28, 24-5).b Essas palavras ainda são o protótipo de todas as abordagens posteriores, incluindo as atuais, da essência de respeito e respeitabilidade. Como Robert Pawlik expressou com sensibilidade e clareza: A Ecclesia é formada pela suspensão messiânica de todas as linhas divisórias existentes. Um evento messiânico é uma ruptura e uma reviravolta tão radicais que resulta na “des-ativação” de ordens jurídicas até então operantes – tanto religiosas quanto políticas. … A partir desse momento (na “era messiânica”), as relações humanas não são mais reguladas pela lei e pelas hierarquias e relações de poder a ela associadas, mas pelo amor ao próximo.3 Fica-se tentado a ruminar que agora vivemos em outra “era messiânica” – embora desta vez, pelo menos até agora, sem nenhum “evento messiânico”, nem a expectativa de sua chegada iminente. A ideia de que vivemos numa “era messiânica” é sugerida pela soma de sinais de que a “des-ativação das ordens jurídicas existentes”, a “suspensão das atuais linhas de confronto” e o deixar de estar “sob a tutela da antiga fé” estão muito atrasados. Mas precisamos e sentimos falta de um “evento messiânico” comparável às boas-novas transmitidas por são Paulo aos gálatas em seu potencial “faça-nos um”. Graças à abismal desproporção entre a grandiosidade do desafio e a insignificância de nossa caixa de ferramentas, estamos vivendo, como Antonio Gramsci observou quase cem anos atrás (“profeticamente”, ficamos tentados a dizer), num período de interregno; ou seja, numa condição em que o velho perde depressa sua força e seu poder de ação, enquanto o novo, que em tese poderia substituí-lo, ainda não nasceu ou continua muito pequeno e soluçando baixo demais para atrair nossa atenção. Num período registrado com o nome de “interregno”, tudo pode acontecer, embora nada possa ser empreendido com autoconfiança total, e ninguém possa estar seguro do resultado de suas ações. O veneno de nossa época é a impossibilidade de comparar intenções e forças necessárias para concretizá-las. O mais angustiante dos dilemas já não é “o que deve ser feito”, porém, “quem é capaz de fazê-lo”, no caso de conseguirmos chegar a um acordo sobre isso. O “velho” que está perdendo força e poder de ação é o fatiamento do planeta em ordens locais só de nome soberanas, baseadas na superposição e na coagulação cada vez mais fictícias de território, Estado e nação. O “novo” que até agora fracassou em demonstrar sua presença é uma ordem global, genuinamente “ecumênica”, com base na comunidade humana planetária – embora, ao contrário do passado, não necessariamente em sua unidade congregacional, ética, cultural e política. Para jogar sal numa ferida aberta, procuramos em vão um precedente histórico para nos assegurar que esse tipo de novidade é plausível. A ideia de que é direito de nascença de cada ser humano participar de uma comunidade que abranja a humanidade inteira – e portanto o direito ao reconhecimento, ao respeito e à dignidade devidos a todos os seres humanos apenas por serem humanos e apesar de toda e qualquer restrição que os separe dos outros seres humanos – é impressionante em sua ferrenha oposição àquilo que até agora foi percebido como a natureza inalterável da convivência humana. Carl Schmitt, considerado o teórico mais agudo e perspicaz da política na era dos Estados-nação e de sua soberania absoluta e indivisível, tomou a “indicação do inimigo” como traço definidor da política; e a oposição entre “amigos” e “inimigos” (na prática, entre “nós” e “eles”) como seu eixo constitutivo. Sem um inimigo, não há Estado, política, unidade comunal e soberania do Estado – nem pode haver. A associação, principal objetivo do soberano, só pode ser obtida por meio da dissociação; a inclusão (de “amigos”) não pode ser nem será realizada sem a simultânea exclusão (de “inimigos”). O domínio do Estado de direito é inconcebível sem que suas fronteiras sejam estabelecidas e superpostas à fronteira que separa amigos de inimigos. A organização política da Europa pós-Vestfália, em cujas práticas Schmitt certamente baseou suas generalizações, não seria viável sem a aglomeração de animosidades e conflitos. Não é preciso dizer que, no mundo que emerge das páginas de Political Theology, de Schmitt, não há lugar para a categoria de respeito – enquanto a ideia de um direito universal a ser respeitado significaria um absurdo total. Afinal, esse mundo foi articulado e trazido à luz pela vontade de um soberano territorial – vontade que se expressa em seu poder de apontar inimigos e isentá-los da norma legal. Partindo de premissas diferentes, René Girard chegou a conclusões quase idênticas. O ato de nascença da comunidade humana, na visão de Girard, é o “crime original”, um tipo de crime que torna cúmplices tanto os contemporâneos quanto seus descendentes, sejam eles cotemporais ou “retrospectivos”. Pela lógica dessa designação, os cúmplices desenvolvem um interesse em cerrar fileiras para defender essa comunidade e garantir sua sobrevivência – como o único escudo a protegê-los do julgamento e do veredicto de culpados. A dedicação sincera à causa da comunidade exige de seus membros vigilância, desconfiança e inimizade em relação aos não membros, assim como a aprovação incondicional do que for considerado indispensável, ou mesmo apenas útil, para o vigor da comunidade. As comunidades permanecem vivas por meio de rituais regulares de recriação do “ato fundador” (ou melhor, do mito etiológico), no curso dos quais os inimigos conspiram, mas têm suas intenções iníquas reveladas a tempo e seus malefícios obstados, de modo que os maquinadores são desqualificados antes de ter oportunidade de pôr seu esquema em operação, embora nunca sejam totalmente desarmados, muito menos aniquilados; pois esse desfecho da história seria contraproducente, eliminando os motivos para continuar com a disciplina acrítica (a “servidão voluntária”) que a comunidade exige de seus membros em nome da continuidade de sua existência (e, por extensão, da deles). As histórias contadas por Schmitt e Girard diferem no tema e na argumentação, mas confluem em sua mensagem principal: o respeito não tem muita chance de ser promovido à posição de valor universal. As realidades da vida social, seus padrões e seu feitio de autorreprodução historicamente constituídos não podem ser compatibilizados com facilidade, seja com os argumentos racionais de Kant, seja com os postulados éticos de Levinas. Conflito e consenso, inimizade e amizade são irmãos siameses, incapazes de viver separados e resistentes aos esforços do melhor cirurgião. A unidade deriva da divisão; o respeito, da negação da dignidade humana. Diz-se que Ronald Reagan, presidente não particularmente famoso por suas habilidades acadêmicas, mas homem dotado de um sólido volume de sabedoria popular, teria consolado Mikhail Gorbachev afirmando-lhe que, mesmo que os interesses dos Estados Unidos e da União Soviética não pudessem se compatibilizar naquela época, seus exércitos decerto juntariam forças para repelir o inimigo comum quando invasores vindos do espaço atacassem a Terra. Talvez ele tivesse razão, mas o problema é que os alienígenas ainda não estão atacando para nos ajudar a realizar o antigo sonho da dignidade humana global e da universalidade do respeito mútuo. Em sua ausência, nós, residentes nativos da Terra, só temos como alternativa procurar armas nas guerras santas intertribais travadas em nome do reconhecimento – ou seja, do direito ao respeito. Pelo veredicto da história, ou melhor, por decretos promulgados e elaborados por seres humanos, nós ganhamos o direito de escolha ao mesmo tempo que nos é imposto o dever de escolher; assim, temos de lutar pelo reconhecimento social de nosso modo de ser, sempre pré-interpretado como resultado de nossas escolhas voluntárias; reconhecimento da forma como vivemos individual ou coletivamente na companhia de “outros como nós” – seja por ação ou omissão, ou em reação a pressões insustentáveis de outras pessoas. O que em geral se entende por “reconhecimento social” é a opinião das “pessoas que contam” sobre os méritos e deméritos de nosso modo de vida; e sobretudo sua avaliação sobre o respeito devido a certos tipos de criatura, tendo em vista a forma como vivem, e que precisa ser garantido a elas na mesma medida que é concedido a outras. Políticos dignos desse nome são rápidos na identificação de uma fonte extra de apoio eleitoral. Já que poucos eleitores se sentem de fato imunes à ameaça de uma súbita reversão do destino que pressagie a negação de sua dignidade, mas todos – quer estejam no topo ou na base – têm o desejo também inabalável de se ver respeitados pelo que são, foram forçados a ser ou lutam para se tornar, mais cedo do que se espera, o direito ao respeito pode ser negado ou revogado sob o lema de “não respeitar os inimigos do respeito” (isso significando as pessoas que se recusam a respeitar os veredictos dos encarregados de sua alocação e distribuição), tudo em nome de sua defesa e promoção. 21 DE DEZEMBRO DE 2010 Sobre algumas de minhas idiossincrasias (não todas!) Por ocasião de meu 85º aniversário, fui pressionado (da maneira mais amigável) por Simon Dawes, em nome de meus colegas de Theory, Culture & Society (TCS, um dos periódicos mais infatigáveis, inovadores e corajosos que conheço, abastecedor constante de ar fresco na atmosfera desanimadora e apática das ciências humanas), a confessar de público o caráter eternamente fora dos trilhos do meu tipo de sociologia. Foi uma pressão a que sucumbi prontamente e com satisfação, com mais disposição ainda porque vinda de círculos cuja excelência se deve a essa falta que a maioria vociferante considera um sinal de imperfeição. Cito abaixo alguns fragmentos dessa confissão. SIMON DAWES – Para começo de conversa, gostaria de lhe perguntar em que medida você imagina que a liquidez de nossas experiências de vida tem influenciado sua interpretação da modernidade (líquida), como Martin Jay insinua em seu artigo na TCS? Você se reconhece, por exemplo, como um “outsider ambivalente” que “aprendeu a andar na areia movediça”? ZYGMUNT BAUMAN – Com prazer (e, presumo, prudência), eu deixaria a resposta dessa pergunta aos psicanalistas, especializados em estabelecer esses tipos de vínculos ou simples coincidências e reapresentá-los como conexões casuais. Tendo sido um pássaro nessa história, e não um ornitólogo (e os pássaros, como sabemos, não são em particular notáveis para os ornitólogos), talvez eu seja a última pessoa a que se devesse fazer essa pergunta em busca de uma resposta competente. O máximo a que realmente consigo chegar é a observação banal de que a experiência da fragilidade dos ambientes nos quais e pelos quais me movi no curso de meu itinerário existencial fantasticamente longo deve ter (não deve?) influenciado o que vi e como o vi. Sem dúvida, a arte de andar sobre areia movediça ainda está fora do meu alcance. Só aprendi como é difícil dominar essa arte e como as pessoas precisam se esforçar para aprendê-la. Quanto a ser descrito como outsider total, do começo ao fim (devo essa descoberta a Dennis Smith, num texto publicado na TCS em 1998), não tenho motivo para discordar. Na verdade, nunca “pertenci” a escola, a qualquer ordem monástica, comunidade intelectual, partido político ou grupo de interesse; não solicitei admissão em nenhum deles, muito menos fiz muita coisa para merecer um convite; nem seria eu relacionado por algum deles – pelo menos em termos irrestritos – como “um dos nossos”. Creio que minha claustrofobia é incurável – sentindome, como tendo a me sentir, desconfortável em qualquer sala fechada, sempre tentado a descobrir o que está do outro lado da porta. Acho que estou destinado a permanecer um outsider até o fim, faltando-me, como me faltam, as qualidades indispensáveis de um insider acadêmico: lealdade a uma escola, conformidade a seus procedimentos e disposição de aceitar os critérios de coesão e coerência endossados por essa escola. E, francamente, isso não me importa. SD: Você confia na metáfora dicotômica sólido/líquido em suas avaliações da modernidade, mas em que medida esses termos são mutuamente excludentes? Essa relação poderia ser vista como dialética? ZB: Nunca pensei nem penso no enigma da solidez/liquidez como uma dicotomia; vejo essas duas condições como uma dupla inseparavelmente ligada num vínculo dialético (algo como o que François Lyotard decerto tinha em mente quando observou que não se pode ser moderno sem primeiro ser pós-moderno). Afinal, foi a busca da solidez das coisas e dos estados que muitas vezes desencadeou, pôs em movimento e guiou a liquefação dessas coisas e estados; por seu turno, foi a amorfia do líquido escoando, umedecendo e fluindo que estimulou os esforços de esfriar, misturar e moldar. Se há algo que permite uma distinção entre as fases “sólida” e “líquida” da modernidade (ou seja, organizá-las em ordem de sucessão), isso é a mudança no propósito, tanto manifesto quanto latente, por trás de um esforço que de outro modo seria contínuo e estável. Na origem, os sólidos derretiam não porque houvesse uma ojeriza à solidez, mas por insatisfação com o grau de solidez dos sólidos herdados existentes: pura e simplesmente, os sólidos legados, pelo que se descobriu, não eram sólidos o bastante (não resistentes e imunizados contra a mudança) segundo os padrões das autoridades modernas, obcecadas pela ordem e comprometidas, de modo compulsivo, com sua construção. Depois (em nossa parte do mundo, até hoje), os sólidos foram reconhecidos como condensações transitórias do magma líquido. São arranjos temporários, “até segunda ordem”, e não soluções finais – em que a flexibilidade substitui a solidez como condição ideal a ser perseguida. Mesmo quando desejados, os sólidos só são tolerados enquanto prometem permanecer fácil e obedientemente fundíveis quando necessário; antes que se empreenda a tarefa de montar uma estrutura, firmá-la e solidificá-la, uma tecnologia adequada para tornar a fundi-la já deve estar à mão. Deve-se oferecer uma garantia confiável do direito e da capacidade de desmontar a estrutura construída antes que o trabalho de construção seja iniciado a sério. Estruturas “biodegradáveis” são hoje o ideal e o padrão que a maioria das estruturas, se não todas, lutam por atingir. SD: Você poderia explicar como a liberdade verdadeira e a autonomia genuína do Iluminismo diferem da (falsa, líquida, consumista) liberdade do mercado? E o que você pensa da afirmação de John Milbank, de que nos falta uma base metafísica para falar dessa liberdade? ZB: Em resumo, ao passo que a liberdade mirada pelo Iluminismo e exigida e prometida por Marx era feita sob medida para o produtor ideal, a liberdade promovida pelo mercado foi projetada tendo em mente o consumidor ideal; uma não é “mais genuína” que a outra. Mas, na minha visão, esse é um problema sociopolítico, não uma questão metafísica. Eu era, continuo a ser e provavelmente serei até a morte interessado nos mecanismos sociopolíticos que geram pressões “habilitadoras” e “desabilitadoras” em série, articulando-as e interligando-as, tornando-as, em geral, inseparáveis, da mesma forma como irmãos siameses compartilham seus sistemas pulmonar e digestivo. Creio que uma liberdade ideal e perfeita, a “liberdade completa”, capaz de habilitar sem desabilitar, é um paradoxo em termos metafísicos, da mesma forma que um objetivo inatingível na vida social. SD: No artigo que publicou na seção especial, Julia Hell identifica uma ênfase frequente em seus textos sobre os atos de olhar. Para você, qual o laço entre o olhar e “o outro”, ou que importância tem para você o olhar do/para “o outro”? ZB: Creio que Julia Hell tem razão. A impressão visual talvez seja para mim, entre todas, a mais plenamente captada e registrada; a visão parece ser o principal órgão sensorial, e “ver” fornece as metáforas-chave para relatar a percepção. O mesmo se dá com a constituição da percepção/imaginação de Levinas, meu professor de ética: é a visão de l’Autre que desencadeia o impulso moral, e é ela que me transforma num sujeito moral ao me expor, submeter e subordinar ao objeto de minha responsabilidade (o que ocorre mesmo antes que l’Autre tenha uma chance de abrir a boca, e portanto antes que eu possa ouvir qualquer exigência ou pedido) – embora o tato, o afago, seja uma metáfora melhor para o modelo de Levinas sobre o que vem depois dessa visão e desperta o eu moral. O que me parece não mencionado e esquecido, contudo, na dissecação surpreendentemente perspicaz de Julia sobre o “olhar” é outra variedade sua – importantíssima para revelar a relação complexa entre olhos e ética. O olhar que ela focalizou de maneira tão perceptiva e inspiradora, o olhar de Orfeu, é, por assim dizer, daquele tipo “matar por amor” ou “assassinato por amor” (embora também, em potência, capaz de salvar e libertar). Contudo, há ainda o “olhar de Panwitz”, experimentado, identificado e vividamente reconstruído por Primo Levi: um olhar que “mata pela despreocupação”; ou, de forma mais adequada, “mata pela indiferença”, imune ao bacilo da moralidade, vacinado contra o impacto de encontrar um Outro, impacto dotado do poder de despertar a responsabilidade. Creio que localizar os meios e formas societais de substituir o olhar de Orfeu pelo de Panwitz, de privar o olhar de seu poder ético inato (processo que chamo de “adiaforização”), é deveras crucial em qualquer tentativa séria de mapear o itinerário convoluto e contorcido do eu moral no mundo líquido moderno. SD: Mudando de assunto, você poderia nos falar mais sobre seu próximo livro, Collateral Damage? De que ele trata e como se relaciona com seus outros trabalhos? ZB: Vou resumir. A principal estratégia de toda e qualquer luta de poder consiste em “estruturar” a condição do opositor enquanto se “desestrutura”, ou seja, se desregula, a própria condição – isso era e continua a ser uma característica permanente das modernas estratégias de poder. Entretanto, na sociedade de produtores, o arranjo sólido moderno representado pelo paradigma da “fábrica fordista” cum “Estado social”, os dois lados do conflito tinham interesse em evitar que a desigualdade ficasse fora de controle – enquanto agora já não se trata disso. Por conseguinte, as probabilidades favoráveis àqueles que estão “perto das fontes de incerteza”, e desfavoráveis aos outros, fixados e amarrados à sua extremidade receptora, foram multiplicadas de maneira radical. O que mudou foi que os esforços para reduzir o hiato, mitigar a polarização das oportunidades e a discriminação daí resultante se tornaram marginais e transitórios: esses esforços são agora espetacularmente ineficazes, até impotentes, para interromper o aumento descontrolado da fortuna e da miséria nos dois polos do atual eixo do poder. São afligidos por um déficit crônico do poder de agir e fazer com que as coisas sejam realizadas, enquanto, do lado das forças que pressionam na direção oposta, o poder continua a ser acumulado e armazenado. Os governos dos Estados buscam em vão remédios locais para privações e misérias produzidos globalmente – tal como indivíduos por decreto do destino (leia-se: pelo impacto da desregulamentação) buscam em vão soluções individuais para problemas existenciais socialmente fabricados. “A desigualdade entre os indivíduos no mundo é espantosa”, diz Branko Milanovic, principal economista do departamento de pesquisa do Banco Mundial. “Na virada do século XXI, os 5% mais ricos do planeta recebem um terço do total da renda global, tanto quanto os 80% mais pobres.” Embora alguns países pobres estejam se emparelhando ao mundo rico, as diferenças entre os indivíduos mais ricos e mais pobres são enormes e tendem a crescer. Em 2008, Glenn Firebaugh assinalou que “vemos a reversão de uma tendência duradoura: da desigualdade crescente entre as nações e a desigualdade constante ou decrescente dentro delas para uma desigualdade decrescente entre as nações e uma desigualdade crescente dentro delas. Essa é a mensagem de meu livro de 2003, The New Geography of Global Income Inequality” – uma mensagem que desde então tem se confirmado. SD: O que você acha da recente onda de interesse pela desigualdade e pelas crises econômicas e ambientais – que propõe decrescimento, economias sustentáveis, pós-capitalismo – ou sobre a relevância duradoura do comunismo como soluções para esses problemas? ZB: De modo pungente e sucinto, o grande José Saramago já respondeu sua pergunta, ao apontar que as pessoas não escolhem um governo que colocará o mercado sob controle; em vez disso, o mercado condiciona os governos de todas as formas a colocar as pessoas sob seu controle. Várias décadas atrás, em A crise de legitimação no capitalismo tardio, Jürgen Habermas declarou que a função dos Estados capitalistas é assegurar que ocorra um encontro entre capital e trabalho, e que ambos os lados cheguem ao encontro dispostos e preparados para a transação. Como a sociedade de produtores dirigida pelo capital se transformou desde então numa sociedade de consumidores também dirigida pelo capital, eu diria que a função principal, na verdade a “metafunção”, dos governos tornou-se garantir que ocorram encontros entre mercadorias e consumidores, de um lado; e emissores e mutuários de crédito, de outro – o que tem sido comprovado pelos governos, como se isso fosse necessário, ao lutar com unhas e dentes em relação a cada centavo de que a “subclasse” (ou seja, os “consumidores falhos [inúteis]”) precisa para se manter viva, mas encontrar, como por milagre, centenas de bilhões de libras ou dólares para “recapitalizar os bancos”. Apontei recentemente, seguindo um palpite de Keith Tester, que nos encontramos num período de “interregno”: “o velho” não funciona mais, “o novo” ainda não nasceu. Mas já está bem viva a consciência de que, a menos que ele nasça, estamos todos condenados a desaparecer; assim como a consciência de que o osso duro que precisamos urgentemente roer não é a presença de “um número muito grande de pobres”, mas de “um número muito grande de muito ricos”. Permitam-me citar, mais uma vez, José Saramago: E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico. Suponho que esse apelo e outros semelhantes irão ganhar intensidade nos próximos anos – e espera-se que audiência também. SD: Você poderia dizer alguma coisa sobre o que está lendo no momento ou o que leu recentemente que o tenha impressionado? ZB: Para mim, os últimos anos têm desestimulado as viagens de descobrimento. Não muitas tentadas, bem poucas concluídas. Mas, como você pode deduzir de nossa conversa até agora, Saramago foi uma descoberta (infelizmente tardia). Fico triste pelo fato me de restarem apenas algumas de suas obras ainda não lidas para saborear – já que ele não vai escrever mais… Outras descobertas foram as primeiras distopias elaboradas para o mundo líquido moderno, codificando, extrapolando e levando à sua conclusão lógica (quer dizer, se nossa arte coletiva do ilógico e do inesperado não interferir a tempo). No cinema, Michael Haneke. Na literatura, Michel Houellebecq: ele tende a representar para o século XXI o que Zamyatin, Orwell e Aldous Huxley significaram para o século XX. Minha última descoberta, não da mesma classe, mas igualmente grande: o estudo que Sarah Bakewell fez sobre Montaigne com o enigmático título de How to Live, “como viver” (prestem atenção, enfaticamente, não é “como se deveria viver”). Estou fascinado pelos estudos de Keith Tester sobre arte cinematográfica – tanto os já publicados quanto os que em breve o serão. Eles abrem paisagens inteiramente novas onde se pensaria que tudo já foi dito. Ainda estou tentando apreender sua significação. SD: Uma última pergunta: a TCS está comprometida com o processo de avaliação pelos pares, e muitos de seus colaboradores (tanto rejeitados quanto aceitos) estão gratos pelo feedback de nossos editores e pareceristas anônimos, assim como pelo subsequente pelo aperfeiçoamento de seus artigos. Mas você é crítico em relação a esse processo e não atua mais como árbitro para nós. Poderia dizer por quê? ZB: Há, segundo as estimativas mais conservadoras, duas vítimas colaterais sérias e profundamente lamentáveis do repulsivo estratagema da avaliação pelos pares: uma é a ousadia de pensar (reduzida ao mínimo denominador comum); a outra é a individualidade e a responsabilidade dos organizadores (os que buscam abrigo sob o anonimato da condição de “pares”, mas na verdade nele se dissolvem, em muitos casos sem deixar vestígios). Diversos outros prejuízos se produzem, claro, como a ilusória segurança sugerida pela “decisão da comissão”, amortecendo assim o impulso crítico do leitor ou suprimindo a temperança e por vezes também a honestidade dos “pares” em função das garantias de anonimato em ações das quais eles, de outra forma, desistiriam. O resultado geral é uma restauração do estado de coisas asperamente descrito por Hannah Arendt como de “responsabilidade flutuante” ou “responsabilidade de ninguém”. Por fim, mas não menos importante, eu destacaria outro exemplo de dano colateral: a multiplicidade de trilhas abertas e a heterogeneidade do que as inspira. Suspeito que o sistema de avaliação por pares carregue boa parte da culpa pelo fato de algo em torno de 60% ou mais dos artigos dessas publicações jamais serem citados (o que significa que não deixam marcas em nossas atividades intelectuais conjuntas); e (pelo menos na minha percepção) de as “publicações eruditas” (com poucas e milagrosas exceções que incluem em especial a TCS) apresentarem uma repetitividade absurda e destilarem um enfado monumental. Para encontrar uma só ideia esclarecedora e seminal (em contraste com uma receita para atravessar com segurança a barricada construída pelos pares), muitas vezes é necessário folhear milhares de páginas de uma dessas revistas. Com certa ironia, eu sugiro que, se nossos ancestrais da Idade da Pedra tivessem descoberto a máquina da avaliação por pares, ainda estaríamos sentados nas cavernas. Assim, talvez o estratagema que estamos debatendo também seja culpado por uma enorme perda de tempo e de potência intelectual. Em suma, esse não é o tipo de jogo de que eu participaria com boa vontade. 25 DE DEZEMBRO DE 2010 Sobre a nova aparência da desigualdade Frank Rich, um dos principais colunistas da página de opinião do New York Times, observa na edição de ontem, sobre a voz do liberalismo americano: “A igualdade econômica parecia alcançável em 1956, ao menos para a ampla classe média. A percepção de que a promessa americana de mobilidade social e econômica era concretizável para qualquer um que a buscasse…” Esse era, lembra ele a seus leitores, não contando com suas memórias, o ânimo da nação 55 anos atrás. Quanto à classe média americana atual, Rich só precisa fazer uma pergunta puramente retórica: “Quantos americanos de classe média acreditam agora que o céu é o limite caso se esforcem o suficiente? Quantos acreditam que o capitalismo lhes dará um tratamento igualitário?” – ou seja, quantos americanos conseguiram preservar e manter a antiga confiança, tão viva apenas meio século atrás, e acreditam na “igualdade social da mobilidade” ou no “avanço da igualdade”, na “igualdade cada vez mais próxima”, na “igualdade ao nosso alcance”. Realmente é uma pergunta retórica, já que nesse caso Rich pode confiar que seus leitores vão responder sem hesitação: não muitos. Foi isso, em termos gerais, que aconteceu com o sonho da classe média “de que todos podem entrar na Terra de Fronteira caso se esforcem o bastante; e de que ninguém terá negado o direito a realizar seu sonho porque um grupo privado alugou a Terra do Amanhã”. Um dia antes, outro colunista da página de opinião do New York Times, Charles M. Blow, havia observado certas evidências estatísticas: De acordo com o Centro Nacional para Crianças na Pobreza, 42% das crianças americanas vivem em lares de baixa renda, e cerca de 20% vivem na pobreza. Está piorando. O número de crianças vivendo na pobreza subiu 33% desde o ano 2000. Para se ter uma perspectiva, a população infantil do país como um todo aumentou apenas 3% nesse período. E, segundo um relatório de 2007 do Unicef sobre pobreza infantil, os Estados Unidos ficaram em último lugar entre 24 países ricos. … [A] reação a esse tema em algumas áreas ainda é influenciada por classe e raça: vamos acabar com o bem-estar social de pessoas negras e pardas que fizeram escolhas ruins e não têm o bom senso de trabalhar para superá-las. Não é necessário contar aos pais desses 42% de crianças americanas, lutando como lutam, dia após dia, tentando manter as contas pagas, que as chances de igualdade não estão à vista para seus filhos, enquanto os pais dos 20% de crianças que vivem na pobreza dificilmente reconheceriam as “chances” cujo desaparecimento os últimos dados descrevem. As duas categorias de pais teriam, contudo, muito pouca dificuldade, se é que teriam alguma, em decodificar a mensagem que flui, em alto e bom som, dos lábios daqueles que estabelecem as leis da terra e as traduzem na linguagem dos direitos e deveres de seus cidadãos. A mensagem é a própria simplicidade: esta não é mais uma terra de oportunidades; esta é uma terra para pessoas com agressividade. A “igualdade em termos de mobilidade” socialmente administrável foi a pique ao se chocar com a rocha dura da desigualdade em matéria de iniciativa individual. A “agressividade” dos pais é o único salva-vidas disponível aos que desejam navegar com os filhos para fora da pobreza. O barco é pequeno; seria uma sorte encontrar algum que tivesse capacidade suficiente para acomodar toda a família. É mais provável que só poucos de seus membros, os mais audaciosos e pães-duros, e portanto aqueles com maior suprimento de agressividade, conseguirão se espremer no escaler e manter o lugar até que se chegue à costa. E a jornada não é mais (se é que já foi) uma viagem rumo à igualdade. Em vez disso, é uma corrida a fim de deixar os outros para trás. A sala que fica no topo é préagendada e somente os escolhidos têm permissão de entrar. Como Frank Rich aponta com propriedade, “um grupo privado alugou a Terra do Amanhã”. A terra das oportunidades prometia mais igualdade. A terra das pessoas agressivas só tem a oferecer mais desigualdade. 26 DE DEZEMBRO DE 2010 Sobre a ressocialização do social O editorial de hoje do Le Monde (“Contra a crise e a pobreza, a proteção social”) compartilha com seus leitores uma admirável descoberta: pouco a pouco, dando com cautela um passo de cada vez, mas ultimamente em ritmo acelerado pelo fantasma de um colapso econômico mundial, baixou sobre os formadores de opinião, assim como sobre aqueles que fazem as coisas, a ideia de que a proteção social endossada pelo Estado é condição necessária tanto de uma economia saudável quanto da defesa em relação às piores consequências de uma economia doente. Essa não é apenas uma questão de caridade e generosidade, como a ideologia dominante da “Reaganomia” e da “Thatchernomia” queriam nos fazer acreditar. Em outras palavras, restaurar antigos mecanismos de seguro coletivo contra o infortúnio individualmente sofrido ou construir novos mecanismos a partir do zero não é apenas do interesse do desafortunado, mas uma questão de interesse comum, na verdade, de sobrevivência comum. O conflito de interesses entre contribuintes e beneficiários da previdência social é produto de uma imaginação ideologicamente alimentada e encorajada. O que atinge de modo mais doloroso o contribuinte não é a liberalidade do Estado de bem-estar social, mas sua mesquinhez – já que esta atinge a fonte de seu próprio bem-estar, a renda com a qual se pagam os impostos. Há um número crescente de indícios materiais, embora nem tanto de declarações de fé, atestando que essa mudança, um verdadeiro divisor de águas no pensamento de alto nível, de fato está ocorrendo. A ideia da Organização Internacional do Trabalho, de incluir a proteção social na lista dos direitos humanos fundamentais, ainda é depreciada como algo próximo de uma utopia. Porém, na prática da política internacional, a proposta está cada vez mais próxima da realidade atual – ou pelo menos da realidade previsível. Em julho de 2010, as Nações Unidas, num ato que quase não foi comentado pela imprensa mundial nem chegou ao conhecimento do público, tomaram a decisão corajosa de nomear Michelle Bachelet, ex-presidente do Chile, para promover a causa (na verdade, a cruzada) da difusão de práticas de bem-estar social em partes do mundo até então carentes delas. Isso tem sido feito com o apoio sincero do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, duas instituições conhecidas por lutar com unhas e dentes a favor de cortes impiedosos nos gastos dos países e contra a proteção social garantida pelo Estado nas nações em desenvolvimento. Seria uma mudança de ânimo formidável, caso fosse verdadeira. A grande questão, porém, é se a nova disposição (que está se transformando em novo mantra) vai sobreviver às reverberações da atual instabilidade nas áreas do crédito e das finanças. Mesmo que se mostre mais duradouro que os atuais tremores que o provocaram, o novo consenso (ainda emergente) tem um longo e tortuoso caminho pela frente até alcançar seu propósito declarado. O editorial do Le Monde nos ensina que, embora a proteção social consuma até 20% da riqueza nacional nos países “desenvolvidos” (leia-se: ricos), os países pobres só podem (e, permitam-me acrescentar, só lhes é permitido) até agora reservar 4% de seus orçamentos para esses fins; muitos deles, além disso, só reservam 1% ou menos de seu PIB para assistência social. No momento, 13% das famílias pobres do planeta e 90% das famílias africanas não contam com qualquer forma de proteção social. Do mesmo modo, multiplicam-se os sinais, vindos de todos os continentes, de que os governos se esforçam para desatar o nó górdio de economias esmagadas pelo peso da pobreza e da miséria que atingem as massas, e essas economias tornam-se ainda mais difundidas em razão da debilidade econômica permanente. Tais tentativas, embora com variados graus de determinação, podem ser observadas em lugares tão distantes e diferentes quanto África do Sul e Nepal. Numa escala maior, o Brasil conseguiu tirar do abismo da pobreza, da insegurança e da falta de perspectivas cerca de 13 milhões de famílias, o equivalente a 50 milhões de adultos e crianças, com a ajuda de um programa administrado pelo Estado, o Bolsa Família, iniciado pelo presidente Lula. O México tenta fazer o mesmo com o apoio do Programa Oportunidades, enquanto, em seu característico estilo atacadista, a China há pouco decidiu utilizar seus excedentes acumulados para construir, virtualmente a partir do zero, mas dentro dos próximos cinco anos, uma rede abrangente de proteção social para centenas de milhões de cidadãos até então desprovidos de qualquer assistência dessa natureza. 27 DE DEZEMBRO DE 2010 Sobre os amigos que você tem e os que pensa ter O professor Robin Dunbar, antropólogo evolucionista da Universidade de Oxford, insiste em que “nossas mentes não foram planejadas [pela evolução] para permitir que tivéssemos mais que um número limitado de pessoas em nosso mundo social”. Na verdade, Dunbar calculou esse número; ele descobriu que “a maioria de nós só pode manter cerca de 150 relacionamentos significativos”. De modo nada inesperado, chamou esse montante, imposto pela evolução (biológica), de “número de Dunbar”. Essa centena e meia, podemos comentar, é o número atingido, mediante evolução biológica, por nossos ancestrais remotos. E foi aí onde ela parou, deixando o campo aberto para sua sucessora muito mais rápida, ágil, habilidosa, acima de tudo mais capaz e menos paciente – a chamada “evolução cultural” (promovida, moldada e dirigida pelos próprios seres humanos, empregando o processo de ensinamento e aprendizagem, em vez de mudar o arranjo dos genes). Observemos que 150 era provavelmente o maior número de criaturas capazes de se reunir, permanecer juntas e cooperar lucrativamente sobrevivendo apenas da caça e da coleta; o tamanho de um rebanho proto-humano não podia ultrapassar esse limite mágico sem convocar, ou melhor, conjurar forças e (sim!) ferramentas além de dentes e garras. Sem essas outras forças e ferramentas, ditas “culturais”, a proximidade permanente de um número maior de pessoas teria sido insustentável; assim, a capacidade de “ter em mente” um montante maior teria sido supérflua. “Imaginar” uma totalidade mais ampla do que aquela acessível aos sentidos era desnecessário e, naquelas circunstâncias, inconcebível. As mentes não precisavam armazenar o que os sentidos não haviam tido a oportunidade de apreender. A chegada da cultura deveria coincidir, como de fato ocorreu, com o momento em que se ultrapassou o “número de Dunbar”. Teria sido esse o primeiro ato de transgressão dos “limites naturais”; e, como transgredir limites (sejam eles naturais ou autoestabelecidos) é o traço definidor e o próprio modo de ser da cultura, ele é também o ato que marca seu nascimento?4 Observemos também que, com o início da sequência cultural da evolução, o campo dos relacionamentos reconhecidamente “significativos” dividiu-se, para todos os fins e propósitos práticos, em dois espaços, de acordo com dois tipos de “significação” diferentes, autônomos, embora inter-relacionados: o sensual/emocional, ou específico, e o mental ou abstrato. A primeira variedade de “significação” é que pode ter “estabelecido limites”, pois continua dependendo do equipamento (essencialmente inalterado) que a evolução forneceu à espécie humana; a segunda variedade, contudo, é emancipada das restrições impostas por “limites naturais” – embora seja livre, ao mesmo tempo, para estabelecer (e revogar ou transgredir na prática) seus próprios limites. Muito do trabalho da cultura até agora consistiu e continua a consistir em traçar e retraçar as fronteiras que separam o “aqui” do “lá”, o “dentro” do “fora”, o “nós” do “eles”, e em continuar subdividindo e diferenciando os terrenos no interior de cada um deles; dada a pluralidade de culturas e de interfaces das intervenções culturais, consiste também em gerar “áreas cinzentas” de ambivalência entre territórios adjacentes, e também focos de desavença que, por sua vez, oferecem mais um estímulo ao impulso de estabelecer fronteiras. O “número de Dunbar” é ele próprio um exemplo típico do exercício cultural de traçar fronteiras (atividade que remonta, segundo o mito etiológico de Lévi-Strauss, ao “nascimento da cultura”, ou seja, à proibição do incesto, à divisão das mulheres entre objetos permitidos e proibidos). As “redes de relacionamento” com base eletrônica prometiam romper as intrépidas e recalcitrantes limitações à sociabilidade estabelecidas por nosso equipamento transmitido pela genética. Bem, diz Dunbar, não o fizeram e não o farão: a promessa só pode ser quebrada. “Sim”, diz ele em seu artigo publicado no New York Times de 25 de dezembro, “você pode estabelecer ‘amizade’ com 500, mil, até 5 mil pessoas em sua página no Facebook, mas todos, com exceção do núcleo de 150, são meros voyeurs observando sua vida quotidiana.” Entre esses milhares de amigos do Facebook, as “relações significativas”, sejam elas eletrônicas ou vividas off-line, estão restritas, tal como antes, aos limites impassíveis do “número de Dunbar”. O verdadeiro serviço oferecido pelo Facebook e outros sites “sociais” dessa espécie é a manutenção de um núcleo estável de amigos nas condições de um mundo altamente inconstante, em rápido movimento e acelerado processo de mudança. Nossos ancestrais distantes tiveram uma facilidade: assim como as pessoas que lhes eram próximas e queridas, eles tendiam a morar no mesmo lugar do berço ao túmulo, ao alcance da vista uns dos outros. Isso indica que a base “topográfica” dos vínculos de longo prazo e até para toda a vida não tende a reaparecer, muito menos a ser imune ao fluxo do tempo, vulnerável como é às vicissitudes das histórias de vida individuais. Por felicidade, agora temos formas de “permanecer em contato” que são plena e verdadeiramente “extraterritoriais” e, portanto, independentes do grau e da frequência da proximidade física. “O Facebook e outros sites de redes sociais”, e apenas eles – insinua Dunbar –, “nos permitem manter amizades que de outro modo logo definhariam.” Mas esse não é todo o benefício que proporcionam: “Eles nos permitem reintegrar nossas redes de modo que, em vez de termos vários subgrupos de amigos desconectados, podemos reconstruir, embora virtualmente, o tipo de comunidade rural antiga em que todo mundo conhecia todo mundo” (grifo meu). No caso da amizade, ao menos, pelo que está implícito no texto de Dunbar, ainda que não com tantas palavras, foi refutada a ideia de Marshall McLuhan de que “o meio é a mensagem”, embora sua outra memorável sugestão, a do advento de uma “aldeia global”, tenha se tornado realidade. “Ainda que virtualmente”… Mas a “virtualidade” não seria uma diferença que faz a diferença – maior e com muitas outras consequências para o destino das “relações significativas” do que Dunbar está disposto a (ou se preocupa em) admitir? Viver nas “antigas comunidades rurais” tornava difícil criar vínculos que já não tivessem sido estabelecidos “por si mesmos”, precisamente pela circunstância de as pessoas estarem misturadas dentro da mesma “comunidade rural”; e também dificultava (talvez mais) a dissolução dos vínculos que já estavam ali; era custoso anulá-los e invalidá-los, a não ser pela morte de uma ou mais pessoas por eles ligadas. Viver on-line, por outro lado, torna o “estabelecimento” de uma relação algo muitíssimo fácil; mas também facilita bastante a opção de abandonar uma relação, ao mesmo tempo que torna enganosamente fácil, nesse meio tempo, negligenciar a perda de conteúdo da “relação” quando esta se enfraquece, murcha e afinal se dissolve por mera falta de atenção. Há motivo para suspeitar de que são essas facilidades que têm assegurado e garantido a tremenda popularidade dos sites das “redes sociais”; e que fez de seu autoproclamado inventor e sem dúvida marketeiro-chefe, Mark Elliot Zuckerberg, um multibilionário instantâneo. Essas faculdades permitiram que o avanço moderno rumo ao desembaraço, à conveniência e ao conforto enfim alcançasse, conquistasse e colonizasse uma terra até então teimosa e apaixonadamente independente dos vínculos humanos. Tornaram essa terra livre de riscos, ou quase; impossibilitaram, ou quase, que pessoas não mais desejáveis abusassem da hospitalidade; fizeram com que reduzir as perdas fosse uma coisa gratuita. No cômputo geral, conseguiram a façanha de enquadrar o círculo, de preservar uma coisa e ao mesmo tempo destruí-la. Ao livrar a atividade do inter-relacionamento de toda e qualquer amarra, esses sites puxaram e removeram a mosca feia da inquebrantabilidade que costumava manchar o doce unguento do convívio humano. Dunbar está certo ao afirmar que os substitutos eletrônicos da comunicação face a face atualizaram a herança da Idade da Pedra, adaptando e ajustando os métodos e recursos do convívio humano às exigências de nossa nouvel âge. O que ele parece esquecer, contudo, é que, no decorrer da adaptação, esses métodos e recursos também foram muito alterados; por isso, as “relações significativas” também mudaram de significado. O mesmo deve ter acontecido com o conteúdo do conceito de “número de Dunbar”. A menos que seja exatamente o número, e somente o número, que esvazie seu conteúdo. 28 DE DEZEMBRO DE 2010 Sobre a manchete dos jornais e outras páginas As manchetes de primeira página, fiéis ao espírito de Natal, são alegres e estimulantes. Anunciam o iminente fim da crise: os Estados Unidos se aproximam da luz fugidia no fim do túnel que se chama “volta à normalidade”. A saber: os compradores retornaram em bandos aos shopping centers – como que arrependidos pelo momentâneo arrefecimento de seu entusiasmo e para compensar o tempo perdido. Como nos bons e não tão velhos tempos, suas mãos não tremem ao puxar das carteiras os cartões de crédito. Joias e artigos de luxo estão de novo em alta, e o otimismo que enche as butiques só pode se esparramar pelas lojas das ruas comerciais e barracas de mercado. Por conseguinte, o lucro dos vendedores de presentes promete atingir este ano níveis pré-depressão. E isso só pode significar uma coisa: nosso senhor e anjo da guarda, a Economia, está mais uma vez em movimento. É isso que você teria aprendido sobre a situação do seu país se tivesse saído diretamente das primeiras páginas dos jornais para a TV e outras mídias voltadas para o entretenimento. Contudo, não foi isso que você aprendeu se por acaso for um dos muitos que deixaram de contribuir para a renda dos shopping centers e, assim, acabou omitido das estatísticas; ou se for um entre o 1,5 milhão de americanos oficialmente classificado como desempregado. “No mundo real”, como Bob Herbert observa em seu artigo na página de opinião do New York Times de 27 de dezembro, “em que as famílias precisam se alimentar e pagar suas contas, há um número assustador de americanos deixado para trás.” No John J. Helridge Center for Workforce Development da Universidade Rutgers, os professores Carl van Horn e Cliff Zukin orientam um projeto de pesquisa que tem registrado os tortuosos detalhes referentes a localização, condições e sentimentos da mesma amostra de trabalhadores desde o verão do ano passado. Seu último relatório, publicado ao mesmo tempo que as manchetes otimistas acima resumidas, recebeu um título terrível e alarmante: “O sonho americano abalado: trabalhadores desempregados perdem espaço, esperança e fé no futuro.” O relatório mostra (e outros devem ter observado, mas deixado de mencionar ou simplesmente omitido) a contínua degradação social das pessoas que perderam seus empregos. Três quartos da mostra permaneceram desempregados durante todo o estudo; dois terços já estão agora sem uma renda proveniente do trabalho há um ano ou mais; e um terço, há dois anos ou mais. As economias feitas em toda sua vida se foram, eles venderam todos os bens passíveis de venda e sobrevivem do dinheiro emprestado por parentes ou amigos. Quanto aos mais velhos entre esses desempregados, eles constituem uma nova classe – os “involuntariamente aposentados”. Muitos dos que têm cinquenta anos ou mais não acreditam que voltarão a ter um emprego em tempo integral. Quanto aos 25% que tiveram sorte suficiente para voltar ao trabalho, quase todos receberam e aceitaram ofertas de emprego com salários mais baixos e menos benefícios, ou benefício algum. Dos 50 mil novos empregos acrescidos às estatísticas pertinentes em novembro, mês que viu o “retorno dos compradores” comemorado nas manchetes das primeiras páginas, 80% eram temporários. Uma das características mais salientes da atual disposição predominante na amostra, segundo Van Horn, é a falta de fé no preceito “de que, se você for determinado e trabalhar duro, poderá ir adiante”. Degradados e humilhados, esses extrabalhadores não contam mais com tempos melhores. E, como comenta Bob Herbert, “pessoas desempregadas não compram muitas TVs de tela plana” – e assim, para piorar as coisas, sua lamentável condição não tende a encontrar muita solidariedade por parte daquela parcela da nação que agora volta aos shoppings. Eles, os desempregados transformados em consumidores não apenas falhos, mas desqualificados e abaixo do padrão, dificilmente se juntarão ao bando que proclama e promove a “vigorosa recuperação” revelada pelos redatores das manchetes. Podemos esperar que em breve surjam estatísticas mostrando que a consequência mais duradoura e corrosiva de dois anos de colapso do crédito e das formas como os poderes constituídos reagiram a isso é um aprofundamento ainda maior da desigualdade social que já está corroendo a sociedade americana a partir de dentro. Como apontou Tony Judt em Ill Fares the Land, seu último alerta dos muitos endereçados à nação americana ao longo dos anos: A desigualdade, … então, é não apenas pouco atraente em si mesma; ela corresponde claramente a problemas sociais patológicos que não podemos ter a esperança de enfrentar a menos que atentemos para sua causa subjacente. Há uma razão para o fato de mortalidade infantil, expectativa de vida, criminalidade, população prisional, doença mental, desemprego, obesidade, desnutrição, gravidez de adolescentes, uso de drogas ilegais, insegurança econômica, dívidas pessoais e ansiedade serem muito mais observados nos Estados Unidos e no Reino Unido que na Europa continental. … A desigualdade é corrosiva. Apodrece a sociedade a partir de dentro. O impacto das diferenças materiais leva algum tempo para aparecer: mas, no devido tempo, a competição por status e bens aumenta; as pessoas assumem cada vez mais um sentido de superioridade (ou inferioridade) baseado em suas posses; os preconceitos contra os que estão nas camadas de base da pirâmide social se acentuam; a criminalidade aumenta e as patologias da desvantagem social se tornam cada vez mais observáveis. A herança da criação desregulamentada de riquezas realmente é amarga.5 Quando as estatísticas confirmando as sombrias premonições de Judt estiverem afinal disponíveis, em que página dos jornais serão publicadas? 29 DE DEZEMBRO DE 2010 Sobre (alguns) dilemas Um ano atrás Janina me deixou. Adal E. Stevenson opinou sobre Eleanor Roosevelt: “Ela preferia acender velas a maldizer a escuridão, e seu brilho aqueceu o mundo.” Eleanor Roosevelt, por sua vez, refletiu sobre o poder humano de estabelecer limites à impotência: “Ninguém pode fazê-lo sentir-se inferior sem o seu consentimento” – e ela conhecia esse poder por havê-lo encontrado em si mesma. Toutes proportions gardées (Janina nunca foi mulher de presidente e só tinha velas suficientes, e não mais que isso, para afastar a escuridão de uma sala e aquecer os que nela se encontravam), sinto como se lesse palavras pronunciadas sobre ela e por ela; palavras ditas para descrever a lógica de sua vida e transmitir a essência de sua fé, sua forma própria de ser e estar no mundo. Em sua autobiografia, Arrow in the Blue, Arthur Koestler escreve: Não se pode agir, escrever ou mesmo viver livre de responsabilidade. Treine um cachorro a correr atrás de bicicletas, mas não de automóveis, depois passe por ele dirigindo uma moto; ele vai reagir com uma neurose experimental. Treine uma nação a acreditar que tolerância é bom, perseguição é ruim, e pergunte-lhe se é certo ou não perseguir pessoas que desejam abolir a tolerância; a reação será muito semelhante. Lutando para encontrar uma forma de conviver com essa verdade filosófica – a consciência de que a culpa pode ser deslocada, mas não removida, do agir, do escrever e do viver –, ele prossegue: Se o pessimismo do filósofo é uma atitude válida, o dever do militante humanista de manter a esperança diante de probabilidades adversas também é válido. … Temos de aceitar a perpétua contradição entre ambos. Se admitirmos que o derrotismo e o desespero, ainda que justificados do ponto de vista lógico, são moralmente errados, e que a resistência ativa ao mal é uma necessidade moral, ainda que absurda da perspectiva lógica, poderemos encontrar uma nova abordagem de uma dialética humanista. Bem, talvez possamos. Embora não seja possível ter garantia disso se não continuarmos a tentar e nos recusarmos a assumir a falta de certeza como motivo para parar. 31 DE DEZEMBRO DE 2010 Sobre se “democracia” ainda significa alguma coisa – e, se significa, o que é? Essa pergunta pode ser tudo, menos nova. Em Arrow in the Blue, livro escrito em 1952, mas que resume as amargas lições transmitidas nos vinte anos de esperanças frustradas e oportunidades perdidas registrados pelos historiógrafos sob o nome de “período entreguerras”, Arthur Koestler relembra: Travamos nossa batalha de palavras e não percebemos que as palavras conhecidas haviam perdido sentido e apontavam na direção errada. Dizíamos “democracia” solenemente, como em oração, e logo em seguida a maior nação da Europa entronizou pelo voto, por métodos democráticos, assassinos no poder. Cultuávamos a vontade das massas, e esta revelou ser a morte e a autodestruição. … O progresso social por que lutamos tornou-se um progresso rumo ao campo de trabalho escravo; nosso liberalismo nos fez cúmplices de tiranos e opressores; nosso amor pela paz estimulou a agressão e levou à guerra. Tentemos entender o que coloca em movimento esse processo bizarro – estranhamente reminiscente do suposto hábito das galinhas de continuar a correr mais alguns metros depois que suas cabeças foram cortadas. Os significantes podem abandonar, amputar e alterar seus “significados” (os “referentes” aos quais devem “referir-se”) sem perder seu eleitorado. Algo semelhante ocorre com significantes definidores de nossa “civilização ocidental” como “democracia”, “liberdade”, “progresso”, “tolerância” e “paz”. Propelidos e instigados pelo apoio entusiástico de seu eleitorado às causas e às promessas que representavam na origem, os significantes podem ser trocados e fixados a significados distantes ou mesmo opostos dos originais sem danos importantes para o entusiasmo de seus patrocinadores. Uma vez conquistadas, aperfeiçoadas, cultivadas e estabelecidas – aprendidas e absorvidas –, lealdade, conformidade e disciplina de rebanho vinculadas às palavras bordadas nas bandeiras, assim como os hábitos que logo se transformam em ação ao mero som dessas palavras, vão resistir a uma infinidade de inversões. Essas palavras se transformam de nomes de causas em nomes de acampamentos militares ou campos de concentração, e a obediência pode ser (e é) exigida e obtida pela recordação do último confronto entre “nós” e “eles” – sem que a causa e o propósito da guerra em curso voltem a ser mencionados, que dirá submetidos a um teste. Num artigo apresentado no site da revista truthout, publicada pela internet, sob o título “Vivendo na era da amnésia imposta: o eclipse da formadora cultura democrática”, Henry A. Giroux imagina como se pode explicar “a vassourada eleitoral que acabou de recolocar no poder os mais egrégios candidatos do Partido Republicano”. Afinal, os vitoriosos são as pessoas que nos deram o Katrina, transformaram a tortura em política de Estado, promoveram o macarthismo racial, comemoraram a agressão aos imigrantes, colocaram o país em duas guerras desastrosas, construíram mais prisões que escolas [eu acrescentaria que 758 pessoas em cada 100 mil estão atualmente cumprindo pena em prisões americanas, constituindo de longe o maior contingente do mundo; se acrescentarmos os que estão em liberdade condicional, 6 milhões de americanos se encontram sob a vigilância dos órgãos de coerção do Estado], quebraram o Tesouro público, celebraram a ignorância sobre a evidência científica (“metade dos congressistas não acredita em aquecimento global”) e promoveram a fusão entre os poderes político e corporativo. Como se pode explicar essa decisão do eleitorado? Giroux sugere duas justificativas possíveis. Uma é a exitosa transformação da “justiça punitiva e de um teatro de crueldade” numa fórmula política aceita (ou pelo menos aceitável) para a maioria dos americanos. A outra é o ritmo acelerado da “amnésia social”: os mais ultrajantes delitos dos governantes, que não faz muito tempo eram sujeitos aos clamores do público, são postos de lado ou simplesmente esquecidos a tempo para as eleições de meio de mandato. Mas há também outra possibilidade, talvez repulsiva demais para o futuro da democracia a fim de ser exposta ao público e debatida com seriedade. É a possibilidade, para não dizer probabilidade, de que o vínculo entre agenda pública e interesses privados, o verdadeiro fulcro do processo democrático, tenha sido rompido – cada uma das duas esferas gira agora em espaços mutuamente isolados e são movimentadas por fatores e mecanismos mutuamente desconectados, que não se comunicam (embora sem dúvida elas não sejam independentes!). Falando de maneira simples, são situações em que as pessoas atingidas não sabem o que as atingiu – e têm pouca chance de (e dificilmente continuam tendo disposição para) descobrir. O que se oferece para os que buscam e sonham com a reconexão são “curtos-circuitos”, conhecidos por emitir uma luz ofuscante por um breve momento, mas que depois tornam a escuridão ainda mais profunda, impenetrável e assustadora que antes. O que possa ter permanecido de seu desejo de voltar do exílio, e que os separou da comunidade de destino responsável por condená-los à solidão e ao abandono sem esperanças, é dissolvido, dissipado e desaparece numa sucessão ao que tudo indica interminável de esperanças frustradas. O efeito geral de ser submerso por esse tipo de situação foi resumido por Danilo Zolo: “Estamos”, insinuou ele, “na presença de um regime que creio possa ser chamado de ‘teleoligarquia pós-democrática’: uma pós- democracia em que a ampla maioria dos cidadãos não ‘escolhe’ nem ‘elege’, mas ignora, silenciosa e obedientemente.”6 Há outro fator que acelera muito essa descida rumo a uma era “pós-democrática” do tipo “não se incomode”, je m’en fous – por parte de um eleitorado “ignorante, calado e obediente”. Segundo a expressão cunhada por Paul Krugman em sua contribuição à página de opinião do New York Times de hoje, “O novo vodu”: “A hipocrisia nunca sai de moda, mas, mesmo assim, 2010 foi algo especial. Pois foi o ano da algaravia do orçamento – o ano dos incendiários posando de bombeiros, de pessoas protestando contra o déficit enquanto fazem o possível para aumentá-lo.” A mensagem geral que transpirou de informações vazadas das regiões superiores do mundo da política foi de incongruência, se não de inanidade pura e simples. Um dos silogismos fundamentais da lógica elementar adverte que “se p e não-p, então q”, significando (numa tradução simplificada, porém honesta) que, se uma proposição e sua negação forem simultaneamente aceitas, isso pode dar em qualquer coisa (e, portanto, nada tem mais fundamento do que nada, de modo que não se pode confiar em coisa alguma); em outras palavras, que tudo pode ser afirmado, mas (ou melhor, pois) nada resiste ao teste da razão. Contudo, manchetes como “McConnel ataca os gastos deficitários. Defende a ampliação do corte de impostos” agora se tornaram a dieta comum oferecida aos leitores pela imprensa americana. Confrontados com esses tipos de afirmação conflitante apresentada num só fôlego para aprovação simultânea, os leitores têm poucas opções além de admitir que as coisas que decidem seu bem-estar e suas expectativas existenciais estão além de sua compreensão e lá tendem a ficar; e onde há ignorância logo haverá impotência. Tem-se afirmado desde os primórdios da moderna ciência política que, como as autoridades do Estado têm de lidar com assuntos complicados demais para as pessoas comuns, a democracia tende a ser o governo de especialistas altamente instruídos, e o papel das pessoas comuns se reduz à aprovação ou desaprovação periódica das ações deles. A prática política contemporânea, contudo, foi muito além das expectativas dos cientistas políticos. Os especialistas lá de cima não precisam mais repetir que as coisas são complicadas demais para ser avaliadas do modo adequado pelos leigos; portanto, devem ser deixadas para quem entende do assunto. Eles demonstram dia após dia, e para além da dúvida razoável (se a “razoabilidade” ainda é uma qualidade reconhecível), que, ao aplicar sua inclinação inata e suas ferramentas herdadas ou aprendidas (as únicas de que dispõem) para separar o certo do errado, os leigos são incapazes de chegar a (diferente de repetir ou ecoar) uma avaliação. Em sua jornada ascendente, em direção às regiões sombrias nas quais se produzem as avaliações políticas e se tomam as decisões correspondentes, a lógica que orienta os empreendimentos de nossas vidas se interrompe (ou melhor, é interrompida com brutalidade) bem abaixo do nível que ela luta por atingir. Essa suposição nos faz tremer – mas a falta de lógica não estaria se tornando a última arma maravilhosa das autoridades do Estado, divididas como se encontram entre um déficit agudo de poder e as duras exigências do exercício de governar, às quais sua política impotente é muito fraca para atender? É uma arma milagrosa, tão barata quanto fácil de empregar (tomando de empréstimo outra expressão de Krugman: “tudo de que se precisa são eleitores descontentes que não saibam o que está em jogo – e temos um monte deles”). Não é a incongruência desconcertante e desafiadora da razão a responsável por estimular as “pessoas comuns” desanimadas e desencantadas a virar as costas e afastar os olhos da Política com “P” maiúsculo, permitindo assim que seus praticantes se safem com seus jogos de simulação e falsas promessas de transformar os círculos em quadrados e conciliar o inconciliável? A receita mais eficaz para interromper a comunicação e evitar que ela volte é, afinal, privá-la da presunção e da expectativa de significação e de sentido. Não é mais possível aplacar os medos e premonições de alguém culpando as crescentes ansiedades sobre o futuro da democracia e sobre sua capacidade de realizar a tarefa em nome da qual ela se originou; nem a arte da hipocrisia, na qual setores da elite política se transformaram em grandes mestres; nem sua incapacidade acoplada à desonestidade pessoal e à corrupção. Essa arma maravilhosa pode ser (tal como o foguete V2 para Hitler) a última que resta aos operadores de uma política que ultrapassou sua data de validade; sua derradeira esperança de suspender a execução. a) Em 5 de setembro de 1905 foi assinado o Tratado de Portsmouth, que pôs fim à Guerra Russo-Japonesa, travada desde o ano anterior pela posse da Coreia e da Manchúria. (N.T.) b) Bíblia Sagrada, edição pastoral, Paulus, disponível em: www.paulus.com.br. (N.T.) • Janeiro de 2011 • 1º DE JANEIRO DE 2011 Sobre o Anjo da História, reencarnado… Angelus Novus mostra um anjo que parece se afastar de algo que ele contempla com fixidez. Os olhos estão arregalados, a boca aberta, as asas também. É como se descreve o anjo dessa história. Sua face está voltada para o passado. Onde percebemos uma cadeia de eventos, ele vê uma só catástrofe que acumula escombros sobre escombros, e os lança diante de seus pés. O anjo gostaria de ficar, despertar os mortos e consertar o que foi esmagado. Mas uma tormenta está chegando do Paraíso; ela atingiu suas asas com tal violência que o anjo não consegue mais fechá-las. A tormenta o empurra irresistivelmente na direção do futuro, para o qual ele está virado de costas, enquanto a pilha de dejetos à sua frente cresce na direção do céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso.1 Assim escreveu Walter Benjamin contemplando um desenho de Paul Klee. Inspirado pelas sugestões emanadas desse desenho, Benjamin menosprezou o credo de adoradores, veneradores, poetas da corte, sicofantas e companheiros de viagem do “progresso histórico”, sua representação da história como um processo desencadeado e mantido em movimento pelo impulso de projetos, visões e esperanças de mais felicidade; não somos impelidos por um futuro luminoso, insistiu Benjamin, mas repelidos, empurrados e forçados a correr pelos horrores sombrios do passado. A descoberta mais seminal de Benjamin é que o “progresso” sempre foi e continua a ser uma fuga de, em vez de um movimento na direção de… Mas observemos que o Anjo da História de Benjamin/Klee, tal como a tempestade que o lança para o futuro, é mudo. A alegoria de Benjamin/Klee não representa palavras, mas acontecimentos; não o que os seres humanos, agentes e vítimas involuntários da história, dizem sobre seus motivos para viver correndo, mas o que está acontecendo com eles. Benjamin se autoproclamava um “materialista histórico”. Em sintonia com a cultura predominante em sua época, acreditava nas leis da história (leis estabelecidas para e pelos modernos, e das quais se esperava que preenchessem o vácuo deixado pelo desígnio e a providência divinos); e compartilhava a crença também difundida na determinação histórica, um concomitante “natural” (e indispensável) das ambições de construir e administrar a ordem do ambicioso Estado moderno. Todas essas crenças, contudo, incluindo a ideia da “história” como um poder sobre-humano que ordena o que o homem propõe, perderam muito de sua credibilidade e aparência autoevidentes, com o definhamento do “substrato material” da história: aquele Estado promissor, autoconfiante e (pelo menos em intenção) todopoderoso, atrevido, irrestritamente ambicioso e invejoso em relação aos competidores reais ou potenciais, à maneira do Deus monoteísta. Os Estados, tal como agora os conhecemos a partir de nossa própria experiência, tendem a terceirizar, transferir operações, subcontratar e subsidiarizar tudo aquilo que o Estado – tal como lembrado no obituário de Benjamin e como era na época em que ainda estava vivo por trás da máscara do Anjo da História – visava a monopolizar e colocar sob sua administração exclusiva (sendo o desvanecimento do “Estado social” apenas uma das muitas facetas indetectáveis de sua retirada). Se estivéssemos procurando uma alegoria adequada para o que se passa em nossos dias, precisaríamos deixar de lado o único e singular Anjo da História e colocar em seu lugar um enxame de “anjos biográficos”. Confessaríamos ser uma multidão de reclusos, impelidos para um futuro para o qual se voltam nossas costas, enquanto a pilha de escombros (de nossas esperanças arruinadas, expectativas frustradas e oportunidades perdidas) à nossa frente cresce em direção ao céu… Fomos sentenciados, todos e cada um de nós, ao que Anthony Giddens chama de “política de vida”, sob a ordem de lutar ou fingirmos ser a um só tempo nossos próprios Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Nada de salvação pela sociedade, como Peter Drucker oportunamente nos lembrou. Agora cabe a nós mesmos, como Ulrich Beck observou de modo cáustico, encontrar soluções individuais para a condição que todos compartilhamos (ou, para ficar mais perto de nosso tema, invocar na biografia individual o que no passado se presumia residir na história coletiva). A questão não é mais como acalmar e pacificar águas turbulentas, mas (como para o marinheiro náufrago de Uma descida ao Maelström, de Edgar Allan Poe) de que modo encontrar ou montar um barril bem redondo e, pulando de onda em onda, talvez conseguir de alguma forma escapar ao afogamento. Mas que aconteceu ao Anjo da História de Benjamin? Como tantas outras intenções, projetos, funções e promessas de ação coletiva administrados pelo Estado, disfarçados de “progresso”, ele foi privatizado. Pelo menos foi colocado no mercado para venda privada. O original, no estilo haute couture, adornado com o logotipo “Deus” ou “História”, é agora produzido em massa, anunciado e vendido com desconto nas lojas de ruas comerciais: um anjo de biografia personalizado, do tipo “faça você mesmo”, para que todos possam montá-lo. Exatamente o que ocorreu com o próprio Deus, como Ulrich Beck assinalou em seu último livro, A God of One’s Own. E assim, em última instância, tudo se resume não às narrativas que aprendemos a recitar, mas às teimosas, recalcitrantes, resistentes realidades sociais que tentamos narrar (enquanto somos forçados a fazê-lo). Em nossa sociedade pulverizada, atomizada, salpicada dos escombros de vínculos inter-humanos rompidos e de seus substitutos eminentemente frágeis e quebráveis, há uma profusão de diminutos anjos de pequenas biografias para nos horrorizar e nos compelir à fuga. Entre os outros odores e visões revoltantes e desconcertantes, os dos zumbis da “sociedade” e da “comunidade”, podres e fedorentos, talvez sejam os mais evidentes. 2 DE JANEIRO DE 2011 Sobre encontrar consolo em lugares inesperados The Spirit Level, o estudo revelador de Richard Wilkinson e Kate Pickett que demonstrou e explicou “por que a igualdade torna as sociedades mais fortes”, afinal começa a abrir caminho rumo à opinião pública (graças ao comentário de Nicholas D. Kristof na edição de Ano-novo do New York Times). O atraso ainda é mais sugestivo porque, nos Estados Unidos, país firmemente assentado no topo da principal divisão da desigualdade global (segundo as últimas estatísticas, o 1% mais abastado da população americana controla mais riqueza que os 90% da base) e aquele que forneceu aos pesquisadores os exemplos mais extremos de danos colaterais da desigualdade, a mensagem de Wilkinson e Pickett deveria ter soado urgente e disparado um alerta vermelho. Mesmo nesse estágio tardio, Kristof prefere apresentar os autores da pesquisa aos leitores americanos como “renomados epidemiologistas britânicos” (em vez de relacioná-los aos estudos sociais – contadores de histórias que carregam a culpa, segundo os líderes de opinião americanos, de um viés esquerdista-liberal condenável e desprezível, e por isso são descartados antes que se possa ouvi-los, muito menos escutá-los). Provavelmente guiado pela mesma prudência, Kristof cita, do estudo resenhado, os dados concernentes aos macaques,a às relações entre os de alto e baixo status, e entre eles e outros “macacos” sem nomes específicos. Mencionando em seu apoio a frase de John Steinbeck sobre a “alma triste” capaz de “matá-lo mais rápido, bem mais, que um germe”, ameniza a possível apreensão de leitores tendentes a descobrir por meio de observação cuidadosa outra ameaça de aumento de impostos; e impede qualquer protesto violento dispondo a má notícia em ordem menos ameaçadora aos bolsos: o tributo da desigualdade, assinala, “não é somente econômico, mas também uma espécie de melancolia da alma”. Ele admite, contudo, ainda que de modo indireto, e portanto inócuo, que o tributo também é “econômico”, ao apontar que a escolha é entre menos desigualdade e mais prisões e polícia – alternativas muito bem conhecidas por serem custosas em termos da taxa de impostos. Na versão de Kristof, a desigualdade não é ruim em si, por sua própria injustiça, desumanidade, imoralidade e potencial de destruição da vida – mas por tornar a alma triste e melancólica. Quanto à sua mórbida conexão com a biologia, agora enfim cientificamente confirmada, Kristof tem a dizer o seguinte: “Os seres humanos ficam estressados quando se encontram na base de uma hierarquia. Esse estresse leva a mudanças biológicas” – tais como a acumulação de gordura abdominal, doenças cardíacas, comportamento autodestrutivo e (sic!) … pobreza persistente. Agora afinal sabemos – com endosso e atestado de cientistas renomados, insuspeitos de simpatias malévolas e conexões ilícitas – por que algumas pessoas se afundam na miséria, por que, ao contrário de nós, não podem deixar de afundar nem conseguem sair dela, uma vez que lá estejam. Essa descoberta científica surge como um adoçante muito necessário para a lembrança amarga da desigualdade recorde em âmbito mundial: um fio de esperança por sob aquela nuvem odiosa e ameaçadoramente sombria. É tudo biologia, imbecil! Da mesma forma, alguém poderia dizer que falar abertamente, qualquer que seja a forma, é melhor que manter silêncio; e todos sabem que falar abertamente, embora tarde, é melhor que nunca falar. Uma mensagem truncada, esterilizada e branda é melhor que nenhuma – ficamos tentados a acrescentar. Mas será mesmo? O pretenso apelo às armas não teria sido sub-repticiamente transformado, nesse processo, num chamado a depô-las? Em vez disso não deveríamos, em nome da mensagem de que somos portadores e do bem que ela deveria produzir, tomar cuidado para não nos rendermos a essa tentação? “A melhor parte da bravura é a prudência”, opinou um dos personagens menos admiráveis de Shakespeare, acrescentando que “nessa melhor parte eu salvei minha vida”. Confrontados com um déficit de bravura, muitos buscariam aquela parte conhecida como melhor – seguindo a sabedoria… de Falstaff. 3 DE JANEIRO DE 2011 Sobre crescimento: precisamos dele? O professor Tim Jackson, da Universidade de Surrey, em seu último livro, Redefining Prosperity, aciona o alarme: o atual modelo de crescimento produz danos irreversíveis. Isso porque o “crescimento” é medido pelo aumento da produção material, e não por serviços como lazer, saúde e educação. A memorável justaposição de mineração e agricultura proposta por Lewis Mumford nos vem à mente: aquela fere, destrói e enfeia o ambiente, enquanto esta o cura, torna-o capaz de se autorregenerar, o embeleza. Aquela torna o solo inabitável, esta o faz hospitaleiro e convidativo à habitação humana. Aquela viola, extrai, remove, esvazia e deixa atrás de si um vácuo: mata. Esta cuida, ajuda e acrescenta, preenche, reabastece: mantém vivo; aquela esgota recursos finitos; esta regenera e ressuscita recursos: torna-os para sempre renováveis. Mas observemos que Mumford pensava sobre as bênçãos da agricultura numa época em que ela em geral ainda sustentava a sobrevivência humana, e não os ganhos monetários. Era feita sob medida para necessidades humanas constantes, resistentes à ampliação, e que portanto permaneciam em princípio finitas – não para a cupidez e a avareza humanas, em princípio infinitas. O planeta, com seus recursos reconhecidamente finitos, talvez seja capaz de satisfazer às necessidades do homem, mas é totalmente inadequado à satisfação de sua ganância. Jackson só culpa a cobiça indiretamente pelos danos irreparáveis que são feitos ao potencial do planeta – destacando como alvo “nossa cultura baseada num apetite constante por novidade – que é o aspecto simbólico dos objetos” (ver sua entrevista no Le Monde de hoje). Da mesma maneira, somos sempre encorajados a nos comportar de forma egoísta e materialista – sendo essa atitude indispensável para sustentar nosso tipo de economia. Somos estimulados, forçados ou induzidos a comprar e gastar, gastar o que temos e o que não temos, e esperamos ganhar no futuro. Na recessão, contudo, sugere Jackson, as pessoas abandonaram esses hábitos mórbidos e voltaram a poupar em vez de gastar, revelando o lado altruísta de sua natureza (imagino sobre que fatos se sustenta a suposição; há muitas evidências de que, “numa recessão”, algumas pessoas forçosamente, contra sua vontade e para seu grande desgosto, são desqualificadas como dignas de crédito e eliminadas da orgia consumista, enquanto outras prosseguem, inabaláveis; e seria preciso muito contorcionismo, exagero e manipulação para interpretar essas variadas reações à recessão como sinais da emergência de inclinações altruístas até então ocultas ou reprimidas). Como assinalou Adam Smith, num mercado, devemos nosso suprimento diário de pão fresco à cobiça do padeiro, não a seu altruísmo, caridade, benevolência ou padrões morais elevados. É graças à mais que humana avidez de lucro que os produtos são levados às prateleiras dos mercados e podemos ter certeza de encontrá-los. Mesmo Amartya Sen, que insiste em que o bem-estar e a liberdade de levar vidas decentes precisam ser vistos como derradeiro objetivo da economia (no ensaio, “Justiça no mundo global”, em Indigo do inverno de 2011), e admite que “não é possível haver economia florescente sem amplo uso de mercados, de modo que o desenvolvimento (e não a prevenção) dos mercados necessários deve ser parte de um mundo econômico próspero e justo”. Então, em primeiro lugar, eliminar a cobiça e buscar o lucro significa fazer desaparecer os mercados e com eles os produtos. Em segundo lugar, sendo os mercados necessários para que “a economia floresça”, egoísmo e avareza só podem ser eliminados dos motivos humanos por nossa conta e risco comuns. Finalmente, uma terceira conclusão: altruísmo é incompatível com “economia florescente”. Pode-se ter um ou outro, mas dificilmente os dois ao mesmo tempo. Jackson deixa de lado esse sério obstáculo apostando na razão e no poder de persuasão humanos; ambos são armas poderosas, não há dúvida, e poderiam até ser eficazes em “remodelar o sistema econômico” – não fosse pelo desastroso fato de os ditames da razão dependerem da realidade sobre a qual se raciocina, e de essas realidades, quando objeto de raciocínio de agentes racionais, disporem de um “poder de persuasão” muito mais forte que qualquer argumento que as ignore ou menospreze. A realidade em questão é uma sociedade que só pode resolver (ainda que de modo imperfeito) os problemas por ela criados (conflitos sociais e antagonismos que ameacem sua própria preservação), reforçando o “apetite por novidades” – e portanto recorrendo à cobiça e à avareza que mantêm a economia “florescendo”. Nos estágios iniciais do capitalismo, o maior obstáculo à ascensão da economia industrial era o “trabalhador tradicional”, guiado não pela cobiça, mas pela necessidade, e portanto sem razão para ir trabalhar hoje se o dinheiro ganho ontem fosse suficiente para cobrir suas necessidades (inalteradas) de hoje. No atual estágio da história do capitalismo, a figura de um “consumidor tradicional” que não visse razão para ir às compras hoje se os produtos já adquiridos estivessem funcionando a contento também seria desastrosa para a economia de consumo. Uma redução do apetite popular por mercadorias estritamente necessárias para satisfazer as necessidades seria um golpe mortal no único modelo econômico agora disponível – ou seja, na economia consumista. A questão, porém, é que seria um golpe mortal no único e exclusivo modelo de sociedade hoje aprovado. Não é apenas uma “economia florescente” que depende da cobiça do padeiro, mas a única receita empregada para a coexistência ordeira entre os seres humanos – e que estamos determinados a empregar. Para fazer frente a todas essas possibilidades aterradoras, Jackson propõe um programa baseado em três pontos; conscientizar as pessoas de que o crescimento econômico tem limites; convencer (obrigar?) os capitalistas a se comprometer com a distribuição de seus lucros não apenas em “termos financeiros”, mas também de acordo com os benefícios sociais e ambientais para a comunidade; e “mudar a lógica social”, de modo a que os governos favoreçam os estímulos que hoje levam as pessoas a expandir e enriquecer suas vidas de outras maneiras que não as materialistas. Há um obstáculo, porém: tudo isso poderia ser seriamente contemplado sem se enfrentarem os aspectos da condição humana que, em primeiro lugar, estimularam as pessoas a buscar recompensa nos mercados? – ou seja, injustiças que procuram em vão por remédios (genuínos ou putativos) e ansiedades de que a sociedade não cuida; portanto, não se encontram válvulas de escape senão as oferecidas pelo mercado e redirecionadas para mercados de consumo, na esperança insistente, embora vã e enganadora, de encontrar uma terapia ou uma solução. 4 DE JANEIRO DE 2011 Sobre sustentabilidade: desta vez, da social-democracia… Social-democratas: será que eles sabem para aonde vão? Será que têm noção do que seja uma “boa sociedade” pela qual valha a pena lutar? Duvido. Creio que não têm. Em todo caso, não na parte do mundo que habitamos. Registra-se que o chanceler Schröder, ao percorrer as propriedades de Tony Blair e Gordon Brown, teria dito, um bom tempo atrás, que não há economia capitalista ou socialista, apenas boa ou má economia… Já por um longo tempo, pelo menos trinta ou quarenta anos, a política dos partidos social-democratas tem se articulado, ano após ano de governos neoliberais, pelo princípio de que “não importa o que vocês (a centro-direita) façam, nós (a centro-esquerda) podemos fazer melhor”. Às vezes, embora com pouca frequência, uma ou outra iniciativa audaciosa e arrogante da parte dos governantes provoca uma pontada da velha consciência socialista; nesses momentos, ocasionalmente e sem fazer disso uma grande questão, exige-se um pouco mais de compaixão e uma boia salva-vidas ligeiramente maior para “os mais necessitados” – ou um “arrefecimento do golpe” para os “mais atingidos” –, embora frequentemente apenas tomando de empréstimo o vocabulário do “outro lado”, e nunca antes de ele ter passado pelo teste da potencial popularidade eleitoral. Esse estado de coisas tem uma razão: a social-democracia perdeu seu eleitorado próprio, sua fortaleza e plataforma sociais: os enclaves habitados por pessoas situadas na ponta receptora da ação política e econômica, esperando e desejando ser colocadas ou se erguer para fora do conjunto das vítimas, atingindo um sujeito coletivo integrado, com interesses, agenda e agência políticos próprios. Em suma, o que sobrou (pelo menos em nossa parte do mundo) da classe trabalhadora industrial explorada lutando pela superação das injustiças de que tem sido vítima reduziu-se a uma posição marginal nas sociedades ocidentais, repetindo o itinerário percorrido um século antes pela mão de obra agrícola. Como Vladislav Inozemtsev recentemente assinalou em seu profundo e abrangente estudo sobre a “Crise da grande ideia” (publicado no número de agosto de 2010 da revista russa Svobodnaya Mys’l), as desigualdades sociais mais agudas e espetaculares entre aquelas características das sociedades ocidentais contemporâneas não são mais entre capital e trabalho; as fortunas mais afrontosamente gigantescas não resultam mais de uma exploração do trabalho baseada na fábrica. A defesa dos pobres, portanto, foi privada do elaborado esqueleto teórico construído por Marx, em sua análise da indústria capitalista para sustentar a prática da social-democracia. A defesa dos pobres não equivale mais à defesa da classe trabalhadora (e, portanto, privada de mais-valia). Além disso, o que sobrou do “eleitorado natural” da socialdemocracia foi quase pulverizado num agregado de indivíduos autocentrados e preocupados consigo mesmos, competindo por empregos e promoções, com pouca ou nenhuma consciência de que existe uma comunidade de destino, e menos inclinação ainda a cerrar fileiras e empreender uma ação solidária. A “solidariedade” foi um fenômeno endêmico à antiga sociedade de produtores; na sociedade de consumidores, ela não passa de uma fantasia alimentada pela nostalgia, embora os membros dessa admirável sociedade nova sejam conhecidos por acorrer às mesmas lojas nos mesmos dias e à mesma hora, agora governados pela “mão invisível do mercado”, com a mesma eficiência de quando eram arrebanhados para os pátios das fábricas e agrupados nas linhas de montagem pelos chefes e seus supervisores contratados. Reclassificado como consumidores em primeiro lugar, e produtores num distante (e não necessário) segundo lugar, o antigo eleitorado social-democrata se dissolveu no resto dos consumidores solitários, os quais não conhecem “interesse comum” a não ser o de contribuintes. Não admira que os atuais herdeiros dos movimentos social-democratas tenham os olhos fixos no “meio-termo” (não muito tempo atrás conhecido como “classe média”), e não mais se reúnam em defesa dos “contribuintes”, aparentemente divididos por seus interesses e, portanto, o único “público” do qual parece viável e plausível obter apoio eleitoral solidário. As duas partes do atual espectro político caçam e pastam no mesmo terreno, tentando vender seu “produto político” aos mesmos clientes. Não há lugar aqui para uma “utopia de si próprio”! De todo modo, não há lugar suficiente no espaço que separa uma eleição geral da seguinte. A esquerda, observou Saramago em seu diário, em 9 de junho de 2009, não parece ter notado que ficou muito parecida com a direita. Mas realmente se tornou muito parecida com a direita: O que chegou a ser, no passado, uma das maiores esperanças da humanidade, capaz de mobilizar vontades pelo simples apelo ao que de melhor caracterizava a espécie humana, e que veio criando, com a passagem do tempo, as mudanças sociais, … cada dia mais longe das promessas primeiras, assemelhando-se mais e mais aos adversários e aos inimigos, como se essa fosse a única maneira de se fazer aceitar, acabou por cair em meras simulações, nas quais conceitos doutras épocas chegaram a ser utilizados para justificar actos que esses mesmos conceitos haviam combatido. … a esquerda parece não ter percebido que se estava a aproximar da direita. Se, apesar de tudo isto, ainda é capaz de aprender com uma lição, esta que acaba de receber vendo a direita passar à sua frente em toda a Europa, então terá de interrogar-se sobre as causas profundas do distanciamento indiferente das suas fontes naturais de influência, os pobres, os necessitados, mas também os sonhadores, em relação ao que ainda resta das suas propostas. Foi a direita, e apenas a direita, que, com o consentimento da esquerda, assumiu a ditadura inconteste sobre a agenda política atual. É a direita que decide o que está dentro e o que está fora; o que pode ser dito e o que precisa/deve tornar-se/continuar impronunciável. É a direita, com a conivência da esquerda, que traça a linha limítrofe entre possível e impossível – e, desse modo, transforma a frase de Margaret Thatcher sobre não haver alternativa a ela mesma em profecia autorrealizadora. A mensagem aos pobres e necessitados não pode ser mais clara: não há alternativa a uma sociedade que abre espaço para a pobreza e para as necessidades desprovidas de qualquer perspectiva de satisfação – mas não dá espaço para os sonhos e os sonhadores. 5 DE JANEIRO DE 2011 Sobre o consumo cada vez mais rico e o planeta cada vez mais pobre O “Estado social” é hoje insustentável; mas por um motivo que nada tem a ver com a especificidade do caráter “social” do Estado, e sim com o enfraquecimento generalizado do Estado como “agência”. Repito o que já disse muitas vezes – esse é, afinal, o cerne de todos os problemas que os remanescentes do “Estado de bem-estar social” precisam enfrentar. Nossos ancestrais preocupavam-se com (e debatiam sobre) “o que deve ser feito”; nós nos preocupamos (embora dificilmente cheguemos a debater, já que o tema parece não ter futuro) com “quem vai fazê-lo”, uma questão sobre a qual nossos ancestrais jamais discutiram, pois estavam de acordo – “o Estado, é claro”! Uma vez conquistado o Estado, faremos tudo que considerarmos necessário – o Estado, essa união de poder (ou seja, a capacidade de fazer com que as coisas sejam feitas) com a política (ou seja, a capacidade de decidir quais coisas precisam ser feitas), é tudo de que precisamos para transformar o verbo em carne, não importa a palavra utilizada. Bem, essa resposta não parece mais tão evidente. Os políticos não nos deixam em dúvida, ecoando monotonamente as palavras de Margaret Thatcher: “NHA” (“Não há alternativa”). Quer dizer: fazemos nossas escolhas em condições que não escolhemos. Quanto a esse último aspecto, pelo menos, estou inclinado a concordar, embora por motivos um tanto diferentes. As condições “não são as que eles escolheram”, no sentido de que os políticos aceitam placidamente essas condições e continuam determinados a não tentar outras opções: “NHA” é uma profecia autorrealizadora, ou melhor, o lustro de uma prática adotada de boa vontade e conduzida com zelo. O Estado é “capitalista”, como Habermas apontou trinta anos atrás, escrevendo numa época em que a sociedade de produtores definhava, à medida que luta para garantir um encontro regular e efetivo entre capital e trabalho (ou seja, que envolve capital comprando trabalho). Para que esse encontro tenha êxito, o capital deve ser capaz de pagar o preço do trabalho, e o trabalho deve estar em boa forma o suficiente para atrair o capital. Portanto, podemos dizer, o “Estado social” é visto como indispensável para a sobrevivência “tanto pela esquerda quanto pela direita”. Porém, não é mais assim. Hoje, na sociedade dos consumidores, o Estado é “capitalista” porque propicia o encontro entre mercadoria e consumidor (como foi mostrado pela reação universal dos governos ao colapso dos bancos/créditos; centenas de bilhões foram encontrados nos próprios cofres que a opinião governamental considerava carentes dos poucos milhões necessários para preservar os serviços sociais). Para esse propósito, o “Estado social” é irrelevante; por conseguinte, o problema de sua emancipação e da reclassificação de seus resíduos numa questão de “lei e ordem”, e não numa questão social, está “além de esquerda e direita”. Com ou sem globalização, será que podemos prosseguir indefinidamente avaliando o aumento da felicidade pelo aumento do PIB, sem mencionar que espalhamos esse hábito para o resto do mundo e elevamos seus níveis de consumo até um ponto considerado indispensável nos países mais ricos? Deve-se considerar o impacto do consumismo sobre a sustentabilidade de nosso lar comum, o planeta Terra. Agora sabemos muito bem que os recursos do planeta têm limites e não podem ser ampliados ao infinito. Também sabemos que os limitados recursos da Terra são modestos demais para acomodar o aumento dos níveis de consumo no mundo inteiro aos padrões atingidos nas partes mais ricas – os próprios padrões pelos quais o resto do mundo tende a avaliar seus sonhos e expectativas, suas ambições e requisitos na era das infovias. (De acordo com alguns cálculos, tal feito exigiria que os recursos do planeta fossem multiplicados por cinco; cinco planetas seriam necessários, em vez do único de que dispomos.) No entanto, a invasão e a anexação do reino da moral pelos mercados de consumo fizeram com que ele se sobrecarregasse de funções adicionais que só pode desempenhar empurrando os níveis de consumo ainda mais para cima. Essa é a principal razão pela qual o “crescimento zero”, tal como medido pelo PIB – a estatística referente à quantidade de dinheiro que troca de mãos nas transações de compra e venda –, é visto como algo próximo de uma catástrofe não apenas econômica, mas também social e política. É graças, em grande parte, a essas funções extras – que não se vinculam ao consumo nem por sua natureza nem por uma “afinidade natural” – que a perspectiva de se estabelecer um limite ao aumento do consumo, para não dizer reduzi-lo a um ponto ecologicamente sustentável, parece ao mesmo tempo nebulosa e repulsiva; e que nenhuma força política “responsável” (leia-se: nenhum partido que tenha os olhos grudados nas próximas eleições) a incluiria em sua agenda política. Pode-se imaginar que a “comodificação” das responsabilidades éticas, os principais instrumentos e matériasprimas do convívio humano, combinada com a decadência gradual mas incessante de toda as formas alternativas, fora do mercado, é um obstáculo muito mais formidável à contenção e moderação dos apetites consumistas que as exigências inegociáveis da sobrevivência biológica e social. Na verdade, se o grau de consumo determinado pela sobrevivência biológica e social é por natureza inflexível, fixo, e portanto relativamente estável, os níveis exigidos para atender às outras necessidades cuja satisfação é prometida, esperada e exigida em função do consumo são, uma vez mais pela natureza dessas necessidades, crescentes e orientados para cima; a satisfação dessas novas necessidades não depende da manutenção de padrões estáveis, mas da velocidade e do grau de seu aumento. Consumidores que se voltam para o mercado de produtos buscando satisfazer seus impulsos morais e cumprir seus deveres de autoidentificação (leia-se: “autocomodificação”) veem-se obrigados a procurar diferenciais em termos de valor e volume; então, esse tipo de “demanda de consumo” é um fator predominante e irresistível no impulso para cima. Assim como a responsabilidade ética pelo outro não tolera limites, o consumo, investido da tarefa de desafogar e satisfazer impulsos morais, resiste a qualquer espécie de restrição que se imponha à sua expansão. Subordinados à economia consumista, de modo irônico, os impulsos morais e as responsabilidades éticas são transformados num terrível obstáculo quando a humanidade se vê em confronto com aquela que é incontestavelmente a mais formidável ameaça à sua sobrevivência: uma ameaça que só pode ser enfrentada mediante um volume talvez sem precedentes de autorrestrição voluntária e disposição para o autossacrifício. Uma vez acionada e mantida em movimento pela energia moral, a economia consumista só tem o céu como limite. Para ser eficaz na tarefa que assumiu, não se pode permitir a redução da velocidade, muito menos fazer uma pausa e ficar parado. Em consequência, deve-se estabelecer o pressuposto – de modo contrafactual, se não em tantas palavras, ao menos tacitamente – da durabilidade ilimitada do planeta e da infinidade de seus recursos. Desde o início da era consumista, ampliar o tamanho do pão era apresentado como remédio óbvio, na verdade um profilático infalível, contra os conflitos e disputas em torno da redistribuição desse quinhão. Eficaz ou não em suspender as hostilidades, essa estratégia devia presumir a existência de uma quantidade infinita de farinha e fermento. Agora nos aproximamos do momento em que a falsidade desse pressuposto e os perigos de se aferrar a ele têm chance de se ver expostos. Talvez seja esse o momento de a responsabilidade moral se redirecionar para sua vocação básica: a garantia da sobrevivência mútua. Entre todas as condições necessárias para esse redirecionamento, a principal parece ser a “decomodificação” do impulso moral. A hora da verdade pode estar mais próxima do que poderíamos imaginar quando contemplamos as prateleiras superlotadas dos hipermercados, os sites cheios de pop-ups comerciais, os corais de especialistas em autoaperfeiçoamento e os consultores especializados em como fazer amigos e influenciar pessoas. A questão é como anteceder ou impedir sua vinda com um momento de autodespertar. Uma tarefa que não é fácil, com certeza: seria necessário nada menos que toda a humanidade, com sua dignidade e seu bem-estar, assim como a sobrevivência do planeta, seu lar comum, fosse abraçada pelo universo das obrigações morais. 6 DE JANEIRO DE 2011 Sobre a justiça e como saber se ela funciona No mesmo ensaio da Indigo a que já me referi, e antes disso, em seu estudo The Idea of Justice,2 Amartya Sen não fica chovendo no molhado ao analisar as lições a se extrair do colapso econômico global de 2008. Embora alguns ricos tenham visto suas fortunas diminuir um pouco, foram os mais pobres, as pessoas “da base da pirâmide”, local ou global, as mais fortemente afetadas pelo colapso: “Famílias que já estavam em pior posição para enfrentar qualquer outra adversidade muitas vezes foram vítimas de uma privação ainda maior, sob a forma de desemprego prolongado, perda de lares e abrigos, perda de assistência médica e outras privações que caíram como uma praga sobre a vida de milhões de pessoas.” A conclusão, afirma Amartya Sen, é bastante óbvia: se você quer avaliar corretamente a gravidade da crise global de hoje, observe “o que está acontecendo com a vida dos seres humanos, em especial das pessoas menos privilegiadas – seu bem-estar e sua liberdade de levar uma vida decente”. As pessoas pertencentes a categorias cronicamente destituídas aprendem a aceitar seu destino e, por causa de sua “usualidade”, “inquestionabilidade” e “normalidade”, sofrem de modo humilde (“pessoas desprivilegiadas sem esperança de libertação muitas vezes tentam fazer isso mesmo para lidar com o caráter inescapável da privação”). É em tempos de crise que a desigualdade rotineira, cotidiana, perpétua e habitual (na verdade, a polarização) na distribuição de privilégios e privações é de súbito reclassificada como algo que desafia a “norma”, algo “extraordinário”, um acidente fatal, uma emergência – e assim brutalmente trazida à superfície e colocada sob uma luz deslumbrante para que todos a possam ver. Podemos acrescentar que, como as catástrofes em geral afetam as diferentes categorias de pessoas de forma desigual, o grau de vulnerabilidade a todos os tipos de terremotos naturais, econômicos ou sociais, e a alta probabilidade de ser atingido de modo mais severo que outros habitantes do país ou outros membros da humanidade, é que se revela como característica definidora da injustiça social. Mas não seria melhor começarmos por definir o padrão de justiça, de modo a estarmos mais bem-equipados para identificar e isolar casos de injustiça quando e onde apareçam (ou melhor, se escondam)? Mais fácil dizer que fazer. Amartya Sen não nos aconselharia a seguir essa linha. Indagar como deveria ser uma justiça perfeita é fazer “uma pergunta cuja resposta poderia apresentar diferenças substanciais mesmo entre pessoas bastante razoáveis”. Claro, podemos acrescentar, pois pessoas razoáveis, acostumadas à arte da argumentação e da retórica, podem ser encontradas em cada um dos campos, determinadas, numa bizarra inversão do imperativo categórico de Kant, a deformar os padrões universais propostos para adaptá-los aos seus próprios interesses nada universais; em outras palavras, determinadas a invocar a ideia de justiça para defender determinada injustiça que lhes resulte em privilégio. Há pouca esperança, então, de que um debate sobre padrões universais de justiça venha algum dia a dar frutos palatáveis a todos os envolvidos – e assim adquira a verdadeira universalidade. Mas existe outra razão para ter dúvida quanto à conveniência de um debate como esse. Como Barrington Moore Jr. apontou muito tempo atrás, as evidências históricas mostram, além da dúvida razoável, que, embora as pessoas estejam prontas a apontar injustiças em atos que alterem o atual estado de coisas ou as regras do jogo em vigor, elas tendem a ser abominavelmente lentas, se não ineptas, em declarar “injustas” condições muito mais adversas que tenham persistido por tempo suficiente para ser aceitas como “normais”, insolúveis, imunes a protestos e resistentes à mudança. Isso é semelhante ao caso (em aparência oposto) do “prazer”, o qual, como observou Sigmund Freud, só tende a ser sentido no momento em que se retira o desprazer, e dificilmente é produzido pela presença contínua e monótona mesmo das condições mais prazerosas (ou seja, livres de desprazer). Na linguagem da semiótica, podemos dizer que a “injustiça” e o “desprazer”, contrariando as aparências, são os termos básicos, “não identificados”, das oposições em que “justiça” e “prazer” são membros “assinalados”, ou seja, conceitos que extraem todo seu significado de sua oposição, negação e recusa em relação aos “não identificados”. Tudo que sabemos ou imaginamos sobre a natureza da justiça deriva da experiência da injustiça – da mesma forma que é com a experiência do desprazer, e só com ela, que podemos aprender, ou melhor, imaginar, como pode ser o “prazer”. Em suma: sempre que imaginamos ou postulamos a “justiça”, tendemos a começar pelos casos de injustiça hoje mais evidentes, dolorosos e ofensivos. Já que começamos com uma ampla variedade de experiências e com interesses profunda e muitas vezes irreconciliavelmente diversos, é improvável que cheguemos a atingir um modelo incontestável de “sociedade justa”. Incapazes de resolver o enigma, só podemos concordar com a solução de um “arranjo” – reduzido a um núcleo duro, evidente para todos, ao mesmo tempo que firmemente imparcial e resistente à tentação de dominar as futuras voltas e reviravoltas do permanente (e estimulado) debate polivocal. Eu sugeriria a seguinte fórmula como “arranjo” dessa natureza: a “sociedade justa” é uma sociedade em permanente vigilância e sensível a todos os casos de injustiça, pronta a agir para corrigi-los sem esperar o término da busca de um modelo universal de justiça. Em termos um tanto diferentes, e sem dúvida mais simples: uma sociedade mobilizada para promover o bem-estar do fracassado; “bem-estar” incluindo, nesse caso, a capacidade de tornar real o direito humano formal a uma vida decente – transformando a “liberdade de jure” em “liberdade de facto”. Implícita nessa escolha de uma fórmula de arranjo está a preferência pela “política de campanha” de Richard Rorty, em detrimento de sua concorrente, a “política do movimento”. Uma “política do movimento” começa assumindo um modelo ideal de sociedade, se não “perfeitamente” (“perfeitamente” = impossibilidade e indesejabilidade a priori de qualquer aperfeiçoamento adicional), pelo menos “amplamente” ou “plenamente” justo; em consequência, que mede e avalia qualquer movimento proposto em função de seu impacto em termos de abreviar a distância entre a realidade e o ideal, e não pelo grau em que reduz ou amplia a soma total do sofrimento humano causado pelas injustiças atuais. Uma “política de campanha” segue uma estratégia oposta: começa localizando um caso inegável de sofrimento, prossegue com o diagnóstico da injustiça que o causou e atua para corrigi-lo – sem perder tempo com uma tentativa (claramente desesperada) de resolver a questão (claramente insolúvel) do possível impacto dessa ação em tornar mais próxima a “justiça perfeita” ou atrasar sua chegada. 7 DE JANEIRO DE 2011 Sobre internet, anonimato e irresponsabilidade Resenhando no New York Times de 3 de janeiro uma coletânea de estudos organizada por Saul Levmore e Martha Nussbaum, intitulada The Offensive Internet, Stanley Fish segue a linha assumida pela maioria dos colaboradores, inserindo o tema do estudo resenhado – a questão da calúnia anônima permitida pela internet versus as exigências de sua proibição ou limitação legal – no arcabouço cognitivo da “liberdade de expressão”. Seria possível tomar partido contra o glorioso legado da Primeira Emenda, o conhecido pressuposto de que a liberdade de expressão deve ser protegida a qualquer custo, e exigir que a verbalização de certas opiniões se torne ilegal e passível de punição? Em 1995, John Paul Stevens, ministro da Suprema Corte, descartou as consequências potencialmente mórbidas do anonimato da informação, argumentando com base no mesmo arcabouço e no mesmo espírito: ele insistiu em que “o valor inerente da … expressão em termos de sua capacidade de informar o público não depende da identidade de sua fonte, seja ela empresa, associação, sindicato ou indivíduo”. Jürgen Habermas, a propósito e corretamente, discordaria dessa interpretação um tanto ampliada e distorcida da Primeira Emenda: sua própria teoria da comunicação (ideal, sem distorção) baseava-se no pressuposto (confirmado do ponto de vista empírico) de que, ao se oferecer, perceber, absorver e avaliar uma mensagem, a verdade é exatamente o oposto: é mais comum, rotineiro e trivial que nossa tendência seja a de julgar o valor da informação pela qualidade da fonte. É por isso que, como se queixava Habermas, a comunicação tende, como regra, a ser “distorcida”: quem diz importa e conta mais que aquilo que foi dito. O valor da informação é reforçado ou reduzido nem tanto por seu conteúdo quanto pela autoridade de seu autor ou mensageiro. A sequência inevitável é que, caso a informação chegue sem o nome da fonte, as pessoas se sentirão perdidas e incapazes de assumir uma posição; no que se refere à comunicação distorcida, identificar a fonte é um ato legítimo, permitindo que se tome a decisão de confiar na mensagem ou ignorá-la – e toda ou quase toda comunicação em nosso tipo de sociedade pertence a essa categoria de “distorcida”. (Para se livrar dessa distorção, a comunicação exigiria uma igualdade genuína entre os participantes, uma igualdade não apenas em torno da mesa de debates, mas na vida “real”, off-line ou longe da sala de debates. Essa condição exigiria nada menos que explodir e aplainar a hierarquia de autoridade dos participantes; não bastaria dizer às pessoas que a informação precisa ser avaliada por seus próprios méritos ou vícios, e não pelos do autor, para que essa condição fosse atingida, e é muito provável que as pessoas rejeitassem esse conselho ou instrução como contrafactual, uma evidente caricatura das duras realidades da vida. Indiretamente, e numa linguagem diferente da de Habermas, Stanley Fish o admite: “Suponhamos que eu receba um bilhete anônimo afirmando que fui traído por um amigo. Não saberei como considerá-lo – trote cruel, calúnia, aviso, teste? Mas se eu conseguir identificar o autor do bilhete – amigo, inimigo ou fofoqueiro reconhecido –, poderei avaliar seu significado porque saberei o tipo de pessoa que o escreveu e quais possam ter sido os seus motivos.”) Nesse caso, contudo, todas essas sugestões e restrições são apenas um lado dos problemas (como assinalei, colocando-as entre aspas); o que realmente importa é se a questão do anonimato de opinião propagada e permitida pela internet precisa mesmo ser enquadrada, julgada e resolvida no arcabouço da liberdade de expressão; ou se sua verdadeira importância social, que precisa tornar-se e continuar a ser o foco da preocupação pública, é sua relação com o problema da responsabilidade de uma pessoa por suas ações e suas consequências. O verdadeiro adversário do anonimato no estilo da internet não é o princípio da liberdade de expressão, mas o da responsabilidade: o anonimato ao estilo da internet é, antes e acima de tudo, o mais importante do ponto de vista social, uma permissão oficialmente endossada para a irresponsabilidade e uma aula pública de como praticá-la – tanto online quanto off-line –, uma mosca antissocial extremamente grande e venenosa, à qual se permite roubar um enorme tonel de unguento apresentado como promotor da causa da sociabilidade e da socialização, e em tese a ela dedicado. Quanto mais potencialmente mortal for uma arma, mais difícil será obter permissão para possuí-la e portá-la (embora não devesse haver permissão de uso do tipo cheque em branco, fosse ela fornecida livremente ou com restrições). A internet, porém (com o Velho Oeste e a selva mítica), é objeto de uma isenção total a essa regra tão amplamente considerada indispensável à vida civilizada. Calúnia, injúria, difamação, insulto, ofensa, aleivosia e infâmia estão entre as armas mais mortais: para as pessoas, mas também para o tecido social. Sua posse e seu uso, em particular o uso indiscriminado, é um crime na vida off-line (em geral chamada de “vida real”, embora esteja longe de ser claro qual delas, a on-line ou a off-line, ganharia a competição pelo título de realidade); mas não foi reconhecida e proclamada como crime no mundo on-line. Só se pode tentar adivinhar qual dos dois mundos, on-line ou off-line, vai ser assimilado pelo outro e ajustar suas regras aos padrões deste; qual deles acabará cedendo à pressão e qual vai pressionar com mais intensidade para que o outro se renda. No momento, porém, o mundo on-line tem uma vantagem considerável sobre o concorrente; nele, em oposição ao off-line, todo mundo pode ser um 007: todos têm licença para matar. Melhor ainda, todos podem matar sem sequer dar-se ao trabalho de solicitar uma licença. É impossível negar o poder de sedução de uma vantagem como essa. E lembrem-se de que cada tipo de sedução faz uma pré-seleção de seus seduzidos. Uma “irresponsabilidade flutuante” (ou seja, uma responsabilidade destacada de seus portadores por agentes aliviados de sua responsabilidade) significa, como Hannah Arendt advertiu muito tempo atrás, a “responsabilidade de ninguém”. Ela chegou a essa conclusão ao observar de perto as práticas repulsivas da burocracia – na época era suspeita de constituir uma assustadora ameaça, exigindo da civilização e da humanidade que encontrassem formas de enfrentá-la. Hannah Arendt não viveu o suficiente para testemunhar a difusão dessa invenção e dessa especialidade para outros lugares que a própria burocracia – confinada às suas aplicações tecnicamente primitivas, de indústria caseira – nem sonhava em atingir. 16 DE JANEIRO DE 2011 Sobre as baixas e os danos colaterais provocados pelos cortes Bastam alguns minutos e um punhado de assinaturas para destruir o que milhares de cérebros e duas vezes mais mãos levaram anos para construir. Esse talvez seja o atrativo mais assustador e sinistro, embora irresistível, da destruição em todos os tempos – ainda que a tentação nunca tenha sido mais inevitável que nas vidas apressadas que se leva em nosso mundo obcecado pela velocidade e pela aceleração. Em nossa moderna sociedade líquida de consumidores, a indústria da desapropriação, remoção e eliminação que se construiu para livrar-se das coisas é um dos pouquíssimos negócios que têm a garantia de continuar crescendo imune às excentricidades dos mercados de consumo. Esse negócio, afinal, é indispensável se os mercados desejam ter permissão para proceder da única maneira como são capazes: tropeçando de uma rodada de ultrapassagem de alvos para outra, a cada vez removendo o lixo resultante – e as instalações acusadas de despejá-lo. Claro, essa é uma forma de procedimento perdulária demais; de fato, o excesso e o desperdício são os principais venenos endêmicos da economia consumista, férteis que são de uma grande quantidade de danos e, mais ainda, de vítimas colaterais. Excesso e desperdício são os companheiros de viagem mais leais, inseparáveis – destinados a ficar inseparáveis até que a morte (comum) os separe. Acontece, porém, que os cronogramas dos ciclos de excesso e desperdício, em geral espalhados por um amplo espectro da economia consumista e seguindo seus próprios ritmos dessincronizados, sincronizam-se, sobrepõem-se e se fundem, tonando insustentável e inatingível até remendar fendas e fissuras com o equivalente econômico das cirurgias cosméticas e dos transplantes de pele. Onde os cosméticos não são suficientes, pede-se uma cirurgia total e – embora com relutância – recorre-se a ela. Chega o momento da “redução”, do “reordenamento” ou do “reajuste” (codinomes politicamente favorecidos para a redução do ritmo das atividades consumistas) e da “austeridade” (codinome de cortes nos gastos do Estado), na esperança de promover uma “retomada liderada pelos consumidores” (codinome do uso de dinheiro guardado nos cofres do Tesouro para recapitalizar as agências que nutrem e energizam o consumismo, sobretudo bancos e empresas de cartões de crédito). Esse é o período em que vivemos, na sequência de uma enorme acumulação e congestão de excessos e dejetos, e do consequente colapso do sistema de crédito, com todas as suas incontáveis baixas colaterais. Na estratégia de vida (sustentada pelo crédito) do “aproveite agora, pague depois” – fomentada, alimentada e reforçada pelas forças conjuntas das técnicas de marketing e das políticas governamentais (adestrando sucessivas coortes de estudantes na arte e no hábito de viver de crédito) –, os mercados de consumo descobriram uma varinha mágica para transformar hostes de cinderelas, consumidores inativos e que, portanto, não serviam para nada, em multidões de devedores (geradores de lucro); ainda assim, também como ocorreu com Cinderela, apenas por uma encantadora noite. A varinha fez sua mágica com a ajuda de garantias de que, quando chegasse a hora de pagar, o dinheiro necessário seria fácil de extrair a partir do valor de mercado acumulado das maravilhas vendidas. De modo prudente, ficou de fora dos panfletos de publicidade o fato de que os valores de mercado continuam a crescer por causa das garantias de que as alas de compradores dispostos e capazes dessas maravilhas também continuarão crescendo; em termos mais simples, o raciocínio subjacente a tais garantias era (como as bolhas que elas inflaram) circular. Se você acreditasse nos corretores de crédito, teria a expectativa de que o empréstimo obtido para comprar sua casa seria pago pela própria casa, já que o preço dela continuaria a crescer como ocorrera nos últimos anos, e tenderia a aumentar muito depois de o empréstimo ter sido pago. Ou acreditaria que o empréstimo obtido para financiar seus estudos universitários seria pago, com juros enormes, pelos fabulosos salários e benefícios que estavam à espera dos portadores de diplomas. As sucessivas bolhas agora já estouraram, e a verdade veio à tona – embora, na maioria dos casos, depois do prejuízo. Em vez dos ganhos prometidos, que seriam privatizados pela mão invisível do mercado, as perdas são agora nacionalizadas por um governo que tende a promover as liberdades do consumidor e a louvar o consumo como atalho mais curto e seguro para a felicidade. As vítimas mais seriamente atingidas pela economia do excesso e do desperdício é que foram forçadas a pagar seus custos, tivessem ou não confiado em sua sustentabilidade, acreditado ou não em suas promessas e se rendido a suas tentações. Os que inflaram a bolha agora mostram poucos sinais de sofrimento. Não foram suas as casas retomadas, nem seus os seguros-desemprego cortados, nem de seus filhos os playgrounds condenados a permanecer em construção. As pessoas induzidas ou forçadas a depender de empréstimos é que estão sendo castigadas. Entre os milhões de punidos encontram-se centenas de milhares de jovens que acreditavam – ou não tiveram escolha senão comportar-se como se acreditassem – que o espaço lá no alto é ilimitado; que um diploma universitário é tudo de que se necessita para ser admitido; e que uma vez lá dentro o pagamento dos empréstimos que você tomou pelo caminho seria ridiculamente fácil, considerando-se a nova credibilidade que acompanha um endereço situado lá no topo; eles agora enfrentam a perspectiva de preencher inumeráveis propostas de emprego raras vezes honradas com uma resposta; de um desemprego infinitamente prolongado; e da necessidade de aceitar como única opção empregos incertos e sem perspectiva, quilômetros abaixo das salas lá de cima. Cada geração tem seu volume de excluídos. Em cada geração, há pessoas destinadas à condição de excluídas porque a “mudança geracional” provoca uma alteração importante nas condições e exigências da vida, que tendem a forçar as realidades a se afastar das expectativas implantadas pelo statu quo ante e a desvalorizar as habilidades que elas treinavam e promoviam; e portanto a tornar pelo menos alguns recém-chegados, aqueles sem flexibilidade nem disposição suficiente para se adaptar aos padrões emergentes, despreparados para enfrentar os novos desafios – e ao mesmo tempo sem armas para resistir às suas pressões. Mas não é frequente que o destino de ser excluído abranja toda uma geração. Pois talvez seja isso o que está acontecendo agora. Várias mudanças geracionais têm sido observadas no curso da história da Europa no pós-guerra. Primeiro veio o generation boom, seguido por duas gerações respectivamente chamadas de X e Y; mais recentemente (embora nem tanto quanto o choque provocado pelo colapso da economia reaganista/thatcherista), foi anunciada a chegada iminente da geração Z. Cada uma dessas mudanças geracionais foi um evento mais ou menos dramático; em cada caso, assinalou-se uma quebra de continuidade, por vezes exigindo reajustes dolorosos em função do choque entre expectativas herdadas ou aprendidas e realidades inesperadas. No entanto, olhando em retrospecto a partir da segunda década do século XXI, é difícil deixar de observar que, quando confrontada com as profundas mudanças provocadas pelo último colapso econômico, cada uma das passagens entre gerações anteriores pode parecer o epítome da continuidade intergeracional simples e tranquila. Após várias décadas de expectativas crescentes, os atuais diplomados recém-chegados à vida adulta se defrontam com expectativas que estão em queda – e de forma rápida e abrupta demais para que haja qualquer esperança de aterrissagem calma e segura. Havia uma luz brilhante, ofuscante, no fim de cada um dos poucos túneis que seus predecessores foram forçados a atravessar no curso de suas vidas; agora, em vez disso, há um túnel longo e sombrio atrás das poucas luzes que piscam, tremulam e se apagam depressa na vã tentativa de romper a escuridão. Essa é a primeira geração do pós-guerra que se defronta com a perspectiva de mobilidade social descendente. Seus antepassados foram treinados para nutrir literalmente a expectativa de que seus filhos mirassem alvos mais elevados e chegassem mais longe que eles próprios ousaram chegar (ou foram levados a chegar, por um estado de coisas que agora é passado): esperavam que a “reprodução intergeracional do sucesso” continuasse a quebrar seus próprios recordes com tanta facilidade quanto eles próprios haviam superado as realizações de seus pais. Gerações de pais costumavam esperar que os filhos tivessem uma gama mais ampla de escolhas, cada qual mais atraente que a outra; seja cada vez mais instruído, suba cada vez mais na hierarquia do aprendizado e da excelência profissional, seja mais rico e sinta-se ainda mais seguro. O ponto de chegada dos pais, acreditavam eles, seria o ponto de partida dos filhos – e um ponto com um número cada vez maior de estradas à frente, todas elas conduzindo ao alto. Os mais jovens da geração que agora está entrando ou se preparando para entrar no “mercado de trabalho” foram criados e preparados para acreditar que sua tarefa na vida era superar e deixar para trás as histórias de sucesso de seus pais; e que essa tarefa (exceto por um golpe cruel do destino ou por uma inadequação própria curável) era plenamente compatível com sua capacidade. Não importa aonde seus pais tivessem conseguido chegar, eles iriam mais longe. Assim, pelo menos, foram ensinados e doutrinados a acreditar. Nada os preparou para a chegada do duro, inóspito e pouco convidativo novo mundo de degradação das categorias; de desvalorização dos méritos obtidos; de portas fechadas ou trancadas; de volatilidade dos empregos e obstinação do desemprego; de transitoriedade das expectativas e durabilidade da derrota; um novo mundo de projetos abortados e esperanças frustradas, de oportunidades cada vez mais conspícuas por sua ausência. As últimas décadas foram tempos de expansão ilimitada de todas as formas de educação superior e de um aumento incontrolável do tamanho das hostes estudantis. O diploma universitário era uma promessa de bons empregos, prosperidade e glória: o volume de recompensas crescia de maneira constante para se equiparar às fileiras em permanente expansão de portadores de diplomas. Com a coordenação entre demanda e oferta ostensivamente predeterminada, garantida e quase automática, o poder de sedução da promessa era impossível de resistir. Agora, porém, as multidões estão se transformando no atacado, e quase que da noite para o dia, em massa de frustrados. Pela primeira vez na memória viva, toda uma turma de diplomados se defronta com a alta probabilidade, quase uma certeza, de empregos ad hoc, temporários, inseguros e em tempo parcial; e com pseudoempregos de “estagiários” rebatizados de forma enganosa como “prática” – todos muito aquém das habilidades adquiridas e éons abaixo do nível de suas expectativas; ou de um período de desemprego mais longo que a nova geração de diplomados vai levar para acrescentar seus nomes às listas de espera já sinistramente longas das agências de empregos. Numa sociedade capitalista como a nossa, ajustada acima de tudo para a defesa e preservação dos privilégios existentes, e, só num distante (e muito menos respeitado ou observado) segundo lugar, a tirar os demais do estado de privação, essa turma de diplomados, com objetivos superiores, mas recursos escassos, não tem a quem recorrer em busca de ajuda e remédio. As pessoas que detêm o leme, quer à direita ou à esquerda do espectro político, estão de armas na mão em defesa de seus robustos eleitorados – contra os recém-chegados que ainda se mostram lentos em flexionar seus músculos ridiculamente imaturos, e que sem dúvida protelam qualquer tentativa séria de flexioná-los até depois das próximas eleições gerais. Aliás, como todos nós, do ponto de vista coletivo, e a despeito das peculiaridades geracionais, tendemos a ser ávidos demais na defesa de nosso conforto contra os modos de subsistência das gerações que ainda estão por nascer. Observando “a raiva, até o ódio” que se pode notar na turma de diplomados de 2010, o cientista político Louis Chauvel, em artigo publicado no Le Monde de 4 de janeiro, “Os jovens não são um bom partido”, indaga: quanto tempo vai levar para que o rancor do contingente de baby-boomers franceses, enfurecidos pelas ameaças a seus nichos de pensão, se combine com o da turma de 2010, à qual se negou o direito de ganhar uma pensão? Mas combinar-se para formar o quê? – podemos (e devemos) perguntar. Uma nova guerra de gerações? Um novo mergulho na belicosidade das margens extremistas que cercam um centro cada vez mais desesperado e deprimido? Ou o consenso suprageracional de que este nosso mundo, tão destacado por usar a duplicidade como arma de sobrevivência e por enterrar vivas as esperanças, não é mais sustentável e precisa de uma renovação já seriamente adiada? Que dizer das turmas de diplomados ainda por vir? E da sociedade em que, mais cedo que tarde, eles terão de assumir as tarefas que seus antepassados em hipótese deveriam realizar e bem ou mal cumpriram? Essa sociedade cuja soma total de habilidades, conhecimento, competitividade, resistência e coragem, sua capacidade de enfrentar desafios, de extrair o melhor deles e autoaperfeiçoar-se, será determinada por eles – quer gostem disso ou não, por ação ou omissão. Seria prematuro e irresponsável dizer que o planeta como um todo está entrando na era pós-industrial. Mas não seria menos irresponsável negar que a Grã-Bretanha entrou nessa era décadas atrás. Por todo o século XX, a indústria britânica compartilhou o destino que atingiu a agricultura desse país no século anterior – começou com uma superpopulação e terminou despovoada (na verdade, em todos os países ocidentais “mais desenvolvidos” os trabalhadores industriais somam agora menos de 18% da população trabalhadora). O que foi com frequência negligenciado, contudo, é que, em paralelo ao encolhimento do número de trabalhadores industriais na força de trabalho nacional, há também uma diminuição nas fileiras dos industriais no seio da elite do poder econômico e político. Continuamos a viver numa sociedade capitalista, mas os capitalistas que dão o tom e pagam o preço não são mais proprietários de minas, docas, siderúrgicas ou montadoras de automóveis. Na lista de 1% de americanos mais ricos, apenas um em cada seis nomes pertence a um empresário da indústria; o resto é formado por financistas, advogados, médicos, cientistas, arquitetos, programadores, designers e todas as espécies de celebridade de palcos, telas e estádios. O dinheiro grande agora se encontra na administração e alocação de finanças, e na invenção de novas bugigangas eletrônicas, aparelhos de comunicação, dispositivos de marketing e publicidade, assim como no universo das artes e do entretenimento; em outras palavras, em novas ideias criativas e atraentes ainda inexploradas. São pessoas com ideias brilhantes e úteis (leia-se: vendáveis) que agora habitam as salas do topo. São pessoas como essas as que mais contribuem para o que hoje se entende por “crescimento econômico”. Os principais “recursos deficitários” de que se faz o capital, e cuja posse e gerenciamento fornecem a fonte básica de riqueza e poder, são hoje, na era pós-industrial, conhecimento, inventividade, imaginação, capacidade de pensar e coragem para fazê-lo de modo diferente – qualidades que as universidades são convocadas a criar, disseminar e instilar. Cerca de cem anos atrás, na época da Guerra dos Bôeres, o pânico tomou conta das pessoas preocupadas com o poder e a prosperidade da nação, diante da notícia de que havia um número amplo e crescente de recrutas subnutridos, com corpos decrépitos e pouca saúde, e portanto física e mentalmente inadequados para os pátios das fábricas e para os campos de batalha. Agora é hora de entrar em pânico ante a perspectiva de um número crescente de pessoas subeducadas (segundo os padrões mundiais em rápida ascensão), e assim inadequadas para laboratórios de pesquisa, oficinas de design, salas de conferências, estúdios de arte ou redes de informação, que pode resultar da redução dos recursos das universidades e do número decrescente de diplomados em instituições de primeira linha. Os cortes de gastos governamentais com o financiamento da educação superior conseguem ser, ao mesmo tempo, cortes nas perspectivas de vida da geração que está se tornando adulta, e também no padrão e na reputação da civilização britânica, assim como no status e no papel da GrãBretanha na Europa e no mundo. Os cortes nas verbas do governo são acompanhados de aumentos extraordinariamente excessivos, até selvagens, das anuidades universitárias. Estamos acostumados a nos sentir alarmados e furiosos com um pequeno aumento percentual no custo das passagens de trem, da carne ou da eletricidade; mas tendemos a ficar consternados e perplexos diante de um aumento de 300% – incapacitados e desarmados, inseguros sobre como reagir. Em nosso arsenal de armas de defesa, não há nenhuma a que possamos recorrer – como aconteceu nos recentes eventos nos quais bilhões e trilhões de dólares foram injetados de uma vez pelos governos nas caixas-fortes dos bancos, após dezenas de anos de parcimônia e litígios febris quanto aos poucos milhões a ser acrescentados (mas não foram) aos orçamentos de escolas, hospitais, fundos de bem-estar social e projetos de renovação urbana. É difícil imaginar a miséria e a angústia de nossos netos quando despertarem para a herança de um volume até então inimaginável de dívida pública exigindo ser pago; ainda não estamos prontos para visualizá-lo, agora mesmo, quando, por cortesia de nosso governo liberal-conservador, foi-nos oferecida a oportunidade de provar as primeiras colheradas da mistura amarga que eles, nossos netos, serão forçados a ingerir aos caldeirões. E é difícil prever hoje o alcance total da devastação sociocultural que tende a acompanhar a construção de uma versão monetária dos muros de Berlim ou da Palestina na entrada de nossos centros de distribuição do conhecimento. Mas precisamos e devemos fazer isso – no nosso perigoso futuro comum. Talento, perspicácia, inventividade, ousadia – todas essas rochas duras à espera de serem polidas e transformadas em diamantes dentro dos prédios das universidades, por professores talentosos, perspicazes, inventivos e ousados – se espalham de modo mais ou menos uniforme por nossa espécie; ainda que barreiras artificiais erigidas por seres humanos no caminho que leva da zoon, a “vida nua”, à bios, a vida social, nos impeçam de percebê-lo. Diamantes brutos não escolhem os veios em que a natureza os coloca, nem ligam para divisões inventadas pelos homens, ainda que elas se encarreguem de selecionar alguns para fazer parte de uma classe destinada ao polimento, enquanto os outros são relegados à categoria do “poderia ter sido” – ao mesmo tempo em que fazem o possível para encobrir os vestígios dessa operação. Triplicar as anuidades vai dizimar as fileiras dos jovens que crescem nos distritos perigosos, caracterizados pela privação social e cultural, mas determinados e ousados o suficiente para bater às portas da sorte nas universidades – e assim privarão também o resto da nação dos diamantes brutos com que esses jovens costumavam contribuir ano após ano. Como o sucesso na vida, e em especial a mobilidade social ascendente, tende hoje a ser possibilitado, estimulado e deflagrado pelo encontro do conhecimento com talento, perspicácia, inventividade e espírito de aventura, triplicar as anuidades vai empurrar para trás a sociedade britânica pelo menos um século em seu percurso rumo à ausência de classes. Poucas décadas apenas depois de ser inundada pelas descobertas acadêmicas de um “adeus às classes”, podemos esperar, num futuro não muito distante, por uma chuva de estudos declarando “bem-vinda outra vez, classe – tudo foi esquecido”. Isso é o que de fato podemos esperar; portanto – nós, professores, sendo as criaturas socialmente responsáveis que precisamos ser, espera-se que sejamos e algumas vezes somos – deveríamos nos preocupar com um prejuízo ainda maior que o efeito imediato de colocar as universidades à mercê dos mercados de consumo (que é o que significa a combinação da retirada do patrocínio do Estado com a triplicação das anuidades): em termos de redundâncias, de suspensão ou abandono de projetos de pesquisa, provavelmente do agravamento da relação corpo docente/estudantes e também das condições e da qualidade do ensino. A ressurreição das divisões em classes é algo que se deve esperar, pois se criaram motivos mais que suficientes para que pais menos abastados pensem duas vezes antes de obrigar os filhos a se afundar, durante três anos, numa dívida maior que eles próprios assumiram no passado; e para que os filhos desses pais, ao observar seus conhecidos um pouco mais velhos na fila em frente das agências de emprego, pensem duas vezes sobre o sentido disso tudo – o sentido de se submeter a três anos de trabalho incessante e de viver na pobreza apenas para encarar no fim um conjunto de opções não muito mais favoráveis que aquelas com que agora se defrontam. Bem, são necessários alguns minutos e um punhado de assinaturas para destruir o que milhares de cérebros e o dobro de mãos levaram muitos anos para construir. 17 DE JANEIRO DE 2011 Sobre uma das muitas páginas extraídas da história da cruzada democrática Meio século atrás, o primeiro presidente democraticamente eleito na chamada África “pós-colonial”, Patrice Lumumba, 35 anos, foi espancado, torturado e morto a tiros – apenas alguns meses depois de sua eleição, considerada impecável, do ponto de vista democrático, pelos observadores ocidentais, mensageiros das democracias belga e americana encarregados de divulgar o evangelho democrático nas terras desocupadas pelas tropas coloniais. De fato, as tropas haviam deixado o Congo, mas Lumumba lá ficou, apenas com alguns congoleses de formação superior, numa terra de 15 milhões de pessoas e apenas três rostos negros entre os 5 mil funcionários seniores da administração do país, que permaneceram e passaram a sabotar a ordem da nova nação, expressa de modo democrático nas urnas, uma vez fechadas as seções eleitorais. Os funcionários belgas de posição mais elevada na velha/ nova burocracia do Estado escolheram o codinome “Satã” para o novo presidente democraticamente eleito. Pode-se imaginar um demônio mais odioso e repugnante que alguém exigindo a restituição das opulentas riquezas do Congo, suas minas de diamante, ouro, urânio e cobre, para as pessoas de quem foram roubadas? Adam Hochschild, que visitou a capital congolesa logo depois desses eventos, relembra na edição de hoje do New York Times: “A satisfação triunfante, viril, com que dois jovens funcionários da embaixada americana – muito mais tarde identificados como homens da CIA – conversaram comigo, embalados por alguns drinques, sobre a morte de alguém que eles não viam como um líder eleito, mas como um arrogante inimigo dos Estados Unidos.” Os atentados contra a vida de Lumumba começaram já no dia seguinte à sua eleição. Quando o plano de envenená-lo por um agente enviado pela CIA fracassou, os governos de Estados Unidos e Bélgica forneceram dinheiro e armas aos adversários locais de Lumumba, logo convertidos em “forças de oposição”, orquestraram a secessão e a “proclamação da independência” de Katanga, região do Congo profusamente dotada de recursos minerais. A primeira tarefa imposta pelos mandatários belgas e americanos aos governantes do país recém-“liberto” foi dar um fim ao inflexível e insubordinado presidente, deposto e entregue a eles pela “oposição democrática” congolesa. Os governantes de Katanga desempenharam sua missão de forma impecável, seguindo ao pé da letra as instruções transmitidas por seus chefes de além-mar. Os 32 anos seguintes da “República Independente” de Katanga – a história do governo implacável, sanguinário e corrupto do ladrãocarniceiro Joseph Mobutu, ditador regado de propinas e louvores pela Casa Branca e proclamado por George Bush, pai, “um de nossos amigos mais valiosos” – representaram um período que muitos líderes de nosso mundo democrático prefeririam esquecer. Da mesma forma que a deposição, o julgamento e prisão de Mohammad Mossadeq, presidente democraticamente eleito de uma Pérsia rica em petróleo (ver o relatório ultrassecreto da CIA sobre a deposição de Mossadeq em www.iranonline.com/newsroom/ Archive/Mossadeq), e a subsequente agonia longa e ainda inacabada do país no governo do xá e dos aiatolás-ditadores; assim como o assassinato de Salvador Allende, também democraticamente eleito, no Chile, país rico em manganês, e a posterior tirania implacável e sanguinária de Augusto Pinochet; tal como esqueceram o 50º aniversário do assassinato de Patrice Lumumba, o primeiro presidente democraticamente eleito num país africano. 18 DE JANEIRO DE 2011 Sobre machados imorais e carrascos morais Durante a Segunda Guerra Mundial, George Orwell ponderou: “Enquanto escrevo, seres humanos altamente civilizados estão voando sobre mim, tentando me matar. Eles não têm inimizade em relação a mim como indivíduo, nem eu em relação a eles. Estão apenas ‘fazendo o seu trabalho’, como se diz.” Alguns anos depois, examinando o enorme cemitério em camadas chamado Europa em busca do tipo de ser humano que conseguiu fazer isso com outros de sua espécie, Hannah Arendt revelou o hábito “flutuante” da responsabilidade no interior do corpo burocrático; às suas consequências ela deu o nome de “responsabilidade de ninguém”. Mais de meio século mais tarde, poderíamos dizer o mesmo do atual estado da arte de matar. Continuidade, então? Sim, temos continuidade, embora, por constância aos hábitos dessa condição, na companhia de algumas descontinuidades… A principal novidade é a obliteração das diferenças de status entre meios e fins. Ou melhor, a guerra de independência que terminou com a vitória dos machados sobre os carrascos. Agora são os machados que escolhem os fins: as cabeças a decepar. Os carrascos podem fazer muito pouco para impedi-los (ou seja, mudar as mentes que eles não têm ou recorrer a sentimentos que não possuem) além do que podia o lendário aprendiz de feiticeiro. (Essa alegoria não é de modo algum fantasiosa: como escreveram Thom Shanker, correspondente no Pentágono, e Matt Ritchel, correspondente na área de tecnologia, no New York Times de hoje: “Assim como têm promovido há muito tempo o avanço tecnológico, os militares agora estão na linha de frente imaginando como os seres humanos podem lidar com a tecnologia sem ser sobrepujados por ela.” E, da forma como o neurocientista Art Kramer vê a situação: “Há uma sobrecarga de informação em todos os níveis da área militar, do general ao soldado.” Todos no Exército, “do general ao soldado”, foram rebaixados do gabinete do feiticeiro para a posição inferior de aprendiz.) Desde setembro de 2001, a quantidade de “informações” acumulada pela tecnologia de ponta à disposição do Exército americano já aumentou 1.600%. Não que os carrascos tenham perdido suas consciências nem sido imunizados contra os escrúpulos morais; simplesmente não podem dar conta do volume de informações coletado pelos dispositivos que controlam. Estes, na verdade, podem funcionar bem (ou mal) com ou sem a ajuda deles, obrigado. Chute os carrascos para longe de suas telas, e dificilmente você vai notar sua ausência se observar a distribuição dos resultados. No início do século XXI, a tecnologia militar conseguira fazer a responsabilidade flutuar e portanto “despersonalizá-la” num grau inimaginável no tempo de Orwell ou Hannah Arendt. Mísseis ou drones (aeronaves não tripuladas) “espertos”, “inteligentes”, assumiram o processo de tomada de decisão e a seleção dos alvos, confiscando-os tanto dos soldados rasos quanto dos membros dos mais altos escalões na máquina militar. Eu sugeriria que os desenvolvimentos tecnológicos mais fundamentais dos últimos anos não foram pesquisados e introduzidos para aumentar o poder mortífero dos armamentos, mas na área da “adiaforização” da matança militar (ou seja, sua exclusão da categoria de ações sujeitas à avaliação moral). Como Günther Anders advertiu depois de Nagasaki, mas muito antes de Vietnã, Afeganistão ou Iraque, “não é possível ranger os dentes ao pressionar um botão. … Uma tecla é uma tecla.” Se a tecla for pressionada, ela liga uma máquina de fazer sorvete na cozinha, alimenta uma rede de eletricidade ou libera os cavaleiros do Apocalipse, não faz diferença. “O gesto inicial do Apocalipse não seria diferente de nenhum outro gesto – e seria feito, como qualquer outro gesto semelhante, por um operador também guiado e aborrecido pela rotina.” “Se algo simboliza a natureza satânica de nossa condição, é precisamente essa inocência do gesto”,3 conclui Anders com a irrelevância de esforço e de pensamento necessários para desencadear um cataclismo – qualquer um, incluindo o “globocídio”. Novo é o drone, adequadamente chamado de “Predador”, que assumiu a tarefa de coletar e processar a informação. O equipamento eletrônico do drone destaca-se na execução de sua tarefa. Mas que tarefa? Tal como a função manifesta do machado é permitir que o carrasco execute o condenado, a função manifesta do drone é habilitar seu operador a localizar o objeto da execução. Mas o drone que se destaca nessa função e inunda o operador de fluxos de informação que este é incapaz de digerir (muito menos de processar pronta e rapidamente) “em tempo real” pode estar desempenhando outra função, latente e não declarada: a de isentar o operador da culpa moral que o assaltaria caso fosse incumbido de selecionar os condenados a executar; e, o que é ainda mais importante, ele deixa o operador seguro de que, se ocorrer um erro, ele não será acusado dessa imoralidade. Se “pessoas inocentes” forem mortas, será um problema técnico, não um pecado ou falha moral – e, a julgar pelos códigos, não será um crime. Como dizem Shanker e Richtel, “sensores baseados em drones deram origem a uma nova classe de guerreiros com fios, encarregados de filtrar o oceano de informações. Às vezes, porém, eles se afogam.” Mas a capacidade de afogar as faculdades mentais (e, portanto, indiretamente, morais) do operador não está incluída no projeto do drone? Quando, em fevereiro último, 23 afegãos convidados para uma cerimônia de casamento foram mortos, os operadores responsáveis por apertar os botões puderam pôr a culpa nas telas transformadas em “atrações irresistíveis”: eles haviam se perdido só de ficar com os olhos grudados nelas. Havia crianças entre as vítimas das bombas, mas os operadores “não se concentraram nelas em meio a um turbilhão de dados” – “como um viciado em internet que perde a pista de um e-mail importante diante de uma pilha crescente”. Bem, ninguém acusaria esse viciado de falha moral. Desencadear um cataclismo (incluindo, como insiste Anders, um “globocídio”) agora se tornou mais fácil e plausível do que quando ele escreveu suas advertências. Ao “operador aborrecido com a rotina” juntou-se seu colega e provável substituto e sucessor – o sujeito com os olhos fixos numa “atração irresistível” e a mente afundada num “turbilhão de dados”. 20 DE JANEIRO DE 2011 Sobre Berlusconi e a Itália Preparando uma edição especial dedicada à avaliação do longo governo de Berlusconi, a revista Macromega me pediu para dar minha opinião sobre como isso parece quando visto “de muito longe”. Segue-se minha resposta. Em vez de tentar elaborar minha própria acusação do “fenômeno Berlusconi” e acrescentar mais algumas páginas aos arquivos já caoticamente amplos reunidos para seu julgamento – é difícil que ele ocorra num futuro previsível –, permitam-me trazer à lembrança dos leitores as opiniões do grande homem de letras português José Saramago. Frustrado com a absurda demora da justiça legal italiana, ele não esperaria com humildade que se convocasse o tribunal da consciência italiana. Por infortúnio, Saramago não poderá responder ao questionário pessoalmente, de modo que me permitam servir-lhe de mensageiro, ou portavoz autonomeado. Vou tirar minhas citações do Caderno, uma espécie de diário mantido por Saramago em 2008-09 e publicado em Lisboa pela Caminho. Saramago, mestre supremo da arte das palavras, é conhecido por escolhê-las com cuidado beneditino e precisão fantástica. Ele sabia que em italiano o termo que designa a criminalidade (delinquenza) tem “uma carga negativa muito mais forte que em qualquer outro idioma falado na Europa”. Apesar disso, não hesitou em empregá-lo em relação a Berlusconi (ver seus apontamentos datados de 8 de junho de 2009): “Berlusconi tem vindo a cometer delitos de variável mas sempre demonstrada gravidade. Além disso, não só tem desobedecido a leis como, pior ainda, as tem mandado fabricar para a salvaguarda dos seus interesses público e particulares, de político, empresário e acompanhante de menores”. Saramago também não hesita em concluir que Berlusconi “caiu na mais completa abjeção”. Em anotação escrita um mês antes, em 15 de maio, Saramago chamou Berlusconi de “o Catilina da Itália atual”, com a ressalva de que, em oposição a seu protótipo do passado, Berlusconi “não necessita assaltar o poder porque já é seu, tem dinheiro bastante para comprar todos os cúmplices que sejam necessários, incluindo juízes, deputados e senadores”. Mas ele buscou em vão uma “voz italiana”, ao repetir quase ao pé da letra as palavras de Cícero, mudando apenas o nome do destinatário: “Até quando, Berlusconi, abusarás de nossa paciência?” E foi a ausência dessa voz que continuou a ser, para Saramago, o mistério mais assustador – só que para ele não se tratava de um mistério de Berlusconi, mas da Itália. Porque Berlusconi, observou Saramago em 15 de maio de 2009, parece que “conseguiu a proeza de dividir a população da Itália em duas partes: os que gostariam de ser como ele e os que já o são”. Mas Saramago ainda tinha esperanças, evidenciadas nesse “parece”, de que o pesadelo se dispersaria (quanto mais cedo melhor). A história da Itália, aos olhos de Saramago, tal como aos de muitos europeus, parece “um extensíssimo rosário de gênios, sejam eles pintores, escultores ou arquitetos, músicos ou filósofos, escritores ou poetas … um não acabar de gente sublime que representa o melhor que a humanidade tem pensado, imaginado, feito.” Nunca houve na história italiana uma escassez de espíritos nobres. Portanto, Cícero, onde está você, por que desertou de seu posto quando a Itália, como a conhecemos e amamos, está mais uma vez em perigo? Num registro datado de 17 de fevereiro de 2009, Saramago se queixa, como tantos europeus amantes da Itália: Ainda que, em verdade, quero dizê-lo já, o mais ofendido seja eu. Sim, precisamente eu. Ofendido no meu amor por Itália, pela cultura italiana, pela história italiana, ofendido, inclusive, na minha pertinaz esperança de que o pesadelo venha a ter um fim e de que a Itália possa retomar o exaltador espírito verdiano. Tendo eleito duas – duas! – vezes, “esta doença, este vírus ameaça ser a causa da morte moral do país de Verdi se um vômito profundo não conseguir arrancá-la da consciência dos italianos antes que o veneno acabe por corroer-lhes as veias e destroçar o coração de uma das mais ricas culturas europeias”, o povo italiano enveredou pelo “caminho da ruína”, levando “por arrastamento os valores” da “liberdade e dignidade”. “Vão os italianos permiti-lo?”, pergunta Saramago, em total confusão e desespero. E eu compartilho plenamente de sua preocupação. Em outra ocasião, embora semelhante em certos aspectos históricos, Karl Marx opinou que nenhuma nação, tal como mulher alguma, pode ser perdoada por um momento de fraqueza em que qualquer velhaco seja capaz estuprá-la. 28 DE JANEIRO DE 2011 Sobre mantê-lo do lado de dentro, e no entanto do lado de fora Poucos meses antes das últimas eleições presidenciais americanas, numa conversa com Giuliano Battiston, eu disse o seguinte em resposta à pergunta que ele fez: “Será que a eleição [de Obama] pode ser interpretada como um sinal de que o sistema político americano rompeu definitivamente o vínculo entre demos e ethnos, e que os Estados Unidos estão se transformando numa sociedade pós-étnica mais consciente?” Obama precisa ter cuidado para não concorrer ao poder em nome das massas “tiranizadas e oprimidas”, que são por esse motivo proclamadas inferiores – e cuja incapacidade, indignidade e infâmia, impostas e estereotipadas, resvalam sobre ele em função de sua classificação etnicamente/racialmente herdada/atribuída. Ele não está concorrendo ao poder na onda de uma rebelião promovida pelos “tiranizados e oprimidos” ou por um “movimento social/político”, como seu porta-voz, plenipotenciário e vingador. O que se pretende provar com seu progresso e ascensão – como é provável que ocorra – é que um estigma coletivo pode ser tirado das costas de indivíduos selecionados; em outras palavras, que alguns indivíduos das categorias oprimidas e discriminadas possuem qualidades que “ultrapassam” sua participação numa inferioridade coletiva, categorial; e que essas qualidades podem ser equivalentes ou mesmo superiores àquelas apresentadas por concorrentes que não sofram o peso desse estigma. O fenômeno não invalida o pressuposto da inferioridade categorial. Deveria antes ser percebido (e o é, por muitos) como reafirmação perversa do pressuposto: eis aqui um indivíduo que, quase ao estilo do Barão de Münchhausen, conseguiu se erguer puxando-se pelas botas: mediante seus talentos e sua força individuais, não por seu pertencimento a determinado grupo, mas apesar dele – e provando, no mesmo sentido, nem tanto o valor e a virtude amplamente subestimados de “seu povo”, mas a tolerância e a generosidade de seus superiores sociais, cuja superioridade se manifesta no fato de estarem prontos a permitir que indivíduos arrojados e talentosos da categoria inferior se juntem a eles e tentem chegar ao topo, assim como a suprimir muitas das objeções generalizadas à aceitação social e política dos que conseguem. Isso não significa, porém, que o progresso dos indivíduos que agarraram uma oportunidade assim vá elevar a categoria como um todo, a “categoria em si”, de sua posição social inferior e abrir perspectivas de vida mais amplas para todos os seus integrantes. O longo governo semiditatorial de Margaret Thatcher não trouxe a igualdade social para as mulheres; mas provou que algumas mulheres podem derrotar os homens em seu próprio jogo machista. Muitos dos judeus que conseguiram emergir dos guetos no século XIX e se passar por alemães (ou pelo menos assim tentavam acreditar) fizeram muito pouco por seus irmãos e irmãs atribuídos ou imputados, deixados para trás, no sentido de tirá-los da pobreza e protegê-los da discriminação jurídica e social. Tal como a promoção pessoal de Margaret Thatcher não tornou menos “masculino” o establishment britânico, a carreira dos fugitivos do gueto judaico não tornou a Alemanha menos nacionalista. Nem tampouco encurtou a distância entre discriminadores e discriminados. Na verdade, ocorreu o contrário. Muitos dos ideólogos e praticantes mais barulhentos e dedicados das variedades mais radicais dos nacionalismos promissores do século XX eram recém-chegados de “minorias étnicas”, ou estrangeiros “naturalizados” (incluindo Stálin e Hitler). Um judeu, Benjamin Disraeli, solidificou e fortaleceu o Império Britânico. O grito de guerra dos “assimilados” era “tudo que você pode fazer, eu posso fazer melhor” – a promessa e determinação de ser mais católico que o papa; mais alemão que os alemães; mais polonês que os poloneses; mais russo que os russos, em termos de enriquecer suas respectivas culturas e promover seus respectivos “interesses nacionais” (feitos que muitas vezes eram usados contra eles, tomados como provas de sua duplicidade e de suas intenções insidiosas). Entre todas as outras coisas que eles tendiam a “fazer melhor” que os nativos estava também (para muitos dos assimilados) a indiferença à sorte e aos interesses de sua “comunidade de origem”, que caracterizava os pensamentos e ações dos “nativos”. Cerca de um ano depois de Obama se mudar para a Casa Branca, quando minhas primeiras premonições se haviam transformado em observações, acrescentei (em uma das cartas publicadas em La Repubblica) os seguintes comentários de Naomi Klein: Os negros e latinos que não fazem parte da elite estão perdendo terreno de modo considerável, com suas casas e empregos escapando de suas mãos numa taxa muito mais alta que as dos brancos. Até agora, Obama não tem se disposto a adotar políticas de cunho específico para preencher essa brecha que nunca para de crescer. O resultado pode deixar as minorias no pior dos mundos: a dor de uma reação racista em ampla escala sem os benefícios de políticas capazes de amenizar suas dificuldades quotidianas. Outro ano se passou e muita água rolou pelas pontes do rio Potomac, mas basicamente foram as mesmas as mensagens transmitidas do Salão Oval para os guetos negros dos Estados Unidos. Mensagens escritas, mas também silenciosas. Como observa Charles M. Blow no New York Times de hoje: “Foi a segunda vez, desde o discurso do Estado da União proferido por Harry S. Truman em 1948, que um discurso como esse, proferido por um presidente democrata, não inclui uma só menção à pobreza ou à condição dos pobres.” Poucas dúvidas restam: a esperança dos destituídos, oprimidos e humilhados voltou as costas para aqueles que o elegeram (ou seja, 95% dos eleitores negros e 67% dos hispânicos; 73% das pessoas que ganham menos de US$ 15 mil por ano, 60% dos que ganham entre US$ 5 mil e US$ 30 mil, e 55% daqueles com rendimentos entre US$ 30 mil e US$ 50 mil). Ele chutou para longe a escada com que chegou ao gabinete onde em geral se redigem os discursos do Estado da União. Brian Miller, diretor-executivo do grupo de pesquisa United for a Fair Economy, comenta a mensagem que Obama deixou fora de seu discurso, embora sua forma de governar os Estados Unidos a transmitisse com toda clareza para os que o ajudaram a subir ao poder: “Como 42% dos negros e 37% dos latinos carecem do dinheiro necessário para pagar as despesas mínimas com moradia por mais que três meses, se ficarem desempregados, cortar os programas de assistência pública terá impactos devastadores sobre os trabalhadores negros e latinos.” “Minha fé nele [o presidente] como defensor ardente dos pobres e desprivilegiados entrou novamente em queda livre. … [O presidente] parece estar se afastando, muitas vezes a toda velocidade, das pessoas que antes o apoiavam” – assim Charles Blow resume seus próprios comentários. E, entristecido, faz as perguntas que agora deve considerar, como eu, puramente retóricas: Para os pobres, este é o dilema de Obama. Ele foi obviamente a melhor escolha em 2008. E, a julgar pelo atual elenco de contendores republicanos, poderá ser a melhor escolha em 2012. Mas será que isso lhe dá licença para deixar de lado a responsabilidade moral perante seus devotados eleitores? Será que eles podem e devem tomar seu desprezo como uma consequência necessária da guerra política, ao dedicar seus esforços a se religar ao centro e se reconectar àqueles cuja opinião sobre ele oscilam entre o desprezo, num dia ruim, e a tolerância, num bom dia? Será que mantê-lo na Casa Branca implica mantê-los à sombra? 30 DE JANEIRO DE 2011 Sobre as pessoas nas ruas Em 14 de julho de 1789, o rei da França, Luís XVI, registrou em seu diário uma única palavra: “Rien.” Naquele dia, uma multidão de sans-culottes parisienses invadiu as ruas que não costumavam ser visitadas pelos misérables, pelo menos não en masse – e certamente não para ficar por muito tempo. Dessa vez eles o fizeram, e não sairiam até dominar os guardas e tomar a Bastilha. Mas como Luís XVI poderia saber? A ideia de uma multidão (aquela “plebe suja”, como Henry Peter Brougham se referiria com desprezo a outras pessoas que tomavam outras ruas algumas décadas depois da queda da Bastilha) virando a história de cabeça para baixo ou de cabeça para cima, dependendo do ponto de vista do observador, ainda não era algo a ser levado a sério. Muita água teria de correr sob o Sena, o Reno ou o Tâmisa antes que a chegada e a presença da “gentalha” no palco histórico pudessem ser notadas, reconhecidas e temidas, para nunca mais serem desprezadas. Depois dos avisos e advertências feitos por gente como Gustave le Bon, George Sorel ou Ortega y Gasset, os autores de diários não anotariam “rien” ao ouvir multidões percorrendo as praças do centro da cidade; provavelmente, contudo, eles a substituiriam por um grande ponto de interrogação. Todos eles: os que contemplam, como Hillary Clinton, a visão de um parlamento erguer-se das cinzas da fúria popular; os que examinam com nervosismo a multidão invadir a praça Tahir em busca do potencial fundador da próxima república islâmica; e os que sonham com a multidão corrigindo os erros dos malfeitores e fazendo justiça aos responsáveis pela injustiça. Joseph Conrad, homem do mar por escolha, é lembrado por proclamar que “nada é tão sedutor, tão decepcionante nem tão cativante quanto a vida no mar”. Enquanto, alguns anos mais tarde, Elias Canetti escolheria o mar (com o fogo, a floresta, a areia etc.) como uma das metáforas mais pungentes e elucidadoras da multidão humana. Ela talvez fosse em especial adequada para uma das diversas variedades de multidão que ele designou a multidão reversa, aquela, por assim dizer, re-volução instantânea que num átimo transforma as coisas em seu oposto: prisioneiros em guardas, guardas em prisioneiros, rebanhos em pastores, pastores (solitários) em rebanhos – e que comprime e condensa um monte de migalhas num todo monolítico, enquanto transforma a multidão num indivíduo: um sujeito indivisível do tipo: “Nous ne sommes rien, soyons tout!” Pode-se ampliar essa ideia de “reverso” para abarcar o próprio ato de reverter: “Na multidão”, escreveu Canetti, “o indivíduo sente que está transcendendo os limites de sua própria pessoa.” O indivíduo não sente que está se dissolvendo, mas se expandindo; é ele, o desprezível solitário, que agora se reencarna como os muitos – a impressão que a sala de espelhos tenta reproduzir com efeito limitado e inferior. A multidão também significa a liberação instantânea de fobias: “Nada causa mais temor a um homem que o toque do desconhecido”, diz Canetti. “Ele quer ver o que vem em sua direção e ser capaz de reconhecê-lo ou pelo menos de classificá-lo. O homem sempre tenta evitar o contato com qualquer coisa estranha.” Mas na multidão esse medo do desconhecido é paradoxalmente anulado, ao ser invertido; o medo de ser tocado dissipa-se numa tentativa pública de comprimir o espaço interindividual – no curso da transformação de muitos em um, e de um em muitos, o espaço transforma seu papel de separar e isolar no de fundir e misturar. A experiência formativa que levou Canetti a essa leitura da psicologia das massas se deu quando, em 1922, ele participou de um grande protesto contra o assassinato de Walter Ratheneau, o industrial e estadista judeu alemão. Na multidão, descobriu “uma alteração total de consciência” que é ao mesmo tempo “drástica e enigmática”. Como sugeriu Roger Kimball,4 ele descreveu seu primeiro encontro com uma multidão como algo próximo a uma espécie de experiência cujo relato é encontrado em certos tipos de literatura mística: Uma embriaguez; você estava perdido, esquecido de si mesmo, sentia-se tremendamente distante e no entanto realizado; tudo que sentia, não sentia por si mesmo; era a coisa mais abnegada que você já tinha conhecido; e como a abnegação era algo mostrado, comentado e ameaçado de todos os lados, você precisava dessa experiência de altruísmo violento como do toque da trombeta no Juízo Final… Como era possível que tudo acontecesse ao mesmo tempo? Que era isso? Agora podemos imaginar por que motivo a multidão, tal como o mar, é sedutora e cativante. Porque na multidão, da mesma forma que no mar, mas não sobre o chão duro, repleto e coberto de cercas e totalmente mapeado, tudo ou quase tudo pode acontecer, ainda que nada ou quase nada possa ser feito com certeza. Mas talvez também seja decepcionante. Por quê? Quase que pelas mesmas razões. No mar os navios podem afundar. Da fúria da multidão, podem surgir revoluções. Em Sob os olhos do Ocidente, romance publicado em 1911, Joseph Conrad faz um de seus personagens centrais observar que, numa “verdadeira revolução”, os melhores personagens não vêm para o front. Uma revolução violenta cai nas mãos de fanáticos de mente estreita e de tiranos hipócritas. … O escrupuloso e o justo, as naturezas nobres, bondosas e devotadas; o altruísta e o inteligente podem começar um movimento – mas ele lhes escapa. Não são os líderes da revolução. São suas vítimas; as vítimas do fastio, do desencanto – muitas vezes do remorso. Quem proferiu essas palavras considerava-se entre os escrupulosos, justos, nobres e bondosos – e dirigia-se a outros como ele. Não posso dizer se Hosni Mubarak ou algum de seus assessores estudou essas palavras; mas parecem ter decidido passar a mesma advertência aos egípcios de classe média, bem de vida e bem-intencionados, os quais se juntaram às multidões agitadas nas ruas – embora dessa vez para transmitir os presságios sob a forma (muito mais persuasiva) de atos brutais, em lugar de uma elegante locução literária. Como relatam do Cairo, no New York Times de hoje, Anthony Shadid e David Kirkpatrick: Num colapso da autoridade, a polícia retirou-se das grandes cidades no sábado, dando pleno domínio às gangues que roubaram e queimaram carros, saquearam lojas e pilharam shopping centers, onde manequins mutilados com roupas islâmicas conservadoras espalhavam-se sobre vidro quebrado e poças d’água. Milhares de condenados fugiram de quatro presídios, incluindo os mais famosos do país, Abu Zaabal e Wadi Natroum. Postos de vigilância montados pelos militares e por grupos das vizinhanças, às vezes separados por apenas um quarteirão, proliferaram pelo Cairo e outras cidades. Muitos passaram a ideia tenebrosa de que o governo estava por trás do colapso da autoridade como forma de justificar medidas enérgicas ou desacreditar os apelos de mudança feitos pelos manifestantes. O ensaio geral do governo da turba encenado em público pelas autoridades realmente produziu, ao que parece, a impressão desejada. Em outra reportagem, também publicada no New York Times de hoje, Kirkpatrick e Mona El-Naggar observam uma súbita mudança de ânimo na intelligentsia egípcia: Na noite de sexta, a polícia retirou-se de repente das principais cidades egípcias, e as tensões entre ricos e pobres explodiram. Saqueadores vindos das enormes favelas do Cairo atacaram shoppings luxuosos dos subúrbios, surgiram boatos assustadores de tiroteios nas pontes e portões dos bairros mais ricos, e alguns de seus moradores se voltaram saudosos para Mubarak e seu governo autoritário. “Como se uma guerra tivesse sido declarada”, disse Sarah Elayashi, 33 anos, de um apartamento no bairro abastado de Heliópolis, não longe do palácio do sr. Mubarak. “E não temos nada para nos defender, a não ser facas de cozinha e cabos de vassoura.” “Os manifestantes estão contra nós”, acrescentou ela. “Esperamos que o presidente Mubarak fique, porque pelo menos temos segurança nacional. Gostaria que pudéssemos ser uma democracia como os Estados Unidos, mas não podemos. Precisamos de um governante com mão de ferro.” A intenção do desacreditado líder da nação, compartilhada durante algum tempo por seus protetores “globais”, que preferiam “governantes com mão de ferro” àqueles inclinados a servir aos interesses das pessoas por eles governadas, abriria caminho para uma escolha entre o Partido Democrático Nacional, secular e apoiado pelos militares, e a tirania religiosa da Irmandade Muçulmana. Não havia terceira opção, tertium non datur. Mas o tertium a cada dia se torna mais claro, está datur, embora o non não tenha sido eliminado desse preceito latino consagrado pelo tempo, seja pelos “governantes com mão de ferro”, seja pelos que os ajudaram a ganhar o poder. a) Tipo de primata natural do leste da Índia, Ásia e África. (N.T.) • Fevereiro de 2011 • 2 DE FEVEREIRO DE 2011 Sobre a maturidade da glocalização Fica-se tentado a dizer que as invenções ou reinvenções sociais – tais como a possibilidade recém-inventada ou descoberta de devolver à praça da cidade o antigo papel da ágora, em que regras e governantes eram feitos e desfeitos – tendem a se espalhar “como um incêndio na floresta”. Seria possível dizer isso, não fosse pelo fato de a globalização ter afinal invalidado essa metáfora consagrada pelo tempo. O fogo na floresta acontece por disseminação. Hoje as invenções sociais progridem por saltos. As distâncias geográficas já não contam. Não são mais obstáculos, e suas extensões não determinam mais a distribuição das probabilidades. Nem tampouco a vizinhança e a proximidade física – é por isso que a metáfora do “efeito dominó”, que implica proximidade física, na verdade a contiguidade de causa e efeito, perdeu muito, talvez a maior parte de sua precisão. Os estímulos viajam de maneira independente de suas causas; as causas podem ser locais, mas o alcance de suas inspirações é global; as causas podem ser globais, mas seus impactos são moldados e direcionados em âmbito local. Intrincados na rede mundial, padrões imitados voam de modo quase aleatório no espaço extraterritorial – sem itinerários agendados e encontrando poucas barreiras ou postos de vigilância –, mas aterrissam sempre em pistas de pouso construídas localmente. Não se pode saber com antecedência em que pista vão pousar, por qual das inúmeras torres de controle serão identificados, interceptados e guiados a um campo de pouso local, assim como quantos desastres vão sofrer ao pousar e onde eles ocorrerão. O que torna perdido o tempo gasto com previsões e inconfiáveis prognósticos é o fato de que as pistas de pouso e as torres de controle compartilham os hábitos das coisas que flutuam – são construídas ad hoc, para ganhar um só troféu selecionado, caçar uma única presa, e tendem a se desmantelar no momento em que a missão se completa. Quem é aquele al-Shahid (“mártir” em árabe) que convocou sozinho as multidões a transformar a praça Tahrir, por alguns dias, numa ágora (temporária, ad hoc)? Ninguém tinha ouvido falar dele ou dela antes disso (leia-se: ele ou ela não estava lá antes), ninguém reconheceu o homem ou a mulher por trás desse apelido (leia-se: ele ou ela não estava lá) quando as multidões atenderam ao chamado… A questão, porém, é que isso pouco importa. As distinções entre distante e próximo, ou aqui e lá, tornam-se quase nulas e inúteis quando transferidas para o ciberespaço e sujeitas à lógica on-line ou on-air; se não na imaginação, reconhecidamente inerte, morosa e preguiçosa, pelo menos em sua potência pragmática. Essa é a condição a que a glocalização – o processo de despir a localidade de sua importância ao mesmo tempo que se aumenta sua significação – visava desde o início. É hora de admitir que ela chegou lá; ou melhor, que ela nos levou (empurrou ou puxou) até lá. Despir o lugar de sua importância significa que sua condição e potência, sua plenitude e seu vazio, os dramas nele desempenhados e os espectadores por eles atraídos não podem mais ser considerados assuntos privadamente seus. Os lugares podem propor (e de fato o fazem), mas quem agora dispõe são as forças desconhecidas, descontroladas, irrefreáveis e imprevisíveis que vagam no “espaço dos fluxos”. As iniciativas continuam locais, mas suas consequências agora são globais, mantendo-se com teimosia para além do alcance do poder de seu local de nascimento para prever, planejar ou guiar; ou, nesse sentido, do poder de qualquer outro lugar. Uma vez lançadas, elas – como os conhecidos “mísseis inteligentes” – estão total e verdadeiramente por conta própria. Também são “reféns do destino”, embora o destino de que sejam reféns hoje seja composto e sempre recomposto a partir da permanente rivalidade entre pistas de pouso localmente traçadas e imitações feitas sob encomenda e logo pavimentadas. O mapa e os rankings atuais dos aeroportos existentes não têm importância aqui. E a composição de uma autoridade global do tráfego aéreo seria também desimportante caso existisse uma instituição como essa – o que não é o caso, como os pretendentes a esse papel hoje aprendem da maneira mais difícil. “Toda vez que o governo divulgava alguma coisa, suas palavras eram de imediato superadas pelos eventos in loco”, disse Robert Malley, diretor de programas do International Crisis Group para o Oriente Médio e o Norte da África. “E em questão de dias todas as conjecturas sobre a relação dos Estados Unidos com o Egito estavam invalidadas” – segundo a edição de hoje do New York Times. De acordo com as últimas informações sobre esse país transmitidas por Mark Mardell, editor da BBC para a América do Norte, a Secretária de Estado americana Hillary Clinton telefonou para o novo vicepresidente e por duas décadas chefe do serviço de inteligência, Omar Suleiman, dizendo-lhe para aproveitar a oportunidade de transição para uma sociedade mais democrática. Essa transição deve começar agora. Ela disse que a violência era chocante e que eles deviam investigá-la e responsabilizar os culpados. Poucas horas depois, líderes dos países considerados mais importantes da Europa – Merkel, Sarkozy, Cameron, Zapatero e Berlusconi –, numa declaração atipicamente unânime, repetiram o apelo/exigência de Hillary Clinton. Todos disseram o que disseram mais ou menos ao mesmo tempo que as câmeras da Al-Jazeera captavam um manifestante carregando um cartaz que dizia “Cale a boca, Obama!”. A significação do lugar, ascendendo de modo independente em relação à sua importância, está em sua capacidade de acomodar a apresentação desses cartazes e as pessoas que os apresentam. Mãos curtas demais para se meter em coisas do espaço global são longas o bastante (ou pelo menos o parecem) para abraçar com força a localidade, ao mesmo tempo que afastam (espera-se) os intrusos e falsos pretendentes. Um dia após o anúncio de Hillary Clinton, o New York Times nos informa sobre uma ampla reformulação da política externa americana: “O governo Obama parecia determinado, na última quarta-feira, a estabelecer a máxima distância possível entre o sr. Obama e o sr. Mubarak, antes considerado inabalável defensor dos americanos numa região tumultuada.” Bem, é difícil que essa potência global tivesse feito tal reviravolta acrobática se a localidade distante não decidisse lançar mão de sua relevância recémdescoberta. Como sugere Shawki al-Qadi, parlamentar iemenita de oposição, não são as pessoas que estão com medo de seus governos, os quais se submeteram às “forças globais” em troca de se omitir das obrigações perante seus próprios povos. Como diz ele: “É o oposto. Agora, o governo e suas forças de segurança estão com medo do povo. A nova geração, a geração da internet, é destemida. Eles querem seus plenos direitos e querem uma vida – uma vida dignificada.” O conhecimento de que os governos, da forma como encolheram graças à ação das “forças globais”, não constituem uma proteção contra a instabilidade, e sim sua principal causa, tem sido imposto às mentes dos autoproclamados “líderes mundiais” pela exibição espetacular, em ação, da lógica ilógica que caracteriza a glocalização. “Glocalização” é o nome dado a uma dupla conjugal que foi obrigada, apesar de todo som e fúria muito bem conhecidos da maioria dos casais ligados pelo matrimônio, a negociar um modus co-vivendi sustentável, já que a separação não é opção realista nem desejável, muito menos o divórcio. Glocalização é o nome de uma relação de amor e ódio, misturando atração e repulsa: o amor que anseia por proximidade misturado ao ódio que aspira a distância. Tal relação talvez tivesse desmoronado sob o peso de sua própria incongruência, não fosse uma dupla de inevitabilidades que teve o efeito de uma pinça: isolado das rotas de suprimentos de âmbito global, o lugar não teria a energia da qual hoje se constroem as identidades autônomas e os dispositivos que as mantêm vivas; e, sem pistas de pouso localmente improvisadas e servidas, as forças globais não teriam onde aterrissar, fazer a troca de pessoal, reabastecer-se de estoque e combustível. Trata-se de inevitabilidades destinadas a conviver. Para o bem ou para o mal. Até que a morte as separe. 4 DE FEVEREIRO DE 2011 Sobre o que fazer com os jovens “Vistos cada vez mais como outro encargo social, os jovens não estão mais incluídos no discurso sobre a promessa de um futuro melhor. Em lugar disso, agora são considerados parte de uma população dispensável, cuja presença ameaça evocar memórias coletivas reprimidas da responsabilidade dos adultos.” Assim escreve Henry A. Giroux num ensaio de 3 de fevereiro de 2011 sob o título “A juventude na era da dispensabilidade”.1 De fato, os jovens não são plena e inequivocamente dispensáveis. O que os salva da dispensabilidade total – embora por pouco – e garante certo grau de atenção dos adultos é sua atual e, mais ainda, potencial contribuição à demanda de consumo: a existência de sucessivos escalões de jovens significa o eterno suprimento de “terras virgens”, inexploradas e prontas para cultivo, sem o qual a simples reprodução da economia capitalista, para não mencionar o crescimento econômico, seria quase inconcebível. Pensa-se sobre a juventude e logo presta-se atenção a ela como “um novo mercado” a ser “comodificado” e explorado. “Por meio da força educacional de uma cultura que comercializa todos os aspectos da vida das crianças, usando a internet e várias redes sociais, e novas tecnologias de mídia, como telefones celulares”, as instituições empresariais buscam “imergir os jovens num mundo de consumo em massa, de maneiras mais amplas e diretas que qualquer coisa que possamos ter visto no passado”. Um estudo recente, orientado pela Kaiser Family Foundation, descobriu que jovens dos oito aos dezoito anos gastam agora mais de sete horas e meia por dia com smartphones, computadores, televisores e outros instrumentos eletrônicos, em comparação com as menos de seis horas e meia de cinco anos atrás. Quando se acrescenta o tempo adicional que os jovens passam postando textos, falando em seus celulares ou realizando múltiplas tarefas, tais como ver TV enquanto atualizam o Facebook, o número sobe para um total de onze horas de conteúdo de mídia por dia. Pode-se prosseguir acrescentando sempre novas evidências a essas reunidas por Giroux: um volume crescente de evidências de que “o problema dos jovens” está sendo considerado clara e explicitamente uma questão de “adestrá-los para o consumo”, e de que todos os outros assuntos relacionados à juventude são deixados numa prateleira lateral – ou eliminados da agenda política, social e cultural. De um lado, como já observei alguns dias atrás, as sérias limitações impostas pelo governo ao financiamento de instituições de ensino superior, acopladas a um aumento também selvagem das anuidades cobradas pelas universidades (de fato, o Estado decidiu lavar as mãos da obrigação de “educar o povo”, de forma gritante no caso das áreas “de ponta” ou de excelência, mas também, de modo um pouco menos direto – como mostra a ideia de substituir as escolas secundárias administradas pelo Estado por “academias” dirigidas pelo mercado de consumo –, nos níveis destinados a determinar o volume total de conhecimento e habilidades que a nação tem à sua disposição, assim como sua distribuição entre as categorias populacionais), são testemunhas da perda de interesse na juventude como futura elite política e cultural da nação. Por outro lado, o Facebook, por exemplo, assim como outros “sites sociais”, está abrindo novíssimas paisagens para agências que tendem a se concentrar nos jovens e a tratá-los basicamente como “terras virgens” à espera de conquista e exploração pelo avanço das tropas consumistas. Graças à despreocupada e entusiástica autoexposição dos viciados em Facebook a milhares de amigos e milhões de flâneurs on-line, os gerentes de marketing podem atrelar ao carro de Jagrená”a consumista vontades e desejos mais íntimos e aparentemente mais “pessoais” e “singulares”, articulados ou semiconscientes – já efervescentes ou apenas potenciais; o que irá pipocar nas telas alimentadas pelo Facebook será agora uma oferta pessoal, preparada, enfeitada e afiada com cuidado, “especialmente para você” – oferta que você não pode recusar por ser incapaz de resistir à tentação; afinal, é aquilo de que você sempre precisou: ela “ajusta-se à sua personalidade única” e “faz uma declaração” nesse sentido, a declaração que você sempre quis fazer, mostrando ser a personalidade única que você é. Trata-se de uma verdadeira ruptura nos destinos do marketing. Sabe-se muito bem que a parte do leão do dinheiro gasto com marketing é consumida pelo esforço superdispendioso de determinar, instilar e cultivar nos potenciais compradores desejos adequados para se transformar na decisão de obter determinado produto oferecido. Certo Sal Abdin, consultor de marketing que atua na rede, apreende a essência da tarefa a ser confrontada quando dá o seguinte conselho aos adeptos da arte do marketing: Se você vende perfuratrizes, escreva um artigo sobre como fazer melhores buracos, e obterá muito mais ordens de venda que apenas divulgando informações sobre seus aparelhos e suas especificações. Por que isso funciona? Porque ninguém que tenha comprado uma perfuratriz queria uma perfuratriz. Queria um buraco. Ofereça informações sobre como fazer buracos e terá muito mais sucesso. Se estiver vendendo um curso sobre como perder peso, venda os benefícios de ser magro, mais saudável, sentir-se melhor, a alegria de comprar roupas, a reação do sexo oposto. … Você sabe o que estou dizendo? Venda os benefícios do produto, e este se venderá por si mesmo quando os compradores chegarem à página de vendas. Mencione suas características, mas enfatize o que ele pode fazer pelo comprador para tornar sua vida melhor, mais fácil, rápida, feliz, exitosa. … Pegou a ideia? Não é a promessa de uma vida fácil, com certeza. Nem de um caminho curto, suave e rápido em direção ao alvo, que é o encontro entre um cliente desejoso de comprar e um produto querendo ser comprado. Desenvolver um desejo por buracos bem-feitos e vinculálo à perfuratriz que promete fazê-los talvez não seja uma tarefa impossível, mas vai levar tempo e grande dose de habilidade para estabelecê-lo na imaginação do leitor e erguê-lo ao topo de seus sonhos. O encontro desejado sem dúvida vai acontecer, mas o caminho que leva a esse glorioso momento de realização é longo, árduo e espinhoso; sobretudo não há garantia de atingir o destino até que se chegue lá. Além disso, a estrada precisa ser bempavimentada e larga o bastante para acomodar um número desconhecido de caminhantes, embora o número dos que resolvem trilhá-la talvez não justifique o enorme custo de torná-la tão ampla, agradável de andar, tentadora e convidativa. É por isso que chamei a oportunidade do Facebook de “uma verdadeira ruptura”. É uma chance de fazer nada menos que cortar do orçamento de marketing os custos da construção da estrada – ou quase. Tal como no caso de tantas outras responsabilidades, ela passa a tarefa de desenvolver os desejos dos clientes potenciais, dos gerentes (de marketing) para os próprios clientes. Graças ao banco de dados que os usuários do Facebook constituem de forma voluntária (de graça!) e ampliam a cada dia, as ofertas do marketing podem agora identificar consumidores já “preparados”, sazonados e maduros, e os tipos certos de desejo (que, portanto, não precisam mais de palestras sobre a beleza dos buracos); podem alcançá-los sob um disfarce duplamente atraente – lisonjeiro além de bem-vindo – oferecendo uma bênção que é “só sua, feita para você, para atender suas necessidades próprias e pessoais”. Só uma pergunta vazia para tempos vazios: talvez a última barreira entre a juventude e sua destituição seja a capacidade recém-descoberta e possibilitada de servir como local de armazenamento dos excessos da indústria de consumo em nossa era de removibilidade? 8 DE FEVEREIRO DE 2011 Sobre as virtudes que não são para todos O colapso do crédito – gigantes bancários à beira da falência e empurrando seus clientes para o abismo – deve ter chocado tanto poupadores quanto mutuários descuidados. Mas, como mostram os últimos números, não por muito tempo. As lições, mesmo quando chocantes, parecem ser esquecidas muito antes de conseguir se estabelecer na memória, que dirá sedimentar-se em hábitos e predisposições. Enquanto no terceiro trimestre de 2009 os americanos guardaram 7% de seus rendimentos em cadernetas de poupança (um aumento enorme, de 400%, em comparação com a prática pré-choque), no final de 2010 suas poupanças haviam caído de novo para apenas 5,3%. No mesmo período, os empréstimos voltaram a subir, da mesma forma que as compras e os gastos. As esperanças de uma revolução cultural, ou pelo menos de uma minirrevolução, nos padrões de vida da sociedade de consumidores parecem ter sido em vão – frustradas tão logo surgiram. O caminho para a ressurreição de pelo menos alguns dos valores puritanos que, como Max Weber vivia repetindo, introduziram o mundo na moderna aventura capitalista, da miséria à riqueza e do bom ao melhor, revelou-se obstruído e bloqueado com muito mais solidez do que vários observadores consideravam provável. De alto a baixo, os americanos estão retornando em massa à sua segunda natureza – inventada e adquirida – de gastadores, fechando rapidamente a porta a seu passado de poupadores. Ou pelo menos é o que sugerem as estatísticas das instituições de poupança e dos cartões de crédito. Como explicar isso? Invocando a falência das virtudes e a teimosia de vícios pessoais adquiridos e instilados entre os poupadores transformados em devedores que se aferram à sua escolha independentemente do tempo ruim? Ou culpando as dificuldades de aprendizado das pessoas? Ou depositando a culpa na porta das agências de marketing, falsas e inescrupulosas, mas insidiosa, esperta e habilmente sedutoras? Parece haver alguma verdade em todas essas explicações. Alguma verdade, mas não toda. Fundir as estatísticas sobre a queda na poupança e o crescimento do crédito ao consumidor esconde duas realidades sociais diferentes. As pessoas que pararam de poupar não são as mesmas que voltaram a recorrer aos cartões de crédito: as primeiras não podem nem poupar nem viver de crédito, e pela mesma razão. Não há dúvida de que há muitas pessoas entre os litorais americanos do Atlântico e do Pacífico sentindo-se plantadas e seguras para permitir a si mesmas e a seus parentes próximos ser recompensados com um pouco mais de mimo e autocomplacência. Mas também não há dúvida de que existem muitos outros que não têm solvabilidade nem capacidade de poupar. Segundo a pesquisa mais recente realizada pela American Payroll Association, cerca de 67% dos americanos depende do próximo contracheque para pagar as despesas com seu sustento; e a maioria dos empregados dos Estados Unidos teria dificuldade de cumprir suas obrigações financeiras caso seu próximo pagamento chegasse com apenas uma semana de atraso. Aqui não há lugar para poupança. Um advogado trabalhista de Chicago, Thomas Geoghegan, sugere no New York Times de hoje que, para os 43 milhões de americanos vivendo na pobreza (proporcionalmente equivalentes ao número de pobres do Egito), poupar é algo sempre improvável, não importa o quanto tentem; e ele acrescenta algumas observações próprias, extraídas de sua ampla e prolongada prática entre os trabalhadores de Illinois – ativos, aposentados e desempregados – para explicar por que é assim. Trinta anos atrás, dois terços dos trabalhadores tinham planos de pensão com benefícios garantidos por toda vida; agora a proporção é de um em cada cinco, e ela cai depressa. Bem, nas décadas de 1960 e 1970, os sindicatos “tiveram seus dias de glória antes de ser esmagados”; atuavam como “planejadores das finanças da nação”. Mas o mundo daqueles “dias de glória”, diz Geoghegan, “virou de cabeça para baixo”. E ele observa com sarcasmo que, depois de “o sistema bancário ao estilo americano ter destruído a social-democracia” em certos países, “nossos especialistas” continuariam insistindo em que “todos podemos poupar, inclusive os pobres”. Eles poderiam assinalar que, no clássico de C.L.R. James, The Black Jacobins, até alguns escravos da República Dominicana conseguiram poupar o suficiente para comprar sua liberdade – e depois diriam: “Vejam, vocês podem fazer isso.” Basta guardar seu dinheiro. É a única esperança… Ao que Geoghegan responde: Para a maioria das pessoas das camadas médias ou abaixo, poupar é uma questão de sorte. Sim, posso pegar livros de autoajuda e imaginar um orçamento. Mas isso exige que eu leve uma vida boa e não tenha filhos. Já representei um monte de trabalhadores que – sem benefícios definidos nem sindicato para ajudá-los – realmente guardaram dinheiro. E isso pode funcionar – se nada der errado. Mas algo sempre dá errado: a mulher tem um ataque, o hóspede que você acolheu para ajudar de repente fica desempregado ou… você perde o emprego. Daí é com o cartão Visa, e 20% de seus rendimentos são para pagar os juros do banco, tudo por causa de um acidente sobre o qual você não tinha controle. Puf: lá se vai a casa, se é que ela já não estava debaixo d’água. Ou lá se vão trinta anos de economias numa conta de aposentadoria individual, pelas quais seu banco, dada a bondade do próprio coração, vinha pagando juros abaixo de 1%. Não é difícil chegar à conclusão: “Os livros de autoajuda vivem num mundo de sonhos. … Mas, na verdade, é um mundo de pesadelos. … É um país no qual, com uma renda média ou mais baixa, até Silas Marnerb acharia difícil economizar.” 9 DE FEVEREIRO DE 2011 Sobre as bênçãos e maldições de não tomar partido A internet não toma partido. A internet é neutra. É uma ferramenta – e as ferramentas podem ser usadas por todos e para uma ampla variedade de propósitos. A internet pode ser usada para convocar os amantes da democracia até a praça da Libertação, assim como para chamar os amantes da tirania. Isso é bom – algo de que nos orgulhar. Se a internet não existisse, precisaria ser inventada, e qualquer protagonista da democracia liberal concordaria com isso de pronto. A neutralidade da internet é outro pilar de sustentação da igualdade de oportunidades, cara a todo e qualquer coração que bata pela causa da liberdade. Tiranos ou aspirantes a tiranos de todos os credos sabem muito bem disso; não admira que tendam a enxergá-la com profunda antipatia e suspeita, como um veneno espargido subrepticiamente num poço, ou como uma bomba de efeito retardado. Também não admira que desejem com ardor seu desaparecimento – enquanto fazem o possível para tentar garantir que isso aconteça. A internet é o presságio da visibilidade para os invisíveis, da audibilidade para os mudos, da ação para os incapazes de agir. Resumindo uma longa história: fora alguns abusos que precisam e devem ser cortados pela raiz, a internet é igual à liberdade. Talvez até a liberdade dos que não são livres. Ao menos em potencial pode se tornar mais que isso: o poder dos impotentes. Mais exatamente: enquanto impõe restrições à autoridade dos detentores do poder, a internet acrescenta energia às exigências e às ações dos que estão na outra extremidade, a receptora. Claro que tudo isso é verdadeiro, já que as provas de sua veracidade são abundantes, enquanto as evidências em contrário são poucas e esparsas. Ou melhor, acreditava-se que essa verdade fosse evidente e comprovada, um caso aberto e encerrado – até há pouco tempo. Quase ignorado pela imprensa, assim como pela opinião pública que a imprensa supostamente mantém alerta e atualizada, a Stuxnet chegou para sacudir e talvez destruir essa crença. “Stuxnet”, como li no artigo do bem-informado Richard A. Falkenrath, na edição de 26 de janeiro do New York Times, é o codinome do “verme de computador que no ano passado derrubou muitas centrífugas a gás básicas para o programa nuclear iraniano”. Bem, a Stuxnet é gritante e assumidamente uma arma, e uma arma dotada de enorme poder de destruição. Uma arma altamente eficaz, embora inconspícua e furtiva: com apenas meio megabite de potência, mas capaz de atingir em apenas alguns segundos o que anos de esforços diplomáticos internacionais, de forma abominável, não conseguiram. Não pretende ser uma réplica eletrônica reforçada das caixas de sabão sobre as quais discursam os oradores no Hyde Park Corner. E assim fica imediatamente claro de que maneira sua aparição vem solapar a crença na internet como promotora apartidária da liberdade e autonomia, e a convicção de que não tomar partido e estar disponível a todos, em toda parte, é a maior razão disso. O caso não seria fonte de preocupação não fosse pelo fato de que “a Stuxnet atacou o programa nuclear iraniano, mas o fez manipulando com malícia produtos de software vendidos no mundo todo por grandes empresas do Ocidente. Quem lançou o ataque também infectou milhares de computadores em vários países, incluindo Austrália, Grã-Bretanha, Indonésia e Estados Unidos.” Falando da maneira mais simples: a Stuxnet é uma arma cuja eficácia (leia-se: poder de destruição) depende da ampla, e em princípio indispensável e inevitável, escala e do alcance das baixas colaterais de seu uso. As baixas colaterais, como todos sabemos, não podem, por sua própria natureza, basear-se em fronteiras ou em insignificâncias como provas de inocência e declarações de neutralidade. Elas eliminam a distinção entre combatentes e não combatentes, entre tomar ou não tomar partido. Por ter as baixas colaterais como suas companheiras inseparáveis, a entrada da Stuxnet na internet (e não há dúvida de que ela é apenas uma unidade de vanguarda, um pelotão de reconhecimento, uma sonda de testes destinada a abrir caminho para a chegada do corpo principal do Exército) anula também outra distinção: entre armas defensivas e ofensivas. Pode-se debater interminavelmente se o ataque às estações nucleares iranianas foi um ato defensivo ou ofensivo, mas é difícil alguém duvidar que constitui um despropósito discutir, que dirá provar, a intenção ou o significado defensivo dos danos produzidos na Austrália ou na GrãBretanha. Além disso, como Falnkenrath deixa claro, “a perícia necessária para se defender de um ciberataque é em essência indistinguível daquela necessária para fazer um ataque como esse”. Sendo o know-how exigido e suas armas técnicas idênticos em ambos os casos (casos, aliás, que se oporiam em outros aspectos), não há diferença entre agressão e autodefesa na internet; na verdade, a neutralidade declarada e praticada pela internet não está distante daquela dos traficantes de armas ilegais, que também tendem a fornecer instrumentos letais aos dois lados de uma guerra tribal sem se preocupar com as relativas vantagens e desvantagens éticas ou ideológicas. A mesma companhia, a Siemens, forneceu os mesmos programas de controle de dados utilizados em instalações nucleares (inclusive as do Irã) e pelos criadores da Stuxnet – ostensivamente, para permitir que estes defendessem os Estados Unidos de ciberataques! Afinal, a postura e a prática, assim como o efeito de “o meio é a mensagem” da variedade “não tomar partido” que caracteriza a internet, tiveram como resultado lançar dúvidas sobre a própria noção de “tomar partido” – assim como a de legítima defesa, ou mesmo, num futuro não muito distante, sobre a distinção entre “guerras justas” e “injustas”. É por isso, creio eu, que Falkenrath admite que a guerra travada na internet “é bem menos controlável que as tradicionais operações militares e de informação”; faz-se necessária uma nova e ampla legislação, interna e possivelmente também “internacional” (o que quer que essa ideia ilusória e indefinível possa significar), para aliviar a “ambiguidade jurídica” atual. Mas mesmo isso “não responderia todas as perguntas”. Tendo admitido tudo isso, Falkenrath – fiel à sua postura de conselheiro adjunto de segurança interna do presidente George W. Bush – termina não com um apelo à razão e à boa vontade, mas às armas: “Uma coisa é certa: a corrida armamentista pode ser ruim, mas perdê-la seria pior.” 12 DE FEVEREIRO DE 2011 Sobre um tsunami humano – e depois Para a antiga sabedoria chinesa, o desejo de “viver numa época interessante” é visto como maldição. A sabedoria contemporânea oscila entre as duas alternativas. Muitos considerariam esse desejo uma bênção. Um tsunami humano de proporções desconhecidas – de que não nos lembramos ou já esquecemos – varreu, numa única quinzena, um ditador empoleirado por trinta anos no topo de uma enorme rede de patrocinadores e clientes, burocratas corruptos e juízes corruptíveis, alcaguetes, informantes e torturadores. Segundo as notícias, e durante dias, todas as pessoas que estavam na praça Tahrir, no Cairo, pareciam regozijar-se: gente que sonhava com as liberdades da classe média (ou seja, às quais enfim se permitia que juntassem o poder político que ainda não tinham à força econômica de que já eram possuidoras), com uma república islâmica (ou seja, os mulás e imãs a quem se permitiu anunciar “L’État, c’est nous!”, “Nós somos o Estado”) ou com uma sociedade justa e solidária (ou seja, os milhões de desempregados que esperavam ser capazes de ganhar seu sustento, as dezenas de milhões de empobrecidos que sonhavam ser capazes de viver de suas rendas). Os que não viam vantagens para si próprios permaneceram mudos. Ou suas vozes foram abafadas em meio ao tumulto provocado pelo coro dos vitoriosos e pelo estrépito dos fogos de artifício. Ocasionalmente, porém, podem-se ouvir vozes de ceticismo, embora até agora esparsas e cantadas em solo, a sotto voce e pianissimo. Os que vocalizam esse ceticismo olham à sua volta e veem que a pirâmide de poderes em cujo topo se empoleirou o atual ditador (assim como seus predecessores) emergiu do tumulto incólume e intata; e eles têm dúvidas sobre o que mais pode suportar essa rede de poder firmemente estabelecida, que até agora não dá sinais de desmonte ou rompimento. Ayaan Hirsi Ali, por exemplo, criadora da Fundação AHA, dedicada à defesa das mulheres muçulmanas, assinala em seu artigo de hoje no Le Monde (“Não, o mundo árabe não é a Europa do Leste em 1989!”) que o islã, religião mais que qualquer outra habilidosa, experimentada e eficiente na arte da mobilização de massa, dificilmente poderia tolerar, muito menos sustentar, uma existência sem líder e um regime não autoritário. Mubarak e Gaddafi não caíram da Lua; são produtos legítimos da civilização islâmica, marcada como sempre foi pela ausência de liberdade individual. Nessa civilização, que “proíbe que se responda ao pai, à mãe ou a um imã, a submissão à ditadura do Estado torna-se quase uma segunda natureza”. E ela lembra aos leitores que até agora “homens que chegaram como libertadores” acabaram “transformando-se em ditadores”, encorajados pelo silêncio ensurdecedor das massas sonolentas, “até o momento em que alguém chegue para mobilizar as massas a fim de libertar a nação de seu antigo libertador”. De modo invariável e inexorável, “o novo governante acaba restaurando a velha infraestrutura de denúncias e torturas”. Ali teme uma onda de caos e instabilidade (no estilo do Paquistão), seguida de uma nova era ditatorial. Nada menos que uma verdadeira revolução cultural, acredita ela, seria capaz de romper esse círculo vicioso. Outros creem que os perigos mais assustadores não se aninham na cultura, mas na política, e não na política dos atuais ou potenciais ditadores árabes, mas na política do Ocidente, egoísta e interesseira. Assim Tariq Ramadan, de Oxford, sugere que, “por trás de toda essa conversa celebrando a democracia, a liberdade e os direitos humanos, escondem-se avaliações frias e sobretudo cínicas. … Como controlar esse movimento, como lucrar com ele?” Ele lembra a seus leitores que Obama, Merkel, Cameron e outros como eles, hoje pontificando para os egípcios a superioridade ética da democracia e derramando lirismo sobre as bênçãos da vida democrática, “nunca hesitaram em manter relações amigáveis com os piores ditadores, inclusive Mubarak”. Ramadan pergunta: “Quem é tão ingênuo a ponto de acreditar na súbita conversão dessas pessoas?” (Embora, nesse aspecto, talvez ele esteja errado: há muitas pessoas, não necessariamente ingênuas, mas ávidas por acreditar, se o preço for justo.) É difícil que a história dos Estados Unidos e da Europa no que tange à “promoção da democracia” longe de casa seja pior. Ramadan sem dúvida não está errado quando acusa os do “norte”, como nós, de hipocrisia. A maioria de nós reconheceria como puramente retórica a pergunta que ele faz: “Os Estados Unidos não têm uma longa história de colaborar e conspirar com as forças islâmicas mais tradicionalistas, retrógradas e extremistas, do Afeganistão à Arábia Saudita?” Bem, ele poderia e deveria acrescentar que essa longa e triste história de descrédito da democracia não se limitou ao círculo encantado do islã. As potências do “norte” têm uma longa ficha de desserviços à causa da democracia e da liberdade – uma ficha que nem sequer se aproximou do fim com o término da era colonial. Mossadeq era de fato muçulmano, mas Salvador Allende não era, o que não livrou nenhum dos dois (assim como uma longa lista de outros como eles) de cair vítimas da preferência incondicional e talvez incorrigível da CIA por tiranos amigáveis aos Estados Unidos em relação a independentes incorruptíveis democraticamente eleitos. Esses casos também deveriam ser sujeitos à injunção de Ramadan: “Não deveria ser um problema para os ‘democratas do norte’ aceitar ou não a ditadura, a repressão e a tortura em nome da segurança e de interesses econômicos ou geoestratégicos.” A observação de Ramadan – é preciso não apenas pedir a cabeça de Mubarak, mas também desmantelar um “sistema corrupto baseado no clientelismo, na tortura e no roubo sistemático” – também deve ser ampliada: a destruição da hierarquia de valores praticada, se não pregada, pelo “norte” deve compartilhar a sorte dos “sistemas corruptos” operados por Mubarak e os de sua laia. Com amigos como a CIA, a democracia dificilmente precisaria de inimigos. De fato, Georges Corm, ex-ministro das finanças do Líbano, acrescenta aos argumentos de Ramadan, na mesma edição do Le Monde, meia dúzia de argumentos próprios. Por exemplo: “A invasão pelo Exército americano em 2003, sob o pretexto de depor o tirano e estabelecer a democracia, levou, pelo contrário, a que o Iraque caísse num tribalismo e num comunitarismo afrontosos, assim como num empobrecimento da população ainda mais profundo que o perpetrado pelas sanções da ONU”; ou, aprovada e apoiada pelo Ocidente, a “revolução dos cedros”, no Líbano, só conseguiu “agravar o comunitarismo interno e a inimizade sectária”. O plano de “reinfantilizar” o Oriente Médio, posto em operação sob a égide de George W. Bush e Condoleezza Rice, assim como suas tentativas de impor a democracia a partir de fora, não poderia ter outro efeito senão aprofundar as tensões e a instabilidade geral da região. Mas Corm acrescenta ao debate um tema muitíssimo importante, que não aparece nas análises dos outros dois: Apoiar apenas as reivindicações políticas da classe média, esquecendo a justiça social e a igualdade das classes mais destituídas e empobrecidas, só pode resultar numa grande desilusão. O que levou essas classes ao desespero e à revolta foi a “cleptocracia”, que liga interesses oligárquicos locais a grandes companhias europeias, assim como aos interesses financeiros árabes, com origem nos países exportadores de petróleo. É essa injustiça que alimenta as correntes islamitas envolvidas nos protestos sociais. Que faltaria dizer? Só que já fomos avisados. Mas o fomos muitas vezes no passado. Todas elas, ou quase, sem benefício algum. Infelizmente, a história pode mais uma vez (?) se repetir. O motivo, podemos inferi-lo do comentário de Bob Herbert hoje, no New York Times: Quando as multidões comemoravam no Cairo, não pude deixar de imaginar o que está acontecendo à democracia aqui nos Estados Unidos. Creio que ela está atirada às cordas. Corremos o sério risco de nos tornarmos uma democracia apenas no nome. Enquanto milhões de americanos comuns lutam contra o desemprego e o declínio de seus padrões de vida, as alavancas do verdadeiro poder têm sido quase totalmente controladas pela elite financeira e empresarial. Na verdade, não importa o que querem as pessoas comuns. Os ricos dão o tom e os políticos dançam. Os pobres, que estão sofrendo de uma intensa depressão, nunca são ouvidos. Em termos de sua influência, poderiam muito bem não existir. As forças ligadas a Obama desejam, ao que se registra, levantar US$ 1 bilhão ou mais para sua campanha de reeleição. Políticos em busca desse tipo de quantia não costumam falar muito sobre os desejos e as necessidades dos pobres. Estão se ajoelhando diante dos muito ricos. 13 DE FEVEREIRO DE 2011 Sobre o piso por baixo do piso A dívida federal americana está crescendo atualmente numa taxa de US$ 4 bilhões por ano. No momento em que escrevo estas palavras, 40% de cada dólar gasto nas lojas por um cliente americano são emprestados; em outras palavras, não são ganhos com trabalho. Trata-se de uma dívida que, a menos que haja uma guerra ou um meteoro gigante tire nosso planeta de sua órbita, acabará tendo de ser paga. Por alguém. Por quem? – poderíamos perguntar. “Não por nós”, diriam os membros do Congresso americano consolando a si mesmos enquanto empurram pelo Capitólio um déficit orçamentário que chega a US$ 1,4 trilhão – quer dizer, caso se dignassem a responder. Mas não parece que eles possam mudar de atitude, ou que venham a ser suficientemente pressionados nesse sentido – e assim, prevê-se que em abril ou maio o total da dívida americana venha a ultrapassar o limite legal estabelecido pelo Congresso, que é de US$ 14,3 bilhões. Essa última questão, ao contrário das anteriores, obrigou os membros do Congresso a uma atividade febril: eles têm somente de dois a três meses para obter o endosso do Senado e da Câmara para aumentar esse limite e empurrar os Estados Unidos para outro piso, abaixo daquele que o país já estabeleceu para sua derrocada financeira. Os Estados Unidos são um país famoso por quebrar recordes em todos campos, e o da estupidez financeira não é exceção. Os legisladores americanos tornaram-se mestres consumados na arte de romper o limite inferior na esperança (ou melhor, na certeza) de que outro piso, mais abaixo, possa ser posto em operação, até chegar a sua vez de se romper: só no último Natal, eles presentearam os clientes e vendedores americanos com US$ 858 bilhões em cortes de impostos para os ricos. Outro recorde foi então quebrado: o governo George W. Bush conseguiu reunir apenas cerca de US$ 700 bilhões para salvar o sistema bancário americano de uma queda livre; uma soma que, na época, menos de dois anos atrás, foi recebida com espanto, assombro e incredulidade misturados a adoração – e que agora não atrairia mais interesse, talvez menos que os recordes olímpicos anteriores à Primeira Guerra Mundial. Com toda a certeza, não sou especialista em economia, portanto preciso procurar orientação daqueles que o dizem ser e como tal são tratados. Um banqueiro francês, segundo artigo de Marie de Vergès publicado em Le Monde de hoje, explica toda a questão; o Tesouro americano, diz ela, pode pagar dívidas emitindo tantos dólares quantos desejar. Confesso que fiquei perplexo ao ler essas palavras, mas parece que minha atitude foi compartilhada pelo menos por algumas pessoas que, ao contrário de mim, não carecem de credenciais na área econômica. Uma delas, Antoine Brunet, opina que, se continuar com a política atual, o Fed vai empurrar a moeda americana abaixo do status de la monnaie de singes – expressão idiomática francesa que significa enganar alguém com promessas vazias… Em quem deveria eu acreditar? E quem sou eu para decidir sobre a credibilidade de economistas? Mas acredito em Hans Jonas e no que ele escreve sobre a “ética na era da incerteza”, com sua versão atualizada da aposta de Pascal (em vez do imperativo categórico kantiano, feito sob medida para uma era de certeza e autoconfiança): se algumas pessoas preveem uma catástrofe e outras negam essa previsão, é mais seguro ficar do lado dos profetas da desgraça. 19 DE FEVEREIRO DE 2011 Sobre estar fora dentro, e dentro, mas fora Em 26 de setembro de 1940, Walter Benjamin foi detido pela polícia espanhola na fronteira entre França e Espanha, e recebeu ordem de voltar por não ter um “visto de saída”, condição então imposta para entrar na Espanha. Apanhado entre um país que lhe recusava o direito de viver e outro que lhe recusava um salva-vidas, Benjamin escolheu a única direção que podia tomar sem ser parado pelos guardiões da lei e da ordem: a morte. Como a Espanha suspendeu a exigência de vistos de saída alguns dias depois, Hannah Arendt, em retrospecto, chamou o suicídio de Benjamin de “singular caso de azar”. Mas Benjamin não podia saber qual seria o passo que os poderes constituídos iriam dar em seguida. Traçar a linha divisória entre sorte e azar não estava em suas mãos. No tabuleiro em que ele representava um peão, os jogos eram disputados por outros. É isso, em resumo, que faz de um refugiado um refugiado. Em seu último livro, no qual resume seus dez anos de estudos em campos de refugiados espalhados pela África e América do Sul, assim como nos “centros de detenção” europeus para imigrantes definidos como “ilegais” ou suspensos na condição de “sem lei, sem direitos” das “pessoas em busca de asilo”, Michel Agier conclui que, setenta anos depois, o “azar” de Benjamin quase perdeu sua singularidade.2 Em 1950, as estatísticas oficiais somavam 1 milhão de refugiados. Hoje, estimativas conservadoras falam em 12 milhões de “pessoas em transição”, mas a previsão para 2050 é de pelo menos 1 bilhão de “refugiados transformados em exilados”. “Estar em transição” é uma expressão irônica quando aplicada à sorte de Walter Benjamin ou a suas réplicas mimeografadas. Por definição, a ideia de “transição” significa um processo finito, um espaço de tempo com linhas delimitadas de partida e de chegada – a passagem de um “aqui” para um “lá” espaciais, temporais, ou espaciais e temporais; mas esses são precisamente os atributos negados à condição de “ser um refugiado”, definidos, separados e em oposição à “norma” por sua ausência. Um “campo” de refugiados não é uma estação intermediária, uma pousada ou um motel na estrada que leva do aqui para o lá. É a estação terminal, onde todas as estradas que estão no mapa chegam ao fim e todo movimento é interrompido. Os campos estão impregnados de finalismo; não o finalismo do destino, porém, mas o estado de transição petrificado em estado de permanência. O nome “campo de transição”, comumente escolhido pelos detentores do poder para designar os lugares em que os refugiados são obrigados a ficar, é um paradoxo: a “transição” é a própria qualidade cujas negação e ausência definem a condição de um refugiado. O único significado definido de ser destinado a um lugar chamado “campo de refugiados” é que todos os outros lugares concebíveis estão fora de seus limites. O único significado de estar dentro de um campo de refugiados é ser um outsider, forasteiro, corpo estranho, intruso no resto do mundo; em suma, ser um excluído do mundo compartilhado pelo restante da humanidade. “Ter sido excluído”, ser fixado à condição de exilado, é tudo que há e precisa haver na identidade do refugiado. Como Agier assinala repetidas vezes, o que separa o exilado de todos os outros seres humanos não é de onde ele chegou ao acampamento, mas a ausência de um para onde – a proibição declarada ou a impossibilidade prática de chegar a qualquer outro lugar. O que conta é ter sido posto de lado. Os exilados não precisam cruzar fronteiras entre nações, chegar de outro país. Podem ser e muitas vezes são nascidos e criados dentro do país em que agora vivem sua vida de exilados. Não precisam ter se afastado um centímetro do lugar em que nasceram. Agier tem toda razão em fundir campos de refugiados, acampamentos de sem-teto e guetos urbanos numa só categoria – a dos “corredores de exilados”. Moradores de todos esses lugares, sejam eles legais ou ilegais, compartilham uma característica decisiva: são todos redundantes. Rejeitos ou refugos da sociedade. Em suma, dejetos. “Dejeto”, por definição, é o antônimo de “recurso”; denota objetos sem uso possível. Na verdade, a única realização do dejeto é poluir e atravancar um espaço que de outro modo poderia ser mais bemempregado. A produção de “dejetos humanos” em escala industrial é um fenômeno eminentemente moderno, tal como o próprio conceito de “dejeto” e seu oposto, o de “recurso”. Na economia camponesa predominante na era pré-moderna, não havia espaço para a ideia de “dejeto”, juntamente com as práticas associadas de sua produção, remoção e destruição; não havia espaço para “detrito”, “refugo”, “sobra” ou “lixo”. Tudo tinha sua utilidade, sendo usado e reciclado. Todos os restos orgânicos criados pelas terras e pela casa de um camponês eram prontamente devolvidos à cadeia alimentar sob a forma de comida para animais ou de fertilizantes. Avant la lettre, uma ampla “reciclagem” era endêmica à economia camponesa, e nem objetos animados ou inanimados, incluindo os seres humanos, estavam isentos dela: presumia-se a priori, ainda que tacitamente, que uma criança recém-nascida teria um papel a desempenhar no campo ou no quintal, assim como um lugar à mesa da família. Só com o desenvolvimento do trabalho remunerado e do mercado de trabalho a demanda e a oferta de mão de obra puderam atingir um estado de desequilíbrio; por conseguinte, foi possível que a ideia de “redundância humana” ganhasse sustentação e que emergisse o conceito de “desemprego estrutural”. Uma vez que isso ocorreu, contudo, a produção maciça e sistemática de “pessoas redundantes” se tornou uma característica permanente da vida moderna. As pessoas redundantes eram os dejetos, ou as baixas colaterais, de duas preocupações extraordinariamente modernas (na verdade, com muita frequência percebidas como traços definidores do modo de vida moderno): a construção da ordem e o progresso econômico. Primeiro, a construção da ordem. Esta é avaliada pelo grau de “regularidade”, ou seja: a crescente previsibilidade dos eventos e o decrescente volume de sua contingência, aleatoriedade, acidentalidade e irregularidade. Substituir o estado de coisas existente, desprezado como “insuficientemente regulado”, “desordenado” demais ou declinando em direção ao caos por um modelo de ordem recém-esboçado, feito sob medida para as novas preferências e capacidades, significa, afinal, redefinir certos modos de vida e as categorias de pessoas que os praticam como “inadequados para” o esquema de coisas pretendido; representa, portanto, negar-lhes espaço na ordem que estava para ser construída. “Ordem” significa um estado de coisas em que certos tipos de evento desejáveis têm mais probabilidade de ocorrer que outros, classificados como “indesejáveis”. Toda “estruturação” ou “reestruturação” (sinônimos de “construção da ordem”) consistem, portanto, na manipulação de probabilidades por separação, invalidação e, de preferência, eliminação das categorias de sujeitos humanos considerados, por uma ou outra razão, suspeitos de resistir a essa manipulação, ou que se recusam de forma aberta a se submeter às normas promovidas; em outras palavras, as categorias acusadas de gerar incerteza, e portanto perturbadoras e solapadoras da futura ordem. “Estruturar” significa, em última instância, um esforço para excluir do sistema as categorias da população que ameaçam se tornar lugares, fontes ou causas de incerteza. Uma vez desligadas e desconectadas do “sistema”, contudo, essas categorias precisam ser impedidas de reentrar ou se reconectar: devem ser deportadas, forçadas, induzidas, pressionadas ou persuadidas e encorajadas a partir. De modo alternativo (ou paralelo), podem ser relegadas a várias formas de internação: um lugar de encarceramento, cercado ou não por muros e guardas armados, mas sempre rodeado por fronteiras osmóticas (para diferenciar o tráfego sobre elas: permitindo a entrada, mas tornando a saída extremamente difícil, se não impossível). Segundo, o progresso econômico. Este é avaliado, acima de tudo, pela velocidade e pelo volume do aumento da eficiência da mão de obra e dos investimentos. “Progredir”, no sentido atribuído a essa palavra pela economia de mercado, significa ser capaz de produzir os mesmos efeitos, ou maiores, com menores gastos e menos trabalho; por conseguinte, isso pode ser avaliado pelo número de trabalhadores que se tornam redundantes – ou seja, não mais necessários para manter a produção desses efeitos no nível já atingido ou ainda maior. No curso do progresso econômico, setores sucessivos da população engajados na atividade produtiva são postos de lado como “inúteis” ou “não lucrativos” – duas razões desqualificantes, tornadas sinônimas pela lógica do mercado econômico. Esses setores são os dejetos – o refugo, as baixas colaterais, do progresso econômico. As duas tendências, preocupações ou atividades acima expostas se combinam no fenômeno da “modernização”. Ao contrário das opiniões antes predominantes e que ainda persistem, embora equivocadas, a modernização – na verdade, a compulsiva e viciante reforma ou substituição de tudo, inclusive de regras normativas, ferramentas e dos próprios padrões de ação modernizados um instante atrás, ou mesmo daqueles que não chegaram a completar o ciclo anterior da modernização – não é um processo temporário que leve à modernidade; ela é o modo existencial imanente e permanente da sociedade moderna: o atributo definidor do modo de vida moderno. Na verdade, a modernidade é o estado de modernização compulsiva, obsessiva e portanto interminável; no sentido aí expresso, a modernização só pode ser interrompida, se é que o pode, com o fim da modernidade. A ideia de uma modernidade capaz de deter a modernização não é menos absurda que a noção de um vento que não sopra ou de um rio que não flui. A consequência, contudo, é que a modernização, de modo endêmico e (pelo menos até agora) incurável, é uma forma de vida produtora de lixo; e nesse ramo da produção, como em todos os outros, o modo de vida moderno é singular e excepcionalmente fértil e eficiente. O preço da criação, da inventiva e da produtividade excepcionais da modernidade é a vulnerabilidade humana à redundância – que está aumentando em vez de diminuir. Não há modernização (nem, portanto, modo de vida moderno) sem uma produção maciça e contínua de dejetos, inclusive o lixo humano proclamado redundante. Por alguns séculos, a península norte-ocidental do continente asiático chamada “Europa” foi uma ilha isolada de modernidade num vasto mar pré-moderno de âmbito planetário, e assim gozava do monopólio mundial da modernização; era, portanto, a única parte do globo afligida pelo veneno da redundância humana. Com uma vantagem sobre o resto do planeta em termos de poder, contudo, e por um considerável lapso de tempo (vantagem oferecida e garantida por sua condição monopolista), a Europa foi historicamente singular por ser capaz de encontrar um uso lucrativo para seu “lixo humano”, a parte “redundante” de sua população: a conquista e a colonização. O episódio imperialista da história europeia foi resultado de uma singular concatenação de circunstâncias não reproduzidas e provavelmente não reproduzíveis por outras áreas do planeta: uma conjunção única da necessidade de remover a parte redundante da população, sistematicamente crescente, com a oportunidade de empregar seus integrantes no papel de conquistadores, expandindo as possessões territoriais europeias e também obtendo a abertura de novos mercados para a exploração tranquila e potencialmente irrestrita pela Europa. Nesse caso, e talvez só nele, o exílio podia ser e era reciclado em colonização; os impérios europeus no ultramar podiam ser e eram utilizados como oficinas em que essa reciclagem se realizava de modo produtivo, e em grande parte se concretizava. A maldição da exclusão foi reciclada em “missão do homem branco” (ou, como preferiria Rudyard Kipling, num subtom de autoaprovação misturada com autodefesa, o “fardo do homem branco”). Com crescentes quantidades de lixo transportadas em segurança para o ultramar, evitaram-se os efeitos mais ameaçadores e em potencial mais tóxicos do lixo acumulado. Independentemente da fração da população redundante que permaneceu na terra natal depois de preenchidas as guarnições ultramarinas; da forma como os escritórios da administração colonial e os postos avançados do comércio exterior tiveram atendidas suas necessidades de pessoal, as terras dos territórios anexados que passaram a ser usadas para a colonização em geral puderam se tornar administráveis – não sem tensões e atritos sociais consideráveis e por vezes explosivas. Em suma, encontrou-se uma solução global para problemas localmente produzidos; e por alguns séculos ela pôde ser imposta com energia e sucesso. Mas, repito, essa foi uma oportunidade única para a Europa e por tempo limitado – que jamais se repetirá, seja na Europa ou em qualquer outra parte do planeta. Bem, pode-se dizer que, no fim do século XX, a “missão do homem branco” tinha se realizado, ou, caso se prefira, que o “fardo do homem branco” havia sido entregue – mesmo que não na forma prevista pelos missionários e seus supostos portadores: a modernização compulsiva e obsessiva, por necessidade, ainda que não por escolha, havia de fato alcançado os recantos mais distantes e isolados do planeta – ou quase. As sementes do admirável mundo novo, revestidas por um veneno destinado a destruir os resíduos do velho e não tão admirável mundo, haviam sido aspergidas por todo o planeta. As “modernidades” que delas brotaram, como insistem alguns observadores, podem ser muitas e diversas – mas cada uma delas é (é obrigada a e não pode deixar de ser) viciada na modernização perpétua, compulsiva e obsessiva; isso significa que o lixo humano é produzido em toda parte – ou quase. A redundância humana não é mais um incômodo gerado localmente que possa ser aliviado ou eliminado procurando-se, encontrando-se e aplicando-se soluções globais. É justo o contrário: são os poderes locais, ou o que tenha sobrado deles, que enfrentam a assombrosa tarefa de procurar, encontrar e aplicar soluções locais para os problemas globalmente gerados, de caráter universal. Em sua essência, esse problema se resume no gerenciamento da indústria de remoção e reciclagem de lixo e refugos. Um aspecto interessante e revelador: o temor da terrível ameaça de superpopulação do planeta irrompeu na “opinião mundial” ao mesmo tempo que a debilitação dos impérios ultramarinos europeus e o fim da era colonialista. Ganhou força durante o resto do século XX e não mostra sinais de fraqueza no século XXI. Hoje, alguns dos intelectuais de maior prestígio – como, por exemplo, no Le Monde de 15 de fevereiro, Henri Leridon, incumbido pela Academia Francesa de analisar e interpretar as atuais tendências populacionais – advertem que, sendo a Terra incapaz de alimentar mais que 9 bilhões de pessoas, qualquer coisa acima disso tende a desencadear uma explosão social, talvez a extinção da espécie humana; no entanto, diz Leridon, dados coletados pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, apesar do esforço dos autores para dar um tom otimista a seus comentários e amenizar (em vez de reforçar) os temores referentes a uma “bomba demográfica”, mostram que, se a taxa de fertilidade não for significativamente reduzida, o limiar da catástrofe em breve será atingido – e ultrapassado. O relatório da ONU sugere que o temido número de 9 bilhões será o pico do crescimento populacional, a ser alcançado em 2050, após o que a população do planeta começará a diminuir. Mas outros intelectuais se recusam a ser acalmados. Eles apontam que, com a população da Terra na iminência de atingir 7 bilhões no fim de agosto, um simples cálculo mostra que, enquanto o primeiro bilhão levou um período imenso para ser alcançado, o segundo bilhão levou apenas 180 anos, enquanto o sétimo não precisou de mais que doze. Também questionam a veracidade e a credibilidade do otimismo oficial da ONU, sugerindo que, embora com um crescimento da taxa de natalidade em torno de 0,5%, a população mundial ultrapassaria o pico esperado em 2050 em 1,5 bilhão de pessoas, enquanto um crescimento de apenas 0,25% seria suficiente para que a população atingisse os 14 bilhões em 2100. (Mas os autores do prognóstico deixaram de explicar de que modo isso poderia acontecer, e se com os 9 bilhões de pessoas se desencadearia a extinção da raça humana.) Às vezes pode-se detectar um tom de desespero nos cenários mais alarmistas (embora ele dificilmente chegue a se formalizar, e os relatórios, com prudência, evitem expressá-lo): como “planejamento familiar” é o único método de controle da fertilidade, estamos privados de meios efetivos para evitar a ocorrência da superpopulação. Outro aspecto interessante e revelador: invariavelmente, a despeito da cor do alerta que recomendem, os fornecedores de dados e comentários percebem o perigo como algo que provém sobretudo, ou quase com exclusividade, dos países pobres (em geral os mais densamente povoados). Observe-se que entre 1789 e 1826, no limiar da modernização intensiva, mas antes que o planeta fosse dividido entre impérios europeus emergentes e a colonização ganhasse ímpeto, Thomas Robert Malthus publicou e atualizou seu Ensaio sobre a população. Aí ele argumentava que a humanidade se destinava a enfrentar a superpopulação, expressa numa catastrófica carência de alimentos, se não houvesse limitação da taxa de natalidade, aumento da taxa de mortalidade, ou ambos: O poder da população é tão superior ao poder da terra de produzir substâncias para o homem que a morte prematura, de uma forma ou de outra, pode afligir a raça humana. Os vícios da humanidade são ativos e hábeis ministros do despovoamento. São os precursores do grande exército da destruição, e muitas vezes dão cabo, eles mesmos, de sua tarefa macabra. Mas se eles perderem essa guerra de extermínio, períodos de doença, epidemias, pestes e pragas avançarão numa formação terrível e os varrerão aos milhares e dezenas de milhares. Se seu êxito ainda for incompleto, uma fome inevitável e gigantesca advirá, e com um só e poderoso golpe irá nivelar a população com a comida existente no mundo.3 A sugestão de Malthus permaneceu por várias décadas no centro das atenções acadêmicas; foi recebida de forma ambígua, mas vozes poderosas se ergueram em oposição (entre as mais apaixonados e influentes, as de William Godwin, Robert Owen, William Hazlitt, Nassau William Senior William Cobbett, Karl Marx, Friedrich Engels e Thomas Doubleday): a contra-argumentação apresentada no debate foi multifacetada, mas circulava em torno da ideia de que a suposta “superpopulação” detectada como responsável pela escassez de comida e outros meios de subsistência era falha da sociedade humana, e não um veredicto da natureza; e que, com a razão, a inventividade e os crescentes poderes do homem, um equilíbrio adequado entre oferta e procura poderia ser perpetuado ad infinitum. No curso do século XIX e durante a maior parte do século seguinte, esse debate aos poucos perdeu energia, numa época concentrada em tentar expandir as reservas de mão de obra e os contingentes militares, vistos como fontes confiáveis e garantias totais de riqueza e poder nacional, e não na preocupação de que o tamanho da população pudesse sair de controle. O debate renasceu, numa versão um tanto modificada, como “neomalthusianismo”, e de novo ganhou força, nos últimos trinta ou quarenta anos, com o fim do período imperialista/colonialista e o advento da era do “retorno dos emigrados do império”. A atual ressurreição do fantasma da “superpopulação” seria de se esperar, agora que o modo de vida moderno – dois séculos atrás privilégio exclusivo de um pequeno setor do planeta cujas fortunas determinavam os altos e baixos da popularidade e do prestígio da visão malthusiana – alcançou todos os rincões do globo, ou quase. Com o “fim da história”, na forma proclamada por Francis Fukuyama (a universalização definitiva dos mercados governados pelo capitalismo), estão desaparecendo os escoadouros para a remoção do “lixo humano”, subproduto inescapável da modernização, enquanto o volume de redundância humana aumentou de forma acentuada, e continua a crescer à medida que todas as partes do planeta se unem na sua produção. No começo do século XX, os alarmes sobre “superpopulação” refletiam, em última instância, a inadequação cada vez mais evidente da indústria de remoção e reciclagem do lixo em sua forma ortodoxa, inaugurada no princípio da era moderna e refinada no curso da história desse período. Acima de tudo, refletiam a impossibilidade da tarefa, nunca antes confrontada, de fornecer soluções globais para problemas produzidos localmente. O “problema”, ou seja, a redundância humana, é agora produzido em termos globais, e não no âmbito local; todas ou quase todas as terras do planeta caem hoje na categoria de produtoras de redundância pura e anseiam por exportar seu excesso populacional, embora nenhuma delas, ou quase nenhuma, seja capaz de absorver ou possa ser forçada a admitir os excessos populacionais produzidos em outros lugares. Em nossa era caracterizada por uma facilidade de viajar sem precedentes e por uma inédita mobilidade, os excedentes populacionais são fixados aos lugares em que são produzidos, os quais se mostram incapazes de acomodá-los – e as gangues especializadas no contrabando de pessoas são sua única chance de apelar contra o veredicto do destino. Como observou Milan Kundera, o único significado até agora da unificação da humanidade é que não há para onde fugir. 22 DE FEVEREIRO DE 2011 Sobre acontecimentos milagrosos e nem tanto Um “milagre” é o que costumamos chamar de uma brecha singular na ordem natural. Quanto à “ordem natural”, esse é outro nome para qualquer coisa que o poder humano não seja capaz de mudar ou impedir: que aconteceria se os seres humanos nada fizessem a respeito, e mesmo fizessem o possível para desviá-la ou interromper sua trajetória – e, portanto, algo que só podem ignorar expondo-se ao risco. Como William Adams observou em 1767, a noção de “milagre” é relativa: “Deve haver um curso regular e comum da natureza, antes que possa haver qualquer coisa extraordinária. O rio precisa fluir para que seu fluxo seja interrompido.” A “ordem natural” é implacável, incontrolável, inelutável – e surda a apelos, súplicas e imolações; em outras palavras, cega à discordância e imune à resistência. É inútil e equivocado, ridículo mesmo, falar da natureza e dos fenômenos naturais usando conceitos como “intenção”, “motivo”, “objetivo” ou “propósito” (injunção que Max Weber, um dos fundadores das modernas ciências humanas, enxergava como preceito básico da moderna razão científica, chamando-a de “desencantamento do mundo”). Ao contrário de nós, seres humanos, a natureza não “deseja” nem “mira” coisa alguma: os eventos naturais têm causas, não propósitos: acontecem “por causa de…”, não “a fim de…”. Sendo a natureza surda e muda, não faz sentido pedir-lhe favores ou misericórdia, nem tentar insinuar-se diante de seus olhos (os quais, evidentemente, ela não possui, da mesma forma que é privada de todos os outros sentidos). As leis da natureza, por definição, são invulneráveis e invencíveis; nada que os seres humanos possam fazer é capaz de mudar seu inexorável desdobramento. Considerando-se tudo, a ordem natural divide os eventos concebíveis em inevitáveis e impossíveis. A ambição moderna de colocar a natureza (essa criação sobrehumana e possivelmente divina) sob a administração humana não podia incluir, e de fato não incluía, a intenção de reformar, muito menos de suspender ou abolir, a ordem natural e suas leis; não pretendia questionar o que natureza declarava (e tornava) impossível. A natureza deveria ser colocada sob o gerenciamento humano como uma preocupação-padrão – um formato estabelecido de uma vez por todas, quer planejado e decretado por Deus como permanente, quer autogerado e autoprotegido, mas de qualquer modo colocado e mantido no lugar por um poder capaz de realizar o que os seres humanos evidentemente não poderiam. “É preciso submeter-se à natureza a fim de dominá-la” – esse era o princípio orientador da estratégia moderna, mirando o emprego das forças naturais a serviço das necessidades humanas. Hegel, por muitos considerado o maior dos filósofos modernos, proclamou que, para ser livre, é preciso estar consciente da necessidade: para atingir o sucesso e evitar a derrota, cumpre aprender com diligência as leis imutáveis da natureza (ou seja, a diferença entre o inevitável e o impossível). Uma vez conhecidas as limitações impostas pela natureza – a linha que separa o possível do impossível –, esse conhecimento adquirido irá capacitar os seres humanos a escolher objetivos capazes de se implementar e projetos capazes de se concretizar – e não projetos humanos frustrados e expectativas humanas diluídas. Em suma, submeter-se às incontroláveis “leis da natureza” reforça a capacidade humana de ação efetiva e também expande a liberdade de escolha dos homens. Que dizer, então, dos “milagres”? Os milagres encontraram no espírito moderno seu inimigo mais apaixonado e terrível até o momento: um inimigo devotado à sua extirpação, expulsão e exílio – do mundo e da mente humana. Para a ciência moderna, os milagres eram percebidos como extraordinários, inexplicáveis, algo além da compreensão apenas pela ignorância (temporária e corrigível) dos seres humanos no que se refere à ordem natural das coisas; só puderam continuar como milagres enquanto as leis da natureza eram misteriosas e inescrutáveis. Como Hume reconhecidamente (e espirituosamente) declarou no limiar da era moderna, “nenhum testemunho é suficiente para estabelecer um milagre, a menos que a testemunha seja de tal tipo que sua falsidade seria mais milagrosa que o fato que ela busca estabelecer”. Qualquer coisa tida como “milagrosa” por uma mente ignorante terá, mais cedo ou mais tarde, reveladas suas causas regulares. A ciência moderna refutou com resolução a natureza milagrosa de aparentes e supostos “milagres”. Recusou-se a aceitar como final qualquer veredicto que afirmasse “Isto é um milagre”, e garantiu que seria possível anulá-lo; insistiu em que qualquer evento tido por “milagre” no passado teria revelada, em retrospecto, sua causa natural, ou seria desqualificado como produto de uma imaginação sobre-excitada ou como embuste. Na verdade, a ciência declarou uma guerra de atrito não apenas aos supostos milagres, mas também à aleatoriedade, opacidade e ambiguidade – e a qualquer tipo de irregularidade e não compreensão; e afirmou que eles seriam apenas perturbações temporárias, tendendo a recuar com o avanço – seguro – da ciência (roubando segredos da natureza), ombro a ombro com a tecnologia (evitando quaisquer efeitos indesejáveis ou imprevistos de atos intencionais). No mundo que a ciência e a tecnologia modernas se puseram a criar, pretendia-se que não houvesse lugar para milagres. No mesmo sentido, porém, uma vez feito o trabalho da ciência, não haveria lugar para Deus. O pressuposto explícito ou tácito, porém irremovível e invariável, subjacente ao projeto moderno confinou o papel de Deus no Universo a um ato de criação. Presumia-se que, tendo criado a natureza com todas as suas leis, Deus evitou outras interferências em sua operação; de fato, a ideia do deus absconditus – Deus ausente – pode ser vista como o ato de nascimento da visão de mundo moderna. Referindo-se à mentalidade que tendia a ser modelada por essa ideia, José Saramago observou em seus Cadernos de Lanzarote que “Deus é o silêncio do Universo e o homem o grito que dá sentido a esse silêncio”. Teólogos podem ter discordado se o afastamento de Deus da administração cotidiana de sua criação se deu por sua própria decisão intencional ou como consequência da completude e perfeição de seu projeto, que tornaria qualquer outra intervenção redundante, indesejável ou impossível (afinal, o estado de “perfeição” significa que qualquer mudança só o tornaria pior). Mas são obrigados a se indignar com qualquer imputação de limite à onipotência divina, já que a admissão de algum marco tenderia a produzir o mesmo efeito: levaria os teólogos a um dilema com o qual teriam de lutar arduamente, ainda que em vão. Cada limite iria questionar e pôr em dúvida o cânone da onipotência divina – negando a extrema perfeição de seu projeto ou sua capacidade de consertar as leis universais que ele mesmo projetou. (Leibniz, por exemplo, chegou a ponto de sugerir que a verdade eterna entrou na mente de Deus sem lhe pedir permissão, deixando implícito, pelo mesmo critério, que não sairia por ordem dele.) A insolúvel ambiguidade dessa situação reflete-se na atitude ambivalente hoje assumida pelas igrejas em relação aos milagres: por um lado, a capacidade divina de fazer milagres não é questionada; por outro, qualquer nova alegação de milagre testemunhado é tratada a priori com a máxima suspeita, e faz-se todo o possível para desqualificála oficialmente. Uma proposta em nítida oposição ao conceito de Deus como criador e mantenedor da regularidade, assim como da rígida e inexorável lógica do mundo (conceito algumas vezes articulado de forma explícita, outras vezes assumido de modo tácito, mas sempre endêmico ao pensamento moderno), foi feita por um filósofo existencialista cristão, o franco-russo Léon Shestov. Nós postulamos a existência de Deus, insistia ele – precisamos de Deus, recorremos a Deus – a fim de “obter o impossível. No que tange a essa possibilidade, os seres humanos são autossuficientes.” Em outras palavras, precisamos que Deus faça milagres – fazer milagres é sua raison d’être. A grandeza de Deus está em sua inconsistência. Nada de “absoluto” ou “definitivo”, nada sub specie aeternitatis vel necessitatis. Deus significa: nada é inevitável e nada é impossível. Nada está isento do poder divino de fazer exceções à regra; o passado está sujeito à anulação, tal como o futuro; por exemplo, “o ato vergonhoso do envenenamento de Sócrates” pode transformarse em algo “que jamais existiu”. Assim os milagres podem acontecer mesmo ex post facto, retrospectivamente: “desfazer” o que foi feito, eliminá-lo da crônica do ser, retirá-lo não somente do registro histórico, mas da própria história, é um milagre que está ao alcance de Deus; é, na verdade, a própria substância da divindade de Deus. Nas palavras do próprio Shestov: A história da humanidade – ou, mais precisamente, todos os horrores da história da humanidade – é, por uma palavra do Supremo, “anulada”, deixa de existir e se transforma em alucinações e miragens. … O “fato”, o “dado”, o “real” não nos dominam; não determinam nossa fé no presente, no futuro ou no passado. O que foi torna-se o que não foi; o homem volta ao estado de inocência.4 A capacidade de fazer milagres: é isso que os seres humanos procuram em Deus. Se precisam de um “Deus pessoal” – sobrehumano, porém semelhante aos homens, capaz de escutar, ouvir, escolher e decidir com prudência, tal como eles –, precisam exatamente por essa capacidade. O teste final da onipotência divina é essa capacidade de desprezar, ignorar e negligenciar as regras, leis, regularidades e rotinas que ele mesmo criou para que os seres inferiores – basicamente humanos – obedecessem. Um Deus obrigado a seguir regras, ainda que por ele mesmo criadas, seria um paradoxo, uma contradição em termos. É por presumir que ele tem a capacidade de quebrar a rotina, fazer o inesperado e o inexplicável, que os seres humanos a um só tempo o temem, confiam nele e a ele recorrem sempre que ultrapassam os limites de sua própria capacidade de enfrentar as coisas difíceis. O terror e o medo fundem-se no fenômeno do “espantoso” – o qual, como sugeriu Rudolf Otto, sempre foi e continua a ser a essência da “divindade”. Quando Moisés tentou convencer o faraó de que Jeová, que o havia enviado, era “o verdadeiro Deus”, ao contrário dos deuses que endossavam a obstinação autoconfiante do faraó, não procurou relembrar-lhe a regularidade e a consistência do Universo, criação de Deus – mas apresentou-lhe visões que desafiavam toda lógica e todo poder humano de compreensão. Quando Deus o mandou assumir sua missão, Moisés tinha dúvidas: “Nunca vão acreditar em mim nem me ouvir; dirão: ‘O Senhor não apareceu para ti.’” Para aliviar suas apreensões, Deus ofereceu a Moisés uma prova capaz de convencer qualquer um que a testemunhasse das credenciais divinas que ele portava: O Senhor perguntou: “O que tens aí em tuas mãos?” “Um bastão”, respondeu Moisés. Disse o Senhor: “Joga-o no chão.” Moisés jogou-o no chão e ele se transformou numa serpente. Moisés fugiu dela, mas o Senhor disse: “Estende tua mão e pega-a pelo rabo.” Ele assim fez e a segurou firmemente, e ela voltou a ser um bastão em suas mãos. “Isso é para convencer as pessoas de que o Senhor Deus de seus antepassados, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó, apareceu para ti.”5 Para eliminar suas dúvidas, caso o faraó e seus acólitos se mostrassem obstinados demais em não acreditar no que viam, e teimosos demais para abandonar as ilusões a que se apegavam e aceitar as milagrosas reencarnações do bastão e da serpente como provas suficientes da onipotência do Deus dos hebreus, Jeová dotou Moisés de vários outros milagres a serem realizados na corte do faraó, para consumo deste e de seus cortesãos. Somente quando todas as maravilhas espetaculares se mostraram insuficientes para mudar a mentalidade do faraó é que Deus abandonou a tentativa de aplicar sua vontade apresentando espetáculos milagrosos e recorreu a uma série de pragas sangrentas – para punir os céticos pelo pecado de ignorar as evidências que lhes haviam sido apresentadas. Para ser reconhecido como “o verdadeiro Deus”, é preciso que ele seja visto fazendo milagres. Os seres humanos devem testemunhar seu trabalho para que o reconheçam como “o verdadeiro Deus”: ou seja, a força suprema que buscam desesperadamente, uma força na qual podem confiar que os ajudará quando esgotarem a capacidade de enfrentar suas dificuldades, e que os protegerá quando se confrontarem com um perigo que julguem impossível de repelir. Os seres humanos precisam de milagres para abrir o caminho que leva à “servidão voluntária” – nome dado por Étinne de la Boétie (como Michel Montaigne nos informa) ao estado a que, segundo ele, os seres humanos tendiam a aspirar de forma mais decisiva: um estado mental e um modo de agir tornados assim tão desejáveis por sua condição existencial cronicamente instável e incerta. Submeter-se a tal “servidão voluntária” é uma tentação difícil de resistir. Por um lado, um poder mais forte que a inclemente realidade, capaz de desfazer o mal produzido e tornar possível “começar do começo”, como se a tragédia nunca tivesse acontecido, é aquilo de que os seres humanos necessitam para manter suas esperanças e sua disposição de continuar vivendo, a despeito da adversidade do destino, em aparência todo-poderosa. Os seres humanos precisam acreditar que existe um poder assim, um tribunal de apelações dotado da capacidade de anular os veredictos da realidade – e precisam de milagres para sustentar essa crença. Por outro lado, eles precisam acreditar que esse enorme poder está inclinado, ou pelo menos pode ser persuadido, a ficar do seu lado (os soldados alemães enviados ao campo de batalha costumavam ser lembrados pela inscrição gravada nas fivelas de seus cintos: Gott mit uns!, “Deus está conosco!”), e que sua graça é capaz de sobrepujar a mais perversa das intrigas urdidas pelas forças do mal. Os seres humanos precisam da garantia (ou pelo menos da esperança) de que esse tremendo poder, com toda sua imensidão e superioridade, pode ser – será – usado em seu favor, e não para tornar irrevogável sua queda. Carl Schmitt, o mais lúcido e realista dos anatomistas do Estado moderno e das inclinações totalitárias nele embutidas, afirmou que a marca genuína de todo poder soberano, seja ele divino ou humano, é sua capacidade de fazer exceções a uma regra: A exceção é aquilo que não se pode subsumir; ela desafia a codificação geral, mas revela ao mesmo tempo um elemento formal especificamente jurídico: a decisão em estado puro. … Não há regra que se aplique ao caos. É preciso estabelecer a ordem para que o ordenamento jurídico faça sentido. Pode-se criar uma situação regular, e o soberano é aquele que decide em definitivo se essa situação é efetiva. … A exceção não confirma a regra; a regra como tal vive apenas da exceção.6 Em sua Investigação acerca do entendimento humano (1748), já mencionada, David Hume escreveu que os milagres “abundam, segundo se observa, sobretudo entre nações ignorantes e bárbaras; ou, se um povo civilizado teve acesso a algum deles, logo se descobrirá que o recebeu de ancestrais ignorantes e bárbaros que os transmitiram com aquela inviolável sanção e autoridade que sempre se atribuem às opiniões recebidas.” No entanto, embora as nações instruídas e civilizadas como a nossa tenham aceitado com sinceridade a visão de Hume, de que dificilmente se pode provar a ocorrência de milagres, a sede que estes provocam mostra poucos sinais de diminuição, se é que mostra; da mesma forma cai o número de pessoas que desejam de todo o coração a possibilidade dos milagres – e assim, como seria de se esperar, também cai o número daqueles que declaram e tentam convencer quem deseja ser convencido de que aquilo que realizaram ou são capazes de realizar não está longe de ser milagroso. E não admira, dado o volume de incerteza que permeia a vida dos seres humanos e a crescente evidência de que as rotinas herdadas, aprendidas, memorizadas e recomendadas se mostram – repetidas vezes – inadequadas, para não dizer inseguras, para lidar com os riscos e contingências da vida cotidiana. A quantidade crescente de esperanças frustradas e promessas não cumpridas solapa a confiança investida na rotina e mesmo no “normal” em si, nas instituições existentes voltadas para garantir a regularidade e a previsibilidade do mundo que compartilhamos: com muita frequência suas promessas e garantias parecem não menos ilusórias e arriscadas, e portanto não menos confiáveis e fidedignas, que aquelas provenientes de fontes que eles denunciam como “ignorantes e bárbaras”. No fim, após alguns séculos de natureza desencantada, é a vez de o próprio desencantamento desencantarse. Alguns minutos de passeio pelo ciberespaço seriam suficientes para descobrir que, parafraseando Shakespeare, há coisas que os filósofos nunca sonharam nem sonhariam… Milagres acontecem hoje da mesma forma como aconteciam nos velhos tempos, a acreditarmos nas sagradas escrituras. Eis apenas um exemplo, escolhido aleatoriamente no site otsm.com: Pouco tempo atrás eu estava voando de Glasgow para Calgary, no Canadá. Tinha uma conexão de Calgary para Lethbridge. Embarquei em Glasgow no avião da Zoom sentindo-me empolgado com a oportunidade de viajar para o Canadá a fim de visitar parentes. Logo depois do embarque, o piloto anunciou que não conseguiam dar partida. Ficamos sentados no avião durante uma aparente eternidade enquanto os técnicos tentavam ligar os motores. Afinal o avião estava pronto para a decolagem. Agora estávamos uma hora atrasados. O piloto disse que tentaria recuperar o tempo perdido. Isso não aconteceu. Enquanto nos aproximávamos de Calgary, fiquei com os olhos fixos no relógio. Seria impossível pegar meu voo de conexão! Bem, não sou uma pessoa religiosa. Mas fechei as mãos e, em minha mente, pedi a Deus: “Por favor, me ajude. Por favor, meu Deus, o senhor precisa me ajudar. Preciso muito de sua ajuda, por favor, não deixe que este feriado se transforme num desastre. … Meu Deus, tenho amigos me esperando em Lethbridge. … Por favor, por favor, me ajude. Faça acontecer um milagre para que eu possa pegar minha conexão.” O avião enfim pousou em Calgary às 2h30min. Minha conexão estava marcada para sair às 3h05min! Como eu ia conseguir? Primeiro tinha de descer do avião. Depois precisava passar pela alfândega. A bagagem… precisava pegar a bagagem. Tinha de encontrar o balcão da Air Canada e fazer o check-in. Como conseguiria fazer tudo isso? Bem, consegui passar pela alfândega com muita rapidez! Depois consegui pegar minha bagagem também depressa. Quando finalmente cheguei ao balcão da Air Canada, bufava e ofegava. Sentia-me como se estivesse à beira de um ataque cardíaco! Logo expliquei tudo ao jovem que estava atrás do balcão, dizendo, em pânico: “Não sei o que vou fazer!” O jovem me disse para não me preocupar, ele ia garantir que minha bagagem embarcasse no voo charter. Disse-me para correr e me guiou para o portão correto. Bem, para resumir uma longa história, consegui, a duras penas, pegar o voo. As pessoas diriam que foi sorte, mas não tem nada a ver com sorte! Digo a vocês que Deus ouviu minhas preces. Aconteceu um milagre! Ele fez com que todas essas coisas acontecessem depressa. A alfândega, a bagagem, o check-in. Deus garantiu que eu pegasse meu voo charter de conexão. Desde então, tenho agradecido a Ele diariamente. Estou muito agradecido. Isso na verdade fez com que minha fé em Deus se fortalecesse. No momento em que cheguei ao balcão de check-in, eram 2h45min, e o voo sairia às 3h05min. O cara que me ajudou com a bagagem, esse cara foi uma bênção. Tudo que posso dizer é que tenho certeza de que nada disso teve a ver com sorte. Deus fez tudo isso acontecer para mim. O que isso prova? Que milagres acontecem para as pessoas que neles acreditam. Que se você quiser testemunhar um milagre, primeiro deve rezar para que ele aconteça. E que você acreditará que o viu acontecer se as coisas ocorrerem da forma como você rezou para que ocorressem. 25 DE FEVEREIRO DE 2011 Sobre Facebook, intimidade e extimidade “O Facebook é o principal site de rede social, tendo superado seu maior concorrente, o MySpace, em abril de 2008.” “O Facebook atraiu 130 milhões de visitantes exclusivos em maio de 2010, um aumento de 8,6 milhões de pessoas.” “O ranking do site entre todos os demais passou de sexagésimo para sétimo em matéria de tráfego mundial, de setembro de 2006 a setembro de 2007, e hoje ele é o segundo.” Essas citações, fornecidas pelo site da Wikipédia, ao que parece constantemente atualizado, são a última informação sobre o fenomenal sucesso do Facebook: a ascensão constante e rapidíssima, deixando muito atrás outras novidades da internet e outras modas passageiras, quebrando todos os recordes de crescimento em número de usuários regulares e também em termos de seu valor comercial. Segundo a edição de ontem do Le Monde, o valor atual do Facebook alcançou agora a soma inédita de US$ 50 bilhões. Enquanto escrevo estas palavras, o número de “usuários ativos” do Facebook está ultrapassando a barreira do meio bilhão. Evidentemente, alguns são mais ativos que outros – contudo, pelo menos metade dos usuários ativos está no Facebook todos os dias. Como nos informam seus proprietários, um usuário médio tem 130 amigos (no Facebook), enquanto entre si os usuários passam mais de 700 bilhões de minutos por mês conectados nessa rede. Se esse número astronômico é muito grande para digerir e assimilar, permitam-me assinalar que, se dividido igualmente entre os usuários ativos do Facebook, ele poderia representar 16 milhões de pessoas 24 horas por dia, setes dias por semana ligadas no Facebook. Qualquer que seja o padrão, trata-se de um sucesso impressionante. Aos vinte e tantos anos, Mark Zuckerberg deve ter tropeçado em algum tipo de mina de ouro quando inventou (alguns diriam roubou7) a ideia do Facebook e a lançou na internet, para uso exclusivo dos alunos de Harvard, em fevereiro de 2004. Isso tudo é bastante óbvio. Mas qual foi o minério semelhante ao ouro que o Mark Sortudo descobriu e continua explorando com lucros fabulosos e sempre crescentes? No site oficial do Facebook, você vai encontrar a seguinte descrição dos benefícios que se afirma terem atraído e seduzido esse meio bilhão de pessoas a passar boa parte de seu tempo de vigília nos domínios virtuais do Facebook: Os usuários podem criar perfis com fotos, listas de interesses pessoais, informações para contato e outras de caráter pessoal. Podem se comunicar com amigos e outros usuários usando mensagens privadas ou públicas e uma sala de bate-papos. Também podem criar grupos de interesse, ou entrar em algum, assim como like pages (chamadas, até 19 de abril de 2010, de fan pages), algumas das quais são mantidas por organizações como forma de publicidade. Em outras palavras, o que as legiões de “usuários ativos” abraçaram com entusiasmo ao se juntar às respectivas fileiras do Facebook foi a possibilidade de duas coisas com as quais deviam ter sonhado sem saber ainda onde procurá-las e achá-las até que a oferta de Zuckerberg a seus colegas de Harvard apareceu na internet. Primeiro, deviam sentir-se incomodamente solitários, mas, por algum motivo, achavam muito difícil escapar da solidão com os meios de que dispunham. Segundo, deviam sentir-se dolorosamente desprezados, ignorados e de alguma forma postos de lado, exilados e excluídos, porém, uma vez mais consideravam difícil, quase impossível, erguer-se acima de seu odioso anonimato com os meios de que tinham em mãos. Para ambas as tarefas, Zuckerberg ofereceu os meios que eles até então haviam procurado em vão; e eles agarraram a oportunidade… Deviam estar preparados para pular, os pés sobre a rampa de partida, os músculos tensos, os ouvidos à espera do tiro de largada. Fico imaginando: se Zuckerberg tivesse nascido trinta ou quarenta anos antes, teria sido treinado por seus professores a regurgitar fervorosamente as homilias de Sartre ou a repetir, seguindo Foucault, como se estivesse citando as sagradas escrituras, que “o autor está morto”; teria aprendido com os apóstolos da “Nova Crítica” que é tolo e degradante para um aluno conectar textos artísticos com quaisquer detalhes pessoais da vida do autor; teria lhe ocorrido que são precisamente os “detalhes pessoais” que fazem o autor, e que, portanto, seus jovens colegas estariam se coçando para igualar a glória dos autores festejados tornando públicos seus próprios “detalhes pessoais”? E no caso muito improvável de que algo assim tivesse ocorrido a esse Zuckerberg anterior, será que os milhões de usuários ativos teriam se lançado sobre sua invenção, seguidos por bilhões de dólares? Foi só no curso dos últimos vinte anos que, como assinala Sebastian Faulks em Faulks on Fiction, “longe de ser banida dos comentários, a vida do autor e sua relação com o trabalho se tornaram o principal campo de debate”. E, acrescenta ele, essa mudança crucial “abriu as portas à especulação e à fofoca. Presumindo que toda obra de arte é uma expressão da personalidade do autor, os críticos biográficos reduziram o ato de criação a tema secundário.” Eu suspeito (ou melhor, estou certo) de que foi apenas nos últimos vinte anos que Zuckerberg pôde ter essa revelação e foi levando suas novidades aos colegas estudantes, ao mesmo tempo encontrando-os preparados para seguir o mestre ao longo do caminho por ele mostrado. Como recentemente observou Josh Rose, diretor de criação da agência de publicidade Deutsch LA, “a internet não rouba nossa humanidade, ela a reflete. A internet não entra em nós, ela mostra o que temos por dentro.”8 Como ele está certo! Jamais culpe o mensageiro pelo que você possa achar de ruim na mensagem, mas também não o exalte pelo que possa encontrar de bom. Afinal, se vão alegrar-se ou desesperar-se com a mensagem, isso depende das próprias inclinações e animosidades dos destinatários, de seus sonhos e pesadelos, esperanças e apreensões. O que se aplica a mensagens e mensageiros também vale, embora não exatamente da forma que as ofertas da internet e seus “mensageiros”, para as pessoas que as apresentam em suas telas e as levam à nossa atenção. Nesse caso, é o uso que nós, “usuários ativos” do Facebook, todo esse meio bilhão de pessoas, fazemos dessas ofertas que as torna, assim como seu impacto sobre nossas vidas, boas ou ruins, benéficas ou prejudiciais. Tudo depende do que estejamos procurando; as engenhocas tecnológicas só tornam nossas aspirações mais ou menos realistas, e nossa busca mais rápida ou mais demorada, mais ou menos eficaz. Vamos agora examinar essas ofertas mais de perto. A primeira dizia respeito aos meios de fugir da solidão. Permitam-me citar mais uma vez as preocupações de Josh Rose: Recentemente apresentei a pergunta a meus amigos do Facebook: “Twitter, Facebook, Foursquare… Tudo isso está fazendo você se sentir mais próximo ou mais distante das pessoas?” Ela provocou um monte de respostas e parecia tocar um dos nervos expostos de nossa geração. Qual o efeito da internet e da mídia social sobre nossa humanidade? Vistas de fora, as interações digitais parecem frias e desumanas. Não há como negá-lo. Sem dúvida, dada a escolha entre abraçar e “conectar” alguém, penso que todos concordaríamos quanto à que parece melhor. O tema das respostas à minha pergunta no Facebook parece ter sido resumido por meu amigo Jason, que escreveu: “Mais perto de pessoas das quais estou distante.” Então, um minuto depois, ele escreveu: “Talvez mais distante de pessoas das quais estou bastante perto.” E depois acrescentou: “Só fiquei confuso.” Mas é algo que confunde. Vivemos agora nesse paradoxo em que duas realidades aparentemente conflitantes existem lado a lado. A mídia social ao mesmo tempo nos aproxima e nos distancia. Sabe-se muito bem que Rose tem a preocupação de transmitir veredictos sem ambivalência – como de fato deveria ser no caso de uma transação seminal, porém arriscada, como trocar incidentes esparsos de “intimidade” off-line pela variedade de massa on-line. A “intimidade” de que se abriu mão talvez fosse mais satisfatória, porém consumia tempo e energia, e era cheia de riscos; a “intimidade” que a substituiu sem dúvida é mais rápida, não exige esforço e é quase livre de riscos, mas muitos a consideram menos capaz de saciar a sede de companhia plena. Ganha-se uma coisa, perde-se outra – e é terrivelmente difícil decidir se os ganhos compensam as perdas; além disso, uma decisão definitiva está fora de questão; você vai achá-la tão provisória e até segunda ordem quanto a “intimidade” que adquiriu. O que você obteve foi uma rede, não uma “comunidade”. Como cedo ou tarde acabará por descobrir (desde que, claro, não esqueça ou deixe de aprender o que significava “comunidade”, ocupado como está em formar e desfazer redes), elas não são mais parecidas que água e vinho. Pertencer a uma comunidade é uma condição muito mais segura e confiável que ter uma rede – embora seja mais restritiva e contenha mais obrigações. A comunidade o observa de perto e lhe deixa pouco espaço de manobra (ela pode bani-lo e exilá-lo, mas não permitirá que você opte por sair por vontade própria); a rede pode ter pouca ou nenhuma preocupação com sua obediência às normas prescritas (se é que a rede tem normas a obedecer, o que muitas vezes não é o caso), de modo que lhe dará muito mais corda e acima de tudo não irá puni-lo se você resolver sair. Na comunidade, você pode contar que “o verdadeiro amigo se conhece na hora do perigo”; as redes estão lá sobretudo para compartilhar o divertimento; a disposição de vir em seu socorro no caso de um problema sem relação com os “focos de interesse” comuns dificilmente é testada, e, se o fosse, mais dificilmente ainda aprovada. Afinal, a escolha é entre segurança e liberdade: necessita-se das duas, mas não se pode ter uma delas sem sacrificar a outra ao menos em parte; quanto mais se tem de uma menos se tem da outra. No que se refere à segurança, as comunidades ao velho estilo ganhariam facilmente das redes. Quanto à liberdade, é o contrário (afinal, basta apertar a tecla “delete” ou deixar de responder as mensagens para ficar livre de sua interferência). Além disso, há toda aquela diferença enorme, de fato abissal e insuplantável, entre abraçar e “conectar” alguém, como diz Rose… Em outras palavras, entre o protótipo off-line e a variedade on-line de “proximidade”, entre fundo e raso, profundidade e superficialidade, calor e frieza, sincero e falso. Você escolhe, com toda probabilidade continuará a escolher, dificilmente poderia parar de escolher, mas é melhor selecionar sabendo o que está escolhendo – e estar preparado para pagar o preço da escolha. Pelo menos é isso que Rose parece sugerir, e ninguém discute sua advertência. O conteúdo exigido para tornar um relacionamento “significativo” tem mudado de forma considerável – e drástica, nos últimos trinta ou quarenta anos. Tem mudado tanto que, como sugeriu Serge Tiresson, os relacionamentos considerados “significativos” passaram da intimité para a extimité – da intimidade à “extimidade” (ver, de sua autoria, Virtuel, mon amour, 2008). Alain Ehrenberg, analista perspicaz do complexo trajeto da história – curta, embora dramática – do indivíduo moderno, tentou apontar a data de nascimento da revolução cultural da modernidade tardia (pelo menos de seu ramo francês) que resultou no mundo líquido moderno que continuamos a habitar; uma espécie de equivalente para a revolução da cultura ocidental da salva de artilharia do navio de guerra Aurora, que deu sinal para o ataque ao palácio de Inverno e assinalou o início de setenta anos de governo bolchevique. Ehrenberg escolheu uma tarde de quarta-feira de outono, na década de 1980, quando certa Vivienne, uma “francesa comum”, declarou num talk show de TV, e portanto diante de vários milhões de espectadores, que, por causa de seu marido Michel, o qual sofria de ejaculação precoce, ela nunca tinha experimentado um orgasmo em toda sua vida de casada. O que seria tão revolucionário no pronunciamento de Vivienne a ponto de justificar a escolha de Ehrenberg? Seus dois aspectos intimamente relacionados. Primeiro, atos essencialmente (até eponimicamente) privados foram revelados e discutidos em público – ou seja, na frente de todos que quisessem ouvir ou por acaso ouvissem. Em segundo lugar, a arena pública – ou seja, um espaço aberto ao ingresso sem controle – foi usada para abordar e debater um tema de relevância, interesse e emoção em essência privados. Entre si, esses dois movimentos revolucionários legitimaram o uso público de uma linguagem desenvolvida para conversas privadas entre um número limitado de pessoas selecionadas: de uma linguagem cuja função básica tinha sido até então estabelecer a separação entre os domínios do “privado” e do “público”. Mais precisamente, essas duas rupturas interligadas deram início à apresentação em público, para uso e consumo de uma audiência pública, de um vocabulário destinado a ser empregado para narrar experiências privadas, vivenciadas subjetivamente (Erlebnisse e não Erfahrungen). Com o passar dos anos, ficou claro que o verdadeiro significado do evento fora eliminar a divisão antes sacrossanta entre as esferas “pública” e “privada” da vida corporal e espiritual humana. Voltando ao passado e com o benefício de um olhar retrospectivo, podemos dizer que a aparição de Vivienne diante de milhões de homens e mulheres franceses grudados às suas telas de TV também levou os espectadores, e com eles o resto de nós, a uma sociedade confessional; um tipo de sociedade até então desconhecido e inconcebível, em que microfones são instalados dentro de confessionários, os eponímicos cofres e depósitos dos segredos mais secretos, do tipo que só devem ser divulgados a Deus ou a seus mensageiros e plenipotenciários terrenos; em que alto-falantes conectados a esses microfones são pendurados em praças públicas, lugares antes destinados a expor e debater assuntos de interesse, preocupação e urgência comuns. O advento da sociedade confessional assinalou o triunfo final da privacidade, essa invenção moderna básica – embora também o início de sua vertiginosa queda desde o auge de sua glória. Indicou o momento, portanto, de uma vitória de pirro, sem a menor dúvida: a privacidade invadiu, conquistou e colonizou o domínio público, mas à custa da perda de seu direito ao sigilo – seu traço definidor e seu privilégio mais valorizado e defendido com tenacidade. O que é secreto, como outras categorias de propriedades pessoais, é por definição a parte do conhecimento não compartilhada com os outros, ou cujo compartilhamento é controlado. O sigilo traça e estabelece a fronteira, por assim dizer, da privacidade; esta é o campo destinado a constituir o domínio próprio de alguém, o território de sua soberania exclusiva, no interior do qual a pessoa tem o poder abrangente e indivisível de decidir “o que e quem eu sou” – e a partir do qual é possível lançar e relançar campanhas para conquistar e manter o reconhecimento e o respeito às suas decisões. Numa surpreendente guinada de 180 graus em relação aos hábitos de nossos ancestrais, contudo, perdemos a coragem, a energia e acima de tudo a determinação de persistir na defesa desses direitos, desses tijolos insubstituíveis da autonomia individual. Em nossos dias, não é tanto a possibilidade de traição ou violação da privacidade que nos assusta, mas o oposto: que se feche a porta de saída da privacidade. A área da privacidade transformou-se num local de encarceramento; o dono desse espaço privado vê-se condenado e destinado a ser abandonado às suas próprias preocupações; forçado a uma condição marcada pela ausência de ouvintes ávidos por puxar e arrancar nossos segredos das trincheiras da privacidade, submetê-los à exposição pública, torná-los propriedade comum de todos, propriedade que todos desejam compartilhar. Parece que manter segredos não nos satisfaz, a menos que eles sejam daquele tipo capaz de reforçar nossos egos, atraindo a atenção de pesquisadores e editores de talk shows televisivos, das primeiras páginas de tabloides e capas de revistas de luxo. “No cerne das redes sociais está a troca de informações pessoais.” Os usuários ficam felizes em “revelar detalhes íntimos de suas vidas pessoais”, “postar informações precisas” e “compartilhar fotografias”. Estima-se que 61% dos adolescentes britânicos entre treze e dezessete anos “têm um perfil pessoal num site de rede social” que os capacita ao “convívio on-line”.9 Na Grã-Bretanha, país em que o uso popular de instrumentos eletrônicos de ponta está ciberanos atrás do Extremo Oriente, os usuários ainda podem confiar nas “redes sociais” para manifestar sua liberdade de escolha e até acreditar que elas sejam um veículo de rebelião e autoafirmação da juventude. Mas na Coreia do Sul, por exemplo, onde a maior parte da vida social já é eletronicamente mediada (ou melhor, em que a vida social já se transformou em vida eletrônica ou em cibervida, e onde a maior parte da “vida social” é passada basicamente na companhia de um computador, iPod ou celular, e só de forma secundária com pessoas de carne e osso), é óbvio para os jovens que eles não têm sequer um lampejo de escolha; onde eles vivem, levar a vida social eletronicamente não é mais uma opção, porém uma necessidade do tipo “pegar ou largar”. A “morte social” está à espreita dos poucos que não conseguiram entrar no Cyworld, o líder do cibermercado sul-coreano em termos da “cultura do veja e conte”. Seria um erro grave, contudo, supor que a ânsia de fazer uma apresentação pública do “eu interior” e a disposição de satisfazer essa ânsia sejam manifestações de um impulso e vício singulares, apenas geracionais e relacionados à adolescência, ávida como ela tende a ser por fincar uma base na “rede” (termo que está substituindo “sociedade”, tanto no sentido do discurso das ciências sociais quanto na fala popular) e lá permanecer, embora sem muita certeza de como atingir esse objetivo. O novo impulso para a confissão pública não pode ser explicado por fatores “específicos à idade” – de qualquer forma, não apenas por eles. Como Eugène Enriquez resumiu a mensagem das crescentes evidências obtidas em todos os setores do mundo líquido moderno dos consumidores: Somente quando as pessoas se lembrarem de que aquilo que antes era invisível – a parte íntima de todos, a vida interior de todos – agora se expõe no palco público (sobretudo nas telas de TV, mas também nos palcos literários) é que elas irão compreender que aqueles a quem prezam por sua invisibilidade tendem a ser rejeitados, postos de lado ou considerados suspeitos de um crime. A nudez física, social e psíquica está na ordem do dia.10 Os adolescentes equipados com confessionários eletrônicos portáteis são apenas aprendizes treinando a (e treinados na) arte de viver numa sociedade confessional – famosa por eliminar a fronteira que antes separava o privado do público; por transformar a exposição pública do privado numa virtude e numa obrigação públicas; e por varrer da comunicação pública tudo que resista a ser reduzido a confidências privadas, com aqueles que se recusam a confidenciá-las. Já na década de 1920, quando a transformação da sociedade de produtores em sociedade de consumidores se encontrava em estado embrionário ou, na melhor das hipóteses, incipiente, e portanto passava despercebida pelos observadores menos atentos e perspicazes, Siegfried Kracauer, pensador dotado da fantástica capacidade de apreender o que é só um pouco visível, que já começava a traçar os contornos de certas tendências prefigurando um futuro ainda perdido na massa informe de modismos e excentricidades, escreveu: A corrida aos numerosos salões de beleza brota em parte de preocupações existenciais, e o uso de cosméticos nem sempre é um luxo. Por medo de serem postos de lado como obsoletos, damas e cavalheiros tingem o cabelo, enquanto quarentões praticam esporte para se manter esbeltos. “Como posso ficar bonito?” é o título de um livreto há pouco lançado no mercado: os anúncios de jornal dizem que ele nos ensina formas de “permanecer jovem e belo agora e sempre”.11 Os novos hábitos que Kracauer registrou em Berlim, na década de 1920, como dignos de curiosidade têm se espalhado desde então como um incêndio florestal, transformando-se em rotina diária (ou pelo menos em sonho) por todo o globo. Oitenta anos depois, Germaine Greer observou que “até nos rincões mais distantes do noroeste da China as mulheres trocavam seus pijamas por sutiãs acolchoados e saias sexies, ondulavam e tingiam os cabelos lisos e economizavam para comprar cosméticos. A isso se dava o nome de liberalização.”12 Meninos e meninas em idade escolar anunciando suas qualidades com avidez e entusiasmo na esperança de atrair a atenção e talvez obter também o reconhecimento e a aprovação necessários para se manter no jogo da socialização; clientes em potencial precisando ampliar seus recordes de compras e seus limites de crédito para ter direito a um atendimento melhor; imigrantes latentes lutando para juntar cartões de bônus e oferecêlos como prova da existência de uma demanda por seus serviços a fim de ver aceitas suas candidaturas: essas três categorias de pessoas, aparentemente tão distintas, e miríades de outras forçadas a se vender no mercado e desejando vender-se pela maior oferta possível, são instigadas, induzidas ou obrigadas a promover uma atraente e desejável mercadoria; assim, fazem o possível, recorrendo aos melhores meios à sua disposição, para aumentar o valor de mercado dos produtos que vendem. A mercadoria que são estimulados a colocar no mercado, promover e vender são elas mesmas. Elas são, a um só tempo, promotoras de mercadorias e as mercadorias que promovem. São o produto e seus agentes de marketing, os bens e seus vendedores itinerantes (e permitam-me acrescentar que qualquer estudioso que já tenha se candidatado a um emprego na área de ensino ou a uma verba de pesquisa reconhecerá com facilidade sua condição nessa experiência). Seja qual for a categoria em que possam ser enquadrados pelos organizadores das tabelas estatísticas, todos habitarão o mesmo espaço social conhecido pelo nome de mercado. Não importa em que rubrica seus interesses sejam classificados por arquivistas do governo ou jornalistas investigativos, a atividade em que todos estão engajados (seja por escolha, necessidade ou ambas) é o marketing. O teste em que precisam passar para serem admitidos às cobiçadas recompensas sociais exige deles que se reclassifiquem como mercadorias: ou seja, como produtos capazes de atrair atenção, demanda e fregueses. “Consumir” significa hoje nem tanto proporcionar as delícias do paladar quanto investir em sua própria afiliação social, a qual, na sociedade de consumidores, se traduz em “possibilidade de vender”: desenvolver qualidades para as quais já havia uma demanda de mercado ou reciclar as qualidades que já se possui em mercadorias cuja demanda possa ser criada. A maioria das mercadorias de consumo oferecidas no mercado deve sua atração e seu poder de angariar ávidos fregueses a seu valor de investimento, seja ele genuíno ou imputado, explicitamente divulgado ou implícito. A promessa de aumentar a atratividade e, por conseguinte, o preço de mercado está presente – em letras grandes ou pequenas, ou pelo menos nas entrelinhas – na descrição de todos os produtos, incluindo aqueles que devem ser adquiridos principal ou exclusivamente pelo puro prazer do consumidor; o consumo é um investimento em tudo que diz respeito ao “valor social” e à autoestima do indivíduo. O propósito crucial, talvez decisivo, do consumo (mesmo que raras vezes explicitado com tantas palavras e menos ainda debatido em público) na sociedade de consumidores não é a satisfação de necessidades, desejos e vontades, mas a “comodificação” ou “recomodificação” do consumidor: elevar o status dos consumidores ao de mercadorias vendáveis. É por essa razão, em última instância, que passar no teste do consumo é condição inegociável para a admissão na sociedade que foi remodelada segundo o mercado. Passar no teste é precondição não contratual de todas as relações contratuais que se entrelaçam e são tecidas na rede de relacionamentos chamada “sociedade de consumidores”. É essa precondição, para a qual não há exceção e que não aceita recusa, que consolida o agregado das transações entre vendedor e comprador numa totalidade imaginada; ou, mais exatamente, que permite que o agregado seja vivido como uma totalidade chamada “sociedade” – entidade a que se pode atribuir a capacidade de “fazer exigências” e coagir os atores a obedecê-las –, o que lhe confere o status de “fato social” no sentido durkheimiano. Os membros da sociedade de consumidores são eles próprios mercadorias de consumo, e é a condição de mercadoria de consumo que os torna membros legítimos dessa sociedade. Tornarse e continuar a ser uma mercadoria vendável é o mais forte motivo das preocupações do consumidor, mesmo que ele em geral seja latente e poucas vezes consciente, muito menos declarado. É por seu poder de aumentar o preço de mercado do consumidor que a atratividade dos bens de consumo – os atuais ou potenciais objetos de desejo que desencadeiam as ações do consumidor – tende a ser avaliada. “Fazer de si uma mercadoria vendável” é um trabalho do tipo “faça você mesmo” e também uma tarefa individual. Observemos: “fazer de si”, não tornar-se, é o desafio e a tarefa. Ser membro da sociedade de consumidores é uma tarefa assustadora e uma luta dolorosa e interminável. O medo de não conseguir se conformar é superado pelo temor da inadequação, mas nem por isso é menos apavorante. Os mercados de consumo são ávidos por lucrar com esse medo, e as empresas que produzem bens de consumo competem pelo status de guias e auxiliares mais confiáveis no interminável esforço de seus clientes para enfrentar o desafio. Elas fornecem “as ferramentas”, os instrumentos necessários ao trabalho individualmente realizado de “autofabricação”. Os produtos que elas representam como “ferramentas” de uso individual no processo de tomada de decisão são na verdade decisões tomadas por antecedência. Foram feitas sob encomenda muito antes de o indivíduo confrontar-se com o dever (representado como oportunidade) de decidir. É absurdo pensar nessas ferramentas como se fossem capazes de possibilitar a escolha individual do propósito. Esses instrumentos são cristalizações da irresistível “necessidade” – que, agora como antes, os seres humanos devem aprender a usar e a obedecer, e aprender a usar para obedecer a fim de serem livres. Será que o desconcertante sucesso do Facebook não é consequência de ele fornecer uma feira em que a necessidade pode encontrar-se todo dia com a liberdade de escolha? 26 DE FEVEREIRO DE 2011 Sobre construir fortalezas sob estado de sítio Pat Bertroche, concorrendo ao Congresso americano pelo Partido Republicano do estado de Iowa, propôs em seu blog (http://affordance.typepad.com) que os imigrantes ilegais deveriam ter microprocessadores implantados no corpo: afinal, explica ele, posso implantar um microprocessador no corpo de meu cachorro se quiser saber onde ele está. Por que não fazer o mesmo com os ilegais? É mesmo, por que não? Em recentes reportagens de jornalistas europeus sobre os pesados choques entre manifestantes pró-democracia e forças favoráveis aos regimes ditatoriais por todo o mundo árabe, dois tipos de informação tiveram lugar de honra. Um deles foi a sorte dos cidadãos dos países de onde vinham as reportagens: suas vidas corriam perigo; deveriam ser levados assim que possível para longe dos conflitos, da costa sul para a costa norte do Mediterrâneo; essa era a tarefa mais urgente do governo, qualquer atraso seria criminoso. O outro era o perigo de que a costa norte do mediterrâneo fosse inundada por refugiados lutando para salvar suas vidas das guerras civis que espocavam na costa sul; essa era a tarefa mais urgente do governo, qualquer atraso seria criminoso. Foi possível ouvir suspiros de alívio profundos em duas reportagens transmitidas em simultâneo, provenientes de uma Líbia encharcada de sangue: uma sobre um barco lotado de cidadãos britânicos evacuados, atracando em Valetta; outra sobre multidões de líbios correndo em busca de abrigo – mas em direção às fronteiras do Egito e da Tunísia. A primeira reação do governo italiano às notícias sobre a mudança de regime na Tunísia foi enviar novas unidades da Marinha para vigiar o acesso à ilha italiana de Lampedusa e evitar a entrada de tunisianos em busca de asilo. Agora, François Fillon, primeiro-ministro francês, anunciou que seu país enviará dois aviões com ajuda médica para a cidade libertada de Benghazi. Belo gesto, pode-se dizer, testemunha de nossa solidariedade aos galantes guerreiros pela democracia e de nossa disposição de nos juntar a eles na batalha. Quer dizer, caso a notícia não fosse acompanhada pela explicação do próprio Fillon: essa é uma das medidas destinadas a deter a onda de imigrantes que ameaça inundar os países do Mediterrâneo. A melhor maneira de detê-la é garantir que a situação na Líbia se estabilize logo. Seria fácil, mas errado, explicar essas atitudes como eventos extraordinários ou medidas de emergência. Por quase duas décadas a política dos países signatários do Acordo de Schengen, no lado norte do Mediterrâneo, tem sido “terceirizar” a detenção e o confinamento de potenciais imigrantes em seus territórios nativos ou nas vizinhanças imediatas, na costa sul. Em quase todos os casos, os “acordos bilaterais” foram assinados ou implantados extraoficialmente com regimes tirânicos e corruptos, lucrando – com as gangues de contrabandistas inescrupulosos – com a miséria dos empobrecidos e perseguidos exilados, milhares dos quais jamais conseguiram atravessar o mar nos botes superlotados e sem condições de navegabilidade fornecidos pelas gangues.13 No entanto, não se pode deixar de observar que o rigor usual das leis europeias de imigração e asilo agora se torna mais pesado; e que a postura inflexível adotada em relação a pessoas em busca de asilo, quer tenham obtido êxito em seu pleito, quer sejam apenas imigrantes potenciais, está se tornando ainda mais severa – tudo isso sem ligação com o nervosismo que se espalha da Tunísia ao Bahrein. Sobre o súbito enrijecimento da postura em relação aos forasteiros que há pouco se transformaram em franceses ou francesas, Eric Fassin, distinto antropólogo e sociólogo, comenta no Le Monde de hoje que o propósito é fazer com que todos os outros franceses e francesas “esqueçam a derrota das políticas do presidente em todas as frentes – do (decrescente) poder de compra à (crescente) insegurança”; e, em particular, usar a política de identidade nacional para ocultar a substituição da previdência social por uma caótica política de mercado. Nada de novo nisso tudo, com certeza. Os forasteiros de dentro (em especial aqueles que estão domesticados) e os forasteiros que estão no portão (em particular aqueles que têm boas razões para que se permita sua entrada) foram agora firmemente estabelecidos no papel de suspeitos habituais. Sempre que há um inquérito público sobre outro crime ou contravenção, uma falha ou fiasco nos círculos governamentais, esses forasteiros são levados às delegacias, filmados e exibidos na TV com avidez e a mesma frequência com que se mostra o avião sequestrado atingindo as torres do World Trade Center. A escolha dos problemas de segurança interna provocados por imigrantes como tarefa mais urgente do governo francês logo foi seguida pela decisão de colocar os maiores figurões no comando dos Ministérios de Relações Exteriores, Interior e Defesa. O significado dessa reorganização foi prontamente explicitado pelo presidente de uma forma que não deu espaço à imaginação: “Meu dever como presidente da República é explicar o que está em jogo no futuro, mas acima de tudo proteger o presente dos franceses”, e foi por isso que ele decidiu “reorganizar os ministérios que tratam de nossa diplomacia e de nossa segurança”. Assim, nomeou pessoas “preparadas para confrontar eventos futuros cujo curso ninguém pode prever”. Nos bons tempos de 2003 e 2004, quando o preço das ações e dos imóveis se encontrava nas alturas, os números do PIB subiam enquanto os do desemprego se mantinham estáveis, as carteiras no bolso da classe média e dos que nela esperavam ingressar ainda estavam estufadas de cartões de crédito, a voz de Nicolas Sarkozy se acalorava quando ele falava do “islã da França”, da diversidade do país, do multiculturalismo e até de ação afirmativa ou discriminação positiva – e de seu papel em garantir a paz e a amizade nos banlieues. Ele não tinha paciência com os populistas que consideravam o islã um fenômeno peculiarmente suspeito, a exigir atenção cuidadosa. Em seu livro La République, les religions, l’espérance (publicado em 2004), Sarkozy afirmava que o islã era uma das grandes religiões, que a França de 2004 não era mais um país apenas católico, que precisava se transformar numa nação multicultural; e que em vez de assimilação seria melhor falar da (e preocupar-se com a) integração, um problema bastante diverso: ao contrário do postulado da “assimilação”, hoje abandonado, a política de integração não exigia que os recém-chegados renunciassem àquilo que eram. Mesmo em 2008, quando nuvens sombrias já cobriam os famosos céus azuis da França, o presidente, como nos lembra Eric Fassin, condenou com ênfase o princípio da “consanguinidade”, exigindo que fosse substituído pelo da “igualdade de oportunidades”, apontando que “o melhor remédio contra o comunitarismo [communautarisme, no discurso francês, o conceito de uma população dividida em comunidades autônomas, em parte fechadas em si mesmas e autogovernadas] é a República cumprir sua promessa”. Bem, o jogo agora é muito diferente. Tudo começou no início de 2010, com alarido e gritaria, depois que os roma se estabeleceram em Grenoble (já relembrei esse episódio antes). Os roma são os primeiros dos primeiros no que se refere aos suspeitos habituais, não são? Mas os incidentes que os envolveram revelaram-se simples hors-d’oeuvres: mais especificamente, aperitivos. A presunção de simetria entre ceux qui arrivent (“os que chegam”) e ceux qui accueillent (“os que acolhem”), que pouco tempo antes fundamentava os pronunciamentos transmitidos a partir dos prédios do governo, quase desapareceu. Não é mais uma medida de respeito exigida por ambos os lados. O respeito agora se deve unicamente à França, e mostrar respeito é dever dos accueillis (“recebidos”) – se bem ou mal recebidos, realmente não importa. A comunidade francesa (o que quer que isso signifique), assim proclamam os anúncios, não quer mudar seu modo de viver, seu estilo de vida. Mas a condição não escrita para os “recebidos”, se desejam manter essa condição, é que mudem seu modo de vida, quer queiram ou não. E, confirmando o hábito já observado como a marca registrada da hipocrisia pelo grande Albert Camus (um francês cuja contribuição pessoal à glória de seu país de eleição não é menor que nenhuma outra), o mal novamente é feito em nome do bem, a discriminação é promovida em nome da igualdade, a opressão, em nome da liberdade. Por exemplo: “Não queremos comprometer o direito de as garotinhas frequentarem as escolas.” Um tema espinhoso, sem dúvida. É por isso que slogans como “sem tolerância com os inimigos da tolerância” ou “sem liberdade para os inimigos da liberdade” parecem tão convincentes. Eles apresentam como provas o que ainda está por ser provado, evitando a questão de saber se aqueles cuja condenação e exclusão tais slogans pretendem legitimar são de fato culpados das transgressões de que os acusam; e omitem o problema do direito de processar ao mesmo tempo que buscam encobrir uma fusão ilegal entre os papéis de promotor e juiz. Mas será que a proibição do uso de véus nas escolas ajudou a reforçar o direito de as garotinhas as frequentarem? André Grjebine, do Sciences Po-Centre d’Études et de Recherces Internationales, afirma na mesma edição do Le Monde (“Abrir-se ao outro: sim. À sua ideologia: não”) que “a alteridade, em geral percebida como fonte de abertura espiritual, também pode ser portadora de fundamentalismo, obscurantismo e fechamento”; mas será que ele não concordaria que sua ordem de raciocínio, com toda a aparência de imparcialidade e da intenção sine ira et Studio (sem ódio e sem preconceito), já é um julgamento por direito próprio (e, além disso, como diria John Langshaw Austin, “uma declaração performativa”, ou uma “perlocução”), só que disfarçada? Ele não mencionou, afinal, que “o fechamento espiritual”, por alguns percebido como portador de identidade e segurança, é exatamente a mesma fonte de fundamentalismo e obscurantismo – uma conexão pelo menos tão real quanto aquela que ele preferiu destacar. Tampouco disse ele que, embora a presença da abertura espiritual possa empurrar outras pessoas para o fechamento, a ausência de abertura é a marca invariável e infalível de todo e qualquer fundamentalismo. Com muita frequência, a abertura estimula, promove e alimenta a abertura – enquanto o fechamento estimula, promove e alimenta o fechamento. Amin Maalouf, autor libanês estabelecido na França e que escreve em francês, faz considerações sobre a reação das “minorias étnicas”, ou seja, dos imigrantes, às pressões culturais conflitantes a que estão sujeitas no país para o qual vieram. A conclusão de Maalouf é que, quanto mais os imigrantes sintam que as tradições de sua cultura original são respeitadas no país de adoção, e quanto menos sejam detestados, odiados, rejeitados, intimidados, discriminados e mantidos a distância em razão de sua identidade diferente, mais atraente lhes parecerá a cultura do novo país, e menos irão afirmar sua própria distinção. As observações de Maalouf, supõe ele, são de fundamental importância para o futuro do diálogo intercultural. Elas confirmam nossas suspeitas e conjecturas anteriores: há uma correlação estrita entre a falta de ameaça percebida por um dos lados e o “desarmamento” do tema das diferenças culturais pelo outro – isso é resultado da superação dos impulsos que levam à separação cultural e da concomitante disposição de participar da busca de uma humanidade comum. Com muita frequência, é a impressão de estar sendo mal recebido e de ser culpado sem que se tenha cometido nenhum crime – além da sensação de ameaça e incerteza (de ambos os lados da suposta linha de fronteira, tanto entre os imigrantes quanto entre a população nativa) – que constitui o principal e mais potente estímulo à suspeita mútua, seguida pela separação e a quebra da comunicação, enquanto a teoria do multiculturalismo degenera na realidade do “multicomunitarismo”. As diferenças culturais, sejam elas importantes ou triviais, evidentes ou apenas perceptíveis, adquirem dessa forma o status de matérias-primas para a construção de plataformas e lançadores de foguetes. “Cultura” vira sinônimo de fortaleza sitiada; e espera-se que os habitantes dessa fortaleza manifestem sua lealdade todo dia, que abram mão de qualquer contato com o mundo exterior, ou pelo menos os reduzam drasticamente. A “defesa da comunidade” ganha prioridade sobre qualquer outro dever. Sentar-se à mesa com “estranhos”, frequentar lugares conhecidos como reduto e domínio de forasteiros, nada ter a dizer sobre namoros e matrimônios com parceiros cuja origem está além das fronteiras da comunidade tornam-se marcas de traição e base para ostracismo e exílio. As comunidades que funcionam sobre esses fundamentos tornam-se sobretudo os veículos da maior reprodução de divisões e do aprofundamento da separação, do isolamento e da alienação. O sentimento de segurança e a autoconfiança daí resultante, por outro lado, são os inimigos das comunidades que têm a mentalidade de gueto e erguem barreiras de proteção. O sentimento de segurança transforma o terrível poder do oceano que “nos” separa “deles” numa piscina atraente e convidativa. O precipício assustador que divide a comunidade de seus vizinhos dá lugar a uma suave planície que convida a caminhadas frequentes e movimentos livres. Não admira que os primeiros sinais de dispersão do medo que aflige uma comunidade causem consternação entre os defensores do isolamento comunal; conscientemente ou não, eles têm interesse em que os mísseis inimigos permaneçam onde estão, apontados para os muros que protegem a comunidade. Quanto maior o sentido de ameaça e mais pronunciado o sentimento de incerteza que ele causa, mais estritamente os defensores cerram fileiras e mantêm suas posições, pelo menos para o futuro previsível. Um sentimento de segurança de ambos os lados da barricada é condição essencial para o diálogo entre culturas. Sem ele, a chance de que as comunidades se abram umas às outras e deem início a um intercâmbio que as enriqueça, ao fortalecer a dimensão humana de seus vínculos, é reduzidíssima, para dizer o mínimo. Com ele, por outro lado, as perspectivas para a humanidade são otimistas. O que está em jogo aqui é a segurança num sentido muito mais amplo do que a maioria dos porta-vozes do “multiculturalismo” – que permanecem num acordo tácito (ou mesmo não intencional, involuntário até) com os defensores da separação comunal – está pronta a admitir. O estreitamento da questão da incerteza geral para os perigos reais ou imaginários de uma separação cultural bifacetada é um equívoco perigoso, desviando a atenção das raízes da desconfiança e do desacordo mútuos. Acima de tudo, as pessoas almejam hoje um senso de comunidade, na esperança (equivocada) de que este lhes proporcione um refúgio em que possam abrigar-se da maré montante do torvelinho global. Essa maré, contudo, não pode ser mantida a distância nem pelos maiores quebra-mares comunitários; ela vem de lugares longínquos, e nenhum poder local é capaz de vigiá-la, muito menos de controlá-la. Em segundo lugar, em nossa sociedade intensamente “individualizante” e “individualizada”, a incerteza humana tem raízes num abismo profundo entre a condição da “individualidade de direito” e a pressão para atingir a “individualidade de fato”. As comunidades circunvizinhas cercadas não vão ajudar a superar esse abismo, e ele sem dúvida irá dificultar para muitos membros da comunidade a travessia para o outro lado: a condição de indivíduo de fato, capaz de autodeterminação, e não apenas no papel. Em vez de se concentrar nas raízes e causas da incerteza que hoje aflige as pessoas, o “multiculturalismo” afasta delas a atenção e a energia. Nenhum dos lados das guerras em curso entre “eles e nós” pode ter a expectativa séria de que, em decorrência de uma vitória, volte a segurança tão desejada e há tanto tempo perdida; em vez disso, quanto mais absortos estiverem todos no planejamento de futuras refregas no campo de batalha multicultural, mais se tornarão alvo fácil e lucrativo para os poderes globais – os únicos capazes de lucrar com o fracasso da laboriosa tarefa de construir uma comunidade humana e estabelecer o controle humano conjunto de sua própria condição e das circunstâncias que lhe dão forma. Com muita frequência, são duas misérias que se confrontam no campo de batalha dos conflitos tribais, essa lamentável e luxuosa réplica, para o homem pobre, das guerras haute couture de emancipação. Podem-se entender os que são miseráveis, mesmo lamentando sua sina de se verem atraídos para uma miséria ainda mais profunda pela confusão acerca de causas e remédios. Com uma dose de boa vontade, essa compreensão pode se transformar em perdão. Isso dificilmente se aplica, contudo, aos que ganham com a confusão dos miseráveis. Como diz Richard Rorty, escrevendo sobre o caso americano, um pouco, mas não de todo diferente da variedade europeia: O objetivo será manter a atenção dos proletários longe dali – manter os 75% dos americanos e os 95% da população mundial que estão na base da pirâmide ocupados com hostilidades étnicas e religiosas, com debates sobre costumes sexuais. Se os proletários puderem se distrair de seu próprio desespero por pseudoeventos criados pela mídia, incluindo guerras breves e sangrentas, os super-ricos pouco terão a temer.14 Como mostra a experiência recente, deixando pouca margem à dúvida, os super-ricos fariam qualquer coisa, ou quase, para não ter muito a temer em relação aos proletários. 27 DE FEVEREIRO DE 2011 Sobre o sonho americano: é hora de obituários? Isso foi o que Frank Rich escreveu no New York Times de hoje: A maior prioridade dos radicais de hoje na política americana não é equilibrar os orçamentos do governo, mas travar uma guerra ideológica tanto em Washington quanto nas capitais dos estados. Os poucos dólares que seriam economizados com os cortes propostos de gastos federais nos programas Planned Parenthood e Head Start não reduzem o déficit; os cortes apenas atingem programas que a direita abomina. No Wisconsin, onde os funcionários estaduais capitularam diante das exigências de concessão financeira de parte do governador Scott Walker, a única tarefa que resta aos republicanos radicais é destruir o direito de negociação coletiva dos trabalhadores. Isso não significa que não haja uma missão fiscal na agenda da direita, tanto em âmbito nacional quanto local – apenas a missão nada tem a ver com a redução do déficit. O verdadeiro objetivo é recompensar os patrocinadores mais ricos do Velho e Bom Partido [Partido Republicano] mutilando o que sobrou das organizações trabalhistas, destruindo as agências governamentais encarregadas de regular e fiscalizar as grandes empresas e, como sempre, premiando os mais ricos com novos cortes em seus impostos. A equação da falência moral codificada na era Bush – de que os cortes de impostos no topo da pirâmide eram uma prioridade ainda maior que o pagamento de duas guerras – agora é um dado. Os antigos valores fundamentais americanos de sacrifício comum e igualdade de oportunidades econômicas foram aniquilados. Fosse eu escrever um réquiem para o sonho americano (pelo menos tal como ele é sonhado por nós, vendo os Estados Unidos de fora, com um misto de esperança e desespero), e não conseguiria fazer melhor. E fico imaginando quem poderia. Embora o fato de ainda haver pessoas que pensam e escrevem como Frank Rich me permita indagar se o anúncio da morte do “sonho americano” não seria, afinal e apesar de tudo, um pouco prematuro. Seria muito bom se assim fosse. Mas por quanto tempo?! a) O carro de Jagrená (no hindu, Jagannãth, “senhor do mundo”) transporta anualmente um ídolo de Krishna pelas ruas; sob suas rodas se atiram seguidores que são por ele esmagados. Bauman refere-se aqui à metáfora criada por Anthony Giddens para caracterizar a modernidade (Anthony Giddens, As consequências da modernidade, São Paulo, Unesp, 1991). (N.T.) b) Silar Maner, personagem de O tesouro de Silas Marner, de George Elliot, que consegue não gastar nada do que recebe e que à noite conta seu tesouro. (N.T.) • Março de 2011 • 1º DE MARÇO DE 2011 Sobre o último sonho e o testamento de H.G. Wells, e os meus também Na Introdução extraordinariamente inteligente, erudita e perspicaz de John Clute à recente edição do livro de H.G. Wells, The Shape of Things to Come,1 de tremendo impacto na época de seu lançamento, mas agora quase esquecido, lemos que, em seus últimos anos, bem depois da traumática experiência da Primeira Guerra Mundial, que deixou em ruínas o mundo do século XIX e minou os alicerces da visão whig da história (tanto do passado quanto do futuro), Wells “ficou deslocado”. Ele e seus companheiros sofredores de geração se viram marcados pela crueldade, pela inutilidade e pelo absurdo brutais e desavergonhados, dessa guerra, e essa marca nunca iria se apagar. Mas, para Wells em particular, ficar deslocado das pressões da história era estar fora de seu projeto central, que ele pretendia endereçar a todas as pessoas dotadas de talento mental no mundo civilizado. O projeto consistia em mostrar o tipo de confusão em que o planeta havia se metido e apontar o caminho a seguir. Wells se agarrava com teimosia à sua crença de que havia e sempre haverá “um caminho a seguir”, não importa quão numerosos sejam os empecilhos, obstáculos, estorvos e reações que se possam acumular diante dos seres humanos que ousaram (estavam destinados a?) segui-lo. Ele nunca desistiu de seu projeto, insiste o autor da Introdução (esse formidável exercício de atualizar a capacidade do livro de falar e a do leitor de entender), mas, no período final da vida, ele se dirigiu a seu público de uma distância cada vez maior. Wells não abandonaria a posição em que se havia estabelecido desde o início. Após longos anos que o encheram de desapontamentos, Wells continuou mais ou menos no mesmo lugar; seu público-alvo é que se afastou. Para resumir, Wells perdeu o que fora seu “senso infalível do Zeitgeist” (espírito de época), senso que por duas décadas ou mais havia sido, por comum acordo da opinião esclarecida, sua marca registrada; “Wells estava fornecendo o melhor argumento possível para o triunfo da civilização europeia”: embora, de novo, tal como tantos de seus contemporâneos, não tenha conseguido prever a guerra. E Wells se mostrou mais lento que muitos deles em captar o significado dessa omissão e em contabilizar as suas baixas. Já no meio da guerra, os textos de Wells mostram uma confiança resoluta de que “a Europa de 1910, … depois de muita demolição e reconstrução, poderia voltar a funcionar”. Seus romances “foram tragicamente lentos em registrar um crescente consenso sobre a Primeira Guerra Mundial, não apenas entre a intelligentsia, mas também nos corações e mentes dos cidadãos ‘comuns’”; “Para os pensadores que vieram depois, essa civilização não era uma lousa que se pudesse apagar, uma expressão corrigível no rosto do Homo sapiens, … mas uma máscara a disfarçar a verdadeira e pavorosa face de todos nós.” Quanto a Wells, contudo, “para o bem e para o mal, não lhe era possível deixar a luta. Ele não podia abandonar a luta para nos esclarecer”. E isso a despeito de sua profunda percepção acerca de suas próprias falhas de temperamento: pelos lábios do dr. Philip Raven, um dos principais personagens de The Shape of Things to Come, Wells formula o julgamento de seus próprios defeitos e incapacidades: Você não consegue aguentar qualquer elaboração convencional, exibições secundárias, complexidades desnecessárias, métodos indiretos, diplomacias, ficções jurídicas e meias mensagens discretas. … Como devem odiá-lo os homens de negócios – se e quando chegam a ouvi-lo! Complicações constituem a vida deles. Você tenta afastar todas essa complicações do caminho. Você é um desnudo, um danado de um desnudo impaciente. Quando examino os registros de meu próprio itinerário de vida e os comparo aos de Wells, percebo que meus poucos méritos, de forma alguma inquestionáveis, estão muito aquém dos pontos fortes de Wells: não são páreo para a amplitude e a audácia de sua visão, os talentos literários, o senso de vocação e a determinação de ver sua missão cumprida. Mas tenho plena certeza de que compartilho de suas fraquezas, tal como apresentadas uma a uma na fala do dr. Raven. Essa irmandade em nossas falhas talvez me permita supor, mesmo de modo hesitante e decerto com très beaucoup – en fait toutes – proportions gardées, que haja algumas – pequenas como possam ser – afinidades eletivas entre mim, um humilde artesão, e ele, o grande artista. Mas há outra justificativa para assumir a hipótese de uma afinidade eletiva: agora não entre personagens ou realizações, mas entre os contextos históricos em que nossos respectivos trabalhos foram gestados e se inserem; em particular, os efeitos do “deslocamento”, que Clute com tanta segurança identificou em Wells – mas, creio, não menos relevantes, se é que não ainda mais fortes, em minha própria história de vida (Wells, ao contrário de mim, foi afinal poupado da experiência de refúgio ou exílio – tanto da variedade “externa” quanto da “interna”). O senso de “estar deslocado”, quando penso sobre ele, tem me acompanhado por tanto tempo quanto me é possível recordar: um senso de estar fora do lugar e fora da época; e, com toda a certeza, esse senso da distância que me separa dos “homens de negócio” – uma distância ao mesmo tempo física e espiritual, por escolha deles tanto quanto minha. Devo admitir que desde logo descobri na condição de “estar deslocado” algo agradável, quando não bastante satisfatório; e, considerando-se o motivo de meu deslocamento, também uma escolha honesta e eticamente louvável. Antes de ler e absorver as sugestões de Clute, eu atribuía esses sentimentos difusos, embora ubíquos e obstinados, talvez de forma errônea, à minha claustrofobia inata. Tanto do ponto de vista cerebral quanto do visceral, tenho medo de multidões, horror a clamores de justiça, e detesto os instintos e estouros de rebanho. Meu deslocamento teve muitas faces. A experiência da infância de ser mantido à força distanciado do mundo a que pertencia e ter recusado o ingresso, pelo dobro do tempo, em função do exílio durante a guerra, no mundo a que tentei em vão me juntar; depois da volta ao lar, uma distância gradual, mas sempre crescente, entre minhas esperanças e expectativas e o caráter repulsivo da realidade, exacerbado pela hipocrisia dos “homens de negócio”; uma curta permanência em outro país, desta vez com uma experiência de estar “dentro”, mas não ser “do” lugar; e, enfim, a outra metade da vida passada num país tão maravilhosamente hospitaleiro em relação aos estrangeiros, embora sob a condição de que não pretendam ser nativos. Até agora, contudo, essa foi uma lista de deslocamentos, por assim dizer, topográficos. Talvez (quem pode dizer com certeza, com a mão no coração) resultante de uma predisposição formada pela série de deslocamentos “topográficos”, uma variedade mais séria de deslocamento, e decerto mais intimamente relacionada à de Wells, marcou e marca meu perfil profissional: minha própria versão de “deslocamento em relação ao Zeitgeist”. Sendo Wells e eu separados por duas gerações, as manifestações de um deslocamento semelhante tendem, contudo, a diferir – na verdade, a ser quase opostas. O deslocamento de Wells forçou-o a lutar para preservar a autoconfiança do tipo “nós podemos fazer” que caracterizou o Iluminismo, a modernidade e a modernidade iluminista em relação ao Zeitgeist de uma catástrofe iminente, de uma segunda queda e do Apocalipse final. (“É possível esquecer agora, setenta anos depois, como era profundamente deprimido o nosso mundo em 1913, como pareciam grandes as possibilidades negativas com respeito à sobrevivência da civilização”, como diz Clute.) Minha variedade de deslocamento, por outro lado, manifestava-se na resistência ao Zeitgeist imprevidente do admirável mundo novo; o mundo satisfeito consigo mesmo, frio e insensível; um mundo que acreditava não haver alternativa, satisfeito por viver na incerteza e, assim, tendente a ver a segunda queda como a segunda vinda, e a fingir que “pode fazê-lo”, ao mesmo tempo em que faz o possível para evitar fazer aquilo que ansiava e exigia ser feito a fim de preservar e redimir suas vítimas intencionais e suas baixas colaterais. Em suma, Wells lutou, apesar de todas as dificuldades, para preservar sua autoconfiança. O que tentei fazer foi preservar nossa autocrítica; apesar de todas as chances e pretensões em contrário, foi minar ou pelo menos enfraquecer nossa presunção. Wells procurou a área iluminada sob as nuvens sombrias; eu tentei revelar as rochas escuras e as marés negras que espreitam por trás dos faróis brilhantes, mas improvisados, ad hoc e efêmeros. E no entanto… O espírito da época deve ter dado uma guinada de 180 graus, protagonistas e antagonistas podem ter mudado de lado, mas o que toda aquela turbulência não conseguiu fazer foi cortar mais um elo que sustenta a hipótese de uma afinidade eletiva. Aqui está ele, a declaração de despedida escrita por Wells nas páginas finais de The Shape of Things to Come em nome do “último governo da Terra”, sua última palavra e seu pedido de desculpas por ter deposto as armas, a ser divulgado quando este chegasse à conclusão de que “não havia mais nada que o governo pudesse fazer” (uma declaração, recordemos, elaborada por H.G. Wells nas profundezas de um desespero que se espalhava pelo mundo): Este é o dia, esta é a hora do alvorecer para a humanidade unida. O Martírio do Homem chegou ao fim. De um polo a outro não resta agora um único ser humano no planeta sem uma boa perspectiva de autorrealização, saúde, influência e liberdade. Não há mais escravos; nem pobres; nem pessoas destinadas de nascença a uma condição inferior; nem sentenciadas a longos e inúteis períodos de encarceramento; nem doentes da mente ou do corpo que não sejam ajudados por todos os poderes da ciência e os serviços de guardiães interessados e capazes. O mundo inteiro está diante de nós para seguirmos nossa vontade, na medida de nossos poderes e de nossa imaginação. A luta pela existência material chegou ao fim. Foi vencida. A luta pela verdade e a indescritível necessidade que é a beleza começa agora, sem o estorvo de nenhum imperativo da luta inferior. Ninguém precisa viver menos ou ser menos que o seu máximo. Defendendo a mudança no auge da celebração autocongratulatória de um mundo caracterizado por uma opulência e um conforto sem precedentes, eu teria de fazer muito esforço se precisasse acrescentar ou retirar uma única sentença dessa descrição de um mundo em que vale a pena viver e pelo qual vale a pena lutar. Mas não senti essa necessidade. E ainda não sinto. • Notas • Dezembro de 2010 (p.71-129) 1. Ulrich Beck, A God of One’s Own, Polity Press, 2010, p.68. 2. Ibid., p.86-7. 3. Robert Pawlik, Kronos 2, 2010, p.44. 4. Outros estudiosos chegaram a limites diferentes, por vezes o dobro dos de Dunbar. Segundo um recente verbete da Wikipédia, “os antropólogos H. Russell, Peter Killworth et al. realizaram uma variedade de estudos de campo que resultaram num número médio de vínculos – 290 – que constitui aproximadamente o dobro da estimativa de Dunbar. A mediana de Bernard-Killworth, de 231, é inferior, graças ao erro para cima na distribuição: ela ainda é incrivelmente mais ampla que a estimativa de Dunbar. A estimativa de BernardKillworth sobre a probabilidade máxima do tamanho da rede social de uma pessoa baseiase numa série de campos de estudos que usam diferentes métodos em várias populações. Não se trata de uma média das médias de estudo, mas de uma descoberta repetida. Não obstante, o número de Bernard-Killworth não foi tão amplamente popularizado quanto o de Dunbar. Ao contrário das pesquisas já citadas, que se concentram em grupos de diversas populações humanas contemporâneas, os objetos principais dos estudos de campo e dos arquivos de Dunbar, assim como dos fornecedores dos dados brutos a partir dos quais se calculou o número de Dunbar, foram populações de primatas e do pleistoceno; desse modo, a proposta de Dunbar – de que, dada a estrutura do neocórtex compartilhada pelos primatas e por seus parentes humanos mais jovens, o tamanho da horda primitiva estabelece limites para o número de “relacionamentos significativos” segundo as necessidades humanas – deve ser considerada um pressuposto e não uma descoberta corroborante. 5. Tony Judt, Ill Fares the Land, Penguin, 2010, p.175. 6. Disponível em: www.controlacrisi.org/joomla/index.php?option=com_content& view=article&id=10464&catid=39&Itemid=68; acesso em junho de 2010. Janeiro de 2011 (p.130-79) 1. Walter Benjamin, “Theses on the philosophy of history”, in Hannah Arendt (org.), Illuminations: Essays and Reflections, Nova York, Schoken, 1968, p.257-8. 2. Amartya Sen, The Idea of Justice, Cambridge, Harvard University Press, 2009. 3. Günther Anders, Le temps de la fin, Paris, L’Herne, 2007, p.52-3. 4. Roger Kimball, “Becoming Elias Canetti”, New Criterion, set 1986. Fevereiro de 2011 (p.180-244) 1. Henry A. Giroux, “Youth in the era of disposability”, disponível em: http:// bad.eserver.opgr/issues/2011/Giroux-Youth.html. 2. Michel Agier, “Le coulouir des exilés”. Être étranger dans un monde commun, Bellecombe-en-Bauges, Éditions du Croquant, 2011. 3. T.R. Malthus, An Essay on the Principle of Population, Nova York, Oxford University Press, 1999 [1798], p.61 (trad. bras., Ensaio sobre a origem da população, São Paulo, BestSeller, 1996). 4. Esta citação e as seguintes foram extraídas de Leon Shestov, Athens and Jerusalem, Athens, OH, Ohio University Press, 1966, p.424-6, 68-9. 5. Êxodo 4. 6. Carl Schmitt, Politische Theologie, p.19-21, grifos nossos; ver debate in Giorgio Agamben, Homo Sacer, Stanford, Stanford University Press, 1998, p.15s. 7. Essa particular acusação de roubo, como a maioria das que foram feitas e contestadas durante a “Corrida do Ouro” na Califórnia, a partir de 1849, não encontrou uma solução definitiva nos tribunais; mas a internet, no começo do século XXI, tal como a Califórnia em meados do século XIX, era um lugar singularmente sem leis, sem propriedade privada, taxas de licenciamento ou impostos, e – no caso da Califórnia – com pessoas armadas no papel de juízes e policiais. 8. Disponível em: http://mashable.com/2011/02/23/social-media-culture/. 9. Ver Paul Lewis, “Teenage networking websites face anti-paedophile investigation”, Guardian, 3 jul 2006. 10. Eugène Enriquez, “L’Idéal type de l’individu hypermoderne. L’individu pervers?”, in Nicole Aubert (org.), L’individu hypermoderne, Toulouse, Érès, 2004, p.49. 11. In Die Angestellen, publicado pela primeira vez como uma série de ensaios na revista Frankfurter Allgemeine Zeitung, em 1929, e como livro pela Suhrkamp, 1930. Aqui, apud Siegfried Kracauer, The Salaried Masses: Duty and Distraction in Weimar Germany, Londres, Verso, 1998, p.39. 12. Germaine Greer, The Future of Feminism, Maastricht, Studium Generale Maastricht, 2004, p.13. 13. Entre os mais recentes resumos da situação imediatamente anterior à explosão de distúrbios nos países árabes, ver Alain Morice e Claire Rodier Le Monde Diplomatique, jun 2010. 14. Ver Richard Rorty, Achieving Our Country, Cambridge, MA, Harvard University Press, p.88. Março de 2011 (p.245-50) 1. H.G. Wells, The Shape of Things to Come, Londres, Penguin, 2005 [1993]. Título original: This Is Not a Diary Tradução autorizada da primeira edição inglesa, publicada em 2012 por Polity Press, de Cambridge, Inglaterra Copyright © 2012, Zygmunt Bauman Copyright da edição em língua portuguesa © 2012: Jorge Zahar Editor Ltda. rua Marquês de S. Vicente 99 – 1º | 22451-041 Rio de Janeiro, RJ tel (21) 2529-4750 | fax (21) 2529-4787 [email protected] | www.zahar.com.br As citações da obra O caderno, de José Saramago (São Paulo: Companhia das Letras, 2009), foram aqui reproduzidas com a autorização da editora. Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais. 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