Horacio Quiroga
no Brasil: os
“efeitos da língua”
1
Wilson Alves-Bezerra
Recebido em: 20 de março de 2017
Aceito em: 14 de julho de 2017
1
Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada no 15º Congresso Brasileiro de Professores
de Espanhol, em 26 de julho de 2013, na cidade
de Recife/PE - Brasil. O presente artigo situa-se,
por um lado, no campo mais amplo de minhas
pesquisas sobre a obra de Horacio Quiroga, como
o livro Reverberações da Fronteira em Horacio
Quiroga (Humanitas/Fapesp, 2008) e, por outro, nos meus estudos sobre o portunhol (principalmente (Alves-Bezerra, 2005, 2008a, 2008b,
2016). Sobre a elaboração em torno ao portunhol, remeto os interessados a estes meus trabalhos anteriores, embora faça algumas referências
teóricas a ele neste trabalho.
Wilson Alves-Bezerra
Professor do Departamento de
Letras da Universidade Federal
de São Carlos (UFSCar), onde
atua na graduação e no mestrado.
Doutor em Literatura Comparada
pela Universidade Estadual
do Rio de Janeiro (UERJ) e
mestre em Literatura HispanoAmericana pela Universidade de
São Paulo (USP), onde também
se graduou. Sua tradução de
Pele e osso, de Luis Gusmán, foi
finalista do Prêmio Jabuti 2010,
na categoria Melhor tradução
literária espanhol-português.
Contato: wilson.alves.bezerra@
gmail.com
Caracol, São Paulo, N. 14, jul./dez. 2017
vária
palavras-chave: Horacio
Quiroga; Monteiro Lobato;
vanguardas; Realismo;
portunhol.
Resumo: Este artigo analisa a única visita que o escritor uruguaio
Horacio Quiroga (1878-1937) fez ao Brasil, em 1922.
Considerando a importância daquele ano para a literatura brasileira –
pois é nele que acontece a Semana de Arte Moderna –, reconstróise o contexto e os diálogos literários que o escritor estabelece no
Brasil: seu principal interlocutor é Monteiro Lobato (1882-1948),
o então diretor da Revista do Brasil e responsável pela introdução
da obra de Quiroga no país. Recuperam-se e analisam-se as cartas
inéditas trocadas entre os dois escritores e, para além dos diálogos
e do credo literário de Quiroga e Lobato, busca-se avaliar a tensão
entre a estética vanguardista e a realista que estava em jogo no debate
intelectual de então.
Keywords: Horacio Quiroga;
Monteiro Lobato; avantgarde movements; Realism;
portunhol.
Abstract: This article analyzes the only time the Uruguayan writer
Horacio Quiroga (1878-1937) visited Brazil, in 1922.
Considering the importance of that year for the Brazilian literature - for
it is when the Modern Art Week took place - it reconstructs the
context and literary dialogues the writer established in Brazil: his main
interlocutor was Monteiro Lobato (1882-1948), the then director
of the Jornal do Brasil, responsible for introducing Quiroga’s work
there. The unpublished letters exchanged between the two writers
are recovered and analyzed. In addition to the dialogues and literary
beliefs of Quiroga and Lobato, we intend to evaluate the tension
between avant-garde and realistic aesthetics which was at stake in the
intellectual debate back then.
371
Caracol, São Paulo, N. 14, jul./dez. 2017
Horacio Quiroga no Brasil: os “efeitos da língua”
Wilson Alves-Bezerra
O contista uruguaio Horacio Quiroga (1878-1937) era escritor maduro e
popular na Buenos Aires dos anos vinte: reconhecido por sua obra narrativa,
já publicara dois livros que o consagraram: Cuentos de amor de locura y de
muerte (1917) e Los desterrados (1926). Entretanto – ou talvez por isso
mesmo – encontrava resistência à sua obra de parte dos jovens escritores
portenhos ditos de vanguarda: não queriam saber dele os imberbes Jorge
Luis Borges (1899-1986), Adolfo Bioy Casares (1914-1999) e Oliverio
Girondo (1891-1967), que se empenharam em desautorizá-lo desde os
epitáfios satíricos da revista Martín Fierro (1924-8) até os diários íntimos
da maturidade (cf. Bioy Casares, 2001, 2011). E muito embora Quiroga
tivesse relações com o Brasil, no caso das vanguardas brasileiras acontecia
algo semelhante: um silêncio revelador. Quiroga esteve no Brasil nas
últimas semanas de 1922 e, apesar da publicação de resenhas e traduções
de sua obra nas páginas da Revista do Brasil, houve pouco diálogo com o
meio intelectual brasileiro, para além do contato pessoal com Monteiro
Lobato (1882-1948), com quem trocou uma dezena de cartas.
O escritor que poderia ter estreitado laços entre a literatura brasileira e
a argentina, para além da produção vanguardista, era Mário de Andrade
(1893-1945). Pobre que era, diferentemente de Jorge Luis Borges, Oliverio
Girondo, Oswald de Andrade e Adolfo Bioy Casares, não visitou a Europa,
mas viu a Europa chegar a ele, através de alguns presentes fundamentais do
amigo Paulo Prado, como as obras de Sigmund Freud em língua francesa.
E Mário de Andrade, que viu a Europa nos livros, viu também a América
Latina, e nela viu a Argentina, com seus jovens autores – Borges e Girondo
372
Caracol, São Paulo, N. 14, jul./dez. 2017
vária
– e registrou sua grata surpresa na crônica “Clara Argentina”, publicada
no jornal A Manhã, em 26 de outubro de 1926 (cf. Artundo, 2001, cap.
3) e, posteriormente, numa série de quatro artigos intitulada “Literatura
modernista argentina”, publicada nas edições dominicais do Diário
Nacional, entre os dias 22 de abril e 20 de maio de 1928 (cf. Antelo, 1986).
Entretanto, Mário não viu a velha-guarda, não vendo, portanto, Leopoldo
Lugones e Horacio Quiroga. Possivelmente um cacoete geracional, como
já aventado em outro trabalho (Alves-Bezerra, 2004), muito embora sejam
evidentes os traços vanguardistas de parte da obra de Quiroga2.
Quem reconheceu a obra de Horacio Quiroga entre os brasileiros foi
justamente Monteiro Lobato, que por sua vez já tinha sido reconhecido
pelo poeta argentino Nicolás Olivari (1900-1966) como o precursor da
vanguarda nacional:
O iniciador da revolução foi Monteiro Lobato. Seu livro Urupés foi o grito
do Ipiranga da literatura brasileira. Criou com seus processos verbais –
híspidos, cáusticos, chocantes – em violenta contradição com a melíflua
doçura da velha prosa francesa, o nosso credo artístico, que no fundo,
2
Sobre as relações entre Brasil e Argentina nos anos 20 – englobando as figuras de Horacio
Quiroga, Monteiro Lobato e Mário de Andrade – cabe uma menção à fundadora disciplina ministrada na FFLCH/USP, em 2000, por Patricia Artundo, que viria a defender no ano seguinte,
na USP, sua tese de doutoramento Mário de Andrade y la Argentina. Frutos daquela disciplina
foram os dois artigos publicados em diálogo, na Revista USP, em 2004, ampliando debates
daquele curso: o de Maria Paula Gurgel Ribeiro, “Sobre diálogos literários: Monteiro Lobato,
Manuel Gálvez e Horacio Quiroga”, e o meu próprio, “As nacionalidades latino-americanas:
a Argentina vista à luz dos olhos de Mário de Andrade e pelas sombras de Horacio Quiroga”.
O presente artigo é, portanto, mais um desenvolvimento do diálogo daqueles anos, à luz do
acervo de cartas entre Horacio Quiroga e Monteiro Lobato, atualmente acessíveis no arquivo
do CEDAE/Unicamp.
373
Caracol, São Paulo, N. 14, jul./dez. 2017
Horacio Quiroga no Brasil: os “efeitos da língua”
Wilson Alves-Bezerra
inconscientemente, é o regionalismo. [...] Era, pois, isso: o início da grande
batalha que nós – modernistas – faríamos em seguida. (Olivari, 1925 apud
Schwartz & Lorenzo Alcalá, 1992, 250)
Perceber a continuidade entre o prosador contumaz da virada do século
e a poesia vanguardista dos anos vinte é algo digno de nota no artigo de
Olivari. Mário de Andrade não teve percepção semelhante em relação à
Argentina. Quiroga tampouco percebeu Mário de Andrade que, à época,
era, sobretudo, poeta.
Quiroga, que viveu grande parte de sua vida próximo ao Brasil, que criou
personagens brasileiros em contos como “Un peón” e “Los desterrados”,
chegou a conhecer o litoral brasileiro, urbanizado, apenas em 1922, como
parte de uma missão diplomática, no âmbito dos festejos pelo centenário
da independência brasileira. É de se notar que sua viagem aconteceu ao
longo do mês de setembro, poucos meses após a semana de Arte Moderna,
ocorrida entre os dias 11 e 18 de fevereiro.
Quando ainda se preparava para aportar em terras brasileiras, Quiroga
escreveu ao amigo epistolar Lobato e lhe reafirmou, mais que o interesse,
a necessidade de ler Os Sertões, de Euclides da Cunha, como atividade
preparatória para a visita ao Brasil. Dizia o escritor uruguaio-argentino:
En carta a Garay le hago notar lo imprescindible que me es conocer “Os
Sertões”, ya que iré a Río en setiembre. Si Vd. puede ayudarme a su vez en
esta tarea de conocer tal libro, le quedaré muito obrigado.3
3
374
Quiroga, Horacio. “Carta a Lobato”, 3 de agosto de 1922. Acervo CEDAE/Unicamp, grifos meus.
Caracol, São Paulo, N. 14, jul./dez. 2017
vária
Nota-se que a geografia brasileira é ainda um mistério para Horacio
Quiroga. A pouca relação entre os sertões brasileiros e o Rio de Janeiro
não importaram ao escritor, que considerava um imperativo conhecer tal
obra antes de explorar o território. E se por um lado é o grande escritor
realista Euclides da Cunha a quem Quiroga elege para ser seu guia, por
outro lado, na epístola já se insinua ludicamente a língua portuguesa, num
registro afetivo: “le quedaré muito obrigado”. Cabe assinalar que a oposição
entre um fundo realista e mimético – expressado no gosto pelo autor de Os
Sertões – e a forma de apropriação gozosa do idioma nacional dão a mostra
da dualidade característica da obra narrativa de Horacio Quiroga: uma
profissão de fé que não encontra cabida em sua escritura, que a exacerba.
Quiroga reconhece-se em Lobato e chega a elogiá-lo e compará-lo a si
mesmo em certo momento, considerando que ambos seriam bons autores
realistas: “Claro que es muy evidente la analogía entre Vd. yo. (...) Buenos hijos
de Kipling, al fin y al cabo.”4. O uruguaio sabia-se diante de um colega de
ofício, com quem compartilharia as narrativas curtas, os contos dirigidos
ao público infantil, o afã por publicar para além das fronteiras nacionais,
o desejo de traduzir e ser traduzido, o imperativo – enfim – de difundir a
literatura pela palavra impressa em toda sorte de língua e país.
Quiroga, entretanto, foi cego para Mário de Andrade, com quem
paradoxalmente compartilhava o gosto pela oralidade e por sua reconstrução
literária. Interessaram-lhe, além de Os Sertões, os livros do amigo a quem
queria logo conhecer pessoalmente: leu Urupês – já elogiado por Olivari – e
4
Quiroga, Horacio. “Carta a Lobato”, 6 de outubro de 1921. Acervo CEDAE/Unicamp.
375
Caracol, São Paulo, N. 14, jul./dez. 2017
Horacio Quiroga no Brasil: os “efeitos da língua”
Wilson Alves-Bezerra
Negrinha; propôs traduzir e publicar em revistas portenhas alguns contos
do volume.
Monteiro Lobato não apresentou Mário de Andrade a Quiroga.
O que seria possível, se considerarmos que Lobato era o polemista e o
agitador cultural responsável por diversas mediações culturais no Brasil
dos anos vinte (cf. Ribeiro, 2008): editor e diretor da Revista do Brasil,
foi o responsável pela publicação de uma resenha de autoria de Franco
da Rocha, a qual introduzia a obra e a reflexão de Sigmund Freud, a qual
influenciaria não pouco na cultura brasileira ainda nos anos vinte; mesmo
antes disso já havia escrito, em O Estado de S. Paulo, artigo discutindo
a obra da artista vanguardista brasileira Anita Malfatti – “Paranoia ou
mistificação” – em 1917; as próprias páginas da Revista do Brasil sempre
estiveram abertas aos modernistas: Mário de Andrade publicou o artigo
“Debussy e o impressionismo”, em 1921; Lobato assinou uma resenha
sobre Os condenados, de Oswald de Andrade. Isto é, Lobato reconhecia
individualmente os jovens artistas da vanguarda brasileira, mas não os
estimava a ponto de apresentá-los ao novo amigo rio-platense.
No caso dos dois, tratou-se de uma amizade entre dois escritores, não
numa relação mais ampla, que incluísse outros pares. Lobato foi generoso
com o barbudo uruguaio, radicado na Argentina, que falava de cobras, e
que seria por ele recebido e saudado em uma sessão das jabaquaradas – um
evento promovido por ele para recepcionar convidados – com o devido
brinde com soro antiofídico num impagável discurso de boas vindas;
cerimônia à qual Quiroga compareceu com a condição de não proferir
376
Caracol, São Paulo, N. 14, jul./dez. 2017
vária
uma só palavra. Lobato também publicou resenhas sobre Cuentos de la
Selva, Anaconda e El Salvaje na Revista do Brasil. Publicou inclusive uma
tradução de Lila Escobar de Camargo da nouvelle Una estación de amor, de
autoria de Quiroga e ainda planejava lançar no Brasil todo o volume dos
Cuentos de amor de locura y de muerte.
Corroborando o que foi dito acima, o próprio modo de ler que Lobato
aplicou a Quiroga desconsiderava a psicanálise de Freud e a distorção
pictórica de Malfatti – chaves pelas quais seria possível ingressar em seus
contos de modo mais afeito ao gosto vanguardista – e contentou-se com o
alinhamento oitocentista, que seria tornado popular em uma frase lapidar
do professor e crítico uruguaio Ángel Rama, que chegou a afirmar que a
obra de Quiroga procurava “ser mera tradução acabada da vida”. Tanto foi
assim que Lobato, ao elogiar publicamente Quiroga, proferiu as seguintes
palavras:
A arte de Quiroga é este espelho [bisanté, que não colabora na reflexão da
imagem e a dá puríssima]. Respeita religiosamente o que é o que ele vê,
o que ele sente. Não mente, não desnatura, não enfeita, não afeia. Daí a
cotação cada vez maior em que ela é tida no continente. (Lobato, [1922]
1968, 96)
O “não desnaturar”, o ser como espelho fiel, eis o que é Quiroga para
Lobato. Não que fosse pouco tal poética realista, mas a obra fronteira do
amigo Horacio comporta – e clama até – por outras leituras que possam,
no limiar do século vinte e um, captar sua dualidade. Baste-nos um
377
Caracol, São Paulo, N. 14, jul./dez. 2017
Horacio Quiroga no Brasil: os “efeitos da língua”
Wilson Alves-Bezerra
exemplo. Não foram poucos – na verdade foram muitos – a criticar o
conto “Las moscas”, da etapa final do escritor, por ser, nas palavras de Noé
Jitrik, mostra da decadência do autor, quando, segundo Emir Rodríguez
Monegal, “aunque ya escribe algunos cuentos más, Quiroga ya está de espaldas
al arte” (Rodríguez Monegal, 1967, 17). Tudo isso porque o relato em
questão não obedecia aos cânones realistas com os quais habitualmente se
aborda a obra do escritor.
Não é de se admirar que tenham dito que o Poe latino-americano teria
perdido a mão firme. Ele, que tão bem descrevera, em “A la deriva” (1912)
o percurso de Paulino, picado por uma cobra, Rio Paraná abaixo, ao
encontro de suas memórias e de sua morte, agora se perdia entre lugares
e pontos de vista confusos ao narrar a história disparatada de um homem
moribundo que delirava.
Ora, para além da estética realista, é o legado vanguardista ou freudiano
que está presente nesse conto de Quiroga, tenha ele o lido ou não, e também
os mecanismos livre-associativos lá estão, a pautar a sucessão irracional de
cenários, tempos e personagens, e a estilhaçar o foco narrativo. Qualquer
amante da estética realista deveria mesmo qualificar de confuso tal conto,
mas igualmente qualquer leitor de Joyce – e não me refiro ao Finnegans
Wake, mas apenas ao Ulysses – se veria instado a reconhecer ali um escritor
para quem o século dezenove já teria acabado há tempos.
Pois Horacio Quiroga, que já havia trazido para os rincões sulistas do
continente latino-americano a fina flor da contística mundial do século
dezenove – Maupassant, Kipling, Tchékhov, Poe –, mudara de rumo.
378
Caracol, São Paulo, N. 14, jul./dez. 2017
vária
Pois ele, que introduzira Poe nos semanários de Buenos Aires – em “El
almohadón de plumas” – e aproximara o incauto leitor da longínqua
região de Misiones, com “La miel silvestre” e “En la noche” –, Kipling às
crianças em seus muitos Cuentos de la selva e nas Cartas de um cazador; e
Tchékhov a San Ignacio – nos contos de Los desterrados -; passara então a
incorporar, talvez pelo cinema (cf. Davi Arrigucci Jr, 1973, 78), os recursos
da simultaneidade na narrativa, alinhando-se às estéticas vanguardistas
daquelas décadas.
A pergunta que nos cabe discutir é a seguinte: quais os limites e o
alcance deste flerte entre Quiroga e uma estética de vanguarda? O primeiro
limite que se impõe – que para nós deve significar pouco – é a crítica
quase unânime, ao longo de décadas, de que ele era escritor realista. Ele
mesmo é corresponsável por essa imagem, ao propagandear que o conto
deve ser “como la vida misma”. Monegal, Jitrik e, em certa medida, Rocca
coincidem neste ponto de vista. O próprio Quiroga e o amigo Lobato,
idem. Pois, como é óbvio, ele militou em tais fileiras.
Mas há um atenuante, que deveria levar-nos a recuar diante da suposta
estética realista do autor: o traço igualmente óbvio do magistério de Poe
– o “maldito louco” que tanto o obcecou. O narrador uruguaio sempre
esteve disponível ao desviante: seja o que ele chamou “loucura” no título
de seu livro de 1917, ou à experiência da morte e do delírio em seu livro
final, sugestivamente chamado de Más allá (1935).
O leitor que não tenha aprendido com Poe, haverá de ter descoberto
na obra de um teórico como Todorov (1970) ou de um escritor como
379
Caracol, São Paulo, N. 14, jul./dez. 2017
Horacio Quiroga no Brasil: os “efeitos da língua”
Wilson Alves-Bezerra
Cortázar, que a literatura que buscar o desvio o encontrará na forma.
A posição do narrador é fundamental para isso – eis aí a predileção, no
fantástico dito clássico (desde Maupassant, Poe e, entre nós, Quiroga), pelo
uso da primeira pessoa, com sua narração vacilante e parcial. Ora, mas isso
tem sido considerado, pelos adeptos do realismo, como uma fantasmagoria
passadista de Quiroga – a expressão é de Monegal.
Pois Todorov, em certo momento de seu Introdução à literatura
fantástica, fala que a psicanálise teria aniquilado a literatura fantástica,
porque o capeta, a maldição não cumpririam mais sua função metafórica
na literatura, de substituir uma patologia psíquica, uma repressão sexual,
ou algo do estilo. Embora a afirmação do autor seja de interesse, sabese que o fantástico não morreu. Cortázar diz com todas as letras, em
entrevista ao jornalista uruguaio Bermejo (2002), que as maldições da
Malásia já não servem mais para o leitor do século vinte, que seria preciso
lançar mão de medos que fossem mais verossímeis, cotidianos inclusive.
Ora, ele realiza tal procedimento em contos como “Casa tomada”, em que
aqueles que invadiram a mansão dos irmãos não têm rosto, como deve ser,
adquirindo as dimensões das piores fantasias do leitor. Se Todorov aportou
uma limitação que a psicanálise haveria trazido ao fantástico, Cortázar
mostrou caminhos. Que o fantástico não se esgote no século dezenove é
evidente, e a contística de Quiroga já indicava alguns destes caminhos: O
yaciyateré na selva missioneira – no conto homônimo –, o peão brasileiro
que desaparece da obra sem deixar vestígios além da bota emborcada no
380
Caracol, São Paulo, N. 14, jul./dez. 2017
vária
alto da árvore – em “Un peón” –, o paralisante mel silvestre que primeiro
apareceu em um sonho – em “La miel silvestre” – entre muitos outros.
Portanto, apesar de Quiroga ter tido, entre seus admiradores
contemporâneos, como Lobato, homens que fizeram o elogio do realismo,
e inclusive os jovens que o rechaçaram – como Borges e Bioy Casares,
por nele verem um mero imitador de Kipling – apesar de tudo isso, sua
escritura superou em muito aqueles cânones. Ninguém como Quiroga,
nos primeiros tempos, viu e falou tanto sobre cinema na Argentina, por
exemplo. E o cinema, sabe-se, propiciou aos escritores novas e diversas
formas de narrar.
Há que se situar o legado de Quiroga a partir do seu diálogo com a arte do
início do século vinte, e não o aceitar apenas como o antípoda diminuído
pelas vanguardas; há que se reconhecer como a vanguarda é, em sua obra,
ponto de chegada, não de partida. Daí um conto rechaçado por muitos,
como o já citado “Las moscas”, dever ser relido à luz dos procedimentos
da vanguarda, para ser devidamente reconhecido em sua proposta estética.
A correspondência de Quiroga com Lobato, da qual atualmente
conhecem-se 18 cartas do uruguaio, dá indicações, como vimos, dessa
preferência crítica de ambos pela defesa do realismo. Entretanto, nela
pode-se ler o quanto a dimensão do significante interessou a Quiroga.
A língua portuguesa surge, na correspondência entre ambos, como algo
revelador. Na primeira carta a Lobato, datada de 1921 e tornada pública
pelo escritor brasileiro na Revista do Brasil, o uruguaio afirma “entiendo y
aún podría hablar el portugués”, mas afirma preferir ler Lobato nas traduções
381
Caracol, São Paulo, N. 14, jul./dez. 2017
Horacio Quiroga no Brasil: os “efeitos da língua”
Wilson Alves-Bezerra
argentinas de Benjamín de Garay (? – 1943). A atitude reverente tanto ao
colega brasileiro quanto à sua língua encontra eco na formalidade da carta.
Mas a atitude positiva e a disponibilidade de Quiroga a ambos só irá
crescer. Se logo após sua volta do Brasil, o uruguaio refere-se – em 13
de outubro de 1922 – ao colega brasileiro como “hermano viejo”, em 14
de junho de 1923 a amizade culminará em uma pequena carta cheia de
consequências para se pensar na escritura quiroguiana. Trata-se de missiva
dirigida ao “Meu grande irmao Lobato”, toda ela escrita em portunhol.
Entendo aqui “portunhol” no sentido que já lhe atribuí em trabalhos
anteriores (Alves-Bezerra, 2005, 2008a, 2008b), isto é, como sistematicidade
sem sistema, uma amálgama de fragmentos de línguas que promove um
funcionamento linguístico passível de literatura. Assim, o portunhol funciona
como um continuum entre os dois idiomas que o originam, uma errância jamais
submetida às normas de uma outra língua. Um território de possibilidades.
O que é fundamental ter em conta é que, a partir de tal perspectiva, o
sujeito falante coloca-se como central na produção de tais enunciados; ao
falar em portunhol estamos muito mais no campo das produções singulares
de um sujeito (seja ele escritor, aluno de línguas ou migrante) do que
propriamente de uma discussão acerca de uma língua. Cabe ainda destacar
que, como espero mostrar adiante, a incidência da língua portuguesa sobre
a carta de Quiroga, uma espécie de reminiscência da experiência da viagem
ao Brasil no ano anterior, logo terá papel decisivo sobre sua escritura
literária, nela figurando a condição do migrante em ao menos dois de seus
contos. Vejamos inicialmente a carta, na íntegra:
382
Caracol, São Paulo, N. 14, jul./dez. 2017
vária
“Junio 14 – 1923
Meu grande irmao Lobato:
Eu vo a escriver a vossé en esa bella e tropical lengua irmá, para que vossé
pueda gostar dos grandes adelantos feitos por o infrascripto. Aymé, irmao!
Fosse vocé tam sequer Rosaliníssima entào que lee, e a minha elocuencia –
até que a grammatica – fosse muito mais engracada do que parecerá a vossa
mercede. En fim, lá va.
Nao recivé os livros que vossé me anonciou por carta. Nao fique vossé
tan cossoador como a prima Lisboa, que prometeu, prometeu... e nao
mandóu sus versos hindúes. Eu mando agora a vossé a HISTORIA D’UM
AMOR TURBIO; um exemplar para vossé, e otro para a prima Lila,
rogándole a o irmáo faça chegar a ella o exemplar que le está dedicado.
Nada sei de issa menina. Tal vez está zangada comigo. Por qué? Os eternos
misterios femininos.
Os journaes informan-me do que Garay está doente. E viene-me o
recuerdo de uma otra vez que o mesmo amigo estuvo doentinho, e cuya
terapéutica vossé me contou. Salude e diga a o caro amigo que en otro
correio enviaré-le um exemplar do amor turbio.
Como quiera, irmao, paréceme que esto falando todavía n ‘aquela mesa
do paseio público, con as anaconditas de Camargo. Efeito da língua...
Vossé quere facer uma grande fortuna, e conseguirá-lo (!) mais nao
dexe, de quando em quando, de pensar en fabricar uma grande casa, con
cuartos para huéspedes, afim de que o misero irmao que lhe escreve, poda
ir a hospedarse dez días na excelsa finca de vossé. E a conta da litteratura.
Por que nao recevo mais a REVISTA DO BRASIL?
E um grande abrazo, irmao,
H. Quiroga.
383
Caracol, São Paulo, N. 14, jul./dez. 2017
Horacio Quiroga no Brasil: os “efeitos da língua”
Wilson Alves-Bezerra
Quiroga reconhece o “efeito da língua” sobre sua escrita, e ao mesmo
tempo remete-se ao encontro com o amigo brasileiro. Pois todos estes
elementos, do humor quase infantil que o jogo com a linguagem permite,
às reminiscências da viagem, tudo isso retornará, exatos dois anos depois,
no conto “Los desterrados”, publicado em 1925. Em trabalho anterior
(Alves-Bezerra, 2005), chamei a atenção para o fato de como o portunhol
desempenhava um papel fundamental na constituição dos personagens, e
permitia indicar o seu estado anímico, distando muito de ser meramente
uma transcrição documental da fala dos estrangeiros.
Ora, é de se notar como na gênese daquele conto está a carta a Lobato, na
qual há uma importante relação entre o sujeito e a linguagem, ao lado das
experiências literárias anteriores, como o conto “Un peón” (1918), na qual
já havia um personagem brasileiro, Olivera, que desaparecia insolitamente.
Naquele conto, porém, o portunhol aparecia de modo incidental, sem
o derramamento lírico de “Los desterrados”, que já se dá a ver na carta
supracitada.
Nos contos do autor em que o portunhol aparece, nota-se a “contribuição
milionária de todos os erros” de que falava Oswald de Andrade, sob a
forma da reveladora errância entre línguas, que abre uma via mais na
construção dos estados-limite de seus personagens. Se há uma experiência
moderna com a linguagem e a oralidade, ao longo dos anos vinte, Horacio
Quiroga participa dela, entre guarani, português e espanhol. Se há
experiências múltiplas com o foco narrativo, “Las moscas”, como já visto,
é exemplo de superação do realismo linear. Se há cosmopolitismo eufórico
384
Caracol, São Paulo, N. 14, jul./dez. 2017
vária
na literatura urbana modernista, os contos de Los desterrados apresentam
um contraponto rural e delirante, com seus belgas, franceses e poloneses
embriagados, entre as ruínas do Império Jesuítico. Se Girondo vai ao
mundo para escrever seus Veinte poemas para ser leídos en el tranvía, Quiroga
vê o mundo na selva, num day after carente de qualquer esperança. Devo
desenvolver, em trabalho posterior, a comparação entre a linguagem desta
carta de Quiroga e seu conto “Los desterrados”, para explicitar melhor este
ponto. Tal objetivo, porém, escapa aos limites deste artigo. Aqui busquei,
principalmente, inverter o olhar comumente atribuído à obra de Quiroga:
busca-se nele, em geral, a culminação do projeto literário contístico do
século 19; tenho argumentado, justamente, como há, também, e sem
prejuízo ao seu oitocentismo constituinte, um aspecto de desbravador das
trilhas vanguardistas, principalmente no aspecto relativo aos desvãos da
linguagem. Eis sua singularidade, uma experiência moderna dos últimos
anos de sua produção, calcada nos pressupostos nos quais erigiu sua obra.
Os signos da modernidade no espaço da selva. Sem euforia, sem esperanças,
dando espaço aos transbordamentos da desrazão e da linguagem.
referências BiBliográficas
Alves-Bezerra, Wilson. “As nacionalidades latino-americanas: a Argentina vista à
luz dos olhos de Mário de Andrade e pelas sombras de Horacio Quiroga”. In:
Revista da USP, 2004, 64, 175-180.
_____. “O portunhol dos desterrados de Horacio Quiroga: política e subjetividade
na representação literária de uma língua de fronteira”. In: Estudos Lingüísticos,
2005a, XXXIV, 1015-1020. Disponível em: <http://www.gel.org.br/
estudoslinguisticos/
edicoesanteriores/4publica-estudos-2005/4publica-
385
Caracol, São Paulo, N. 14, jul./dez. 2017
Horacio Quiroga no Brasil: os “efeitos da língua”
Wilson Alves-Bezerra
estudos-2005-pdfs/o-portunhol-dos-desterrados-166.pdf>. Acesso em 27
mar. 2015.
_____. Reverberações da fronteira em Horacio Quiroga. São Paulo: Humanitas/
Fapesp, 2008a.
_____. “Portunhol para além das fronteiras: reflexões sobre a inespecificidade do
termo”. In: Revista Brasileira de Letras, 2008b, 5, São Carlos: UFSCar, 115121.
_____. “O portunhol na poesia: territórios e deslocamentos”. In: Leal, Izabela;
Fernandes, José Guilherme; Trusen, Sylvia (orgs.). Tradição e tradução: entre
trânsitos e saberes. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2016, 110-135.
Antelo, Raúl. Na ilha de Marapatá (Mário de Andrade lê os hispano-americanos).
São Paulo: Hucitec; MinC; Pró Memória; Instituto Nacional do Livro, 1986.
Arrigucci Jr., Davi. O escorpião encalacrado: A poética da destruição em Julio
Cortázar. São Paulo: Companhia das Letras, 1995 [1973].
Artundo, Patricia. “Clara Argentina”. In: Mário de Andrade y la Argentina. Tese de
doutorado. FFLCH-USP, São Paulo: 2001.
_____. Mário de Andrade e a Argentina. Um país e sua produção cultural como
espaço de reflexão. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2004.
Bermejo, Ernesto González. Conversas com Cortázar. Trad. Luiz C. Cabral. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
Bioy Casares, Adolfo. Descanso de caminantes. Buenos Aires: Sudamericana, 2001.
_____. Borges. Barcelona: Destino, 2011.
Quiroga, Horacio. Todos los cuentos. 2 ed. Madri; Paris; México; Buenos Aires;
São Paulo; Rio de Janeiro; Lima: Allca XX/Edusp, 1996.
Ribeiro, Maria Paula Gurgel. Monteiro Lobato e a Argentina: mediações culturais.
Tese de doutorado. FFLCH/USP, São Paulo: 2008.
______. “Sobre diálogos literários: Monteiro Lobato, Manuel Gálvez e Horacio
Quiroga”, Revista USP, 2004, 64, 181-189.
386
Caracol, São Paulo, N. 14, jul./dez. 2017
vária
Schwartz, Jorge; Lorenzo Alcalá, May. Vanguardas argentinas anos 20 (Trad. Maria
Angélica Keller de Almeida). São Paulo: Iluminuras, 1992.
Lobato, José Bento Monteiro. Negrinha. São Paulo: Companhia Graphico Editora
Monteiro Lobato, 1920.
_____. “Saudação a Horacio Quiroga”. In: Conferências, artigos e crônicas. São
Paulo: Brasiliense, 1968 [1922], 95-7.
Rocca, Pablo. Horacio Quiroga. El escritor y el mito. Montevidéu: Ediciones de la
Banda Oriental, 1996.
Rodríguez Monegal. Genio y figura de Horacio Quiroga. Buenos Aires: Ed.
Universitaria de Buenos Aires, 1967.
Todorov, Tzevtan. Introducción a la literatura fantástica. Trad. Silvia Delpy.
México, D.F: Premia, 1981.
387