Zygmunt Bauman
ISTO NÃO É
UM DIÁRIO
Tradução:
Carlos Alberto Medeiros
Obras de Zygmunt Bauman:
▪ 44 cartas do mundo líquido moderno
▪ Amor líquido
▪ Aprendendo a pensar com a sociologia
▪ A arte da vida
▪ Bauman sobre Bauman
▪ Capitalismo parasitário
▪ Comunidade
▪ Confiança e medo na cidade
▪ Em busca da política
▪ Ensaios sobre o conceito de cultura
▪ A ética é possível num mundo de consumidores?
▪ Europa
▪ Globalização: As consequências humanas
▪ Identidade
▪ Isto não é um diário
▪ Legisladores e intérpretes
▪ O mal-estar da pós-modernidade
▪ Medo líquido
▪ Modernidade e ambivalência
▪ Modernidade e Holocausto
▪ Modernidade líquida
▪ A sociedade individualizada
▪ Tempos líquidos
▪ Vida a crédito
▪ Vida em fragmentos
▪ Vida líquida
▪ Vida para consumo
▪ Vidas desperdiçadas
• Sumário •
Setembro de 2010
Sobre o sentido e a falta de sentido de se fazer um diário, • Sobre a
utilidade de lutar contra moinhos de vento, • Sobre a eternidade
virtual, • Sobre cultivar palavras, • Sobre a superpotência
superquebrada, • Sobre médias, • Sobre multitarefas, • Sobre cegos
guiando impotentes, • Sobre ciganos e a democracia, • Sobre a
erosão da confiança e o florescimento da arrogância, • Sobre o
direito de ter raiva
Outubro de 2010
Sobre o direito de ficar mais rico, • Sobre muitas culturas e um
disfarce, • Sobre “Não digam que não foram avisados”, • Sobre os
dilemas de se acreditar, • Sobre Cervantes, pai das ciências
humanas, • Sobre mais uma guerra de atrito, 2010 EC?
Novembro de 2010
Sobre por que os americanos não enxergam a luz no fim do túnel
Dezembro de 2010
Sobre a guerra que poria fim a todas as guerras, • Sobre ferir
moscas e matar pessoas, • Sobre Jerusalém versus Atenas
revisitada, • Sobre por que os estudantes se agitam de novo, •
Sobre respeito e desdém, • Sobre algumas de minhas
idiossincrasias (não todas!), • Sobre a nova aparência da
desigualdade, • Sobre a ressocialização do social, • Sobre os
amigos que você tem e os que pensa ter, • Sobre a manchete dos
jornais e outras páginas, • Sobre (alguns) dilemas, • Sobre se
“democracia” ainda significa alguma coisa – e, se significa, o que é?
Janeiro de 2011
Sobre o Anjo da História, reencarnado…, • Sobre encontrar consolo
em lugares inesperados, • Sobre crescimento: precisamos dele?, •
Sobre sustentabilidade: desta vez, da social-democracia…, • Sobre
o consumo cada vez mais rico e o planeta cada vez mais pobre, •
Sobre a justiça e como saber se ela funciona, • Sobre internet,
anonimato e irresponsabilidade, • Sobre as baixas e os danos
colaterais provocados pelos cortes, • Sobre uma das muitas páginas
extraídas da história da cruzada democrática, • Sobre machados
imorais e carrascos morais, • Sobre Berlusconi e a Itália, • Sobre
mantê-lo do lado de dentro, e no entanto do lado de fora, • Sobre as
pessoas nas ruas
Fevereiro de 2011
Sobre a maturidade da glocalização, • Sobre o que fazer com os
jovens, • Sobre as virtudes que não são para todos, • Sobre as
bênçãos e maldições de não tomar partido, • Sobre um tsunami
humano – e depois, • Sobre o piso por baixo do piso, • Sobre estar
fora dentro, e dentro, mas fora, • Sobre acontecimentos milagrosos
e nem tanto, • Sobre Facebook, intimidade e extimidade, • Sobre
construir fortalezas sob estado de sítio, • Sobre o sonho americano:
é hora de obituários?
Março de 2011
Sobre o último sonho e o testamento de H.G. Wells, e os meus
também
Notas
• Setembro de 2010 •
3 DE SETEMBRO DE 2010
Sobre o sentido e a falta de sentido de se
fazer um diário
Confesso: ao começar a escrever (são 5h), não tenho a menor ideia
do que está por vir, se é que virá alguma coisa, quanto vai durar e
por quanto tempo vou precisar dela, sentir o impulso de realizá-la e
desejar mantê-la em andamento. E a intenção ainda não está clara,
que dirá o propósito. A questão do “para quê” é difícil de responder.
No momento em que me sentei à mesa do computador, não havia
um novo assunto candente à espera para ser mastigado e digerido,
nenhum livro novo a ser escrito, nenhum material antigo a ser
revisado, reciclado ou atualizado, nada de novo para saciar a
curiosidade do entrevistador, nenhuma palestra a ser esboçada por
escrito antes de ser proferida – nenhuma solicitação, incumbência
ou prazo final… Em suma, não havia nem uma estrutura montada, à
espera de ser preenchida, nem um prato cheio de material bruto à
espera de molde e de fôrma.
Creio que a questão “por quê” é mais adequada nesse caso que
a pergunta “para quê”. Os motivos para escrever são abundantes,
uma multidão de voluntários alinhados até serem notados,
destacados e escolhidos. A decisão de escrever é, por assim dizer,
“sobredeterminada”.
Para começar, não consegui aprender outra forma de ganhar a
vida a não ser escrevendo. Um dia sem escrita parece um dia
perdido ou criminosamente abortado, um dever omitido, uma
vocação traída.
Prosseguindo, o jogo das palavras é para mim o mais celestial
dos prazeres. Gosto muito desse jogo – e o prazer atinge os
píncaros quando, reembaralhadas as cartas, meu jogo parece fraco
e preciso forçar o cérebro e lutar muito para preencher as lacunas e
superar as armadilhas. Esqueça o destino: estar em movimento, e
pular sobre os obstáculos ou afastá-los com um chute, é isso que dá
sabor à vida.
Outro motivo: sinto-me incapaz de pensar sem escrever. Imagino
que eu seja primeiro um leitor e depois um escritor – pedaços,
retalhos, fatias e frações de pensamentos em luta para nascer, suas
aparições fantasmagóricas/espectrais rodopiam, comprimindo-se,
condensando-se e novamente se dissipando; devem ser captados
primeiro pelos olhos, antes que se possa detê-los, colocá-los no
lugar e lhes dar contorno. Primeiro precisam ser escritos em série
para que um pensamento razoavelmente bem-acabado possa
nascer; ou, se isso falhar, ser abortado ou enterrado como
natimorto.
Além do mais, embora eu adore o isolamento, tenho horror à
solidão. Depois que Janina se foi, cheguei ao fundo mais sombrio da
solidão (se é que a solidão tem um fundo), ali onde se juntam seus
sedimentos mais amargos e pungentes, seus miasmas mais tóxicos.
Como o rosto de Janina é a primeira imagem que vejo ao abrir meu
desktop, o que se segue depois que conecto o Microsoft Word nada
mais é que um diálogo. E o diálogo faz da solidão uma
impossibilidade.
Por fim, embora não menos importante, suspeito que eu seja um
grafômano, por natureza ou criação… Um viciado que precisa de
mais uma de suas doses diárias ou que se arrisca até as agonias da
abstinência. Ich kann nicht Anders (Não posso fazer diferente). Esse
provavelmente é o motivo profundo, aquele que torna a busca por
motivos tão desesperada e inconclusiva quanto inescapável.
Quanto às outras causas e motivos, realmente não é possível
contá-los, e, pelo que sei, seu número continuará a crescer a cada
dia. Entre os que mais se destacam no momento está o sentimento
progressivo de que estou abusando da hospitalidade, de que já fiz
imoderadamente o que minhas capacidades moderadas me
permitiam ou me obrigavam, e que portanto chegou a hora de
aplicar a mim mesmo a recomendação de Wittgenstein, de manter
silêncio sobre as coisas que não devo falar ou comentar (coisas,
acrescentaria eu, que não devo mencionar ou debater com
responsabilidade, ou seja, com a convicção legítima de ter algo de
útil a oferecer). E as coisas de que não devo falar são, cada vez
mais, aquelas que vale a pena comentar hoje. Minha curiosidade se
recusa a aposentar-se, contudo, minha capacidade de satisfazê-la
ou pelo menos de aplacá-la e aliviá-la não pode ser levada ou
persuadida a prosseguir. As coisas fluem rápido demais para dar
lugar à esperança de captá-las em pleno voo. É por isso que a
análise de um novo tema, um novo assunto para estudo prolongado,
à espera de que se faça justiça a seu objeto, já não está entre
minhas cartas. Não porque falte conhecimento disponível para
consumo – mas em razão de seu excesso, que desafia todas as
tentativas de absorvê-lo e digeri-lo.
Talvez essa inviabilidade da absorção seja resultado do
envelhecimento e da perda de vigor – uma questão total ou
principalmente física e biológica, cujas raízes podem ser
encontradas, em última instância, na mutabilidade de meu próprio
corpo e de minha mente (uma conjectura plausível, tornada ainda
mais digna de crédito pela impressão de que os recursos
necessários para obter e processar novas informações, fornecidos
em minha juventude sob a forma de um número limitado de cédulas
monetárias de grande valor, são agora oferecidos em enormes
pilhas de moedas de cobre, grandes em volume e peso, mas
abominavelmente reduzidas em matéria de poder de compra – o
que as torna, tomando de empréstimo uma expressão de Günther
Anders, “supraliminares” para um corpo envelhecido e uma mente
que se cansa com facilidade). Nossa época esmera-se em
pulverizar tudo, mas nada de modo tão profundo quanto a imagem
do mundo: essa imagem se tornou tão pontilhista quanto a do tempo
que preside sua fragilização e fragmentação.
Concluo que, finalmente, o mundo fragmentado se emparelhou
com os pintores de sua aparência. Uma antiga fábula indiana me
vem à cabeça; meia dúzia de pessoas, topando com um elefante no
caminho, tenta avaliar a natureza do estranho objeto que
encontraram. Cinco delas são cegas, nenhuma é alta o suficiente
para tocar e sentir o elefante como um todo, de modo a juntar as
impressões fracionadas formando uma visão da totalidade; a única
que tem olhos para ver, no entanto, é muda… Ou me lembro da
advertência de Einstein, de que, embora, em princípio, uma teoria
possa ser provada por experimentos, não há um caminho que leve
dos experimentos ao nascimento de uma teoria. Einstein devia
saber muito sobre o assunto. O que ele não imaginava nem podia
imaginar era o advento de um mundo, e de uma forma de viver nele,
composto apenas de experimentos, sem teoria para planejá-los nem
instruções confiáveis sobre como iniciá-los, dar-lhes sequência e
avaliar seus resultados.
Qual é, afinal, a diferença entre viver e contar a vida? Não faria
mal aproveitar uma dica de José Saramago, fonte de inspiração que
descobri há pouco tempo. Em seu próprio quase-diário, reflete ele:
“Creio que todas as palavras que vamos pronunciando, todos os
movimentos e gestos, concluídos ou somente esboçados, que
vamos fazendo, cada um deles e todos juntos, podem ser
entendidos como peças soltas de uma autobiografia não intencional
que, embora involuntária, ou por isso mesmo, não seria menos
sincera e veraz que o mais minucioso dos relatos de uma vida
passada à escrita e ao papel.”a
Exatamente.
4 DE SETEMBRO DE 2010
Sobre a utilidade de lutar contra moinhos
de vento
No limiar do terceiro milênio, a França, tal como a maior parte do
planeta, sofria as agonias da incerteza. O ingresso na nova era foi
adequadamente precedido pelo que talvez tenha sido (nunca temos
certeza) um dos embustes mais bem-sucedidos na história: o “bug
do milênio”, que colocou milhares de empresas e agências
governamentais sérias, realistas, assim como milhões de súditos e
clientes seus, em estado de alerta provocado pela visão apavorante,
quase apocalíptica, das rotinas da Terra interrompidas de vez, da
suspensão da vida no planeta, no exato encontro entre a noite de
Réveillon e o dia de Ano-novo. Não tendo acontecido esse fim do
mundo, as empresas de informática contabilizaram suas bênçãos e
somaram os lucros; e o desastre que jamais ocorreu logo foi
esquecido, afastado da atenção do público, estimulada e
cronicamente agitada por desastres que realmente ocorreram ou
eram iminentes; enquanto isso, a desagregação da confiança e a
condensação das incertezas públicas – o tipo de problema que a
história do “bug do milênio” simbolizava – mantiveram-se firmes e se
recusaram a sair do lugar, quanto mais a dizer adeus.
Talvez o fim da civilização computadorizada “tal como a
conhecíamos” não estivesse, afinal, tão próximo quanto se
proclamou no fim do milênio anterior; mas o término dos anos de
despreocupação que esse anúncio pressagiava talvez estivesse.
Um a um, os alicerces habituais em que se assentava a segurança
tremeram, racharam e tombaram; as perspectivas de emprego e de
rendas estáveis encolheram; laços e parcerias antes sólidos
debilitaram-se e fragilizaram-se; muitos faróis de credibilidade
supostamente inatacáveis ruíram ou estremeceram sob o peso da
corrupção, ou implodiram com aquela confiança de marinheiros
iludidos e sem rumo. Quanto aos governos, dos quais se esperava
que tornassem novamente seguros os inseguros e impusessem
ordem à desordem, estes responderam com um curto e grosso “Não
há alternativa” às queixas e aos protestos de seus súditos cada vez
mais confusos e assustados, quando se dignaram a responder; em
geral devolveram os pedidos de “Ajude-me” e “Faça alguma coisa”
com carimbos de “Endereço errado” ou “Destinatário desconhecido”.
Contra o panorama de todos os ruídos e silêncios, as palavras (e
os programas de televisão que logo se seguiram) de Nicolas
Sarkozy, então recém-nomeado ministro do Interior (em 2002),
pareciam uma mensagem que transbordava justamente do
significado correto – a primeira mensagem desse tipo em anos. Sua
nomeação, feita logo depois do início do que para muitos parecia
um milênio ou pelo menos um século de incerteza, parecia abrir a
porta para um novo papel e uma nova estratégia governamentais;
apresentava uma outra época, a do “governo ouvinte”, um governo
que seguiria o exemplo estabelecido pelos bancos, que atraíam
seus clientes potenciais assegurando-lhes que “adoravam dizer
sim”. A nomeação de Sarkozy prometia o advento de um período
que tornaria de novo confiáveis os poderes constituídos, e seus
súditos confiantes uma vez mais de que não se veriam
abandonados a seus próprios recursos, terrivelmente escassos, na
luta desesperada para encontrar um terreno firme sob os pés.
Sarkozy passava uma tripla mensagem. Primeiro, a estufa da
insegurança conhecida por atormentar pessoas comuns como você
e eu, esse antro de vício e fonte efusiva de horrores e pesadelos
diurnos, foi encontrada, identificada e localizada: estava nos
banlieues, nome genérico francês para bairros violentos e ruas
perigosas, habitados por pessoas de aparência e modos estranhos
(leia-se: diferentes dos nossos), e, portanto, provavelmente de
hábitos e intenções igualmente estranhos (leia-se: suspeitos).
Segundo, depois que se mapearam as raízes profundas das
adversidades e iniquidades da sorte dos franceses, nós, as pessoas
no poder, os caras poderosos, podemos e conseguiremos enfim
atacar o mal “pela raiz” – o que de fato já começamos a fazer (como
se viu na TV). Terceiro, o que você acabou de ver na TV (as forças
da lei e da ordem flexionando os músculos e atacando as fortalezas
do crime em sua própria origem, a fim de cercar e prender
criminosos passados, presentes e em potencial, esses culpados
elementares de nossos dias de aflição e de nossas noites sem
dormir) é apenas um exemplo, embora vívido, do governo em ação,
determinado desde o início a ser vitorioso. (Para que esse otimismo
não confunda os leitores de hoje, permitam-me lembrar que em
2002 a ocasião era propícia para o autor da mensagem, porque dois
ou três anos depois ele poderia ter acrescentado, para sua
vergonha posterior ainda maior, que as ações do governo estavam
“destinadas a terminar em triunfo como as guerras no Afeganistão e
no Iraque”.) Em suma, o que é dito pelo governo é feito pelo
governo… ou pelo menos já começa a ser feito.
Agora estamos em 2010. No decorrer dos últimos anos, aquele
ministro do Interior apostou no bilhete da “morte à insegurança” e foi
eleito presidente da França (em 2007), mudando-se de uma
propriedade mais humilde na Place Beauvau para o esplendor
estonteante do Palais de l’Elisée. E agora, oito anos depois da
mensagem convocando franceses e francesas a ouvir e tomar nota,
uma tripla mensagem idêntica é transmitida de novo, com endosso e
bênção apaixonados do presidente, por Brice Hortefeux, seu
sucessor na Place Beauvau.
Segundo Denis Muzet, que escreve no Le Monde, o substituto e
herdeiro de Sarkozy seguiu ponto a ponto a façanha realizada em
2002 por seu chefe e mentor, aumentando sua jornada de trabalho
para 20 horas e usando seu tempo impressionantemente ampliado
para se mostrar e ser visto “no local da ação”. Ele supervisionou ao
vivo a demolição dos acampamentos do povo roma,b reunindo os
expulsos e mandando-os de volta para o “lugar de onde vieram” (ou
seja, à miséria anterior), convocando prefeitos para emitir relatórios
e instruções, ou apanhando-os de surpresa “no campo de batalha”
para admoestá-los e instigá-los a agir: em mais uma tentativa, mais
um esforço, mais uma nova ofensiva de verão (outono, inverno, o
que seja) contra os responsáveis e culpados pelo infortúnio de
pessoas decentes conhecido pelo nome de “insegurança”; mais um
impulso final para acabar com outra guerra em tese destinada a ser
a última. Ele está assombrado por monstros? Vamos começar nos
livrando dos moinhos de vento. Isso não faz sentido? Talvez, mas
pelo menos você sabe que não estamos perdendo tempo. Estamos
fazendo alguma coisa – não estamos? Como se viu na TV!
Os guerreiros franceses na luta contra a “insegurança por
procuração” não estão sozinhos quando prometem queimar a falta
de segurança sob a forma de efígies dos povos roma e sinti. Seu
aliado mais próximo é Il Cavaliere – O Cavalheiro –, que governa a
vizinha Itália. Tanto assim que hoje há uma reportagem no New York
Times escrita por Elisabetta Povoledo, italiana, na qual o governo de
Silvio Berlusconi, de olho nos roma, aprovou um decreto em 2007
permitindo expulsar cidadãos da União Europeia após três meses
de permanência no país, caso se possa demonstrar que eles não
têm meios para se sustentar; seguiu-se outro decreto, em 2008,
conferindo às autoridades do Estado novos poderes para expulsar
cidadãos da União Europeia por motivos de segurança pública – se
você representar uma ameaça, pode, deve ser, será apanhado e
escoltado para o aeroporto mais próximo.
Para lucrar com as novíssimas e maravilhosas armas da guerra
declarada à insegurança, é preciso primeiro garantir que os odiados
ciganos se tornem, e acima de tudo sejam vistos como, uma
ameaça suprema à segurança pública, só para garantir que o verbo
dos poderes constituídos de fato se torne carne, e que as forças da
lei e da ordem não flexionem os músculos em vão. Ou, de modo
ainda mais direto, para transformar uma previsão em profecia
autorrealizada: tendo vaticinado no Bom Dia TV um incêndio na
floresta, prosseguir imediatamente aspergindo petróleo sobre as
árvores e acendendo fósforos, de modo a que, no fim do dia, sua
credibilidade e confiabilidade possam ser documentadas no Jornal
da Noite.
“Quando se constroem acampamentos autorizados pela
Prefeitura”, relata Povoledo, com frequência isso se dá na periferia
das cidades, segregados do resto da população, com condições de
vida bem abaixo do padrão. Isso permite aos governos “ignorar a
questão da integração, processo que incluiria dar aos roma
residências permanentes e acesso às escolas”. Os governos
estimulam as suspeitas em relação aos roma com base em suas
tendências nômades. Então, esses mesmos governos os forçam a
permanecer nômades a despeito de seu desejo de se estabelecer;
fazem o possível para forçar os que já o fizeram, de boa vontade e
há um bom tempo, a voltar à vida de nômades – de modo que a
rejeição original a todo o grupo étnico rotulado de “viajantes” possa
afinal ser corroborada de maneira convincente pelas estatísticas,
essas “realidades” pouco sujeitas a debate. Os roma provocam
rancor por ser mendigos impertinentes? Certo, vamos garantir que
não tenham a chance de ganhar a vida “de modo decente”. E
quanto à nossa alegoria da floresta em chamas,
os acampamentos temporários são um perigo. Semana passada, em Roma, um
garoto cigano de três anos morreu queimado quando o fogo irrompeu na cabana em
que morava com a família, num acampamento ilegal perto do aeroporto de Fiumicino.
Depois disso, o prefeito da cidade, Gianni Alemanno [outro político eleito com o
tíquete da “guerra à insegurança”], disse que este mês a cidade começaria a
desmontar duzentos acampamentos ilegais.
Num lampejo de previsão, pouco depois de ser coroada, a rainha
Vitória, jovem, sincera e franca, observou em seu diário, em 28 de
dezembro de 1836: “Sempre que ciganos pobres acampam em
algum lugar, e crimes, roubos etc. ocorrem, isso é invariavelmente
atribuído a eles, o que é chocante: e se eles sempre são vistos
como vagabundos, como podem se tornar boas pessoas?”
Marx disse que a história tende a se repetir: da primeira vez, ela é
drama, da segunda, farsa. Essa regra prevaleceu de novo no caso
das duas guerras sucessivas contra a insegurança declaradas por
Sarkozy no curso de uma década. Sobre a segunda, Alain Touraine
observou com ironia que, de forma muito distinta das multidões que
aplaudiram a declaração da primeira guerra do presidente, “ninguém
acredita que os roma ou os ciganos sejam responsáveis por nossos
infortúnios”. De fato, poucos creem, embora alguns ainda engulam a
isca e demorem a cuspi-la.
Mas não foi para debater as causas do mal ou para fazer a nação
acreditar na versão oficial que se lançou essa campanha do medo.
Touraine põe o dedo na ferida ao observar que todas as manchetes
de primeira página, todo o tumulto e toda a empolgação do público
acontecem “num ambiente distante das grandes catástrofes que
temos vivenciado”. Os efeitos da política ao estilo Sarkozy não
devem ser avaliados pelo número de pessoas convertidas a culpar
os roma, ou que continuam aderindo a esse comportamento, mas
pelo número de olhares desviados (ainda que por pouco tempo) do
que é relevante para suas vidas e expectativas – assim como da
avaliação de quanto o governo do país está se eximindo das tarefas
que, como proclama, legitimam suas prerrogativas, suas pretensões
e sua própria presença. Se avaliada à sua – própria – maneira, a
política ao estilo Sarkozy não pode ser facilmente descartada como
um fracasso total. Nem se pode considerá-la falida – do que é vívido
testemunho o número crescente de governos que correm a produzir
imitações locais e a colocá-las em operação.
É improvável, você poderia comentar, que se possam afastar
para sempre os olhares da nação. Assim, o adiamento ganho pelos
governantes não teria curta duração? Mas, desculpem-me a
pergunta, o que tem longa duração hoje? E quantos otários ainda
creem em soluções finais ou de longo prazo? Seria suficiente,
obrigado, que o adiamento durasse o bastante para permitir aos
governantes encontrar outra atração também capaz de focalizar em
si os olhares antes que estes tenham a oportunidade de se voltar
para o que de fato importa, para as coisas sobre as quais os
governantes não podem nem querem fazer nada de importante.
Há também outra baixa colateral do estilo Sarkozy de governo.
Surpreendentemente, embora nem tanto, ela é o mesmíssimo valor
que esse estilo prometia, e continua a promover e a servir: os
sentimentos de proteção e segurança, de estar protegido e seguro
em relação a um destino adverso. Os franceses podem ser agora
mais céticos ou mesmo cínicos sobre a efetividade das promessas
do governo – assim como sobre o valor das realizações
governamentais gravadas e televisionadas – do que eram no
começo da primeira guerra de Sarkozy; mas é óbvio que estão hoje
mais apavorados que nunca. Perderam muito da antiga fé na
possibilidade de melhorar um pouco sua situação. Começam a
acreditar que a insegurança chegou para ficar e possivelmente vai
se tornar a condição normal dos seres humanos; e, com toda
certeza, que os governos dos Estados não são o tipo de instrumento
a ser usado para tentar remendar esse veredicto particular da
natureza, da história ou do destino humano. Seja por ação ou por
omissão, as ações bélicas de Sarkozy araram e fertilizaram o solo
para viçosas colheitas tribais e fundamentalistas… O terreno assim
preparado é uma tentação para conquistadores aventureiros, e
poucos aspirantes à carreira política acharão fácil resistir a ele.
Esse tipo de governo também precisa de vítimas nomeadas. Nos
eventos relatados por Denis Muzet e Elisabetta Povoledo, essas
vítimas são, evidentemente, os povos roma e sinti. Mas, no tipo de
política cada vez mais à la mode, as vítimas, sejam elas nomeadas
ou “colaterais”, não são apenas peões nos jogos de outros povos;
nos jogos agora encenados, são também extras anônimos e
descartáveis, fáceis de substituir – extranumerários cuja morte ou
afastamento nenhum jogador e apenas um ou outro espectador
tenderiam a observar e a lembrar, que dirá lamentar e deplorar.
5 DE SETEMBRO DE 2010
Sobre a eternidade virtual
Um ônibus chegado de Tóquio despejou o grande grupo de jovens
numa praia em Atami, pequeno resort costeiro e um dos points de
fim de semana favoritos dos moradores da capital em busca de
aventuras eróticas – é o que se sabe pela edição de hoje do Yahoo!
News. Se os ônibus chegam de Tóquio várias vezes por dia, como
só um ganhou espaço nesse boletim on-line amplamente lido? É
que esse ônibus levava a Atami o primeiro grupo de novos
jogadores do Nintendo Love+; o ônibus era uma isca anunciando
uma longa e lucrativa primavera para os donos de restaurantes e
hotéis do lugar.
O grupo mais jovem que desceu do ônibus, ao contrário dos
habituais passageiros, não deu atenção às “moças que se divertiam
na areia”, minimamente vestidas. Agarrados às câmeras de seus
smartphones, armados com o software AR (augmented reality, ou
“realidade ampliada”), eles correram direto para os verdadeiros
objetos de seu desejo, a coisa autêntica: as namoradas virtuais,
encantadas num minúsculo código de barras colado à base de uma
escultura representando um par amoroso. O software embutido nos
smartphones dos rapazes permitia-lhes “desencantar” do código de
barras a única e absoluta garota de seus sonhos virtuais, levá-la a
passear, distraí-la, insinuar-se e ganhar seus favores simplesmente
seguindo as regras claras e sem ambiguidades apresentadas nas
instruções interativas exibidas na tela – resultado garantido ou seu
dinheiro de volta. Eles podem até passar uma noite juntos no hotel:
beijar é permitido e estimulado, embora o sexo, infelizmente, ainda
seja proibido; há limites que mesmo a tecnologia de ponta é incapaz
de ultrapassar. Mas pode-se apostar que os tecnobruxos irão
romper essa fronteira, como já ocorreu com tantas outras no
passado, na época em que for lançado o Love++ ou o Love2.
O dbtechno.com, site tecnológico sério, convencido de que a
tecnologia existe para satisfazer necessidades e desejos humanos,
mostrou-se impressionado: “Love+ é um novo game dedicado ao
homem que não consegue ter uma mulher real, e no Japão ele
ganhou imensa popularidade.” Quanto aos serviços prestados, o site
é otimista: “Para os homens por aí que não desejam ter de lidar com
uma mulher, a namorada virtual pode ser a saída.”
Outro “nicho de serviços” que almeja ser preenchido foi
identificado pelo cream-global.com: “Uma geração que cresceu com
o Tamagotchi” (infelizmente fora de moda, e portanto fora do
mercado) desenvolveu o “hábito de cuidar”, na verdade, uma
espécie de vício em cuidar (virtualmente) de pessoas (virtuais) que
estão (virtualmente) vivas – hábito que eles já não podem satisfazer
por não possuírem as tecnobugigangas adequadas para exercê-lo.
Precisam de uma nova engenhoca para praticar o hábito adquirido,
e possivelmente de uma forma ainda mais empolgante e prazerosa
(por algum tempo). Graças ao Love+, contudo, a preocupação
acabou: “Para manter a namorada, o jogador deve pressionar uma
caneta no touch-screen do DS, onde então os dois podem caminhar
de mãos dadas para a escola, trocar olhares, mensagens de texto e
até se encontrar no pátio da escola para o beijinho da tarde. Pelo
microfone embutido, o jogador até tem uma conversa doce, embora
trivial.” Observe: inserir “embora” não significa necessariamente
demonstrar arrependimento; lembre-se de que o Tamagochi não
conseguiu transformar a conversa, muito menos a conversa não
trivial, em hábito.
No site ChicagoNow.com, Jenina Nunez quer saber: “Na era do
namoro e da realidade virtual, será que ficamos tão solitários (e
desistimos do amor verdadeiro, humano) que nos dispomos a
cortejar a imagem de uma companhia perfeita?” E elabora uma
hipótese em resposta a essa pergunta: “Começo a achar que o
Love+, que parece eliminar totalmente a companhia humana dessa
equação, é o exemplo claro do ponto a que podem chegar as
pessoas para não se sentir sozinhas.” A suposição que sustenta
essa resposta – uma ideia que Jenina Nunez infelizmente não quis
explicitar e deixou de desenvolver – vai no caminho certo. Sim, a
revolução representada pelo novo game da Nintendo – e o segredo
de seu sucesso de marketing instantâneo – é a eliminação total de
uma companhia de carne e osso no jogo das relações humanas.
Embora apresentado sob a forma de bebida não alcoólica, manteiga
sem gordura ou alimento sem calorias, isso é algo feito de forma
maldosa, sub-reptícia, no estilo e maneira inadequados, primitivos,
artesanais, em sua aplicação àquilo que, para os tecnossábios e
tecnocomerciantes, é o supremo desafio e o equivalente mais
próximo de uma lata de vermes ou do covil de um leão: a esfera das
parcerias, dos laços, da amizade, do amor entre os seres humanos.
Esse Love+ é um jogo novo e ambicioso. Ao fornecer substitutos
virtuais (leia-se: desinfetados, livres de “amarras”, de efeitos
colaterais, de “consequências imprevistas” e do medo de entravar a
liberdade futura), ele mira no topo: no próprio futuro. Oferece a
eternidade para consumo instantâneo, imediato. Concede uma
forma de manter a eternidade a uma distância segura, sob controle,
e a capacidade de interrompê-la no momento em que ela deixar de
ser agradável e desejada. Oferece “amor eterno” a ser ingerido e
degustado plenamente numa curta viagem de ônibus a Atami – sem
necessidade de trazê-lo de volta. Como diz Naoyuki Sakazaki,
homem na faixa dos quarenta: “O Love+ é divertido porque a
relação continua para sempre” (grifo nosso). Ele devia saber: a
campanha do Love+ em Atami começou em 10 de julho e no final de
agosto já havia terminado.
Para esse tipo de realização, que eu saiba, houve apenas um
precedente, ainda que apócrifo e impossível de provar. Shah Jahan,
imperador Mogul, estava tão apaixonado pela terceira esposa,
Mumtaz Mahal, que quando esta morreu reuniu, contratou e pagou
os maiores arquitetos da época, e passou 21 anos supervisionando
a construção de um monumento que fizesse jus ao charme e à
beleza dela: o Taj (“coroa de edifícios”) de Mahal. Quando o último
friso foi gravado e o último ornamento polido, diz-se que Shah Jahan
inspecionou a obra-prima e teve seus anelos amorosos finalmente
satisfeitos, e a nostalgia pelo amor perdido afinal saciada.
O que estragava seu deleite, contudo, distorcendo obviamente a
harmonia e a elegância da composição suprema, era uma estranha
caixa, parecida com um caixão, colocada bem no centro. A retirada
daquela caixa deve ser vista como o toque final pleno a coroar o
amor de Jahan e Mumtaz.
11 DE SETEMBRO DE 2010
Sobre cultivar palavras
Sobre dar entrevistas, assim como outros costumes impostos de
nossa época, José Saramago tinha suas dúvidas. Em 16 de
novembro de 2008, ao completar 86 anos, um ano a mais do que eu
tenho agora, Saramago observou: “Dizem-me que as entrevistas
valeram a pena. Eu, como de costume, duvido, talvez porque já
esteja cansado de me ouvir.” Também eu… Mais de uma vez,
pressionado por entrevistadores a revelar o que eles pensavam que
não sabiam, mas seus leitores estavam ávidos por aprender, sentime humilhado por ser forçado a repetir o que “tornou-se para mim,
com o decorrer do tempo, em caldo requentado”: descobertas antes
empolgantes e impacientes no desejo de se compartilhar agora
pareciam soporíferas em sua banalidade. “Ou pior”, como Saramago
se apressou em acrescentar, “amarga-me a boca a certeza de que
umas quantas coisas sensatas que tenha dito durante a vida não
terão, no fim de contas, nenhuma importância. E por que haveriam
de tê-la?” Uma vez mais, estou familiarizado com essa dor: quando
pressionado por entrevistadores e recitando meu próprio punhado –
incomparavelmente menos denso – de pensamentos iconoclásticos,
com muita frequência só pude ver e pensar sobre ícones que
deveriam – e deles se esperava isso – se fragmentar de vergonha e
remorso atrasado, mas que em vez disso ficam me atingindo, ainda
mais disformes que em minha lembrança deles; e tão autoconfiantes
como o eram em seus anos de juventude, se é que não mais –
agora me encarando com arrogância, zombando, ridicularizando,
escarnecendo.
“Falamos pela mesma razão que transpiramos? Apenas porque
sim?”, pergunta Saramago. O suor, como sabemos, logo se evapora
ou é lavado com diligência, e, “mais tarde ou mais cedo chegará às
nuvens”. Talvez este seja, à sua própria maneira, o destino das
palavras.
E então Saramago relembra seu avô Jerônimo, que, “nas suas
últimas horas, se foi despedir das árvores que havia plantado,
abraçando-as e chorando porque sabia que não voltaria a vê-las. A
lição é boa. Abraço-me pois às palavras que escrevi, desejo-lhes
longa vida e recomeço a escrita no ponto em que tinha parado.”
Acrescenta ele: “Não há outra resposta.” Assim seja.
12 DE SETEMBRO DE 2010
Sobre a superpotência superquebrada
Ontem, os Estados Unidos celebraram / prantearam / regurgitaram
outro aniversário do 11 de Setembro.
“Os pacifistas americanos não precisam mais se preocupar com
‘as guerras por opção’”, insinuou Thomas L. Friedman alguns dias
antes. “Não estamos mais fazendo esse tipo de coisa. Hoje não
poderíamos nos dar ao luxo de invadir Granada.” A superpotência
agora está superquebrada, opina ele, e tende a se tornar – ainda
por muitos anos – superfrugal. “Os Estados Unidos estão
aprendendo uma lição muito dura: a curto prazo, você pode tomar
emprestados os recursos para a prosperidade, mas não para manter
o poder geopolítico a longo prazo.”
Isso não quer dizer que a opinião de Friedman seja
universalmente aceita. Hillary Clinton, por exemplo, foi flagrada,
apenas quatro dias atrás, tentando convencer os membros do
Conselho de Relações Exteriores que os “Estados Unidos podem e
devem ser os líderes, e de fato o são”, do mundo neste início de
século. Ora, que mais poderia ter dito a chefe da diplomacia? Outro
funcionário do governo federal, Robert Gates, encarregado da área
militar, toca um acorde diferente. Recomenda que se insira boa dose
de realismo e modéstia nas iniciativas internacionais americanas.
Ele não elabora essa ideia, contando com os leitores de Foreign
Affairs para decifrar seu significado sem pressa nem atropelo.
As nações relutam em aprender; e, quando o fazem, é sobretudo
a partir de seus erros e equívocos passados, do funeral de suas
antigas fantasias. “Enquanto o Pentágono rebatiza a Operação
Liberdade no Iraque de Operação Nova Aurora”, diz Frank Rich,
citando o professor Andrew Bacevich, de Boston, “nome que sugere
creme para a pele ou detergente líquido”, 60% dos americanos
creem – agora – que a Guerra do Iraque foi um engano, mais 10% a
condenam como algo que não vale a vida de americanos, e apenas
um em cada quatro acredita que essa guerra o tenha tornado mais
seguro em relação ao terrorismo. O custo oficial da guerra para os
americanos é hoje (no momento em que o presidente Obama pede
aos americanos que “virem a página sobre o Iraque”) estimado em
US$ 750 bilhões. Por esse dinheiro, cerca de 4.500 americanos e
mais de 100 mil iraquianos foram mortos, e pelo menos 2 milhões
de iraquianos foram forçados a se exilar, enquanto o Irã acelerou
seu programa nuclear, e “Osama bin Laden e seus fanáticos” foram
liberados “para se reagrupar no Afeganistão e no Paquistão”.
Um erro provoca outro. “A maior herança da Guerra do Iraque em
termos domésticos”, observa Rich, “foi codificar a ilusão de que os
americanos podem tudo a custo zero.” Ora, o que os americanos
aprendem agora, ainda com relutância, é que mesmo coisas
repulsivas e detestáveis pelas quais nem sequer barganhavam só
podem ser adquiridas por um preço elevado; e um dos aspectos
mais repulsivos dessas coisas repulsivas é não ter dinheiro
suficiente para comprar outra coisa – boa ou ruim, desejada ou
temida, deliciosa ou abjeta. “A sinergia cultural entre a descuidada
irresponsabilidade que praticamos no Iraque e nosso colapso
econômico no plano doméstico não poderia ficar mais exposta”,
conclui Rick.
A guerra do “lute agora e pague depois”, assim como a cegueira
quase universal diante de seus custos humanos, foi amparada e
incitada por um desprezo à realidade semelhante à crise das
hipotecas subprime, à bolha imobiliária e a outros jogos de azar
praticados por Wall Street. O cômputo real de todos esses anos de
imprevidência só está começando, mas os juros a pagar sobre o
débito federal irão atingir, pelo que se espera, US$ 516 milhões em
2014, o que supera o orçamento doméstico americano – e metade
deve ser paga a investidores estrangeiros. Ouve-se, de tempos em
tempos, a verbalização de temores do Armagedon que irá ocorrer se
os credores estrangeiros decidirem vender o débito americano.
Esses medos são atenuados, se não totalmente aplacados, por uma
aposta na prudência dos estrangeiros: a venda maciça desse débito
iria provocar uma desvalorização radical das ações das bolsas de
valores no mundo todo; assim, parece razoável – não é mesmo? –
que os credores aceitem um pagamento constante proveniente do
“serviço da dívida” – pelo menos enquanto o Tesouro americano
conseguir pagar os juros.
As outras vítimas colaterais da temerária aventura no Iraque são
a confiabilidade e a credibilidade dos dois polos do establishment
político-partidário dos Estados Unidos, da mídia noticiosa americana
e dos experts, gurus e especialistas de prestígio; todos eles – com
poucas e nobres exceções, em geral superadas e perseguidas por
uma maioria combativa e vociferante – superestimaram os portavozes belicosos da irracionalidade.
Mas há outro tipo de dano colateral que pode muito bem
assombrar (quem pode ter certeza de que não o fará?) os Estados
Unidos, juntamente com cúmplices que ainda não foram
anunciados, sejam eles dispostos, relutantes ou inadvertidos, por
um tempo cuja duração ninguém conhece. “Se é que produziu
alguma coisa, em lugar de levar a democracia e a liberdade ao estilo
americano para o Iraque”, lamenta Rich, “a dispendiosa guerra que
ali travamos tem trazido o gosto amargo da disfunção daquele país
para os Estados Unidos.” Estaria se reproduzindo a história do
“efeito helenização”, de conquistadores romanos culturalmente
absorvidos, engolidos, convertidos, assimilados e reciclados pelos
derrotados e conquistados, ainda que apenas como uma caricatura
pavorosa?
13 DE SETEMBRO DE 2010
Sobre médias
Os americanos não estão sendo honestos consigo mesmos quanto às mudanças
estruturais na economia que proporcionaram uma riqueza fabulosa à reduzida fatia
situada no topo, enquanto degradavam os padrões de vida da classe média e
esmagavam totalmente os pobres. Nem democratas nem republicanos têm uma
estratégia viável para reverter esse terrível estado de coisas.
Assim escreve Bob Herbert no New York Times de hoje:
Houve muito crescimento, mas os benefícios econômicos foram predominantemente –
e de forma injusta – para os que já estavam no topo. [Robert] Reich (em seu novo
livro intitulado Aftershock) cita o trabalho de analistas que acompanharam a crescente
parcela da renda nacional apropriada pelo centésimo da população situado no topo da
pirâmide desde a década de 1970, quando essa parcela era de 8% a 9%. Na década
de 1980, ela subiu de 10% para 14%. No final da década de 1990, era de 15% a 19%.
Em 2005, passava de 21%. Em 2007, o último ano para o qual se dispõe de dados
completos, o centésimo mais rico apropriou-se de 23% da renda total. A décima parte
do centésimo mais rico, representando apenas 13 mil domicílios, apropriou-se de mais
de 11% da renda total em 2007.
Aprender com o passado, mesmo que a partir de erros e
equívocos, não é fácil. Em particular para aqueles que os
cometeram. Exatamente um ano atrás, Alex Berenson observou no
New York Times. “Poucas mudanças em Wall Street.” Hoje ele
poderia republicar sua conclusão sem alterá-la, apenas com um
estoque de dados muito mais amplo e uma base factual bem mais
robusta. Poderia repetir, talvez com uma autoconfiança ampliada,
que “os maiores bancos se reestruturaram apenas em torno das
margens”; e que a remuneração dos banqueiros – responsáveis
pela catástrofe de dois anos atrás e ainda impunes por suas
contravenções – está de volta aos níveis anteriores ao desastre,
senão acima, com 30 mil empregados da Goldman Sachs (a
empresa salva da bancarrota pela dívida federal) ganhando, em
média, US$ 700 mil por ano.
Segundo Kian Abouhossein, analista do J.P. Morgan, oito grandes
bancos americanos e europeus pagam, em média, US$ 543 mil a
seus 141 mil empregados. O “sistema”, qualquer que seja o
significado
da
palavra
nesse
ambiente
profundamente
desregulamentado, tornou-se ainda mais arriscado.
Os investidores emprestam seu dinheiro à indústria financeira em condições
favoráveis. As instituições financeiras, por sua vez, usam esse dinheiro barato para
fazer empréstimos e negócios arriscados. Quando as apostas dão certo, os bancos
ficam com os lucros; mas se dão errado e ameaçam o sistema, os contribuintes
engolem as perdas.
Os banqueiros têm um nome para essa tática, ED: no momento
em que as apostas derem errado, “eu desapareço” (com um
simpático bônus, claro, e uma gorda indenização). Essa é a outra
face da desregulamentação do mercado de trabalho que já lançou
milhões de pessoas, e outras que as seguem a cada dia, na
pobreza desesperançada; ou, tomando de empréstimo uma
expressão de Goodman, no “deserto do desemprego”.
É um deserto para os 15 milhões de pessoas declaradas
redundantes, 3 milhões das quais já viram expirar seu segurodesemprego, e muitas mais que observam em desespero a
aproximação inexorável do mesmo destino. Em suas vidas, ao
contrário do que ocorre em Wall Street, tudo mudou, e de modo a
ficar irreconhecível. Pessoas a quem foram prometidos rendimentos
de classe média (fraudulentamente, como agora descobriram),
levadas a gastar como classe média, agora não têm (a maioria pela
primeira vez na vida) outra escolha a não ser esperar pelo bote
salva-vidas da assistência pública. Mesmo essa última esperança,
porém, se torna cada dia mais tênue, frágil e fugaz. Quarenta e
quatro Estados americanos cortaram pagamentos previdenciários a
domicílios com rendimento total de um quarto abaixo da linha oficial
da pobreza. Segundo os cálculos de Randy Abelda, da Universidade
de Massachusetts, o direito à assistência pública cessa quando uma
família de três pessoas atinge uma renda de US$ 1.383 por mês (ou
seja, cerca de US$ 15 por pessoa por dia, embora, no momento em
que escrevo, isso também possa ter diminuído).
Sua sociedade é de classes, madame, sua sociedade é de
classes, senhor – e não se esqueçam disso, a menos que desejem
que sua amnésia se cure com uma terapia de choque. Também é
uma sociedade capitalista operada pelo mercado – e é atributo
dessa sociedade pular de uma recessão/depressão a outra. Como é
de classes, ela distribui os custos da recessão e os benefícios da
recuperação de maneira desigual, usando toda oportunidade para
reforçar sua espinha dorsal: a hierarquia de classes. A profundidade
da queda e o tempo de permanência no fundo, sem perspectivas de
futuro, também se diferenciam de acordo com a classe. Tudo
depende da parte da rampa de que você caiu: se foi da parte alta,
suas chances de voltar ao topo são grandes. Mas se você caiu da
parte baixa, a volta do sol às salas da diretoria não será suficiente
para aumentar suas esperanças.
A cada rodada sucessiva de depressão econômica encontram-se
menos trabalhadores empregados do que se registravam antes de a
economia se contrair. No ano 2000, no começo da recessão anterior
à atual, 34 milhões estavam empregados; mas esse número jamais
voltou a subir acima de 30 milhões, apesar de “a economia crescer
de novo”. Não admira. Os investidores institucionais estão sedentos
por um killing – um superlucro rápido sobre o investimento –, e nada
sacia sua sede com mais rapidez e profundidade que um sólido
corte na folha de pagamentos. Desarmados e incapacitados, os
sindicatos permitiram que os empregos estáveis se transformassem
em ocupações casuais. Acredita-se que a automação seja
responsável pelo desaparecimento de cerca de 5,6 milhões de
empregos industriais na última década. Por fim, porém não menos
importante, grande número de empregos, tanto blue-collar
(empregados uniformizados) quanto white-collar, “emigrou”
recentemente – e continua emigrando – para países da Ásia e da
América Latina caracterizados por baixos salários e inexistência de
sindicatos. Nesse momento, a duração média do desemprego entre
trabalhadores redundantes americanos tem crescido duas semanas
a cada mês. Os especialistas acreditam que essa tendência irá
prosseguir.
As crises têm a reputação de ocorrer aleatoriamente, mas suas
consequências, sobretudo as de longo prazo, são gerenciadas de
acordo com a classe. A gravidade das crises pode resultar da
intensidade da desregulamentação, mas a severidade e a
pungência de seus efeitos humanos permanecem teimosamente – e
estritamente – controladas segundo as classes.
Até agora me concentrei na experiência americana. Mas
tendências bastante similares caracterizam o resto deste nosso
mundo desregulamentado. Como observa Margaret Bounting numa
advertência vigorosa dirigida a uma sessão das Nações Unidas:
Com o progresso atual, mais de 1 bilhão de pessoas em todo o mundo ainda estará
vivendo na extrema pobreza em 2015; metade das crianças da Índia sofre de
desnutrição; na África Subsaariana, a cada sete dias uma criança morre antes de
completar cinco anos. … Três quartos das pessoas mais pobres do mundo vivem
agora em países de renda média, como Índia ou Nigéria.
Enquanto a “ONU prefere falar da desigualdade global, em vez
de desigualdade nos países em desenvolvimento, a Índia, apesar de
todo o seu festejado crescimento econômico, mal tocou no
percentual dos que passam fome nos últimos vinte anos.” A maioria
dos integrantes e administradores da ONU não usaria a palavra
“equidade”, muito menos “igualdade”, pensando no varejo.
Continuamos, de modo rotineiro, entediante e diligente, a
computar médias estatísticas. Algumas delas são animadoras,
outras simplesmente deliciosas, chegando a justificar certo grau de
autocongratulação. Determinados números são bem menos
comoventes, enquanto outros sinalizam um fracasso abominável e
inspiram perguntas para as quais não se encontram (nem se
buscam de forma honesta) boas respostas. Mas, ao contrário das
médias, as estatísticas das vítimas colaterais do jogo dos mercados,
da competição aberta a todos e do “pegue o que puder” – os pobres
e famintos deixados fora do impulso de enriquecimento individual e
superatingidos pelos seus resultados – são rotineira, invariável,
obstinada e monotonamente pessimistas e tristes. E a cada golpe
sucessivo de depressão econômica seu estado se acentua. Como
insinua Margaret Bounting, não se trata de uma forma diferente de
manipular recursos de assistência cronicamente insuficientes. Em
lugar disso, trata-se de uma questão política, um desafio e uma
tarefa profundamente políticos.
14 DE SETEMBRO DE 2010
Sobre multitarefas
Desde a aurora da era consumista, a principal preocupação dos
especialistas em marketing foi a brevidade do tempo que os
potenciais clientes poderiam devotar ao consumo; o tempo tinha
seus limites naturais e não podia ser estendido além de 24 horas
por dia, sete dias por semana. Por sua vez, a inflexibilidade do
tempo parecia impor limites naturais à expansão do mercado de
consumo.
Como ampliar o tamanho do dia ou da semana estava fora de
questão, a maneira óbvia de enfrentar essa preocupação era tentar
aumentar o volume de consumo por unidade de tempo – treinando
as pessoas a consumir mais de uma mercadoria por dia. Comer e
beber foram os candidatos mais evidentes para ocupar o topo das
atividades de consumo: você pode ingerir fast-food enquanto dirige
um carro, quando está na fila para comprar um ingresso de teatro ou
assistindo a um filme ou jogo de futebol. Isso foi feito com facilidade:
diferentes partes dos órgãos do corpo e diferentes sentidos
estimulantes do prazer se engajaram no consumo de diferentes
bens, nenhum deles exigindo concentração plena e total; podiam ser
empregados ao mesmo tempo, reduzindo minimamente a
intensidade do prazer (o deleite sensual total talvez fosse um pouco
menor que a soma das delícias que cada um dos bens consumidos
poderia oferecer em seu próprio e distinto tempo – mas não havia
tempo suficiente para consumi-los). Mas, e se os bens em oferta
atraíssem os mesmos sentidos e exigissem o mesmo aspecto de
nossa atenção? Você pode ter música para jantar, praticar corrida,
dormir ou acordar – mas será que pode ter música para ouvir
música?
Bem, parece que afinal os mercados de consumo encontraram
sua pedra filosofal. O tempo pode ser estendido além de seus
limites “naturais”. Contudo, pelo menos até agora, só um dos muitos
mercados foi capaz de ganhar com essa descoberta/invenção: o das
engenhocas e bugigangas eletrônicas. Como revelou recente
pesquisa orientada pela Ofcom, as “multitarefas” hoje ocupam 20%
do total de tempo gasto com mídia. Isso significa que um cidadão
britânico médio consegue comprimir oito horas e 48 minutos de
tempo de mídia em pouco mais de sete horas de consumo nessa
área.
Sem dúvida consideráveis diferenças se ocultam por trás dessa
média. O consumo simultâneo de mídias é rotina para um terço das
pessoas entre 16 e 24 anos, mas para apenas um oitavo daquelas
que estão acima dessa faixa etária. A geração mais jovem é muito
mais habilidosa que os mais velhos no que se refere a abarrotar-se
de atividades de consumo de mídia: sabem como espremer 9,5
horas de consumo de mídia em pouco mais de 6,5 horas de “tempo
real” – e se adestram nessa perícia rotineiramente, dia após dia.
Como sugerem os dados coletados pela Ofcom, esses hábitos de
“multitarefas” só decolaram de vez com a introdução dos
smartphones. O impacto das últimas novidades ainda não foi
avaliado, mas a previsão geral é de que venham a intensificar a
tendência das multitarefas. Os dados indicam que hoje essa
aceleração cresce nos grupos mais velhos da população: pela
primeira vez, mais de metade da população acima de 55 anos
instalou uma conexão de banda larga cujo principal benefício é
precisamente sua agilidade em termos de multitarefas. Ver TV
enquanto se usa um laptop ou smartphone (e, em hipótese, também
um iPad) é agora hábito compartilhado por todas as faixas etárias.
É como Krishnan Guru-Murthy – jornalista do Canal 4, um
assumido viciado em mídia – descreve sua própria rotina diária:
“Num dia de trabalho, passo a maior parte das horas de vigília na
companhia de algum dispositivo de mídia e posso facilmente
perceber como as pessoas tiram do dia mais ‘horas de mídia’ que as
horas reais.” A partir das 6h30min, Guru-Murthy se prepara para o
dia de trabalho na companhia da Breakfast TV, da Radio 4 e de sites
de notícias em seu computador, enquanto “digito num iPhone ou
Blackberry para acessar meu Twitter”. Ele leva seus headphones
para a academia de ginástica e, sobre a esteira, vê “um pouco de
TV”. Na mesa do escritório, tem dois computadores sempre ligados:
um como espaço de trabalho, outro para acompanhar o noticiário de
TV e tuitar. De volta para casa, Guru-Murthy verifica seu iPhone em
busca das últimas reações a seus programas enviadas pelo Twitter.
Só às 20h45min ele tem (não necessariamente todo dia) “mais ou
menos uma hora sem mídia”. Mas, “se meu filho de cinco anos não
desligou o iPad, eu o utilizo para verificar o que os jornais vão
estampar na primeira página antes de encostar a cabeça no
travesseiro”.
Em minha juventude, viviam me aconselhando: “Aprendeu rápido,
esqueceu logo.” Mas quem falava era uma sabedoria diferente: a
sabedoria de uma época que tinha o “longo prazo” na mais alta
estima, quando as pessoas situadas no topo marcavam sua posição
cercando-se de coisas duráveis, deixando as transitórias para quem
estava na base da pirâmide; um tempo em que a capacidade de
herdar, manter, guardar, preservar, transmitir coisas e simplesmente
cuidar delas valia muito mais que a facilidade (lamentável,
vergonhosa e deplorável) de jogá-las fora.
Mas esse não é o tipo de sabedoria que muitos de nós
aprovaríamos hoje. O que antes era mérito agora se transformou em
vício. A arte de surfar tirou da arte de se aprofundar o título de
número 1 na hierarquia das habilidades úteis e desejáveis. Se
esquecer logo é a consequência de aprender rápido, longa vida ao
aprendizado rápido (curto, temporário)! Afinal, se o que você precisa
produzir é um comentário sobre os eventos de amanhã, a memória
dos eventos de anteontem será de pouco valor. E já que a
capacidade de memória, ao contrário da capacidade dos servidores
na computação, não pode ser ampliada, essa memória é capaz de
restringir sua capacidade de absorver e acelerar a assimilação
recente.
As multitarefas são, portanto, duplamente bem-vindas: não
apenas aceleram o aprendizado como o tornam redundante.
Quando uma série de fragmentos desconexos de informação atinge
ao mesmo tempo seus diversos órgãos dos sentidos, as chances
são de que nenhum deles penetre tão profundamente que não
possa logo ser erradicado – e sem dúvida nenhum deles vai
sobreviver à sua utilidade.
As multitarefas são ainda mais bem-vindas quando você não está
se expondo àqueles aplicativos que transportam informações para
buscar conhecimento, não importa quão breve seja a utilidade que
elas tenham para você, mas para dar ao material agora transportado
uma oportunidade de agradá-lo e diverti-lo. A perspectiva do
esquecimento instantâneo não é, portanto, nem mal-recebida nem
bem-vinda. É pura e simplesmente irrelevante. A antiga advertência
“Aprendeu rápido, esqueceu logo” não seria levada a sério nem
ridicularizada. É provável que fosse recebida com incompreensão.
19 DE SETEMBRO DE 2010
Sobre cegos guiando impotentes
Houellebecq… Autor de A possibilidade de uma ilha, a primeira
grande e até agora inigualada distopia da era líquida,
desregulamentada, individualizada, obcecada pelo consumo…
Os autores das maiores distopias de outrora, como Zamyatin,
Orwell ou Aldous Huxley, descreveram suas visões dos horrores que
assombram os habitantes do mundo sólido moderno: um mundo de
produtores e soldados estritamente regulados e maníacos pela
ordem. Esperavam que essas perspectivas chocassem seus
companheiros de viagem rumo ao desconhecido, sacudindo-os do
torpor de ovelhas marchando com humildade para o abatedouro:
será esse o nosso destino, avisavam eles – a menos que vocês se
revoltem. Zamyatin, Orwell e Huxley, tal como Houellebecq, eram
filhos de seu tempo. Assim, em contraste com Houellebecq,
apresentavam-se intencionalmente como alfaiates especializados
em trajes sob medida: acreditavam em encomendar o futuro à
ordem, desprezando como enorme incongruência a ideia de um
futuro que se fizesse por si mesmo. Medidas erradas, modelos
disformes e/ou malfeitos, alfaiates bêbados ou corruptos os
assustavam; não tinham medo, contudo, de que as alfaiatarias
pudessem falir, perder as encomendas ou ficar defasadas – e de
fato não previam o advento de um mundo sem alfaiates.
Houellebecq, porém, escreve a partir das vísceras de um mundo
exatamente assim, sem alfaiates. O futuro nesse mundo é
autoproduzido: um futuro do tipo “faça você mesmo” que nenhum
viciado nessa modalidade consegue, deseja ou poderia controlar.
Uma vez colocados em sua órbita própria, que jamais atravessa
nenhuma outra, os contemporâneos de Houellebecq precisam tanto
de despachantes e condutores quanto os planetas e estrelas de
projetistas de estradas e monitores de tráfego. São perfeitamente
capazes por si mesmos de encontrar a estrada que leva ao
abatedouro. E o fazem – como fizeram os dois principais
protagonistas da história, esperando (em vão, infelizmente, em
vão…) encontrar-se no caminho. O abatedouro na distopia de
Houellebecq também é do tipo “faça você mesmo”.
Numa entrevista concedida a Susannah Hunnewell, Houellebecq
não lança mão de rodeios – e, tal como fizeram seus antecessores,
como fazemos nós e fizeram nossos ancestrais, transforma num
projeto de sua escolha condições que não foram escolhidas por ele:
“O que penso, fundamentalmente, é que não se pode fazer coisa
alguma no que se refere a grandes mudanças sociais.” Seguindo a
mesma linha de pensamento, algumas frases depois, ele assinala
que, mesmo lamentando o que hoje ocorre no mundo, não tem
“interesse em fazer o relógio voltar atrás porque não acredito que
isso possa ser feito” (grifo nosso). Se os antecessores de
Houellebecq estavam preocupados com o que os agentes no posto
de comando das “grandes mudanças sociais” poderiam fazer para
reprimir a irritante aleatoriedade do comportamento individual, a
preocupação dele é onde essa aleatoriedade vai levar na ausência
de postos de comando e de agentes dispostos a guarnecê-los tendo
em mente uma “grande mudança social”. Não é o excesso de
controle e a coerção (sua companheira leal e inseparável) que
preocupa Houellebecq; sua escassez é que torna qualquer
preocupação ineficaz e supérflua. Ele fala de uma aeronave sem
piloto na cabine.
“Não acredito muito na influência da política sobre a história. …
Também não acredito que a psicologia individual tenha qualquer
efeito sobre movimentos sociais”, conclui Houellebecq. Em outras
palavras, a pergunta “O que deve ser feito?” é invalidada e
esvaziada pela enfática resposta à pergunta “Quem vai fazê-lo?”:
“Ninguém.” Os únicos agentes à vista são “fatores tecnológicos e,
algumas vezes, nem sempre, religiosos”.
Mas a tecnologia é conhecida pela cegueira; ela reverte a
sequência humana de ações dotadas de um propósito (a própria
sequência que distingue o agente de todos os outros corpos em
movimento) e se ela se move é porque pode fazer isso (ou porque
não pode ficar parada), não porque deseja chegar; enquanto Deus,
além da impenetrabilidade que deslumbra e cega aqueles que o
veem, representa a insuficiência dos seres humanos e sua
inadequação à tarefa (ou seja, a incapacidade humana de enfrentar
as disputas e agir de modo eficaz de acordo com suas intenções).
Os impotentes são guiados pelos cegos; sendo impotentes, não têm
escolha. Não, pelo menos, se forem abandonados para depender
dos próprios recursos, desagradável e abominavelmente
inadequados; não sem um piloto de olhos bem abertos – um piloto
que olhe e veja. Fatores “tecnológicos” e “religiosos” comportam-se
de maneira tão misteriosa quanto a natureza: não se pode saber
com certeza onde vão descer até que aterrissem em algum lugar;
mas isso, como diria Houellebecq, só até que não seja mais
possível fazer voltar o relógio.
Houellebecq, que deve ser louvado tanto pela autoconsciência
quanto pela franqueza, faz um registro da futilidade das esperanças,
para o caso de alguém teimoso e ingênuo o bastante para continuar
a alimentá-las. Descrever as coisas, insiste ele, não leva mais a
mudá-las, e prever o que vai acontecer não leva mais a evitar que
aconteça. Finalmente atingiu-se um ponto sem retorno? Está
confirmado o veredicto de Fukuyama sobre o fim da história, mesmo
que seus fundamentos tenham sido refutados e ridicularizados?
Estou questionando o veredicto de Houellebecq ao mesmo tempo
que concordo em quase tudo com o inventário que ele faz de seus
fundamentos. Quase – já que o inventário contém a verdade,
apenas a verdade, mas não toda a verdade. Algo muitíssimo
importante ficou fora de sua avaliação: como a debilidade dos
políticos e da psicologia individual não é o único fator responsável
pela triste perspectiva como se apresenta (corretamente!), o ponto a
que fomos trazidos até agora não é um ponto sem retorno.
A desesperança e o derrotismo de Houellebecq derivam de uma
crise de agência em duas fronteiras. Na camada superior, no plano
do Estado-nação, a agência foi levada a uma situação
perigosamente próxima da impotência, e isso porque o poder, antes
preso num apertado abraço com a política do Estado, agora se
evapora num “espaço de fluxos” global, extraterritorial, muito além
do alcance de uma política de Estado territorial.
As instituições do Estado hoje arcam com a pesada tarefa de
inventar e fornecer soluções locais para problemas produzidos no
plano global; em função de uma carência de poder, trata-se de um
peso que o Estado não pode carregar e de uma tarefa que é
incapaz de realizar com as forças que lhe restam e dentro do
reduzido domínio das opções que lhe são viáveis. A reação
desesperada, embora generalizada, a essa antinomia é a tendência
a abandonar uma a uma as numerosas funções que o Estado
moderno deveria realizar, e de fato realizava, ainda que com
sucesso apenas duvidoso – enquanto sustenta sua legitimidade na
promessa de continuar a desempenhá-las.
As funções sucessivamente abandonadas ou perdidas são
relegadas à camada inferior, à esfera da “política de vida”, a área
em que os indivíduos são nomeados para a função dúbia de se
tornar suas próprias autoridades legislativas, executivas e judiciárias
reunidas numa só. Agora espera-se dos “indivíduos por decreto” que
imaginem e tentem pôr em prática, com seus próprios recursos e
habilidades, soluções individuais para problemas gerados no nível
social (esse é, em suma, o significado da “individualização” atual –
um processo em que o aprofundamento da dependência é
disfarçado e ganha o nome de progresso da autonomia). Como na
camada superior, também na inferior as tarefas são confrontadas
com dificuldade pelos recursos disponíveis para realizá-las. Daí os
sentimentos de desespero, de impotência: a experiência do tipo
plâncton de ter sido condenado a priori, irreparável e
irreversivelmente à derrota num confronto muito desigual contra
marés de uma intensidade irresistível.
Enquanto persistir, a lacuna crescente entre a grandiosidade das
pressões e a debilidade das defesas tende a alimentar e estimular
sentimentos de impotência. Esse hiato, contudo, não deve
continuar: só parece intransponível quando se extrapola o futuro
como “mais do mesmo” em relação às tendências atuais – e a
crença de que já se atingiu o ponto sem retorno acrescenta
credibilidade a essa extrapolação sem necessariamente torná-la
correta. Muitas vezes as distopias se transformam em profecias que
refutam a si mesmas, como pelo menos sugere o destino das visões
de Orwell e Zamyatin.
21 DE SETEMBRO DE 2010
Sobre ciganos e a democracia
Maria Serena Natale, do Corriere della Sera, sugeriu-me que uma
possível interpretação das expulsões do povo roma é vê-las como
outro exemplo do velho hábito das sociedades de expelir elementos
que resistam à assimilação e à classificação. Concordei com sua
hipótese. A decisão das autoridades italianas de expurgar os roma,
como assinalei, é um dos inumeráveis casos daquilo que Norbert
Elias descreveu, meio século atrás, como “estabelecidos versus
outsiders” – um conflito perpetuamente efervescente e quase
universal. Os “estabelecidos”: pessoas instaladas numa área da
cidade que subitamente veem um número crescente de rostos
estranhos na rua, pessoas vestidas de forma esquisita, com um
comportamento peculiar, falando de modo incompreensível – em
suma, de “outsiders”, que “não são daqui”. Os “outsiders”: estranhos
– nem amigos nem inimigos, e portanto imprevisíveis, provocando
ansiedade e medo.
Estranhos representam perigo, pois – ao contrário dos amigos ou
inimigos, de quem sabemos o que esperar, como reagir a suas
manobras – é impossível dizer o que os estranhos vão fazer, como
responderão às nossas ações ou como devemos nos comportar em
sua presença para evitar problemas. Não havendo como saber de
que forma decodificar sua conduta e suas intenções, nós nos
sentimos… ignorantes; e, não tendo certeza do que fazer para evitar
possíveis perigos (não se pode nem saber quais são eles, e
tendemos a imaginar o pior), também nos sentimos impotentes. E
sentir-se ignorante e impotente é uma condição indigna, humilhante!
É como se a própria presença de estranhos ofendesse e negasse
nossa dignidade. Não admira que surja um desejo de que
desapareçam, apenas para se recuperar a tranquilidade e o
equilíbrio mental.
Os políticos estão ávidos por satisfazer esses anseios. Estão
prontos a lucrar com a intranquilidade, o desconforto e a ansiedade
dos “estabelecidos” diante dos “outsiders”, mostrando que as
autoridades de fato se interessam pela segurança de seus súditos e
estão preparadas para protegê-los do perigo. Os roma são em
particular vulneráveis a esse tratamento. São os mais comuns entre
os “suspeitos habituais” – a própria encarnação da “estranheza”…
São nômades vagando entre sedentários. Sem vínculos com lugar
algum, estão livres para se movimentar; vão e voltam, não gostam
de viver em residência fixa. Portanto, ao contrário dos membros de
outras diásporas, quase não passam tempo suficiente num lugar
para “se enraizar” na população local, ajustar-se à rotina do lugar,
tornar-se, por assim dizer, “parte indispensável da paisagem
familiar” e se dissolver nos arredores, tendo negociado um modus
vivendi mutuamente aceitável.
Por toda parte, os roma são “estranhos perpétuos”; servem como
símbolos da desordem, tornam-se “estranhos emblemáticos”,
“estranhos encarnados”, a mais completa personificação da ameaça
que os “estranhos” representam. Como visitam muitas comunidades
em suas contínuas viagens, carregam consigo, aonde forem, as
insígnias do estigma e os relatos de suas malfeitorias, sejam elas
genuínas ou putativas. A lista das acusações contra eles aumenta
com o tempo, sem jamais ser submetida a uma verificação ou
avaliação ponderada. São culpados até provar sua inocência, mas
não têm oportunidade de prová-la.
Outro fator os desfavorece: em contraste com outras minorias
migrantes ou diaspóricas, os roma são gritante e importunamente
visíveis em qualquer espaço onde parem, ainda que por um breve
instante; a um só tempo, são invisíveis (de fato, ausentes) nos locais
em que as opiniões são sedimentadas, intercambiadas, debatidas e
transformadas em “senso comum”. É muito raro que estejam
representados em governos nacionais ou locais, e carecem de uma
elite letrada, capaz de escrever e formar opinião para articular e
promover seu ponto de vista. São visíveis, mas não vistos. Audíveis,
mas não ouvidos.
Maria Natale perguntou-me se, não obstante, há diferenças entre
os países da Europa Ocidental e Oriental no que se refere à forma
como os roma (ciganos, gypsies) são tratados. Respondi que o
sentimento de ser discriminado é obviamente mais doloroso nos
países mais pobres que nos mais ricos; o pão a ser fatiado é menor
nos primeiros, onde há menos possibilidade de se levar uma vida
decente. Sendo ou tentando ser tão racionais quanto nós, os
migrantes que se põem a viajar em busca de pão e manteiga (e há
um número enorme deles pelo planeta, de todos os tons de pele,
credos religiosos, línguas, costumes e formas de subsistência
preferidas) prefeririam ir para os países mais abastados, e não para
os mais pobres. A esse respeito, nada há de peculiar quanto às
opções expressas pelos “ciganos”: “mudar-se para o oeste”. Em
terras com padrão de vida mais elevado, as perspectivas de uma
existência satisfatória são mais amplas, e as oportunidades, mais
numerosas; até os pobres locais são mais ricos! Ser pobre num país
rico pode parecer uma espécie de paraíso quando comparado a
estar afundado na miséria e desesperançado num país pobre.
Substituindo a interferência programática anterior – pelo chamado
“Estado de bem-estar social”, pela incerteza e a insegurança
existenciais produzidas pelo mercado –, e, ao contrário,
proclamando a remoção de toda e qualquer restrição às atividades
orientadas para o lucro como tarefa principal de um poder político
que realmente cuide do bem-estar de seus súditos, os Estados
contemporâneos são obrigados a buscar outras variedades, não
econômicas, de vulnerabilidade e incerteza para sustentar sua
legitimidade. Esse tipo de legitimação alternativa foi agora localizado
no tema da proteção individual: nos temores já existentes ou ainda
pressagiados, abertos ou ocultos, genuínos ou putativos, de
ameaças a corpos, posses e hábitats humanos, quer provenham de
pandemias e dietas, quer de estilos de vida insalubres, ou de
atividades criminosas, da conduta antissocial da “subclasse”, de
imigrantes estrangeiros, ou, mais recentemente, do terrorismo
global.
Em contraste com a insegurança existencial emanada das
incertezas dos mercados – real, profusa e óbvia demais para que se
possam confortar seus portadores –, a insegurança alternativa que
agora serve de base para a restauração do monopólio perdido do
Estado sobre o papel de guardião do povo deve ser alimentada de
forma artificial, ou pelo menos altamente dramatizada, para inspirar
um volume suficiente de temores; e também para sobrepujar,
obscurecer e relegar a uma posição secundária a insegurança
economicamente gerada – o tipo de insegurança em relação à qual
a administração do Estado quase nada pode fazer, e sobre a qual
sua disposição é não fazer coisa alguma. Ao contrário das ameaças
geradas pelo mercado à subsistência e ao bem-estar, a gravidade e
a extensão dos perigos para a segurança pessoal devem ser
apresentadas nos tons mais sombrios, a fim de que a não
materialização das ameaças divulgadas (na verdade, a ocorrência
de qualquer desastre menos horroroso do que se previa) possa ser
aplaudida como grande vitória da razão governamental sobre um
destino hostil; e como resultado da vigilância, do cuidado e da boa
disposição louváveis dos órgãos do Estado.
“Nessas condições, culpar os imigrantes” – os estranhos, os
recém-chegados e em particular os estranhos recém-chegados –
por todos os aspectos do mal-estar social (e acima de tudo pelo
enjoativo e paralisante sentimento de Unsicherheit, incertezza,
précarité, incerteza) é uma tentadora fonte alternativa de legitimação
de um governo. Assim, está se tornando depressa um hábito global.
Um estado de alerta permanente: proclama-se que há perigos à
espreita em cada esquina, vazando e gotejando de acampamentos
terroristas sob o disfarce de escolas e congregações religiosas
islâmicas; nos subúrbios habitados por imigrantes; nas ruas
perigosas infestadas de membros da subclasse, em “distritos
problemáticos”, todos alimentando endemicamente a violência nas
áreas interditadas das grandes cidades; há pedófilos e outros
delinquentes sexuais à solta, mendigos inoportunos, gangues
juvenis sedentas de sangue, vagabundos e maníacos… São muitas
as razões para ter medo, e é impossível calcular sua dimensão e
volume verdadeiros a partir de uma experiência estritamente
pessoal. E acrescenta-se outra razão para ter medo, talvez mais
poderosa: não se sabe quando e onde as palavras de advertência
irão se materializar.
Minha entrevistadora estava preocupada com as perspectivas da
democracia sob essas circunstâncias. Lembrei, em relação a isso, o
artigo de Roger Cohen publicado no New York Times de 20 de
setembro de 2010. Ele falava do “declínio da democracia”, e
explicava: “Não que as nações com sistemas democráticos tenham
encolhido em número, mas a democracia perdeu seu esplendor. É
uma ideia sem brilho.” Há muitas razões para isso: a sangrenta
desordem provocada pelas guerras travadas no Iraque e no
Afeganistão em nome da democracia contribui para abalar sua
reputação. Em particular quando a ela se justapõe o regime chinês,
estável, eminentemente pacífico e antimilitarista, embora ditatorial,
responsável por um crescimento econômico de 10% ao ano.
Cohen chegou a ponto de sugerir que a “dicotomia entre
liberdade e tirania de repente parece algo tão século XX”. Para os
países libertados da tirania comunista, a democracia ao estilo
ocidental prometia prosperidade, crescimento e paz; em todas essas
áreas ela ofereceu bem menos do que se esperava. Entre as
antigas democracias, a Bélgica se paralisou num conflito claramente
incapaz de ser resolvido; em Israel, a política está saturada de
corrupção; na Itália, a democracia se transformou em sua própria
paródia. O Congresso americano viu-se imobilizado por um impasse
interpartidário, e a única ação que é capaz de endossar ou
promover é a inação.
Eu poderia facilmente acrescentar outros motivos para a
democracia perder o fascínio antes inconteste. Por exemplo, o fato
de os Estados Unidos serem líderes mundiais da democracia não
impediu que eles também se tornassem líderes ou cúmplices
mundiais de desrespeito aos direitos humanos, em particular no
ressurgimento da tortura no século XXI. Ou que democracias de
todas as partes tenham fracassado para desencorajar suas
populações a se recolher nos abrigos privados, voltar as costas ao
espaço público e ao dever cidadão de cuidar do bem comum. Ou
que as democracias falharam gritantemente em proteger suas
minorias, o direito de elas serem respeitadas e terem uma vida
digna. Ou que também falharam no dever de reforçar a disposição
de seus súditos a se engajar no diálogo ininterrupto, na
compreensão mútua, na cooperação e na solidariedade – esses
atributos definidores, sine qua non, da vida democrática. A
democracia não pode se sustentar na promessa do enriquecimento
individual. Sua maior e singular distinção é o serviço prestado à
liberdade de todos.
Tudo isso é preocupante. Em particular numa época como a
nossa, de interdependência global, que nos confronta com um
desafio sem precedentes: a necessidade de erguer os princípios
sacrossantos da coexistência democrática do plano dos Estadosnação – para onde nossos ancestrais os elevaram e no qual os
deixaram para nós – até o nível da humanidade planetária.
22 DE SETEMBRO DE 2010
Sobre a erosão da confiança e o
florescimento da arrogância
Já por algum tempo, a confiança e os tempos difíceis que ela parece
atravessar têm estado no foco da atenção dos farmacêuticos
políticos e sociais, preocupados com a obstinação das múltiplas
moléstias que afligem os pacientes, desesperados diante da enorme
resistência da doença ao tratamento e também da evidente
ineficácia dos remédios encontrados nas prateleiras das drogarias.
A confiança, como a maior parte desses farmacêuticos hoje crê, é o
ingrediente cuja ausência carrega uma grande responsabilidade,
talvez a maior, pela futilidade dos regimes terapêuticos antes
eficazes – ainda recomendados e amplamente considerados
perfeitos, a despeito do rápido acúmulo de evidências em contrário.
É na ressurreição da confiança que os curandeiros políticos sociais
agora investem suas esperanças; e é o suprimento irritantemente
escasso dessa matéria que eles costumam culpar pelo fracasso
contínuo dos remédios sociais próprios da tradição.
A ideia de que é pela confiança que se sustenta a ordem
econômica, política e social, e de que em sua ausência essa ordem
desaba, tornou-se agora a doxa da ciência política – o alicerce do
atual discurso da ciência política, já estabelecido, enrijecido e
raramente revisitado. Quando se dirigiu aos participantes dos
Rencontres de Pétrarque, realizados em Montpellier em 19 de julho
de 2010, Dominique Schnapper reconheceu como axioma e
apresentou como fato indiscutível, a dispensar provas teóricas ou
empíricas, que as práticas da vida econômica, assim como a
legitimidade da política (“e portanto, a ordem social”), “não podem
ser mantidas sem um mínimo de confiança entre as pessoas e sem
que estas confiem nas instituições”.
Tendo dito isso, o diagnóstico da semiologia sobre as atuais
dificuldades da vida econômica, política e social parecia a
Schnapper inevitável: na “sociedade da provocação generalizada”
em que vivemos, “os argumentos da tradição ou da legalidade não
são mais considerados válidos”. Não confiamos nessas explicações,
prosseguiu Schnapper – pelo menos, não como nossos ancestrais.
E se não confiamos, então não admira que nossos arranjos
econômicos, políticos e sociais estejam se fragmentando, rangendo,
se afrouxando, fragilizando e ameaçando desmoronar. Uma
pergunta, porém, deixou de ser feita: no emaranhado de fatores
multifários que produziu essa situação, qual é a carruagem e quais
são os cavalos?
Em entrevista concedida ao Le Monde e publicada em 21 de
setembro, Pierre Rosanvallon indica a substância da crença e da
confiança nos agentes como a “capacidade de formular hipóteses
sobre seu comportamento futuro”. Ele sugere que, na política ao
estilo antigo (nem tão antigo, com certeza – no máximo com meio
século), organizada em torno de grandes partidos, cada qual
armado de ideias firmemente arraigadas e programas bastante
inflexíveis, essa capacidade era relativamente simples de praticar e
ainda mais fácil de inferir. Podemos portanto presumir que, na
política atual, transformada como foi num jogo de personalidades
que vêm e vão, e cujas idas e vindas são apenas frouxamente
relacionadas (se é que o são) a ideias e programas ainda
existentes, está fora de questão qualquer certeza sobre o
comportamento futuro dos poderes constituídos. Em contraste com
os grandes partidos de outrora, estabelecidos e em grande medida
impessoais, as “personalidades políticas” tremeluzentes e
bruxuleantes não podem ser objeto de confiança, já que seus
movimentos futuros são tão arriscados como são incertos os papéis
que desempenham, e uma vez que é impossível prever de modo
fidedigno o elenco do próximo ato do drama político.
Loïc Blondieu, por outro lado, sugere (em Le nouvel esprit de la
démocratie) que a responsabilidade pelo novo ceticismo do público
em relação às atividades nos corredores do poder cabe ao caráter
cada vez mais escandalosamente ilusório da participação dos
cidadãos no processo político, reduzido como está, cada vez mais,
às eleições periódicas de seus “representantes” – cuja
“representatividade” escapa de suas mãos no momento em que são
eleitos e tomam posse.
Porém, como apontou Bastien François (no Le Monde de 22 de
julho), pouco se pode fazer para consertar esse estado de coisas
enquanto a ideia de responsabilidade dos governantes eleitos não
for transferida da área da política para a da criminalidade. As
personalidades agora assumem o papel das ideias no banco dos
réus. Para todos os fins e propósitos práticos, a menos que os
ocupantes de cargos públicos sejam pegos em flagrante aceitando
propinas, fraudando relatórios financeiros, se engajando em
negócios ilícitos ou aventuras sexuais escandalosas, eles são livres
para rasgar seus programas eleitorais sem qualquer punição.
De todo modo, esses programas se tornam cada vez mais
adornos que quase ninguém estuda e nem considera dignos de
estudo; breves declarações, como “Confiem em mim” ou “Nós
podemos”, sem necessidade de programas elaborados, funcionam
muito bem, obrigado. A “vontade do povo”, de modo muito
semelhante ao interesse dos viciados no programa Big Brother, está
relacionada e ajustada ao charme e ao glamour, aos delitos e
pecados das pessoas da casa, à sua ascensão e, principalmente, à
sua queda, suas entradas em cena e, mais ainda, suas demissões
desonrosas e expulsões brutais; mas dificilmente se correlacionam
às atividades que se passam nos corredores da casa, nem ao que lá
é produzido, descartado como lixo, e não um produto útil, como
coisas ou eventos eminentemente esquecíveis e sem consequência,
exceto pelos fãs dos shows televisivos de perguntas e respostas.
Algo alinhado à opinião apócrifa expressa por um agricultor irlandês:
“Aquele porco não pesa tanto quanto eu pensava; mas na verdade
eu não pensei que pesasse.”
Essa é, permitam-me observar, uma transformação que já se
devia
esperar,
dados
os
graduais
mas
incansáveis
desmantelamento e colapso das estruturas sociais e comunais, e
sua substituição (ou melhor, quase substituição), também gradual e
incansável, por “redes” frágeis, caleidoscópicas e de curta duração –
organizadas ad hoc, e também ad hoc desmembradas com pouca
ou nenhuma advertência, privadas de todo potencial executivo, ou
não exigindo poderes dessa natureza, para começo de conversa.
Como relata Hervé de Tellier, sobre uma dessas redes, na edição de
hoje do Le Monde: “Fantástico, tenho um Facebook móvel: centenas
de amigos que não conheço me conectam para me contar coisas
que não me interessam, as quais fazem em suas vidas, a respeito
das quais nada sei.” Alain Minc (em Une histoire politique des
intellectuels, recém-lançado) batizou a política das redes de @gora.
A força da certeza adquirida reflete o grau de credibilidade e
confiança que a autoridade da qual ela foi obtida possui, ou que lhe
foi imputado. A primeira não pode ser maior que a segunda. Quando
nos oferecem uma informação esperando que acreditemos nela,
quase de imediato perguntamos: “Quem lhe disse isso?”, ou “Onde
você leu (ou ouviu) isso?” Raramente, contudo, podemos contar
com respostas que se aproximem do que consideraríamos
satisfatório. Uma autoridade confiável é mais necessária hoje do
que talvez em qualquer outra época – mas, em total oposição a
essa necessidade, nossa era não favorece sua chegada, e muito
menos que ela venha a se estabelecer e ficar.
Com o direito de fazer escolhas e a obrigação de assumir
responsabilidade pelas consequências firmemente plantados sobre
nossos próprios ombros, podemos nos autogovernar como nunca
antes, mas também precisamos, mais que nunca, de pessoas beminformadas em que se possa acreditar; e confiar que elas desejam
nos ajudar e reforçar nossa habilidade e capacidade de
autogoverno. Afinal, como já previu Alexis de Tocqueville com uma
intuição estranhamente profética, mesmo o maior dos filósofos
tende hoje a acreditar em milhões de coisas baseado apenas na
confiança em pessoas proclamadas por outras ou por si mesmas os
especialistas; e até os maiores filósofos são incapazes de verificar
em primeira mão a veracidade da maioria das informações de que
precisam e às quais devem recorrer sempre que pensam ou agem.
Mais de cem anos se passaram desde que Georg Simmel
concluiu que os produtos da vitalidade e da criatividade do espírito
humano já ultrapassaram o ponto em que o espírito que os invocou
e os trouxe à luz ainda era capaz de reabsorvê-los e digeri-los.
Desde que Tocqueville pôs no papel a observação mencionada, o
volume de informações “disponíveis” para consumo tem crescido
exponencialmente. Nunca antes tantos agentes livres foram
amarrados e mantidos presos por tantas correntes. Nunca antes
tantos movimentos de agentes autopropelidos resultaram de
tamanhas pressões e influências externas que eles não podem
controlar e às quais lhes é impossível resistir.
Distinguir os movimentos certos dos errados tornou-se um jogo.
Dificilmente poderia ser de outra maneira, se o próprio volume de
informações considerado necessário para se realizar um movimento
racional (ou seja, baseado no conhecimento pleno da circunstância)
impede sua absorção. Como a maior parte do conhecimento só está
disponível para ser processada como algo de segunda mão (ou de
terceira), mesmo aquela parcela acessível à absorção e adequada à
assimilação tem uma qualidade bem abaixo do indiscutível. O
espectro da mentira assombra cada verdade que circula on-line ou
off-line; sobre cada recomendação confiável paira o espectro da
fraude. E lentamente, embora de forma constante, nos resignamos e
habituamos à insinceridade e à traição, sejam elas grandes,
pequenas ou médias.
Mentiras e engodos não parecem mais escandalosos e
ultrajantes; mentirosos e trapaceiros não são mais banidos da vida
pública por consentimento comum, só pelo poder de abalar nossa
confiança; ser “econômico com a verdade” e “seletivo com os fatos”,
esticar e “massagear” as notícias ou produzir falsas reportagens são
a substância da política atual. Poucas sobrancelhas irão se erguer
hoje diante da notícia de que outro “estadista” foi apanhado em
mentira. Podemos zombar e rir dos manipuladores de opinião, mas
a política sem eles se tornou tão inimaginável para nós quanto um
circo sem palhaços para nossos antepassados. As rotinas de mentir,
negar a mentira e depois desdizê-la só agregam valor ao
entretenimento dos políticos – virtude nada desprezível num mundo
obcecado e viciado em infoentretenimento.
Meu querido Saramago, no dia 18 de setembro de 2008, deu em
seu blog uma opinião sobre George W. Bush como caubói que
herdou o mundo e o confundiu com um rebanho. “Ele sabe que
mente, sabe que nós sabemos que está a mentir, mas, pertencendo
ao tipo comportamental de mentiroso compulsivo, continuará a
mentir.” E ele não está só! “A sociedade humana atual está
contaminada de mentira como da pior das contaminações morais. …
A mentira circula impunemente por toda a parte, tornou-se já numa
espécie de outra verdade.” Permitam-me relembrar que George
Orwell nos avisou da chegada dessa “outra verdade” mais de meio
século atrás, batizando-a de “novilíngua”.
Tal como as coisas estão neste momento, o apelo dos políticos
por mais confiança parece tão suspeito e traiçoeiro como o canto
das sereias. Por que confiaríamos neles? Não seria mais razoável, e
em última análise mais honesto, seguir o exemplo de Ulisses (cada
vez mais pessoas já o fazem, tapando os ouvidos às vozes vindas
do alto)? Ou, melhor ainda, considerando-se que as sereias são tão
incapazes de alterar seu tom quanto os leopardos de mudar suas
manchas, não seria legítimo tentar redesenhar o palco público a fim
de que ele fique fora do alcance das sereias?
Admito: é mais fácil dizer que fazer. Mas creio que vale a pena
tentar. E precisa ser tentado. Urgentemente. Apenas para recuperar
nossa confiança na possibilidade da verdade…
29 DE SETEMBRO DE 2010
Sobre o direito de ter raiva
“A raiva está varrendo os Estados Unidos”, observou Paul Krugman
no New York Times de 19 de setembro. Não seria esperável que
varresse? Afinal, como ele nos lembra, “a pobreza, em especial a
pobreza aguda, aumentou com o declínio econômico; milhões de
pessoas perderam suas residências. Jovens não encontram
empregos; cinquentões demitidos temem nunca mais voltar a
trabalhar.” Após algumas décadas sonhando dia e noite o sonho
americano sobre as pistas e calçadas da terra do “fim da história”, e
nas praças da Disneylândia do futuro “tal como visto na TV”… um
despertar súbito, brutal. A manhã depois da orgia.
Para muitas pessoas, há diversas razões para ter raiva. Depois
do doce sonho da certeza do “Sim! Nós podemos!”, uma amarga
mistura de confusão e impotência. “A incerteza está difundida”,
como observa Roger Cohen no New York Times de 27 de setembro.
“A salvação de Wall Street por parte do governo, combinada às
dificuldades profundas enfrentadas pela classe média para
sobreviver com rendimentos estagnados ou declinantes, tem
aguçado os ressentimentos.” Quem se surpreendeu quando Velma
Hart, até pouco tempo atrás militante dedicada e defensora de
Obama, gritou “Estou cansada de defendê-lo!”? Como observa
Cohen, o grito de desespero de Hart “fez vibrar uma corda sensível,
em âmbito nacional, já que tantas pessoas sentem o mesmo”.
Ao contrário do que se poderia esperar, contudo, não é isso que
Krugman tem em mente ao observar que “a raiva está varrendo os
Estados Unidos”, nem Cohen quando insinua que a profunda
insatisfação dos americanos “desceu ao nível do tribalismo” –
político, econômico e social. Milhões de novos sem-teto, assim
como os jovens e pessoas de meia-idade sem perspectiva de
emprego, até agora têm se mantido em silêncio, e o amplo eco do
grito de desespero de Velma Hart parece dever-se mais ao imenso e
mudo deserto no qual reverberou do que a um crescendo de vozes
de apoio. Krugman revela suas preocupações no título de seu texto
opinativo, “Os ricos furiosos”. Foi o bilionário gerente de fundos
Stephen Schwarzman que comparou Obama a Hitler invadindo a
Polônia quando o presidente americano privou os gerentes de
fundos de investimento do direito de usar uma forma de evasão
fiscal. E foi a revista Forbes, a trombeta dos mais ricos entre os
ricos, que proclamou ser a política fiscal de Obama de origem
“anticolonialista”, anunciando que dali em diante os Estados Unidos
estariam ameaçados de ser governados “segundo os sonhos de um
membro da tribo luo,c da década de 1950”.
Foi Dorothy Rabinowitz, do conselho editorial do Wall Street
Journal, que, em 9 de junho, acusou Obama de extrair suas ideias
dos salões da esquerda estrangeira – num artigo cujo título dizia
tudo: “O forasteiro na Casa Branca”. Em 21 de setembro, outro
barão das finanças, Mort Zuckerman, denunciou os esforços
federais para desacelerar o rápido avanço das retomadas de
residências invocando o ato de fé ortodoxo dos super-ricos – “devese permitir que os mercados busquem seu próprio equilíbrio”; quatro
dias antes, a voz estridente e majestosa do Cato Institute, em outro
ataque frontal à política fiscal forasteira (antiamericana?) da Casa
Branca, reafirmou o mito – de vida longa, mas de há muito
desacreditado – de que, a longo prazo, os cortes de impostos no
alto da pirâmide acabarão beneficiando quem está na base. Tudo
isso contra a paisagem de um canto desafinado, entoado
diariamente de uma costa à outra, relatando o destino trágico de
pessoas que ganham entre US$ 400 mil e US$ 500 mil por ano.
Estas agora se veem confrontadas por uma volta ao nível de
impostos anterior aos cortes feitos por Bush (perdendo assim cerca
de US$ 700 bilhões para um Tesouro nacional enfraquecido até os
ossos); e sem dúvida elas irão à bancarrota (e privarão de sossego
os menos afortunados) se tentarem pagar os impostos residenciais
sobre suas casas exclusivas e sobre as mensalidades das escolas
privadas de elite em que as pessoas de seu tipo passam a
juventude dourada.
“O espetáculo proporcionado por americanos de alta renda, as
pessoas com mais sorte no mundo, chafurdando na
autocomiseração e no farisaísmo”, conclui Krugman, “seria
engraçado não fosse por uma coisa: eles podem resolver seu
problema.” Eles podem, e há muitas chances de que o consigam,
porque “são diferentes de você e de mim: eles têm mais influência”.
A influência é a diferença que faz a diferença. É graças a essa
influência que, quando convocam a nação “a estar pronta a fazer
sacrifícios”, estão querendo dizer, impunemente e sem medo da
indignação popular, que “o sacrifício é para as pessoas de baixo”.
Eles têm o direito de ter raiva; têm a permissão de divulgar sua raiva
nos alto-falantes instalados nas praças públicas, em frente aos
gabinetes dos poderes supremos – sem medo de serem acusados
de egoísmo, falta de solidariedade, anarquia, antiamericanismo, ou
de possuir a mentalidade de um membro da tribo luo.
a) Todos os textos de Saramago aqui citados estão em O caderno de Saramago, seu blog
na página da Fundação José Saramago, disponível em: josesaramago.org. No Brasil, parte
deles encontra-se publicada em O caderno (Companhia das Letras, 2009). (N.T.)
b) Roma e sinti, dois subgrupos dos genericamente chamados de ciganos na Europa.
(N.T.)
c) Tribo do Quênia à qual pertencia a família do presidente americano Barack Obama. Em
1952 houve uma rebelião anticolonialista no país liderada pela sociedade secreta Kikuiu,
ou Mau Mau. (N.T.)
• Outubro de 2010 •
7 DE OUTUBRO DE 2010
Sobre o direito de ficar mais rico
É difícil que o crédito nos Estados Unidos já tenha sido mais barato.
O Federal Reserve (Fed, o Banco Central americano) empresta
dinheiro aos bancos por uma insignificância, com taxas de juros
próximas de zero. Mas o que se mostra um incentivo aos ricos para
que tomem empréstimos a fim de ficar mais ricos também é um
obstáculo aos mais pobres e aos não tão ricos que desejam
ardentemente pegar dinheiro emprestado para não afundar na
pobreza. Uma vez mais, a operação “Salvar a economia do país”
resulta em permitir que os ricos fiquem mais ricos. Quanto aos
pobres, quem se preocupa com eles?
Como Graham Bowley nos informa no New York Times de 3 de
outubro, as maiores companhias americanas – como Microsoft,
Johnson & Johnson, PepsiCo ou IBM – é que começaram a fazer
empréstimos em profusão. Não perderiam essa oportunidade de
acumular dinheiro a custo quase zero até chegar o momento em
que a economia “volte ao normal”, ou seja, quando os investimentos
começarem mais uma vez a dar lucros justos e adequados. Como
observa Richard J. Lane, analista da Microsoft, para uma empresa,
“tomar novos empréstimos no mercado da dívida pública é agora
mais barato que trazer de volta o próprio dinheiro aplicado no
estrangeiro”. E assim, os grandes moneyusers que se podem dar a
esse luxo pegam dinheiro emprestado para guardar; quando o
colocam de volta em circulação, é com a ideia de recomprar seus
próprios estoques ou financiar novas (e geralmente hostis) fusões e
aquisições. De modo prudente, não se apressam em construir
fábricas ou empregar mais mão de obra. Até agora, as grandes
corporações acumularam o impressionante tesouro de US$ 1,6
trilhão para se sentar sobre ele. Como se lamenta Michael Gapen,
economista da Barclay Capital, é mais provável que pretendam usar
esse dinheiro barato a fim de obter tecnologia para substituir a mão
de obra e cortar empregos.
Resumindo uma longa história, o tão alardeado “efeito
gotejamento” (trickle-down effect) mais uma vez deixou de se
concretizar. Até agora, parece que se produz o efeito oposto. Como
aponta Bowley, empréstimos a juros baixos “têm de fato prejudicado
muitos americanos, em especial os aposentados, cujas rendas
provenientes de suas economias vêm caindo de maneira
substancial” – tal como as taxas de juro, quase a zero. Mas os
pensionistas obrigados a dar uma profunda mordida nas economias
acumuladas durante toda uma vida são apenas uma categoria
dentre aquelas que sofrem as consequências mais sombrias e
dolorosas do colapso do crédito, assim como da atual moda de
restabelecê-lo. A maioria dos quase 15 milhões de desempregados
nos Estados Unidos, se não todos, e o incontável número de adultos
e crianças a quem eles em tese deveriam sustentar estão em outra
categoria. Outra, ainda, é constituída de pequenas empresas, já que
o crédito barato se recusa veementemente a “gotejar” para esse
setor. Para essas categorias, tomar empréstimos ainda é tarefa
assustadora, exigindo um árduo esforço e pouca chance de
sucesso. Muitos estão diante da perspectiva de falência; a maioria
não pode sonhar em se expandir e criar empregos – o que joga
mais sal na ferida dos já desempregados ou subempregados. Como
uma varinha mágica, todas as medidas tomadas em nome de
“salvar a economia” revelaram-se destinadas a enriquecer os ricos e
empobrecer os pobres.
Enquanto escrevo estas palavras, a iniciativa governamental,
recebida com maior resistência e enfrentamento por parte do
Congresso americano, é o fim do corte de impostos (criado por
George W. Bush) para os super-ricos (a quantia em disputa é de
cerca de US$ 700 bilhões). Um dos investidores de maior sucesso
do mundo, muitas vezes chamado de “o lendário investidor Warren
Buffett”, consistentemente classificado entre as pessoas mais ricas
do mundo (de acordo com sua biografia na Wikipédia, a segunda
pessoa mais rica do planeta em 2009, hoje a terceira), teria
anunciado: “Há uma luta de classes, sem dúvida. Mas é a minha
classe, a dos ricos, quem luta, e nós estamos ganhando.”
Como tem se mostrado correta a visão desse investidor…
13 DE OUTUBRO DE 2010
Sobre muitas culturas e um disfarce
A diferença cultural é o que separa você daqueles que se
comportam de forma diversa; ou pelo menos essa definição ou
explicação (sobretudo aceita de maneira tácita e axiomática) é um
dos pilares mais inquebrantáveis tanto da doxa atual das ciências
sociais quanto do senso abominavelmente não científico, pois que é
senso comum. As pessoas de lá se conduzem de forma diferente
das de cá? Elas tendem, estatisticamente, a ter um destino distinto
destas? Em ambos os casos, a cultura é a causa – e portanto a
explicação. E também a razão.
O adjetivo “cultural”, por definição, aplica-se a padrões de
comportamento, hábitos ou atitudes que poderiam ser diferentes
caso as pessoas que os praticam fizessem outras escolhas. São
atributos “flexíveis” do homo eligens, o “agente da escolha”. Podem
ser adotados ou renegados à vontade (ainda que,
reconhecidamente, probabilidades poderosas possam conspirar
contra isso). E assim, em última instância, é o agente que as adota
ou rejeita quem tem a responsabilidade por sua presença ou
ausência.
Quando eu lecionava, um quarto de século atrás, na Memorial
University of Newfoundlands, li no Globe and Mail, o principal jornal
formador de opinião do Canadá, que, segundo as então recentes
pesquisas, a mortalidade entre pessoas diagnosticadas com câncer
estava relacionada de forma íntima à renda: entre os ricos, o câncer
causava menos mortes que entre os pobres – e se o câncer
descoberto entre os canadenses mais ricos acabasse em morte,
levava um tempo médio maior do que no caso de seus compatriotas
menos afortunados. Os repórteres, com a ajuda de pesquisadores
especializados, explicavam as estatísticas assinalando que os
pobres fumavam mais que os ricos (ou seja, que as pessoas mais
educadas e portanto mais prudentes e racionais); mas não havia
menção a fatores menos fáceis de se livrar que o hábito de fumar –
tais como, por exemplo, a subnutrição crônica e condições de vida
inferiores, ou simplesmente a falta do dinheiro que uma terapia
longa decerto exige.
Em outras palavras, a “cultura dos pobres”, ou seja, os preceitos
culturais escolhidos pelos pobres, é culpada de matá-los com mais
frequência e rapidez quando eles são vitimados pelo câncer. Essa
explicação, pelo que posso avaliar, foi um dos primeiros sinais da
iminente era do “culturalismo”, em que os diferentes destinos de
categorias distintas de seres humanos tendem a ser explicados,
como regra e quase de modo automático, pelas dessemelhanças
em termos das escolhas (preferências, prioridades) que essas
categorias diversas tendem a fazer; enquanto isso, a possibilidade
de que os “dados estivessem viciados” (de que os conjuntos de
opções que confrontam as diferentes categorias, e entre os quais
elas estão realisticamente aptas a escolher, pudessem ter sido
alterados muito antes de surgir a questão da escolha individual)
poucas vezes era invocada, se é que chegava a sê-lo, e menos
ainda levada em conta de forma séria.
Uma semana atrás, em texto publicado no Le Monde (“Miséria do
culturalismo”), Didier e Eric Fassin relembraram os casos de
envenenamento por chumbo descobertos entre crianças francesas,
americanas e britânicas há alguns anos. Epidemiologistas da França
correram a anunciar que os casos dessa doença grave e com
frequência terminal, eram em particular numerosos entre famílias da
África Subsaariana – e logo somaram dois mais dois: na cultura do
Sahel, as crianças muitas vezes recolhem e chupam pedaços do
reboco solto das paredes. Ao mesmo tempo, porém, as vítimas
infantis do envenenamento por chumbo nos Estados Unidos
estavam sobretudo em famílias afro-americanas não originárias do
Sahel, e de qualquer modo estabelecidas em sua nova terra por
muitas gerações. Na Grã-Bretanha, em comparação, as crianças
mais afetadas pela moléstia eram de famílias que tinham chegado
da Índia e do Paquistão. É evidente que as semelhanças na
incidência da doença dificilmente poderiam ser atribuídas a
similaridades importadas no aprendizado cultural. Os fatores
comuns aos três grupos eram de ordem social, não cultural: as três
categorias de imigrantes recentes ou antigos viviam em distritos
urbanos empobrecidos e moravam em favelas dilapidadas,
destruídas pelo tempo, esquecidas por Deus, onde inalavam todo
dia a poeira da pintura das paredes ou bebiam água conduzida por
canos de chumbo que já haviam ultrapassado em muito a data de
validade.
De qualquer modo, a tendência a colocar o rótulo “culturalista” em
problemas sociais preocupantes que estejam no foco das atenções
do público tem ganhado força desde que os casos de
envenenamento por chumbo desapareceram das primeiras páginas
e das manchetes dos jornais. Hoje, o exemplo mais evidente – já
que mais frequente e mais de “senso comum” – é a interpretação
“culturalista” da correlação estatística entre alta taxa de delinquência
juvenil, comportamento antissocial e desempenho escolar inferior,
de um lado, e áreas urbanas com grandes populações de
imigrantes, de outro.
Esquecido da consagrada advertência de Hume (post hoc non est
propter hoc – preceder não é causar), Hugues Lagrange (autor de
Le déni des cultures) confunde uma sequência temporal com uma
conexão causal. Lagrange acusa os negros vindos do Sahel de
“trazer para o nosso universo [urbano] amplas faixas de costumes
distantes, muitas vezes rurais e muito retrógrados”. Enquanto isso,
Tribalat castiga (alguns) colegas cientistas sociais “por se subordinar
ao antirracismo”, quando aparentemente preferem permanecer
ignorantes em relação às diferenças culturais e por tender a culpar
as estruturas sociais por delitos determinados pela cultura; em
outras palavras, pelo mascaramento deliberado do fato
desagradável de que existe uma incompatibilidade inevitável entre
“nossa” cultura e a “deles”.
Pelo menos, nessa versão, o “multiculturalismo”, e de forma mais
genérica o “culturalismo”, ao enfatizar a provisão de uma base
intelectual (com mais precisão, de um verniz de relações públicas)
para a prática multiculturalista, é em si mesmo um exercício de
mascaramento. O que ele tenta encobrir e afastar do debate público
são as realidades cruas da discriminação e da destituição social.
14 DE OUTUBRO DE 2010
Sobre “Não digam que não foram
avisados”
Isso precisa ser registrado antes que as manchetes de amanhã e de
depois de amanhã façam aquilo que sua função principal (embora
latente, mais que manifesta) impõe que façam: antes que apaguem
a mensagem da memória humana… O que estou dizendo que exige
ser registrado e salvo da extinção é o editorial de hoje do New York
Times, com o título eloquente de “A próxima bolha”.
Ele nos informa que comprar ações das “economias emergentes”
é a última moda e paixão de Wall Street. Só este ano, Wall Street
vai gastar nelas US$ 825 bilhões (um aumento de 42% em relação
ao ano passado), enquanto o gasto com a compra da dívida das
economias emergentes vai triplicar, alcançando US$ 272 bilhões –
todo esse dinheiro poupado graças à recente relutância de Wall
Street em investir nos devedores americanos, não mais solventes.
Em outras palavras, como é de se esperar do capital – seguindo a
familiar estratégia de um parasita que busca com ansiedade um
novo organismo hospedeiro depois de matar o antigo –, uma nova
terra virgem foi descoberta pelos intrépidos batedores de Wall
Street: uma terra aparentemente inexplorada ou subexplorada,
indômita, prometendo lucros rápidos e elevados, armazenados com
rapidez antes que trabalhadores muito mal pagos se tornem
cabeças-duras e exijam participar da orgia consumista em que seus
correlatos americanos ou europeus se acostumaram a chafurdar, e
na qual pretendem continuar chafurdando enquanto for possível.
O autor do editorial observa que, não obstante os benefícios
iniciais para os nativos, investimentos externos maciços
elevam o valor de sua moeda, fortalecendo as importações e reduzindo as
exportações, além de promover a rápida expansão do crédito – que pode causar
inflação, inflar bolhas de ativos e geralmente deixar uma pilha de empréstimos podres.
Ao primeiro sinal de problemas, esse dinheiro mete o rabo entre as pernas, fazendo
os países afundar numa crise.
Então o autor lembra aos leitores os padrões que sem dúvida irão
se repetir, como tendem a se reproduzir monotonamente na vida de
todos os parasitas: a Crise Tequila no México, em 1994; a crise
asiática em 1997; a catástrofe russa de 1998, a debacle brasileira
de 1999, ou o colapso argentino em 2002. E ainda poderíamos
acrescentar o amargo despertar recente da Grécia, da Irlanda e da
Lituânia.
O autor não chegou a ponto de questionar a “sabedoria
econômica” do atual frenesi de Wall Street: “Ainda assim, não é hora
de pânico. Os países em desenvolvimento estão relativamente bem
em termos de saúde econômica, enquanto as taxas de juros nos
países ricos tendem a permanecer baixas durante anos.” Em outras
palavras, os lucros tendem a fluir sem cessar para os bolsos e
contas bancárias dos acionistas ainda por algum tempo. O que o
preocupa, e deveria preocupar os leitores, é a possibilidade de que
outro choque – replicando os recentes problemas na Irlanda ou na
Grécia, por exemplo – venha a desmascarar os órgãos destinados a
deter o capitalismo antes que ele faça secar, se consumir e definhar
as pastagens que o alimentam e sustentam, por incapacidade de
realizar seu trabalho; em especial, sua inabilidade para (ou
relutância em) começar a fazer esse trabalho a sério antes que seja
tarde.
Não estariam as garantias de que “não é hora de pânico” entre as
principais causas dessa inabilidade cum relutância, rotineiramente
descobertas a posteriori, só para ser, de forma igualmente rotineira,
prontamente esquecidas? Quantas terras virgens precisam ser
forçadas à catástrofe para que se quebre essa rotina? Ou será que
o capitalismo, assim como as políticas a seu serviço, significa a
própria impossibilidade de aprender?
17 DE OUTUBRO DE 2010
Sobre os dilemas de se acreditar
Os detratores da religião, duvidando da conveniência de seus usos
humanos e do valor de seu impacto sobre a vida dos homens,
buscam despir as crenças religiosas de sua autoridade assinalando
que – em contraste com o conhecimento secular oferecido por
“especialistas” – elas são aceitas em função da fé, não das
evidências. O pressuposto explícito invocado por esse argumento é
que o conhecimento baseado em evidências é mais confiável que o
pautado (“apenas”) em confiança na autoridade de seus
fornecedores; mas a pressuposição tácita, embora decisiva, é que a
credibilidade e a autenticidade de uma proposição dependem do
que possa passar por evidência e, em última instância, por “como as
coisas realmente são”; por sua vez, isso se traduz na questão de
quem é o porta-voz legítimo da verdade e quem é apenas um falso
pretendente.
Os Evangelhos, afinal, ou, nesse sentido, o Velho Testamento,
estão repletos de “provas empíricas” de suas mensagens. Jesus, tal
como Moisés, convencia as testemunhas de que tinha acesso ao
verdadeiro conhecimento e portanto de que era digno e merecedor
de confiança por demonstrar sua extraordinária habilidade de fazer
coisas que transcendiam a capacidade de seus adversários e
caluniadores: como observaria Tertuliano um pouco depois, devia-se
acreditar na história dos feitos milagrosos de Jesus por essa razão –
por “serem absurdos” (estranhos e inacreditáveis). Podemos
presumir com segurança que as pessoas às quais a história dessas
demonstrações foi relatada por outras que afirmavam tê-las
presenciado estavam totalmente preparadas para isso, ávidas de
acreditar no que ouviam e confiar nos mensageiros. Tal como nós,
nascidos e criados na era da ciência e da tecnologia, estamos
preparados para acreditar no que ouvimos dos cientistas e a confiar
neles, os mensageiros da ciência.
Ludwik Fleck, o formidável filósofo da ciência e da cognição,
assinalou que a teoria precede a visão; uma pessoa não iniciada
(não treinada nem doutrinada) a quem se pedisse para observar ao
microscópio iria olhar sem ver. Seus olhos enxergariam um
aglomerado de pontos coloridos, desordenado e sem sentido, e eles
só ganhariam forma e significado quando colocados nos locais
preconcebidos de uma matriz teórica. Essa matriz já precisa estar
no lugar e ter adquirido o status de axioma inquestionável – de fato,
nem sequer é percebido. Isso só pode acontecer como produto de
“pensamentos coletivos”, que se distinguem por seu próprio “estilo
de pensamento” (definido por Fleck como “percepção direta, com
assimilação mental e objetiva correspondente do que assim foi
percebido”), sustentados e sempre reproduzidos na comunicação
mútua e permanente: “Uma comunidade de pessoas que troca
ideias ou mantém uma interação intelectual.” Como comentou
Wojciech Sady, autor de um artigo intitulado “Ludmik Fleck:
pensamentos coletivos e estilos de pensamento”, de 2001, tais
comunidade são formadas por “círculos esotéricos de especialistas,
relativamente pequenos, e círculos exotéricos de professores
escolares, muito maiores”:
O treinamento que apresenta alguém a um estilo de pensamento é de caráter
dogmático. Os estudantes ganham competência na aplicação de alguns princípios,
mas sua atitude crítica em relação a esses princípios está fora de questão. Se não
aceitam o conjunto de crenças comuns a todos os membros de determinado coletivo
de pensamento, e se não dominam o mesmo conjunto de habilidades, não são
admitidos na comunidade.
E acrescenta:
Isso não deve ser entendido como um conjunto de restrições impostas pela
sociedade, mas como algo que torna possíveis os atos cognitivos. A palavra
“conhecimento” só é significativa em relação a um pensamento coletivo. E se por
algum motivo alguém formular ideias que estejam além dos limites do que é
socialmente aceito em determinada época, essa pessoa continuará a ser ignorada ou
incompreendida.
As pessoas que falam pela ciência moderna e advogam sua
superioridade metodológica sobre as crenças religiosas encobrem o
fato de que, em última instância, o conhecimento transmitido pelos
cientistas também é aceito com fé e confiança. Os que consentem
em suas conclusões poucas vezes têm a oportunidade ou mesmo a
vontade de submeter suas crenças ao procedimento de verificação
que a ciência afirma ser sua marca distintiva e base de sua
superioridade. O que é apresentado como “episteme” – o
conhecimento sistematicamente testado –, em última instância, é
aceito e empregado da mesma forma que a “doxa” tão ridicularizada
e desprezada – o conhecimento com que os leigos (ou seja, as
pessoas de fora dos “círculos esotéricos de especialistas” e dos
“círculos exotéricos dos professores de escola”) pensam, mas sobre
o qual não pensam; como especialistas e professores treinados e
adestrados, acatam a adequação de seu procedimento cognitivo de
uma forma que, do ponto de vista qualitativo, não se distingue da
doxa.
O caráter “óbvio” e “autoevidente” das descobertas científicas é
obtido mediante uma longa série de atos de fé coletivamente
reiterados e reafirmados. Ao levar Galileu ao tribunal, os promotores
eclesiásticos não agiram com inconveniência ao questionar sua
perseverança de que os borrões que via ao pressionar o olho contra
o telescópio significavam manchas no sol. Eles apenas seguiam –
bem antes de sua descoberta por Ludwik Fleck no funcionamento
da ciência moderna, e do registro no texto de sua autoria intitulado
“Gênese e desenvolvimento de um fato científico” – o padrão quase
universal de “tenacidade dos sistemas de opinião e da harmonia das
ilusões”. Na versão de Fleck, esse padrão consiste em tornar
impensável qualquer coisa que contradiga o sistema, ao mesmo
tempo ocultando da vista tudo que não se ajuste a ele; ou – quando
as “anormalidades” forçam passagem para o campo de visão –
explicá-las de uma forma que não se choque com a integridade do
sistema.
A verdadeira substância da moderna campanha de
“secularização” foi uma luta de poder; e o objeto dessa luta, sua
aposta e seu prêmio cobiçado, foi o direito de selecionar, entre um
conjunto de fórmulas competindo pela legitimação, um procedimento
habilitado a reivindicar o valor de verdade para os resultados,
desqualificando na mesma medida as reivindicações de todos os
outros competidores. Os conflitos entre episteme e doxa, ou entre
conhecimento empírico e conhecimento revelado, ou mesmo entre
conhecimento e fé, encobriam o embate de poder entre a Igreja
estabelecida e a academia. Outra forma de dizê-lo é afirmar que o
processo de “secularização” foi realizado pela redistribuição do raro
recurso da confiança pública, vista por ambos os lados da principal
linha de frente como objeto de um jogo de soma zero.
Até aqui, vimos os dois contendores empregarem suas diferentes
armas numa guerra travada com dois propósitos idênticos; eles
disputam o mesmo troféu, o direito de falar com autoridade – em
última instância, ou pelo menos de preferência, com uma autoridade
exclusiva, indivisível e não compartilhada. Do lado religioso da linha
de frente, o jogo de que os dois contendores participam ganhou o
nome de monoteísmo (do lado da ciência, não se cunhou um nome
– ferramenta de distinção necessária para separar certos objetos de
uma pletora de outros; até então a ciência não tem sido tão
desdenhosa quanto é descuidada e indiferente em relação à
possibilidade de haver uma alternativa a ela mesma).
A intolerância a priori da ciência a toda e qualquer pretensão
alternativa de ser aquilo que fala com autoridade é uma extensão
secular do monoteísmo; um monoteísmo sem Deus. Tanto
inspirados quanto movidos pelo espírito de Jerusalém, os dois
contendores concordam com a indiscutível necessidade de
controlar, refrear, fiscalizar e suprimir o alegre e descuidado
desregramento de Atenas, que deixou a verdade aos cuidados das
excentricidades da ágora.
20 DE OUTUBRO DE 2010
Sobre Cervantes, pai das ciências
humanas
Segue-se o texto de meu discurso de aceitação do Prêmio Príncipe
de Astúrias, em cerimônia realizada em Oviedo:
Sua alteza real, senhor presidente da Fundação Príncipe de
Astúrias, senhoras e senhores.
Há muitas razões para me sentir imensamente grato pela
distinção que os senhores me concedem, mas talvez a mais
importante seja o fato de terem classificado meu trabalho como
pertinente às ciências da humanidade e como um esforço relevante
para a comunicação humana. Toda minha vida tentei fazer
sociologia da maneira como dois professores de Varsóvia, Stanislaw
Ossowski e Julian Hochfeld, me ensinaram sessenta anos atrás. E o
que eles ensinaram foi tratar a sociologia como uma disciplina
humana, cujo propósito único, nobre e grandioso é possibilitar e
facilitar a compreensão e o diálogo constante entre os seres
humanos.
Isso que me leva a outro motivo crucial de minha alegria e
gratidão: a distinção concedida a meu trabalho vem da Espanha, a
terra de Miguel de Cervantes Saavedra, não apenas o autor do
maior romance jamais escrito como também, e por meio dele, o pai
fundador das ciências humanas. Cervantes foi o primeiro a realizar
aquilo que todos nós da área das ciências humanas tentamos fazer,
com êxito apenas duvidoso e com nossas habilidades limitadas.
Como disse Milan Kundera, outro romancista: Cervantes fez com
que Dom Quixote rompesse as cortinas remendadas de mitos,
máscaras, estereótipos, preconceitos e pré-interpretações, cortinas
que envolvem estritamente o mundo que habitamos e que lutamos
para compreender – mas tendemos a lutar em vão enquanto essas
cortinas não forem erguidas ou rasgadas. Dom Quixote não era um
conquistador – ele é que foi conquistado. Mas, em sua derrota,
como mostrou Cervantes, ele demonstrou que “tudo que podemos
fazer diante dessa inelutável derrota chamada vida é tentar
compreendê-la”. Essa foi a grande e memorável descoberta de
Miguel de Cervantes; uma vez feita, jamais se pode esquecê-la.
Todos nós da área das ciências humanas seguimos a trilha que
essa descoberta revelou. É graças a Cervantes que estamos aqui.
Rasgar a cortina, compreender a vida… Que significa isso? Nós,
seres humanos, preferiríamos habitar um mundo ordeiro, limpo e
transparente, em que bem e mal, beleza e feiura, verdade e mentira
fossem nitidamente separados entre si e jamais se misturassem, de
modo a que pudéssemos ter certeza de como as coisas são, para
onde vão e como proceder; sonhamos com um mundo onde
avaliações e decisões possam ser feitas sem o trabalho árduo da
compreensão. É desse nosso sonho que nascem as ideologias –
essas densas cortinas que impedem o olhar de ver. Foi a essa
inclinação debilitante que Étienne de la Boétie deu o nome de
“servidão voluntária”. E foi o caminho para fora e para longe dessa
servidão que Cervantes indicou a fim de que nós seguíssemos
apresentando o mundo em toda a sua realidade nua,
desconfortável, mas liberadora: a realidade da multiplicidade de
significados e da irreparável ausência de verdades absolutas. É num
mundo assim, em que a única certeza é a certeza da incerteza, que,
sempre e a cada vez de modo inconcluso, tendemos a buscar
compreender a nós mesmos e compreender-nos mutuamente, nos
comunicarmos e, portanto, viver com todos os outros e para cada
um deles.
É nessa tarefa que as ciências humanas tentam ajudar os outros
homens; ou pelo menos é o que deveriam tentar fazer, se queremos
permanecer fiéis ao legado de Miguel de Cervantes Saavedra. E é
por isso que sou imensamente grato, sua alteza e senhor
presidente, por qualificarem meu trabalho como uma contribuição às
ciências humanas e à comunicação entre os homens.
30 DE OUTUBRO DE 2010
Sobre mais uma guerra de atrito, 2010
EC?
Os jornais de hoje trazem outra rodada de notícias espantosas,
horríveis e chocantes. Duas mulheres iemenitas de nomes
desconhecidos colocaram no correio duas variedades novíssimas
de armas “altamente sofisticadas”, desta vez tão habilmente
escondidas numa impressora e num cartucho que nenhum dos
sofisticados aparelhos de raios X instalados nos aeroportos do
mundo, grandes ou não, poderia identificá-las. (As pessoas que
enviaram o press release não disseram como, apesar de tudo isso,
as mulheres foram descobertas e neutralizadas; restou para nós, na
extremidade receptora do canal de comunicação, presumir que,
para frustrar essa trama brilhante, só mesmo a custa da percepção
sobre-humana e da vigilância incansável dos agentes de segurança;
da mesma forma que a descoberta das armas de destruição em
massa de Saddam Hussein; e que as “bombas sujas”, as “bombas
líquidas” e outros instrumentos de destruição extraordinariamente
mortíferos adicionados ao arsenal dos terroristas.)
Os primeiros comentários concentram-se no possível impacto
desse anúncio dramático sobre as próximas eleições de meio de
mandato nos Estados Unidos. Como Obama reagirá a essas
notícias? Será que vai enfatizá-las ou minimizá-las? Não sei as
respostas e, para ser franco, não estou interessado em encontrá-las
ou imaginá-las. De uma coisa, porém, estou certo. Como o New
York Times de hoje preferiu expressar: “A descoberta do complô da
remessa postal foi um sensato lembrete aos agentes de todo o
mundo, de que uma resposta rápida às informações oportunas está
na ordem do dia” (como se os agentes precisassem ser lembrados
ou, nesse sentido, quisessem ser sensatos…).
Uma torrente de medidas de segurança será projetada e logo
colocada em prática; novas táticas de espionagem serão
desenvolvidas e apoiadas por instrumentos técnicos de produção
recente; e se introduzirá um “novo e aperfeiçoado” regime de
verificações e buscas em aeroportos. Para pagar por todas e cada
uma dessas medidas, uma série de pedidos já enche os registros de
encomendas das empresas de segurança; novos rombos são
cavados no orçamento nacional, assim como nos fundos destinados
a enfrentar necessidades sociais, culturais e educacionais urgentes
em cada um deles. Duas bombas “altamente sofisticadas” foram
interceptadas. Para apreender o incontável número de réplicas
possivelmente produzidas, serão necessários milhões de novos “e
até mais sofisticados” aparelhos, e milhares de pessoas para operálos. Como tem acontecido desde a descoberta da escalada
autopropelida dos gastos com segurança, que agora se mostram a
herança mais seminal e permanente da Guerra Fria, os estábulos
serão consertados por um custo equivalente ao dobro do preço
do(s) cavalo(s) que fugiu(iram) em disparada.
Não só os generais estão sempre prontos a lutar a última guerra
vitoriosa. A atual “guerra ao terrorismo” (lamento adotar esse
paradoxo, por falta de outro nome que seja aceito e publicamente
reconhecido), em alguns aspectos básicos e fundamentais, é uma
repetição da Guerra Fria. Os combatentes, as armas e as formas de
ação militar mudaram – mas não a doxa estratégica, a lógica e
acima de tudo o mecanismo interno de autoexpansão exponencial
(creio que essa expectativa estava no foco do plano de guerra de
Bin Laden). Essa foi a característica permanente das refregas da
Guerra Fria, que não precisavam ser travadas no campo de batalha.
Novas armas foram produzidas a um ritmo cada vez mais intenso,
não para ser usadas numa ação, mas para tornar inúteis as armas
armazenadas pelo inimigo e forçá-lo a substituí-las por outras,
obrigando o esvaziamento dos próprios depósitos e levando os
fornecedores a reabastecê-los. A história agora se repete. A cada
passo cresce a possibilidade de que o fim também se repita. A
Guerra Fria, lembrem-se, terminou com um dos contendores do jogo
de rearmamento na pobreza e na bancarrota. Implodindo, não
explodindo.
• Novembro de 2010 •
30 DE NOVEMBRO DE 2010
Sobre por que os americanos não
enxergam a luz no fim do túnel
Frank Rich escreve no New York Times de hoje, num artigo sob o
título eloquente de “O melhor Congresso que o dinheiro pode
comprar”:
A Grande Depressão pôs fim à última era de ouro, a da década de 1920, e provocou
grandes reformas no governo e no mundo empresarial americanos. A Grande
Recessão, nem tanto. Semana passada, quando as novas projeções de crescimento
do Fed reduziram a esperança de um declínio significativo na taxa de desemprego, o
Departamento de Comércio relatou que os lucros das corporações bateram recorde.
Esses lucros não estão gotejando em novos empregos ou nos salários mais elevados
para os que não ocupam as salas dos executivos. E a perspectiva de uma regulação
séria dos que estão no topo do topo – o setor financeiro – é uma fantasia maior no
novo Congresso que em seu antecessor.
Ele escreveu essas palavras, ao que se presume, para explicar o
motivo pelo qual – depois que as últimas eleições puniram o
governo Obama, considerado pela opinião unívoca, incitada pela
mídia, o principal motivo do sentimento generalizado de que algo vai
mal nos Estados Unidos – a proporção dos entrevistados por uma
pesquisa do Wall Street Journal, avaliando se os Estados Unidos
estão no caminho certo, cresceu de 31% para… 32%. “A despeito
do partido ou da política”, conclui Rich, “existe a percepção de um
país quebrado e que não se pode consertar.”
Como Peter Drucker profetizou alguns anos atrás, poucas
pessoas hoje têm esperança de que a salvação vai cair do céu. Na
perspectiva de Rich, descarregar a ira popular sobre a maioria
democrata do Congresso é ultrapassar, e muito, os limites; como
seria de se esperar, nada mudou – o clima não é menos melancólico
agora que antes, e ainda se procuram os culpados. Aquela maioria
se desfez tão depressa quanto se formara, mas não houve motivos
de regozijo. Evidentemente, esse “algo” que “deu errado” nos
Estados Unidos precisa ser procurado e (tomara, tomara…) talvez
seja encontrado alhures. E, como também é óbvio, esse “algo” não
se moveu um centímetro e permanece firme em seu lugar.
E onde fica esse “lugar” a ser encontrado e esse “algo” a ser
removido? A resposta é uma indústria que agarra, engole e digere
um quarto dos lucros das empresas americanas (tendo quase
dobrado sua parcela em apenas um quarto de século), em nítida
oposição aos outros setores da economia (nas palavras de John
Cassidy, outro colunista do New York Times, ela “não projeta,
constrói ou vende qualquer coisa tangível”); um setor cuja
especialidade é a aquisição maciça e o consumo conspícuo de…
políticos.
Só o lobby dos seguros, reunido para enfrentar a reforma da
saúde de Obama, contribuiu com US$ 86 milhões para um “fundo de
aquisições” de tamanho não revelado, mas que a opinião comum
considera sem precedentes. De acordo com uma agência noticiosa
independente, a Pro Publica, 69 membros do Congresso, e mais
centenas de lobistas ligados a grandes empresas, pertencem hoje a
uma “Nova Coalizão Democrata”, altamente secreta, descrita pela
agência como “uma das máquinas de dinheiro político mais bemsucedidas” (na história americana ou na memória humana?).
Na visão de David Axelrod, que também escreve no New York
Times, esse gênio não pode ser recolocado na garrafa. Ele pensa,
presumo eu, o que a maioria de nós também pensa – porque,
seguindo as convulsões de um Capitólio incuravelmente paralisado,
ele (como nós) não consegue ver um poder forte e resoluto o
bastante para obrigar esse gênio a voltar para seu controle. O que
resta é atualizar a profecia de Drucker: não se pode mais esperar
que a salvação venha daquele “cume” em que residem os poderes
que agora governam os Estados Unidos.
• Dezembro de 2010 •
2 DE DEZEMBRO DE 2010
Sobre a guerra que poria fim a todas as
guerras
Numa das sequências em longa metragem da série de TV Jornada
nas estrelas, nós, espectadores, somos convidados a visitar um
planeta (chamado bem a propósito “Nimbo”, um halo ou auréola que
se acredita emanar das cabeças dos santos, heróis e governantes
poderosos) onde o uso de armas é terminantemente proibido. Com
o rápido desenrolar da trama, passamos a perceber (ainda que –
quem sabe? – possa não ter sido essa a intenção dos cineastas)
quantas armas, armas supremas, atualizadas, de ponta e
extremamente caras, aquele que as proíbe usa e precisa usar para
garantir que a proibição do emprego de armas seja obedecida.
Deliberadamente ou não, planejando ou não, os cineastas
marcaram uma posição: aquela de que brotam todas as outras
antinomias endêmicas ao modo de ser humano, somente humano,
caracteristicamente humano – e da qual ele se alimenta. O modo de
ser específico e singular dos homens é caracterizado pela recusa de
dar as coisas como favas contadas e pelo esforço de torná-las
diferentes do que são. Os nomes mais comuns para a combinação
desses dois atributos são “ordenamento”, “construção da ordem” ou
“pôr as coisas em ordem”: em suma, os seres humanos são “seres
que constroem a ordem”.
Quando estão engajados em colocar as coisas em ordem (ou
seja, ao longo de suas vidas), os homens se ocupam em manipular
a probabilidade dos eventos: tornar mais favorável a ocorrência de
alguns deles do que seria possível na ausência de esforços seus,
enquanto reduzem e, ao que se espera, eliminam de vez a
probabilidade de outros. Se eles obtêm êxito, estão “no controle (ou
‘no comando’) das coisas”: não são mais apanhados de surpresa,
desprevenidos, forçados a improvisar defesas contra alternações de
eventos de que não gostam e que não provocaram. Estar “no
comando”, por seu turno, exige serem eles os únicos “agentes
livres”, capazes de fazer escolhas e mudar de opinião, ao mesmo
tempo reduzindo outros atores potenciais à recitação de versos
especificados e à reiteração de movimentos estabelecidos – em
essência, à condição de objetos (alvos, sofredores), mas não
sujeitos (causadores e planejadores) da ação.
Vamos reunir tudo isso e tirar (inescapáveis) conclusões:
construção da ordem significa forçar algumas pessoas – cuja
exclusão da companhia de atores (nomeados, convidados,
autorizados ou involuntários) distingue um ambiente ordeiro que se
pretende construir de um ambiente que se pretende ordenar – a
aceitar uma condição da qual se ressentem e se engajar em ações
para as quais jamais tiveram gosto nem estômago. Sempre que se
constrói uma ordem (e isso significa 24 horas por dia, sete dias por
semana), aplica-se a força para obrigar alguns a abandonar suas
ambições e desistir de agir de acordo com suas preferências; assim
é impor-lhes a condição (citando mais uma vez a expressão de
Étienne de la Boétie) de “servidão voluntária”.
A grande questão, portanto, é se a eliminação do uso da violência
para compelir, coagir, desqualificar e incapacitar é de todo
concebível como objetivo realista do processo de construção da
ordem. Em outras palavras, se – dada a natureza do modo de ser
que caracteriza os homens – tal resultado é uma tarefa possível e
viável. Ou se, pelo contrário, cada esforço para “eliminar a
compulsão e a imposição” constitui a fonte mais profusa e
inexaurível dessas mesmas compulsão e imposição.
Joanna Tokarska-Bakir relembrou pouco tempo atrás a
observação de Arthur Koestler, de que uma característica comum às
utopias altruístas é a crueldade perpetrada em nome do amor,
condenando ou autorizando as pessoas a fazer o que as repugna e
revolta. Tais utopias exortam o assassinato com a finalidade de
acabar com os assassinatos; chicotear pessoas para ensiná-las a
recusar o chicoteamento; deixar de lado os escrúpulos em nome do
cumprimento do supremo mandamento moral; e despertar, alimentar
e fomentar o ódio entre os seres humanos, em nome do amor pela
humanidade.
Koestler não foi o único a expor essas misturas tóxicas. Longe
disso: a necessidade delas (de fato, sua inevitabilidade) já estava
estabelecida com firmeza na sabedoria popular, assim como na
prática do porta-voz mais devotado, ávido e de estilo empresarial
dessa sabedoria, desde a Antiguidade: si vis pacem, para bellum.
Quer a paz? Prepare-se para a guerra. Os que estão preparados
são os vencedores. Os que acabaram perdendo não estavam
obviamente preparados. CQD (como se queria demonstrar). Quem
ousaria contestar? Quem o desejaria? Decerto não os responsáveis
por conduzir as nações que presidiam o mundo da modernidade –
esse admirável (e belicoso) mundo novo clamoroso em relação aos
vencedores, mas mudo no que respeita aos derrotados. O mundo
que promete usar a violência (perdão, a coerção legítima) só para
pôr fim à violência de uma vez por todas (coerção ilegítima).
Universo a ser feito traçando-se uma linha clara e indiscutível entre
violência (de agora em diante significando coerção ilegítima) e
coerção legítima; e assegurando que essa linha se mantenha
intransponível e seja observada com rigor: por cortesia, claro, da
coerção legítima – recurso disponível somente para aqueles
engenhosos o bastante para estabelecer a linha e mantê-la intacta.
O próprio Koestler, no primeiro volume de sua monumental
autobiografia, observa que em 5 de setembro de 1905, dia de seu
nascimento, o Times de Londres tomou-se de lirismo e louvou a
vitória do Japão sobre a Rússia.a Seja quem for, a pessoa que
escreveu o editorial do Times deve ter ficado impressionada e
desejosa de que seus leitores partilhassem de seu entusiasmo: os
exemplos do Japão, segundo ele, “indicam uma ou duas direções
pelas quais isso talvez tenda a moldar o pensamento e o caráter no
mundo”. E faz o possível para explicitar como iriam, deveriam e
teriam de ser esse pensamento e esse caráter tão bem-vindos:
O grande final de todo esse treinamento foi a subordinação do indivíduo à família, à
tribo e ao Estado. … Ele ensina que [o principal dever do homem] é seu dever coletivo
em relação aos diferentes grupos sociais nos quais nasce. Desde os tempos de
menino ele é treinado, de modo contínuo e cuidadoso, para cumprir esse dever.
Aprende não apenas a disciplinar suas ações e características, mas seus próprios
pensamentos, sentimentos e impulsos, em obediência ao dever.
“Era essa a lição”, comentou Koestler com sarcasmo, “que, na
sua [do autor do editorial] opinião, o Ocidente, com seu
individualismo excessivo, devia aprender com a ‘disciplina
monástica’ do primeiro Estado totalitário moderno.” Para quê? Em
tese, para retesar seus próprios músculos a fim de atingir o nobre
propósito que a história havia colocado sobre seus ombros: a
missão do homem branco de extirpar todos os resíduos de
barbarismo e abrir caminho para o triunfo final da civilização sobre a
selvageria, do progresso sobre o atraso, do poder sobre a
impotência.
As atrocidades mais pavorosas, sangrentas e chocantes da
história foram cometidas em nome dos objetivos mais elevados e
nobres – e, por esse motivo, elogiáveis e fascinantes. Foi em nome
da salvação de suas almas que hereges e bruxas foram queimados
em fogueiras, e em nome do estabelecimento do Reino de Deus na
Terra que pagãos foram passados a fio de espada e tiveram seus
lares incendiados. Foi para tornar redundantes o Estado e seus
órgãos de repressão que Stálin proclamou a necessidade de
desencadear, desenvolver e aperfeiçoar, de modo perpétuo, a
repressão do Estado. Foi para promover e garantir o domínio da
raça alemã sobre o mundo que Hitler enviou os homens jovens e
velhos da Alemanha para a morte, fazendo com que seus lares
fossem destruídos e suas famílias dizimadas. É em nome da
coexistência pacífica com os vizinhos de Israel que as tropas
israelenses recebem ordens de demolir e arrasar os lares dos
palestinos, erradicar suas plantações de oliveiras e destruir seus
meios de subsistência. Foi para promover a causa da democracia
que a aliança ad hoc de potências democráticas enviou suas forças
expedicionárias para bombardear e destruir as terras em que os
inimigos da democracia se ocultavam, presumia-se que se
ocultassem ou onde se suspeitava que estivessem procurando
abrigo.
O aspecto mais triste de tudo isso é que todos nós consideramos
quase impossível conceber outra forma de proceder. Mal
conseguimos imaginar a criação sem destruição. E tendemos a ver
a destruição como um preço aceitável a ser pago pela criação.
Coçamos a cabeça em descrença quando alguém sugere que possa
ser de outra forma. Deixamos escapar uma ou duas lágrimas
quando ouvimos falar das “vítimas inocentes”, das “baixas
colaterais” do avanço para uma vida melhor, da marcha para o
progresso ou da guerra santa contra os fomentadores de guerras;
tudo somado, do movimento em direção a um mundo que não mais
permita a violência nem precise dela. Mas então sempre podemos
nos consolar lembrando que não se faz omelete sem quebrar alguns
ovos. E que, por enquanto, não chegou a nossa vez de encarnamos
esses ovos.
Conta-se que perguntaram a Michelangelo como conseguia
transformar suas visões nas extraordinariamente belas e perfeitas
esculturas que o tornaram famoso. Também conta-se que ele teria
respondido que seu método era a própria simplicidade: apenas
pegava um bloco de mármore e o cortava, jogando fora as partes
desnecessárias. Todos nós tentamos fazer como Michelangelo,
seguindo sua técnica com o material (não importa qual) com que
esculpimos nossos projetos. Às vezes é mármore. Às vezes é carne
humana. Não encontramos outro procedimento. Na verdade, nem
procuramos um método de forma entusiástica. Por ora, parece que
paramos até de procurar.
4 DE DEZEMBRO DE 2010
Sobre ferir moscas e matar pessoas
Slavenka Drakulic, infatigável jornalista e ensaísta croata,
documentou as vidas e os feitos dos criminosos levados ao Tribunal
Internacional de Haia na sequência da guerra civil que dividiu o país
(e também sua população) conhecido durante setenta anos pelo
nome de Iugoslávia. Ela compilou os resultados de sua investigação
singular, feita ao vivo, num livro intitulado They Would Never Hurt a
Fly (2004).
Uma das reportagens reúne as reflexões de uma testemunha
num dos primeiros julgamentos do tribunal, cujos réus eram
Dragoljub Kunarac, Radomir Kovac e Zoran Vukovic,
respectivamente, um motorista, um garçom e um auxiliar de vendas,
três sérvios da Bósnia, da cidadezinha de Foca. Tendo assistido às
audiências, Drakulic relata seus sentimentos: se ela tivesse
encontrado com algum deles antes da guerra, não imaginaria que
fosse uma pessoa brutal. Eram apenas três sujeitos comuns, do tipo
que ela encontra todos os dias. Mas houve a guerra, e agora
sabemos que os três foram considerados culpados de tortura,
sequestro, estupro e assassinato a sangue-frio.
Isso é possível? Procura-se em vão algum sinal evidente de
perversão que possa revelar o potencial para o assassinato. Em
vão, em vão! E deve haver uma multiplicidade de casos como
esses, já que, durante aquela guerra, 60 mil mulheres foram
violentadas e 200 mil indivíduos foram mortos. Centenas de
milhares de pessoas deviam acreditar que tinham razão para fazer
tudo isso…
Outro réu que enfrentou o tribunal, Goran Jelisic, sentenciado a
quarenta anos de prisão por matar treze homens e mulheres detidos
na delegacia de polícia que comandava, “parece alguém em quem
se pode confiar”. Um homem que “em geral ajuda pessoas mais
velhas a atravessar a rua, se levanta num bonde para oferecer o
lugar a um inválido, deixa outras pessoas passarem à sua frente na
fila do supermercado. Ele seria capaz de devolver uma carteira
perdida a seu legítimo dono. … Grande amigo, vizinho confiável,
genro ideal.” Seriamente, não se encontraria o menor traço de
patologia em sua vida no pré-guerra. Foi um rapaz quieto, na
verdade bem tímido, retraído, mas pronto a ajudar os outros.
Bem, a partir de 7 de maio de 1992, dia em que matou sua
primeira vítima, e por dezoito dias consecutivos, Goran Jelisic, 23
anos de idade, reencarnou como uma besta sádica. Prisioneiros
sobreviventes lembram-se dele andando e atirando como se
estivesse drogado ou em transe. Seu olhar congelava as vítimas
antes que a pistola as matasse. Ele as escolhia aleatoriamente
(embora não fosse seletivo, em particular: matou um velho por jogar
uma garrafa no chão e um jovem por ter se casado com uma moça
sérvia), mandava que se ajoelhassem e colocassem a cabeça sobre
um bueiro de esgoto, e então pressionava a arma contra seus
pescoços. Às vezes chamava Monica, sua namorada, para assistir e
admirar sua eficiência. Tudo isso diariamente, por dezoito dias… Por
quê? Qual era o segredo?
O genro de Slavenka Drakulic, também croata, em vários
aspectos era apenas um jovem como Jelisic, tal como ele adepto da
pesca. Mas, em contraste com este, que se apresentou como
voluntário para a recém-formada polícia croata, foi para o Canadá
antes que se iniciasse a guerra civil. “Poderia ter acontecido o
contrário?”, pergunta Drakulic, tentando desesperadamente resolver
o mistério. “Meu genro teria sido voluntário na polícia croata?” “Foi a
primeira vez em sua vida que Goran Jelisic teve poder. … Deramlhe uma arma de fogo e lhe disseram para usá-la livremente”,
pondera ela. E acrescenta:
Ainda acho que, embora de fato ele se tenha transformado em opressor, num sentido
mais profundo foi uma vítima. Ele e toda a sua geração foram enganados. Abraçaram
a ideologia nacionalista e nada fizeram para interromper a guerra que dela nasceu.
Eram muito oportunistas e estavam amedrontados demais para se recusar a seguir
seus comandantes.
Antes de 7 de maio de 1992, qualquer um que pousasse os olhos
sobre um jovem simpático e bem-apessoado de nome Goran Jelisic
poderia jurar que esse homem seria incapaz de ferir uma mosca.
16 DE DEZEMBRO DE 2010
Sobre Jerusalém versus Atenas revisitada
Deus é o protótipo do “fato social”. A se acreditar em Émile
Durkheim, existe da mesma forma que todos os outros fatos sociais:
não pode, por um simples esforço do pensamento, ser removido
(nem, para o que nos interessa, inserido), desaparecer (ou
aparecer) em função de nosso desejo nem ser atacado (ou
defendido) com base na razão. Deus “existe” porque se impõe e
brota sem ser convidado nem convocado – piscando de cada
espaço em branco, de cada non sequitur na cadeia de explicações e
na sequência da compreensão, se esgueirando em cada vão da
série de atos que separa o desejo da realização e a expectativa das
coisas tal como elas são, recusando-se firmemente a sair do lugar.
Deus existe enquanto existe a incerteza existencial humana, e isso
quer dizer para sempre. O que significa que Deus vai morrer com a
espécie humana, nem um segundo mais cedo.
“Deus” é outro nome que tendemos a dar à prática da
insuficiência humana: nossa ignorância (incapacidade de
compreender e, portanto, de saber como prosseguir) e incapacidade
(impossibilidade de agir com sucesso) – assim como do impacto
conciso de ambas, nossa humilhação (o golpe em nossa
autoconfiança e autoestima). Mas este não é o único nome: ele tem
competidores, entre os quais natureza, destino ou uma conspiração
de forças cegas, surdas e mudas que tendem a ser mais
importantes que as demais. O que une todos os nomes é a
sugestão de supra-humanidade das entidades que designam; e, por
implicação, a incapacidade humana de apreender sua lógica (ou
melhor, a capacidade dessas entidades de ignorar e violar a “lógica”
tal como os seres humanos a conhecem); e a incapacidade do
homem de atingir os objetivos que estabelece – sugerida pela
expressão popular de que o homem propõe, mas Deus é quem
dispõe (em suma, a capacidade das entidades de ignorar, confundir
e contrariar as intenções humanas). Em face dessas entidades,
mendigar favores ou piedade é o único expediente a que os seres
humanos podem recorrer, embora não lhes caiba decidir se seus
suplícios ou preces serão ouvidos ou aceitos. As entidades são
“decisionistas” no sentido da condição atribuída por Carl Schmitt aos
soberanos humanos: no sentido de não dever explicação alguma a
seus súditos, e muito menos desculpas.
O próprio Schmitt não tinha dúvidas de que atribuir aos
governantes seculares o status de decisionistas equivalia a deificálos – situá-los entre os deuses. A desrotinização das decisões dos
governantes e sua isenção relativa às normas impostas por lei e
voltadas para a regularidade, monotonia e repetição são, aos olhos
de Schmitt, os equivalentes políticos dos milagres de Deus na área
da religião. Os deuses são aqueles que não devem nada a seus
subalternos – em particular, nenhuma explicação de suas divinas
ações ou inações em referência a uma regra de que elas constituem
a aplicação. Deuses são aqueles a que se é obrigado a ouvir sem
ter o direito de ser ouvido. Ser Deus significa ter o inalienável e
indivisível direito ao monólogo.
Política e religião operam no mesmo espaço: o da incerteza
humana. Visam a conquistar, colonizar e anexar o mesmo território,
vacilando sempre entre aliança, competição e inimizade. Aliadas ou
inimigas, miram o mesmo eleitorado: pessoas gemendo sob o peso
de uma incerteza que transcende sua capacidade singular ou
coletiva de compreensão e ação terapêutica. Aliadas ou inimigas,
tendem a aprender e tomar emprestados uma à outra seus
expedientes e estratagemas. E ambas almejam o direito ao
monólogo. Daí uma permanente – latente e por vezes manifesta –
tentação e inclinação a “religionalizar a política”. A política está
sendo “religionalizada” sempre que oscila no sentido do padrão
schmittiano de concentrar-se em “apontar e nomear um inimigo”
como função básica do administrador político; e quando as políticas
e seus objetivos declarados são acomodados na fraseologia do
absolutismo, como por exemplo na linguagem de George W. Bush: a
linguagem de uma batalha final entre o bem e o mal, o certo e o
errado – o “meio-termo” é excluído a priori, assim como o diálogo
com o inimigo ou a construção de algum tipo de ponte sobre o
abismo entre “nós” e “eles”.
O modelo schmittiano de poder político soberano foi feito sob
medida para o Estado ditatorial, tirânico ou totalitário – e à sua
imagem. Muito provavelmente, sua súbita ressurreição e sua
crescente popularidade em ciência política foram ativadas pela
acumulação gradual, mas contínua, de sintomas da inaptidão cada
vez mais evidente dos regimes democráticos (de há muito vistos
como alternativa a toda e qualquer variedade de Estado autoritário)
para lidar com as atuais transformações do ambiente social em que
operam: em particular, a condição emergente da “diferença” (ou,
mais especificamente, do polimorfismo combinado com o
policentrismo) como atributo permanente e inseparável tanto da
política quanto da vida social.
A conversa e o diálogo, com os quais a democracia está
comprometida desde o início, como princípios reguladores das
tomadas de decisão públicas, costumavam ser vistos como um
procedimento provisório que levava ao consenso; no memorável
ataque que faz à “comunicação distorcida”, Jürgen Habermas
presume que um polílogo aberto e ilimitado funciona por si mesmo:
ele é um meio, não um fim. Foi um procedimento que distinguiu a
democracia dos regimes autoritários; um modo mais humano, mas
também, afinal, mais efetivo para se atingir uma unidade da vontade
popular, compartilhada com outros sistemas políticos.
Esse procedimento era considerado mais humano e portanto
preferível graças ao emprego da liberdade, e não da servidão e do
conformismo, como motor principal de seu movimento rumo ao
consenso; e era considerado mais eficaz porque (como se presumia
de forma tácita) se baseava na comunicação não distorcida (ou seja,
irrestrita, aberta, livre de coerção e de qualquer interferência dos
poderes constituídos) – uma comunicação que, em algum estágio,
deve encerrar toda controvérsia sobre preferências e escolhas
carregadas de valores. A suspeita de que pudesse haver
controvérsias resistentes à reconciliação, tais como as que surgem
de algo mais que uma incompreensão unilateral ou recíproca (e,
portanto, de um obstáculo do tipo que não pode ser removido por
um longo, dedicado, sério e sincero debate sobre suas diferenças,
por debatedores de boa vontade), não aparece no modelo de
comunicação não distorcida; também não apareceu nos modelos de
democracia da (agora antiga) era da profana trindade constituída
por TEN (Território, Estado e Nação). A situação presente – em que
numerosas questões divisionais se revelam traços permanentes da
vida que compartilhamos, imunes aos argumentos e teimosamente
inegociáveis, e em que inúmeras controvérsias parecem ter de
continuar sem conclusão, em vez de se suavizar e abafar no curso
de um número finito de sessões em torno de uma mesa de
negociações –, essa situação total e verdadeiramente nova, pegou
de surpresa e despreparadas a teoria e a prática políticas.
A nova situação em questão é o produto conjunto de dois
acontecimentos relativamente recentes e decerto inter-relacionados:
um planeta policêntrico e o caráter cada vez mais diaspórico das
populações que se abrigam no interior das fronteiras da maioria de
suas unidades estatais ou quase estatais. Os dois acontecimentos
assinalaram o declínio das hierarquias planetárias e interestatais –
tanto espaciais quanto temporais; em termos espaciais, de uma
hierarquia de culturas simultâneas; em termos temporais, do
pressuposto da existência de uma evolução unilinear da cultura.
Num sentido prático, o desaparecimento dessas duas hierarquias
que se apoiavam mutuamente torna quase impossível o imaginaire
construído com a ajuda de oposições como superioridade versus
inferioridade e “progressista” versus “atrasado” ou “retrógrado”.
Todos esses termos parecem cada vez mais destituídos de sentido,
e as tentativas de aplicá-los, em geral, são bastante contestadas.
Nessas circunstâncias, as atuais relações entre culturas, credos ou
modos de vida tendem a ser reconhecidas como arranjos
temporários, renegociáveis e voláteis; de maneira mais correta, a
direção de suas mutações futuras parece tudo, menos preordenada
e em geral previsível.
Assim, parecemos estar uma vez mais confrontando a antiga
alternativa Jerusalém-Atenas: ou seja, a escolha entre projetos
monoteístas ou politeístas de credos religiosos e fórmulas políticas.
Com poucas exceções, como o Japão, onde uma pessoa não vê
incongruência entre frequentar santuários xintoístas em ocasiões
específicas, casar-se segundo ritos cristãos e ser enterrada por um
monge budista, a maioria das populações do planeta tem vivido por
muitos séculos à sombra de três cultos monoteístas, todos eles
originários de Jerusalém. É provável que essa coincidência histórica
se deva a nosso reflexo condicionado, quase universalmente
compartilhado, de colocar um sinal de equação entre religiosidade e
monoteísmo; o que agora tendemos a identificar como “religiosidade
como tal” também deriva do legado de Jerusalém. Esse reflexo,
contudo, não se encaixa bem na nova realidade plural de deuses ao
mesmo tempo fora e dentro das fronteiras territoriais de qualquer
unidade estatal/nacional.
Os deuses, da mesma forma que seus devotos, se espalharam
pelo mundo numa rede de diásporas cruzadas e superpostas. Vivem
dia a dia em estreita e mútua proximidade – e, não importa o quanto
tentem, não podem ignorar a presença um do outro e evitar várias
formas de interação e intercâmbio. Os ambientes em que a maioria
de nós hoje age são, para todos os fins e propósitos práticos,
rotineiramente politeístas, ainda que os três maiores jogadores
tendam a se aferrar com devoção às suas pretensões monoteístas.
Nossa situação, após vários séculos de domínio vigoroso,
coercitivo e por vezes sangrento do princípio do cuius regio, eius
religio (o governante estabelecendo a religião), está se tornando
cada vez mais reminiscente do estado de coisas que precedeu a
substituição do panteão romano pelo da Igreja da Europa cristã e
seus postos avançados, um panteão unificado, indivisível,
inflexivelmente monoteísta. Ulrich Beck, em seu mais recente
estudo, vigoroso e provocativo, intitulado Der eigene Gott (traduzido
para o inglês sob o título A God of One’s Own), caracterizou
sucintamente a realidade emergente como uma “confrontação
mundial involuntária com outros estranhos”.1
Ao longo da crescente diasporização dos habitantes do planeta e
da consequente pluralidade e multiplicação constante de deuses
coabitando no interior dos “mundos de vida”, outra mudança
apresenta-se no horizonte e ganha rápido impulso – movimento fatal
para o destino da religião, da política e do relacionamento entre
ambas. Essa mudança, assinalada no título do livro de Beck, é
resultado de outro aspecto da atual “modernização parte 2” (ou, na
terminologia que prefiro, da passagem à fase “líquida” da condição
moderna): um processo progressivo de individualização, acelerado e
cada vez mais intenso (jogando sobre os ombros do indivíduo um
número cada vez maior de funções até há pouco desempenhadas e
guardadas com ciúme por comunidades assistidas [power-assisted]
– incluindo, em particular, a tarefa da identificação, agora
transformada no dever de autoidentificação, com ênfase no prefixo
“auto”). Como princípios essenciais da individualização, Beck aponta
“destruir a tradição, a necessidade e a possibilidade da tomada de
decisão individual e, com esse pressuposto, um horizonte (mais ou
menos limitado) de opções, assim como o costume de
responsabilizar-se pelas consequências”. Com tais princípios em
operação, “a individualização da crença simplesmente tem de ser
aceita como realidade”.2
Um “Deus próprio” é um deus de uma espécie totalmente nova:
um deus do tipo “faça você mesmo”. Não institucionalmente
composto e promovido, mas um deus “da base” (relacionado com a
variedade antes predominante, da mesma forma que as “redes”
líquidas modernas se relacionam com as comunidades anteriores,
sólidas modernas). Não um Deus recebido, mas inventado – e
inventado individualmente, mesmo que isso seja feito a partir de
retalhos cortados, de novo individualmente, das ofertas préfabricadas disponíveis e recompostos numa totalidade tecida pelo
indivíduo, segundo um projeto individualmente esboçado, usando
instrumentos, recursos e habilidades individuais, e seguindo a lógica
das preocupações e prioridades também do indivíduo. Um “Deus
próprio”, como todos os deuses, é um derivado, uma emanação ou
projeção da insuficiência – mas, em contraste com os deuses
institucionais, a insuficiência projetada é pessoal, individualmente
sofrida; algo a se esperar na era da “política de vida” (tomando de
empréstimo um termo de Giddens), que tem como marca a
responsabilidade individual pela solução dos problemas da vida e
pelas consequências das escolhas que nela fazemos.
A “insuficiência” numa era com essas características confronta o
indivíduo com uma forma de inadequação pessoal repetidas vezes
revelada, sempre que justaposta à grandiosidade das tarefas a
serem encaradas (sejam elas atribuídas ou assumidas): a
dificuldade e, ao que se suspeita, a impossibilidade de entender,
medir e manejar os desafios impostos pela condução da política de
vida no cotidiano (que dirá de reagir de modo adequado). O Deus da
Igreja congregacional reflete a insuficiência da espécie humana (ou
de um de seus segmentos comunais) quando confrontada com os
poderes aterrorizantes, incontroláveis e imprevisíveis da natureza e
do destino; já o “deus próprio” reflete a insuficiência – ignorância,
impotência e humilhação que ela provoca em conjunto – do
indivíduo abandonado a seus próprios recursos dolorosamente
inadequados, enquanto é comandado e pressionado a lidar por si
mesmo com os poderes assombrosos das contingências produzidas
no plano social.
17 DE DEZEMBRO DE 2010
Sobre por que os estudantes se agitam de
novo
Mais uma vez, alguns jornalistas italianos me enviam perguntas. De
novo elas foram motivadas pelo mais recente “evento extraordinário”
a chegar às manchetes, porém agora, ao contrário da penúltima,
não estão preocupados com o despejo e a expulsão dos roma, mas
com os protestos estudantis nas ruas. Perguntam: “Nesses últimos
dias, por toda a Europa, os estudantes estão protestando. Esses
jovens são chamados de ‘geração zero’: zero oportunidade, zero
futuro. Como é possível reconstruir o futuro desses jovens? Que
modelo de sociedade pode proporcionar esperança a pessoas com
vinte anos?” Alguns de meus entrevistadores estavam claramente
inquietos com o grau de violência que caracterizou as
manifestações dos estudantes: “Alguns provocadores começaram,
mas os jovens não os isolaram. Haverá entre os estudantes uma
espécie de ódio profundo? Que semelhança ele tem com o ódio que
conhecemos do passado? Que motivos podem desencadeá-lo?”
Lançando mão da melhor das minhas habilidades, tentei arriscar
algumas respostas. Na verdade, há muito som e fúria, o que
significa uma mistura explosiva de medo justificado do futuro e
busca desesperada de uma válvula de escape para despejar a
ansiedade e a irritação daí resultantes. Sucessivas explosões
tornam-se ainda mais prováveis porque a população estudantil é dia
a dia aglomerada numa concentração de campi (enquanto
concentrações comparáveis de trabalhadores da indústria são cada
vez mais raras e evitadas): a intensidade do ódio, o grau de
inflamabilidade e a inclinação para a violência tendem a crescer com
o tamanho e a densidade da multidão. Uma vez condensado, o mais
gentil e pacífico dos indivíduos pode amalgamar-se e dissolver-se
numa massa furiosa.
No entanto, é preciso tomar cuidado para não tirar conclusões
precipitadas e resistir à tentação de fazer extrapolações fáceis. É
muito cedo para concluir. Contudo, deveríamos fazer o possível para
não esquecer que a lição espetacular da atual inquietação estudantil
precisa ser objeto de reflexão profunda, e depois ser aprendida e
absorvida. Infelizmente, esse esquecimento pode começar de
imediato, tão logo as demonstrações de rua cheguem ao fim, e seu
“valor de notícia” não servir mais para aumentar os índices de
audiência da TV. A tendência a esquecer e a velocidade alucinante
do olvido infelizmente parecem marcas indeléveis da
contemporânea cultura líquida moderna. Por causa dessa angústia,
tendemos a deslizar de uma explosão de raiva popular para outra,
reagindo com nervosismo e superficialidade a cada uma delas
separadamente, quando acontecem, em vez de tentar enfrentar
seriamente as questões que elas sinalizam.
A atual condição dos estudantes (futuros graduados que, ao
ingressar nas universidades alguns anos atrás, eram recebidos com
a promessa e a expectativa de bons empregos, uma vez armados
de diplomas universitários e diante do mercado de trabalho) é outra
versão do destino lamentável de milhões de compradores de
imóveis residenciais igualmente frustrados; a estes se prometeu um
aumento contínuo nos valores imobiliários e, portanto, o pagamento
sem problema nem esforço de suas hipotecas e também dos juros
acumulados. Em ambos os casos, presumiu-se a abundância
baseada numa disponibilidade ilimitada (de oportunidades de
emprego num dos casos, de crédito no outro), e acreditou-se que
ela ia durar indefinidamente. Mais pessoas compraram casas com
empréstimos cujo pagamento estava acima de suas possibilidades –
e mais pessoas entraram nas universidades sonhando com
empregos de um tipo com que não poderiam sonhar se não
tivessem um diploma.
Como ficou evidente agora, as garantias apregoadas com
estrépito por bancos, empresas de cartões de crédito, marqueteiros
e filósofos neoliberais, assim como por praticantes da política do
neoliberalismo que fluíam com abundância do otimismo oficial
(autorizado!) para o ânimo do público, eram enganosas e em grande
parte desonestas. Nem o volume de bons empregos na City de
Londres e nos postos avançados das empresas de tecnologia de
ponta, nem a inflação dos preços imobiliários e os suprimentos de
crédito ao consumidor são (ou de fato poderiam ser) infinitos.
Encheu-se a bolha além de sua capacidade, e ela tinha de explodir,
como logo explodiu.
Os estudantes estão entre as vítimas mais frustradas e irritadas
dessa explosão. São também as mais ativas e resolutas: tentam
lutar contra o prejuízo e seus responsáveis. A combatividade, a
disposição para a ação coletiva e a determinação de aguentar firme,
ombro a ombro, são muito mais fáceis para pessoas treinadas a se
reunir diariamente em salas de aulas, como é o caso dos
estudantes, do que para as vítimas dispersas e em última instância
solitárias da retomada de residências; ou para os milhões de
trabalhadores de escritórios e de fábricas que há pouco se tornaram
redundantes, os quais se acostumaram a lamentar e a lamber suas
feridas na solidão – cada um por si.
Pela primeira vez em décadas, toda a produção anual de
graduados nas universidades enfrenta mercados de trabalho cheios
e saturados de candidatos a empregos que jamais serão
contratados, e, portanto, a perspectiva do desemprego a longo
prazo ou a necessidade de aceitar funções bem abaixo de suas
capacidades e ambições: ocupações extraordinariamente frágeis,
informais e não confiáveis, sem planos de carreira embutidos. O tipo
de situação em que os graduados deste ano se encontram e os do
ano seguinte certamente se encontrarão não foi confrontado durante
tempo suficiente para que aprendêssemos algo sobre suas
consequências plausíveis; mas, no passado, o inchaço das fileiras
de desempregados e jovens instruídos frustrados costumava ter
como corolário o aumento da agressividade política extremista.
Também era o presságio de graves problemas para a democracia.
Depois desta, os entrevistadores fizeram uma série de perguntas
relacionadas à necessidade de uma reforma (“renovação”, como
disse um jornalista) universitária e à possibilidade de agitação
estudantil caso essa demanda não seja atendida. A isso eu respondi
o que se segue.
Qualquer que seja a “renovação” que as universidades possam
exigir, ela vai levar muito mais tempo do que compor respostas ad
hoc para os desafios apresentados pelo atual protesto dos
estudantes. As duas tarefas seguem escalas temporais
completamente diversas. Os distúrbios estudantis têm duração
relativamente curta, mas suas consequências (ou melhor, as
consequências da inquietação dos estudantes é apenas um sintoma
oportuno) serão duradouras; e é com esses efeitos que deveríamos
ficar seriamente preocupados. Refletir sobre as possíveis maneiras
de escapar dessa condição, para não falar na implementação dos
resultados de nossas reflexões, vai demandar muito mais
engenhosidade e esforço árduo e prolongado do que está implícito
nos palpites improvisados e instantaneamente oferecidos.
Um pensamento, porém, nos ocorre de imediato: todos os
mercados de consumo são conhecidos por ter o hábito de passar do
limite: os mercados têm o costume de contar com uma demanda
muito maior do que aquela que são capazes de encontrar ou invocar
– mas também têm o hábito de tentar persuadir e seduzir com
seriedade muito mais clientes que aqueles para os quais os
produtos oferecidos são úteis de verdade. Os mercados de
consumo são altamente eficazes, mas também pródigos demais,
como mecanismos de “satisfação de necessidades”: sabe-se que
produzem muito lixo. Para atingir um alvo, precisam enchê-lo,
inundá-lo de balas! Em nossa sociedade de consumidores, o
“mercado da educação” não tem sido uma exceção à regra. A
maioria dos países tem experimentado nas últimas décadas um
crescimento sem precedentes em termos do número de instituições
de educação superior e do volume de seus alunos. Esse
desenvolvimento tende a resultar numa desvalorização da educação
universitária e dos diplomas de curso superior.
Além disso, como Gresham e Copérnico descobriram vários
séculos atrás, numa competição de livre mercado, a moeda inferior
(incluindo as fraudulentas ou forjadas) tende a deslocar e afinal
marginalizar ou pressionar a variedade superior. Nenhum desses
processos deixaria de afetar as universidades. Engajadas, em
função de sua própria atração por estudantes, numa fútil caçada por
modismos insinuados e propagados pelo mercado, cada vez mais
voláteis e ilusórios, as universidades perderam de vista as tarefas
para as quais elas, e somente elas, foram criadas – e que estão
capacitadas a executar; ocupadas em tentar atender as
necessidades ou caprichos de vida curta de uma “economia” guiada
pelos negócios, as universidades estão perdendo muito de sua
capacidade de realizar essas tarefas – ainda que continuem, em
ocasiões festivas, a lhes prestar floreados tributos.
Finalmente, havia algumas perguntas sobre igualitarismo versus
democracia. Respondi como se segue.
Não posso dizer se há mais meritocracia na Itália que em outros
lugares. A única coisa sobre a qual posso falar é que a ideia de
“meritocracia” tem sido vista já há algum tempo como argumento
essencial nas atuais plataformas políticas, em que a
“imparcialidade” tende a substituir a noção de “justiça”, a “equidade”
toma o lugar da “igualdade de padrões de vida”, e o princípio, a
promessa e o critério de alocar recompensas segundo o mérito
excluem o tema da satisfação das necessidades.
É muito difícil que tudo isso seja questionado, mas o problema é
que os significados de “recompensa” e “mérito” infelizmente são
elementos pouco definidos e contestados nessas plataformas
políticas. Hoje, as “recompensas” são reduzidas à remuneração
monetária e aos ornamentos associados à posição social, enquanto
o “mérito” é calculado pelo preço de mercado relativo atribuído ao
tipo de serviço a ser prestado pelas pessoas às quais essa posição
foi concedida. O pleonasmo daí resultante (que, como todos os
pleonasmos, pressupõe secretamente o que pretende de forma
evidente provar) mascara o relativismo (na verdade, a possibilidade
de questionar) das duas definições, assim como os tácitos
pressupostos sectários que as sustentam: o que a prática da
“meritocracia” pretende criar e promover não é muito mais que um
verniz ideológico sobre a realidade social já existente – e essa
realidade deve sua gênese mais aos jogos aleatórios das forças do
mercado que a alguma política deliberada e eticamente inspirada.
Para resumir uma longa história, vamos refletir sobre qual é a
alternativa: as quantias de seis dígitos são pagas em
reconhecimento pelo mérito, ou este é que é presumido com base
nas quantias de seis dígitos que têm sido pagas? E a segunda
pergunta: será que todo mérito e toda recompensa vêm com
etiquetas de preço?
Entre as pessoas atingidas, os jovens, alimentados com um
monte de promessas sem até agora registrar qualquer experiência
pessoal para submetê-las à prova, são os mais vulneráveis. Os que
agora estão entrando no mercado de trabalho foram apanhados de
surpresa e despreparados. Por esse motivo, seu primeiro encontro
com a realidade é muito doloroso, desfavorável e desconcertante.
As pessoas mais velhas têm memórias desagradáveis, mas
também certo conhecimento e alguns hábitos adquiridos a que
podem recorrer; assim, são capazes de tratar as atuais dificuldades
como espasmos temporários, anomalias que em algum momento
serão curadas, permitindo que as coisas “voltem ao normal”. Além
disso, muitos têm alguma espécie de “segunda linha de trincheiras”
preparada para uma ocasião como essa. Os mais jovens, não:
quando se defrontam com a necessidade de dar um longo e
arriscado salto da juventude protegida para a independência da vida
adulta sentem suas pernas procurar inutilmente o chão – e podem
com facilidade presumir que essa condição é a norma da vida adulta
na qual estão ingressando. Se este for o caso, a ideia é apavorante.
No final, nosso tema mudou para o aumento assustador do
desemprego, tanto na Itália quanto no resto da Europa. Fizeram-me
a pergunta: “Poderá haver uma sociedade pós-trabalho?” A resposta
não me veio de improviso.
Nós, pelo menos os habitantes da parte “desenvolvida” do
planeta, estamos vivendo um longo e tortuoso período de
desemprego em massa; e, para piorar ainda mais, ele é
acompanhado por uma severa redução na ajuda proveniente do
seguro e da assistência ao desemprego – provocada pelas enormes
dívidas que nossos governos impuseram à atual e às futuras
gerações em sua luta para salvar os bancos da insolvência e os
acionistas dos prejuízos. Ainda não temos plena consciência do
volume das dificuldades e da disfunção social que o desemprego
crescente e prolongado tende a produzir para as pessoas
diretamente afetadas pela redundância, assim como para nós. O
preço da efêmera orgia do “aproveite agora, pague depois”, cobrado
na moeda de vidas arruinadas, desperdiçadas e perdidas, ainda
pode se revelar imenso.
Falar de “pós-trabalho”, contudo, não faz sentido. Mesmo que o
“padrão de vida consumista” venha a se extinguir e ser esquecido,
os seres humanos não vão parar de ser consumidores, e o que é
para ser consumido deve primeiro ser produzido. Não haverá uma
era “pós-trabalho”, exceto após a extinção da espécie humana. Em
vez disso, o que muda depressa é a “geografia do trabalho”. Os
empregos hoje estão migrando para países em que há poucas leis e
regulamentos restringindo a liberdade dos capitalistas; já os
trabalhadores são compelidos a se ocupar em troca de salários de
sobrevivência ou ainda menores; ao mesmo tempo, se veem
privados tanto da assistência comunal quanto das organizações de
autodefesa – são também despojados de qualquer poder
significativo de barganha. Não admira que as últimas estatísticas
mostrem que, enquanto a distância entre economias
“desenvolvidas” e “emergentes” diminui, a distância entre ricos e
pobres nos países “desenvolvidos” de novo aumenta, aproximandose cada vez mais dos abomináveis padrões de desigualdade que
caracterizaram o início da era capitalista.
18 DE DEZEMBRO DE 2010
Sobre respeito e desdém
O respeito pertence à família das atitudes morais e, tal como os
outros membros desse grupo, sua natureza necessária ou
obrigatória não pode ser discursivamente “provada”. O respeito pelo
outro é um valor; assim como outros valores, só se pode elaborar
uma argumentação a seu favor e tentar convencer os ouvintes de
seus méritos apelando para sua consciência moral, a fim de
persuadi-los a adotá-lo e aplicá-lo ao escolher sua própria atitude
para com os outros seres humanos.
Nesse trabalho de persuasão não se pode contar com
argumentos empíricos nem credenciais de autoridade, e tampouco
recorrer a eles. Se, por exemplo, alguém incitar uma pessoa a
respeitar outros seres humanos alegando que a maioria tende a
aprovar essa atitude, não estará invocando a consciência moral do
ouvinte, mas seu instinto gregário. Se alguém tentasse convencê-lo
de que o ato de respeitar os outros seria recompensado com o
respeito destes, o apelo seria a uma preocupação egoísta com os
próprios ganhos: um tipo de preocupação que dificilmente poderia
coincidir ou ser compatível com um impulso moral.
Por outro lado, se alguém exige respeito baseando-se na ideia de
que demonstrá-lo é uma ordem que só pode ser desobedecida por
um preço elevado e inaceitável para o desobediente (por causa do
diferencial de poder que separa quem dá a ordem de quem a
recebe), em vez de sustentar o argumento em termos do valor
intrínseco do respeito, estará invocando o instinto egoísta de
sobrevivência, e não a preocupação com o bem-estar dos outros
que é atributo de toda postura moral; e, como Albert Camus indicou
com exatidão, dificilmente haverá algo mais desprezível que o
respeito que vem do medo.
Permitam-me repetir, só posso aprovar, louvar e recomendar o
respeito por outros seres humanos como parte e parcela de uma
atitude moral, sem ser capaz de “provar” que assumir essa conduta
por algum motivo seja uma “obrigação”: uma conclusão antecipada
ou uma decisão necessária, inevitável e irrevogável. Necessidade e
inevitabilidade pertencem ao vocabulário da razão – ficam
deslocadas no discurso da moral. Ao falar de uma atitude moral cujo
núcleo duro, segundo Immanuel Kant, é precisamente o respeito
pelo outro como sujeito dotado de autonomia, razão e vontade,
preciso abster-me de recorrer a instrumentos empregados
rotineiramente em seminários acadêmicos, tais como causa e efeito,
inevitabilidade e determinação, correto e incorreto, norma e
exceção.
Quando Emmanuel Levinas insiste em afirmar que a ética
precede a ontologia, está negando à ética o direito ao tipo de
autopromoção que a ciência concretamente adota: a ética não é
superior à ontologia em razão do caráter inquestionável de sua
verdade (sua concordância com a realidade), mas porque é melhor
que a realidade (sendo “melhor” um termo familiar à ética, mas uma
noção estranha à ontologia). Mas ele se apressa em acrescentar: do
fato de eu ter responsabilidade por você e você por mim, não se
depreende que você ou eu iremos, de modo inevitável e sem falhas,
assumir nossas respectivas responsabilidades. As incitações à
responsabilidade, incluindo as incitações ao respeito, podem cair em
ouvidos moucos ou tapados e permanecer vagando no ar. Sobre
isso, Levinas e Kant divergem de maneira radical.
Na visão de Kant, com seu imperativo categórico, para seres
dotados de razão, respeitar outro ser humano é, por assim dizer,
uma necessidade – ponto final. Ele oferece o mandamento bíblico
“Amar ao próximo como a si mesmo” com o imprimátur da razão:
faça a sua regra a partir do que você desejaria que fosse uma regra
universal; em outras palavras, não faça aos outros o que não
desejaria que lhe fosse feito. Se você prefere ser tratado como
sujeito, e não como objeto (como sem dúvida prefere), trate os
outros como sujeitos; se não quer ser um instrumento a serviço dos
objetivos de outras pessoas (como decerto não quer), não trate os
outros como ferramentas suas; se pretende ser amado (como deve
pretender), ame aqueles cujo amor você deseja – e respeite aqueles
cujo respeito você almeja. O imperativo categórico extrai seu poder
de persuasão do princípio da reciprocidade: a expectativa de que os
outros vão tratá-lo como você os trata. Resumindo, o respeito é uma
transação de troca. Quando se oferece respeito, tal como numa
previsão de troca, espera-se que haja uma equivalência entre os
bens intercambiados. O ideal da troca permite a simetria: os
símbolos mais reveladores de uma troca justa são balanças
calibradas à perfeição.
Para Levinas, pelo contrário, o respeito, como a moral, é uma
relação definitivamente assimétrica. Minha responsabilidade está
sempre um passo adiante da sua. De antemão, sou sempre
responsável por você – sou-o antes de me tornar consciente disso
(e ainda que tal não venha a ocorrer), e sem a menor dúvida antes
de eu começar a ruminar sobre o modo de conduta que preciso ou
poderia escolher para seguir esse preceito. Questões do tipo “Que
tenho a ganhar com isso?”, “Quanto esforço e sacrifício de minha
parte eles merecem?”, “Posso esperar que eles retribuam minhas
iniciativas de maneira semelhante?”, embora justificadas quando
avalio minhas ações segundo as sugestões de Kant em relação ao
“imperativo categórico”, não têm lugar no pensamento inspirado pela
“responsabilidade incondicional” de Levinas.
Minha responsabilidade por você não está na categoria de amitia
ou de philia, que presume uma simetria no relacionamento, mas na
da agape: é a responsabilidade do forte pelo fraco, do agente mais
rico em recursos por alguém mais pobre, de uma pessoa sem
restrições de escolha por alguém desprovido dessa possibilidade. A
responsabilidade pelo outro não é a responsabilidade diante de um
superior, chefe, comandante, disciplinador ou opressor. O “outro”
pelo qual sou responsável não tem poder sobre mim, não pode me
mandar fazer coisa alguma, nem me forçar a isso; nem pode me
punir por desistir de minhas responsabilidades ou descuidar delas.
Sou comandado, por assim dizer, por sua fraqueza e pelo modesto
silêncio de sua presença.
Nessa condição, a responsabilidade é incondicional e não tolera
exceções, insiste Levinas – ele não chega a entrar em detalhes e
nada revela sobre suas exigências precisas. Uma vez descoberta e
reconhecida como tal (Levinas chama o momento da descoberta de
“despertar”, “ficar lúcido”, “recuperar a visão”, expressões que
sugerem a espontaneidade do evento e uma ruptura com qualquer
tipo de continuum), ela então confronta o descobridor com a
necessidade de realizá-la a contento. O despertar da
responsabilidade incondicional e sua aceitação não são
determinantes, mas estímulos à exploração posterior; incentivam
uma busca, embora isso não garanta uma descoberta – e, acima de
tudo, não definem o momento em que se pode considerar que a
busca alcançou seu objetivo, e portanto deve ser interrompida. Uma
vez reconhecida e aceita, a responsabilidade pelo outro coloca
sobre o self moral o dever de interpretação de suas exigências
práticas. Nada define essas exigências a priori, enquanto o
significado que lhes é atribuído a posteriori carece de fundamentos
para que sejam percebidas como um preceito universalmente válido.
A descoberta da responsabilidade (o despertar, por assim dizer,
para o fato de se arcar com ela) não é um ato único e singular,
desencadeando uma série de eventos e incumbências que irá
consolidar de uma vez por todas a incondicionalidade. A
responsabilidade precisa e tende a ser descoberta repetidas vezes,
a cada encontro com o outro, ou mesmo a cada estágio sucessivo
de um encontro. Por conseguinte, lança o descobridor num estado
de incerteza crônica, talvez incurável, que tende a aumentar (em
vez de se reduzir) à medida que se prolonga a cadeia de ações. No
universo da lei, a ausência de um parágrafo equivale à ausência de
crime; no mundo da moral, contudo, a ausência de parágrafos
significa ausência de inocência – ou pelo menos a impossibilidade
de provar sua presença.
Na falta de prescrições autorizadas e inequívocas para se isentar
da responsabilidade, nada que um sujeito moral possa fazer irá
oferecer a certeza de que tudo que a responsabilidade exige tenha
sido realizado de forma plena e satisfatória. O hábitat natural da
moral é um estado crônico de indefinição e indeterminação. A moral
ganha voz quando e onde os imperativos da razão emudecem – ou
quando e onde a voz lhes é negada: quando e onde a decisão de
assumir a responsabilidade por bem-estar, autonomia, integridade e
subjetividade do outro suspende a legitimidade e a autoridade dos
julgamentos da razão, privando-a de suas credenciais como Tribunal
de Apelações – de ser uma autoridade à qual se pode recorrer para
questionar as ações induzidas por um impulso moral.
Voltando à questão do respeito, conceito reconhecidamente
aberto a uma variada gama de interpretações abrangentes e
limitadoras: sugiro que a atenção e a autoridade do campo das
relações humanas sejam transferidas do domínio da razão
(racionalidade, regras, prescrições e proscrições, o cálculo de
perdas e ganhos e o cálculo de probabilidades) para o da moral (ou
seja, da prioridade do ser humano necessitado), em sua essência.
O termo alemão que os tradutores de Kant transpuseram para
“respeito” é Achtung – que significa, no sentido básico e essencial,
“atenção”. O que opõe respeito e desrespeito (ou desprezo) é a
diferença entre dar atenção e ignorar. “Desrespeito” significa, em
primeiro lugar, indiferença ou não equanimidade. Em última
instância, o postulado do respeito veta o desprezo: “ignorar” o outro
sem reconhecer sua presença, não “dar atenção” – rejeitar
previamente o outro como “indigno de atenção”. Em lugar disso, ele
exige que se pare, ouça com cuidado a voz do outro enquanto se
suspendem por algum tempo os demais interesses, detendo-se por
período suficiente para apreender, digerir e compreender
plenamente que tipo de conteúdo sua mensagem pode transmitir.
Em outras palavras, o postulado do respeito exige dar ao outro,
explícita ou implicitamente, o direito de estabelecer a agenda – ou
pelo menos aceitar sua sugestão de agenda como algo digno de
atenção e consideração total. Em suma, o respeito pelo outro
consiste em reconhecê-lo como parceiro igual no diálogo, como um
sujeito que tem algo importante a dizer; alguma coisa que – tal como
os réus que são inocentes enquanto a culpa não for provada –
continua digna de se ouvir com atenção até (e a menos) que a
trivialidade ou futilidade de suas expressões se demonstre de forma
convincente. A alternativa ao respeito, no caso de uma pessoa da
qual se espera respeito, é o desdém e a humilhação.
Estabelecer um diálogo (com mais exatidão, acender a luz verde
para o polílogo, considerando que esse acesso aberto é atributo
indispensável do diálogo) equivale na prática à suspensão da
autoconfiança e à submissão a um curso de eventos incerto e
imprevisível: aceitar que o resultado da troca irá derivar da interação
de uma série de iniciativas, nenhuma delas capaz de invocar o
direito de dar a última e decisiva palavra (ou pelo menos ter tal
direito garantido e assegurado de antemão). O diálogo de boa fé
não existe a menos que se aceite e observe a igualdade dos
participantes. Enquanto durar o diálogo, as hierarquias que atribuem
“superioridade” e “inferioridade” ficam suspensas (pelo menos de
modo intencional). Além disso, também está suspensa qualquer
pressuposição de que as diferenças entre os participantes são
grandes demais para tornar plausíveis a comunicação mútua e o
eventual consenso; os dialogadores devem presumir que o que é
comum a todos eles importa mais que aquilo que os separa e,
portanto, é capaz de prevalecer e neutralizar o impacto ofensivo da
discórdia.
Como escreveu são Paulo em sua epístola aos gálatas: “Não há
diferença entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre
homem e mulher, pois todos vocês são um só em Jesus Cristo. … A
Lei, portanto, é para nós como um pedagogo que nos conduziu a
Cristo, para que nos tornássemos justos mediante a fé. Chegada a
fé, já não estamos mais sob os cuidados de um pedagogo.” (Gal.
3:28, 24-5).b Essas palavras ainda são o protótipo de todas as
abordagens posteriores, incluindo as atuais, da essência de respeito
e respeitabilidade. Como Robert Pawlik expressou com
sensibilidade e clareza:
A Ecclesia é formada pela suspensão messiânica de todas as linhas divisórias
existentes. Um evento messiânico é uma ruptura e uma reviravolta tão radicais que
resulta na “des-ativação” de ordens jurídicas até então operantes – tanto religiosas
quanto políticas. … A partir desse momento (na “era messiânica”), as relações
humanas não são mais reguladas pela lei e pelas hierarquias e relações de poder a
ela associadas, mas pelo amor ao próximo.3
Fica-se tentado a ruminar que agora vivemos em outra “era
messiânica” – embora desta vez, pelo menos até agora, sem
nenhum “evento messiânico”, nem a expectativa de sua chegada
iminente. A ideia de que vivemos numa “era messiânica” é sugerida
pela soma de sinais de que a “des-ativação das ordens jurídicas
existentes”, a “suspensão das atuais linhas de confronto” e o deixar
de estar “sob a tutela da antiga fé” estão muito atrasados. Mas
precisamos e sentimos falta de um “evento messiânico” comparável
às boas-novas transmitidas por são Paulo aos gálatas em seu
potencial “faça-nos um”.
Graças à abismal desproporção entre a grandiosidade do desafio
e a insignificância de nossa caixa de ferramentas, estamos vivendo,
como Antonio Gramsci observou quase cem anos atrás
(“profeticamente”, ficamos tentados a dizer), num período de
interregno; ou seja, numa condição em que o velho perde depressa
sua força e seu poder de ação, enquanto o novo, que em tese
poderia substituí-lo, ainda não nasceu ou continua muito pequeno e
soluçando baixo demais para atrair nossa atenção. Num período
registrado com o nome de “interregno”, tudo pode acontecer,
embora nada possa ser empreendido com autoconfiança total, e
ninguém possa estar seguro do resultado de suas ações. O veneno
de nossa época é a impossibilidade de comparar intenções e forças
necessárias para concretizá-las. O mais angustiante dos dilemas já
não é “o que deve ser feito”, porém, “quem é capaz de fazê-lo”, no
caso de conseguirmos chegar a um acordo sobre isso.
O “velho” que está perdendo força e poder de ação é o
fatiamento do planeta em ordens locais só de nome soberanas,
baseadas na superposição e na coagulação cada vez mais fictícias
de território, Estado e nação. O “novo” que até agora fracassou em
demonstrar sua presença é uma ordem global, genuinamente
“ecumênica”, com base na comunidade humana planetária –
embora, ao contrário do passado, não necessariamente em sua
unidade congregacional, ética, cultural e política. Para jogar sal
numa ferida aberta, procuramos em vão um precedente histórico
para nos assegurar que esse tipo de novidade é plausível.
A ideia de que é direito de nascença de cada ser humano
participar de uma comunidade que abranja a humanidade inteira – e
portanto o direito ao reconhecimento, ao respeito e à dignidade
devidos a todos os seres humanos apenas por serem humanos e
apesar de toda e qualquer restrição que os separe dos outros seres
humanos – é impressionante em sua ferrenha oposição àquilo que
até agora foi percebido como a natureza inalterável da convivência
humana.
Carl Schmitt, considerado o teórico mais agudo e perspicaz da
política na era dos Estados-nação e de sua soberania absoluta e
indivisível, tomou a “indicação do inimigo” como traço definidor da
política; e a oposição entre “amigos” e “inimigos” (na prática, entre
“nós” e “eles”) como seu eixo constitutivo. Sem um inimigo, não há
Estado, política, unidade comunal e soberania do Estado – nem
pode haver. A associação, principal objetivo do soberano, só pode
ser obtida por meio da dissociação; a inclusão (de “amigos”) não
pode ser nem será realizada sem a simultânea exclusão (de
“inimigos”). O domínio do Estado de direito é inconcebível sem que
suas fronteiras sejam estabelecidas e superpostas à fronteira que
separa amigos de inimigos.
A organização política da Europa pós-Vestfália, em cujas práticas
Schmitt certamente baseou suas generalizações, não seria viável
sem a aglomeração de animosidades e conflitos. Não é preciso
dizer que, no mundo que emerge das páginas de Political Theology,
de Schmitt, não há lugar para a categoria de respeito – enquanto a
ideia de um direito universal a ser respeitado significaria um absurdo
total. Afinal, esse mundo foi articulado e trazido à luz pela vontade
de um soberano territorial – vontade que se expressa em seu poder
de apontar inimigos e isentá-los da norma legal.
Partindo de premissas diferentes, René Girard chegou a
conclusões quase idênticas. O ato de nascença da comunidade
humana, na visão de Girard, é o “crime original”, um tipo de crime
que torna cúmplices tanto os contemporâneos quanto seus
descendentes, sejam eles cotemporais ou “retrospectivos”. Pela
lógica dessa designação, os cúmplices desenvolvem um interesse
em cerrar fileiras para defender essa comunidade e garantir sua
sobrevivência – como o único escudo a protegê-los do julgamento e
do veredicto de culpados. A dedicação sincera à causa da
comunidade exige de seus membros vigilância, desconfiança e
inimizade em relação aos não membros, assim como a aprovação
incondicional do que for considerado indispensável, ou mesmo
apenas útil, para o vigor da comunidade.
As comunidades permanecem vivas por meio de rituais regulares
de recriação do “ato fundador” (ou melhor, do mito etiológico), no
curso dos quais os inimigos conspiram, mas têm suas intenções
iníquas reveladas a tempo e seus malefícios obstados, de modo que
os maquinadores são desqualificados antes de ter oportunidade de
pôr seu esquema em operação, embora nunca sejam totalmente
desarmados, muito menos aniquilados; pois esse desfecho da
história seria contraproducente, eliminando os motivos para
continuar com a disciplina acrítica (a “servidão voluntária”) que a
comunidade exige de seus membros em nome da continuidade de
sua existência (e, por extensão, da deles).
As histórias contadas por Schmitt e Girard diferem no tema e na
argumentação, mas confluem em sua mensagem principal: o
respeito não tem muita chance de ser promovido à posição de valor
universal. As realidades da vida social, seus padrões e seu feitio de
autorreprodução historicamente constituídos não podem ser
compatibilizados com facilidade, seja com os argumentos racionais
de Kant, seja com os postulados éticos de Levinas. Conflito e
consenso, inimizade e amizade são irmãos siameses, incapazes de
viver separados e resistentes aos esforços do melhor cirurgião. A
unidade deriva da divisão; o respeito, da negação da dignidade
humana.
Diz-se que Ronald Reagan, presidente não particularmente
famoso por suas habilidades acadêmicas, mas homem dotado de
um sólido volume de sabedoria popular, teria consolado Mikhail
Gorbachev afirmando-lhe que, mesmo que os interesses dos
Estados Unidos e da União Soviética não pudessem se
compatibilizar naquela época, seus exércitos decerto juntariam
forças para repelir o inimigo comum quando invasores vindos do
espaço atacassem a Terra. Talvez ele tivesse razão, mas o
problema é que os alienígenas ainda não estão atacando para nos
ajudar a realizar o antigo sonho da dignidade humana global e da
universalidade do respeito mútuo. Em sua ausência, nós, residentes
nativos da Terra, só temos como alternativa procurar armas nas
guerras santas intertribais travadas em nome do reconhecimento –
ou seja, do direito ao respeito.
Pelo veredicto da história, ou melhor, por decretos promulgados e
elaborados por seres humanos, nós ganhamos o direito de escolha
ao mesmo tempo que nos é imposto o dever de escolher; assim,
temos de lutar pelo reconhecimento social de nosso modo de ser,
sempre pré-interpretado como resultado de nossas escolhas
voluntárias; reconhecimento da forma como vivemos individual ou
coletivamente na companhia de “outros como nós” – seja por ação
ou omissão, ou em reação a pressões insustentáveis de outras
pessoas. O que em geral se entende por “reconhecimento social” é
a opinião das “pessoas que contam” sobre os méritos e deméritos
de nosso modo de vida; e sobretudo sua avaliação sobre o respeito
devido a certos tipos de criatura, tendo em vista a forma como
vivem, e que precisa ser garantido a elas na mesma medida que é
concedido a outras.
Políticos dignos desse nome são rápidos na identificação de uma
fonte extra de apoio eleitoral. Já que poucos eleitores se sentem de
fato imunes à ameaça de uma súbita reversão do destino que
pressagie a negação de sua dignidade, mas todos – quer estejam
no topo ou na base – têm o desejo também inabalável de se ver
respeitados pelo que são, foram forçados a ser ou lutam para se
tornar, mais cedo do que se espera, o direito ao respeito pode ser
negado ou revogado sob o lema de “não respeitar os inimigos do
respeito” (isso significando as pessoas que se recusam a respeitar
os veredictos dos encarregados de sua alocação e distribuição),
tudo em nome de sua defesa e promoção.
21 DE DEZEMBRO DE 2010
Sobre algumas de minhas idiossincrasias
(não todas!)
Por ocasião de meu 85º aniversário, fui pressionado (da maneira
mais amigável) por Simon Dawes, em nome de meus colegas de
Theory, Culture & Society (TCS, um dos periódicos mais
infatigáveis, inovadores e corajosos que conheço, abastecedor
constante de ar fresco na atmosfera desanimadora e apática das
ciências humanas), a confessar de público o caráter eternamente
fora dos trilhos do meu tipo de sociologia. Foi uma pressão a que
sucumbi prontamente e com satisfação, com mais disposição ainda
porque vinda de círculos cuja excelência se deve a essa falta que a
maioria vociferante considera um sinal de imperfeição. Cito abaixo
alguns fragmentos dessa confissão.
SIMON DAWES – Para começo de conversa, gostaria de lhe perguntar
em que medida você imagina que a liquidez de nossas experiências
de vida tem influenciado sua interpretação da modernidade (líquida),
como Martin Jay insinua em seu artigo na TCS? Você se reconhece,
por exemplo, como um “outsider ambivalente” que “aprendeu a
andar na areia movediça”?
ZYGMUNT BAUMAN – Com prazer (e, presumo, prudência), eu deixaria
a resposta dessa pergunta aos psicanalistas, especializados em
estabelecer esses tipos de vínculos ou simples coincidências e
reapresentá-los como conexões casuais. Tendo sido um pássaro
nessa história, e não um ornitólogo (e os pássaros, como sabemos,
não são em particular notáveis para os ornitólogos), talvez eu seja a
última pessoa a que se devesse fazer essa pergunta em busca de
uma resposta competente. O máximo a que realmente consigo
chegar é a observação banal de que a experiência da fragilidade
dos ambientes nos quais e pelos quais me movi no curso de meu
itinerário existencial fantasticamente longo deve ter (não deve?)
influenciado o que vi e como o vi. Sem dúvida, a arte de andar sobre
areia movediça ainda está fora do meu alcance. Só aprendi como é
difícil dominar essa arte e como as pessoas precisam se esforçar
para aprendê-la.
Quanto a ser descrito como outsider total, do começo ao fim
(devo essa descoberta a Dennis Smith, num texto publicado na TCS
em 1998), não tenho motivo para discordar. Na verdade, nunca
“pertenci” a escola, a qualquer ordem monástica, comunidade
intelectual, partido político ou grupo de interesse; não solicitei
admissão em nenhum deles, muito menos fiz muita coisa para
merecer um convite; nem seria eu relacionado por algum deles –
pelo menos em termos irrestritos – como “um dos nossos”. Creio
que minha claustrofobia é incurável – sentindome, como tendo a me
sentir, desconfortável em qualquer sala fechada, sempre tentado a
descobrir o que está do outro lado da porta. Acho que estou
destinado a permanecer um outsider até o fim, faltando-me, como
me faltam, as qualidades indispensáveis de um insider acadêmico:
lealdade a uma escola, conformidade a seus procedimentos e
disposição de aceitar os critérios de coesão e coerência endossados
por essa escola. E, francamente, isso não me importa.
SD: Você confia na metáfora dicotômica sólido/líquido em suas
avaliações da modernidade, mas em que medida esses termos são
mutuamente excludentes? Essa relação poderia ser vista como
dialética?
ZB: Nunca pensei nem penso no enigma da solidez/liquidez como
uma dicotomia; vejo essas duas condições como uma dupla
inseparavelmente ligada num vínculo dialético (algo como o que
François Lyotard decerto tinha em mente quando observou que não
se pode ser moderno sem primeiro ser pós-moderno). Afinal, foi a
busca da solidez das coisas e dos estados que muitas vezes
desencadeou, pôs em movimento e guiou a liquefação dessas
coisas e estados; por seu turno, foi a amorfia do líquido escoando,
umedecendo e fluindo que estimulou os esforços de esfriar, misturar
e moldar. Se há algo que permite uma distinção entre as fases
“sólida” e “líquida” da modernidade (ou seja, organizá-las em ordem
de sucessão), isso é a mudança no propósito, tanto manifesto
quanto latente, por trás de um esforço que de outro modo seria
contínuo e estável.
Na origem, os sólidos derretiam não porque houvesse uma
ojeriza à solidez, mas por insatisfação com o grau de solidez dos
sólidos herdados existentes: pura e simplesmente, os sólidos
legados, pelo que se descobriu, não eram sólidos o bastante (não
resistentes e imunizados contra a mudança) segundo os padrões
das autoridades modernas, obcecadas pela ordem e
comprometidas, de modo compulsivo, com sua construção. Depois
(em nossa parte do mundo, até hoje), os sólidos foram reconhecidos
como condensações transitórias do magma líquido. São arranjos
temporários, “até segunda ordem”, e não soluções finais – em que a
flexibilidade substitui a solidez como condição ideal a ser
perseguida. Mesmo quando desejados, os sólidos só são tolerados
enquanto prometem permanecer fácil e obedientemente fundíveis
quando necessário; antes que se empreenda a tarefa de montar
uma estrutura, firmá-la e solidificá-la, uma tecnologia adequada para
tornar a fundi-la já deve estar à mão. Deve-se oferecer uma garantia
confiável do direito e da capacidade de desmontar a estrutura
construída antes que o trabalho de construção seja iniciado a sério.
Estruturas “biodegradáveis” são hoje o ideal e o padrão que a
maioria das estruturas, se não todas, lutam por atingir.
SD: Você poderia explicar como a liberdade verdadeira e a
autonomia genuína do Iluminismo diferem da (falsa, líquida,
consumista) liberdade do mercado? E o que você pensa da
afirmação de John Milbank, de que nos falta uma base metafísica
para falar dessa liberdade?
ZB: Em resumo, ao passo que a liberdade mirada pelo Iluminismo e
exigida e prometida por Marx era feita sob medida para o produtor
ideal, a liberdade promovida pelo mercado foi projetada tendo em
mente o consumidor ideal; uma não é “mais genuína” que a outra.
Mas, na minha visão, esse é um problema sociopolítico, não uma
questão metafísica. Eu era, continuo a ser e provavelmente serei até
a morte interessado nos mecanismos sociopolíticos que geram
pressões “habilitadoras” e “desabilitadoras” em série, articulando-as
e interligando-as, tornando-as, em geral, inseparáveis, da mesma
forma como irmãos siameses compartilham seus sistemas pulmonar
e digestivo.
Creio que uma liberdade ideal e perfeita, a “liberdade completa”,
capaz de habilitar sem desabilitar, é um paradoxo em termos
metafísicos, da mesma forma que um objetivo inatingível na vida
social.
SD: No artigo que publicou na seção especial, Julia Hell identifica
uma ênfase frequente em seus textos sobre os atos de olhar. Para
você, qual o laço entre o olhar e “o outro”, ou que importância tem
para você o olhar do/para “o outro”?
ZB: Creio que Julia Hell tem razão. A impressão visual talvez seja
para mim, entre todas, a mais plenamente captada e registrada; a
visão parece ser o principal órgão sensorial, e “ver” fornece as
metáforas-chave para relatar a percepção. O mesmo se dá com a
constituição da percepção/imaginação de Levinas, meu professor de
ética: é a visão de l’Autre que desencadeia o impulso moral, e é ela
que me transforma num sujeito moral ao me expor, submeter e
subordinar ao objeto de minha responsabilidade (o que ocorre
mesmo antes que l’Autre tenha uma chance de abrir a boca, e
portanto antes que eu possa ouvir qualquer exigência ou pedido) –
embora o tato, o afago, seja uma metáfora melhor para o modelo de
Levinas sobre o que vem depois dessa visão e desperta o eu moral.
O que me parece não mencionado e esquecido, contudo, na
dissecação surpreendentemente perspicaz de Julia sobre o “olhar” é
outra variedade sua – importantíssima para revelar a relação
complexa entre olhos e ética. O olhar que ela focalizou de maneira
tão perceptiva e inspiradora, o olhar de Orfeu, é, por assim dizer,
daquele tipo “matar por amor” ou “assassinato por amor” (embora
também, em potência, capaz de salvar e libertar). Contudo, há ainda
o “olhar de Panwitz”, experimentado, identificado e vividamente
reconstruído por Primo Levi: um olhar que “mata pela
despreocupação”; ou, de forma mais adequada, “mata pela
indiferença”, imune ao bacilo da moralidade, vacinado contra o
impacto de encontrar um Outro, impacto dotado do poder de
despertar a responsabilidade. Creio que localizar os meios e formas
societais de substituir o olhar de Orfeu pelo de Panwitz, de privar o
olhar de seu poder ético inato (processo que chamo de
“adiaforização”), é deveras crucial em qualquer tentativa séria de
mapear o itinerário convoluto e contorcido do eu moral no mundo
líquido moderno.
SD: Mudando de assunto, você poderia nos falar mais sobre seu
próximo livro, Collateral Damage? De que ele trata e como se
relaciona com seus outros trabalhos?
ZB: Vou resumir. A principal estratégia de toda e qualquer luta de
poder consiste em “estruturar” a condição do opositor enquanto se
“desestrutura”, ou seja, se desregula, a própria condição – isso era e
continua a ser uma característica permanente das modernas
estratégias de poder. Entretanto, na sociedade de produtores, o
arranjo sólido moderno representado pelo paradigma da “fábrica
fordista” cum “Estado social”, os dois lados do conflito tinham
interesse em evitar que a desigualdade ficasse fora de controle –
enquanto agora já não se trata disso.
Por conseguinte, as probabilidades favoráveis àqueles que estão
“perto das fontes de incerteza”, e desfavoráveis aos outros, fixados
e amarrados à sua extremidade receptora, foram multiplicadas de
maneira radical. O que mudou foi que os esforços para reduzir o
hiato, mitigar a polarização das oportunidades e a discriminação daí
resultante se tornaram marginais e transitórios: esses esforços são
agora espetacularmente ineficazes, até impotentes, para
interromper o aumento descontrolado da fortuna e da miséria nos
dois polos do atual eixo do poder. São afligidos por um déficit
crônico do poder de agir e fazer com que as coisas sejam
realizadas, enquanto, do lado das forças que pressionam na direção
oposta, o poder continua a ser acumulado e armazenado. Os
governos dos Estados buscam em vão remédios locais para
privações e misérias produzidos globalmente – tal como indivíduos
por decreto do destino (leia-se: pelo impacto da desregulamentação)
buscam em vão soluções individuais para problemas existenciais
socialmente fabricados.
“A desigualdade entre os indivíduos no mundo é espantosa”, diz
Branko Milanovic, principal economista do departamento de
pesquisa do Banco Mundial. “Na virada do século XXI, os 5% mais
ricos do planeta recebem um terço do total da renda global, tanto
quanto os 80% mais pobres.” Embora alguns países pobres estejam
se emparelhando ao mundo rico, as diferenças entre os indivíduos
mais ricos e mais pobres são enormes e tendem a crescer.
Em 2008, Glenn Firebaugh assinalou que “vemos a reversão de
uma tendência duradoura: da desigualdade crescente entre as
nações e a desigualdade constante ou decrescente dentro delas
para uma desigualdade decrescente entre as nações e uma
desigualdade crescente dentro delas. Essa é a mensagem de meu
livro de 2003, The New Geography of Global Income Inequality” –
uma mensagem que desde então tem se confirmado.
SD: O que você acha da recente onda de interesse pela
desigualdade e pelas crises econômicas e ambientais – que propõe
decrescimento, economias sustentáveis, pós-capitalismo – ou sobre
a relevância duradoura do comunismo como soluções para esses
problemas?
ZB: De modo pungente e sucinto, o grande José Saramago já
respondeu sua pergunta, ao apontar que as pessoas não escolhem
um governo que colocará o mercado sob controle; em vez disso, o
mercado condiciona os governos de todas as formas a colocar as
pessoas sob seu controle. Várias décadas atrás, em A crise de
legitimação no capitalismo tardio, Jürgen Habermas declarou que a
função dos Estados capitalistas é assegurar que ocorra um encontro
entre capital e trabalho, e que ambos os lados cheguem ao encontro
dispostos e preparados para a transação. Como a sociedade de
produtores dirigida pelo capital se transformou desde então numa
sociedade de consumidores também dirigida pelo capital, eu diria
que a função principal, na verdade a “metafunção”, dos governos
tornou-se garantir que ocorram encontros entre mercadorias e
consumidores, de um lado; e emissores e mutuários de crédito, de
outro – o que tem sido comprovado pelos governos, como se isso
fosse necessário, ao lutar com unhas e dentes em relação a cada
centavo de que a “subclasse” (ou seja, os “consumidores falhos
[inúteis]”) precisa para se manter viva, mas encontrar, como por
milagre, centenas de bilhões de libras ou dólares para “recapitalizar
os bancos”.
Apontei recentemente, seguindo um palpite de Keith Tester, que
nos encontramos num período de “interregno”: “o velho” não
funciona mais, “o novo” ainda não nasceu. Mas já está bem viva a
consciência de que, a menos que ele nasça, estamos todos
condenados a desaparecer; assim como a consciência de que o
osso duro que precisamos urgentemente roer não é a presença de
“um número muito grande de pobres”, mas de “um número muito
grande de muito ricos”. Permitam-me citar, mais uma vez, José
Saramago:
E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número
de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à
desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria
absoluta, para produzir um rico.
Suponho que esse apelo e outros semelhantes irão ganhar
intensidade nos próximos anos – e espera-se que audiência
também.
SD: Você poderia dizer alguma coisa sobre o que está lendo no
momento ou o que leu recentemente que o tenha impressionado?
ZB: Para mim, os últimos anos têm desestimulado as viagens de
descobrimento. Não muitas tentadas, bem poucas concluídas.
Mas, como você pode deduzir de nossa conversa até agora,
Saramago foi uma descoberta (infelizmente tardia). Fico triste pelo
fato me de restarem apenas algumas de suas obras ainda não lidas
para saborear – já que ele não vai escrever mais…
Outras descobertas foram as primeiras distopias elaboradas para
o mundo líquido moderno, codificando, extrapolando e levando à
sua conclusão lógica (quer dizer, se nossa arte coletiva do ilógico e
do inesperado não interferir a tempo). No cinema, Michael Haneke.
Na literatura, Michel Houellebecq: ele tende a representar para o
século XXI o que Zamyatin, Orwell e Aldous Huxley significaram
para o século XX.
Minha última descoberta, não da mesma classe, mas igualmente
grande: o estudo que Sarah Bakewell fez sobre Montaigne com o
enigmático título de How to Live, “como viver” (prestem atenção,
enfaticamente, não é “como se deveria viver”).
Estou fascinado pelos estudos de Keith Tester sobre arte
cinematográfica – tanto os já publicados quanto os que em breve o
serão. Eles abrem paisagens inteiramente novas onde se pensaria
que tudo já foi dito. Ainda estou tentando apreender sua
significação.
SD: Uma última pergunta: a TCS está comprometida com o
processo de avaliação pelos pares, e muitos de seus colaboradores
(tanto rejeitados quanto aceitos) estão gratos pelo feedback de
nossos editores e pareceristas anônimos, assim como pelo
subsequente pelo aperfeiçoamento de seus artigos. Mas você é
crítico em relação a esse processo e não atua mais como árbitro
para nós. Poderia dizer por quê?
ZB: Há, segundo as estimativas mais conservadoras, duas vítimas
colaterais sérias e profundamente lamentáveis do repulsivo
estratagema da avaliação pelos pares: uma é a ousadia de pensar
(reduzida ao mínimo denominador comum); a outra é a
individualidade e a responsabilidade dos organizadores (os que
buscam abrigo sob o anonimato da condição de “pares”, mas na
verdade nele se dissolvem, em muitos casos sem deixar vestígios).
Diversos outros prejuízos se produzem, claro, como a ilusória
segurança sugerida pela “decisão da comissão”, amortecendo assim
o impulso crítico do leitor ou suprimindo a temperança e por vezes
também a honestidade dos “pares” em função das garantias de
anonimato em ações das quais eles, de outra forma, desistiriam. O
resultado geral é uma restauração do estado de coisas asperamente
descrito por Hannah Arendt como de “responsabilidade flutuante” ou
“responsabilidade de ninguém”.
Por fim, mas não menos importante, eu destacaria outro exemplo
de dano colateral: a multiplicidade de trilhas abertas e a
heterogeneidade do que as inspira. Suspeito que o sistema de
avaliação por pares carregue boa parte da culpa pelo fato de algo
em torno de 60% ou mais dos artigos dessas publicações jamais
serem citados (o que significa que não deixam marcas em nossas
atividades intelectuais conjuntas); e (pelo menos na minha
percepção) de as “publicações eruditas” (com poucas e milagrosas
exceções que incluem em especial a TCS) apresentarem uma
repetitividade absurda e destilarem um enfado monumental. Para
encontrar uma só ideia esclarecedora e seminal (em contraste com
uma receita para atravessar com segurança a barricada construída
pelos pares), muitas vezes é necessário folhear milhares de páginas
de uma dessas revistas. Com certa ironia, eu sugiro que, se nossos
ancestrais da Idade da Pedra tivessem descoberto a máquina da
avaliação por pares, ainda estaríamos sentados nas cavernas.
Assim, talvez o estratagema que estamos debatendo também seja
culpado por uma enorme perda de tempo e de potência intelectual.
Em suma, esse não é o tipo de jogo de que eu participaria com boa
vontade.
25 DE DEZEMBRO DE 2010
Sobre a nova aparência da desigualdade
Frank Rich, um dos principais colunistas da página de opinião do
New York Times, observa na edição de ontem, sobre a voz do
liberalismo americano: “A igualdade econômica parecia alcançável
em 1956, ao menos para a ampla classe média. A percepção de
que a promessa americana de mobilidade social e econômica era
concretizável para qualquer um que a buscasse…” Esse era, lembra
ele a seus leitores, não contando com suas memórias, o ânimo da
nação 55 anos atrás. Quanto à classe média americana atual, Rich
só precisa fazer uma pergunta puramente retórica: “Quantos
americanos de classe média acreditam agora que o céu é o limite
caso se esforcem o suficiente? Quantos acreditam que o capitalismo
lhes dará um tratamento igualitário?” – ou seja, quantos americanos
conseguiram preservar e manter a antiga confiança, tão viva apenas
meio século atrás, e acreditam na “igualdade social da mobilidade”
ou no “avanço da igualdade”, na “igualdade cada vez mais próxima”,
na “igualdade ao nosso alcance”. Realmente é uma pergunta
retórica, já que nesse caso Rich pode confiar que seus leitores vão
responder sem hesitação: não muitos. Foi isso, em termos gerais,
que aconteceu com o sonho da classe média “de que todos podem
entrar na Terra de Fronteira caso se esforcem o bastante; e de que
ninguém terá negado o direito a realizar seu sonho porque um grupo
privado alugou a Terra do Amanhã”.
Um dia antes, outro colunista da página de opinião do New York
Times, Charles M. Blow, havia observado certas evidências
estatísticas:
De acordo com o Centro Nacional para Crianças na Pobreza, 42% das crianças
americanas vivem em lares de baixa renda, e cerca de 20% vivem na pobreza. Está
piorando. O número de crianças vivendo na pobreza subiu 33% desde o ano 2000.
Para se ter uma perspectiva, a população infantil do país como um todo aumentou
apenas 3% nesse período. E, segundo um relatório de 2007 do Unicef sobre pobreza
infantil, os Estados Unidos ficaram em último lugar entre 24 países ricos. … [A] reação
a esse tema em algumas áreas ainda é influenciada por classe e raça: vamos acabar
com o bem-estar social de pessoas negras e pardas que fizeram escolhas ruins e não
têm o bom senso de trabalhar para superá-las.
Não é necessário contar aos pais desses 42% de crianças
americanas, lutando como lutam, dia após dia, tentando manter as
contas pagas, que as chances de igualdade não estão à vista para
seus filhos, enquanto os pais dos 20% de crianças que vivem na
pobreza
dificilmente
reconheceriam
as
“chances”
cujo
desaparecimento os últimos dados descrevem. As duas categorias
de pais teriam, contudo, muito pouca dificuldade, se é que teriam
alguma, em decodificar a mensagem que flui, em alto e bom som,
dos lábios daqueles que estabelecem as leis da terra e as traduzem
na linguagem dos direitos e deveres de seus cidadãos. A
mensagem é a própria simplicidade: esta não é mais uma terra de
oportunidades; esta é uma terra para pessoas com agressividade.
A “igualdade em termos de mobilidade” socialmente administrável
foi a pique ao se chocar com a rocha dura da desigualdade em
matéria de iniciativa individual. A “agressividade” dos pais é o único
salva-vidas disponível aos que desejam navegar com os filhos para
fora da pobreza. O barco é pequeno; seria uma sorte encontrar
algum que tivesse capacidade suficiente para acomodar toda a
família. É mais provável que só poucos de seus membros, os mais
audaciosos e pães-duros, e portanto aqueles com maior suprimento
de agressividade, conseguirão se espremer no escaler e manter o
lugar até que se chegue à costa. E a jornada não é mais (se é que
já foi) uma viagem rumo à igualdade. Em vez disso, é uma corrida a
fim de deixar os outros para trás. A sala que fica no topo é préagendada e somente os escolhidos têm permissão de entrar. Como
Frank Rich aponta com propriedade, “um grupo privado alugou a
Terra do Amanhã”.
A terra das oportunidades prometia mais igualdade. A terra das
pessoas agressivas só tem a oferecer mais desigualdade.
26 DE DEZEMBRO DE 2010
Sobre a ressocialização do social
O editorial de hoje do Le Monde (“Contra a crise e a pobreza, a
proteção social”) compartilha com seus leitores uma admirável
descoberta: pouco a pouco, dando com cautela um passo de cada
vez, mas ultimamente em ritmo acelerado pelo fantasma de um
colapso econômico mundial, baixou sobre os formadores de opinião,
assim como sobre aqueles que fazem as coisas, a ideia de que a
proteção social endossada pelo Estado é condição necessária tanto
de uma economia saudável quanto da defesa em relação às piores
consequências de uma economia doente. Essa não é apenas uma
questão de caridade e generosidade, como a ideologia dominante
da “Reaganomia” e da “Thatchernomia” queriam nos fazer acreditar.
Em outras palavras, restaurar antigos mecanismos de seguro
coletivo contra o infortúnio individualmente sofrido ou construir
novos mecanismos a partir do zero não é apenas do interesse do
desafortunado, mas uma questão de interesse comum, na verdade,
de sobrevivência comum. O conflito de interesses entre
contribuintes e beneficiários da previdência social é produto de uma
imaginação ideologicamente alimentada e encorajada. O que atinge
de modo mais doloroso o contribuinte não é a liberalidade do Estado
de bem-estar social, mas sua mesquinhez – já que esta atinge a
fonte de seu próprio bem-estar, a renda com a qual se pagam os
impostos.
Há um número crescente de indícios materiais, embora nem tanto
de declarações de fé, atestando que essa mudança, um verdadeiro
divisor de águas no pensamento de alto nível, de fato está
ocorrendo. A ideia da Organização Internacional do Trabalho, de
incluir a proteção social na lista dos direitos humanos fundamentais,
ainda é depreciada como algo próximo de uma utopia. Porém, na
prática da política internacional, a proposta está cada vez mais
próxima da realidade atual – ou pelo menos da realidade previsível.
Em julho de 2010, as Nações Unidas, num ato que quase não foi
comentado pela imprensa mundial nem chegou ao conhecimento do
público, tomaram a decisão corajosa de nomear Michelle Bachelet,
ex-presidente do Chile, para promover a causa (na verdade, a
cruzada) da difusão de práticas de bem-estar social em partes do
mundo até então carentes delas. Isso tem sido feito com o apoio
sincero do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, duas
instituições conhecidas por lutar com unhas e dentes a favor de
cortes impiedosos nos gastos dos países e contra a proteção social
garantida pelo Estado nas nações em desenvolvimento. Seria uma
mudança de ânimo formidável, caso fosse verdadeira. A grande
questão, porém, é se a nova disposição (que está se transformando
em novo mantra) vai sobreviver às reverberações da atual
instabilidade nas áreas do crédito e das finanças.
Mesmo que se mostre mais duradouro que os atuais tremores
que o provocaram, o novo consenso (ainda emergente) tem um
longo e tortuoso caminho pela frente até alcançar seu propósito
declarado. O editorial do Le Monde nos ensina que, embora a
proteção social consuma até 20% da riqueza nacional nos países
“desenvolvidos” (leia-se: ricos), os países pobres só podem (e,
permitam-me acrescentar, só lhes é permitido) até agora reservar
4% de seus orçamentos para esses fins; muitos deles, além disso,
só reservam 1% ou menos de seu PIB para assistência social. No
momento, 13% das famílias pobres do planeta e 90% das famílias
africanas não contam com qualquer forma de proteção social.
Do mesmo modo, multiplicam-se os sinais, vindos de todos os
continentes, de que os governos se esforçam para desatar o nó
górdio de economias esmagadas pelo peso da pobreza e da miséria
que atingem as massas, e essas economias tornam-se ainda mais
difundidas em razão da debilidade econômica permanente. Tais
tentativas, embora com variados graus de determinação, podem ser
observadas em lugares tão distantes e diferentes quanto África do
Sul e Nepal. Numa escala maior, o Brasil conseguiu tirar do abismo
da pobreza, da insegurança e da falta de perspectivas cerca de 13
milhões de famílias, o equivalente a 50 milhões de adultos e
crianças, com a ajuda de um programa administrado pelo Estado, o
Bolsa Família, iniciado pelo presidente Lula. O México tenta fazer o
mesmo com o apoio do Programa Oportunidades, enquanto, em seu
característico estilo atacadista, a China há pouco decidiu utilizar
seus excedentes acumulados para construir, virtualmente a partir do
zero, mas dentro dos próximos cinco anos, uma rede abrangente de
proteção social para centenas de milhões de cidadãos até então
desprovidos de qualquer assistência dessa natureza.
27 DE DEZEMBRO DE 2010
Sobre os amigos que você tem e os que
pensa ter
O professor Robin Dunbar, antropólogo evolucionista da
Universidade de Oxford, insiste em que “nossas mentes não foram
planejadas [pela evolução] para permitir que tivéssemos mais que
um número limitado de pessoas em nosso mundo social”. Na
verdade, Dunbar calculou esse número; ele descobriu que “a
maioria de nós só pode manter cerca de 150 relacionamentos
significativos”. De modo nada inesperado, chamou esse montante,
imposto pela evolução (biológica), de “número de Dunbar”. Essa
centena e meia, podemos comentar, é o número atingido, mediante
evolução biológica, por nossos ancestrais remotos. E foi aí onde ela
parou, deixando o campo aberto para sua sucessora muito mais
rápida, ágil, habilidosa, acima de tudo mais capaz e menos paciente
– a chamada “evolução cultural” (promovida, moldada e dirigida
pelos próprios seres humanos, empregando o processo de
ensinamento e aprendizagem, em vez de mudar o arranjo dos
genes).
Observemos que 150 era provavelmente o maior número de
criaturas capazes de se reunir, permanecer juntas e cooperar
lucrativamente sobrevivendo apenas da caça e da coleta; o tamanho
de um rebanho proto-humano não podia ultrapassar esse limite
mágico sem convocar, ou melhor, conjurar forças e (sim!)
ferramentas além de dentes e garras. Sem essas outras forças e
ferramentas, ditas “culturais”, a proximidade permanente de um
número maior de pessoas teria sido insustentável; assim, a
capacidade de “ter em mente” um montante maior teria sido
supérflua.
“Imaginar” uma totalidade mais ampla do que aquela acessível
aos sentidos era desnecessário e, naquelas circunstâncias,
inconcebível. As mentes não precisavam armazenar o que os
sentidos não haviam tido a oportunidade de apreender. A chegada
da cultura deveria coincidir, como de fato ocorreu, com o momento
em que se ultrapassou o “número de Dunbar”. Teria sido esse o
primeiro ato de transgressão dos “limites naturais”; e, como
transgredir limites (sejam eles naturais ou autoestabelecidos) é o
traço definidor e o próprio modo de ser da cultura, ele é também o
ato que marca seu nascimento?4
Observemos também que, com o início da sequência cultural da
evolução, o campo dos relacionamentos reconhecidamente
“significativos” dividiu-se, para todos os fins e propósitos práticos,
em dois espaços, de acordo com dois tipos de “significação”
diferentes,
autônomos,
embora
inter-relacionados:
o
sensual/emocional, ou específico, e o mental ou abstrato. A primeira
variedade de “significação” é que pode ter “estabelecido limites”,
pois continua dependendo do equipamento (essencialmente
inalterado) que a evolução forneceu à espécie humana; a segunda
variedade, contudo, é emancipada das restrições impostas por
“limites naturais” – embora seja livre, ao mesmo tempo, para
estabelecer (e revogar ou transgredir na prática) seus próprios
limites.
Muito do trabalho da cultura até agora consistiu e continua a
consistir em traçar e retraçar as fronteiras que separam o “aqui” do
“lá”, o “dentro” do “fora”, o “nós” do “eles”, e em continuar
subdividindo e diferenciando os terrenos no interior de cada um
deles; dada a pluralidade de culturas e de interfaces das
intervenções culturais, consiste também em gerar “áreas cinzentas”
de ambivalência entre territórios adjacentes, e também focos de
desavença que, por sua vez, oferecem mais um estímulo ao impulso
de estabelecer fronteiras. O “número de Dunbar” é ele próprio um
exemplo típico do exercício cultural de traçar fronteiras (atividade
que remonta, segundo o mito etiológico de Lévi-Strauss, ao
“nascimento da cultura”, ou seja, à proibição do incesto, à divisão
das mulheres entre objetos permitidos e proibidos).
As “redes de relacionamento” com base eletrônica prometiam
romper as intrépidas e recalcitrantes limitações à sociabilidade
estabelecidas por nosso equipamento transmitido pela genética.
Bem, diz Dunbar, não o fizeram e não o farão: a promessa só pode
ser quebrada. “Sim”, diz ele em seu artigo publicado no New York
Times de 25 de dezembro, “você pode estabelecer ‘amizade’ com
500, mil, até 5 mil pessoas em sua página no Facebook, mas todos,
com exceção do núcleo de 150, são meros voyeurs observando sua
vida quotidiana.” Entre esses milhares de amigos do Facebook, as
“relações significativas”, sejam elas eletrônicas ou vividas off-line,
estão restritas, tal como antes, aos limites impassíveis do “número
de Dunbar”. O verdadeiro serviço oferecido pelo Facebook e outros
sites “sociais” dessa espécie é a manutenção de um núcleo estável
de amigos nas condições de um mundo altamente inconstante, em
rápido movimento e acelerado processo de mudança.
Nossos ancestrais distantes tiveram uma facilidade: assim como
as pessoas que lhes eram próximas e queridas, eles tendiam a
morar no mesmo lugar do berço ao túmulo, ao alcance da vista uns
dos outros. Isso indica que a base “topográfica” dos vínculos de
longo prazo e até para toda a vida não tende a reaparecer, muito
menos a ser imune ao fluxo do tempo, vulnerável como é às
vicissitudes das histórias de vida individuais. Por felicidade, agora
temos formas de “permanecer em contato” que são plena e
verdadeiramente “extraterritoriais” e, portanto, independentes do
grau e da frequência da proximidade física.
“O Facebook e outros sites de redes sociais”, e apenas eles –
insinua Dunbar –, “nos permitem manter amizades que de outro
modo logo definhariam.” Mas esse não é todo o benefício que
proporcionam: “Eles nos permitem reintegrar nossas redes de modo
que, em vez de termos vários subgrupos de amigos desconectados,
podemos reconstruir, embora virtualmente, o tipo de comunidade
rural antiga em que todo mundo conhecia todo mundo” (grifo meu).
No caso da amizade, ao menos, pelo que está implícito no texto de
Dunbar, ainda que não com tantas palavras, foi refutada a ideia de
Marshall McLuhan de que “o meio é a mensagem”, embora sua
outra memorável sugestão, a do advento de uma “aldeia global”,
tenha se tornado realidade. “Ainda que virtualmente”…
Mas a “virtualidade” não seria uma diferença que faz a diferença
– maior e com muitas outras consequências para o destino das
“relações significativas” do que Dunbar está disposto a (ou se
preocupa em) admitir? Viver nas “antigas comunidades rurais”
tornava difícil criar vínculos que já não tivessem sido estabelecidos
“por si mesmos”, precisamente pela circunstância de as pessoas
estarem misturadas dentro da mesma “comunidade rural”; e também
dificultava (talvez mais) a dissolução dos vínculos que já estavam
ali; era custoso anulá-los e invalidá-los, a não ser pela morte de uma
ou mais pessoas por eles ligadas.
Viver on-line, por outro lado, torna o “estabelecimento” de uma
relação algo muitíssimo fácil; mas também facilita bastante a opção
de abandonar uma relação, ao mesmo tempo que torna
enganosamente fácil, nesse meio tempo, negligenciar a perda de
conteúdo da “relação” quando esta se enfraquece, murcha e afinal
se dissolve por mera falta de atenção.
Há motivo para suspeitar de que são essas facilidades que têm
assegurado e garantido a tremenda popularidade dos sites das
“redes sociais”; e que fez de seu autoproclamado inventor e sem
dúvida marketeiro-chefe, Mark Elliot Zuckerberg, um multibilionário
instantâneo. Essas faculdades permitiram que o avanço moderno
rumo ao desembaraço, à conveniência e ao conforto enfim
alcançasse, conquistasse e colonizasse uma terra até então teimosa
e apaixonadamente independente dos vínculos humanos. Tornaram
essa terra livre de riscos, ou quase; impossibilitaram, ou quase, que
pessoas não mais desejáveis abusassem da hospitalidade; fizeram
com que reduzir as perdas fosse uma coisa gratuita. No cômputo
geral, conseguiram a façanha de enquadrar o círculo, de preservar
uma coisa e ao mesmo tempo destruí-la. Ao livrar a atividade do
inter-relacionamento de toda e qualquer amarra, esses sites
puxaram e removeram a mosca feia da inquebrantabilidade que
costumava manchar o doce unguento do convívio humano.
Dunbar está certo ao afirmar que os substitutos eletrônicos da
comunicação face a face atualizaram a herança da Idade da Pedra,
adaptando e ajustando os métodos e recursos do convívio humano
às exigências de nossa nouvel âge. O que ele parece esquecer,
contudo, é que, no decorrer da adaptação, esses métodos e
recursos também foram muito alterados; por isso, as “relações
significativas” também mudaram de significado. O mesmo deve ter
acontecido com o conteúdo do conceito de “número de Dunbar”. A
menos que seja exatamente o número, e somente o número, que
esvazie seu conteúdo.
28 DE DEZEMBRO DE 2010
Sobre a manchete dos jornais e outras
páginas
As manchetes de primeira página, fiéis ao espírito de Natal, são
alegres e estimulantes. Anunciam o iminente fim da crise: os
Estados Unidos se aproximam da luz fugidia no fim do túnel que se
chama “volta à normalidade”. A saber: os compradores retornaram
em bandos aos shopping centers – como que arrependidos pelo
momentâneo arrefecimento de seu entusiasmo e para compensar o
tempo perdido. Como nos bons e não tão velhos tempos, suas mãos
não tremem ao puxar das carteiras os cartões de crédito. Joias e
artigos de luxo estão de novo em alta, e o otimismo que enche as
butiques só pode se esparramar pelas lojas das ruas comerciais e
barracas de mercado. Por conseguinte, o lucro dos vendedores de
presentes promete atingir este ano níveis pré-depressão. E isso só
pode significar uma coisa: nosso senhor e anjo da guarda, a
Economia, está mais uma vez em movimento.
É isso que você teria aprendido sobre a situação do seu país se
tivesse saído diretamente das primeiras páginas dos jornais para a
TV e outras mídias voltadas para o entretenimento. Contudo, não foi
isso que você aprendeu se por acaso for um dos muitos que
deixaram de contribuir para a renda dos shopping centers e, assim,
acabou omitido das estatísticas; ou se for um entre o 1,5 milhão de
americanos oficialmente classificado como desempregado. “No
mundo real”, como Bob Herbert observa em seu artigo na página de
opinião do New York Times de 27 de dezembro, “em que as famílias
precisam se alimentar e pagar suas contas, há um número
assustador de americanos deixado para trás.”
No John J. Helridge Center for Workforce Development da
Universidade Rutgers, os professores Carl van Horn e Cliff Zukin
orientam um projeto de pesquisa que tem registrado os tortuosos
detalhes referentes a localização, condições e sentimentos da
mesma amostra de trabalhadores desde o verão do ano passado.
Seu último relatório, publicado ao mesmo tempo que as manchetes
otimistas acima resumidas, recebeu um título terrível e alarmante:
“O sonho americano abalado: trabalhadores desempregados
perdem espaço, esperança e fé no futuro.”
O relatório mostra (e outros devem ter observado, mas deixado
de mencionar ou simplesmente omitido) a contínua degradação
social das pessoas que perderam seus empregos. Três quartos da
mostra permaneceram desempregados durante todo o estudo; dois
terços já estão agora sem uma renda proveniente do trabalho há um
ano ou mais; e um terço, há dois anos ou mais. As economias feitas
em toda sua vida se foram, eles venderam todos os bens passíveis
de venda e sobrevivem do dinheiro emprestado por parentes ou
amigos. Quanto aos mais velhos entre esses desempregados, eles
constituem uma nova classe – os “involuntariamente aposentados”.
Muitos dos que têm cinquenta anos ou mais não acreditam que
voltarão a ter um emprego em tempo integral. Quanto aos 25% que
tiveram sorte suficiente para voltar ao trabalho, quase todos
receberam e aceitaram ofertas de emprego com salários mais
baixos e menos benefícios, ou benefício algum.
Dos 50 mil novos empregos acrescidos às estatísticas pertinentes
em novembro, mês que viu o “retorno dos compradores”
comemorado nas manchetes das primeiras páginas, 80% eram
temporários. Uma das características mais salientes da atual
disposição predominante na amostra, segundo Van Horn, é a falta
de fé no preceito “de que, se você for determinado e trabalhar duro,
poderá ir adiante”. Degradados e humilhados, esses extrabalhadores não contam mais com tempos melhores. E, como
comenta Bob Herbert, “pessoas desempregadas não compram
muitas TVs de tela plana” – e assim, para piorar as coisas, sua
lamentável condição não tende a encontrar muita solidariedade por
parte daquela parcela da nação que agora volta aos shoppings.
Eles, os desempregados transformados em consumidores não
apenas falhos, mas desqualificados e abaixo do padrão, dificilmente
se juntarão ao bando que proclama e promove a “vigorosa
recuperação” revelada pelos redatores das manchetes.
Podemos esperar que em breve surjam estatísticas mostrando
que a consequência mais duradoura e corrosiva de dois anos de
colapso do crédito e das formas como os poderes constituídos
reagiram a isso é um aprofundamento ainda maior da desigualdade
social que já está corroendo a sociedade americana a partir de
dentro. Como apontou Tony Judt em Ill Fares the Land, seu último
alerta dos muitos endereçados à nação americana ao longo dos
anos:
A desigualdade, … então, é não apenas pouco atraente em si mesma; ela
corresponde claramente a problemas sociais patológicos que não podemos ter a
esperança de enfrentar a menos que atentemos para sua causa subjacente. Há uma
razão para o fato de mortalidade infantil, expectativa de vida, criminalidade, população
prisional, doença mental, desemprego, obesidade, desnutrição, gravidez de
adolescentes, uso de drogas ilegais, insegurança econômica, dívidas pessoais e
ansiedade serem muito mais observados nos Estados Unidos e no Reino Unido que
na Europa continental. … A desigualdade é corrosiva. Apodrece a sociedade a partir
de dentro. O impacto das diferenças materiais leva algum tempo para aparecer: mas,
no devido tempo, a competição por status e bens aumenta; as pessoas assumem
cada vez mais um sentido de superioridade (ou inferioridade) baseado em suas
posses; os preconceitos contra os que estão nas camadas de base da pirâmide social
se acentuam; a criminalidade aumenta e as patologias da desvantagem social se
tornam cada vez mais observáveis. A herança da criação desregulamentada de
riquezas realmente é amarga.5
Quando as estatísticas confirmando as sombrias premonições de
Judt estiverem afinal disponíveis, em que página dos jornais serão
publicadas?
29 DE DEZEMBRO DE 2010
Sobre (alguns) dilemas
Um ano atrás Janina me deixou.
Adal E. Stevenson opinou sobre Eleanor Roosevelt: “Ela preferia
acender velas a maldizer a escuridão, e seu brilho aqueceu o
mundo.” Eleanor Roosevelt, por sua vez, refletiu sobre o poder
humano de estabelecer limites à impotência: “Ninguém pode fazê-lo
sentir-se inferior sem o seu consentimento” – e ela conhecia esse
poder por havê-lo encontrado em si mesma. Toutes proportions
gardées (Janina nunca foi mulher de presidente e só tinha velas
suficientes, e não mais que isso, para afastar a escuridão de uma
sala e aquecer os que nela se encontravam), sinto como se lesse
palavras pronunciadas sobre ela e por ela; palavras ditas para
descrever a lógica de sua vida e transmitir a essência de sua fé, sua
forma própria de ser e estar no mundo.
Em sua autobiografia, Arrow in the Blue, Arthur Koestler escreve:
Não se pode agir, escrever ou mesmo viver livre de responsabilidade. Treine um
cachorro a correr atrás de bicicletas, mas não de automóveis, depois passe por ele
dirigindo uma moto; ele vai reagir com uma neurose experimental. Treine uma nação
a acreditar que tolerância é bom, perseguição é ruim, e pergunte-lhe se é certo ou não
perseguir pessoas que desejam abolir a tolerância; a reação será muito semelhante.
Lutando para encontrar uma forma de conviver com essa verdade
filosófica – a consciência de que a culpa pode ser deslocada, mas
não removida, do agir, do escrever e do viver –, ele prossegue:
Se o pessimismo do filósofo é uma atitude válida, o dever do militante humanista de
manter a esperança diante de probabilidades adversas também é válido. … Temos de
aceitar a perpétua contradição entre ambos. Se admitirmos que o derrotismo e o
desespero, ainda que justificados do ponto de vista lógico, são moralmente errados, e
que a resistência ativa ao mal é uma necessidade moral, ainda que absurda da
perspectiva lógica, poderemos encontrar uma nova abordagem de uma dialética
humanista.
Bem, talvez possamos. Embora não seja possível ter garantia
disso se não continuarmos a tentar e nos recusarmos a assumir a
falta de certeza como motivo para parar.
31 DE DEZEMBRO DE 2010
Sobre se “democracia” ainda significa
alguma coisa – e, se significa, o que é?
Essa pergunta pode ser tudo, menos nova. Em Arrow in the Blue,
livro escrito em 1952, mas que resume as amargas lições
transmitidas nos vinte anos de esperanças frustradas e
oportunidades perdidas registrados pelos historiógrafos sob o nome
de “período entreguerras”, Arthur Koestler relembra:
Travamos nossa batalha de palavras e não percebemos que as palavras conhecidas
haviam perdido sentido e apontavam na direção errada. Dizíamos “democracia”
solenemente, como em oração, e logo em seguida a maior nação da Europa
entronizou pelo voto, por métodos democráticos, assassinos no poder. Cultuávamos a
vontade das massas, e esta revelou ser a morte e a autodestruição. … O progresso
social por que lutamos tornou-se um progresso rumo ao campo de trabalho escravo;
nosso liberalismo nos fez cúmplices de tiranos e opressores; nosso amor pela paz
estimulou a agressão e levou à guerra.
Tentemos entender o que coloca em movimento esse processo
bizarro – estranhamente reminiscente do suposto hábito das
galinhas de continuar a correr mais alguns metros depois que suas
cabeças foram cortadas. Os significantes podem abandonar,
amputar e alterar seus “significados” (os “referentes” aos quais
devem “referir-se”) sem perder seu eleitorado. Algo semelhante
ocorre com significantes definidores de nossa “civilização ocidental”
como “democracia”, “liberdade”, “progresso”, “tolerância” e “paz”.
Propelidos e instigados pelo apoio entusiástico de seu eleitorado às
causas e às promessas que representavam na origem, os
significantes podem ser trocados e fixados a significados distantes
ou mesmo opostos dos originais sem danos importantes para o
entusiasmo de seus patrocinadores. Uma vez conquistadas,
aperfeiçoadas, cultivadas e estabelecidas – aprendidas e absorvidas
–, lealdade, conformidade e disciplina de rebanho vinculadas às
palavras bordadas nas bandeiras, assim como os hábitos que logo
se transformam em ação ao mero som dessas palavras, vão resistir
a uma infinidade de inversões. Essas palavras se transformam de
nomes de causas em nomes de acampamentos militares ou campos
de concentração, e a obediência pode ser (e é) exigida e obtida pela
recordação do último confronto entre “nós” e “eles” – sem que a
causa e o propósito da guerra em curso voltem a ser mencionados,
que dirá submetidos a um teste.
Num artigo apresentado no site da revista truthout, publicada pela
internet, sob o título “Vivendo na era da amnésia imposta: o eclipse
da formadora cultura democrática”, Henry A. Giroux imagina como
se pode explicar “a vassourada eleitoral que acabou de recolocar no
poder os mais egrégios candidatos do Partido Republicano”. Afinal,
os vitoriosos são
as pessoas que nos deram o Katrina, transformaram a tortura em política de Estado,
promoveram o macarthismo racial, comemoraram a agressão aos imigrantes,
colocaram o país em duas guerras desastrosas, construíram mais prisões que escolas
[eu acrescentaria que 758 pessoas em cada 100 mil estão atualmente cumprindo
pena em prisões americanas, constituindo de longe o maior contingente do mundo; se
acrescentarmos os que estão em liberdade condicional, 6 milhões de americanos se
encontram sob a vigilância dos órgãos de coerção do Estado], quebraram o Tesouro
público, celebraram a ignorância sobre a evidência científica (“metade dos
congressistas não acredita em aquecimento global”) e promoveram a fusão entre os
poderes político e corporativo.
Como se pode explicar essa decisão do eleitorado? Giroux
sugere duas justificativas possíveis. Uma é a exitosa transformação
da “justiça punitiva e de um teatro de crueldade” numa fórmula
política aceita (ou pelo menos aceitável) para a maioria dos
americanos. A outra é o ritmo acelerado da “amnésia social”: os
mais ultrajantes delitos dos governantes, que não faz muito tempo
eram sujeitos aos clamores do público, são postos de lado ou
simplesmente esquecidos a tempo para as eleições de meio de
mandato.
Mas há também outra possibilidade, talvez repulsiva demais para
o futuro da democracia a fim de ser exposta ao público e debatida
com seriedade. É a possibilidade, para não dizer probabilidade, de
que o vínculo entre agenda pública e interesses privados, o
verdadeiro fulcro do processo democrático, tenha sido rompido –
cada uma das duas esferas gira agora em espaços mutuamente
isolados e são movimentadas por fatores e mecanismos
mutuamente desconectados, que não se comunicam (embora sem
dúvida elas não sejam independentes!). Falando de maneira
simples, são situações em que as pessoas atingidas não sabem o
que as atingiu – e têm pouca chance de (e dificilmente continuam
tendo disposição para) descobrir.
O que se oferece para os que buscam e sonham com a
reconexão são “curtos-circuitos”, conhecidos por emitir uma luz
ofuscante por um breve momento, mas que depois tornam a
escuridão ainda mais profunda, impenetrável e assustadora que
antes. O que possa ter permanecido de seu desejo de voltar do
exílio, e que os separou da comunidade de destino responsável por
condená-los à solidão e ao abandono sem esperanças, é dissolvido,
dissipado e desaparece numa sucessão ao que tudo indica
interminável de esperanças frustradas. O efeito geral de ser
submerso por esse tipo de situação foi resumido por Danilo Zolo:
“Estamos”, insinuou ele, “na presença de um regime que creio
possa ser chamado de ‘teleoligarquia pós-democrática’: uma pós-
democracia em que a ampla maioria dos cidadãos não ‘escolhe’
nem ‘elege’, mas ignora, silenciosa e obedientemente.”6
Há outro fator que acelera muito essa descida rumo a uma era
“pós-democrática” do tipo “não se incomode”, je m’en fous – por
parte de um eleitorado “ignorante, calado e obediente”. Segundo a
expressão cunhada por Paul Krugman em sua contribuição à página
de opinião do New York Times de hoje, “O novo vodu”: “A hipocrisia
nunca sai de moda, mas, mesmo assim, 2010 foi algo especial. Pois
foi o ano da algaravia do orçamento – o ano dos incendiários
posando de bombeiros, de pessoas protestando contra o déficit
enquanto fazem o possível para aumentá-lo.” A mensagem geral
que transpirou de informações vazadas das regiões superiores do
mundo da política foi de incongruência, se não de inanidade pura e
simples.
Um dos silogismos fundamentais da lógica elementar adverte que
“se p e não-p, então q”, significando (numa tradução simplificada,
porém honesta) que, se uma proposição e sua negação forem
simultaneamente aceitas, isso pode dar em qualquer coisa (e,
portanto, nada tem mais fundamento do que nada, de modo que não
se pode confiar em coisa alguma); em outras palavras, que tudo
pode ser afirmado, mas (ou melhor, pois) nada resiste ao teste da
razão. Contudo, manchetes como “McConnel ataca os gastos
deficitários. Defende a ampliação do corte de impostos” agora se
tornaram a dieta comum oferecida aos leitores pela imprensa
americana. Confrontados com esses tipos de afirmação conflitante
apresentada num só fôlego para aprovação simultânea, os leitores
têm poucas opções além de admitir que as coisas que decidem seu
bem-estar e suas expectativas existenciais estão além de sua
compreensão e lá tendem a ficar; e onde há ignorância logo haverá
impotência.
Tem-se afirmado desde os primórdios da moderna ciência política
que, como as autoridades do Estado têm de lidar com assuntos
complicados demais para as pessoas comuns, a democracia tende
a ser o governo de especialistas altamente instruídos, e o papel das
pessoas comuns se reduz à aprovação ou desaprovação periódica
das ações deles. A prática política contemporânea, contudo, foi
muito além das expectativas dos cientistas políticos. Os
especialistas lá de cima não precisam mais repetir que as coisas
são complicadas demais para ser avaliadas do modo adequado
pelos leigos; portanto, devem ser deixadas para quem entende do
assunto. Eles demonstram dia após dia, e para além da dúvida
razoável (se a “razoabilidade” ainda é uma qualidade reconhecível),
que, ao aplicar sua inclinação inata e suas ferramentas herdadas ou
aprendidas (as únicas de que dispõem) para separar o certo do
errado, os leigos são incapazes de chegar a (diferente de repetir ou
ecoar) uma avaliação. Em sua jornada ascendente, em direção às
regiões sombrias nas quais se produzem as avaliações políticas e
se tomam as decisões correspondentes, a lógica que orienta os
empreendimentos de nossas vidas se interrompe (ou melhor, é
interrompida com brutalidade) bem abaixo do nível que ela luta por
atingir.
Essa suposição nos faz tremer – mas a falta de lógica não estaria
se tornando a última arma maravilhosa das autoridades do Estado,
divididas como se encontram entre um déficit agudo de poder e as
duras exigências do exercício de governar, às quais sua política
impotente é muito fraca para atender? É uma arma milagrosa, tão
barata quanto fácil de empregar (tomando de empréstimo outra
expressão de Krugman: “tudo de que se precisa são eleitores
descontentes que não saibam o que está em jogo – e temos um
monte deles”). Não é a incongruência desconcertante e desafiadora
da razão a responsável por estimular as “pessoas comuns”
desanimadas e desencantadas a virar as costas e afastar os olhos
da Política com “P” maiúsculo, permitindo assim que seus
praticantes se safem com seus jogos de simulação e falsas
promessas de transformar os círculos em quadrados e conciliar o
inconciliável?
A receita mais eficaz para interromper a comunicação e evitar
que ela volte é, afinal, privá-la da presunção e da expectativa de
significação e de sentido. Não é mais possível aplacar os medos e
premonições de alguém culpando as crescentes ansiedades sobre o
futuro da democracia e sobre sua capacidade de realizar a tarefa
em nome da qual ela se originou; nem a arte da hipocrisia, na qual
setores da elite política se transformaram em grandes mestres; nem
sua incapacidade acoplada à desonestidade pessoal e à corrupção.
Essa arma maravilhosa pode ser (tal como o foguete V2 para Hitler)
a última que resta aos operadores de uma política que ultrapassou
sua data de validade; sua derradeira esperança de suspender a
execução.
a) Em 5 de setembro de 1905 foi assinado o Tratado de Portsmouth, que pôs fim à Guerra
Russo-Japonesa, travada desde o ano anterior pela posse da Coreia e da Manchúria.
(N.T.)
b) Bíblia Sagrada, edição pastoral, Paulus, disponível em: www.paulus.com.br. (N.T.)
• Janeiro de 2011 •
1º DE JANEIRO DE 2011
Sobre o Anjo da História, reencarnado…
Angelus Novus mostra um anjo que parece se afastar de algo que ele contempla com
fixidez. Os olhos estão arregalados, a boca aberta, as asas também. É como se
descreve o anjo dessa história. Sua face está voltada para o passado. Onde
percebemos uma cadeia de eventos, ele vê uma só catástrofe que acumula
escombros sobre escombros, e os lança diante de seus pés. O anjo gostaria de ficar,
despertar os mortos e consertar o que foi esmagado. Mas uma tormenta está
chegando do Paraíso; ela atingiu suas asas com tal violência que o anjo não
consegue mais fechá-las. A tormenta o empurra irresistivelmente na direção do futuro,
para o qual ele está virado de costas, enquanto a pilha de dejetos à sua frente cresce
na direção do céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso.1
Assim escreveu Walter Benjamin contemplando um desenho de
Paul Klee. Inspirado pelas sugestões emanadas desse desenho,
Benjamin menosprezou o credo de adoradores, veneradores, poetas
da corte, sicofantas e companheiros de viagem do “progresso
histórico”, sua representação da história como um processo
desencadeado e mantido em movimento pelo impulso de projetos,
visões e esperanças de mais felicidade; não somos impelidos por
um futuro luminoso, insistiu Benjamin, mas repelidos, empurrados e
forçados a correr pelos horrores sombrios do passado. A descoberta
mais seminal de Benjamin é que o “progresso” sempre foi e continua
a ser uma fuga de, em vez de um movimento na direção de…
Mas observemos que o Anjo da História de Benjamin/Klee, tal
como a tempestade que o lança para o futuro, é mudo. A alegoria de
Benjamin/Klee não representa palavras, mas acontecimentos; não o
que os seres humanos, agentes e vítimas involuntários da história,
dizem sobre seus motivos para viver correndo, mas o que está
acontecendo com eles. Benjamin se autoproclamava um
“materialista histórico”. Em sintonia com a cultura predominante em
sua época, acreditava nas leis da história (leis estabelecidas para e
pelos modernos, e das quais se esperava que preenchessem o
vácuo deixado pelo desígnio e a providência divinos); e
compartilhava a crença também difundida na determinação
histórica, um concomitante “natural” (e indispensável) das ambições
de construir e administrar a ordem do ambicioso Estado moderno.
Todas essas crenças, contudo, incluindo a ideia da “história”
como um poder sobre-humano que ordena o que o homem propõe,
perderam muito de sua credibilidade e aparência autoevidentes,
com o definhamento do “substrato material” da história: aquele
Estado promissor, autoconfiante e (pelo menos em intenção) todopoderoso, atrevido, irrestritamente ambicioso e invejoso em relação
aos competidores reais ou potenciais, à maneira do Deus
monoteísta. Os Estados, tal como agora os conhecemos a partir de
nossa própria experiência, tendem a terceirizar, transferir operações,
subcontratar e subsidiarizar tudo aquilo que o Estado – tal como
lembrado no obituário de Benjamin e como era na época em que
ainda estava vivo por trás da máscara do Anjo da História – visava a
monopolizar e colocar sob sua administração exclusiva (sendo o
desvanecimento do “Estado social” apenas uma das muitas facetas
indetectáveis de sua retirada).
Se estivéssemos procurando uma alegoria adequada para o que
se passa em nossos dias, precisaríamos deixar de lado o único e
singular Anjo da História e colocar em seu lugar um enxame de
“anjos biográficos”. Confessaríamos ser uma multidão de reclusos,
impelidos para um futuro para o qual se voltam nossas costas,
enquanto a pilha de escombros (de nossas esperanças arruinadas,
expectativas frustradas e oportunidades perdidas) à nossa frente
cresce em direção ao céu… Fomos sentenciados, todos e cada um
de nós, ao que Anthony Giddens chama de “política de vida”, sob a
ordem de lutar ou fingirmos ser a um só tempo nossos próprios
Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Nada de salvação pela
sociedade, como Peter Drucker oportunamente nos lembrou. Agora
cabe a nós mesmos, como Ulrich Beck observou de modo cáustico,
encontrar soluções individuais para a condição que todos
compartilhamos (ou, para ficar mais perto de nosso tema, invocar na
biografia individual o que no passado se presumia residir na história
coletiva). A questão não é mais como acalmar e pacificar águas
turbulentas, mas (como para o marinheiro náufrago de Uma descida
ao Maelström, de Edgar Allan Poe) de que modo encontrar ou
montar um barril bem redondo e, pulando de onda em onda, talvez
conseguir de alguma forma escapar ao afogamento.
Mas que aconteceu ao Anjo da História de Benjamin? Como
tantas outras intenções, projetos, funções e promessas de ação
coletiva administrados pelo Estado, disfarçados de “progresso”, ele
foi privatizado. Pelo menos foi colocado no mercado para venda
privada. O original, no estilo haute couture, adornado com o logotipo
“Deus” ou “História”, é agora produzido em massa, anunciado e
vendido com desconto nas lojas de ruas comerciais: um anjo de
biografia personalizado, do tipo “faça você mesmo”, para que todos
possam montá-lo. Exatamente o que ocorreu com o próprio Deus,
como Ulrich Beck assinalou em seu último livro, A God of One’s
Own.
E assim, em última instância, tudo se resume não às narrativas
que aprendemos a recitar, mas às teimosas, recalcitrantes,
resistentes realidades sociais que tentamos narrar (enquanto somos
forçados a fazê-lo). Em nossa sociedade pulverizada, atomizada,
salpicada dos escombros de vínculos inter-humanos rompidos e de
seus substitutos eminentemente frágeis e quebráveis, há uma
profusão de diminutos anjos de pequenas biografias para nos
horrorizar e nos compelir à fuga. Entre os outros odores e visões
revoltantes e desconcertantes, os dos zumbis da “sociedade” e da
“comunidade”, podres e fedorentos, talvez sejam os mais evidentes.
2 DE JANEIRO DE 2011
Sobre encontrar consolo em lugares
inesperados
The Spirit Level, o estudo revelador de Richard Wilkinson e Kate
Pickett que demonstrou e explicou “por que a igualdade torna as
sociedades mais fortes”, afinal começa a abrir caminho rumo à
opinião pública (graças ao comentário de Nicholas D. Kristof na
edição de Ano-novo do New York Times). O atraso ainda é mais
sugestivo porque, nos Estados Unidos, país firmemente assentado
no topo da principal divisão da desigualdade global (segundo as
últimas estatísticas, o 1% mais abastado da população americana
controla mais riqueza que os 90% da base) e aquele que forneceu
aos pesquisadores os exemplos mais extremos de danos colaterais
da desigualdade, a mensagem de Wilkinson e Pickett deveria ter
soado urgente e disparado um alerta vermelho.
Mesmo nesse estágio tardio, Kristof prefere apresentar os
autores da pesquisa aos leitores americanos como “renomados
epidemiologistas britânicos” (em vez de relacioná-los aos estudos
sociais – contadores de histórias que carregam a culpa, segundo os
líderes de opinião americanos, de um viés esquerdista-liberal
condenável e desprezível, e por isso são descartados antes que se
possa ouvi-los, muito menos escutá-los). Provavelmente guiado pela
mesma prudência, Kristof cita, do estudo resenhado, os dados
concernentes aos macaques,a às relações entre os de alto e baixo
status, e entre eles e outros “macacos” sem nomes específicos.
Mencionando em seu apoio a frase de John Steinbeck sobre a “alma
triste” capaz de “matá-lo mais rápido, bem mais, que um germe”,
ameniza a possível apreensão de leitores tendentes a descobrir por
meio de observação cuidadosa outra ameaça de aumento de
impostos; e impede qualquer protesto violento dispondo a má notícia
em ordem menos ameaçadora aos bolsos: o tributo da
desigualdade, assinala, “não é somente econômico, mas também
uma espécie de melancolia da alma”. Ele admite, contudo, ainda
que de modo indireto, e portanto inócuo, que o tributo também é
“econômico”, ao apontar que a escolha é entre menos desigualdade
e mais prisões e polícia – alternativas muito bem conhecidas por
serem custosas em termos da taxa de impostos. Na versão de
Kristof, a desigualdade não é ruim em si, por sua própria injustiça,
desumanidade, imoralidade e potencial de destruição da vida – mas
por tornar a alma triste e melancólica.
Quanto à sua mórbida conexão com a biologia, agora enfim
cientificamente confirmada, Kristof tem a dizer o seguinte: “Os seres
humanos ficam estressados quando se encontram na base de uma
hierarquia. Esse estresse leva a mudanças biológicas” – tais como a
acumulação de gordura abdominal, doenças cardíacas,
comportamento autodestrutivo e (sic!) … pobreza persistente. Agora
afinal sabemos – com endosso e atestado de cientistas renomados,
insuspeitos de simpatias malévolas e conexões ilícitas – por que
algumas pessoas se afundam na miséria, por que, ao contrário de
nós, não podem deixar de afundar nem conseguem sair dela, uma
vez que lá estejam. Essa descoberta científica surge como um
adoçante muito necessário para a lembrança amarga da
desigualdade recorde em âmbito mundial: um fio de esperança por
sob aquela nuvem odiosa e ameaçadoramente sombria. É tudo
biologia, imbecil!
Da mesma forma, alguém poderia dizer que falar abertamente,
qualquer que seja a forma, é melhor que manter silêncio; e todos
sabem que falar abertamente, embora tarde, é melhor que nunca
falar. Uma mensagem truncada, esterilizada e branda é melhor que
nenhuma – ficamos tentados a acrescentar. Mas será mesmo? O
pretenso apelo às armas não teria sido sub-repticiamente
transformado, nesse processo, num chamado a depô-las? Em vez
disso não deveríamos, em nome da mensagem de que somos
portadores e do bem que ela deveria produzir, tomar cuidado para
não nos rendermos a essa tentação?
“A melhor parte da bravura é a prudência”, opinou um dos
personagens menos admiráveis de Shakespeare, acrescentando
que “nessa melhor parte eu salvei minha vida”. Confrontados com
um déficit de bravura, muitos buscariam aquela parte conhecida
como melhor – seguindo a sabedoria… de Falstaff.
3 DE JANEIRO DE 2011
Sobre crescimento: precisamos dele?
O professor Tim Jackson, da Universidade de Surrey, em seu último
livro, Redefining Prosperity, aciona o alarme: o atual modelo de
crescimento produz danos irreversíveis. Isso porque o “crescimento”
é medido pelo aumento da produção material, e não por serviços
como lazer, saúde e educação.
A memorável justaposição de mineração e agricultura proposta
por Lewis Mumford nos vem à mente: aquela fere, destrói e enfeia o
ambiente, enquanto esta o cura, torna-o capaz de se
autorregenerar, o embeleza. Aquela torna o solo inabitável, esta o
faz hospitaleiro e convidativo à habitação humana. Aquela viola,
extrai, remove, esvazia e deixa atrás de si um vácuo: mata. Esta
cuida, ajuda e acrescenta, preenche, reabastece: mantém vivo;
aquela esgota recursos finitos; esta regenera e ressuscita recursos:
torna-os para sempre renováveis. Mas observemos que Mumford
pensava sobre as bênçãos da agricultura numa época em que ela
em geral ainda sustentava a sobrevivência humana, e não os
ganhos monetários. Era feita sob medida para necessidades
humanas constantes, resistentes à ampliação, e que portanto
permaneciam em princípio finitas – não para a cupidez e a avareza
humanas, em princípio infinitas. O planeta, com seus recursos
reconhecidamente finitos, talvez seja capaz de satisfazer às
necessidades do homem, mas é totalmente inadequado à satisfação
de sua ganância.
Jackson só culpa a cobiça indiretamente pelos danos irreparáveis
que são feitos ao potencial do planeta – destacando como alvo
“nossa cultura baseada num apetite constante por novidade – que é
o aspecto simbólico dos objetos” (ver sua entrevista no Le Monde de
hoje). Da mesma maneira, somos sempre encorajados a nos
comportar de forma egoísta e materialista – sendo essa atitude
indispensável para sustentar nosso tipo de economia. Somos
estimulados, forçados ou induzidos a comprar e gastar, gastar o que
temos e o que não temos, e esperamos ganhar no futuro. Na
recessão, contudo, sugere Jackson, as pessoas abandonaram
esses hábitos mórbidos e voltaram a poupar em vez de gastar,
revelando o lado altruísta de sua natureza (imagino sobre que fatos
se sustenta a suposição; há muitas evidências de que, “numa
recessão”, algumas pessoas forçosamente, contra sua vontade e
para seu grande desgosto, são desqualificadas como dignas de
crédito e eliminadas da orgia consumista, enquanto outras
prosseguem, inabaláveis; e seria preciso muito contorcionismo,
exagero e manipulação para interpretar essas variadas reações à
recessão como sinais da emergência de inclinações altruístas até
então ocultas ou reprimidas).
Como assinalou Adam Smith, num mercado, devemos nosso
suprimento diário de pão fresco à cobiça do padeiro, não a seu
altruísmo, caridade, benevolência ou padrões morais elevados. É
graças à mais que humana avidez de lucro que os produtos são
levados às prateleiras dos mercados e podemos ter certeza de
encontrá-los. Mesmo Amartya Sen, que insiste em que o bem-estar
e a liberdade de levar vidas decentes precisam ser vistos como
derradeiro objetivo da economia (no ensaio, “Justiça no mundo
global”, em Indigo do inverno de 2011), e admite que “não é possível
haver economia florescente sem amplo uso de mercados, de modo
que o desenvolvimento (e não a prevenção) dos mercados
necessários deve ser parte de um mundo econômico próspero e
justo”. Então, em primeiro lugar, eliminar a cobiça e buscar o lucro
significa fazer desaparecer os mercados e com eles os produtos.
Em segundo lugar, sendo os mercados necessários para que “a
economia floresça”, egoísmo e avareza só podem ser eliminados
dos motivos humanos por nossa conta e risco comuns. Finalmente,
uma terceira conclusão: altruísmo é incompatível com “economia
florescente”. Pode-se ter um ou outro, mas dificilmente os dois ao
mesmo tempo.
Jackson deixa de lado esse sério obstáculo apostando na razão e
no poder de persuasão humanos; ambos são armas poderosas, não
há dúvida, e poderiam até ser eficazes em “remodelar o sistema
econômico” – não fosse pelo desastroso fato de os ditames da
razão dependerem da realidade sobre a qual se raciocina, e de
essas realidades, quando objeto de raciocínio de agentes racionais,
disporem de um “poder de persuasão” muito mais forte que qualquer
argumento que as ignore ou menospreze. A realidade em questão é
uma sociedade que só pode resolver (ainda que de modo
imperfeito) os problemas por ela criados (conflitos sociais e
antagonismos que ameacem sua própria preservação), reforçando o
“apetite por novidades” – e portanto recorrendo à cobiça e à avareza
que mantêm a economia “florescendo”.
Nos estágios iniciais do capitalismo, o maior obstáculo à
ascensão da economia industrial era o “trabalhador tradicional”,
guiado não pela cobiça, mas pela necessidade, e portanto sem
razão para ir trabalhar hoje se o dinheiro ganho ontem fosse
suficiente para cobrir suas necessidades (inalteradas) de hoje. No
atual estágio da história do capitalismo, a figura de um “consumidor
tradicional” que não visse razão para ir às compras hoje se os
produtos já adquiridos estivessem funcionando a contento também
seria desastrosa para a economia de consumo. Uma redução do
apetite popular por mercadorias estritamente necessárias para
satisfazer as necessidades seria um golpe mortal no único modelo
econômico agora disponível – ou seja, na economia consumista. A
questão, porém, é que seria um golpe mortal no único e exclusivo
modelo de sociedade hoje aprovado. Não é apenas uma “economia
florescente” que depende da cobiça do padeiro, mas a única receita
empregada para a coexistência ordeira entre os seres humanos – e
que estamos determinados a empregar.
Para fazer frente a todas essas possibilidades aterradoras,
Jackson propõe um programa baseado em três pontos;
conscientizar as pessoas de que o crescimento econômico tem
limites; convencer (obrigar?) os capitalistas a se comprometer com a
distribuição de seus lucros não apenas em “termos financeiros”, mas
também de acordo com os benefícios sociais e ambientais para a
comunidade; e “mudar a lógica social”, de modo a que os governos
favoreçam os estímulos que hoje levam as pessoas a expandir e
enriquecer suas vidas de outras maneiras que não as materialistas.
Há um obstáculo, porém: tudo isso poderia ser seriamente
contemplado sem se enfrentarem os aspectos da condição humana
que, em primeiro lugar, estimularam as pessoas a buscar
recompensa nos mercados? – ou seja, injustiças que procuram em
vão por remédios (genuínos ou putativos) e ansiedades de que a
sociedade não cuida; portanto, não se encontram válvulas de
escape senão as oferecidas pelo mercado e redirecionadas para
mercados de consumo, na esperança insistente, embora vã e
enganadora, de encontrar uma terapia ou uma solução.
4 DE JANEIRO DE 2011
Sobre sustentabilidade: desta vez, da
social-democracia…
Social-democratas: será que eles sabem para aonde vão? Será que
têm noção do que seja uma “boa sociedade” pela qual valha a pena
lutar? Duvido. Creio que não têm. Em todo caso, não na parte do
mundo que habitamos.
Registra-se que o chanceler Schröder, ao percorrer as
propriedades de Tony Blair e Gordon Brown, teria dito, um bom
tempo atrás, que não há economia capitalista ou socialista, apenas
boa ou má economia… Já por um longo tempo, pelo menos trinta ou
quarenta anos, a política dos partidos social-democratas tem se
articulado, ano após ano de governos neoliberais, pelo princípio de
que “não importa o que vocês (a centro-direita) façam, nós (a
centro-esquerda) podemos fazer melhor”. Às vezes, embora com
pouca frequência, uma ou outra iniciativa audaciosa e arrogante da
parte dos governantes provoca uma pontada da velha consciência
socialista; nesses momentos, ocasionalmente e sem fazer disso
uma grande questão, exige-se um pouco mais de compaixão e uma
boia salva-vidas ligeiramente maior para “os mais necessitados” –
ou um “arrefecimento do golpe” para os “mais atingidos” –, embora
frequentemente apenas tomando de empréstimo o vocabulário do
“outro lado”, e nunca antes de ele ter passado pelo teste da
potencial popularidade eleitoral.
Esse estado de coisas tem uma razão: a social-democracia
perdeu seu eleitorado próprio, sua fortaleza e plataforma sociais: os
enclaves habitados por pessoas situadas na ponta receptora da
ação política e econômica, esperando e desejando ser colocadas ou
se erguer para fora do conjunto das vítimas, atingindo um sujeito
coletivo integrado, com interesses, agenda e agência políticos
próprios.
Em suma, o que sobrou (pelo menos em nossa parte do mundo)
da classe trabalhadora industrial explorada lutando pela superação
das injustiças de que tem sido vítima reduziu-se a uma posição
marginal nas sociedades ocidentais, repetindo o itinerário percorrido
um século antes pela mão de obra agrícola. Como Vladislav
Inozemtsev recentemente assinalou em seu profundo e abrangente
estudo sobre a “Crise da grande ideia” (publicado no número de
agosto de 2010 da revista russa Svobodnaya Mys’l), as
desigualdades sociais mais agudas e espetaculares entre aquelas
características das sociedades ocidentais contemporâneas não são
mais entre capital e trabalho; as fortunas mais afrontosamente
gigantescas não resultam mais de uma exploração do trabalho
baseada na fábrica. A defesa dos pobres, portanto, foi privada do
elaborado esqueleto teórico construído por Marx, em sua análise da
indústria capitalista para sustentar a prática da social-democracia. A
defesa dos pobres não equivale mais à defesa da classe
trabalhadora (e, portanto, privada de mais-valia).
Além disso, o que sobrou do “eleitorado natural” da
socialdemocracia foi quase pulverizado num agregado de indivíduos
autocentrados e preocupados consigo mesmos, competindo por
empregos e promoções, com pouca ou nenhuma consciência de
que existe uma comunidade de destino, e menos inclinação ainda a
cerrar fileiras e empreender uma ação solidária. A “solidariedade” foi
um fenômeno endêmico à antiga sociedade de produtores; na
sociedade de consumidores, ela não passa de uma fantasia
alimentada pela nostalgia, embora os membros dessa admirável
sociedade nova sejam conhecidos por acorrer às mesmas lojas nos
mesmos dias e à mesma hora, agora governados pela “mão
invisível do mercado”, com a mesma eficiência de quando eram
arrebanhados para os pátios das fábricas e agrupados nas linhas de
montagem pelos chefes e seus supervisores contratados.
Reclassificado como consumidores em primeiro lugar, e
produtores num distante (e não necessário) segundo lugar, o antigo
eleitorado social-democrata se dissolveu no resto dos consumidores
solitários, os quais não conhecem “interesse comum” a não ser o de
contribuintes. Não admira que os atuais herdeiros dos movimentos
social-democratas tenham os olhos fixos no “meio-termo” (não muito
tempo atrás conhecido como “classe média”), e não mais se reúnam
em defesa dos “contribuintes”, aparentemente divididos por seus
interesses e, portanto, o único “público” do qual parece viável e
plausível obter apoio eleitoral solidário. As duas partes do atual
espectro político caçam e pastam no mesmo terreno, tentando
vender seu “produto político” aos mesmos clientes. Não há lugar
aqui para uma “utopia de si próprio”! De todo modo, não há lugar
suficiente no espaço que separa uma eleição geral da seguinte.
A esquerda, observou Saramago em seu diário, em 9 de junho de
2009, não parece ter notado que ficou muito parecida com a direita.
Mas realmente se tornou muito parecida com a direita:
O que chegou a ser, no passado, uma das maiores esperanças da humanidade,
capaz de mobilizar vontades pelo simples apelo ao que de melhor caracterizava a
espécie humana, e que veio criando, com a passagem do tempo, as mudanças
sociais, … cada dia mais longe das promessas primeiras, assemelhando-se mais e
mais aos adversários e aos inimigos, como se essa fosse a única maneira de se fazer
aceitar, acabou por cair em meras simulações, nas quais conceitos doutras épocas
chegaram a ser utilizados para justificar actos que esses mesmos conceitos haviam
combatido. … a esquerda parece não ter percebido que se estava a aproximar da
direita. Se, apesar de tudo isto, ainda é capaz de aprender com uma lição, esta que
acaba de receber vendo a direita passar à sua frente em toda a Europa, então terá de
interrogar-se sobre as causas profundas do distanciamento indiferente das suas
fontes naturais de influência, os pobres, os necessitados, mas também os
sonhadores, em relação ao que ainda resta das suas propostas.
Foi a direita, e apenas a direita, que, com o consentimento da
esquerda, assumiu a ditadura inconteste sobre a agenda política
atual. É a direita que decide o que está dentro e o que está fora; o
que pode ser dito e o que precisa/deve tornar-se/continuar
impronunciável. É a direita, com a conivência da esquerda, que
traça a linha limítrofe entre possível e impossível – e, desse modo,
transforma a frase de Margaret Thatcher sobre não haver alternativa
a ela mesma em profecia autorrealizadora.
A mensagem aos pobres e necessitados não pode ser mais clara:
não há alternativa a uma sociedade que abre espaço para a
pobreza e para as necessidades desprovidas de qualquer
perspectiva de satisfação – mas não dá espaço para os sonhos e os
sonhadores.
5 DE JANEIRO DE 2011
Sobre o consumo cada vez mais rico e o
planeta cada vez mais pobre
O “Estado social” é hoje insustentável; mas por um motivo que nada
tem a ver com a especificidade do caráter “social” do Estado, e sim
com o enfraquecimento generalizado do Estado como “agência”.
Repito o que já disse muitas vezes – esse é, afinal, o cerne de todos
os problemas que os remanescentes do “Estado de bem-estar
social” precisam enfrentar.
Nossos ancestrais preocupavam-se com (e debatiam sobre) “o
que deve ser feito”; nós nos preocupamos (embora dificilmente
cheguemos a debater, já que o tema parece não ter futuro) com
“quem vai fazê-lo”, uma questão sobre a qual nossos ancestrais
jamais discutiram, pois estavam de acordo – “o Estado, é claro”!
Uma vez conquistado o Estado, faremos tudo que considerarmos
necessário – o Estado, essa união de poder (ou seja, a capacidade
de fazer com que as coisas sejam feitas) com a política (ou seja, a
capacidade de decidir quais coisas precisam ser feitas), é tudo de
que precisamos para transformar o verbo em carne, não importa a
palavra utilizada. Bem, essa resposta não parece mais tão evidente.
Os políticos não nos deixam em dúvida, ecoando
monotonamente as palavras de Margaret Thatcher: “NHA” (“Não há
alternativa”). Quer dizer: fazemos nossas escolhas em condições
que não escolhemos. Quanto a esse último aspecto, pelo menos,
estou inclinado a concordar, embora por motivos um tanto
diferentes. As condições “não são as que eles escolheram”, no
sentido de que os políticos aceitam placidamente essas condições e
continuam determinados a não tentar outras opções: “NHA” é uma
profecia autorrealizadora, ou melhor, o lustro de uma prática
adotada de boa vontade e conduzida com zelo.
O Estado é “capitalista”, como Habermas apontou trinta anos
atrás, escrevendo numa época em que a sociedade de produtores
definhava, à medida que luta para garantir um encontro regular e
efetivo entre capital e trabalho (ou seja, que envolve capital
comprando trabalho). Para que esse encontro tenha êxito, o capital
deve ser capaz de pagar o preço do trabalho, e o trabalho deve
estar em boa forma o suficiente para atrair o capital. Portanto,
podemos dizer, o “Estado social” é visto como indispensável para a
sobrevivência “tanto pela esquerda quanto pela direita”. Porém, não
é mais assim.
Hoje, na sociedade dos consumidores, o Estado é “capitalista”
porque propicia o encontro entre mercadoria e consumidor (como foi
mostrado pela reação universal dos governos ao colapso dos
bancos/créditos; centenas de bilhões foram encontrados nos
próprios cofres que a opinião governamental considerava carentes
dos poucos milhões necessários para preservar os serviços sociais).
Para esse propósito, o “Estado social” é irrelevante; por
conseguinte, o problema de sua emancipação e da reclassificação
de seus resíduos numa questão de “lei e ordem”, e não numa
questão social, está “além de esquerda e direita”.
Com ou sem globalização, será que podemos prosseguir
indefinidamente avaliando o aumento da felicidade pelo aumento do
PIB, sem mencionar que espalhamos esse hábito para o resto do
mundo e elevamos seus níveis de consumo até um ponto
considerado indispensável nos países mais ricos? Deve-se
considerar o impacto do consumismo sobre a sustentabilidade de
nosso lar comum, o planeta Terra. Agora sabemos muito bem que
os recursos do planeta têm limites e não podem ser ampliados ao
infinito. Também sabemos que os limitados recursos da Terra são
modestos demais para acomodar o aumento dos níveis de consumo
no mundo inteiro aos padrões atingidos nas partes mais ricas – os
próprios padrões pelos quais o resto do mundo tende a avaliar seus
sonhos e expectativas, suas ambições e requisitos na era das
infovias. (De acordo com alguns cálculos, tal feito exigiria que os
recursos do planeta fossem multiplicados por cinco; cinco planetas
seriam necessários, em vez do único de que dispomos.)
No entanto, a invasão e a anexação do reino da moral pelos
mercados de consumo fizeram com que ele se sobrecarregasse de
funções adicionais que só pode desempenhar empurrando os níveis
de consumo ainda mais para cima. Essa é a principal razão pela
qual o “crescimento zero”, tal como medido pelo PIB – a estatística
referente à quantidade de dinheiro que troca de mãos nas
transações de compra e venda –, é visto como algo próximo de uma
catástrofe não apenas econômica, mas também social e política. É
graças, em grande parte, a essas funções extras – que não se
vinculam ao consumo nem por sua natureza nem por uma “afinidade
natural” – que a perspectiva de se estabelecer um limite ao aumento
do consumo, para não dizer reduzi-lo a um ponto ecologicamente
sustentável, parece ao mesmo tempo nebulosa e repulsiva; e que
nenhuma força política “responsável” (leia-se: nenhum partido que
tenha os olhos grudados nas próximas eleições) a incluiria em sua
agenda política. Pode-se imaginar que a “comodificação” das
responsabilidades éticas, os principais instrumentos e matériasprimas do convívio humano, combinada com a decadência gradual
mas incessante de toda as formas alternativas, fora do mercado, é
um obstáculo muito mais formidável à contenção e moderação dos
apetites consumistas que as exigências inegociáveis da
sobrevivência biológica e social.
Na verdade, se o grau de consumo determinado pela
sobrevivência biológica e social é por natureza inflexível, fixo, e
portanto relativamente estável, os níveis exigidos para atender às
outras necessidades cuja satisfação é prometida, esperada e
exigida em função do consumo são, uma vez mais pela natureza
dessas necessidades, crescentes e orientados para cima; a
satisfação dessas novas necessidades não depende da
manutenção de padrões estáveis, mas da velocidade e do grau de
seu aumento. Consumidores que se voltam para o mercado de
produtos buscando satisfazer seus impulsos morais e cumprir seus
deveres de autoidentificação (leia-se: “autocomodificação”) veem-se
obrigados a procurar diferenciais em termos de valor e volume;
então, esse tipo de “demanda de consumo” é um fator predominante
e irresistível no impulso para cima.
Assim como a responsabilidade ética pelo outro não tolera
limites, o consumo, investido da tarefa de desafogar e satisfazer
impulsos morais, resiste a qualquer espécie de restrição que se
imponha à sua expansão. Subordinados à economia consumista, de
modo irônico, os impulsos morais e as responsabilidades éticas são
transformados num terrível obstáculo quando a humanidade se vê
em confronto com aquela que é incontestavelmente a mais
formidável ameaça à sua sobrevivência: uma ameaça que só pode
ser enfrentada mediante um volume talvez sem precedentes de
autorrestrição voluntária e disposição para o autossacrifício.
Uma vez acionada e mantida em movimento pela energia moral,
a economia consumista só tem o céu como limite. Para ser eficaz na
tarefa que assumiu, não se pode permitir a redução da velocidade,
muito menos fazer uma pausa e ficar parado. Em consequência,
deve-se estabelecer o pressuposto – de modo contrafactual, se não
em tantas palavras, ao menos tacitamente – da durabilidade
ilimitada do planeta e da infinidade de seus recursos. Desde o início
da era consumista, ampliar o tamanho do pão era apresentado
como remédio óbvio, na verdade um profilático infalível, contra os
conflitos e disputas em torno da redistribuição desse quinhão. Eficaz
ou não em suspender as hostilidades, essa estratégia devia
presumir a existência de uma quantidade infinita de farinha e
fermento.
Agora nos aproximamos do momento em que a falsidade desse
pressuposto e os perigos de se aferrar a ele têm chance de se ver
expostos. Talvez seja esse o momento de a responsabilidade moral
se redirecionar para sua vocação básica: a garantia da
sobrevivência mútua. Entre todas as condições necessárias para
esse redirecionamento, a principal parece ser a “decomodificação”
do impulso moral.
A hora da verdade pode estar mais próxima do que poderíamos
imaginar quando contemplamos as prateleiras superlotadas dos
hipermercados, os sites cheios de pop-ups comerciais, os corais de
especialistas em autoaperfeiçoamento e os consultores
especializados em como fazer amigos e influenciar pessoas. A
questão é como anteceder ou impedir sua vinda com um momento
de autodespertar. Uma tarefa que não é fácil, com certeza: seria
necessário nada menos que toda a humanidade, com sua dignidade
e seu bem-estar, assim como a sobrevivência do planeta, seu lar
comum, fosse abraçada pelo universo das obrigações morais.
6 DE JANEIRO DE 2011
Sobre a justiça e como saber se ela
funciona
No mesmo ensaio da Indigo a que já me referi, e antes disso, em
seu estudo The Idea of Justice,2 Amartya Sen não fica chovendo no
molhado ao analisar as lições a se extrair do colapso econômico
global de 2008. Embora alguns ricos tenham visto suas fortunas
diminuir um pouco, foram os mais pobres, as pessoas “da base da
pirâmide”, local ou global, as mais fortemente afetadas pelo colapso:
“Famílias que já estavam em pior posição para enfrentar qualquer
outra adversidade muitas vezes foram vítimas de uma privação
ainda maior, sob a forma de desemprego prolongado, perda de lares
e abrigos, perda de assistência médica e outras privações que
caíram como uma praga sobre a vida de milhões de pessoas.” A
conclusão, afirma Amartya Sen, é bastante óbvia: se você quer
avaliar corretamente a gravidade da crise global de hoje, observe “o
que está acontecendo com a vida dos seres humanos, em especial
das pessoas menos privilegiadas – seu bem-estar e sua liberdade
de levar uma vida decente”.
As pessoas pertencentes a categorias cronicamente destituídas
aprendem a aceitar seu destino e, por causa de sua “usualidade”,
“inquestionabilidade” e “normalidade”, sofrem de modo humilde
(“pessoas desprivilegiadas sem esperança de libertação muitas
vezes tentam fazer isso mesmo para lidar com o caráter inescapável
da privação”). É em tempos de crise que a desigualdade rotineira,
cotidiana, perpétua e habitual (na verdade, a polarização) na
distribuição de privilégios e privações é de súbito reclassificada
como algo que desafia a “norma”, algo “extraordinário”, um acidente
fatal, uma emergência – e assim brutalmente trazida à superfície e
colocada sob uma luz deslumbrante para que todos a possam ver.
Podemos acrescentar que, como as catástrofes em geral afetam
as diferentes categorias de pessoas de forma desigual, o grau de
vulnerabilidade a todos os tipos de terremotos naturais, econômicos
ou sociais, e a alta probabilidade de ser atingido de modo mais
severo que outros habitantes do país ou outros membros da
humanidade, é que se revela como característica definidora da
injustiça social.
Mas não seria melhor começarmos por definir o padrão de
justiça, de modo a estarmos mais bem-equipados para identificar e
isolar casos de injustiça quando e onde apareçam (ou melhor, se
escondam)? Mais fácil dizer que fazer. Amartya Sen não nos
aconselharia a seguir essa linha. Indagar como deveria ser uma
justiça perfeita é fazer “uma pergunta cuja resposta poderia
apresentar diferenças substanciais mesmo entre pessoas bastante
razoáveis”. Claro, podemos acrescentar, pois pessoas razoáveis,
acostumadas à arte da argumentação e da retórica, podem ser
encontradas em cada um dos campos, determinadas, numa bizarra
inversão do imperativo categórico de Kant, a deformar os padrões
universais propostos para adaptá-los aos seus próprios interesses
nada universais; em outras palavras, determinadas a invocar a ideia
de justiça para defender determinada injustiça que lhes resulte em
privilégio. Há pouca esperança, então, de que um debate sobre
padrões universais de justiça venha algum dia a dar frutos
palatáveis a todos os envolvidos – e assim adquira a verdadeira
universalidade.
Mas existe outra razão para ter dúvida quanto à conveniência de
um debate como esse. Como Barrington Moore Jr. apontou muito
tempo atrás, as evidências históricas mostram, além da dúvida
razoável, que, embora as pessoas estejam prontas a apontar
injustiças em atos que alterem o atual estado de coisas ou as regras
do jogo em vigor, elas tendem a ser abominavelmente lentas, se não
ineptas, em declarar “injustas” condições muito mais adversas que
tenham persistido por tempo suficiente para ser aceitas como
“normais”, insolúveis, imunes a protestos e resistentes à mudança.
Isso é semelhante ao caso (em aparência oposto) do “prazer”, o
qual, como observou Sigmund Freud, só tende a ser sentido no
momento em que se retira o desprazer, e dificilmente é produzido
pela presença contínua e monótona mesmo das condições mais
prazerosas (ou seja, livres de desprazer). Na linguagem da
semiótica, podemos dizer que a “injustiça” e o “desprazer”,
contrariando as aparências, são os termos básicos, “não
identificados”, das oposições em que “justiça” e “prazer” são
membros “assinalados”, ou seja, conceitos que extraem todo seu
significado de sua oposição, negação e recusa em relação aos “não
identificados”. Tudo que sabemos ou imaginamos sobre a natureza
da justiça deriva da experiência da injustiça – da mesma forma que
é com a experiência do desprazer, e só com ela, que podemos
aprender, ou melhor, imaginar, como pode ser o “prazer”. Em suma:
sempre que imaginamos ou postulamos a “justiça”, tendemos a
começar pelos casos de injustiça hoje mais evidentes, dolorosos e
ofensivos.
Já que começamos com uma ampla variedade de experiências e
com interesses profunda e muitas vezes irreconciliavelmente
diversos, é improvável que cheguemos a atingir um modelo
incontestável de “sociedade justa”. Incapazes de resolver o enigma,
só podemos concordar com a solução de um “arranjo” – reduzido a
um núcleo duro, evidente para todos, ao mesmo tempo que
firmemente imparcial e resistente à tentação de dominar as futuras
voltas e reviravoltas do permanente (e estimulado) debate polivocal.
Eu sugeriria a seguinte fórmula como “arranjo” dessa natureza: a
“sociedade justa” é uma sociedade em permanente vigilância e
sensível a todos os casos de injustiça, pronta a agir para corrigi-los
sem esperar o término da busca de um modelo universal de justiça.
Em termos um tanto diferentes, e sem dúvida mais simples: uma
sociedade mobilizada para promover o bem-estar do fracassado;
“bem-estar” incluindo, nesse caso, a capacidade de tornar real o
direito humano formal a uma vida decente – transformando a
“liberdade de jure” em “liberdade de facto”.
Implícita nessa escolha de uma fórmula de arranjo está a
preferência pela “política de campanha” de Richard Rorty, em
detrimento de sua concorrente, a “política do movimento”. Uma
“política do movimento” começa assumindo um modelo ideal de
sociedade,
se
não
“perfeitamente”
(“perfeitamente”
=
impossibilidade e indesejabilidade a priori de qualquer
aperfeiçoamento adicional), pelo menos “amplamente” ou
“plenamente” justo; em consequência, que mede e avalia qualquer
movimento proposto em função de seu impacto em termos de
abreviar a distância entre a realidade e o ideal, e não pelo grau em
que reduz ou amplia a soma total do sofrimento humano causado
pelas injustiças atuais.
Uma “política de campanha” segue uma estratégia oposta:
começa localizando um caso inegável de sofrimento, prossegue
com o diagnóstico da injustiça que o causou e atua para corrigi-lo –
sem perder tempo com uma tentativa (claramente desesperada) de
resolver a questão (claramente insolúvel) do possível impacto dessa
ação em tornar mais próxima a “justiça perfeita” ou atrasar sua
chegada.
7 DE JANEIRO DE 2011
Sobre internet, anonimato e
irresponsabilidade
Resenhando no New York Times de 3 de janeiro uma coletânea de
estudos organizada por Saul Levmore e Martha Nussbaum,
intitulada The Offensive Internet, Stanley Fish segue a linha
assumida pela maioria dos colaboradores, inserindo o tema do
estudo resenhado – a questão da calúnia anônima permitida pela
internet versus as exigências de sua proibição ou limitação legal –
no arcabouço cognitivo da “liberdade de expressão”. Seria possível
tomar partido contra o glorioso legado da Primeira Emenda, o
conhecido pressuposto de que a liberdade de expressão deve ser
protegida a qualquer custo, e exigir que a verbalização de certas
opiniões se torne ilegal e passível de punição?
Em 1995, John Paul Stevens, ministro da Suprema Corte,
descartou as consequências potencialmente mórbidas do anonimato
da informação, argumentando com base no mesmo arcabouço e no
mesmo espírito: ele insistiu em que “o valor inerente da …
expressão em termos de sua capacidade de informar o público não
depende da identidade de sua fonte, seja ela empresa, associação,
sindicato ou indivíduo”. Jürgen Habermas, a propósito e
corretamente, discordaria dessa interpretação um tanto ampliada e
distorcida da Primeira Emenda: sua própria teoria da comunicação
(ideal, sem distorção) baseava-se no pressuposto (confirmado do
ponto de vista empírico) de que, ao se oferecer, perceber, absorver
e avaliar uma mensagem, a verdade é exatamente o oposto: é mais
comum, rotineiro e trivial que nossa tendência seja a de julgar o
valor da informação pela qualidade da fonte. É por isso que, como
se queixava Habermas, a comunicação tende, como regra, a ser
“distorcida”: quem diz importa e conta mais que aquilo que foi dito.
O valor da informação é reforçado ou reduzido nem tanto por seu
conteúdo quanto pela autoridade de seu autor ou mensageiro. A
sequência inevitável é que, caso a informação chegue sem o nome
da fonte, as pessoas se sentirão perdidas e incapazes de assumir
uma posição; no que se refere à comunicação distorcida, identificar
a fonte é um ato legítimo, permitindo que se tome a decisão de
confiar na mensagem ou ignorá-la – e toda ou quase toda
comunicação em nosso tipo de sociedade pertence a essa categoria
de “distorcida”. (Para se livrar dessa distorção, a comunicação
exigiria uma igualdade genuína entre os participantes, uma
igualdade não apenas em torno da mesa de debates, mas na vida
“real”, off-line ou longe da sala de debates. Essa condição exigiria
nada menos que explodir e aplainar a hierarquia de autoridade dos
participantes; não bastaria dizer às pessoas que a informação
precisa ser avaliada por seus próprios méritos ou vícios, e não pelos
do autor, para que essa condição fosse atingida, e é muito provável
que as pessoas rejeitassem esse conselho ou instrução como
contrafactual, uma evidente caricatura das duras realidades da vida.
Indiretamente, e numa linguagem diferente da de Habermas,
Stanley Fish o admite: “Suponhamos que eu receba um bilhete
anônimo afirmando que fui traído por um amigo. Não saberei como
considerá-lo – trote cruel, calúnia, aviso, teste? Mas se eu conseguir
identificar o autor do bilhete – amigo, inimigo ou fofoqueiro
reconhecido –, poderei avaliar seu significado porque saberei o tipo
de pessoa que o escreveu e quais possam ter sido os seus
motivos.”)
Nesse caso, contudo, todas essas sugestões e restrições são
apenas um lado dos problemas (como assinalei, colocando-as entre
aspas); o que realmente importa é se a questão do anonimato de
opinião propagada e permitida pela internet precisa mesmo ser
enquadrada, julgada e resolvida no arcabouço da liberdade de
expressão; ou se sua verdadeira importância social, que precisa
tornar-se e continuar a ser o foco da preocupação pública, é sua
relação com o problema da responsabilidade de uma pessoa por
suas ações e suas consequências. O verdadeiro adversário do
anonimato no estilo da internet não é o princípio da liberdade de
expressão, mas o da responsabilidade: o anonimato ao estilo da
internet é, antes e acima de tudo, o mais importante do ponto de
vista social, uma permissão oficialmente endossada para a
irresponsabilidade e uma aula pública de como praticá-la – tanto online quanto off-line –, uma mosca antissocial extremamente grande
e venenosa, à qual se permite roubar um enorme tonel de unguento
apresentado como promotor da causa da sociabilidade e da
socialização, e em tese a ela dedicado.
Quanto mais potencialmente mortal for uma arma, mais difícil
será obter permissão para possuí-la e portá-la (embora não devesse
haver permissão de uso do tipo cheque em branco, fosse ela
fornecida livremente ou com restrições). A internet, porém (com o
Velho Oeste e a selva mítica), é objeto de uma isenção total a essa
regra tão amplamente considerada indispensável à vida civilizada.
Calúnia, injúria, difamação, insulto, ofensa, aleivosia e infâmia estão
entre as armas mais mortais: para as pessoas, mas também para o
tecido social. Sua posse e seu uso, em particular o uso
indiscriminado, é um crime na vida off-line (em geral chamada de
“vida real”, embora esteja longe de ser claro qual delas, a on-line ou
a off-line, ganharia a competição pelo título de realidade); mas não
foi reconhecida e proclamada como crime no mundo on-line. Só se
pode tentar adivinhar qual dos dois mundos, on-line ou off-line, vai
ser assimilado pelo outro e ajustar suas regras aos padrões deste;
qual deles acabará cedendo à pressão e qual vai pressionar com
mais intensidade para que o outro se renda. No momento, porém, o
mundo on-line tem uma vantagem considerável sobre o concorrente;
nele, em oposição ao off-line, todo mundo pode ser um 007: todos
têm licença para matar. Melhor ainda, todos podem matar sem
sequer dar-se ao trabalho de solicitar uma licença. É impossível
negar o poder de sedução de uma vantagem como essa. E
lembrem-se de que cada tipo de sedução faz uma pré-seleção de
seus seduzidos.
Uma
“irresponsabilidade
flutuante”
(ou
seja,
uma
responsabilidade destacada de seus portadores por agentes
aliviados de sua responsabilidade) significa, como Hannah Arendt
advertiu muito tempo atrás, a “responsabilidade de ninguém”. Ela
chegou a essa conclusão ao observar de perto as práticas
repulsivas da burocracia – na época era suspeita de constituir uma
assustadora ameaça, exigindo da civilização e da humanidade que
encontrassem formas de enfrentá-la. Hannah Arendt não viveu o
suficiente para testemunhar a difusão dessa invenção e dessa
especialidade para outros lugares que a própria burocracia –
confinada às suas aplicações tecnicamente primitivas, de indústria
caseira – nem sonhava em atingir.
16 DE JANEIRO DE 2011
Sobre as baixas e os danos colaterais
provocados pelos cortes
Bastam alguns minutos e um punhado de assinaturas para destruir
o que milhares de cérebros e duas vezes mais mãos levaram anos
para construir.
Esse talvez seja o atrativo mais assustador e sinistro, embora
irresistível, da destruição em todos os tempos – ainda que a
tentação nunca tenha sido mais inevitável que nas vidas apressadas
que se leva em nosso mundo obcecado pela velocidade e pela
aceleração. Em nossa moderna sociedade líquida de consumidores,
a indústria da desapropriação, remoção e eliminação que se
construiu para livrar-se das coisas é um dos pouquíssimos negócios
que têm a garantia de continuar crescendo imune às
excentricidades dos mercados de consumo. Esse negócio, afinal, é
indispensável se os mercados desejam ter permissão para proceder
da única maneira como são capazes: tropeçando de uma rodada de
ultrapassagem de alvos para outra, a cada vez removendo o lixo
resultante – e as instalações acusadas de despejá-lo.
Claro, essa é uma forma de procedimento perdulária demais; de
fato, o excesso e o desperdício são os principais venenos
endêmicos da economia consumista, férteis que são de uma grande
quantidade de danos e, mais ainda, de vítimas colaterais. Excesso e
desperdício são os companheiros de viagem mais leais,
inseparáveis – destinados a ficar inseparáveis até que a morte
(comum) os separe. Acontece, porém, que os cronogramas dos
ciclos de excesso e desperdício, em geral espalhados por um amplo
espectro da economia consumista e seguindo seus próprios ritmos
dessincronizados, sincronizam-se, sobrepõem-se e se fundem,
tonando insustentável e inatingível até remendar fendas e fissuras
com o equivalente econômico das cirurgias cosméticas e dos
transplantes de pele.
Onde os cosméticos não são suficientes, pede-se uma cirurgia
total e – embora com relutância – recorre-se a ela. Chega o
momento da “redução”, do “reordenamento” ou do “reajuste”
(codinomes politicamente favorecidos para a redução do ritmo das
atividades consumistas) e da “austeridade” (codinome de cortes nos
gastos do Estado), na esperança de promover uma “retomada
liderada pelos consumidores” (codinome do uso de dinheiro
guardado nos cofres do Tesouro para recapitalizar as agências que
nutrem e energizam o consumismo, sobretudo bancos e empresas
de cartões de crédito).
Esse é o período em que vivemos, na sequência de uma enorme
acumulação e congestão de excessos e dejetos, e do consequente
colapso do sistema de crédito, com todas as suas incontáveis
baixas colaterais. Na estratégia de vida (sustentada pelo crédito) do
“aproveite agora, pague depois” – fomentada, alimentada e
reforçada pelas forças conjuntas das técnicas de marketing e das
políticas governamentais (adestrando sucessivas coortes de
estudantes na arte e no hábito de viver de crédito) –, os mercados
de consumo descobriram uma varinha mágica para transformar
hostes de cinderelas, consumidores inativos e que, portanto, não
serviam para nada, em multidões de devedores (geradores de
lucro); ainda assim, também como ocorreu com Cinderela, apenas
por uma encantadora noite. A varinha fez sua mágica com a ajuda
de garantias de que, quando chegasse a hora de pagar, o dinheiro
necessário seria fácil de extrair a partir do valor de mercado
acumulado das maravilhas vendidas.
De modo prudente, ficou de fora dos panfletos de publicidade o
fato de que os valores de mercado continuam a crescer por causa
das garantias de que as alas de compradores dispostos e capazes
dessas maravilhas também continuarão crescendo; em termos mais
simples, o raciocínio subjacente a tais garantias era (como as
bolhas que elas inflaram) circular. Se você acreditasse nos
corretores de crédito, teria a expectativa de que o empréstimo obtido
para comprar sua casa seria pago pela própria casa, já que o preço
dela continuaria a crescer como ocorrera nos últimos anos, e
tenderia a aumentar muito depois de o empréstimo ter sido pago.
Ou acreditaria que o empréstimo obtido para financiar seus estudos
universitários seria pago, com juros enormes, pelos fabulosos
salários e benefícios que estavam à espera dos portadores de
diplomas.
As sucessivas bolhas agora já estouraram, e a verdade veio à
tona – embora, na maioria dos casos, depois do prejuízo. Em vez
dos ganhos prometidos, que seriam privatizados pela mão invisível
do mercado, as perdas são agora nacionalizadas por um governo
que tende a promover as liberdades do consumidor e a louvar o
consumo como atalho mais curto e seguro para a felicidade. As
vítimas mais seriamente atingidas pela economia do excesso e do
desperdício é que foram forçadas a pagar seus custos, tivessem ou
não confiado em sua sustentabilidade, acreditado ou não em suas
promessas e se rendido a suas tentações. Os que inflaram a bolha
agora mostram poucos sinais de sofrimento. Não foram suas as
casas retomadas, nem seus os seguros-desemprego cortados, nem
de seus filhos os playgrounds condenados a permanecer em
construção. As pessoas induzidas ou forçadas a depender de
empréstimos é que estão sendo castigadas.
Entre os milhões de punidos encontram-se centenas de milhares
de jovens que acreditavam – ou não tiveram escolha senão
comportar-se como se acreditassem – que o espaço lá no alto é
ilimitado; que um diploma universitário é tudo de que se necessita
para ser admitido; e que uma vez lá dentro o pagamento dos
empréstimos que você tomou pelo caminho seria ridiculamente fácil,
considerando-se a nova credibilidade que acompanha um endereço
situado lá no topo; eles agora enfrentam a perspectiva de preencher
inumeráveis propostas de emprego raras vezes honradas com uma
resposta; de um desemprego infinitamente prolongado; e da
necessidade de aceitar como única opção empregos incertos e sem
perspectiva, quilômetros abaixo das salas lá de cima.
Cada geração tem seu volume de excluídos. Em cada geração, há
pessoas destinadas à condição de excluídas porque a “mudança
geracional” provoca uma alteração importante nas condições e
exigências da vida, que tendem a forçar as realidades a se afastar
das expectativas implantadas pelo statu quo ante e a desvalorizar
as habilidades que elas treinavam e promoviam; e portanto a tornar
pelo menos alguns recém-chegados, aqueles sem flexibilidade nem
disposição suficiente para se adaptar aos padrões emergentes,
despreparados para enfrentar os novos desafios – e ao mesmo
tempo sem armas para resistir às suas pressões. Mas não é
frequente que o destino de ser excluído abranja toda uma geração.
Pois talvez seja isso o que está acontecendo agora.
Várias mudanças geracionais têm sido observadas no curso da
história da Europa no pós-guerra. Primeiro veio o generation boom,
seguido por duas gerações respectivamente chamadas de X e Y;
mais recentemente (embora nem tanto quanto o choque provocado
pelo colapso da economia reaganista/thatcherista), foi anunciada a
chegada iminente da geração Z. Cada uma dessas mudanças
geracionais foi um evento mais ou menos dramático; em cada caso,
assinalou-se uma quebra de continuidade, por vezes exigindo
reajustes dolorosos em função do choque entre expectativas
herdadas ou aprendidas e realidades inesperadas. No entanto,
olhando em retrospecto a partir da segunda década do século XXI, é
difícil deixar de observar que, quando confrontada com as profundas
mudanças provocadas pelo último colapso econômico, cada uma
das passagens entre gerações anteriores pode parecer o epítome
da continuidade intergeracional simples e tranquila.
Após várias décadas de expectativas crescentes, os atuais
diplomados recém-chegados à vida adulta se defrontam com
expectativas que estão em queda – e de forma rápida e abrupta
demais para que haja qualquer esperança de aterrissagem calma e
segura. Havia uma luz brilhante, ofuscante, no fim de cada um dos
poucos túneis que seus predecessores foram forçados a atravessar
no curso de suas vidas; agora, em vez disso, há um túnel longo e
sombrio atrás das poucas luzes que piscam, tremulam e se apagam
depressa na vã tentativa de romper a escuridão.
Essa é a primeira geração do pós-guerra que se defronta com a
perspectiva de mobilidade social descendente. Seus antepassados
foram treinados para nutrir literalmente a expectativa de que seus
filhos mirassem alvos mais elevados e chegassem mais longe que
eles próprios ousaram chegar (ou foram levados a chegar, por um
estado de coisas que agora é passado): esperavam que a
“reprodução intergeracional do sucesso” continuasse a quebrar seus
próprios recordes com tanta facilidade quanto eles próprios haviam
superado as realizações de seus pais. Gerações de pais
costumavam esperar que os filhos tivessem uma gama mais ampla
de escolhas, cada qual mais atraente que a outra; seja cada vez
mais instruído, suba cada vez mais na hierarquia do aprendizado e
da excelência profissional, seja mais rico e sinta-se ainda mais
seguro. O ponto de chegada dos pais, acreditavam eles, seria o
ponto de partida dos filhos – e um ponto com um número cada vez
maior de estradas à frente, todas elas conduzindo ao alto.
Os mais jovens da geração que agora está entrando ou se
preparando para entrar no “mercado de trabalho” foram criados e
preparados para acreditar que sua tarefa na vida era superar e
deixar para trás as histórias de sucesso de seus pais; e que essa
tarefa (exceto por um golpe cruel do destino ou por uma
inadequação própria curável) era plenamente compatível com sua
capacidade. Não importa aonde seus pais tivessem conseguido
chegar, eles iriam mais longe. Assim, pelo menos, foram ensinados
e doutrinados a acreditar. Nada os preparou para a chegada do
duro, inóspito e pouco convidativo novo mundo de degradação das
categorias; de desvalorização dos méritos obtidos; de portas
fechadas ou trancadas; de volatilidade dos empregos e obstinação
do desemprego; de transitoriedade das expectativas e durabilidade
da derrota; um novo mundo de projetos abortados e esperanças
frustradas, de oportunidades cada vez mais conspícuas por sua
ausência.
As últimas décadas foram tempos de expansão ilimitada de todas
as formas de educação superior e de um aumento incontrolável do
tamanho das hostes estudantis. O diploma universitário era uma
promessa de bons empregos, prosperidade e glória: o volume de
recompensas crescia de maneira constante para se equiparar às
fileiras em permanente expansão de portadores de diplomas. Com a
coordenação
entre
demanda
e
oferta
ostensivamente
predeterminada, garantida e quase automática, o poder de sedução
da promessa era impossível de resistir. Agora, porém, as multidões
estão se transformando no atacado, e quase que da noite para o
dia, em massa de frustrados. Pela primeira vez na memória viva,
toda uma turma de diplomados se defronta com a alta probabilidade,
quase uma certeza, de empregos ad hoc, temporários, inseguros e
em tempo parcial; e com pseudoempregos de “estagiários”
rebatizados de forma enganosa como “prática” – todos muito aquém
das habilidades adquiridas e éons abaixo do nível de suas
expectativas; ou de um período de desemprego mais longo que a
nova geração de diplomados vai levar para acrescentar seus nomes
às listas de espera já sinistramente longas das agências de
empregos.
Numa sociedade capitalista como a nossa, ajustada acima de
tudo para a defesa e preservação dos privilégios existentes, e, só
num distante (e muito menos respeitado ou observado) segundo
lugar, a tirar os demais do estado de privação, essa turma de
diplomados, com objetivos superiores, mas recursos escassos, não
tem a quem recorrer em busca de ajuda e remédio. As pessoas que
detêm o leme, quer à direita ou à esquerda do espectro político,
estão de armas na mão em defesa de seus robustos eleitorados –
contra os recém-chegados que ainda se mostram lentos em
flexionar seus músculos ridiculamente imaturos, e que sem dúvida
protelam qualquer tentativa séria de flexioná-los até depois das
próximas eleições gerais. Aliás, como todos nós, do ponto de vista
coletivo, e a despeito das peculiaridades geracionais, tendemos a
ser ávidos demais na defesa de nosso conforto contra os modos de
subsistência das gerações que ainda estão por nascer.
Observando “a raiva, até o ódio” que se pode notar na turma de
diplomados de 2010, o cientista político Louis Chauvel, em artigo
publicado no Le Monde de 4 de janeiro, “Os jovens não são um bom
partido”, indaga: quanto tempo vai levar para que o rancor do
contingente de baby-boomers franceses, enfurecidos pelas
ameaças a seus nichos de pensão, se combine com o da turma de
2010, à qual se negou o direito de ganhar uma pensão? Mas
combinar-se para formar o quê? – podemos (e devemos) perguntar.
Uma nova guerra de gerações? Um novo mergulho na belicosidade
das margens extremistas que cercam um centro cada vez mais
desesperado e deprimido? Ou o consenso suprageracional de que
este nosso mundo, tão destacado por usar a duplicidade como arma
de sobrevivência e por enterrar vivas as esperanças, não é mais
sustentável e precisa de uma renovação já seriamente adiada?
Que dizer das turmas de diplomados ainda por vir? E da sociedade
em que, mais cedo que tarde, eles terão de assumir as tarefas que
seus antepassados em hipótese deveriam realizar e bem ou mal
cumpriram? Essa sociedade cuja soma total de habilidades,
conhecimento, competitividade, resistência e coragem, sua
capacidade de enfrentar desafios, de extrair o melhor deles e
autoaperfeiçoar-se, será determinada por eles – quer gostem disso
ou não, por ação ou omissão.
Seria prematuro e irresponsável dizer que o planeta como um
todo está entrando na era pós-industrial. Mas não seria menos
irresponsável negar que a Grã-Bretanha entrou nessa era décadas
atrás. Por todo o século XX, a indústria britânica compartilhou o
destino que atingiu a agricultura desse país no século anterior –
começou com uma superpopulação e terminou despovoada (na
verdade, em todos os países ocidentais “mais desenvolvidos” os
trabalhadores industriais somam agora menos de 18% da população
trabalhadora). O que foi com frequência negligenciado, contudo, é
que, em paralelo ao encolhimento do número de trabalhadores
industriais na força de trabalho nacional, há também uma diminuição
nas fileiras dos industriais no seio da elite do poder econômico e
político.
Continuamos a viver numa sociedade capitalista, mas os
capitalistas que dão o tom e pagam o preço não são mais
proprietários de minas, docas, siderúrgicas ou montadoras de
automóveis. Na lista de 1% de americanos mais ricos, apenas um
em cada seis nomes pertence a um empresário da indústria; o resto
é formado por financistas, advogados, médicos, cientistas,
arquitetos, programadores, designers e todas as espécies de
celebridade de palcos, telas e estádios. O dinheiro grande agora se
encontra na administração e alocação de finanças, e na invenção de
novas bugigangas eletrônicas, aparelhos de comunicação,
dispositivos de marketing e publicidade, assim como no universo
das artes e do entretenimento; em outras palavras, em novas ideias
criativas e atraentes ainda inexploradas. São pessoas com ideias
brilhantes e úteis (leia-se: vendáveis) que agora habitam as salas do
topo. São pessoas como essas as que mais contribuem para o que
hoje se entende por “crescimento econômico”. Os principais
“recursos deficitários” de que se faz o capital, e cuja posse e
gerenciamento fornecem a fonte básica de riqueza e poder, são
hoje, na era pós-industrial, conhecimento, inventividade,
imaginação, capacidade de pensar e coragem para fazê-lo de modo
diferente – qualidades que as universidades são convocadas a criar,
disseminar e instilar.
Cerca de cem anos atrás, na época da Guerra dos Bôeres, o
pânico tomou conta das pessoas preocupadas com o poder e a
prosperidade da nação, diante da notícia de que havia um número
amplo e crescente de recrutas subnutridos, com corpos decrépitos e
pouca saúde, e portanto física e mentalmente inadequados para os
pátios das fábricas e para os campos de batalha. Agora é hora de
entrar em pânico ante a perspectiva de um número crescente de
pessoas subeducadas (segundo os padrões mundiais em rápida
ascensão), e assim inadequadas para laboratórios de pesquisa,
oficinas de design, salas de conferências, estúdios de arte ou redes
de informação, que pode resultar da redução dos recursos das
universidades e do número decrescente de diplomados em
instituições de primeira linha. Os cortes de gastos governamentais
com o financiamento da educação superior conseguem ser, ao
mesmo tempo, cortes nas perspectivas de vida da geração que está
se tornando adulta, e também no padrão e na reputação da
civilização britânica, assim como no status e no papel da GrãBretanha na Europa e no mundo.
Os cortes nas verbas do governo são acompanhados de
aumentos extraordinariamente excessivos, até selvagens, das
anuidades universitárias. Estamos acostumados a nos sentir
alarmados e furiosos com um pequeno aumento percentual no custo
das passagens de trem, da carne ou da eletricidade; mas tendemos
a ficar consternados e perplexos diante de um aumento de 300% –
incapacitados e desarmados, inseguros sobre como reagir. Em
nosso arsenal de armas de defesa, não há nenhuma a que
possamos recorrer – como aconteceu nos recentes eventos nos
quais bilhões e trilhões de dólares foram injetados de uma vez pelos
governos nas caixas-fortes dos bancos, após dezenas de anos de
parcimônia e litígios febris quanto aos poucos milhões a ser
acrescentados (mas não foram) aos orçamentos de escolas,
hospitais, fundos de bem-estar social e projetos de renovação
urbana.
É difícil imaginar a miséria e a angústia de nossos netos quando
despertarem para a herança de um volume até então inimaginável
de dívida pública exigindo ser pago; ainda não estamos prontos
para visualizá-lo, agora mesmo, quando, por cortesia de nosso
governo liberal-conservador, foi-nos oferecida a oportunidade de
provar as primeiras colheradas da mistura amarga que eles, nossos
netos, serão forçados a ingerir aos caldeirões. E é difícil prever hoje
o alcance total da devastação sociocultural que tende a acompanhar
a construção de uma versão monetária dos muros de Berlim ou da
Palestina na entrada de nossos centros de distribuição do
conhecimento. Mas precisamos e devemos fazer isso – no nosso
perigoso futuro comum.
Talento, perspicácia, inventividade, ousadia – todas essas rochas
duras à espera de serem polidas e transformadas em diamantes
dentro dos prédios das universidades, por professores talentosos,
perspicazes, inventivos e ousados – se espalham de modo mais ou
menos uniforme por nossa espécie; ainda que barreiras artificiais
erigidas por seres humanos no caminho que leva da zoon, a “vida
nua”, à bios, a vida social, nos impeçam de percebê-lo. Diamantes
brutos não escolhem os veios em que a natureza os coloca, nem
ligam para divisões inventadas pelos homens, ainda que elas se
encarreguem de selecionar alguns para fazer parte de uma classe
destinada ao polimento, enquanto os outros são relegados à
categoria do “poderia ter sido” – ao mesmo tempo em que fazem o
possível para encobrir os vestígios dessa operação. Triplicar as
anuidades vai dizimar as fileiras dos jovens que crescem nos
distritos perigosos, caracterizados pela privação social e cultural,
mas determinados e ousados o suficiente para bater às portas da
sorte nas universidades – e assim privarão também o resto da
nação dos diamantes brutos com que esses jovens costumavam
contribuir ano após ano.
Como o sucesso na vida, e em especial a mobilidade social
ascendente, tende hoje a ser possibilitado, estimulado e deflagrado
pelo encontro do conhecimento com talento, perspicácia,
inventividade e espírito de aventura, triplicar as anuidades vai
empurrar para trás a sociedade britânica pelo menos um século em
seu percurso rumo à ausência de classes. Poucas décadas apenas
depois de ser inundada pelas descobertas acadêmicas de um
“adeus às classes”, podemos esperar, num futuro não muito
distante, por uma chuva de estudos declarando “bem-vinda outra
vez, classe – tudo foi esquecido”.
Isso é o que de fato podemos esperar; portanto – nós,
professores, sendo as criaturas socialmente responsáveis que
precisamos ser, espera-se que sejamos e algumas vezes somos –
deveríamos nos preocupar com um prejuízo ainda maior que o
efeito imediato de colocar as universidades à mercê dos mercados
de consumo (que é o que significa a combinação da retirada do
patrocínio do Estado com a triplicação das anuidades): em termos
de redundâncias, de suspensão ou abandono de projetos de
pesquisa, provavelmente do agravamento da relação corpo
docente/estudantes e também das condições e da qualidade do
ensino. A ressurreição das divisões em classes é algo que se deve
esperar, pois se criaram motivos mais que suficientes para que pais
menos abastados pensem duas vezes antes de obrigar os filhos a
se afundar, durante três anos, numa dívida maior que eles próprios
assumiram no passado; e para que os filhos desses pais, ao
observar seus conhecidos um pouco mais velhos na fila em frente
das agências de emprego, pensem duas vezes sobre o sentido
disso tudo – o sentido de se submeter a três anos de trabalho
incessante e de viver na pobreza apenas para encarar no fim um
conjunto de opções não muito mais favoráveis que aquelas com que
agora se defrontam.
Bem, são necessários alguns minutos e um punhado de
assinaturas para destruir o que milhares de cérebros e o dobro de
mãos levaram muitos anos para construir.
17 DE JANEIRO DE 2011
Sobre uma das muitas páginas extraídas
da história da cruzada democrática
Meio século atrás, o primeiro presidente democraticamente eleito na
chamada África “pós-colonial”, Patrice Lumumba, 35 anos, foi
espancado, torturado e morto a tiros – apenas alguns meses depois
de sua eleição, considerada impecável, do ponto de vista
democrático, pelos observadores ocidentais, mensageiros das
democracias belga e americana encarregados de divulgar o
evangelho democrático nas terras desocupadas pelas tropas
coloniais. De fato, as tropas haviam deixado o Congo, mas
Lumumba lá ficou, apenas com alguns congoleses de formação
superior, numa terra de 15 milhões de pessoas e apenas três rostos
negros entre os 5 mil funcionários seniores da administração do
país, que permaneceram e passaram a sabotar a ordem da nova
nação, expressa de modo democrático nas urnas, uma vez
fechadas as seções eleitorais.
Os funcionários belgas de posição mais elevada na velha/ nova
burocracia do Estado escolheram o codinome “Satã” para o novo
presidente democraticamente eleito. Pode-se imaginar um demônio
mais odioso e repugnante que alguém exigindo a restituição das
opulentas riquezas do Congo, suas minas de diamante, ouro, urânio
e cobre, para as pessoas de quem foram roubadas? Adam
Hochschild, que visitou a capital congolesa logo depois desses
eventos, relembra na edição de hoje do New York Times: “A
satisfação triunfante, viril, com que dois jovens funcionários da
embaixada americana – muito mais tarde identificados como
homens da CIA – conversaram comigo, embalados por alguns
drinques, sobre a morte de alguém que eles não viam como um líder
eleito, mas como um arrogante inimigo dos Estados Unidos.”
Os atentados contra a vida de Lumumba começaram já no dia
seguinte à sua eleição. Quando o plano de envenená-lo por um
agente enviado pela CIA fracassou, os governos de Estados Unidos
e Bélgica forneceram dinheiro e armas aos adversários locais de
Lumumba, logo convertidos em “forças de oposição”, orquestraram
a secessão e a “proclamação da independência” de Katanga, região
do Congo profusamente dotada de recursos minerais. A primeira
tarefa imposta pelos mandatários belgas e americanos aos
governantes do país recém-“liberto” foi dar um fim ao inflexível e
insubordinado presidente, deposto e entregue a eles pela “oposição
democrática”
congolesa.
Os
governantes
de
Katanga
desempenharam sua missão de forma impecável, seguindo ao pé
da letra as instruções transmitidas por seus chefes de além-mar.
Os 32 anos seguintes da “República Independente” de Katanga –
a história do governo implacável, sanguinário e corrupto do ladrãocarniceiro Joseph Mobutu, ditador regado de propinas e louvores
pela Casa Branca e proclamado por George Bush, pai, “um de
nossos amigos mais valiosos” – representaram um período que
muitos líderes de nosso mundo democrático prefeririam esquecer.
Da mesma forma que a deposição, o julgamento e prisão de
Mohammad Mossadeq, presidente democraticamente eleito de uma
Pérsia rica em petróleo (ver o relatório ultrassecreto da CIA sobre a
deposição de Mossadeq em www.iranonline.com/newsroom/
Archive/Mossadeq), e a subsequente agonia longa e ainda
inacabada do país no governo do xá e dos aiatolás-ditadores; assim
como
o
assassinato
de
Salvador
Allende,
também
democraticamente eleito, no Chile, país rico em manganês, e a
posterior tirania implacável e sanguinária de Augusto Pinochet; tal
como esqueceram o 50º aniversário do assassinato de Patrice
Lumumba, o primeiro presidente democraticamente eleito num país
africano.
18 DE JANEIRO DE 2011
Sobre machados imorais e carrascos
morais
Durante a Segunda Guerra Mundial, George Orwell ponderou:
“Enquanto escrevo, seres humanos altamente civilizados estão
voando sobre mim, tentando me matar. Eles não têm inimizade em
relação a mim como indivíduo, nem eu em relação a eles. Estão
apenas ‘fazendo o seu trabalho’, como se diz.” Alguns anos depois,
examinando o enorme cemitério em camadas chamado Europa em
busca do tipo de ser humano que conseguiu fazer isso com outros
de sua espécie, Hannah Arendt revelou o hábito “flutuante” da
responsabilidade no interior do corpo burocrático; às suas
consequências ela deu o nome de “responsabilidade de ninguém”.
Mais de meio século mais tarde, poderíamos dizer o mesmo do
atual estado da arte de matar.
Continuidade, então? Sim, temos continuidade, embora, por
constância aos hábitos dessa condição, na companhia de algumas
descontinuidades… A principal novidade é a obliteração das
diferenças de status entre meios e fins. Ou melhor, a guerra de
independência que terminou com a vitória dos machados sobre os
carrascos. Agora são os machados que escolhem os fins: as
cabeças a decepar. Os carrascos podem fazer muito pouco para
impedi-los (ou seja, mudar as mentes que eles não têm ou recorrer
a sentimentos que não possuem) além do que podia o lendário
aprendiz de feiticeiro. (Essa alegoria não é de modo algum
fantasiosa: como escreveram Thom Shanker, correspondente no
Pentágono, e Matt Ritchel, correspondente na área de tecnologia,
no New York Times de hoje: “Assim como têm promovido há muito
tempo o avanço tecnológico, os militares agora estão na linha de
frente imaginando como os seres humanos podem lidar com a
tecnologia sem ser sobrepujados por ela.” E, da forma como o
neurocientista Art Kramer vê a situação: “Há uma sobrecarga de
informação em todos os níveis da área militar, do general ao
soldado.” Todos no Exército, “do general ao soldado”, foram
rebaixados do gabinete do feiticeiro para a posição inferior de
aprendiz.)
Desde setembro de 2001, a quantidade de “informações”
acumulada pela tecnologia de ponta à disposição do Exército
americano já aumentou 1.600%. Não que os carrascos tenham
perdido suas consciências nem sido imunizados contra os
escrúpulos morais; simplesmente não podem dar conta do volume
de informações coletado pelos dispositivos que controlam. Estes, na
verdade, podem funcionar bem (ou mal) com ou sem a ajuda deles,
obrigado. Chute os carrascos para longe de suas telas, e
dificilmente você vai notar sua ausência se observar a distribuição
dos resultados.
No início do século XXI, a tecnologia militar conseguira fazer a
responsabilidade flutuar e portanto “despersonalizá-la” num grau
inimaginável no tempo de Orwell ou Hannah Arendt. Mísseis ou
drones (aeronaves não tripuladas) “espertos”, “inteligentes”,
assumiram o processo de tomada de decisão e a seleção dos alvos,
confiscando-os tanto dos soldados rasos quanto dos membros dos
mais altos escalões na máquina militar. Eu sugeriria que os
desenvolvimentos tecnológicos mais fundamentais dos últimos anos
não foram pesquisados e introduzidos para aumentar o poder
mortífero dos armamentos, mas na área da “adiaforização” da
matança militar (ou seja, sua exclusão da categoria de ações
sujeitas à avaliação moral). Como Günther Anders advertiu depois
de Nagasaki, mas muito antes de Vietnã, Afeganistão ou Iraque,
“não é possível ranger os dentes ao pressionar um botão. … Uma
tecla é uma tecla.” Se a tecla for pressionada, ela liga uma máquina
de fazer sorvete na cozinha, alimenta uma rede de eletricidade ou
libera os cavaleiros do Apocalipse, não faz diferença. “O gesto inicial
do Apocalipse não seria diferente de nenhum outro gesto – e seria
feito, como qualquer outro gesto semelhante, por um operador
também guiado e aborrecido pela rotina.” “Se algo simboliza a
natureza satânica de nossa condição, é precisamente essa
inocência do gesto”,3 conclui Anders com a irrelevância de esforço e
de pensamento necessários para desencadear um cataclismo –
qualquer um, incluindo o “globocídio”.
Novo é o drone, adequadamente chamado de “Predador”, que
assumiu a tarefa de coletar e processar a informação. O
equipamento eletrônico do drone destaca-se na execução de sua
tarefa. Mas que tarefa? Tal como a função manifesta do machado é
permitir que o carrasco execute o condenado, a função manifesta do
drone é habilitar seu operador a localizar o objeto da execução. Mas
o drone que se destaca nessa função e inunda o operador de fluxos
de informação que este é incapaz de digerir (muito menos de
processar pronta e rapidamente) “em tempo real” pode estar
desempenhando outra função, latente e não declarada: a de isentar
o operador da culpa moral que o assaltaria caso fosse incumbido de
selecionar os condenados a executar; e, o que é ainda mais
importante, ele deixa o operador seguro de que, se ocorrer um erro,
ele não será acusado dessa imoralidade. Se “pessoas inocentes”
forem mortas, será um problema técnico, não um pecado ou falha
moral – e, a julgar pelos códigos, não será um crime.
Como dizem Shanker e Richtel, “sensores baseados em drones
deram origem a uma nova classe de guerreiros com fios,
encarregados de filtrar o oceano de informações. Às vezes, porém,
eles se afogam.” Mas a capacidade de afogar as faculdades mentais
(e, portanto, indiretamente, morais) do operador não está incluída no
projeto do drone? Quando, em fevereiro último, 23 afegãos
convidados para uma cerimônia de casamento foram mortos, os
operadores responsáveis por apertar os botões puderam pôr a culpa
nas telas transformadas em “atrações irresistíveis”: eles haviam se
perdido só de ficar com os olhos grudados nelas. Havia crianças
entre as vítimas das bombas, mas os operadores “não se
concentraram nelas em meio a um turbilhão de dados” – “como um
viciado em internet que perde a pista de um e-mail importante diante
de uma pilha crescente”. Bem, ninguém acusaria esse viciado de
falha moral.
Desencadear um cataclismo (incluindo, como insiste Anders, um
“globocídio”) agora se tornou mais fácil e plausível do que quando
ele escreveu suas advertências. Ao “operador aborrecido com a
rotina” juntou-se seu colega e provável substituto e sucessor – o
sujeito com os olhos fixos numa “atração irresistível” e a mente
afundada num “turbilhão de dados”.
20 DE JANEIRO DE 2011
Sobre Berlusconi e a Itália
Preparando uma edição especial dedicada à avaliação do longo
governo de Berlusconi, a revista Macromega me pediu para dar
minha opinião sobre como isso parece quando visto “de muito
longe”. Segue-se minha resposta.
Em vez de tentar elaborar minha própria acusação do “fenômeno
Berlusconi” e acrescentar mais algumas páginas aos arquivos já
caoticamente amplos reunidos para seu julgamento – é difícil que
ele ocorra num futuro previsível –, permitam-me trazer à lembrança
dos leitores as opiniões do grande homem de letras português José
Saramago. Frustrado com a absurda demora da justiça legal
italiana, ele não esperaria com humildade que se convocasse o
tribunal da consciência italiana. Por infortúnio, Saramago não
poderá responder ao questionário pessoalmente, de modo que me
permitam servir-lhe de mensageiro, ou portavoz autonomeado. Vou
tirar minhas citações do Caderno, uma espécie de diário mantido
por Saramago em 2008-09 e publicado em Lisboa pela Caminho.
Saramago, mestre supremo da arte das palavras, é conhecido
por escolhê-las com cuidado beneditino e precisão fantástica. Ele
sabia que em italiano o termo que designa a criminalidade
(delinquenza) tem “uma carga negativa muito mais forte que em
qualquer outro idioma falado na Europa”. Apesar disso, não hesitou
em empregá-lo em relação a Berlusconi (ver seus apontamentos
datados de 8 de junho de 2009): “Berlusconi tem vindo a cometer
delitos de variável mas sempre demonstrada gravidade. Além disso,
não só tem desobedecido a leis como, pior ainda, as tem mandado
fabricar para a salvaguarda dos seus interesses público e
particulares, de político, empresário e acompanhante de menores”.
Saramago também não hesita em concluir que Berlusconi “caiu na
mais completa abjeção”.
Em anotação escrita um mês antes, em 15 de maio, Saramago
chamou Berlusconi de “o Catilina da Itália atual”, com a ressalva de
que, em oposição a seu protótipo do passado, Berlusconi “não
necessita assaltar o poder porque já é seu, tem dinheiro bastante
para comprar todos os cúmplices que sejam necessários, incluindo
juízes, deputados e senadores”. Mas ele buscou em vão uma “voz
italiana”, ao repetir quase ao pé da letra as palavras de Cícero,
mudando apenas o nome do destinatário: “Até quando, Berlusconi,
abusarás de nossa paciência?” E foi a ausência dessa voz que
continuou a ser, para Saramago, o mistério mais assustador – só
que para ele não se tratava de um mistério de Berlusconi, mas da
Itália. Porque Berlusconi, observou Saramago em 15 de maio de
2009, parece que “conseguiu a proeza de dividir a população da
Itália em duas partes: os que gostariam de ser como ele e os que já
o são”. Mas Saramago ainda tinha esperanças, evidenciadas nesse
“parece”, de que o pesadelo se dispersaria (quanto mais cedo
melhor).
A história da Itália, aos olhos de Saramago, tal como aos de
muitos europeus, parece “um extensíssimo rosário de gênios, sejam
eles pintores, escultores ou arquitetos, músicos ou filósofos,
escritores ou poetas … um não acabar de gente sublime que
representa o melhor que a humanidade tem pensado, imaginado,
feito.” Nunca houve na história italiana uma escassez de espíritos
nobres. Portanto, Cícero, onde está você, por que desertou de seu
posto quando a Itália, como a conhecemos e amamos, está mais
uma vez em perigo?
Num registro datado de 17 de fevereiro de 2009, Saramago se
queixa, como tantos europeus amantes da Itália:
Ainda que, em verdade, quero dizê-lo já, o mais ofendido seja eu. Sim, precisamente
eu. Ofendido no meu amor por Itália, pela cultura italiana, pela história italiana,
ofendido, inclusive, na minha pertinaz esperança de que o pesadelo venha a ter um
fim e de que a Itália possa retomar o exaltador espírito verdiano.
Tendo eleito duas – duas! – vezes, “esta doença, este vírus
ameaça ser a causa da morte moral do país de Verdi se um vômito
profundo não conseguir arrancá-la da consciência dos italianos
antes que o veneno acabe por corroer-lhes as veias e destroçar o
coração de uma das mais ricas culturas europeias”, o povo italiano
enveredou pelo “caminho da ruína”, levando “por arrastamento os
valores” da “liberdade e dignidade”.
“Vão os italianos permiti-lo?”, pergunta Saramago, em total
confusão e desespero. E eu compartilho plenamente de sua
preocupação.
Em outra ocasião, embora semelhante em certos aspectos
históricos, Karl Marx opinou que nenhuma nação, tal como mulher
alguma, pode ser perdoada por um momento de fraqueza em que
qualquer velhaco seja capaz estuprá-la.
28 DE JANEIRO DE 2011
Sobre mantê-lo do lado de dentro, e no
entanto do lado de fora
Poucos meses antes das últimas eleições presidenciais americanas,
numa conversa com Giuliano Battiston, eu disse o seguinte em
resposta à pergunta que ele fez: “Será que a eleição [de Obama]
pode ser interpretada como um sinal de que o sistema político
americano rompeu definitivamente o vínculo entre demos e ethnos,
e que os Estados Unidos estão se transformando numa sociedade
pós-étnica mais consciente?”
Obama precisa ter cuidado para não concorrer ao poder em nome
das massas “tiranizadas e oprimidas”, que são por esse motivo
proclamadas inferiores – e cuja incapacidade, indignidade e infâmia,
impostas e estereotipadas, resvalam sobre ele em função de sua
classificação etnicamente/racialmente herdada/atribuída. Ele não
está concorrendo ao poder na onda de uma rebelião promovida
pelos “tiranizados e oprimidos” ou por um “movimento
social/político”, como seu porta-voz, plenipotenciário e vingador. O
que se pretende provar com seu progresso e ascensão – como é
provável que ocorra – é que um estigma coletivo pode ser tirado das
costas de indivíduos selecionados; em outras palavras, que alguns
indivíduos das categorias oprimidas e discriminadas possuem
qualidades que “ultrapassam” sua participação numa inferioridade
coletiva, categorial; e que essas qualidades podem ser equivalentes
ou mesmo superiores àquelas apresentadas por concorrentes que
não sofram o peso desse estigma.
O fenômeno não invalida o pressuposto da inferioridade
categorial. Deveria antes ser percebido (e o é, por muitos) como
reafirmação perversa do pressuposto: eis aqui um indivíduo que,
quase ao estilo do Barão de Münchhausen, conseguiu se erguer
puxando-se pelas botas: mediante seus talentos e sua força
individuais, não por seu pertencimento a determinado grupo, mas
apesar dele – e provando, no mesmo sentido, nem tanto o valor e a
virtude amplamente subestimados de “seu povo”, mas a tolerância e
a generosidade de seus superiores sociais, cuja superioridade se
manifesta no fato de estarem prontos a permitir que indivíduos
arrojados e talentosos da categoria inferior se juntem a eles e
tentem chegar ao topo, assim como a suprimir muitas das objeções
generalizadas à aceitação social e política dos que conseguem. Isso
não significa, porém, que o progresso dos indivíduos que agarraram
uma oportunidade assim vá elevar a categoria como um todo, a
“categoria em si”, de sua posição social inferior e abrir perspectivas
de vida mais amplas para todos os seus integrantes.
O longo governo semiditatorial de Margaret Thatcher não trouxe a
igualdade social para as mulheres; mas provou que algumas
mulheres podem derrotar os homens em seu próprio jogo machista.
Muitos dos judeus que conseguiram emergir dos guetos no século
XIX e se passar por alemães (ou pelo menos assim tentavam
acreditar) fizeram muito pouco por seus irmãos e irmãs atribuídos ou
imputados, deixados para trás, no sentido de tirá-los da pobreza e
protegê-los da discriminação jurídica e social. Tal como a promoção
pessoal de Margaret Thatcher não tornou menos “masculino” o
establishment britânico, a carreira dos fugitivos do gueto judaico não
tornou a Alemanha menos nacionalista. Nem tampouco encurtou a
distância entre discriminadores e discriminados. Na verdade,
ocorreu o contrário.
Muitos dos ideólogos e praticantes mais barulhentos e dedicados
das variedades mais radicais dos nacionalismos promissores do
século XX eram recém-chegados de “minorias étnicas”, ou
estrangeiros “naturalizados” (incluindo Stálin e Hitler). Um judeu,
Benjamin Disraeli, solidificou e fortaleceu o Império Britânico. O grito
de guerra dos “assimilados” era “tudo que você pode fazer, eu posso
fazer melhor” – a promessa e determinação de ser mais católico que
o papa; mais alemão que os alemães; mais polonês que os
poloneses; mais russo que os russos, em termos de enriquecer suas
respectivas culturas e promover seus respectivos “interesses
nacionais” (feitos que muitas vezes eram usados contra eles,
tomados como provas de sua duplicidade e de suas intenções
insidiosas). Entre todas as outras coisas que eles tendiam a “fazer
melhor” que os nativos estava também (para muitos dos
assimilados) a indiferença à sorte e aos interesses de sua
“comunidade de origem”, que caracterizava os pensamentos e
ações dos “nativos”.
Cerca de um ano depois de Obama se mudar para a Casa Branca,
quando minhas primeiras premonições se haviam transformado em
observações, acrescentei (em uma das cartas publicadas em La
Repubblica) os seguintes comentários de Naomi Klein:
Os negros e latinos que não fazem parte da elite estão perdendo terreno de modo
considerável, com suas casas e empregos escapando de suas mãos numa taxa muito
mais alta que as dos brancos. Até agora, Obama não tem se disposto a adotar
políticas de cunho específico para preencher essa brecha que nunca para de crescer.
O resultado pode deixar as minorias no pior dos mundos: a dor de uma reação racista
em ampla escala sem os benefícios de políticas capazes de amenizar suas
dificuldades quotidianas.
Outro ano se passou e muita água rolou pelas pontes do rio
Potomac, mas basicamente foram as mesmas as mensagens
transmitidas do Salão Oval para os guetos negros dos Estados
Unidos. Mensagens escritas, mas também silenciosas. Como
observa Charles M. Blow no New York Times de hoje: “Foi a
segunda vez, desde o discurso do Estado da União proferido por
Harry S. Truman em 1948, que um discurso como esse, proferido
por um presidente democrata, não inclui uma só menção à pobreza
ou à condição dos pobres.”
Poucas dúvidas restam: a esperança dos destituídos, oprimidos e
humilhados voltou as costas para aqueles que o elegeram (ou seja,
95% dos eleitores negros e 67% dos hispânicos; 73% das pessoas
que ganham menos de US$ 15 mil por ano, 60% dos que ganham
entre US$ 5 mil e US$ 30 mil, e 55% daqueles com rendimentos
entre US$ 30 mil e US$ 50 mil). Ele chutou para longe a escada
com que chegou ao gabinete onde em geral se redigem os
discursos do Estado da União. Brian Miller, diretor-executivo do
grupo de pesquisa United for a Fair Economy, comenta a mensagem
que Obama deixou fora de seu discurso, embora sua forma de
governar os Estados Unidos a transmitisse com toda clareza para os
que o ajudaram a subir ao poder: “Como 42% dos negros e 37% dos
latinos carecem do dinheiro necessário para pagar as despesas
mínimas com moradia por mais que três meses, se ficarem
desempregados, cortar os programas de assistência pública terá
impactos devastadores sobre os trabalhadores negros e latinos.”
“Minha fé nele [o presidente] como defensor ardente dos pobres e
desprivilegiados entrou novamente em queda livre. … [O presidente]
parece estar se afastando, muitas vezes a toda velocidade, das
pessoas que antes o apoiavam” – assim Charles Blow resume seus
próprios comentários. E, entristecido, faz as perguntas que agora
deve considerar, como eu, puramente retóricas:
Para os pobres, este é o dilema de Obama. Ele foi obviamente a melhor escolha em
2008. E, a julgar pelo atual elenco de contendores republicanos, poderá ser a melhor
escolha em 2012. Mas será que isso lhe dá licença para deixar de lado a
responsabilidade moral perante seus devotados eleitores? Será que eles podem e
devem tomar seu desprezo como uma consequência necessária da guerra política, ao
dedicar seus esforços a se religar ao centro e se reconectar àqueles cuja opinião
sobre ele oscilam entre o desprezo, num dia ruim, e a tolerância, num bom dia? Será
que mantê-lo na Casa Branca implica mantê-los à sombra?
30 DE JANEIRO DE 2011
Sobre as pessoas nas ruas
Em 14 de julho de 1789, o rei da França, Luís XVI, registrou em seu
diário uma única palavra: “Rien.” Naquele dia, uma multidão de
sans-culottes parisienses invadiu as ruas que não costumavam ser
visitadas pelos misérables, pelo menos não en masse – e
certamente não para ficar por muito tempo. Dessa vez eles o
fizeram, e não sairiam até dominar os guardas e tomar a Bastilha.
Mas como Luís XVI poderia saber? A ideia de uma multidão
(aquela “plebe suja”, como Henry Peter Brougham se referiria com
desprezo a outras pessoas que tomavam outras ruas algumas
décadas depois da queda da Bastilha) virando a história de cabeça
para baixo ou de cabeça para cima, dependendo do ponto de vista
do observador, ainda não era algo a ser levado a sério. Muita água
teria de correr sob o Sena, o Reno ou o Tâmisa antes que a
chegada e a presença da “gentalha” no palco histórico pudessem
ser notadas, reconhecidas e temidas, para nunca mais serem
desprezadas.
Depois dos avisos e advertências feitos por gente como Gustave
le Bon, George Sorel ou Ortega y Gasset, os autores de diários não
anotariam “rien” ao ouvir multidões percorrendo as praças do centro
da cidade; provavelmente, contudo, eles a substituiriam por um
grande ponto de interrogação. Todos eles: os que contemplam,
como Hillary Clinton, a visão de um parlamento erguer-se das cinzas
da fúria popular; os que examinam com nervosismo a multidão
invadir a praça Tahir em busca do potencial fundador da próxima
república islâmica; e os que sonham com a multidão corrigindo os
erros dos malfeitores e fazendo justiça aos responsáveis pela
injustiça.
Joseph Conrad, homem do mar por escolha, é lembrado por
proclamar que “nada é tão sedutor, tão decepcionante nem tão
cativante quanto a vida no mar”. Enquanto, alguns anos mais tarde,
Elias Canetti escolheria o mar (com o fogo, a floresta, a areia etc.)
como uma das metáforas mais pungentes e elucidadoras da
multidão humana. Ela talvez fosse em especial adequada para uma
das diversas variedades de multidão que ele designou a multidão
reversa, aquela, por assim dizer, re-volução instantânea que num
átimo transforma as coisas em seu oposto: prisioneiros em guardas,
guardas em prisioneiros, rebanhos em pastores, pastores (solitários)
em rebanhos – e que comprime e condensa um monte de migalhas
num todo monolítico, enquanto transforma a multidão num indivíduo:
um sujeito indivisível do tipo: “Nous ne sommes rien, soyons tout!”
Pode-se ampliar essa ideia de “reverso” para abarcar o próprio
ato de reverter: “Na multidão”, escreveu Canetti, “o indivíduo sente
que está transcendendo os limites de sua própria pessoa.” O
indivíduo não sente que está se dissolvendo, mas se expandindo; é
ele, o desprezível solitário, que agora se reencarna como os muitos
– a impressão que a sala de espelhos tenta reproduzir com efeito
limitado e inferior.
A multidão também significa a liberação instantânea de fobias:
“Nada causa mais temor a um homem que o toque do
desconhecido”, diz Canetti. “Ele quer ver o que vem em sua direção
e ser capaz de reconhecê-lo ou pelo menos de classificá-lo. O
homem sempre tenta evitar o contato com qualquer coisa estranha.”
Mas na multidão esse medo do desconhecido é paradoxalmente
anulado, ao ser invertido; o medo de ser tocado dissipa-se numa
tentativa pública de comprimir o espaço interindividual – no curso da
transformação de muitos em um, e de um em muitos, o espaço
transforma seu papel de separar e isolar no de fundir e misturar.
A experiência formativa que levou Canetti a essa leitura da
psicologia das massas se deu quando, em 1922, ele participou de
um grande protesto contra o assassinato de Walter Ratheneau, o
industrial e estadista judeu alemão. Na multidão, descobriu “uma
alteração total de consciência” que é ao mesmo tempo “drástica e
enigmática”. Como sugeriu Roger Kimball,4 ele descreveu seu
primeiro encontro com uma multidão como algo próximo a uma
espécie de experiência cujo relato é encontrado em certos tipos de
literatura mística:
Uma embriaguez; você estava perdido, esquecido de si mesmo, sentia-se
tremendamente distante e no entanto realizado; tudo que sentia, não sentia por si
mesmo; era a coisa mais abnegada que você já tinha conhecido; e como a abnegação
era algo mostrado, comentado e ameaçado de todos os lados, você precisava dessa
experiência de altruísmo violento como do toque da trombeta no Juízo Final… Como
era possível que tudo acontecesse ao mesmo tempo? Que era isso?
Agora podemos imaginar por que motivo a multidão, tal como o
mar, é sedutora e cativante. Porque na multidão, da mesma forma
que no mar, mas não sobre o chão duro, repleto e coberto de cercas
e totalmente mapeado, tudo ou quase tudo pode acontecer, ainda
que nada ou quase nada possa ser feito com certeza.
Mas talvez também seja decepcionante. Por quê? Quase que
pelas mesmas razões. No mar os navios podem afundar. Da fúria da
multidão, podem surgir revoluções.
Em Sob os olhos do Ocidente, romance publicado em 1911,
Joseph Conrad faz um de seus personagens centrais observar que,
numa “verdadeira revolução”,
os melhores personagens não vêm para o front. Uma revolução violenta cai nas mãos
de fanáticos de mente estreita e de tiranos hipócritas. … O escrupuloso e o justo, as
naturezas nobres, bondosas e devotadas; o altruísta e o inteligente podem começar
um movimento – mas ele lhes escapa. Não são os líderes da revolução. São suas
vítimas; as vítimas do fastio, do desencanto – muitas vezes do remorso.
Quem proferiu essas palavras considerava-se entre os
escrupulosos, justos, nobres e bondosos – e dirigia-se a outros
como ele. Não posso dizer se Hosni Mubarak ou algum de seus
assessores estudou essas palavras; mas parecem ter decidido
passar a mesma advertência aos egípcios de classe média, bem de
vida e bem-intencionados, os quais se juntaram às multidões
agitadas nas ruas – embora dessa vez para transmitir os presságios
sob a forma (muito mais persuasiva) de atos brutais, em lugar de
uma elegante locução literária. Como relatam do Cairo, no New York
Times de hoje, Anthony Shadid e David Kirkpatrick:
Num colapso da autoridade, a polícia retirou-se das grandes cidades no sábado,
dando pleno domínio às gangues que roubaram e queimaram carros, saquearam lojas
e pilharam shopping centers, onde manequins mutilados com roupas islâmicas
conservadoras espalhavam-se sobre vidro quebrado e poças d’água. Milhares de
condenados fugiram de quatro presídios, incluindo os mais famosos do país, Abu
Zaabal e Wadi Natroum. Postos de vigilância montados pelos militares e por grupos
das vizinhanças, às vezes separados por apenas um quarteirão, proliferaram pelo
Cairo e outras cidades. Muitos passaram a ideia tenebrosa de que o governo estava
por trás do colapso da autoridade como forma de justificar medidas enérgicas ou
desacreditar os apelos de mudança feitos pelos manifestantes.
O ensaio geral do governo da turba encenado em público pelas
autoridades realmente produziu, ao que parece, a impressão
desejada. Em outra reportagem, também publicada no New York
Times de hoje, Kirkpatrick e Mona El-Naggar observam uma súbita
mudança de ânimo na intelligentsia egípcia:
Na noite de sexta, a polícia retirou-se de repente das principais cidades egípcias, e as
tensões entre ricos e pobres explodiram. Saqueadores vindos das enormes favelas do
Cairo atacaram shoppings luxuosos dos subúrbios, surgiram boatos assustadores de
tiroteios nas pontes e portões dos bairros mais ricos, e alguns de seus moradores se
voltaram saudosos para Mubarak e seu governo autoritário. “Como se uma guerra
tivesse sido declarada”, disse Sarah Elayashi, 33 anos, de um apartamento no bairro
abastado de Heliópolis, não longe do palácio do sr. Mubarak. “E não temos nada para
nos defender, a não ser facas de cozinha e cabos de vassoura.” “Os manifestantes
estão contra nós”, acrescentou ela. “Esperamos que o presidente Mubarak fique,
porque pelo menos temos segurança nacional. Gostaria que pudéssemos ser uma
democracia como os Estados Unidos, mas não podemos. Precisamos de um
governante com mão de ferro.”
A intenção do desacreditado líder da nação, compartilhada
durante algum tempo por seus protetores “globais”, que preferiam
“governantes com mão de ferro” àqueles inclinados a servir aos
interesses das pessoas por eles governadas, abriria caminho para
uma escolha entre o Partido Democrático Nacional, secular e
apoiado pelos militares, e a tirania religiosa da Irmandade
Muçulmana. Não havia terceira opção, tertium non datur. Mas o
tertium a cada dia se torna mais claro, está datur, embora o non não
tenha sido eliminado desse preceito latino consagrado pelo tempo,
seja pelos “governantes com mão de ferro”, seja pelos que os
ajudaram a ganhar o poder.
a) Tipo de primata natural do leste da Índia, Ásia e África. (N.T.)
• Fevereiro de 2011 •
2 DE FEVEREIRO DE 2011
Sobre a maturidade da glocalização
Fica-se tentado a dizer que as invenções ou reinvenções sociais –
tais como a possibilidade recém-inventada ou descoberta de
devolver à praça da cidade o antigo papel da ágora, em que regras
e governantes eram feitos e desfeitos – tendem a se espalhar “como
um incêndio na floresta”. Seria possível dizer isso, não fosse pelo
fato de a globalização ter afinal invalidado essa metáfora
consagrada pelo tempo. O fogo na floresta acontece por
disseminação. Hoje as invenções sociais progridem por saltos.
As distâncias geográficas já não contam. Não são mais
obstáculos, e suas extensões não determinam mais a distribuição
das probabilidades. Nem tampouco a vizinhança e a proximidade
física – é por isso que a metáfora do “efeito dominó”, que implica
proximidade física, na verdade a contiguidade de causa e efeito,
perdeu muito, talvez a maior parte de sua precisão. Os estímulos
viajam de maneira independente de suas causas; as causas podem
ser locais, mas o alcance de suas inspirações é global; as causas
podem ser globais, mas seus impactos são moldados e
direcionados em âmbito local. Intrincados na rede mundial, padrões
imitados voam de modo quase aleatório no espaço extraterritorial –
sem itinerários agendados e encontrando poucas barreiras ou
postos de vigilância –, mas aterrissam sempre em pistas de pouso
construídas localmente. Não se pode saber com antecedência em
que pista vão pousar, por qual das inúmeras torres de controle serão
identificados, interceptados e guiados a um campo de pouso local,
assim como quantos desastres vão sofrer ao pousar e onde eles
ocorrerão. O que torna perdido o tempo gasto com previsões e
inconfiáveis prognósticos é o fato de que as pistas de pouso e as
torres de controle compartilham os hábitos das coisas que flutuam –
são construídas ad hoc, para ganhar um só troféu selecionado,
caçar uma única presa, e tendem a se desmantelar no momento em
que a missão se completa.
Quem é aquele al-Shahid (“mártir” em árabe) que convocou
sozinho as multidões a transformar a praça Tahrir, por alguns dias,
numa ágora (temporária, ad hoc)? Ninguém tinha ouvido falar dele
ou dela antes disso (leia-se: ele ou ela não estava lá antes),
ninguém reconheceu o homem ou a mulher por trás desse apelido
(leia-se: ele ou ela não estava lá) quando as multidões atenderam
ao chamado… A questão, porém, é que isso pouco importa.
As distinções entre distante e próximo, ou aqui e lá, tornam-se
quase nulas e inúteis quando transferidas para o ciberespaço e
sujeitas à lógica on-line ou on-air; se não na imaginação,
reconhecidamente inerte, morosa e preguiçosa, pelo menos em sua
potência pragmática. Essa é a condição a que a glocalização – o
processo de despir a localidade de sua importância ao mesmo
tempo que se aumenta sua significação – visava desde o início. É
hora de admitir que ela chegou lá; ou melhor, que ela nos levou
(empurrou ou puxou) até lá.
Despir o lugar de sua importância significa que sua condição e
potência, sua plenitude e seu vazio, os dramas nele
desempenhados e os espectadores por eles atraídos não podem
mais ser considerados assuntos privadamente seus. Os lugares
podem propor (e de fato o fazem), mas quem agora dispõe são as
forças desconhecidas, descontroladas, irrefreáveis e imprevisíveis
que vagam no “espaço dos fluxos”. As iniciativas continuam locais,
mas suas consequências agora são globais, mantendo-se com
teimosia para além do alcance do poder de seu local de nascimento
para prever, planejar ou guiar; ou, nesse sentido, do poder de
qualquer outro lugar. Uma vez lançadas, elas – como os conhecidos
“mísseis inteligentes” – estão total e verdadeiramente por conta
própria. Também são “reféns do destino”, embora o destino de que
sejam reféns hoje seja composto e sempre recomposto a partir da
permanente rivalidade entre pistas de pouso localmente traçadas e
imitações feitas sob encomenda e logo pavimentadas. O mapa e os
rankings atuais dos aeroportos existentes não têm importância aqui.
E a composição de uma autoridade global do tráfego aéreo seria
também desimportante caso existisse uma instituição como essa – o
que não é o caso, como os pretendentes a esse papel hoje
aprendem da maneira mais difícil.
“Toda vez que o governo divulgava alguma coisa, suas palavras
eram de imediato superadas pelos eventos in loco”, disse Robert
Malley, diretor de programas do International Crisis Group para o
Oriente Médio e o Norte da África. “E em questão de dias todas as
conjecturas sobre a relação dos Estados Unidos com o Egito
estavam invalidadas” – segundo a edição de hoje do New York
Times. De acordo com as últimas informações sobre esse país
transmitidas por Mark Mardell, editor da BBC para a América do
Norte,
a Secretária de Estado americana Hillary Clinton telefonou para o novo vicepresidente e por duas décadas chefe do serviço de inteligência, Omar Suleiman,
dizendo-lhe para aproveitar a oportunidade de transição para uma sociedade mais
democrática. Essa transição deve começar agora. Ela disse que a violência era
chocante e que eles deviam investigá-la e responsabilizar os culpados.
Poucas horas depois, líderes dos países considerados mais
importantes da Europa – Merkel, Sarkozy, Cameron, Zapatero e
Berlusconi –, numa declaração atipicamente unânime, repetiram o
apelo/exigência de Hillary Clinton. Todos disseram o que disseram
mais ou menos ao mesmo tempo que as câmeras da Al-Jazeera
captavam um manifestante carregando um cartaz que dizia “Cale a
boca, Obama!”. A significação do lugar, ascendendo de modo
independente em relação à sua importância, está em sua
capacidade de acomodar a apresentação desses cartazes e as
pessoas que os apresentam. Mãos curtas demais para se meter em
coisas do espaço global são longas o bastante (ou pelo menos o
parecem) para abraçar com força a localidade, ao mesmo tempo
que afastam (espera-se) os intrusos e falsos pretendentes.
Um dia após o anúncio de Hillary Clinton, o New York Times nos
informa sobre uma ampla reformulação da política externa
americana: “O governo Obama parecia determinado, na última
quarta-feira, a estabelecer a máxima distância possível entre o sr.
Obama e o sr. Mubarak, antes considerado inabalável defensor dos
americanos numa região tumultuada.” Bem, é difícil que essa
potência global tivesse feito tal reviravolta acrobática se a localidade
distante não decidisse lançar mão de sua relevância recémdescoberta. Como sugere Shawki al-Qadi, parlamentar iemenita de
oposição, não são as pessoas que estão com medo de seus
governos, os quais se submeteram às “forças globais” em troca de
se omitir das obrigações perante seus próprios povos. Como diz ele:
“É o oposto. Agora, o governo e suas forças de segurança estão
com medo do povo. A nova geração, a geração da internet, é
destemida. Eles querem seus plenos direitos e querem uma vida –
uma vida dignificada.” O conhecimento de que os governos, da
forma como encolheram graças à ação das “forças globais”, não
constituem uma proteção contra a instabilidade, e sim sua principal
causa, tem sido imposto às mentes dos autoproclamados “líderes
mundiais” pela exibição espetacular, em ação, da lógica ilógica que
caracteriza a glocalização.
“Glocalização” é o nome dado a uma dupla conjugal que foi
obrigada, apesar de todo som e fúria muito bem conhecidos da
maioria dos casais ligados pelo matrimônio, a negociar um modus
co-vivendi sustentável, já que a separação não é opção realista nem
desejável, muito menos o divórcio. Glocalização é o nome de uma
relação de amor e ódio, misturando atração e repulsa: o amor que
anseia por proximidade misturado ao ódio que aspira a distância. Tal
relação talvez tivesse desmoronado sob o peso de sua própria
incongruência, não fosse uma dupla de inevitabilidades que teve o
efeito de uma pinça: isolado das rotas de suprimentos de âmbito
global, o lugar não teria a energia da qual hoje se constroem as
identidades autônomas e os dispositivos que as mantêm vivas; e,
sem pistas de pouso localmente improvisadas e servidas, as forças
globais não teriam onde aterrissar, fazer a troca de pessoal,
reabastecer-se de estoque e combustível. Trata-se de
inevitabilidades destinadas a conviver. Para o bem ou para o mal.
Até que a morte as separe.
4 DE FEVEREIRO DE 2011
Sobre o que fazer com os jovens
“Vistos cada vez mais como outro encargo social, os jovens não
estão mais incluídos no discurso sobre a promessa de um futuro
melhor. Em lugar disso, agora são considerados parte de uma
população dispensável, cuja presença ameaça evocar memórias
coletivas reprimidas da responsabilidade dos adultos.” Assim
escreve Henry A. Giroux num ensaio de 3 de fevereiro de 2011 sob
o título “A juventude na era da dispensabilidade”.1
De fato, os jovens não são plena e inequivocamente
dispensáveis. O que os salva da dispensabilidade total – embora por
pouco – e garante certo grau de atenção dos adultos é sua atual e,
mais ainda, potencial contribuição à demanda de consumo: a
existência de sucessivos escalões de jovens significa o eterno
suprimento de “terras virgens”, inexploradas e prontas para cultivo,
sem o qual a simples reprodução da economia capitalista, para não
mencionar o crescimento econômico, seria quase inconcebível.
Pensa-se sobre a juventude e logo presta-se atenção a ela como
“um novo mercado” a ser “comodificado” e explorado. “Por meio da
força educacional de uma cultura que comercializa todos os
aspectos da vida das crianças, usando a internet e várias redes
sociais, e novas tecnologias de mídia, como telefones celulares”, as
instituições empresariais buscam “imergir os jovens num mundo de
consumo em massa, de maneiras mais amplas e diretas que
qualquer coisa que possamos ter visto no passado”. Um estudo
recente, orientado pela Kaiser Family Foundation, descobriu que
jovens dos oito aos dezoito anos gastam agora mais de sete horas e meia por dia com
smartphones, computadores, televisores e outros instrumentos eletrônicos, em
comparação com as menos de seis horas e meia de cinco anos atrás. Quando se
acrescenta o tempo adicional que os jovens passam postando textos, falando em
seus celulares ou realizando múltiplas tarefas, tais como ver TV enquanto atualizam o
Facebook, o número sobe para um total de onze horas de conteúdo de mídia por dia.
Pode-se prosseguir acrescentando sempre novas evidências a
essas reunidas por Giroux: um volume crescente de evidências de
que “o problema dos jovens” está sendo considerado clara e
explicitamente uma questão de “adestrá-los para o consumo”, e de
que todos os outros assuntos relacionados à juventude são
deixados numa prateleira lateral – ou eliminados da agenda política,
social e cultural.
De um lado, como já observei alguns dias atrás, as sérias
limitações impostas pelo governo ao financiamento de instituições
de ensino superior, acopladas a um aumento também selvagem das
anuidades cobradas pelas universidades (de fato, o Estado decidiu
lavar as mãos da obrigação de “educar o povo”, de forma gritante no
caso das áreas “de ponta” ou de excelência, mas também, de modo
um pouco menos direto – como mostra a ideia de substituir as
escolas secundárias administradas pelo Estado por “academias”
dirigidas pelo mercado de consumo –, nos níveis destinados a
determinar o volume total de conhecimento e habilidades que a
nação tem à sua disposição, assim como sua distribuição entre as
categorias populacionais), são testemunhas da perda de interesse
na juventude como futura elite política e cultural da nação. Por outro
lado, o Facebook, por exemplo, assim como outros “sites sociais”,
está abrindo novíssimas paisagens para agências que tendem a se
concentrar nos jovens e a tratá-los basicamente como “terras
virgens” à espera de conquista e exploração pelo avanço das tropas
consumistas.
Graças à despreocupada e entusiástica autoexposição dos
viciados em Facebook a milhares de amigos e milhões de flâneurs
on-line, os gerentes de marketing podem atrelar ao carro de
Jagrená”a consumista vontades e desejos mais íntimos e
aparentemente mais “pessoais” e “singulares”, articulados ou
semiconscientes – já efervescentes ou apenas potenciais; o que irá
pipocar nas telas alimentadas pelo Facebook será agora uma oferta
pessoal, preparada, enfeitada e afiada com cuidado, “especialmente
para você” – oferta que você não pode recusar por ser incapaz de
resistir à tentação; afinal, é aquilo de que você sempre precisou: ela
“ajusta-se à sua personalidade única” e “faz uma declaração” nesse
sentido, a declaração que você sempre quis fazer, mostrando ser a
personalidade única que você é. Trata-se de uma verdadeira ruptura
nos destinos do marketing.
Sabe-se muito bem que a parte do leão do dinheiro gasto com
marketing é consumida pelo esforço superdispendioso de
determinar, instilar e cultivar nos potenciais compradores desejos
adequados para se transformar na decisão de obter determinado
produto oferecido. Certo Sal Abdin, consultor de marketing que atua
na rede, apreende a essência da tarefa a ser confrontada quando dá
o seguinte conselho aos adeptos da arte do marketing:
Se você vende perfuratrizes, escreva um artigo sobre como fazer melhores buracos, e
obterá muito mais ordens de venda que apenas divulgando informações sobre seus
aparelhos e suas especificações. Por que isso funciona? Porque ninguém que tenha
comprado uma perfuratriz queria uma perfuratriz. Queria um buraco. Ofereça
informações sobre como fazer buracos e terá muito mais sucesso. Se estiver
vendendo um curso sobre como perder peso, venda os benefícios de ser magro, mais
saudável, sentir-se melhor, a alegria de comprar roupas, a reação do sexo oposto. …
Você sabe o que estou dizendo? Venda os benefícios do produto, e este se venderá
por si mesmo quando os compradores chegarem à página de vendas. Mencione suas
características, mas enfatize o que ele pode fazer pelo comprador para tornar sua
vida melhor, mais fácil, rápida, feliz, exitosa. … Pegou a ideia?
Não é a promessa de uma vida fácil, com certeza. Nem de um
caminho curto, suave e rápido em direção ao alvo, que é o encontro
entre um cliente desejoso de comprar e um produto querendo ser
comprado. Desenvolver um desejo por buracos bem-feitos e vinculálo à perfuratriz que promete fazê-los talvez não seja uma tarefa
impossível, mas vai levar tempo e grande dose de habilidade para
estabelecê-lo na imaginação do leitor e erguê-lo ao topo de seus
sonhos. O encontro desejado sem dúvida vai acontecer, mas o
caminho que leva a esse glorioso momento de realização é longo,
árduo e espinhoso; sobretudo não há garantia de atingir o destino
até que se chegue lá. Além disso, a estrada precisa ser bempavimentada e larga o bastante para acomodar um número
desconhecido de caminhantes, embora o número dos que resolvem
trilhá-la talvez não justifique o enorme custo de torná-la tão ampla,
agradável de andar, tentadora e convidativa.
É por isso que chamei a oportunidade do Facebook de “uma
verdadeira ruptura”. É uma chance de fazer nada menos que cortar
do orçamento de marketing os custos da construção da estrada – ou
quase. Tal como no caso de tantas outras responsabilidades, ela
passa a tarefa de desenvolver os desejos dos clientes potenciais,
dos gerentes (de marketing) para os próprios clientes. Graças ao
banco de dados que os usuários do Facebook constituem de forma
voluntária (de graça!) e ampliam a cada dia, as ofertas do marketing
podem agora identificar consumidores já “preparados”, sazonados e
maduros, e os tipos certos de desejo (que, portanto, não precisam
mais de palestras sobre a beleza dos buracos); podem alcançá-los
sob um disfarce duplamente atraente – lisonjeiro além de bem-vindo
– oferecendo uma bênção que é “só sua, feita para você, para
atender suas necessidades próprias e pessoais”.
Só uma pergunta vazia para tempos vazios: talvez a última
barreira entre a juventude e sua destituição seja a capacidade
recém-descoberta e possibilitada de servir como local de
armazenamento dos excessos da indústria de consumo em nossa
era de removibilidade?
8 DE FEVEREIRO DE 2011
Sobre as virtudes que não são para todos
O colapso do crédito – gigantes bancários à beira da falência e
empurrando seus clientes para o abismo – deve ter chocado tanto
poupadores quanto mutuários descuidados. Mas, como mostram os
últimos números, não por muito tempo.
As lições, mesmo quando chocantes, parecem ser esquecidas
muito antes de conseguir se estabelecer na memória, que dirá
sedimentar-se em hábitos e predisposições. Enquanto no terceiro
trimestre de 2009 os americanos guardaram 7% de seus
rendimentos em cadernetas de poupança (um aumento enorme, de
400%, em comparação com a prática pré-choque), no final de 2010
suas poupanças haviam caído de novo para apenas 5,3%. No
mesmo período, os empréstimos voltaram a subir, da mesma forma
que as compras e os gastos. As esperanças de uma revolução
cultural, ou pelo menos de uma minirrevolução, nos padrões de vida
da sociedade de consumidores parecem ter sido em vão –
frustradas tão logo surgiram. O caminho para a ressurreição de pelo
menos alguns dos valores puritanos que, como Max Weber vivia
repetindo, introduziram o mundo na moderna aventura capitalista,
da miséria à riqueza e do bom ao melhor, revelou-se obstruído e
bloqueado com muito mais solidez do que vários observadores
consideravam provável. De alto a baixo, os americanos estão
retornando em massa à sua segunda natureza – inventada e
adquirida – de gastadores, fechando rapidamente a porta a seu
passado de poupadores. Ou pelo menos é o que sugerem as
estatísticas das instituições de poupança e dos cartões de crédito.
Como explicar isso? Invocando a falência das virtudes e a
teimosia de vícios pessoais adquiridos e instilados entre os
poupadores transformados em devedores que se aferram à sua
escolha independentemente do tempo ruim? Ou culpando as
dificuldades de aprendizado das pessoas? Ou depositando a culpa
na porta das agências de marketing, falsas e inescrupulosas, mas
insidiosa, esperta e habilmente sedutoras? Parece haver alguma
verdade em todas essas explicações. Alguma verdade, mas não
toda. Fundir as estatísticas sobre a queda na poupança e o
crescimento do crédito ao consumidor esconde duas realidades
sociais diferentes. As pessoas que pararam de poupar não são as
mesmas que voltaram a recorrer aos cartões de crédito: as
primeiras não podem nem poupar nem viver de crédito, e pela
mesma razão.
Não há dúvida de que há muitas pessoas entre os litorais
americanos do Atlântico e do Pacífico sentindo-se plantadas e
seguras para permitir a si mesmas e a seus parentes próximos ser
recompensados com um pouco mais de mimo e autocomplacência.
Mas também não há dúvida de que existem muitos outros que não
têm solvabilidade nem capacidade de poupar. Segundo a pesquisa
mais recente realizada pela American Payroll Association, cerca de
67% dos americanos depende do próximo contracheque para pagar
as despesas com seu sustento; e a maioria dos empregados dos
Estados Unidos teria dificuldade de cumprir suas obrigações
financeiras caso seu próximo pagamento chegasse com apenas
uma semana de atraso. Aqui não há lugar para poupança.
Um advogado trabalhista de Chicago, Thomas Geoghegan,
sugere no New York Times de hoje que, para os 43 milhões de
americanos vivendo na pobreza (proporcionalmente equivalentes ao
número de pobres do Egito), poupar é algo sempre improvável, não
importa o quanto tentem; e ele acrescenta algumas observações
próprias, extraídas de sua ampla e prolongada prática entre os
trabalhadores de Illinois – ativos, aposentados e desempregados –
para explicar por que é assim. Trinta anos atrás, dois terços dos
trabalhadores tinham planos de pensão com benefícios garantidos
por toda vida; agora a proporção é de um em cada cinco, e ela cai
depressa.
Bem, nas décadas de 1960 e 1970, os sindicatos “tiveram seus
dias de glória antes de ser esmagados”; atuavam como
“planejadores das finanças da nação”. Mas o mundo daqueles “dias
de glória”, diz Geoghegan, “virou de cabeça para baixo”. E ele
observa com sarcasmo que, depois de “o sistema bancário ao estilo
americano ter destruído a social-democracia” em certos países,
“nossos especialistas” continuariam insistindo em que “todos
podemos poupar, inclusive os pobres”. Eles poderiam assinalar que,
no clássico de C.L.R. James, The Black Jacobins, até alguns
escravos da República Dominicana conseguiram poupar o suficiente
para comprar sua liberdade – e depois diriam: “Vejam, vocês podem
fazer isso.” Basta guardar seu dinheiro. É a única esperança… Ao
que Geoghegan responde:
Para a maioria das pessoas das camadas médias ou abaixo, poupar é uma questão
de sorte. Sim, posso pegar livros de autoajuda e imaginar um orçamento. Mas isso
exige que eu leve uma vida boa e não tenha filhos. Já representei um monte de
trabalhadores que – sem benefícios definidos nem sindicato para ajudá-los –
realmente guardaram dinheiro. E isso pode funcionar – se nada der errado. Mas algo
sempre dá errado: a mulher tem um ataque, o hóspede que você acolheu para ajudar
de repente fica desempregado ou… você perde o emprego. Daí é com o cartão Visa,
e 20% de seus rendimentos são para pagar os juros do banco, tudo por causa de um
acidente sobre o qual você não tinha controle. Puf: lá se vai a casa, se é que ela já
não estava debaixo d’água. Ou lá se vão trinta anos de economias numa conta de
aposentadoria individual, pelas quais seu banco, dada a bondade do próprio coração,
vinha pagando juros abaixo de 1%.
Não é difícil chegar à conclusão: “Os livros de autoajuda vivem
num mundo de sonhos. … Mas, na verdade, é um mundo de
pesadelos. … É um país no qual, com uma renda média ou mais
baixa, até Silas Marnerb acharia difícil economizar.”
9 DE FEVEREIRO DE 2011
Sobre as bênçãos e maldições de não
tomar partido
A internet não toma partido. A internet é neutra. É uma ferramenta –
e as ferramentas podem ser usadas por todos e para uma ampla
variedade de propósitos. A internet pode ser usada para convocar
os amantes da democracia até a praça da Libertação, assim como
para chamar os amantes da tirania.
Isso é bom – algo de que nos orgulhar. Se a internet não
existisse, precisaria ser inventada, e qualquer protagonista da
democracia liberal concordaria com isso de pronto. A neutralidade
da internet é outro pilar de sustentação da igualdade de
oportunidades, cara a todo e qualquer coração que bata pela causa
da liberdade. Tiranos ou aspirantes a tiranos de todos os credos
sabem muito bem disso; não admira que tendam a enxergá-la com
profunda antipatia e suspeita, como um veneno espargido subrepticiamente num poço, ou como uma bomba de efeito retardado.
Também não admira que desejem com ardor seu desaparecimento
– enquanto fazem o possível para tentar garantir que isso aconteça.
A internet é o presságio da visibilidade para os invisíveis, da
audibilidade para os mudos, da ação para os incapazes de agir.
Resumindo uma longa história: fora alguns abusos que precisam
e devem ser cortados pela raiz, a internet é igual à liberdade. Talvez
até a liberdade dos que não são livres. Ao menos em potencial pode
se tornar mais que isso: o poder dos impotentes. Mais exatamente:
enquanto impõe restrições à autoridade dos detentores do poder, a
internet acrescenta energia às exigências e às ações dos que estão
na outra extremidade, a receptora.
Claro que tudo isso é verdadeiro, já que as provas de sua
veracidade são abundantes, enquanto as evidências em contrário
são poucas e esparsas. Ou melhor, acreditava-se que essa verdade
fosse evidente e comprovada, um caso aberto e encerrado – até há
pouco tempo.
Quase ignorado pela imprensa, assim como pela opinião pública
que a imprensa supostamente mantém alerta e atualizada, a
Stuxnet chegou para sacudir e talvez destruir essa crença.
“Stuxnet”, como li no artigo do bem-informado Richard A.
Falkenrath, na edição de 26 de janeiro do New York Times, é o
codinome do “verme de computador que no ano passado derrubou
muitas centrífugas a gás básicas para o programa nuclear iraniano”.
Bem, a Stuxnet é gritante e assumidamente uma arma, e uma arma
dotada de enorme poder de destruição. Uma arma altamente eficaz,
embora inconspícua e furtiva: com apenas meio megabite de
potência, mas capaz de atingir em apenas alguns segundos o que
anos de esforços diplomáticos internacionais, de forma abominável,
não conseguiram. Não pretende ser uma réplica eletrônica reforçada
das caixas de sabão sobre as quais discursam os oradores no Hyde
Park Corner. E assim fica imediatamente claro de que maneira sua
aparição vem solapar a crença na internet como promotora
apartidária da liberdade e autonomia, e a convicção de que não
tomar partido e estar disponível a todos, em toda parte, é a maior
razão disso.
O caso não seria fonte de preocupação não fosse pelo fato de
que “a Stuxnet atacou o programa nuclear iraniano, mas o fez
manipulando com malícia produtos de software vendidos no mundo
todo por grandes empresas do Ocidente. Quem lançou o ataque
também infectou milhares de computadores em vários países,
incluindo Austrália, Grã-Bretanha, Indonésia e Estados Unidos.”
Falando da maneira mais simples: a Stuxnet é uma arma cuja
eficácia (leia-se: poder de destruição) depende da ampla, e em
princípio indispensável e inevitável, escala e do alcance das baixas
colaterais de seu uso. As baixas colaterais, como todos sabemos,
não podem, por sua própria natureza, basear-se em fronteiras ou
em insignificâncias como provas de inocência e declarações de
neutralidade. Elas eliminam a distinção entre combatentes e não
combatentes, entre tomar ou não tomar partido.
Por ter as baixas colaterais como suas companheiras
inseparáveis, a entrada da Stuxnet na internet (e não há dúvida de
que ela é apenas uma unidade de vanguarda, um pelotão de
reconhecimento, uma sonda de testes destinada a abrir caminho
para a chegada do corpo principal do Exército) anula também outra
distinção: entre armas defensivas e ofensivas. Pode-se debater
interminavelmente se o ataque às estações nucleares iranianas foi
um ato defensivo ou ofensivo, mas é difícil alguém duvidar que
constitui um despropósito discutir, que dirá provar, a intenção ou o
significado defensivo dos danos produzidos na Austrália ou na GrãBretanha.
Além disso, como Falnkenrath deixa claro, “a perícia necessária
para se defender de um ciberataque é em essência indistinguível
daquela necessária para fazer um ataque como esse”. Sendo o
know-how exigido e suas armas técnicas idênticos em ambos os
casos (casos, aliás, que se oporiam em outros aspectos), não há
diferença entre agressão e autodefesa na internet; na verdade, a
neutralidade declarada e praticada pela internet não está distante
daquela dos traficantes de armas ilegais, que também tendem a
fornecer instrumentos letais aos dois lados de uma guerra tribal sem
se preocupar com as relativas vantagens e desvantagens éticas ou
ideológicas. A mesma companhia, a Siemens, forneceu os mesmos
programas de controle de dados utilizados em instalações nucleares
(inclusive as do Irã) e pelos criadores da Stuxnet – ostensivamente,
para permitir que estes defendessem os Estados Unidos de
ciberataques!
Afinal, a postura e a prática, assim como o efeito de “o meio é a
mensagem” da variedade “não tomar partido” que caracteriza a
internet, tiveram como resultado lançar dúvidas sobre a própria
noção de “tomar partido” – assim como a de legítima defesa, ou
mesmo, num futuro não muito distante, sobre a distinção entre
“guerras justas” e “injustas”. É por isso, creio eu, que Falkenrath
admite que a guerra travada na internet “é bem menos controlável
que as tradicionais operações militares e de informação”; faz-se
necessária uma nova e ampla legislação, interna e possivelmente
também “internacional” (o que quer que essa ideia ilusória e
indefinível possa significar), para aliviar a “ambiguidade jurídica”
atual. Mas mesmo isso “não responderia todas as perguntas”.
Tendo admitido tudo isso, Falkenrath – fiel à sua postura de
conselheiro adjunto de segurança interna do presidente George W.
Bush – termina não com um apelo à razão e à boa vontade, mas às
armas: “Uma coisa é certa: a corrida armamentista pode ser ruim,
mas perdê-la seria pior.”
12 DE FEVEREIRO DE 2011
Sobre um tsunami humano – e depois
Para a antiga sabedoria chinesa, o desejo de “viver numa época
interessante” é visto como maldição. A sabedoria contemporânea
oscila entre as duas alternativas. Muitos considerariam esse desejo
uma bênção.
Um tsunami humano de proporções desconhecidas – de que não
nos lembramos ou já esquecemos – varreu, numa única quinzena,
um ditador empoleirado por trinta anos no topo de uma enorme rede
de patrocinadores e clientes, burocratas corruptos e juízes
corruptíveis, alcaguetes, informantes e torturadores. Segundo as
notícias, e durante dias, todas as pessoas que estavam na praça
Tahrir, no Cairo, pareciam regozijar-se: gente que sonhava com as
liberdades da classe média (ou seja, às quais enfim se permitia que
juntassem o poder político que ainda não tinham à força econômica
de que já eram possuidoras), com uma república islâmica (ou seja,
os mulás e imãs a quem se permitiu anunciar “L’État, c’est nous!”,
“Nós somos o Estado”) ou com uma sociedade justa e solidária (ou
seja, os milhões de desempregados que esperavam ser capazes de
ganhar seu sustento, as dezenas de milhões de empobrecidos que
sonhavam ser capazes de viver de suas rendas). Os que não viam
vantagens para si próprios permaneceram mudos. Ou suas vozes
foram abafadas em meio ao tumulto provocado pelo coro dos
vitoriosos e pelo estrépito dos fogos de artifício.
Ocasionalmente, porém, podem-se ouvir vozes de ceticismo,
embora até agora esparsas e cantadas em solo, a sotto voce e
pianissimo. Os que vocalizam esse ceticismo olham à sua volta e
veem que a pirâmide de poderes em cujo topo se empoleirou o atual
ditador (assim como seus predecessores) emergiu do tumulto
incólume e intata; e eles têm dúvidas sobre o que mais pode
suportar essa rede de poder firmemente estabelecida, que até agora
não dá sinais de desmonte ou rompimento.
Ayaan Hirsi Ali, por exemplo, criadora da Fundação AHA,
dedicada à defesa das mulheres muçulmanas, assinala em seu
artigo de hoje no Le Monde (“Não, o mundo árabe não é a Europa
do Leste em 1989!”) que o islã, religião mais que qualquer outra
habilidosa, experimentada e eficiente na arte da mobilização de
massa, dificilmente poderia tolerar, muito menos sustentar, uma
existência sem líder e um regime não autoritário. Mubarak e Gaddafi
não caíram da Lua; são produtos legítimos da civilização islâmica,
marcada como sempre foi pela ausência de liberdade individual.
Nessa civilização, que “proíbe que se responda ao pai, à mãe ou a
um imã, a submissão à ditadura do Estado torna-se quase uma
segunda natureza”. E ela lembra aos leitores que até agora “homens
que chegaram como libertadores” acabaram “transformando-se em
ditadores”, encorajados pelo silêncio ensurdecedor das massas
sonolentas, “até o momento em que alguém chegue para mobilizar
as massas a fim de libertar a nação de seu antigo libertador”. De
modo invariável e inexorável, “o novo governante acaba restaurando
a velha infraestrutura de denúncias e torturas”. Ali teme uma onda
de caos e instabilidade (no estilo do Paquistão), seguida de uma
nova era ditatorial. Nada menos que uma verdadeira revolução
cultural, acredita ela, seria capaz de romper esse círculo vicioso.
Outros creem que os perigos mais assustadores não se aninham
na cultura, mas na política, e não na política dos atuais ou
potenciais ditadores árabes, mas na política do Ocidente, egoísta e
interesseira. Assim Tariq Ramadan, de Oxford, sugere que, “por trás
de toda essa conversa celebrando a democracia, a liberdade e os
direitos humanos, escondem-se avaliações frias e sobretudo
cínicas. … Como controlar esse movimento, como lucrar com ele?”
Ele lembra a seus leitores que Obama, Merkel, Cameron e outros
como eles, hoje pontificando para os egípcios a superioridade ética
da democracia e derramando lirismo sobre as bênçãos da vida
democrática, “nunca hesitaram em manter relações amigáveis com
os piores ditadores, inclusive Mubarak”. Ramadan pergunta: “Quem
é tão ingênuo a ponto de acreditar na súbita conversão dessas
pessoas?” (Embora, nesse aspecto, talvez ele esteja errado: há
muitas pessoas, não necessariamente ingênuas, mas ávidas por
acreditar, se o preço for justo.)
É difícil que a história dos Estados Unidos e da Europa no que
tange à “promoção da democracia” longe de casa seja pior.
Ramadan sem dúvida não está errado quando acusa os do “norte”,
como nós, de hipocrisia. A maioria de nós reconheceria como
puramente retórica a pergunta que ele faz: “Os Estados Unidos não
têm uma longa história de colaborar e conspirar com as forças
islâmicas mais tradicionalistas, retrógradas e extremistas, do
Afeganistão à Arábia Saudita?” Bem, ele poderia e deveria
acrescentar que essa longa e triste história de descrédito da
democracia não se limitou ao círculo encantado do islã. As
potências do “norte” têm uma longa ficha de desserviços à causa da
democracia e da liberdade – uma ficha que nem sequer se
aproximou do fim com o término da era colonial. Mossadeq era de
fato muçulmano, mas Salvador Allende não era, o que não livrou
nenhum dos dois (assim como uma longa lista de outros como eles)
de cair vítimas da preferência incondicional e talvez incorrigível da
CIA por tiranos amigáveis aos Estados Unidos em relação a
independentes incorruptíveis democraticamente eleitos.
Esses casos também deveriam ser sujeitos à injunção de
Ramadan: “Não deveria ser um problema para os ‘democratas do
norte’ aceitar ou não a ditadura, a repressão e a tortura em nome da
segurança e de interesses econômicos ou geoestratégicos.” A
observação de Ramadan – é preciso não apenas pedir a cabeça de
Mubarak, mas também desmantelar um “sistema corrupto baseado
no clientelismo, na tortura e no roubo sistemático” – também deve
ser ampliada: a destruição da hierarquia de valores praticada, se
não pregada, pelo “norte” deve compartilhar a sorte dos “sistemas
corruptos” operados por Mubarak e os de sua laia. Com amigos
como a CIA, a democracia dificilmente precisaria de inimigos.
De fato, Georges Corm, ex-ministro das finanças do Líbano,
acrescenta aos argumentos de Ramadan, na mesma edição do Le
Monde, meia dúzia de argumentos próprios. Por exemplo: “A
invasão pelo Exército americano em 2003, sob o pretexto de depor
o tirano e estabelecer a democracia, levou, pelo contrário, a que o
Iraque caísse num tribalismo e num comunitarismo afrontosos,
assim como num empobrecimento da população ainda mais
profundo que o perpetrado pelas sanções da ONU”; ou, aprovada e
apoiada pelo Ocidente, a “revolução dos cedros”, no Líbano, só
conseguiu “agravar o comunitarismo interno e a inimizade sectária”.
O plano de “reinfantilizar” o Oriente Médio, posto em operação sob a
égide de George W. Bush e Condoleezza Rice, assim como suas
tentativas de impor a democracia a partir de fora, não poderia ter
outro efeito senão aprofundar as tensões e a instabilidade geral da
região.
Mas Corm acrescenta ao debate um tema muitíssimo importante,
que não aparece nas análises dos outros dois:
Apoiar apenas as reivindicações políticas da classe média, esquecendo a justiça
social e a igualdade das classes mais destituídas e empobrecidas, só pode resultar
numa grande desilusão. O que levou essas classes ao desespero e à revolta foi a
“cleptocracia”, que liga interesses oligárquicos locais a grandes companhias
europeias, assim como aos interesses financeiros árabes, com origem nos países
exportadores de petróleo. É essa injustiça que alimenta as correntes islamitas
envolvidas nos protestos sociais.
Que faltaria dizer? Só que já fomos avisados. Mas o fomos
muitas vezes no passado. Todas elas, ou quase, sem benefício
algum. Infelizmente, a história pode mais uma vez (?) se repetir. O
motivo, podemos inferi-lo do comentário de Bob Herbert hoje, no
New York Times:
Quando as multidões comemoravam no Cairo, não pude deixar de imaginar o que
está acontecendo à democracia aqui nos Estados Unidos. Creio que ela está atirada
às cordas. Corremos o sério risco de nos tornarmos uma democracia apenas no
nome. Enquanto milhões de americanos comuns lutam contra o desemprego e o
declínio de seus padrões de vida, as alavancas do verdadeiro poder têm sido quase
totalmente controladas pela elite financeira e empresarial. Na verdade, não importa o
que querem as pessoas comuns. Os ricos dão o tom e os políticos dançam.
Os pobres, que estão sofrendo de uma intensa depressão, nunca
são ouvidos. Em termos de sua influência, poderiam muito bem não
existir. As forças ligadas a Obama desejam, ao que se registra,
levantar US$ 1 bilhão ou mais para sua campanha de reeleição.
Políticos em busca desse tipo de quantia não costumam falar muito
sobre os desejos e as necessidades dos pobres. Estão se
ajoelhando diante dos muito ricos.
13 DE FEVEREIRO DE 2011
Sobre o piso por baixo do piso
A dívida federal americana está crescendo atualmente numa taxa de
US$ 4 bilhões por ano. No momento em que escrevo estas
palavras, 40% de cada dólar gasto nas lojas por um cliente
americano são emprestados; em outras palavras, não são ganhos
com trabalho. Trata-se de uma dívida que, a menos que haja uma
guerra ou um meteoro gigante tire nosso planeta de sua órbita,
acabará tendo de ser paga. Por alguém. Por quem? – poderíamos
perguntar. “Não por nós”, diriam os membros do Congresso
americano consolando a si mesmos enquanto empurram pelo
Capitólio um déficit orçamentário que chega a US$ 1,4 trilhão – quer
dizer, caso se dignassem a responder. Mas não parece que eles
possam mudar de atitude, ou que venham a ser suficientemente
pressionados nesse sentido – e assim, prevê-se que em abril ou
maio o total da dívida americana venha a ultrapassar o limite legal
estabelecido pelo Congresso, que é de US$ 14,3 bilhões. Essa
última questão, ao contrário das anteriores, obrigou os membros do
Congresso a uma atividade febril: eles têm somente de dois a três
meses para obter o endosso do Senado e da Câmara para
aumentar esse limite e empurrar os Estados Unidos para outro piso,
abaixo daquele que o país já estabeleceu para sua derrocada
financeira.
Os Estados Unidos são um país famoso por quebrar recordes em
todos campos, e o da estupidez financeira não é exceção. Os
legisladores americanos tornaram-se mestres consumados na arte
de romper o limite inferior na esperança (ou melhor, na certeza) de
que outro piso, mais abaixo, possa ser posto em operação, até
chegar a sua vez de se romper: só no último Natal, eles
presentearam os clientes e vendedores americanos com US$ 858
bilhões em cortes de impostos para os ricos. Outro recorde foi então
quebrado: o governo George W. Bush conseguiu reunir apenas
cerca de US$ 700 bilhões para salvar o sistema bancário americano
de uma queda livre; uma soma que, na época, menos de dois anos
atrás, foi recebida com espanto, assombro e incredulidade
misturados a adoração – e que agora não atrairia mais interesse,
talvez menos que os recordes olímpicos anteriores à Primeira
Guerra Mundial.
Com toda a certeza, não sou especialista em economia, portanto
preciso procurar orientação daqueles que o dizem ser e como tal
são tratados. Um banqueiro francês, segundo artigo de Marie de
Vergès publicado em Le Monde de hoje, explica toda a questão; o
Tesouro americano, diz ela, pode pagar dívidas emitindo tantos
dólares quantos desejar. Confesso que fiquei perplexo ao ler essas
palavras, mas parece que minha atitude foi compartilhada pelo
menos por algumas pessoas que, ao contrário de mim, não carecem
de credenciais na área econômica. Uma delas, Antoine Brunet,
opina que, se continuar com a política atual, o Fed vai empurrar a
moeda americana abaixo do status de la monnaie de singes –
expressão idiomática francesa que significa enganar alguém com
promessas vazias… Em quem deveria eu acreditar? E quem sou eu
para decidir sobre a credibilidade de economistas? Mas acredito em
Hans Jonas e no que ele escreve sobre a “ética na era da
incerteza”, com sua versão atualizada da aposta de Pascal (em vez
do imperativo categórico kantiano, feito sob medida para uma era de
certeza e autoconfiança): se algumas pessoas preveem uma
catástrofe e outras negam essa previsão, é mais seguro ficar do
lado dos profetas da desgraça.
19 DE FEVEREIRO DE 2011
Sobre estar fora dentro, e dentro, mas fora
Em 26 de setembro de 1940, Walter Benjamin foi detido pela polícia
espanhola na fronteira entre França e Espanha, e recebeu ordem de
voltar por não ter um “visto de saída”, condição então imposta para
entrar na Espanha. Apanhado entre um país que lhe recusava o
direito de viver e outro que lhe recusava um salva-vidas, Benjamin
escolheu a única direção que podia tomar sem ser parado pelos
guardiões da lei e da ordem: a morte. Como a Espanha suspendeu
a exigência de vistos de saída alguns dias depois, Hannah Arendt,
em retrospecto, chamou o suicídio de Benjamin de “singular caso de
azar”. Mas Benjamin não podia saber qual seria o passo que os
poderes constituídos iriam dar em seguida. Traçar a linha divisória
entre sorte e azar não estava em suas mãos. No tabuleiro em que
ele representava um peão, os jogos eram disputados por outros. É
isso, em resumo, que faz de um refugiado um refugiado.
Em seu último livro, no qual resume seus dez anos de estudos
em campos de refugiados espalhados pela África e América do Sul,
assim como nos “centros de detenção” europeus para imigrantes
definidos como “ilegais” ou suspensos na condição de “sem lei, sem
direitos” das “pessoas em busca de asilo”, Michel Agier conclui que,
setenta anos depois, o “azar” de Benjamin quase perdeu sua
singularidade.2 Em 1950, as estatísticas oficiais somavam 1 milhão
de refugiados. Hoje, estimativas conservadoras falam em 12
milhões de “pessoas em transição”, mas a previsão para 2050 é de
pelo menos 1 bilhão de “refugiados transformados em exilados”.
“Estar em transição” é uma expressão irônica quando aplicada à
sorte de Walter Benjamin ou a suas réplicas mimeografadas. Por
definição, a ideia de “transição” significa um processo finito, um
espaço de tempo com linhas delimitadas de partida e de chegada –
a passagem de um “aqui” para um “lá” espaciais, temporais, ou
espaciais e temporais; mas esses são precisamente os atributos
negados à condição de “ser um refugiado”, definidos, separados e
em oposição à “norma” por sua ausência. Um “campo” de
refugiados não é uma estação intermediária, uma pousada ou um
motel na estrada que leva do aqui para o lá. É a estação terminal,
onde todas as estradas que estão no mapa chegam ao fim e todo
movimento é interrompido. Os campos estão impregnados de
finalismo; não o finalismo do destino, porém, mas o estado de
transição petrificado em estado de permanência.
O nome “campo de transição”, comumente escolhido pelos
detentores do poder para designar os lugares em que os refugiados
são obrigados a ficar, é um paradoxo: a “transição” é a própria
qualidade cujas negação e ausência definem a condição de um
refugiado. O único significado definido de ser destinado a um lugar
chamado “campo de refugiados” é que todos os outros lugares
concebíveis estão fora de seus limites. O único significado de estar
dentro de um campo de refugiados é ser um outsider, forasteiro,
corpo estranho, intruso no resto do mundo; em suma, ser um
excluído do mundo compartilhado pelo restante da humanidade. “Ter
sido excluído”, ser fixado à condição de exilado, é tudo que há e
precisa haver na identidade do refugiado.
Como Agier assinala repetidas vezes, o que separa o exilado de
todos os outros seres humanos não é de onde ele chegou ao
acampamento, mas a ausência de um para onde – a proibição
declarada ou a impossibilidade prática de chegar a qualquer outro
lugar. O que conta é ter sido posto de lado. Os exilados não
precisam cruzar fronteiras entre nações, chegar de outro país.
Podem ser e muitas vezes são nascidos e criados dentro do país
em que agora vivem sua vida de exilados. Não precisam ter se
afastado um centímetro do lugar em que nasceram. Agier tem toda
razão em fundir campos de refugiados, acampamentos de sem-teto
e guetos urbanos numa só categoria – a dos “corredores de
exilados”.
Moradores de todos esses lugares, sejam eles legais ou ilegais,
compartilham uma característica decisiva: são todos redundantes.
Rejeitos ou refugos da sociedade. Em suma, dejetos. “Dejeto”, por
definição, é o antônimo de “recurso”; denota objetos sem uso
possível. Na verdade, a única realização do dejeto é poluir e
atravancar um espaço que de outro modo poderia ser mais bemempregado.
A produção de “dejetos humanos” em escala industrial é um
fenômeno eminentemente moderno, tal como o próprio conceito de
“dejeto” e seu oposto, o de “recurso”. Na economia camponesa
predominante na era pré-moderna, não havia espaço para a ideia de
“dejeto”, juntamente com as práticas associadas de sua produção,
remoção e destruição; não havia espaço para “detrito”, “refugo”,
“sobra” ou “lixo”. Tudo tinha sua utilidade, sendo usado e reciclado.
Todos os restos orgânicos criados pelas terras e pela casa de um
camponês eram prontamente devolvidos à cadeia alimentar sob a
forma de comida para animais ou de fertilizantes. Avant la lettre,
uma ampla “reciclagem” era endêmica à economia camponesa, e
nem objetos animados ou inanimados, incluindo os seres humanos,
estavam isentos dela: presumia-se a priori, ainda que tacitamente,
que uma criança recém-nascida teria um papel a desempenhar no
campo ou no quintal, assim como um lugar à mesa da família.
Só com o desenvolvimento do trabalho remunerado e do
mercado de trabalho a demanda e a oferta de mão de obra puderam
atingir um estado de desequilíbrio; por conseguinte, foi possível que
a ideia de “redundância humana” ganhasse sustentação e que
emergisse o conceito de “desemprego estrutural”. Uma vez que isso
ocorreu, contudo, a produção maciça e sistemática de “pessoas
redundantes” se tornou uma característica permanente da vida
moderna. As pessoas redundantes eram os dejetos, ou as baixas
colaterais, de duas preocupações extraordinariamente modernas
(na verdade, com muita frequência percebidas como traços
definidores do modo de vida moderno): a construção da ordem e o
progresso econômico.
Primeiro, a construção da ordem. Esta é avaliada pelo grau de
“regularidade”, ou seja: a crescente previsibilidade dos eventos e o
decrescente volume de sua contingência, aleatoriedade,
acidentalidade e irregularidade. Substituir o estado de coisas
existente, desprezado como “insuficientemente regulado”,
“desordenado” demais ou declinando em direção ao caos por um
modelo de ordem recém-esboçado, feito sob medida para as novas
preferências e capacidades, significa, afinal, redefinir certos modos
de vida e as categorias de pessoas que os praticam como
“inadequados para” o esquema de coisas pretendido; representa,
portanto, negar-lhes espaço na ordem que estava para ser
construída.
“Ordem” significa um estado de coisas em que certos tipos de
evento desejáveis têm mais probabilidade de ocorrer que outros,
classificados como “indesejáveis”. Toda “estruturação” ou
“reestruturação” (sinônimos de “construção da ordem”) consistem,
portanto, na manipulação de probabilidades por separação,
invalidação e, de preferência, eliminação das categorias de sujeitos
humanos considerados, por uma ou outra razão, suspeitos de
resistir a essa manipulação, ou que se recusam de forma aberta a
se submeter às normas promovidas; em outras palavras, as
categorias acusadas de gerar incerteza, e portanto perturbadoras e
solapadoras da futura ordem.
“Estruturar” significa, em última instância, um esforço para excluir
do sistema as categorias da população que ameaçam se tornar
lugares, fontes ou causas de incerteza. Uma vez desligadas e
desconectadas do “sistema”, contudo, essas categorias precisam
ser impedidas de reentrar ou se reconectar: devem ser deportadas,
forçadas, induzidas, pressionadas ou persuadidas e encorajadas a
partir. De modo alternativo (ou paralelo), podem ser relegadas a
várias formas de internação: um lugar de encarceramento, cercado
ou não por muros e guardas armados, mas sempre rodeado por
fronteiras osmóticas (para diferenciar o tráfego sobre elas:
permitindo a entrada, mas tornando a saída extremamente difícil, se
não impossível).
Segundo, o progresso econômico. Este é avaliado, acima de
tudo, pela velocidade e pelo volume do aumento da eficiência da
mão de obra e dos investimentos. “Progredir”, no sentido atribuído a
essa palavra pela economia de mercado, significa ser capaz de
produzir os mesmos efeitos, ou maiores, com menores gastos e
menos trabalho; por conseguinte, isso pode ser avaliado pelo
número de trabalhadores que se tornam redundantes – ou seja, não
mais necessários para manter a produção desses efeitos no nível já
atingido ou ainda maior.
No curso do progresso econômico, setores sucessivos da
população engajados na atividade produtiva são postos de lado
como “inúteis” ou “não lucrativos” – duas razões desqualificantes,
tornadas sinônimas pela lógica do mercado econômico. Esses
setores são os dejetos – o refugo, as baixas colaterais, do progresso
econômico.
As duas tendências, preocupações ou atividades acima expostas
se combinam no fenômeno da “modernização”. Ao contrário das
opiniões antes predominantes e que ainda persistem, embora
equivocadas, a modernização – na verdade, a compulsiva e viciante
reforma ou substituição de tudo, inclusive de regras normativas,
ferramentas e dos próprios padrões de ação modernizados um
instante atrás, ou mesmo daqueles que não chegaram a completar o
ciclo anterior da modernização – não é um processo temporário que
leve à modernidade; ela é o modo existencial imanente e
permanente da sociedade moderna: o atributo definidor do modo de
vida moderno.
Na verdade, a modernidade é o estado de modernização
compulsiva, obsessiva e portanto interminável; no sentido aí
expresso, a modernização só pode ser interrompida, se é que o
pode, com o fim da modernidade. A ideia de uma modernidade
capaz de deter a modernização não é menos absurda que a noção
de um vento que não sopra ou de um rio que não flui. A
consequência, contudo, é que a modernização, de modo endêmico
e (pelo menos até agora) incurável, é uma forma de vida produtora
de lixo; e nesse ramo da produção, como em todos os outros, o
modo de vida moderno é singular e excepcionalmente fértil e
eficiente. O preço da criação, da inventiva e da produtividade
excepcionais da modernidade é a vulnerabilidade humana à
redundância – que está aumentando em vez de diminuir.
Não há modernização (nem, portanto, modo de vida moderno)
sem uma produção maciça e contínua de dejetos, inclusive o lixo
humano proclamado redundante. Por alguns séculos, a península
norte-ocidental do continente asiático chamada “Europa” foi uma ilha
isolada de modernidade num vasto mar pré-moderno de âmbito
planetário, e assim gozava do monopólio mundial da modernização;
era, portanto, a única parte do globo afligida pelo veneno da
redundância humana.
Com uma vantagem sobre o resto do planeta em termos de
poder, contudo, e por um considerável lapso de tempo (vantagem
oferecida e garantida por sua condição monopolista), a Europa foi
historicamente singular por ser capaz de encontrar um uso lucrativo
para seu “lixo humano”, a parte “redundante” de sua população: a
conquista e a colonização. O episódio imperialista da história
europeia foi resultado de uma singular concatenação de
circunstâncias não reproduzidas e provavelmente não reproduzíveis
por outras áreas do planeta: uma conjunção única da necessidade
de remover a parte redundante da população, sistematicamente
crescente, com a oportunidade de empregar seus integrantes no
papel de conquistadores, expandindo as possessões territoriais
europeias e também obtendo a abertura de novos mercados para a
exploração tranquila e potencialmente irrestrita pela Europa. Nesse
caso, e talvez só nele, o exílio podia ser e era reciclado em
colonização; os impérios europeus no ultramar podiam ser e eram
utilizados como oficinas em que essa reciclagem se realizava de
modo produtivo, e em grande parte se concretizava. A maldição da
exclusão foi reciclada em “missão do homem branco” (ou, como
preferiria Rudyard Kipling, num subtom de autoaprovação misturada
com autodefesa, o “fardo do homem branco”).
Com crescentes quantidades de lixo transportadas em segurança
para o ultramar, evitaram-se os efeitos mais ameaçadores e em
potencial mais tóxicos do lixo acumulado. Independentemente da
fração da população redundante que permaneceu na terra natal
depois de preenchidas as guarnições ultramarinas; da forma como
os escritórios da administração colonial e os postos avançados do
comércio exterior tiveram atendidas suas necessidades de pessoal,
as terras dos territórios anexados que passaram a ser usadas para
a colonização em geral puderam se tornar administráveis – não sem
tensões e atritos sociais consideráveis e por vezes explosivas. Em
suma, encontrou-se uma solução global para problemas localmente
produzidos; e por alguns séculos ela pôde ser imposta com energia
e sucesso. Mas, repito, essa foi uma oportunidade única para a
Europa e por tempo limitado – que jamais se repetirá, seja na
Europa ou em qualquer outra parte do planeta.
Bem, pode-se dizer que, no fim do século XX, a “missão do
homem branco” tinha se realizado, ou, caso se prefira, que o “fardo
do homem branco” havia sido entregue – mesmo que não na forma
prevista pelos missionários e seus supostos portadores: a
modernização compulsiva e obsessiva, por necessidade, ainda que
não por escolha, havia de fato alcançado os recantos mais distantes
e isolados do planeta – ou quase.
As sementes do admirável mundo novo, revestidas por um
veneno destinado a destruir os resíduos do velho e não tão
admirável mundo, haviam sido aspergidas por todo o planeta. As
“modernidades” que delas brotaram, como insistem alguns
observadores, podem ser muitas e diversas – mas cada uma delas
é (é obrigada a e não pode deixar de ser) viciada na modernização
perpétua, compulsiva e obsessiva; isso significa que o lixo humano
é produzido em toda parte – ou quase. A redundância humana não
é mais um incômodo gerado localmente que possa ser aliviado ou
eliminado procurando-se, encontrando-se e aplicando-se soluções
globais. É justo o contrário: são os poderes locais, ou o que tenha
sobrado deles, que enfrentam a assombrosa tarefa de procurar,
encontrar e aplicar soluções locais para os problemas globalmente
gerados, de caráter universal. Em sua essência, esse problema se
resume no gerenciamento da indústria de remoção e reciclagem de
lixo e refugos.
Um aspecto interessante e revelador: o temor da terrível ameaça
de superpopulação do planeta irrompeu na “opinião mundial” ao
mesmo tempo que a debilitação dos impérios ultramarinos europeus
e o fim da era colonialista. Ganhou força durante o resto do século
XX e não mostra sinais de fraqueza no século XXI. Hoje, alguns dos
intelectuais de maior prestígio – como, por exemplo, no Le Monde
de 15 de fevereiro, Henri Leridon, incumbido pela Academia
Francesa de analisar e interpretar as atuais tendências
populacionais – advertem que, sendo a Terra incapaz de alimentar
mais que 9 bilhões de pessoas, qualquer coisa acima disso tende a
desencadear uma explosão social, talvez a extinção da espécie
humana; no entanto, diz Leridon, dados coletados pelo Conselho
Econômico e Social das Nações Unidas, apesar do esforço dos
autores para dar um tom otimista a seus comentários e amenizar
(em vez de reforçar) os temores referentes a uma “bomba
demográfica”, mostram que, se a taxa de fertilidade não for
significativamente reduzida, o limiar da catástrofe em breve será
atingido – e ultrapassado.
O relatório da ONU sugere que o temido número de 9 bilhões
será o pico do crescimento populacional, a ser alcançado em 2050,
após o que a população do planeta começará a diminuir. Mas outros
intelectuais se recusam a ser acalmados. Eles apontam que, com a
população da Terra na iminência de atingir 7 bilhões no fim de
agosto, um simples cálculo mostra que, enquanto o primeiro bilhão
levou um período imenso para ser alcançado, o segundo bilhão
levou apenas 180 anos, enquanto o sétimo não precisou de mais
que doze. Também questionam a veracidade e a credibilidade do
otimismo oficial da ONU, sugerindo que, embora com um
crescimento da taxa de natalidade em torno de 0,5%, a população
mundial ultrapassaria o pico esperado em 2050 em 1,5 bilhão de
pessoas, enquanto um crescimento de apenas 0,25% seria
suficiente para que a população atingisse os 14 bilhões em 2100.
(Mas os autores do prognóstico deixaram de explicar de que modo
isso poderia acontecer, e se com os 9 bilhões de pessoas se
desencadearia a extinção da raça humana.) Às vezes pode-se
detectar um tom de desespero nos cenários mais alarmistas
(embora ele dificilmente chegue a se formalizar, e os relatórios, com
prudência, evitem expressá-lo): como “planejamento familiar” é o
único método de controle da fertilidade, estamos privados de meios
efetivos para evitar a ocorrência da superpopulação.
Outro aspecto interessante e revelador: invariavelmente, a
despeito da cor do alerta que recomendem, os fornecedores de
dados e comentários percebem o perigo como algo que provém
sobretudo, ou quase com exclusividade, dos países pobres (em
geral os mais densamente povoados).
Observe-se que entre 1789 e 1826, no limiar da modernização
intensiva, mas antes que o planeta fosse dividido entre impérios
europeus emergentes e a colonização ganhasse ímpeto, Thomas
Robert Malthus publicou e atualizou seu Ensaio sobre a população.
Aí ele argumentava que a humanidade se destinava a enfrentar a
superpopulação, expressa numa catastrófica carência de alimentos,
se não houvesse limitação da taxa de natalidade, aumento da taxa
de mortalidade, ou ambos:
O poder da população é tão superior ao poder da terra de produzir substâncias para o
homem que a morte prematura, de uma forma ou de outra, pode afligir a raça
humana. Os vícios da humanidade são ativos e hábeis ministros do despovoamento.
São os precursores do grande exército da destruição, e muitas vezes dão cabo, eles
mesmos, de sua tarefa macabra. Mas se eles perderem essa guerra de extermínio,
períodos de doença, epidemias, pestes e pragas avançarão numa formação terrível e
os varrerão aos milhares e dezenas de milhares. Se seu êxito ainda for incompleto,
uma fome inevitável e gigantesca advirá, e com um só e poderoso golpe irá nivelar a
população com a comida existente no mundo.3
A sugestão de Malthus permaneceu por várias décadas no centro
das atenções acadêmicas; foi recebida de forma ambígua, mas
vozes poderosas se ergueram em oposição (entre as mais
apaixonados e influentes, as de William Godwin, Robert Owen,
William Hazlitt, Nassau William Senior William Cobbett, Karl Marx,
Friedrich Engels e Thomas Doubleday): a contra-argumentação
apresentada no debate foi multifacetada, mas circulava em torno da
ideia de que a suposta “superpopulação” detectada como
responsável pela escassez de comida e outros meios de
subsistência era falha da sociedade humana, e não um veredicto da
natureza; e que, com a razão, a inventividade e os crescentes
poderes do homem, um equilíbrio adequado entre oferta e procura
poderia ser perpetuado ad infinitum.
No curso do século XIX e durante a maior parte do século
seguinte, esse debate aos poucos perdeu energia, numa época
concentrada em tentar expandir as reservas de mão de obra e os
contingentes militares, vistos como fontes confiáveis e garantias
totais de riqueza e poder nacional, e não na preocupação de que o
tamanho da população pudesse sair de controle. O debate
renasceu,
numa
versão
um
tanto
modificada,
como
“neomalthusianismo”, e de novo ganhou força, nos últimos trinta ou
quarenta anos, com o fim do período imperialista/colonialista e o
advento da era do “retorno dos emigrados do império”.
A atual ressurreição do fantasma da “superpopulação” seria de se
esperar, agora que o modo de vida moderno – dois séculos atrás
privilégio exclusivo de um pequeno setor do planeta cujas fortunas
determinavam os altos e baixos da popularidade e do prestígio da
visão malthusiana – alcançou todos os rincões do globo, ou quase.
Com o “fim da história”, na forma proclamada por Francis Fukuyama
(a universalização definitiva dos mercados governados pelo
capitalismo), estão desaparecendo os escoadouros para a remoção
do “lixo humano”, subproduto inescapável da modernização,
enquanto o volume de redundância humana aumentou de forma
acentuada, e continua a crescer à medida que todas as partes do
planeta se unem na sua produção.
No começo do século XX, os alarmes sobre “superpopulação”
refletiam, em última instância, a inadequação cada vez mais
evidente da indústria de remoção e reciclagem do lixo em sua forma
ortodoxa, inaugurada no princípio da era moderna e refinada no
curso da história desse período. Acima de tudo, refletiam a
impossibilidade da tarefa, nunca antes confrontada, de fornecer
soluções globais para problemas produzidos localmente. O
“problema”, ou seja, a redundância humana, é agora produzido em
termos globais, e não no âmbito local; todas ou quase todas as
terras do planeta caem hoje na categoria de produtoras de
redundância pura e anseiam por exportar seu excesso populacional,
embora nenhuma delas, ou quase nenhuma, seja capaz de absorver
ou possa ser forçada a admitir os excessos populacionais
produzidos em outros lugares. Em nossa era caracterizada por uma
facilidade de viajar sem precedentes e por uma inédita mobilidade,
os excedentes populacionais são fixados aos lugares em que são
produzidos, os quais se mostram incapazes de acomodá-los – e as
gangues especializadas no contrabando de pessoas são sua única
chance de apelar contra o veredicto do destino.
Como observou Milan Kundera, o único significado até agora da
unificação da humanidade é que não há para onde fugir.
22 DE FEVEREIRO DE 2011
Sobre acontecimentos milagrosos e nem
tanto
Um “milagre” é o que costumamos chamar de uma brecha singular
na ordem natural. Quanto à “ordem natural”, esse é outro nome para
qualquer coisa que o poder humano não seja capaz de mudar ou
impedir: que aconteceria se os seres humanos nada fizessem a
respeito, e mesmo fizessem o possível para desviá-la ou
interromper sua trajetória – e, portanto, algo que só podem ignorar
expondo-se ao risco. Como William Adams observou em 1767, a
noção de “milagre” é relativa: “Deve haver um curso regular e
comum da natureza, antes que possa haver qualquer coisa
extraordinária. O rio precisa fluir para que seu fluxo seja
interrompido.”
A “ordem natural” é implacável, incontrolável, inelutável – e surda
a apelos, súplicas e imolações; em outras palavras, cega à
discordância e imune à resistência. É inútil e equivocado, ridículo
mesmo, falar da natureza e dos fenômenos naturais usando
conceitos como “intenção”, “motivo”, “objetivo” ou “propósito”
(injunção que Max Weber, um dos fundadores das modernas
ciências humanas, enxergava como preceito básico da moderna
razão científica, chamando-a de “desencantamento do mundo”). Ao
contrário de nós, seres humanos, a natureza não “deseja” nem
“mira” coisa alguma: os eventos naturais têm causas, não
propósitos: acontecem “por causa de…”, não “a fim de…”. Sendo a
natureza surda e muda, não faz sentido pedir-lhe favores ou
misericórdia, nem tentar insinuar-se diante de seus olhos (os quais,
evidentemente, ela não possui, da mesma forma que é privada de
todos os outros sentidos). As leis da natureza, por definição, são
invulneráveis e invencíveis; nada que os seres humanos possam
fazer é capaz de mudar seu inexorável desdobramento.
Considerando-se tudo, a ordem natural divide os eventos
concebíveis em inevitáveis e impossíveis.
A ambição moderna de colocar a natureza (essa criação sobrehumana e possivelmente divina) sob a administração humana não
podia incluir, e de fato não incluía, a intenção de reformar, muito
menos de suspender ou abolir, a ordem natural e suas leis; não
pretendia questionar o que natureza declarava (e tornava)
impossível. A natureza deveria ser colocada sob o gerenciamento
humano como uma preocupação-padrão – um formato estabelecido
de uma vez por todas, quer planejado e decretado por Deus como
permanente, quer autogerado e autoprotegido, mas de qualquer
modo colocado e mantido no lugar por um poder capaz de realizar o
que os seres humanos evidentemente não poderiam. “É preciso
submeter-se à natureza a fim de dominá-la” – esse era o princípio
orientador da estratégia moderna, mirando o emprego das forças
naturais a serviço das necessidades humanas.
Hegel, por muitos considerado o maior dos filósofos modernos,
proclamou que, para ser livre, é preciso estar consciente da
necessidade: para atingir o sucesso e evitar a derrota, cumpre
aprender com diligência as leis imutáveis da natureza (ou seja, a
diferença entre o inevitável e o impossível). Uma vez conhecidas as
limitações impostas pela natureza – a linha que separa o possível
do impossível –, esse conhecimento adquirido irá capacitar os seres
humanos a escolher objetivos capazes de se implementar e projetos
capazes de se concretizar – e não projetos humanos frustrados e
expectativas humanas diluídas. Em suma, submeter-se às
incontroláveis “leis da natureza” reforça a capacidade humana de
ação efetiva e também expande a liberdade de escolha dos
homens.
Que dizer, então, dos “milagres”? Os milagres encontraram no
espírito moderno seu inimigo mais apaixonado e terrível até o
momento: um inimigo devotado à sua extirpação, expulsão e exílio –
do mundo e da mente humana. Para a ciência moderna, os milagres
eram percebidos como extraordinários, inexplicáveis, algo além da
compreensão apenas pela ignorância (temporária e corrigível) dos
seres humanos no que se refere à ordem natural das coisas; só
puderam continuar como milagres enquanto as leis da natureza
eram misteriosas e inescrutáveis. Como Hume reconhecidamente (e
espirituosamente) declarou no limiar da era moderna, “nenhum
testemunho é suficiente para estabelecer um milagre, a menos que
a testemunha seja de tal tipo que sua falsidade seria mais milagrosa
que o fato que ela busca estabelecer”.
Qualquer coisa tida como “milagrosa” por uma mente ignorante
terá, mais cedo ou mais tarde, reveladas suas causas regulares. A
ciência moderna refutou com resolução a natureza milagrosa de
aparentes e supostos “milagres”. Recusou-se a aceitar como final
qualquer veredicto que afirmasse “Isto é um milagre”, e garantiu que
seria possível anulá-lo; insistiu em que qualquer evento tido por
“milagre” no passado teria revelada, em retrospecto, sua causa
natural, ou seria desqualificado como produto de uma imaginação
sobre-excitada ou como embuste.
Na verdade, a ciência declarou uma guerra de atrito não apenas
aos supostos milagres, mas também à aleatoriedade, opacidade e
ambiguidade – e a qualquer tipo de irregularidade e não
compreensão; e afirmou que eles seriam apenas perturbações
temporárias, tendendo a recuar com o avanço – seguro – da ciência
(roubando segredos da natureza), ombro a ombro com a tecnologia
(evitando quaisquer efeitos indesejáveis ou imprevistos de atos
intencionais). No mundo que a ciência e a tecnologia modernas se
puseram a criar, pretendia-se que não houvesse lugar para
milagres. No mesmo sentido, porém, uma vez feito o trabalho da
ciência, não haveria lugar para Deus.
O pressuposto explícito ou tácito, porém irremovível e invariável,
subjacente ao projeto moderno confinou o papel de Deus no
Universo a um ato de criação. Presumia-se que, tendo criado a
natureza com todas as suas leis, Deus evitou outras interferências
em sua operação; de fato, a ideia do deus absconditus – Deus
ausente – pode ser vista como o ato de nascimento da visão de
mundo moderna. Referindo-se à mentalidade que tendia a ser
modelada por essa ideia, José Saramago observou em seus
Cadernos de Lanzarote que “Deus é o silêncio do Universo e o
homem o grito que dá sentido a esse silêncio”.
Teólogos podem ter discordado se o afastamento de Deus da
administração cotidiana de sua criação se deu por sua própria
decisão intencional ou como consequência da completude e
perfeição de seu projeto, que tornaria qualquer outra intervenção
redundante, indesejável ou impossível (afinal, o estado de
“perfeição” significa que qualquer mudança só o tornaria pior). Mas
são obrigados a se indignar com qualquer imputação de limite à
onipotência divina, já que a admissão de algum marco tenderia a
produzir o mesmo efeito: levaria os teólogos a um dilema com o qual
teriam de lutar arduamente, ainda que em vão. Cada limite iria
questionar e pôr em dúvida o cânone da onipotência divina –
negando a extrema perfeição de seu projeto ou sua capacidade de
consertar as leis universais que ele mesmo projetou. (Leibniz, por
exemplo, chegou a ponto de sugerir que a verdade eterna entrou na
mente de Deus sem lhe pedir permissão, deixando implícito, pelo
mesmo critério, que não sairia por ordem dele.) A insolúvel
ambiguidade dessa situação reflete-se na atitude ambivalente hoje
assumida pelas igrejas em relação aos milagres: por um lado, a
capacidade divina de fazer milagres não é questionada; por outro,
qualquer nova alegação de milagre testemunhado é tratada a priori
com a máxima suspeita, e faz-se todo o possível para desqualificála oficialmente.
Uma proposta em nítida oposição ao conceito de Deus como
criador e mantenedor da regularidade, assim como da rígida e
inexorável lógica do mundo (conceito algumas vezes articulado de
forma explícita, outras vezes assumido de modo tácito, mas sempre
endêmico ao pensamento moderno), foi feita por um filósofo
existencialista cristão, o franco-russo Léon Shestov. Nós postulamos
a existência de Deus, insistia ele – precisamos de Deus, recorremos
a Deus – a fim de “obter o impossível. No que tange a essa
possibilidade, os seres humanos são autossuficientes.” Em outras
palavras, precisamos que Deus faça milagres – fazer milagres é sua
raison d’être. A grandeza de Deus está em sua inconsistência. Nada
de “absoluto” ou “definitivo”, nada sub specie aeternitatis vel
necessitatis. Deus significa: nada é inevitável e nada é impossível.
Nada está isento do poder divino de fazer exceções à regra; o
passado está sujeito à anulação, tal como o futuro; por exemplo, “o
ato vergonhoso do envenenamento de Sócrates” pode transformarse em algo “que jamais existiu”. Assim os milagres podem acontecer
mesmo ex post facto, retrospectivamente: “desfazer” o que foi feito,
eliminá-lo da crônica do ser, retirá-lo não somente do registro
histórico, mas da própria história, é um milagre que está ao alcance
de Deus; é, na verdade, a própria substância da divindade de Deus.
Nas palavras do próprio Shestov:
A história da humanidade – ou, mais precisamente, todos os horrores da história da
humanidade – é, por uma palavra do Supremo, “anulada”, deixa de existir e se
transforma em alucinações e miragens. … O “fato”, o “dado”, o “real” não nos
dominam; não determinam nossa fé no presente, no futuro ou no passado. O que foi
torna-se o que não foi; o homem volta ao estado de inocência.4
A capacidade de fazer milagres: é isso que os seres humanos
procuram em Deus. Se precisam de um “Deus pessoal” – sobrehumano, porém semelhante aos homens, capaz de escutar, ouvir,
escolher e decidir com prudência, tal como eles –, precisam
exatamente por essa capacidade. O teste final da onipotência divina
é essa capacidade de desprezar, ignorar e negligenciar as regras,
leis, regularidades e rotinas que ele mesmo criou para que os seres
inferiores – basicamente humanos – obedecessem. Um Deus
obrigado a seguir regras, ainda que por ele mesmo criadas, seria
um paradoxo, uma contradição em termos. É por presumir que ele
tem a capacidade de quebrar a rotina, fazer o inesperado e o
inexplicável, que os seres humanos a um só tempo o temem,
confiam nele e a ele recorrem sempre que ultrapassam os limites de
sua própria capacidade de enfrentar as coisas difíceis. O terror e o
medo fundem-se no fenômeno do “espantoso” – o qual, como
sugeriu Rudolf Otto, sempre foi e continua a ser a essência da
“divindade”.
Quando Moisés tentou convencer o faraó de que Jeová, que o
havia enviado, era “o verdadeiro Deus”, ao contrário dos deuses que
endossavam a obstinação autoconfiante do faraó, não procurou
relembrar-lhe a regularidade e a consistência do Universo, criação
de Deus – mas apresentou-lhe visões que desafiavam toda lógica e
todo poder humano de compreensão. Quando Deus o mandou
assumir sua missão, Moisés tinha dúvidas: “Nunca vão acreditar em
mim nem me ouvir; dirão: ‘O Senhor não apareceu para ti.’” Para
aliviar suas apreensões, Deus ofereceu a Moisés uma prova capaz
de convencer qualquer um que a testemunhasse das credenciais
divinas que ele portava:
O Senhor perguntou: “O que tens aí em tuas mãos?” “Um bastão”, respondeu Moisés.
Disse o Senhor: “Joga-o no chão.” Moisés jogou-o no chão e ele se transformou numa
serpente. Moisés fugiu dela, mas o Senhor disse: “Estende tua mão e pega-a pelo
rabo.” Ele assim fez e a segurou firmemente, e ela voltou a ser um bastão em suas
mãos. “Isso é para convencer as pessoas de que o Senhor Deus de seus
antepassados, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó, apareceu para
ti.”5
Para eliminar suas dúvidas, caso o faraó e seus acólitos se
mostrassem obstinados demais em não acreditar no que viam, e
teimosos demais para abandonar as ilusões a que se apegavam e
aceitar as milagrosas reencarnações do bastão e da serpente como
provas suficientes da onipotência do Deus dos hebreus, Jeová
dotou Moisés de vários outros milagres a serem realizados na corte
do faraó, para consumo deste e de seus cortesãos. Somente
quando todas as maravilhas espetaculares se mostraram
insuficientes para mudar a mentalidade do faraó é que Deus
abandonou a tentativa de aplicar sua vontade apresentando
espetáculos milagrosos e recorreu a uma série de pragas
sangrentas – para punir os céticos pelo pecado de ignorar as
evidências que lhes haviam sido apresentadas.
Para ser reconhecido como “o verdadeiro Deus”, é preciso que
ele seja visto fazendo milagres. Os seres humanos devem
testemunhar seu trabalho para que o reconheçam como “o
verdadeiro Deus”: ou seja, a força suprema que buscam
desesperadamente, uma força na qual podem confiar que os
ajudará quando esgotarem a capacidade de enfrentar suas
dificuldades, e que os protegerá quando se confrontarem com um
perigo que julguem impossível de repelir. Os seres humanos
precisam de milagres para abrir o caminho que leva à “servidão
voluntária” – nome dado por Étinne de la Boétie (como Michel
Montaigne nos informa) ao estado a que, segundo ele, os seres
humanos tendiam a aspirar de forma mais decisiva: um estado
mental e um modo de agir tornados assim tão desejáveis por sua
condição existencial cronicamente instável e incerta.
Submeter-se a tal “servidão voluntária” é uma tentação difícil de
resistir. Por um lado, um poder mais forte que a inclemente
realidade, capaz de desfazer o mal produzido e tornar possível
“começar do começo”, como se a tragédia nunca tivesse acontecido,
é aquilo de que os seres humanos necessitam para manter suas
esperanças e sua disposição de continuar vivendo, a despeito da
adversidade do destino, em aparência todo-poderosa. Os seres
humanos precisam acreditar que existe um poder assim, um tribunal
de apelações dotado da capacidade de anular os veredictos da
realidade – e precisam de milagres para sustentar essa crença.
Por outro lado, eles precisam acreditar que esse enorme poder
está inclinado, ou pelo menos pode ser persuadido, a ficar do seu
lado (os soldados alemães enviados ao campo de batalha
costumavam ser lembrados pela inscrição gravada nas fivelas de
seus cintos: Gott mit uns!, “Deus está conosco!”), e que sua graça é
capaz de sobrepujar a mais perversa das intrigas urdidas pelas
forças do mal. Os seres humanos precisam da garantia (ou pelo
menos da esperança) de que esse tremendo poder, com toda sua
imensidão e superioridade, pode ser – será – usado em seu favor, e
não para tornar irrevogável sua queda.
Carl Schmitt, o mais lúcido e realista dos anatomistas do Estado
moderno e das inclinações totalitárias nele embutidas, afirmou que a
marca genuína de todo poder soberano, seja ele divino ou humano,
é sua capacidade de fazer exceções a uma regra:
A exceção é aquilo que não se pode subsumir; ela desafia a codificação geral, mas
revela ao mesmo tempo um elemento formal especificamente jurídico: a decisão em
estado puro. … Não há regra que se aplique ao caos. É preciso estabelecer a ordem
para que o ordenamento jurídico faça sentido. Pode-se criar uma situação regular, e o
soberano é aquele que decide em definitivo se essa situação é efetiva. …
A exceção não confirma a regra; a regra como tal vive apenas da exceção.6
Em sua Investigação acerca do entendimento humano (1748), já
mencionada, David Hume escreveu que os milagres “abundam,
segundo se observa, sobretudo entre nações ignorantes e bárbaras;
ou, se um povo civilizado teve acesso a algum deles, logo se
descobrirá que o recebeu de ancestrais ignorantes e bárbaros que
os transmitiram com aquela inviolável sanção e autoridade que
sempre se atribuem às opiniões recebidas.” No entanto, embora as
nações instruídas e civilizadas como a nossa tenham aceitado com
sinceridade a visão de Hume, de que dificilmente se pode provar a
ocorrência de milagres, a sede que estes provocam mostra poucos
sinais de diminuição, se é que mostra; da mesma forma cai o
número de pessoas que desejam de todo o coração a possibilidade
dos milagres – e assim, como seria de se esperar, também cai o
número daqueles que declaram e tentam convencer quem deseja
ser convencido de que aquilo que realizaram ou são capazes de
realizar não está longe de ser milagroso. E não admira, dado o
volume de incerteza que permeia a vida dos seres humanos e a
crescente evidência de que as rotinas herdadas, aprendidas,
memorizadas e recomendadas se mostram – repetidas vezes –
inadequadas, para não dizer inseguras, para lidar com os riscos e
contingências da vida cotidiana.
A quantidade crescente de esperanças frustradas e promessas
não cumpridas solapa a confiança investida na rotina e mesmo no
“normal” em si, nas instituições existentes voltadas para garantir a
regularidade e a previsibilidade do mundo que compartilhamos: com
muita frequência suas promessas e garantias parecem não menos
ilusórias e arriscadas, e portanto não menos confiáveis e fidedignas,
que aquelas provenientes de fontes que eles denunciam como
“ignorantes e bárbaras”. No fim, após alguns séculos de natureza
desencantada, é a vez de o próprio desencantamento desencantarse.
Alguns minutos de passeio pelo ciberespaço seriam suficientes
para descobrir que, parafraseando Shakespeare, há coisas que os
filósofos nunca sonharam nem sonhariam… Milagres acontecem
hoje da mesma forma como aconteciam nos velhos tempos, a
acreditarmos nas sagradas escrituras. Eis apenas um exemplo,
escolhido aleatoriamente no site otsm.com:
Pouco tempo atrás eu estava voando de Glasgow para Calgary, no Canadá. Tinha
uma conexão de Calgary para Lethbridge. Embarquei em Glasgow no avião da Zoom
sentindo-me empolgado com a oportunidade de viajar para o Canadá a fim de visitar
parentes. Logo depois do embarque, o piloto anunciou que não conseguiam dar
partida. Ficamos sentados no avião durante uma aparente eternidade enquanto os
técnicos tentavam ligar os motores. Afinal o avião estava pronto para a decolagem.
Agora estávamos uma hora atrasados. O piloto disse que tentaria recuperar o tempo
perdido. Isso não aconteceu. Enquanto nos aproximávamos de Calgary, fiquei com os
olhos fixos no relógio. Seria impossível pegar meu voo de conexão! Bem, não sou
uma pessoa religiosa. Mas fechei as mãos e, em minha mente, pedi a Deus: “Por
favor, me ajude. Por favor, meu Deus, o senhor precisa me ajudar. Preciso muito de
sua ajuda, por favor, não deixe que este feriado se transforme num desastre. … Meu
Deus, tenho amigos me esperando em Lethbridge. … Por favor, por favor, me ajude.
Faça acontecer um milagre para que eu possa pegar minha conexão.” O avião enfim
pousou em Calgary às 2h30min. Minha conexão estava marcada para sair às
3h05min! Como eu ia conseguir? Primeiro tinha de descer do avião. Depois precisava
passar pela alfândega. A bagagem… precisava pegar a bagagem. Tinha de encontrar
o balcão da Air Canada e fazer o check-in. Como conseguiria fazer tudo isso? Bem,
consegui passar pela alfândega com muita rapidez! Depois consegui pegar minha
bagagem também depressa. Quando finalmente cheguei ao balcão da Air Canada,
bufava e ofegava. Sentia-me como se estivesse à beira de um ataque cardíaco! Logo
expliquei tudo ao jovem que estava atrás do balcão, dizendo, em pânico: “Não sei o
que vou fazer!” O jovem me disse para não me preocupar, ele ia garantir que minha
bagagem embarcasse no voo charter. Disse-me para correr e me guiou para o portão
correto. Bem, para resumir uma longa história, consegui, a duras penas, pegar o voo.
As pessoas diriam que foi sorte, mas não tem nada a ver com sorte! Digo a vocês que
Deus ouviu minhas preces. Aconteceu um milagre! Ele fez com que todas essas
coisas acontecessem depressa. A alfândega, a bagagem, o check-in. Deus garantiu
que eu pegasse meu voo charter de conexão. Desde então, tenho agradecido a Ele
diariamente. Estou muito agradecido. Isso na verdade fez com que minha fé em Deus
se fortalecesse. No momento em que cheguei ao balcão de check-in, eram 2h45min,
e o voo sairia às 3h05min. O cara que me ajudou com a bagagem, esse cara foi uma
bênção. Tudo que posso dizer é que tenho certeza de que nada disso teve a ver com
sorte. Deus fez tudo isso acontecer para mim.
O que isso prova? Que milagres acontecem para as pessoas que
neles acreditam. Que se você quiser testemunhar um milagre,
primeiro deve rezar para que ele aconteça. E que você acreditará
que o viu acontecer se as coisas ocorrerem da forma como você
rezou para que ocorressem.
25 DE FEVEREIRO DE 2011
Sobre Facebook, intimidade e extimidade
“O Facebook é o principal site de rede social, tendo superado seu
maior concorrente, o MySpace, em abril de 2008.” “O Facebook
atraiu 130 milhões de visitantes exclusivos em maio de 2010, um
aumento de 8,6 milhões de pessoas.” “O ranking do site entre todos
os demais passou de sexagésimo para sétimo em matéria de
tráfego mundial, de setembro de 2006 a setembro de 2007, e hoje
ele é o segundo.”
Essas citações, fornecidas pelo site da Wikipédia, ao que parece
constantemente atualizado, são a última informação sobre o
fenomenal sucesso do Facebook: a ascensão constante e
rapidíssima, deixando muito atrás outras novidades da internet e
outras modas passageiras, quebrando todos os recordes de
crescimento em número de usuários regulares e também em termos
de seu valor comercial. Segundo a edição de ontem do Le Monde, o
valor atual do Facebook alcançou agora a soma inédita de US$ 50
bilhões. Enquanto escrevo estas palavras, o número de “usuários
ativos” do Facebook está ultrapassando a barreira do meio bilhão.
Evidentemente, alguns são mais ativos que outros – contudo, pelo
menos metade dos usuários ativos está no Facebook todos os dias.
Como nos informam seus proprietários, um usuário médio tem 130
amigos (no Facebook), enquanto entre si os usuários passam mais
de 700 bilhões de minutos por mês conectados nessa rede. Se esse
número astronômico é muito grande para digerir e assimilar,
permitam-me assinalar que, se dividido igualmente entre os usuários
ativos do Facebook, ele poderia representar 16 milhões de pessoas
24 horas por dia, setes dias por semana ligadas no Facebook.
Qualquer que seja o padrão, trata-se de um sucesso
impressionante. Aos vinte e tantos anos, Mark Zuckerberg deve ter
tropeçado em algum tipo de mina de ouro quando inventou (alguns
diriam roubou7) a ideia do Facebook e a lançou na internet, para uso
exclusivo dos alunos de Harvard, em fevereiro de 2004. Isso tudo é
bastante óbvio. Mas qual foi o minério semelhante ao ouro que o
Mark Sortudo descobriu e continua explorando com lucros fabulosos
e sempre crescentes?
No site oficial do Facebook, você vai encontrar a seguinte
descrição dos benefícios que se afirma terem atraído e seduzido
esse meio bilhão de pessoas a passar boa parte de seu tempo de
vigília nos domínios virtuais do Facebook:
Os usuários podem criar perfis com fotos, listas de interesses pessoais, informações
para contato e outras de caráter pessoal. Podem se comunicar com amigos e outros
usuários usando mensagens privadas ou públicas e uma sala de bate-papos. Também
podem criar grupos de interesse, ou entrar em algum, assim como like pages
(chamadas, até 19 de abril de 2010, de fan pages), algumas das quais são mantidas
por organizações como forma de publicidade.
Em outras palavras, o que as legiões de “usuários ativos”
abraçaram com entusiasmo ao se juntar às respectivas fileiras do
Facebook foi a possibilidade de duas coisas com as quais deviam
ter sonhado sem saber ainda onde procurá-las e achá-las até que a
oferta de Zuckerberg a seus colegas de Harvard apareceu na
internet. Primeiro, deviam sentir-se incomodamente solitários, mas,
por algum motivo, achavam muito difícil escapar da solidão com os
meios de que dispunham. Segundo, deviam sentir-se dolorosamente
desprezados, ignorados e de alguma forma postos de lado, exilados
e excluídos, porém, uma vez mais consideravam difícil, quase
impossível, erguer-se acima de seu odioso anonimato com os meios
de que tinham em mãos. Para ambas as tarefas, Zuckerberg
ofereceu os meios que eles até então haviam procurado em vão; e
eles agarraram a oportunidade… Deviam estar preparados para
pular, os pés sobre a rampa de partida, os músculos tensos, os
ouvidos à espera do tiro de largada.
Fico imaginando: se Zuckerberg tivesse nascido trinta ou
quarenta anos antes, teria sido treinado por seus professores a
regurgitar fervorosamente as homilias de Sartre ou a repetir,
seguindo Foucault, como se estivesse citando as sagradas
escrituras, que “o autor está morto”; teria aprendido com os
apóstolos da “Nova Crítica” que é tolo e degradante para um aluno
conectar textos artísticos com quaisquer detalhes pessoais da vida
do autor; teria lhe ocorrido que são precisamente os “detalhes
pessoais” que fazem o autor, e que, portanto, seus jovens colegas
estariam se coçando para igualar a glória dos autores festejados
tornando públicos seus próprios “detalhes pessoais”? E no caso
muito improvável de que algo assim tivesse ocorrido a esse
Zuckerberg anterior, será que os milhões de usuários ativos teriam
se lançado sobre sua invenção, seguidos por bilhões de dólares?
Foi só no curso dos últimos vinte anos que, como assinala
Sebastian Faulks em Faulks on Fiction, “longe de ser banida dos
comentários, a vida do autor e sua relação com o trabalho se
tornaram o principal campo de debate”. E, acrescenta ele, essa
mudança crucial “abriu as portas à especulação e à fofoca.
Presumindo que toda obra de arte é uma expressão da
personalidade do autor, os críticos biográficos reduziram o ato de
criação a tema secundário.” Eu suspeito (ou melhor, estou certo) de
que foi apenas nos últimos vinte anos que Zuckerberg pôde ter essa
revelação e foi levando suas novidades aos colegas estudantes, ao
mesmo tempo encontrando-os preparados para seguir o mestre ao
longo do caminho por ele mostrado.
Como recentemente observou Josh Rose, diretor de criação da
agência de publicidade Deutsch LA, “a internet não rouba nossa
humanidade, ela a reflete. A internet não entra em nós, ela mostra o
que temos por dentro.”8 Como ele está certo! Jamais culpe o
mensageiro pelo que você possa achar de ruim na mensagem, mas
também não o exalte pelo que possa encontrar de bom. Afinal, se
vão alegrar-se ou desesperar-se com a mensagem, isso depende
das próprias inclinações e animosidades dos destinatários, de seus
sonhos e pesadelos, esperanças e apreensões. O que se aplica a
mensagens e mensageiros também vale, embora não exatamente
da forma que as ofertas da internet e seus “mensageiros”, para as
pessoas que as apresentam em suas telas e as levam à nossa
atenção. Nesse caso, é o uso que nós, “usuários ativos” do
Facebook, todo esse meio bilhão de pessoas, fazemos dessas
ofertas que as torna, assim como seu impacto sobre nossas vidas,
boas ou ruins, benéficas ou prejudiciais. Tudo depende do que
estejamos procurando; as engenhocas tecnológicas só tornam
nossas aspirações mais ou menos realistas, e nossa busca mais
rápida ou mais demorada, mais ou menos eficaz.
Vamos agora examinar essas ofertas mais de perto. A primeira
dizia respeito aos meios de fugir da solidão. Permitam-me citar mais
uma vez as preocupações de Josh Rose:
Recentemente apresentei a pergunta a meus amigos do Facebook: “Twitter,
Facebook, Foursquare… Tudo isso está fazendo você se sentir mais próximo ou mais
distante das pessoas?” Ela provocou um monte de respostas e parecia tocar um dos
nervos expostos de nossa geração. Qual o efeito da internet e da mídia social sobre
nossa humanidade? Vistas de fora, as interações digitais parecem frias e desumanas.
Não há como negá-lo. Sem dúvida, dada a escolha entre abraçar e “conectar” alguém,
penso que todos concordaríamos quanto à que parece melhor. O tema das respostas
à minha pergunta no Facebook parece ter sido resumido por meu amigo Jason, que
escreveu: “Mais perto de pessoas das quais estou distante.” Então, um minuto depois,
ele escreveu: “Talvez mais distante de pessoas das quais estou bastante perto.” E
depois acrescentou: “Só fiquei confuso.” Mas é algo que confunde. Vivemos agora
nesse paradoxo em que duas realidades aparentemente conflitantes existem lado a
lado. A mídia social ao mesmo tempo nos aproxima e nos distancia.
Sabe-se muito bem que Rose tem a preocupação de transmitir
veredictos sem ambivalência – como de fato deveria ser no caso de
uma transação seminal, porém arriscada, como trocar incidentes
esparsos de “intimidade” off-line pela variedade de massa on-line. A
“intimidade” de que se abriu mão talvez fosse mais satisfatória,
porém consumia tempo e energia, e era cheia de riscos; a
“intimidade” que a substituiu sem dúvida é mais rápida, não exige
esforço e é quase livre de riscos, mas muitos a consideram menos
capaz de saciar a sede de companhia plena. Ganha-se uma coisa,
perde-se outra – e é terrivelmente difícil decidir se os ganhos
compensam as perdas; além disso, uma decisão definitiva está fora
de questão; você vai achá-la tão provisória e até segunda ordem
quanto a “intimidade” que adquiriu.
O que você obteve foi uma rede, não uma “comunidade”. Como
cedo ou tarde acabará por descobrir (desde que, claro, não esqueça
ou deixe de aprender o que significava “comunidade”, ocupado
como está em formar e desfazer redes), elas não são mais
parecidas que água e vinho. Pertencer a uma comunidade é uma
condição muito mais segura e confiável que ter uma rede – embora
seja mais restritiva e contenha mais obrigações.
A comunidade o observa de perto e lhe deixa pouco espaço de
manobra (ela pode bani-lo e exilá-lo, mas não permitirá que você
opte por sair por vontade própria); a rede pode ter pouca ou
nenhuma preocupação com sua obediência às normas prescritas
(se é que a rede tem normas a obedecer, o que muitas vezes não é
o caso), de modo que lhe dará muito mais corda e acima de tudo
não irá puni-lo se você resolver sair. Na comunidade, você pode
contar que “o verdadeiro amigo se conhece na hora do perigo”; as
redes estão lá sobretudo para compartilhar o divertimento; a
disposição de vir em seu socorro no caso de um problema sem
relação com os “focos de interesse” comuns dificilmente é testada,
e, se o fosse, mais dificilmente ainda aprovada. Afinal, a escolha é
entre segurança e liberdade: necessita-se das duas, mas não se
pode ter uma delas sem sacrificar a outra ao menos em parte;
quanto mais se tem de uma menos se tem da outra. No que se
refere à segurança, as comunidades ao velho estilo ganhariam
facilmente das redes. Quanto à liberdade, é o contrário (afinal, basta
apertar a tecla “delete” ou deixar de responder as mensagens para
ficar livre de sua interferência).
Além disso, há toda aquela diferença enorme, de fato abissal e
insuplantável, entre abraçar e “conectar” alguém, como diz Rose…
Em outras palavras, entre o protótipo off-line e a variedade on-line
de “proximidade”, entre fundo e raso, profundidade e
superficialidade, calor e frieza, sincero e falso. Você escolhe, com
toda probabilidade continuará a escolher, dificilmente poderia parar
de escolher, mas é melhor selecionar sabendo o que está
escolhendo – e estar preparado para pagar o preço da escolha. Pelo
menos é isso que Rose parece sugerir, e ninguém discute sua
advertência.
O conteúdo exigido para tornar um relacionamento “significativo”
tem mudado de forma considerável – e drástica, nos últimos trinta
ou quarenta anos. Tem mudado tanto que, como sugeriu Serge
Tiresson, os relacionamentos considerados “significativos” passaram
da intimité para a extimité – da intimidade à “extimidade” (ver, de
sua autoria, Virtuel, mon amour, 2008).
Alain Ehrenberg, analista perspicaz do complexo trajeto da
história – curta, embora dramática – do indivíduo moderno, tentou
apontar a data de nascimento da revolução cultural da modernidade
tardia (pelo menos de seu ramo francês) que resultou no mundo
líquido moderno que continuamos a habitar; uma espécie de
equivalente para a revolução da cultura ocidental da salva de
artilharia do navio de guerra Aurora, que deu sinal para o ataque ao
palácio de Inverno e assinalou o início de setenta anos de governo
bolchevique. Ehrenberg escolheu uma tarde de quarta-feira de
outono, na década de 1980, quando certa Vivienne, uma “francesa
comum”, declarou num talk show de TV, e portanto diante de vários
milhões de espectadores, que, por causa de seu marido Michel, o
qual sofria de ejaculação precoce, ela nunca tinha experimentado
um orgasmo em toda sua vida de casada.
O que seria tão revolucionário no pronunciamento de Vivienne a
ponto de justificar a escolha de Ehrenberg? Seus dois aspectos
intimamente relacionados. Primeiro, atos essencialmente (até
eponimicamente) privados foram revelados e discutidos em público
– ou seja, na frente de todos que quisessem ouvir ou por acaso
ouvissem. Em segundo lugar, a arena pública – ou seja, um espaço
aberto ao ingresso sem controle – foi usada para abordar e debater
um tema de relevância, interesse e emoção em essência privados.
Entre si, esses dois movimentos revolucionários legitimaram o uso
público de uma linguagem desenvolvida para conversas privadas
entre um número limitado de pessoas selecionadas: de uma
linguagem cuja função básica tinha sido até então estabelecer a
separação entre os domínios do “privado” e do “público”. Mais
precisamente, essas duas rupturas interligadas deram início à
apresentação em público, para uso e consumo de uma audiência
pública, de um vocabulário destinado a ser empregado para narrar
experiências privadas, vivenciadas subjetivamente (Erlebnisse e não
Erfahrungen). Com o passar dos anos, ficou claro que o verdadeiro
significado do evento fora eliminar a divisão antes sacrossanta entre
as esferas “pública” e “privada” da vida corporal e espiritual humana.
Voltando ao passado e com o benefício de um olhar
retrospectivo, podemos dizer que a aparição de Vivienne diante de
milhões de homens e mulheres franceses grudados às suas telas de
TV também levou os espectadores, e com eles o resto de nós, a
uma sociedade confessional; um tipo de sociedade até então
desconhecido e inconcebível, em que microfones são instalados
dentro de confessionários, os eponímicos cofres e depósitos dos
segredos mais secretos, do tipo que só devem ser divulgados a
Deus ou a seus mensageiros e plenipotenciários terrenos; em que
alto-falantes conectados a esses microfones são pendurados em
praças públicas, lugares antes destinados a expor e debater
assuntos de interesse, preocupação e urgência comuns.
O advento da sociedade confessional assinalou o triunfo final da
privacidade, essa invenção moderna básica – embora também o
início de sua vertiginosa queda desde o auge de sua glória. Indicou
o momento, portanto, de uma vitória de pirro, sem a menor dúvida: a
privacidade invadiu, conquistou e colonizou o domínio público, mas
à custa da perda de seu direito ao sigilo – seu traço definidor e seu
privilégio mais valorizado e defendido com tenacidade.
O que é secreto, como outras categorias de propriedades
pessoais, é por definição a parte do conhecimento não
compartilhada com os outros, ou cujo compartilhamento é
controlado. O sigilo traça e estabelece a fronteira, por assim dizer,
da privacidade; esta é o campo destinado a constituir o domínio
próprio de alguém, o território de sua soberania exclusiva, no interior
do qual a pessoa tem o poder abrangente e indivisível de decidir “o
que e quem eu sou” – e a partir do qual é possível lançar e relançar
campanhas para conquistar e manter o reconhecimento e o respeito
às suas decisões. Numa surpreendente guinada de 180 graus em
relação aos hábitos de nossos ancestrais, contudo, perdemos a
coragem, a energia e acima de tudo a determinação de persistir na
defesa desses direitos, desses tijolos insubstituíveis da autonomia
individual.
Em nossos dias, não é tanto a possibilidade de traição ou
violação da privacidade que nos assusta, mas o oposto: que se
feche a porta de saída da privacidade. A área da privacidade
transformou-se num local de encarceramento; o dono desse espaço
privado vê-se condenado e destinado a ser abandonado às suas
próprias preocupações; forçado a uma condição marcada pela
ausência de ouvintes ávidos por puxar e arrancar nossos segredos
das trincheiras da privacidade, submetê-los à exposição pública,
torná-los propriedade comum de todos, propriedade que todos
desejam compartilhar. Parece que manter segredos não nos
satisfaz, a menos que eles sejam daquele tipo capaz de reforçar
nossos egos, atraindo a atenção de pesquisadores e editores de talk
shows televisivos, das primeiras páginas de tabloides e capas de
revistas de luxo.
“No cerne das redes sociais está a troca de informações
pessoais.” Os usuários ficam felizes em “revelar detalhes íntimos de
suas vidas pessoais”, “postar informações precisas” e “compartilhar
fotografias”. Estima-se que 61% dos adolescentes britânicos entre
treze e dezessete anos “têm um perfil pessoal num site de rede
social” que os capacita ao “convívio on-line”.9
Na Grã-Bretanha, país em que o uso popular de instrumentos
eletrônicos de ponta está ciberanos atrás do Extremo Oriente, os
usuários ainda podem confiar nas “redes sociais” para manifestar
sua liberdade de escolha e até acreditar que elas sejam um veículo
de rebelião e autoafirmação da juventude. Mas na Coreia do Sul,
por exemplo, onde a maior parte da vida social já é eletronicamente
mediada (ou melhor, em que a vida social já se transformou em vida
eletrônica ou em cibervida, e onde a maior parte da “vida social” é
passada basicamente na companhia de um computador, iPod ou
celular, e só de forma secundária com pessoas de carne e osso), é
óbvio para os jovens que eles não têm sequer um lampejo de
escolha; onde eles vivem, levar a vida social eletronicamente não é
mais uma opção, porém uma necessidade do tipo “pegar ou largar”.
A “morte social” está à espreita dos poucos que não conseguiram
entrar no Cyworld, o líder do cibermercado sul-coreano em termos
da “cultura do veja e conte”.
Seria um erro grave, contudo, supor que a ânsia de fazer uma
apresentação pública do “eu interior” e a disposição de satisfazer
essa ânsia sejam manifestações de um impulso e vício singulares,
apenas geracionais e relacionados à adolescência, ávida como ela
tende a ser por fincar uma base na “rede” (termo que está
substituindo “sociedade”, tanto no sentido do discurso das ciências
sociais quanto na fala popular) e lá permanecer, embora sem muita
certeza de como atingir esse objetivo. O novo impulso para a
confissão pública não pode ser explicado por fatores “específicos à
idade” – de qualquer forma, não apenas por eles. Como Eugène
Enriquez resumiu a mensagem das crescentes evidências obtidas
em todos os setores do mundo líquido moderno dos consumidores:
Somente quando as pessoas se lembrarem de que aquilo que antes era invisível – a
parte íntima de todos, a vida interior de todos – agora se expõe no palco público
(sobretudo nas telas de TV, mas também nos palcos literários) é que elas irão
compreender que aqueles a quem prezam por sua invisibilidade tendem a ser
rejeitados, postos de lado ou considerados suspeitos de um crime. A nudez física,
social e psíquica está na ordem do dia.10
Os adolescentes equipados com confessionários eletrônicos
portáteis são apenas aprendizes treinando a (e treinados na) arte de
viver numa sociedade confessional – famosa por eliminar a fronteira
que antes separava o privado do público; por transformar a
exposição pública do privado numa virtude e numa obrigação
públicas; e por varrer da comunicação pública tudo que resista a ser
reduzido a confidências privadas, com aqueles que se recusam a
confidenciá-las.
Já na década de 1920, quando a transformação da sociedade de
produtores em sociedade de consumidores se encontrava em
estado embrionário ou, na melhor das hipóteses, incipiente, e
portanto passava despercebida pelos observadores menos atentos
e perspicazes, Siegfried Kracauer, pensador dotado da fantástica
capacidade de apreender o que é só um pouco visível, que já
começava a traçar os contornos de certas tendências prefigurando
um futuro ainda perdido na massa informe de modismos e
excentricidades, escreveu:
A corrida aos numerosos salões de beleza brota em parte de preocupações
existenciais, e o uso de cosméticos nem sempre é um luxo. Por medo de serem
postos de lado como obsoletos, damas e cavalheiros tingem o cabelo, enquanto
quarentões praticam esporte para se manter esbeltos. “Como posso ficar bonito?” é o
título de um livreto há pouco lançado no mercado: os anúncios de jornal dizem que ele
nos ensina formas de “permanecer jovem e belo agora e sempre”.11
Os novos hábitos que Kracauer registrou em Berlim, na década
de 1920, como dignos de curiosidade têm se espalhado desde
então como um incêndio florestal, transformando-se em rotina diária
(ou pelo menos em sonho) por todo o globo. Oitenta anos depois,
Germaine Greer observou que “até nos rincões mais distantes do
noroeste da China as mulheres trocavam seus pijamas por sutiãs
acolchoados e saias sexies, ondulavam e tingiam os cabelos lisos e
economizavam para comprar cosméticos. A isso se dava o nome de
liberalização.”12
Meninos e meninas em idade escolar anunciando suas
qualidades com avidez e entusiasmo na esperança de atrair a
atenção e talvez obter também o reconhecimento e a aprovação
necessários para se manter no jogo da socialização; clientes em
potencial precisando ampliar seus recordes de compras e seus
limites de crédito para ter direito a um atendimento melhor;
imigrantes latentes lutando para juntar cartões de bônus e oferecêlos como prova da existência de uma demanda por seus serviços a
fim de ver aceitas suas candidaturas: essas três categorias de
pessoas, aparentemente tão distintas, e miríades de outras forçadas
a se vender no mercado e desejando vender-se pela maior oferta
possível, são instigadas, induzidas ou obrigadas a promover uma
atraente e desejável mercadoria; assim, fazem o possível,
recorrendo aos melhores meios à sua disposição, para aumentar o
valor de mercado dos produtos que vendem. A mercadoria que são
estimulados a colocar no mercado, promover e vender são elas
mesmas.
Elas são, a um só tempo, promotoras de mercadorias e as
mercadorias que promovem. São o produto e seus agentes de
marketing, os bens e seus vendedores itinerantes (e permitam-me
acrescentar que qualquer estudioso que já tenha se candidatado a
um emprego na área de ensino ou a uma verba de pesquisa
reconhecerá com facilidade sua condição nessa experiência). Seja
qual for a categoria em que possam ser enquadrados pelos
organizadores das tabelas estatísticas, todos habitarão o mesmo
espaço social conhecido pelo nome de mercado.
Não importa em que rubrica seus interesses sejam classificados
por arquivistas do governo ou jornalistas investigativos, a atividade
em que todos estão engajados (seja por escolha, necessidade ou
ambas) é o marketing. O teste em que precisam passar para serem
admitidos às cobiçadas recompensas sociais exige deles que se
reclassifiquem como mercadorias: ou seja, como produtos capazes
de atrair atenção, demanda e fregueses.
“Consumir” significa hoje nem tanto proporcionar as delícias do
paladar quanto investir em sua própria afiliação social, a qual, na
sociedade de consumidores, se traduz em “possibilidade de vender”:
desenvolver qualidades para as quais já havia uma demanda de
mercado ou reciclar as qualidades que já se possui em mercadorias
cuja demanda possa ser criada. A maioria das mercadorias de
consumo oferecidas no mercado deve sua atração e seu poder de
angariar ávidos fregueses a seu valor de investimento, seja ele
genuíno ou imputado, explicitamente divulgado ou implícito. A
promessa de aumentar a atratividade e, por conseguinte, o preço de
mercado está presente – em letras grandes ou pequenas, ou pelo
menos nas entrelinhas – na descrição de todos os produtos,
incluindo aqueles que devem ser adquiridos principal ou
exclusivamente pelo puro prazer do consumidor; o consumo é um
investimento em tudo que diz respeito ao “valor social” e à
autoestima do indivíduo.
O propósito crucial, talvez decisivo, do consumo (mesmo que
raras vezes explicitado com tantas palavras e menos ainda debatido
em público) na sociedade de consumidores não é a satisfação de
necessidades, desejos e vontades, mas a “comodificação” ou
“recomodificação” do consumidor: elevar o status dos consumidores
ao de mercadorias vendáveis. É por essa razão, em última
instância, que passar no teste do consumo é condição inegociável
para a admissão na sociedade que foi remodelada segundo o
mercado. Passar no teste é precondição não contratual de todas as
relações contratuais que se entrelaçam e são tecidas na rede de
relacionamentos chamada “sociedade de consumidores”. É essa
precondição, para a qual não há exceção e que não aceita recusa,
que consolida o agregado das transações entre vendedor e
comprador numa totalidade imaginada; ou, mais exatamente, que
permite que o agregado seja vivido como uma totalidade chamada
“sociedade” – entidade a que se pode atribuir a capacidade de
“fazer exigências” e coagir os atores a obedecê-las –, o que lhe
confere o status de “fato social” no sentido durkheimiano.
Os membros da sociedade de consumidores são eles próprios
mercadorias de consumo, e é a condição de mercadoria de
consumo que os torna membros legítimos dessa sociedade. Tornarse e continuar a ser uma mercadoria vendável é o mais forte motivo
das preocupações do consumidor, mesmo que ele em geral seja
latente e poucas vezes consciente, muito menos declarado. É por
seu poder de aumentar o preço de mercado do consumidor que a
atratividade dos bens de consumo – os atuais ou potenciais objetos
de desejo que desencadeiam as ações do consumidor – tende a ser
avaliada. “Fazer de si uma mercadoria vendável” é um trabalho do
tipo “faça você mesmo” e também uma tarefa individual.
Observemos: “fazer de si”, não tornar-se, é o desafio e a tarefa.
Ser membro da sociedade de consumidores é uma tarefa
assustadora e uma luta dolorosa e interminável. O medo de não
conseguir se conformar é superado pelo temor da inadequação,
mas nem por isso é menos apavorante. Os mercados de consumo
são ávidos por lucrar com esse medo, e as empresas que produzem
bens de consumo competem pelo status de guias e auxiliares mais
confiáveis no interminável esforço de seus clientes para enfrentar o
desafio. Elas fornecem “as ferramentas”, os instrumentos
necessários
ao
trabalho
individualmente
realizado
de
“autofabricação”.
Os produtos que elas representam como “ferramentas” de uso
individual no processo de tomada de decisão são na verdade
decisões tomadas por antecedência. Foram feitas sob encomenda
muito antes de o indivíduo confrontar-se com o dever (representado
como oportunidade) de decidir. É absurdo pensar nessas
ferramentas como se fossem capazes de possibilitar a escolha
individual do propósito. Esses instrumentos são cristalizações da
irresistível “necessidade” – que, agora como antes, os seres
humanos devem aprender a usar e a obedecer, e aprender a usar
para obedecer a fim de serem livres.
Será que o desconcertante sucesso do Facebook não é
consequência de ele fornecer uma feira em que a necessidade pode
encontrar-se todo dia com a liberdade de escolha?
26 DE FEVEREIRO DE 2011
Sobre construir fortalezas sob estado de
sítio
Pat Bertroche, concorrendo ao Congresso americano pelo Partido
Republicano do estado de Iowa, propôs em seu blog
(http://affordance.typepad.com) que os imigrantes ilegais deveriam
ter microprocessadores implantados no corpo: afinal, explica ele,
posso implantar um microprocessador no corpo de meu cachorro se
quiser saber onde ele está. Por que não fazer o mesmo com os
ilegais? É mesmo, por que não?
Em recentes reportagens de jornalistas europeus sobre os
pesados choques entre manifestantes pró-democracia e forças
favoráveis aos regimes ditatoriais por todo o mundo árabe, dois
tipos de informação tiveram lugar de honra. Um deles foi a sorte dos
cidadãos dos países de onde vinham as reportagens: suas vidas
corriam perigo; deveriam ser levados assim que possível para longe
dos conflitos, da costa sul para a costa norte do Mediterrâneo; essa
era a tarefa mais urgente do governo, qualquer atraso seria
criminoso. O outro era o perigo de que a costa norte do
mediterrâneo fosse inundada por refugiados lutando para salvar
suas vidas das guerras civis que espocavam na costa sul; essa era
a tarefa mais urgente do governo, qualquer atraso seria criminoso.
Foi possível ouvir suspiros de alívio profundos em duas
reportagens transmitidas em simultâneo, provenientes de uma Líbia
encharcada de sangue: uma sobre um barco lotado de cidadãos
britânicos evacuados, atracando em Valetta; outra sobre multidões
de líbios correndo em busca de abrigo – mas em direção às
fronteiras do Egito e da Tunísia. A primeira reação do governo
italiano às notícias sobre a mudança de regime na Tunísia foi enviar
novas unidades da Marinha para vigiar o acesso à ilha italiana de
Lampedusa e evitar a entrada de tunisianos em busca de asilo.
Agora, François Fillon, primeiro-ministro francês, anunciou que
seu país enviará dois aviões com ajuda médica para a cidade
libertada de Benghazi. Belo gesto, pode-se dizer, testemunha de
nossa solidariedade aos galantes guerreiros pela democracia e de
nossa disposição de nos juntar a eles na batalha. Quer dizer, caso a
notícia não fosse acompanhada pela explicação do próprio Fillon:
essa é uma das medidas destinadas a deter a onda de imigrantes
que ameaça inundar os países do Mediterrâneo. A melhor maneira
de detê-la é garantir que a situação na Líbia se estabilize logo.
Seria fácil, mas errado, explicar essas atitudes como eventos
extraordinários ou medidas de emergência. Por quase duas
décadas a política dos países signatários do Acordo de Schengen,
no lado norte do Mediterrâneo, tem sido “terceirizar” a detenção e o
confinamento de potenciais imigrantes em seus territórios nativos ou
nas vizinhanças imediatas, na costa sul. Em quase todos os casos,
os “acordos bilaterais” foram assinados ou implantados
extraoficialmente com regimes tirânicos e corruptos, lucrando – com
as gangues de contrabandistas inescrupulosos – com a miséria dos
empobrecidos e perseguidos exilados, milhares dos quais jamais
conseguiram atravessar o mar nos botes superlotados e sem
condições de navegabilidade fornecidos pelas gangues.13
No entanto, não se pode deixar de observar que o rigor usual das
leis europeias de imigração e asilo agora se torna mais pesado; e
que a postura inflexível adotada em relação a pessoas em busca de
asilo, quer tenham obtido êxito em seu pleito, quer sejam apenas
imigrantes potenciais, está se tornando ainda mais severa – tudo
isso sem ligação com o nervosismo que se espalha da Tunísia ao
Bahrein. Sobre o súbito enrijecimento da postura em relação aos
forasteiros que há pouco se transformaram em franceses ou
francesas, Eric Fassin, distinto antropólogo e sociólogo, comenta no
Le Monde de hoje que o propósito é fazer com que todos os outros
franceses e francesas “esqueçam a derrota das políticas do
presidente em todas as frentes – do (decrescente) poder de compra
à (crescente) insegurança”; e, em particular, usar a política de
identidade nacional para ocultar a substituição da previdência social
por uma caótica política de mercado.
Nada de novo nisso tudo, com certeza. Os forasteiros de dentro
(em especial aqueles que estão domesticados) e os forasteiros que
estão no portão (em particular aqueles que têm boas razões para
que se permita sua entrada) foram agora firmemente estabelecidos
no papel de suspeitos habituais. Sempre que há um inquérito
público sobre outro crime ou contravenção, uma falha ou fiasco nos
círculos governamentais, esses forasteiros são levados às
delegacias, filmados e exibidos na TV com avidez e a mesma
frequência com que se mostra o avião sequestrado atingindo as
torres do World Trade Center.
A escolha dos problemas de segurança interna provocados por
imigrantes como tarefa mais urgente do governo francês logo foi
seguida pela decisão de colocar os maiores figurões no comando
dos Ministérios de Relações Exteriores, Interior e Defesa. O
significado dessa reorganização foi prontamente explicitado pelo
presidente de uma forma que não deu espaço à imaginação: “Meu
dever como presidente da República é explicar o que está em jogo
no futuro, mas acima de tudo proteger o presente dos franceses”, e
foi por isso que ele decidiu “reorganizar os ministérios que tratam de
nossa diplomacia e de nossa segurança”. Assim, nomeou pessoas
“preparadas para confrontar eventos futuros cujo curso ninguém
pode prever”.
Nos bons tempos de 2003 e 2004, quando o preço das ações e
dos imóveis se encontrava nas alturas, os números do PIB subiam
enquanto os do desemprego se mantinham estáveis, as carteiras no
bolso da classe média e dos que nela esperavam ingressar ainda
estavam estufadas de cartões de crédito, a voz de Nicolas Sarkozy
se acalorava quando ele falava do “islã da França”, da diversidade
do país, do multiculturalismo e até de ação afirmativa ou
discriminação positiva – e de seu papel em garantir a paz e a
amizade nos banlieues. Ele não tinha paciência com os populistas
que consideravam o islã um fenômeno peculiarmente suspeito, a
exigir atenção cuidadosa.
Em seu livro La République, les religions, l’espérance (publicado
em 2004), Sarkozy afirmava que o islã era uma das grandes
religiões, que a França de 2004 não era mais um país apenas
católico, que precisava se transformar numa nação multicultural; e
que em vez de assimilação seria melhor falar da (e preocupar-se
com a) integração, um problema bastante diverso: ao contrário do
postulado da “assimilação”, hoje abandonado, a política de
integração não exigia que os recém-chegados renunciassem àquilo
que eram.
Mesmo em 2008, quando nuvens sombrias já cobriam os
famosos céus azuis da França, o presidente, como nos lembra Eric
Fassin, condenou com ênfase o princípio da “consanguinidade”,
exigindo que fosse substituído pelo da “igualdade de
oportunidades”, apontando que “o melhor remédio contra o
comunitarismo [communautarisme, no discurso francês, o conceito
de uma população dividida em comunidades autônomas, em parte
fechadas em si mesmas e autogovernadas] é a República cumprir
sua promessa”.
Bem, o jogo agora é muito diferente. Tudo começou no início de
2010, com alarido e gritaria, depois que os roma se estabeleceram
em Grenoble (já relembrei esse episódio antes). Os roma são os
primeiros dos primeiros no que se refere aos suspeitos habituais,
não são? Mas os incidentes que os envolveram revelaram-se
simples hors-d’oeuvres: mais especificamente, aperitivos. A
presunção de simetria entre ceux qui arrivent (“os que chegam”) e
ceux qui accueillent (“os que acolhem”), que pouco tempo antes
fundamentava os pronunciamentos transmitidos a partir dos prédios
do governo, quase desapareceu. Não é mais uma medida de
respeito exigida por ambos os lados. O respeito agora se deve
unicamente à França, e mostrar respeito é dever dos accueillis
(“recebidos”) – se bem ou mal recebidos, realmente não importa.
A comunidade francesa (o que quer que isso signifique), assim
proclamam os anúncios, não quer mudar seu modo de viver, seu
estilo de vida. Mas a condição não escrita para os “recebidos”, se
desejam manter essa condição, é que mudem seu modo de vida,
quer queiram ou não. E, confirmando o hábito já observado como a
marca registrada da hipocrisia pelo grande Albert Camus (um
francês cuja contribuição pessoal à glória de seu país de eleição
não é menor que nenhuma outra), o mal novamente é feito em
nome do bem, a discriminação é promovida em nome da igualdade,
a opressão, em nome da liberdade. Por exemplo: “Não queremos
comprometer o direito de as garotinhas frequentarem as escolas.”
Um tema espinhoso, sem dúvida. É por isso que slogans como
“sem tolerância com os inimigos da tolerância” ou “sem liberdade
para os inimigos da liberdade” parecem tão convincentes. Eles
apresentam como provas o que ainda está por ser provado,
evitando a questão de saber se aqueles cuja condenação e
exclusão tais slogans pretendem legitimar são de fato culpados das
transgressões de que os acusam; e omitem o problema do direito de
processar ao mesmo tempo que buscam encobrir uma fusão ilegal
entre os papéis de promotor e juiz.
Mas será que a proibição do uso de véus nas escolas ajudou a
reforçar o direito de as garotinhas as frequentarem? André Grjebine,
do Sciences Po-Centre d’Études et de Recherces Internationales,
afirma na mesma edição do Le Monde (“Abrir-se ao outro: sim. À
sua ideologia: não”) que “a alteridade, em geral percebida como
fonte de abertura espiritual, também pode ser portadora de
fundamentalismo, obscurantismo e fechamento”; mas será que ele
não concordaria que sua ordem de raciocínio, com toda a aparência
de imparcialidade e da intenção sine ira et Studio (sem ódio e sem
preconceito), já é um julgamento por direito próprio (e, além disso,
como diria John Langshaw Austin, “uma declaração performativa”,
ou uma “perlocução”), só que disfarçada? Ele não mencionou,
afinal, que “o fechamento espiritual”, por alguns percebido como
portador de identidade e segurança, é exatamente a mesma fonte
de fundamentalismo e obscurantismo – uma conexão pelo menos
tão real quanto aquela que ele preferiu destacar. Tampouco disse
ele que, embora a presença da abertura espiritual possa empurrar
outras pessoas para o fechamento, a ausência de abertura é a
marca invariável e infalível de todo e qualquer fundamentalismo.
Com muita frequência, a abertura estimula, promove e alimenta a
abertura – enquanto o fechamento estimula, promove e alimenta o
fechamento.
Amin Maalouf, autor libanês estabelecido na França e que
escreve em francês, faz considerações sobre a reação das
“minorias étnicas”, ou seja, dos imigrantes, às pressões culturais
conflitantes a que estão sujeitas no país para o qual vieram. A
conclusão de Maalouf é que, quanto mais os imigrantes sintam que
as tradições de sua cultura original são respeitadas no país de
adoção, e quanto menos sejam detestados, odiados, rejeitados,
intimidados, discriminados e mantidos a distância em razão de sua
identidade diferente, mais atraente lhes parecerá a cultura do novo
país, e menos irão afirmar sua própria distinção. As observações de
Maalouf, supõe ele, são de fundamental importância para o futuro
do diálogo intercultural. Elas confirmam nossas suspeitas e
conjecturas anteriores: há uma correlação estrita entre a falta de
ameaça percebida por um dos lados e o “desarmamento” do tema
das diferenças culturais pelo outro – isso é resultado da superação
dos impulsos que levam à separação cultural e da concomitante
disposição de participar da busca de uma humanidade comum.
Com muita frequência, é a impressão de estar sendo mal
recebido e de ser culpado sem que se tenha cometido nenhum
crime – além da sensação de ameaça e incerteza (de ambos os
lados da suposta linha de fronteira, tanto entre os imigrantes quanto
entre a população nativa) – que constitui o principal e mais potente
estímulo à suspeita mútua, seguida pela separação e a quebra da
comunicação, enquanto a teoria do multiculturalismo degenera na
realidade do “multicomunitarismo”.
As diferenças culturais, sejam elas importantes ou triviais,
evidentes ou apenas perceptíveis, adquirem dessa forma o status
de matérias-primas para a construção de plataformas e lançadores
de foguetes. “Cultura” vira sinônimo de fortaleza sitiada; e espera-se
que os habitantes dessa fortaleza manifestem sua lealdade todo dia,
que abram mão de qualquer contato com o mundo exterior, ou pelo
menos os reduzam drasticamente. A “defesa da comunidade” ganha
prioridade sobre qualquer outro dever. Sentar-se à mesa com
“estranhos”, frequentar lugares conhecidos como reduto e domínio
de forasteiros, nada ter a dizer sobre namoros e matrimônios com
parceiros cuja origem está além das fronteiras da comunidade
tornam-se marcas de traição e base para ostracismo e exílio. As
comunidades que funcionam sobre esses fundamentos tornam-se
sobretudo os veículos da maior reprodução de divisões e do
aprofundamento da separação, do isolamento e da alienação.
O sentimento de segurança e a autoconfiança daí resultante, por
outro lado, são os inimigos das comunidades que têm a mentalidade
de gueto e erguem barreiras de proteção. O sentimento de
segurança transforma o terrível poder do oceano que “nos” separa
“deles” numa piscina atraente e convidativa. O precipício assustador
que divide a comunidade de seus vizinhos dá lugar a uma suave
planície que convida a caminhadas frequentes e movimentos livres.
Não admira que os primeiros sinais de dispersão do medo que aflige
uma comunidade causem consternação entre os defensores do
isolamento comunal; conscientemente ou não, eles têm interesse
em que os mísseis inimigos permaneçam onde estão, apontados
para os muros que protegem a comunidade. Quanto maior o sentido
de ameaça e mais pronunciado o sentimento de incerteza que ele
causa, mais estritamente os defensores cerram fileiras e mantêm
suas posições, pelo menos para o futuro previsível.
Um sentimento de segurança de ambos os lados da barricada é
condição essencial para o diálogo entre culturas. Sem ele, a chance
de que as comunidades se abram umas às outras e deem início a
um intercâmbio que as enriqueça, ao fortalecer a dimensão humana
de seus vínculos, é reduzidíssima, para dizer o mínimo. Com ele,
por outro lado, as perspectivas para a humanidade são otimistas.
O que está em jogo aqui é a segurança num sentido muito mais
amplo do que a maioria dos porta-vozes do “multiculturalismo” – que
permanecem num acordo tácito (ou mesmo não intencional,
involuntário até) com os defensores da separação comunal – está
pronta a admitir. O estreitamento da questão da incerteza geral para
os perigos reais ou imaginários de uma separação cultural
bifacetada é um equívoco perigoso, desviando a atenção das raízes
da desconfiança e do desacordo mútuos.
Acima de tudo, as pessoas almejam hoje um senso de
comunidade, na esperança (equivocada) de que este lhes
proporcione um refúgio em que possam abrigar-se da maré
montante do torvelinho global. Essa maré, contudo, não pode ser
mantida a distância nem pelos maiores quebra-mares comunitários;
ela vem de lugares longínquos, e nenhum poder local é capaz de
vigiá-la, muito menos de controlá-la. Em segundo lugar, em nossa
sociedade intensamente “individualizante” e “individualizada”, a
incerteza humana tem raízes num abismo profundo entre a condição
da “individualidade de direito” e a pressão para atingir a
“individualidade de fato”.
As comunidades circunvizinhas cercadas não vão ajudar a
superar esse abismo, e ele sem dúvida irá dificultar para muitos
membros da comunidade a travessia para o outro lado: a condição
de indivíduo de fato, capaz de autodeterminação, e não apenas no
papel. Em vez de se concentrar nas raízes e causas da incerteza
que hoje aflige as pessoas, o “multiculturalismo” afasta delas a
atenção e a energia. Nenhum dos lados das guerras em curso entre
“eles e nós” pode ter a expectativa séria de que, em decorrência de
uma vitória, volte a segurança tão desejada e há tanto tempo
perdida; em vez disso, quanto mais absortos estiverem todos no
planejamento de futuras refregas no campo de batalha multicultural,
mais se tornarão alvo fácil e lucrativo para os poderes globais – os
únicos capazes de lucrar com o fracasso da laboriosa tarefa de
construir uma comunidade humana e estabelecer o controle humano
conjunto de sua própria condição e das circunstâncias que lhe dão
forma.
Com muita frequência, são duas misérias que se confrontam no
campo de batalha dos conflitos tribais, essa lamentável e luxuosa
réplica, para o homem pobre, das guerras haute couture de
emancipação. Podem-se entender os que são miseráveis, mesmo
lamentando sua sina de se verem atraídos para uma miséria ainda
mais profunda pela confusão acerca de causas e remédios. Com
uma dose de boa vontade, essa compreensão pode se transformar
em perdão. Isso dificilmente se aplica, contudo, aos que ganham
com a confusão dos miseráveis. Como diz Richard Rorty,
escrevendo sobre o caso americano, um pouco, mas não de todo
diferente da variedade europeia:
O objetivo será manter a atenção dos proletários longe dali – manter os 75% dos
americanos e os 95% da população mundial que estão na base da pirâmide ocupados
com hostilidades étnicas e religiosas, com debates sobre costumes sexuais. Se os
proletários puderem se distrair de seu próprio desespero por pseudoeventos criados
pela mídia, incluindo guerras breves e sangrentas, os super-ricos pouco terão a
temer.14
Como mostra a experiência recente, deixando pouca margem à
dúvida, os super-ricos fariam qualquer coisa, ou quase, para não ter
muito a temer em relação aos proletários.
27 DE FEVEREIRO DE 2011
Sobre o sonho americano: é hora de
obituários?
Isso foi o que Frank Rich escreveu no New York Times de hoje:
A maior prioridade dos radicais de hoje na política americana não é equilibrar os
orçamentos do governo, mas travar uma guerra ideológica tanto em Washington
quanto nas capitais dos estados. Os poucos dólares que seriam economizados com
os cortes propostos de gastos federais nos programas Planned Parenthood e Head
Start não reduzem o déficit; os cortes apenas atingem programas que a direita
abomina. No Wisconsin, onde os funcionários estaduais capitularam diante das
exigências de concessão financeira de parte do governador Scott Walker, a única
tarefa que resta aos republicanos radicais é destruir o direito de negociação coletiva
dos trabalhadores.
Isso não significa que não haja uma missão fiscal na agenda da direita, tanto em
âmbito nacional quanto local – apenas a missão nada tem a ver com a redução do
déficit. O verdadeiro objetivo é recompensar os patrocinadores mais ricos do Velho e
Bom Partido [Partido Republicano] mutilando o que sobrou das organizações
trabalhistas, destruindo as agências governamentais encarregadas de regular e
fiscalizar as grandes empresas e, como sempre, premiando os mais ricos com novos
cortes em seus impostos. A equação da falência moral codificada na era Bush – de
que os cortes de impostos no topo da pirâmide eram uma prioridade ainda maior que
o pagamento de duas guerras – agora é um dado. Os antigos valores fundamentais
americanos de sacrifício comum e igualdade de oportunidades econômicas foram
aniquilados.
Fosse eu escrever um réquiem para o sonho americano (pelo
menos tal como ele é sonhado por nós, vendo os Estados Unidos de
fora, com um misto de esperança e desespero), e não conseguiria
fazer melhor. E fico imaginando quem poderia. Embora o fato de
ainda haver pessoas que pensam e escrevem como Frank Rich me
permita indagar se o anúncio da morte do “sonho americano” não
seria, afinal e apesar de tudo, um pouco prematuro.
Seria muito bom se assim fosse. Mas por quanto tempo?!
a) O carro de Jagrená (no hindu, Jagannãth, “senhor do mundo”) transporta anualmente
um ídolo de Krishna pelas ruas; sob suas rodas se atiram seguidores que são por ele
esmagados. Bauman refere-se aqui à metáfora criada por Anthony Giddens para
caracterizar a modernidade (Anthony Giddens, As consequências da modernidade, São
Paulo, Unesp, 1991). (N.T.)
b) Silar Maner, personagem de O tesouro de Silas Marner, de George Elliot, que consegue
não gastar nada do que recebe e que à noite conta seu tesouro. (N.T.)
• Março de 2011 •
1º DE MARÇO DE 2011
Sobre o último sonho e o testamento de
H.G. Wells, e os meus também
Na Introdução extraordinariamente inteligente, erudita e perspicaz
de John Clute à recente edição do livro de H.G. Wells, The Shape of
Things to Come,1 de tremendo impacto na época de seu
lançamento, mas agora quase esquecido, lemos que, em seus
últimos anos, bem depois da traumática experiência da Primeira
Guerra Mundial, que deixou em ruínas o mundo do século XIX e
minou os alicerces da visão whig da história (tanto do passado
quanto do futuro), Wells “ficou deslocado”. Ele e seus companheiros
sofredores de geração se viram marcados pela crueldade, pela
inutilidade e pelo absurdo brutais e desavergonhados, dessa guerra,
e essa marca nunca iria se apagar. Mas, para Wells em particular,
ficar deslocado das pressões da história era estar fora de seu
projeto central, que ele pretendia endereçar a todas as pessoas
dotadas de talento mental no mundo civilizado. O projeto consistia
em mostrar o tipo de confusão em que o planeta havia se metido e
apontar o caminho a seguir.
Wells se agarrava com teimosia à sua crença de que havia e
sempre haverá “um caminho a seguir”, não importa quão numerosos
sejam os empecilhos, obstáculos, estorvos e reações que se
possam acumular diante dos seres humanos que ousaram (estavam
destinados a?) segui-lo. Ele nunca desistiu de seu projeto, insiste o
autor da Introdução (esse formidável exercício de atualizar a
capacidade do livro de falar e a do leitor de entender), mas, no
período final da vida, ele se dirigiu a seu público de uma distância
cada vez maior. Wells não abandonaria a posição em que se havia
estabelecido desde o início. Após longos anos que o encheram de
desapontamentos, Wells continuou mais ou menos no mesmo lugar;
seu público-alvo é que se afastou.
Para resumir, Wells perdeu o que fora seu “senso infalível do
Zeitgeist” (espírito de época), senso que por duas décadas ou mais
havia sido, por comum acordo da opinião esclarecida, sua marca
registrada; “Wells estava fornecendo o melhor argumento possível
para o triunfo da civilização europeia”: embora, de novo, tal como
tantos de seus contemporâneos, não tenha conseguido prever a
guerra. E Wells se mostrou mais lento que muitos deles em captar o
significado dessa omissão e em contabilizar as suas baixas.
Já no meio da guerra, os textos de Wells mostram uma confiança
resoluta de que “a Europa de 1910, … depois de muita demolição e
reconstrução, poderia voltar a funcionar”. Seus romances “foram
tragicamente lentos em registrar um crescente consenso sobre a
Primeira Guerra Mundial, não apenas entre a intelligentsia, mas
também nos corações e mentes dos cidadãos ‘comuns’”; “Para os
pensadores que vieram depois, essa civilização não era uma lousa
que se pudesse apagar, uma expressão corrigível no rosto do Homo
sapiens, … mas uma máscara a disfarçar a verdadeira e pavorosa
face de todos nós.” Quanto a Wells, contudo, “para o bem e para o
mal, não lhe era possível deixar a luta. Ele não podia abandonar a
luta para nos esclarecer”. E isso a despeito de sua profunda
percepção acerca de suas próprias falhas de temperamento: pelos
lábios do dr. Philip Raven, um dos principais personagens de The
Shape of Things to Come, Wells formula o julgamento de seus
próprios defeitos e incapacidades:
Você não consegue aguentar qualquer elaboração convencional, exibições
secundárias, complexidades desnecessárias, métodos indiretos, diplomacias, ficções
jurídicas e meias mensagens discretas. … Como devem odiá-lo os homens de
negócios – se e quando chegam a ouvi-lo! Complicações constituem a vida deles.
Você tenta afastar todas essa complicações do caminho. Você é um desnudo, um
danado de um desnudo impaciente.
Quando examino os registros de meu próprio itinerário de vida e
os comparo aos de Wells, percebo que meus poucos méritos, de
forma alguma inquestionáveis, estão muito aquém dos pontos fortes
de Wells: não são páreo para a amplitude e a audácia de sua visão,
os talentos literários, o senso de vocação e a determinação de ver
sua missão cumprida. Mas tenho plena certeza de que compartilho
de suas fraquezas, tal como apresentadas uma a uma na fala do dr.
Raven. Essa irmandade em nossas falhas talvez me permita supor,
mesmo de modo hesitante e decerto com très beaucoup – en fait
toutes – proportions gardées, que haja algumas – pequenas como
possam ser – afinidades eletivas entre mim, um humilde artesão, e
ele, o grande artista.
Mas há outra justificativa para assumir a hipótese de uma
afinidade eletiva: agora não entre personagens ou realizações, mas
entre os contextos históricos em que nossos respectivos trabalhos
foram gestados e se inserem; em particular, os efeitos do
“deslocamento”, que Clute com tanta segurança identificou em Wells
– mas, creio, não menos relevantes, se é que não ainda mais fortes,
em minha própria história de vida (Wells, ao contrário de mim, foi
afinal poupado da experiência de refúgio ou exílio – tanto da
variedade “externa” quanto da “interna”). O senso de “estar
deslocado”, quando penso sobre ele, tem me acompanhado por
tanto tempo quanto me é possível recordar: um senso de estar fora
do lugar e fora da época; e, com toda a certeza, esse senso da
distância que me separa dos “homens de negócio” – uma distância
ao mesmo tempo física e espiritual, por escolha deles tanto quanto
minha.
Devo admitir que desde logo descobri na condição de “estar
deslocado” algo agradável, quando não bastante satisfatório; e,
considerando-se o motivo de meu deslocamento, também uma
escolha honesta e eticamente louvável. Antes de ler e absorver as
sugestões de Clute, eu atribuía esses sentimentos difusos, embora
ubíquos e obstinados, talvez de forma errônea, à minha
claustrofobia inata. Tanto do ponto de vista cerebral quanto do
visceral, tenho medo de multidões, horror a clamores de justiça, e
detesto os instintos e estouros de rebanho.
Meu deslocamento teve muitas faces. A experiência da infância
de ser mantido à força distanciado do mundo a que pertencia e ter
recusado o ingresso, pelo dobro do tempo, em função do exílio
durante a guerra, no mundo a que tentei em vão me juntar; depois
da volta ao lar, uma distância gradual, mas sempre crescente, entre
minhas esperanças e expectativas e o caráter repulsivo da
realidade, exacerbado pela hipocrisia dos “homens de negócio”;
uma curta permanência em outro país, desta vez com uma
experiência de estar “dentro”, mas não ser “do” lugar; e, enfim, a
outra metade da vida passada num país tão maravilhosamente
hospitaleiro em relação aos estrangeiros, embora sob a condição de
que não pretendam ser nativos.
Até agora, contudo, essa foi uma lista de deslocamentos, por
assim dizer, topográficos. Talvez (quem pode dizer com certeza,
com a mão no coração) resultante de uma predisposição formada
pela série de deslocamentos “topográficos”, uma variedade mais
séria de deslocamento, e decerto mais intimamente relacionada à
de Wells, marcou e marca meu perfil profissional: minha própria
versão de “deslocamento em relação ao Zeitgeist”.
Sendo Wells e eu separados por duas gerações, as
manifestações de um deslocamento semelhante tendem, contudo, a
diferir – na verdade, a ser quase opostas. O deslocamento de Wells
forçou-o a lutar para preservar a autoconfiança do tipo “nós
podemos fazer” que caracterizou o Iluminismo, a modernidade e a
modernidade iluminista em relação ao Zeitgeist de uma catástrofe
iminente, de uma segunda queda e do Apocalipse final. (“É possível
esquecer agora, setenta anos depois, como era profundamente
deprimido o nosso mundo em 1913, como pareciam grandes as
possibilidades negativas com respeito à sobrevivência da
civilização”, como diz Clute.) Minha variedade de deslocamento, por
outro lado, manifestava-se na resistência ao Zeitgeist imprevidente
do admirável mundo novo; o mundo satisfeito consigo mesmo, frio e
insensível; um mundo que acreditava não haver alternativa,
satisfeito por viver na incerteza e, assim, tendente a ver a segunda
queda como a segunda vinda, e a fingir que “pode fazê-lo”, ao
mesmo tempo em que faz o possível para evitar fazer aquilo que
ansiava e exigia ser feito a fim de preservar e redimir suas vítimas
intencionais e suas baixas colaterais.
Em suma, Wells lutou, apesar de todas as dificuldades, para
preservar sua autoconfiança. O que tentei fazer foi preservar nossa
autocrítica; apesar de todas as chances e pretensões em contrário,
foi minar ou pelo menos enfraquecer nossa presunção. Wells
procurou a área iluminada sob as nuvens sombrias; eu tentei revelar
as rochas escuras e as marés negras que espreitam por trás dos
faróis brilhantes, mas improvisados, ad hoc e efêmeros.
E no entanto… O espírito da época deve ter dado uma guinada
de 180 graus, protagonistas e antagonistas podem ter mudado de
lado, mas o que toda aquela turbulência não conseguiu fazer foi
cortar mais um elo que sustenta a hipótese de uma afinidade eletiva.
Aqui está ele, a declaração de despedida escrita por Wells nas
páginas finais de The Shape of Things to Come em nome do “último
governo da Terra”, sua última palavra e seu pedido de desculpas por
ter deposto as armas, a ser divulgado quando este chegasse à
conclusão de que “não havia mais nada que o governo pudesse
fazer” (uma declaração, recordemos, elaborada por H.G. Wells nas
profundezas de um desespero que se espalhava pelo mundo):
Este é o dia, esta é a hora do alvorecer para a humanidade unida. O Martírio do
Homem chegou ao fim. De um polo a outro não resta agora um único ser humano no
planeta sem uma boa perspectiva de autorrealização, saúde, influência e liberdade.
Não há mais escravos; nem pobres; nem pessoas destinadas de nascença a uma
condição inferior; nem sentenciadas a longos e inúteis períodos de encarceramento;
nem doentes da mente ou do corpo que não sejam ajudados por todos os poderes da
ciência e os serviços de guardiães interessados e capazes. O mundo inteiro está
diante de nós para seguirmos nossa vontade, na medida de nossos poderes e de
nossa imaginação. A luta pela existência material chegou ao fim. Foi vencida. A luta
pela verdade e a indescritível necessidade que é a beleza começa agora, sem o
estorvo de nenhum imperativo da luta inferior. Ninguém precisa viver menos ou ser
menos que o seu máximo.
Defendendo
a
mudança
no
auge
da
celebração
autocongratulatória de um mundo caracterizado por uma opulência
e um conforto sem precedentes, eu teria de fazer muito esforço se
precisasse acrescentar ou retirar uma única sentença dessa
descrição de um mundo em que vale a pena viver e pelo qual vale a
pena lutar. Mas não senti essa necessidade. E ainda não sinto.
• Notas •
Dezembro de 2010 (p.71-129)
1. Ulrich Beck, A God of One’s Own, Polity Press, 2010, p.68.
2. Ibid., p.86-7.
3. Robert Pawlik, Kronos 2, 2010, p.44.
4. Outros estudiosos chegaram a limites diferentes, por vezes o dobro dos de Dunbar.
Segundo um recente verbete da Wikipédia, “os antropólogos H. Russell, Peter Killworth et
al. realizaram uma variedade de estudos de campo que resultaram num número médio de
vínculos – 290 – que constitui aproximadamente o dobro da estimativa de Dunbar. A
mediana de Bernard-Killworth, de 231, é inferior, graças ao erro para cima na distribuição:
ela ainda é incrivelmente mais ampla que a estimativa de Dunbar. A estimativa de BernardKillworth sobre a probabilidade máxima do tamanho da rede social de uma pessoa baseiase numa série de campos de estudos que usam diferentes métodos em várias populações.
Não se trata de uma média das médias de estudo, mas de uma descoberta repetida. Não
obstante, o número de Bernard-Killworth não foi tão amplamente popularizado quanto o de
Dunbar. Ao contrário das pesquisas já citadas, que se concentram em grupos de diversas
populações humanas contemporâneas, os objetos principais dos estudos de campo e dos
arquivos de Dunbar, assim como dos fornecedores dos dados brutos a partir dos quais se
calculou o número de Dunbar, foram populações de primatas e do pleistoceno; desse
modo, a proposta de Dunbar – de que, dada a estrutura do neocórtex compartilhada pelos
primatas e por seus parentes humanos mais jovens, o tamanho da horda primitiva
estabelece limites para o número de “relacionamentos significativos” segundo as
necessidades humanas – deve ser considerada um pressuposto e não uma descoberta
corroborante.
5. Tony Judt, Ill Fares the Land, Penguin, 2010, p.175.
6. Disponível
em: www.controlacrisi.org/joomla/index.php?option=com_content&
view=article&id=10464&catid=39&Itemid=68; acesso em junho de 2010.
Janeiro de 2011 (p.130-79)
1. Walter Benjamin, “Theses on the philosophy of history”, in Hannah Arendt (org.),
Illuminations: Essays and Reflections, Nova York, Schoken, 1968, p.257-8.
2. Amartya Sen, The Idea of Justice, Cambridge, Harvard University Press, 2009.
3. Günther Anders, Le temps de la fin, Paris, L’Herne, 2007, p.52-3.
4. Roger Kimball, “Becoming Elias Canetti”, New Criterion, set 1986.
Fevereiro de 2011 (p.180-244)
1. Henry A. Giroux, “Youth in the era of disposability”, disponível em: http://
bad.eserver.opgr/issues/2011/Giroux-Youth.html.
2. Michel Agier, “Le coulouir des exilés”. Être étranger dans un monde commun,
Bellecombe-en-Bauges, Éditions du Croquant, 2011.
3. T.R. Malthus, An Essay on the Principle of Population, Nova York, Oxford University
Press, 1999 [1798], p.61 (trad. bras., Ensaio sobre a origem da população, São Paulo,
BestSeller, 1996).
4. Esta citação e as seguintes foram extraídas de Leon Shestov, Athens and Jerusalem,
Athens, OH, Ohio University Press, 1966, p.424-6, 68-9.
5. Êxodo 4.
6. Carl Schmitt, Politische Theologie, p.19-21, grifos nossos; ver debate in Giorgio
Agamben, Homo Sacer, Stanford, Stanford University Press, 1998, p.15s.
7. Essa particular acusação de roubo, como a maioria das que foram feitas e
contestadas durante a “Corrida do Ouro” na Califórnia, a partir de 1849, não encontrou uma
solução definitiva nos tribunais; mas a internet, no começo do século XXI, tal como a
Califórnia em meados do século XIX, era um lugar singularmente sem leis, sem
propriedade privada, taxas de licenciamento ou impostos, e – no caso da Califórnia – com
pessoas armadas no papel de juízes e policiais.
8. Disponível em: http://mashable.com/2011/02/23/social-media-culture/.
9. Ver Paul Lewis, “Teenage networking websites face anti-paedophile investigation”,
Guardian, 3 jul 2006.
10. Eugène Enriquez, “L’Idéal type de l’individu hypermoderne. L’individu pervers?”, in
Nicole Aubert (org.), L’individu hypermoderne, Toulouse, Érès, 2004, p.49.
11. In Die Angestellen, publicado pela primeira vez como uma série de ensaios na
revista Frankfurter Allgemeine Zeitung, em 1929, e como livro pela Suhrkamp, 1930. Aqui,
apud Siegfried Kracauer, The Salaried Masses: Duty and Distraction in Weimar Germany,
Londres, Verso, 1998, p.39.
12. Germaine Greer, The Future of Feminism, Maastricht, Studium Generale Maastricht,
2004, p.13.
13. Entre os mais recentes resumos da situação imediatamente anterior à explosão de
distúrbios nos países árabes, ver Alain Morice e Claire Rodier Le Monde Diplomatique, jun
2010.
14. Ver Richard Rorty, Achieving Our Country, Cambridge, MA, Harvard University
Press, p.88.
Março de 2011 (p.245-50)
1. H.G. Wells, The Shape of Things to Come, Londres, Penguin, 2005 [1993].
Título original:
This Is Not a Diary
Tradução autorizada da primeira edição inglesa,
publicada em 2012 por Polity Press,
de Cambridge, Inglaterra
Copyright © 2012, Zygmunt Bauman
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As citações da obra O caderno, de José Saramago (São Paulo: Companhia das Letras,
2009), foram aqui reproduzidas com a autorização da editora.
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A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de
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Preparação: Angela Ramalho Vianna | Revisão: Vania Santiago, Joana Milli
Capa: Sérgio Campante | Fotos da capa: © WIN-Initiative/Getty Images;
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Edição digital: julho 2012
ISBN: 978-85-378-0895-5
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