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Al-Mummia de Shadi Abdel Salam (análise histórica)

An historical review of «Al-Mummia», by the egyptian film director Shadi Abdel Salam. The story's related to the discovery of the mummy's cachette at Deir el-Bahari, in 1881, by Gaston Maspero and colleagues. Description and considerations about the film industry in Egypt, historical perspective of the screenplay and of the various elements presented.

THE NIGHT OF COUNTING THE YEARS – OS FARAÓS NUMA ENCRUZILHADA DA HISTÓRIA (João Camacho – Centro de História da Universidade de Lisboa) Bio-filmografia 15 de Março de 1930 – Nasce em Alexandria. 1955 – Obtém o diploma em Arquitectura na Escola de Belas-Artes do Cairo. 1957-1959 – Guarda-roupa e decorador em vários filmes egípcios. 1963 – Guarda-roupa e decorador em Saladino de Youssef Chahine. Decorador-assistente em Cleópatra de Joseph L. Mankiewicz. 1966 – Conselheiro artístico do filme franco-polaco Faraon de Jerzy Kawalerowicz. 1967 – Argumentista e conselheiro artístico do episódio dedicado ao antigo Egipto, da série A Luta do Homem Pela sua Sobrevivência, de Roberto Rossellini. 1968 – Director do Centro de Cinema experimental do Cairo. Neste mesmo ano, termina AlMummia e passa nove meses em tournée a apresentar o filme. A obra representou o Egipto em diversos festivais internacionais e obteve distinções importantes como o prémio Georges Sadoul, em 1970, ou o Prémio da Crítica no Festival de Veneza. Contudo, o filme só estreia no Cairo em…1975, numa sala de cinema apenas. 1970 – O Camponês Eloquente. 1973 – Horizontes. 1974 – Os Exércitos do Sol. 1983 – O Trono de Tutankhamon. 1984 – Antes das Pirâmides. 1986 – A Propósito de Ramsés II. 8 de Outubro de 1986 – Falecimento, no Cairo. Shadi Abdel Salam no interior do Museu Egípcio do Cairo, próximo de uma figura de Akhenaton. Na curta análise que se apresenta pretende-se descrever, interpretar e fornecer ao leitor instrumentos para a compreensão e contextualização, não só da acção principal, mais imediata, como dos principais elementos que confluíram para a formação desta obra artística, um filme “histórico” (na medida em que versa sobre um episódio, simbólico, da história recente do Egipto e da própria Egiptologia). Para o efeito seguiremos os três principais eixos temporais que aí se cruzam: o do Egipto contemporâneo, das décadas de 50 e 60 do século XX, período necessariamente mais importante para a produção do filme pelas imposições estilísticas, técnicas, políticas e sociais presentes nas opções da sua realização; o Egipto do século XIX que, na sua evolução política e cultural, vai influenciar de forma determinante o desenvolvimento da ciência egiptológica e no seio da qual podemos colocar a narrativa explorada; finalmente, o antigo Egipto, entidade política da Antiguidade (séculos XII e XI a.C.) onde inusitadas reconfigurações tumulares levaram à criação, por parte de elementos do sacerdócio amoniano, de um túmulo real colectivo, um “esconderijo” que pôs a salvo, durante mais de vinte séculos, os corpos de diversos monarcas e outros elementos das elites reais. SHADI ABDEL SALAM O cineasta mais “herético” do cinema egípcio marcou, com as suas curta, médias e longa-metragem, um regresso, no Egipto, à história faraónica e à identidade egípcia há muito perdidas e esquecidas. Reencontro que tem sequência na realização de três documentários: O Trono de Tutankhamon, Antes das Pirâmides e A Propósito de Ramsés II. Esta invocação do passado consiste numa complexa operação, efectuada através da sensibilidade artística de Abdel Salam, nomeadamente pela reconstituição fiel e cuidados com cenários, decoração e ambiências. Segundo o assistente-decorador de Abdel Salam em A Múmia, Salah Marei, todos os cenários eram previamente representados em desenhos e croquis feitos pelo próprio realizador, e qualquer alteração aos mesmos levava-o a produzir novos desenhos. Shadi introduz um novo conceito no cinema egípcio: à semelhança da nova concepção que se tornava cada vez mais comum na Europa e que forma o chamado “Cinema de Autor”, Abdel Salam concentra em si todas as decisões relativas aos filmes, contrariamente ao que havia sucedido nas suas anteriores experiências, tanto no estrangeiro, como no seu país. Para as decorações, evitou toda a complexidade de pormenores que um maior realismo podia trazer, evitando com isso que a atenção do espectador se desviasse da acção, do mais importante. Procura igualmente afastar a atenção das próprias personagens, tornando-as emocionalmente opacas, obrigando, na maioria dos casos, o espectador a concentrar-se nos diálogos. No guarda-roupa, Shadi pretendeu marcar um vívido contraste entre a natureza desértica e a montanhosa, daí a distribuição das cores dominantes: o branco e o preto. Todos os elementos possuem um significado preciso, pensado e estudado para desempenharem uma determinada função no todo. Ilustração do realizador de uma das cenas de The Night of Counting the Years Em O Camponês Eloquente o orçamento era extremamente modesto. O filme foi rodado em 10 dias, em cenários naturais, e utilizando os fatos que serviram para o referido episódio de Rossellini. Akhenaton – A Tragédia da Casa Grande, seria o primeiro filme histórico especificamente sobre o Egipto antigo, feito por um egípcio. Salam e alguns membros da sua equipa (Salah Marei e Onsi Abu Seif) passaram anos a estudar a história faraónica, não apenas para obtenção dos pormenores mais propriamente históricos dos acontecimentos, como pelo estudo das diferenças em materiais e (re)produção dos mesmos pelos métodos antigos, quando a dissemelhança assim o justificava (como no caso da joalharia ou das estatuetas funerárias de faiança esmaltada), ou pela elaboração de dossiês individuais das personagens históricas, com estudos sobre as suas poses (como no caso de Akhenaton), procurando não apenas contrariar o estatismo que reconhecidamente marca a escultura egípcia, mas antes partir dessas poses hieráticas para imagens vivas e em movimento. Abdel Salam, ele próprio, é herdeiro de uma dupla tradição cujo contraste vem desde tempos imemoriais e se fez sentir no território egípcio. Nasceu em Alexandria, cidade cosmopolita e próxima, desde a sua fundação em 331 a.C. por Alexandre da Macedónia, da cultura helénica. Mas não só. Sendo inicialmente um porto comercial, a cidade desenvolveu-se durante o período ptolomaico, desde c.305 a.C. a 30 a.C. (fase em que reinou no Egipto a dinastia de origem grega, iniciada por um general de Alexandre), chegando a ser a maior metrópole da Antiguidade na sua altura, para onde afluíam mercadorias e gentes de todo o lado onde chegava o Mediterrâneo, e suplantada apenas por Roma, mais tarde. Por outro lado, Salam era descendente de uma família da localidade de Al Minya, no Médio Egipto, região onde ainda hoje a rigidez de costumes está mais presente. Interessante contraste este, alguém oriundo de um local de grande isolamento e rigorismo cultural, vem a tornar-se num artista universal, viajado, falando correntemente inglês, francês e italiano, identificando-se e introduzindo novos perspectivas artísticas numa indústria até então pouco diferenciada estilisticamente, característica, nas palavras do historiador do cinema Georges Sadoul, do ambiente de corrupção generalizada que assolava o governo do rei Faruk. Mas essa familiaridade com novos métodos e novas formas de fazer cinema vem plasmar-se, no seguimento desse contraste, em motivos históricos, pré-clássicos, de uma fase deliberadamente ignorada durante séculos pelas elites governantes. Abdel Salam nasceu já durante a fase do chamado “renascimento egípcio”, movimento de cariz nacionalista cujas sementes vários autores fazem remontar à Revolta de Orabi (entre 1879-1882) e se inicia efectivamente com a Revolta Egípcia de 1919. Movimento de carácter nacionalista (à semelhança do que sucedia em muitos outros países mundiais), foi despoletado, por um lado, pela retirada do Delta da presença militar das potências vencidas da I Guerra Mundial (República de Weimar, Áustria e Hungria) e, por outro, pelo crescimento do sentimento desse nacionalismo e vontade de independência para com a Grã-Bretanha, que havia instituído no país o regime de Protectorado. Essa independência é concedida, unilateralmente pelos europeus, em Fevereiro de 1922. Abdel Salam viveu os anos da sua juventude com grande intensidade e crença optimista para com a nova realidade do seu país, desfeita que estava a propaganda do país colonizador que insistia em passar a ideia de que o Egipto e o seu povo nada tinham a ver com os antepassados do glorioso período faraónico. Abdel Salam acreditava na continuidade, via as rupturas como momentos integrantes dessa continuidade, aceitava o passado recente de domínios estrangeiros que enriqueceram de variadas maneiras o país, mas ansiava por promover e contribuir para a identidade nacional com a evocação da memória faraónica. A egipcianidade era, para o realizador, uma responsabilidade e uma missão. A começar pela própria definição do que era ser egípcio. O cineasta e egiptólogo Magdi Abdel Rahman refere que as duas grandes interrogações de Abdel Salam eram: seria o Egipto era um país árabe ou muçulmano? Em que medida o passado faraónico se aproximaria da realidade egípcia sua contemporânea? A profunda consciência destes problemas está bem expressa neste filme. O Egipto não começou com as revoluções do século XX, ou do séc. XIX. Não foi fundado nem pelos Mamelucos, nem pelos Árabes, nem pelos Lágidas. O Egipto, para Shadi Abdel Salam, era uma entidade política, cultural e social que se vinha desenvolvendo desde o primeiro momento da sua unificação em finais do IV milénio a.C. Só depois de terminar o curso de Arquitectura em 1954 é que Abdel Salam decide tornar-se realizador. Acumulando a experiência no trabalho em diversos filmes entre 19541957, o cineasta vai revolucionar o conceito de cenário na indústria cinematográfica egípcia, atribuindo um significado e prestando atenção a todos os elementos representados: arquitectura dos interiores, dos exteriores, pormenores de portas, janelas, roupa (até à própria disposição\orientação das cores das djalabas) e de todos os acessórios. Ilustração do autor para o inacabado filme Akhenaton – A Tragédia da Casa Grande As obras de Salam caracterizam-se por uma grande unidade estilística, simplicidade, adequação de detalhes ao contexto representado e harmonização de acordo com a importância e autenticidade. O seu contributo como conselheiro artístico de Jerzy Kawalerowicz para o filme Faraon foi de grande importância para a obra, caracterizando-se por um enorme cuidado com a verosimilhança para com o período faraónico, e que adquire um maior relevo quando comparado com a mega-produção de Hollywood, Cleópatra, de Joseph L. Mankiewicz. Experiência decepcionante nas palavras do próprio: “o trabalho em Cleópatra assemelhava-se ao de uma fábrica, o trabalho em Faraon ao de uma escola”. O aconselhamento artístico de Shadi Abdel Salam em Cleopatra, expresso na fidelidade de reprodução da embarcação real Dois anos depois, Salam conhece Roberto Rossellini (1906-1977), que viaja para o Egipto para filmar um dos episódios da sua série televisiva La Lotta dell'Uomo Per la Sua Soppravvivenza, inaugurando paralelamente, e após acordo com o Ministério da Cultura Egípcio, um centro experimental de produção cinematográfica, ao qual o artista islamita adere imediatamente. Abdel Salam caiu logo nas graças de Rossellini, propondo-lhe, para o início dos trabalhos do centro, um guião original em que trabalhava havia dois anos, intitulado «A Múmia». Roberto Rossellini empolgou-se com o argumento (reviu-o três vezes), sugerindo ao realizador egípcio uma associação entre ambos para a direcção do filme. A Guerra dos Seis Dias, em Junho de 1967 (conflito militar que opôs a beligerante Israel à República Árabe Unida do Egipto, Síria, e Jordânia, e que, em menos de uma semana, permitiu à facção sionista anexar a península do Sinai -ao Egipto- para além da Faixa de Gaza, Jerusalém Oriental -à Jordânia- e a região síria dos Montes Golã), obrigou o italiano a abandonar o país, ficando a direcção do filme entregue a Abdel Salam que o terminaria dois anos depois. Para a realização do filme, o proeminente cineasta reuniu uma equipa de jovens interessados, sensíveis à questão do passado histórico e possuindo por isso uma perspectiva nova sobre a sua realidade e as suas tradições. Em Dezembro de 1969 o filme foi projectado pela primeira vez perante o público do Cineclube do Cairo, onde estavam diversos intelectuais e familiares do autor. Segundo Magdi Abdel Rahman, então assistente-realizador de Abdel Salam e presente no local, a austeridade e espontaneidade com que tão inusitado tema foi apresentado, deixou a plateia algo perplexa. O seu contacto com a história da cachette real de Deir el-Bahari deu-se, pela primeira vez, em 1956. A história deixara-o impressionado, sobretudo pela forma como as múmias e os sarcófagos foram transportados e os nomes dos antigos recordados, levando-o a meditar sobre a ideia de imortalidade e a importância do nome, nesse contexto. Após a suspensão do projecto devido à Guerra dos Seis Dias, o Organismo de Cinema egípcio passou a contribuir para a produção (que estava a cargo, exclusivamente, de Rossellini), e foi aí que se decidiu que o mesmo seria rodado a cores, em vez do projectado preto e branco (após esta decisão, Abdel Salam passou a incluir túnicas pretas no guarda-roupa, juntamente com as brancas, marcando um novo contraste e opondo-se às cores ocres do deserto e dos monumentos e vestígios arqueológicos). Saleh Marei trabalhou na identificação correcta dos sarcófagos que estavam no esconderijo. Quanto ao idioma do filme, o realizador hesitou entre o árabe clássico e o dialecto do Alto Egipto, que daria uma maior verosimilhança com a realidade, mas optou pelo primeiro por considerar mais adequado à intemporalidade que estaria expressa na obra. Expressa está também, de forma intencionalmente reconciliadora, a oposição entre mundo rural e mundo urbano, a sociedade cairota de onde vêm os effendis. A oposição descreve também a relação entre uma minoria, instruída, e a população, representada pela tribo dos Hurabat, que não compreende nem se revê como herdeira desse passado. Apesar do relativamente efémero contacto, a influência rosselliniana é visível nas abordagens do realizador egípcio em Al-Mummia. Abdel Salam demonstra um escrupuloso respeito para com a sucessão de acontecimentos descritos no relato de Gaston Maspero Les Mommies Royales de Deir el-Bahari, seguindo-o por vezes como se de um verdadeiro guião se tratasse. Roberto Rossellini é considerado como o primeiro grande cineasta do Neorrealismo europeu. Para Sandro Bernardi, não obstante toda a discussão das décadas de 40, 50 e 60 sobre as perspectivas do realizador italiano, as suas obras só são “realistas” na medida em que reflectem sobre o estado da cultura ocidental, evocando amiúde a experiência do sagrado. Essa evocação, porém, não se traduz em remissões ao transcendente, é mais um instrumento formal, que fornece alusões compreensíveis e contextualizáveis a partir de situações quotidianas, individuais e subjectivas, a maioria das quais são apenas parcialmente entendíveis. Este autor não considera que esses indicadores de sagrado estão necessariamente ligados a visões puramente cristãs ou católicas, antes, pela descoberta ou reflexão sobre as fundações arcaicas da religiosidade humana: a religio no sentido de religar, de fazer cada indivíduo sair de si próprio identificando-se com o todo, com a sua sociedade, através de elementos como o culto dos mortos, o amor, a descoberta e a observação do mundo e todos os elementos que dão sentido a essas ligações. Em termos de análise à continuidade da sua obra, mais de metade dos filmes foram realizados naquele a que os críticos chamam de “período histórico”: entre 1963 e 1974, entre a realização de L’etat del Ferro e Cartesius, feitos, na maioria, para a televisão. A mudança de registo foi evidente. Apesar de ter sido a fase mais prolífica da sua carreira, com obras para cinema e televisão, ensaios e livros sobre o tema, é menos conhecida e estudada que a anterior. Um ponto de viragem no seu trabalho foi a viagem que fez à Índia em 1956-57, de onde resultaram alguns filmes etno-documentais: India Matri Bhumi (Índia, Terra Mãe - 1959) e L’India vista da Rossellini (1959). O seu projecto histórico tinha também uma base geográfica (a seguir à Índia veio o Brasil). As obras do final da década de 50 e início da de 60 são um prenúncio dessa viragem e contêm já elementos da intenção enciclopédica e de uma concepção histórico-pedagógica (com técnicas próprias como o zoom e os “trick-shots”) da qual partirá a filmografia dos anos seguintes. Sobre a História escreveu Rossellini: “Nós somos, em todos os sentidos, produto da nossa História. Para termos consciência do que nos tornámos devemos conhecer a nossa História na sua “arquitectura”, não como um conjunto de datas, nomes, alianças, tratados, traições, guerras, conquistas, mas seguindo a linha das transformações do pensamento” (citação contida precisamente no artigo intitulado «Perché faccio film storici», La Stampa, Maio, 1971) e “Devemos usar a História não para celebrar o passado mas para nos julgarmos e nos guiarmos melhor em direcção ao futuro”. Nestas afirmações vislumbra-se também uma reacção à barbárie da guerra mundial, a que assistiu e sobreviveu tal como Abdel Salam, um desejo utópico de um sobrevivente. A Europa e a cultura ocidental haviam saído em ruínas do conflito, tal como acontecera outrora com a civilização romana. Mas o nosso século, ainda que bastante mais complexo em diversos sentidos, possui inúmeras vantagens que outros antepassados, de variados momentos da História, não possuíam: meios técnicos para promover a inteligência, para torná-la no farol da civilização em vez do instinto e do medo dominante, das emoções facilmente manipuláveis pela propaganda em detrimento da razão, do diálogo e da comunicação. É com essa intenção que Rossellini cede às vantagens da televisão (ou tenta instrumentalizá-la para desígnios mais nobres), enquanto meio de comunicação às massas, enquanto forma de levar ao maior número de pessoas a perspectiva da necessidade do diálogo e da reflexão sobre cada um enquanto indivíduo e sobre a comunidade como um todo. Rossellini defende uma “visão directa” da História, o contacto primário do indivíduo com os processos históricos, com as fontes, em vez das tradicionais sínteses e descrições entediantes que minam o interesse e a vontade de aprendizagem de todo o sistema de ensino (concepção do pedagogo do séc. XVII Jan Komenský). Podemos no entanto questionar, a este propósito: como podemos nós conceber essa “visão directa”? E, para começar, o que é a História? O termo vem da palavra grega historía que significa “pesquisa”, ou “conhecimento advindo da investigação”, adquirindo metonimicamente o seu sentido moderno através da obra de Heródoto de Halicarnasso, considerado por via disso como o “pai da História”. Contudo, a História opõe-se em grande medida às ciências naturais, pois apesar de científicas metodologias de pesquisa, lida com processos e eventos passados, reunidos e interpretados pelo historiador num conjunto narrativo final. Os factos, em si, nada revelam. Surgiriam avulsos e desconexos, carentes de significado se não houvesse uma acção exterior que os coligisse e os integrasse num conjunto que os aproxima da realidade e da dimensão contínua e imediata da própria vida. Essa elaboração, essa construção, é feita pelo historiador e possui um grande cariz empírico. Para o filósofo contemporâneo R. G. Collingwood, a produção histórica resulta da tensão de dois pólos opostos: o facto material, objectivo, do passado, e a leitura que se faz do mesmo e que, inexoravelmente, parte do presente. Neste sentido, o Cinema pode desempenhar uma função importante na medida em que remete para a imagem, forma primária do nosso entendimento do mundo, anterior à verbalização dos objectos, das emoções dos sentimentos...”o conhecimento”, diz Rossellini, “consola-nos e dá-nos coragem. Uma melhor orientação dá-nos tranquilidade e calma. Neste sentido procuramos lançar os alicerces para uma existência humana mais constructiva”. Apesar da rejeição, ou abandono, da anterior forma de fazer cinema por parte do realizador italiano, há uma linha de continuidade a assinalar, precisamente a do realismo, ainda que não de um realismo coevo, do imediato, mas um realismo histórico, baseado em fontes e intencionalmente arreigado à autenticidade. O EGIPTO DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO SÉCULO XX: INDEPENDÊNCIA NACIONAL, O DESENVOLVIMENTO DA EGIPTOLOGIA E DO CINEMA Prestemos agora mais atenção à acção do filme e ao Egipto desde a sua formação “moderna” com Muhamed Ali, um general macedónio que comandava um grupo militar albanês, chamado ao Egipto pelos otomanos no período seguinte à retirada das tropas napoleónicas, numa fase de confusão generalizada derivada das indecisões relativas ao poder. Este era disputado por três facções: os Turcos que pretendiam instaurar o sultanato, os Mamelucos que almejavam um regresso ao anterior status quo e os Ingleses que procuravam equilibrar as forças em jogo, sem perder de vista as suas próprias pretensões económicopolíticas no território. Uma outra força interveio decisivamente: a classe religiosa dos Ulemás, liderada por Omar Makram. Foi com a ajuda deste grupo, que anteriormente havia apoiado Napoleão e que tinha a esmagadora maioria do apoio popular, que o Pachá turco é deposto e Muhamed Ali se torna vice-rei do Egipto, ficando o país integrado no Império Otomano. Nos anos seguintes, Muhamed Ali enceta diversas campanhas de conquistas militares na Arábia, no Sudão (1820-23) fundando a moderna capital de Cartum, na Grécia (1823-27) e na Síria, chegando a ameaçar as fronteiras otomanas. Espalhada que estava a ideia de que o líder egípcio pretendia unificar todos os países árabes num só governo, ingleses, prussianos e russos (a quem o expansionismo africano incomodava particularmente na medida em que as suas fronteiras meridionais começavam a ficar ameaçadas), decidem intervir. O conflito termina em 1841: o Egipto torna-se numa província otomana, com condições especiais relativamente às demais (como a posse de uma dinastia governativa própria), situação que se manteria até ao final da I Guerra Mundial. Muhamed Ali, para além da política externa expansionista, dinamizou o desenvolvimento interno e as suas medidas contrastaram com as dos governantes subsequentes, no geral bastante mais conservadores e sempre subordinadas ao interesse estrangeiro, sobretudo de Grã-Bretanha e França (designadamente pelo controlo do istmo de Suez e do comércio com as Índias Orientais). De resto, os primeiros acabam mesmo impor as suas pretensões de forma mais efectiva, com as contra-reformas de Abbas I, no início da década de 50 do séc. XIX, até 1854. Após o seu assassinato, surge o 4º filho de Muhamed Ali, Saïd, que continua com o reformismo político e económico do país no sentido da modernização do Estado: centralização administrativa e tentativa de ruptura com as redes heterogénas do poder local (sheikhs, mudires), abertura dos cargos mais altos do exército a egípcios (numa cedência ao nacionalismo crescente) e início de diversas obras públicas, especialmente o começo da construção do canal de Suez. Esta obra continuou a ser promovida pelo sucessor, Ismaïl, a partir de 1863. Apesar de continuar uma província otomana, o novo governador consegue tornar o cargo hereditário para o primogénito (e já não para o irmão mais velho) e, simultaneamente, obter da potência imperial um reconhecimento do Egipto como “kédivato”, espécie de entidade política com autonomia mais considerável e recursos democratizantes (como assembleias e representações regionais) e até ligeiramente laicizantes, relativamente à situação anterior. Um momento muito importante foi a inauguração do Canal de Suez, em 1869, que contou com a presença de diversos chefes-de-estado e embaixadores de todo o mundo (Portugal foi representado por Eça de Queiróz e conde de Resende). Giuseppe Verdi compôs para a ocasião a célebre Aida, que estreou a Ópera do Cairo. O fulgor nacionalista e independentista de Ismail levou contudo o Egipto a uma situação financeira muito difícil, obrigando o país a endividar-se, a vender ou alugar muito do seu património, a começar pela gestão do próprio canal de Suez. A dependência das potências estrangeiras “humilhou” (nas palavras do historiador Nada Tomiche) as elites e certas camadas da população, potenciando e permitindo o desenvolvimento de conceitos e ideias modernas como “nação” ou “pátria”, mesmo nas correntes pan-islamitas. O Kédiva Ismail, que havia instigado essas reacções, foi deposto e no seu lugar surge o seu filho Tewfik, avalizado pelos britânicos. É neste contexto que o ministro da guerra Urabi promove vigorosas campanhas contra a ocupação, levando a diversas revoltas, a mais violenta das quais em Alexandria. Na sequência desta uma frota inglesa chega ao Egipto, levando ao fim da autonomia política e iniciando um período de colonização por parte dos insulares, para além do inalterado estatuto de província otomana. O ministro acaba exilado no Ceilão e o domínio britânico duraria até ao final da I Grande Guerra (algumas obras de relevo são deste período, como a barragem do Delta, inaugurada em 1890, e a primeira barragem de Assuão, terminada em 1902). Em 1914 os ingleses, aproveitando o facto de os Turcos fazerem parte das forças do Eixo, transformam o Egipto num protectorado. Em 1918, um grupo de independentistas liderados por Saad Zaghlul procura a valência das suas pretensões na comunidade internacional mas só quatro anos mais tarde, a 21 de Fevereiro, é que a Inglaterra efectua esse reconhecimento de forma unilateral. O Sultão Fouad torna-se rei e, apesar de formalmente o Egipto se ter tornado numa Monarquia constitucional e parlamentar, o líder esforça-se por concentrar em si todas as grandes decisões. Os anos 20 são importantes para a sociedade e para a indústria cinematográfica: são criadas diversas sociedades comerciais, industriais e culturais, incluindo a Sociedade Misr para o teatro e o cinema. A crise financeira mundial de 1929-33 favoreceu a economia egípcia pela queda abrupta dos preços (o caso mais flagrante foi o do algodão). A indústria cinematográfica egípcia, com nomes e instituições nacionais, era relativamente recente (de resto, como a própria arte), já que a maioria dos filmes produzidos no país até 1926 resultavam da iniciativa de europeus ou americanos, com elencos igualmente estrangeiros. Para Georges Sadoul, o início oficial do cinema egípcio dá-se simbolicamente com o filme Laila (1927) de Wadad Orfi, que contou também com produção e elenco egípcios. Com a introdução do cinema sonoro em 1929, e até ao início da Segunda Guerra Mundial, a indústria desenvolve-se rapidamente, chegando a lançar vinte filmes por ano. Contudo, os motivos não eram muito variados, predominando a inclusão, no elenco, de cantoras de rádio e dançarinas e, no máximo, a adaptação de obras literárias, sempre com a visível preocupação de manter as temáticas acessíveis às camadas populares. Os anos 20 e 30 são caracterizados por um grande fervor político. Surgem novas correntes ideológicas (o Partido Comunista por exemplo é criado no início da década de 20 e é logo proibido) e vários sectores, como alguns dos enumerados acima, são encorajados a se pronunciarem politicamente. O fim da 2ª G.G. teve graves consequências sócio-económicas no país: aumento vertiginoso da inflacção e inúmeras falências de empresas incapazes de aguentar a concorrência estrangeira, do desemprego (também pelo súbito afastamento dos Britânicos). Politicamente, a situação permite o aparecimento de partidos de registos muito variados: extrema-esquerda, feministas e de extrema-direita, um dos quais, o Misr al-fatâ (Partido do Jovem Egipto, liderado por Ahmad Hussein, que existe até aos dias de hoje), classificado por outras correntes de «fascista», exultava o sentimento nacionalista recorrendo à lembrança do Egipto antigo, procurando, nas palavras de um já referido historiador, “alimentar-se do orgulho transmitido pela brilhante civilização faraónica”. Todos reclamavam a instauração de uma República democrática e de uma reforma agrária. Entre 1948-52, vários acontecimentos se sucedem resultando na queda da monarquia: guerra da Palestina (1948-49), guerrilhas antibritânicas na zona do canal de Suez (1951-52) e o golpe de Estado em 1952 que evolui para uma revolução. É durante os acontecimentos militares no Próximo Oriente, contra Israel e seus aliados, que se começa a destacar a figura do general Gamal al-Nasser. No Cairo sucedem-se as manifestações, as greves e as tensões para com os sionistas e britânicos (só no dia 26 de Janeiro de 1952 foram contabilizados 277 incêndios no Cairo), enquanto, por outro lado, a elite monárquica e restantes seguidores continuava a refugiar-se em luxos desmedidos. A caótica luta política teve reflexo também nas artes, em movimentos que não eram exclusivos desse período, mas que alcançaram então uma dicotomia mais acentuada: de um lado os “antigos” admiradores dos clássicos padrões da arte muçulmana, e do outro os “modernos”, conscientes das novas e diversificadas obras europeias e não só, procuram romper com as anteriores estruturas e explorar novas formas de fazer arte, sobretudo aproveitando o teatro e o cinema, veiculando críticas sociais sob a forma de um neo-simbolismo. A desestruturação prosseguiu. Gamal Nasser e Hakim Amer formavam uma nova força política composta por exmilitares. Ambos eram oriundos de famílias modestas do Alto Egipto e conheciam a condição miserável a que os camponeses, que constituíam a grande maioria da população, estavam remetidos. A monarquia foi abolida a 18 de Junho de 1953. Segue-se uma violentíssima luta política entre o general Naguib, mais moderado, apoiado por pequenos e médios proprietários e burguesia e defensor da democracia parlamentar, e o tenente-coronel Gamal Nasser, que prometia pôr fim aos jogos de interesses e à confusão partidária que afrouxava o poder. No entanto, muita da contestação (greves, manifestações de rua, protestos sindicais) era promovida ou instigada pelos “Oficiais Livres” de Nasser. Em Outubro de 1954, Nasser chega a acordo com a Grã-Bretanha para a evacuação da presença inglesa no canal do Suez, e este é o trunfo que os autores apontam como fundamental para a demissão de Naguib. E tudo isto em plena fase da Guerra Fria, (para além da vívida tensão com Israel que dura até aos dias de hoje, não propriamente com o Egipto que assinou tratado de paz em , ainda que, não obstante essa formalidade, a tensão entre os países se mantenha bem presente). Nasser prossegue uma política de não-alinhamento, juntamente com outros países que haviam ganho a independência poucos anos antes (encontro de Bandoeng, em 1955, com Índia, Birmânia, Indonésia, entre outros). Contudo, no ano seguinte Nasser firma um acordo com a U.R.S.S., posição que afasta o Egipto do Ocidente: é promovido um discurso interno de emulação nacionalista contra o “imperialismo” e “colonialismo” ocidentais, servindo esse entendimento, na prática, para invectivar a independência daquele Estado. Não obstante esse acordo, Nasser continuou a reclamar o que chamava de “neutralidade positiva” do país face à dicotomia política global. Em 1956 Nasser vence as eleições e uma nova Constituição é aprovada, afirmando a independência do Egipto enquanto Estado árabe, democrático, parlamentar, presidencialista (figura com poderes executivos muito diversificados), com o Islão como religião de Estado e o Árabe como língua oficial. Com a revolução dá-se um movimento de egipcianização da sociedade, de nacionalização e inserção de membros do Exército nos principais cargos e funções administrativas e burocráticas. Todos os jovens oficiais que progressivamente, em consequência da criação de uma Universidade Militar, tentam promover um certo desenvolvimento intelectual, continuam a pensar e a agir corporativamente. Milhares de pessoas das minorias grega, italiana, sírio-libanesa e israelita abandonam o país devido a pressões e perseguições, com a dura excepção dos cristãos coptas. As condições de vida de alguns sectores da população, como operários e pequenos e médios agricultores (com reforma agrária) melhoram, mas no geral continuaram muito más. Vários problemas se mantêm: demografia galopante (26 milhões de população total em 1970), limites naturais de exploração da terra, riquezas naturais pouco abundantes e em grande discrepância para com a totalidade da população. Muitas das soluções tentadas esbarram com rupturas estruturais provocadas pela população excessiva para o território disponível, designadamente os territórios cultiváveis, parte dos quais, apesar da tendência em construir habitações na orla desértica precisamente para aumentar essa disponibilidade, esta torna-se insuficiente. A industrialização fez aumentar o desemprego, sobretudo no sector agrícola. O Egipto da segunda metade da década de 50 e década de 60 do séc. XX vive uma fase de transição profunda: independente, rompe com a monarquia e assume a neutralidade perante o bipolarismo americano e soviético. Um governo forte, composto essencialmente por militares, fomenta políticas externas e internas de afirmação nacionalista. Retrocedamos novamente no tempo, desta vez até ao início do séc. XIX, para abordarmos os inícios da egiptologia e contextualizar a acção principal deste filme. A Egiptologia é actualmente um campo científico multi-disciplinar, que engloba conhecimentos e investigações em áreas tão diversas como a História, a Filologia, a Arqueologia, a Paleobotânica, a Química, a Biologia, a Radiologia, a Antracologia, entre outros. Este é o resultado de uma evolução que não se limitou a acompanhar o desenvolvimento dos principais paradigmas científicos, contribuindo em vários momentos com as suas próprias descobertas e inovações. A história da Egiptologia, identificada normalmente com o momento inícial da decifração da escrita hieroglífica, em 1822, por Jean-François Champollion, acompanha e reflecte muitos episódios da História Contemporânea, a começar pela expedição militar napoleónica ao Egipto que foi um dos acontecimentos mais marcantes deste conturbado período da História da Europa: Napoleão, convencido que só a conquista do Oriente traria as glórias eternas que buscava (e pretendendo, já que lá estava, cortar a ligação da Inglaterra à rota das Índias, pelo Mediterrâneo), reúne cerca de 38000 soldados e mais de 150 sábios (entre biólogos, botânicos, zoólogos, químicos, desenhadores, arquitectos) com o intuito de conquistar e conhecer o país (episódio descrito no filme doa anos 80 Adieu Bonaparte!, de Youssef Chahine, e que tem a vantagem de nos traçar um quadro egípcio sobre uma invasão política e militar ao seu próprio país). Apesar da primeira tarefa ter redundado num fracasso, a segunda vai não só permitir a publicação da primeira obra consagrada de forma científica e rigorosa ao Egipto, a extraordinária e enciclopédica Description de l’Égypte (título abreviado), como permitir a descoberta a famosa Pedra de Roseta, para além de difundir e impulsionar na Europa do período romântico, um orientalismo e uma egiptomania que encontrou boa recepção nos meios intelectuais e que motivará, dialecticamente, o desenvolvimento da Egiptologia. A fase inicial caracterizou-se e foi dinamizada por uma constante «caça ao tesouro» e práticas de antiquariato, na qual indivíduos, aventureiros e estudiosos, em nome próprio ou representando museus e outras instituições, iam para o Egipto participar na «pilhagem de antiguidades» que acabaria por fornecer a maioria dos objectos que constituem hoje as principais colecções museológicas da Europa (Museu Britânico, Museu do Louvre, Museu Egípcio de Turim, Museu de Berlim, entre outros). Estas actividades, longe de perseguidas pelo Paxá Muhamed Ali, eram toleradas e incentivadas, pois em troca recebia apoio técnico e financeiro (e apoio político) à modernização industrial do país. Formaram-se autênticas redes que camuflavam e protegiam esse tráfico, nomeadamente pela colocação de cônsules estrangeiros, os “firman” que utilizavam as vantagens burocráticas da sua posição para autorização e organizar o transporte das antiguidades (nomes como Bernardino Drovetti, Henry Salt ou Giovanni Anastasi). Outros viajantes mais escrupulosos como Prisse d’Avennes (1807-1879) pautaram a sua acção por métodos mais dignificantes. Um dos papiros mais valiosos da Bibliothèque Nationale foi comprado por este orientalista e artista francês precisamente a um aldeão de Gurna, localidade que, mercê da sua localização sempre conviveu com esta actividade. Este Papiro, datado de c. de 2000 a.C., contém a única versão das «Instruções de Ptahhotep», vizir do faraó Isesi da V dinastia (Império Antigo, c. 2400 a.C.). Outras expedições de grande importância para o estudo científico do antigo Egipto foram as de John Gardner Wilkinson entre 1821-33, Jean-François Champollion entre 1828-29 e de Karl Richard Lepsius, entre 1842-45, o prussiano que é considerado o fundador da egiptologia alemã. As actividades caracterizáveis essencialmente pela recolha e pilhagem de materiais mudaram de feição com as acções de Auguste Mariette. À semelhança de outros compatriotas, Mariette chegou ao Egipto com o objectivo de fornecer ao Museu do Louvre antiguidades (mais precisamente manuscritos coptas e siríacos). No entanto, o contacto com o permanente saque ao património histórico e uma vocação arqueológica de discutíveis métodos mas de meritórios resultados (destacando-se a descoberta do Serapeum em Sakara, a remoção das areias de diversas mastabas do mesmo local e da grande Esfinge de Guiza) levou- o a repensar as suas orientações. Assim, instando junto do novo Paxá Mohamed Saïd, Mariette esforça-se por regulamentar todas as intervenções no solo egípcio e impedir que a espoliação desregrada continuasse. Em 1858 é nomeado director dos trabalhos do antigo Egipto, órgão antecessor do moderno Conselho Supremo das Antiguidades Egípcias, criando a primeira regulamentação a nível mundial de «protecção patrimonial das culturas indígenas», procurando defender património, recuperar monumentos, fazer prospecção de locais arqueológicos e reunir e estudar as peças num local, no Museu Arqueológico de Bulak (no bairro de Zamalek, no Cairo). Inaugurado em 1863, já durante o governo de Ismail Paxá (186379), o Museu antecessor do actual Museu Egípcio do Cairo, tinha cerca de 6500 peças. Auguste Mariette inaugura um novo período da história da Egiptologia, com a componente científica e de estudo das peças muito mas evidente. Permaneceu no cargo até ao ano de sua morte, recusando diversas ofertas de trabalho honoríficas no seu país. Neste contexto, gostaria de evocar a exposição patente na Biblioteca Nacional com o tema «Wagner e Verdi: 200 anos». Aqui, diversos trabalhos e elementos originais das óperas destes dois compositores são recordados. Aida, ópera de cariz egipcianizante e uma das mais emblemáticas do compositor italiano, foi estreada no Cairo em 1871, na inauguração da Ópera local e na sequência das festividades da abertura do canal de Suez, dois anos antes. Apesar de surgir Antonio Ghislanzoni como o autor do libreto, foi Auguste Mariette quem compôs o original, para além da consultadoria ao quadro histórico e aos componentes visuais. No processo de reorganização das antiguidades, surgiu um novo obstáculo mais difícil de solucionar: cientes da importância económica do tráfico de peças egípcias, os próprios camponeses tomavam a iniciativa de procurar, furtivamente, objectos que pudessem comercializar com os intermediários que os levariam às referidas colecções europeias ou ao comércio directo com os turistas em lojas e antiquários espalhados por todos o país, colaborando com a criação das redes ilegais, da «arqueologia clandestina» (utilizando o termo do Prof. José Sales). É neste contexto que voltam a surgir os aldeões de Gurna, localidade situada na margem ocidental do rio Nilo, com as casas incrustadas na mesma montanha que serviu de último abrigo aos monarcas do Império Novo, onde decorre grande parte da acção do filme e de onde é oriundo a personagem principal. Originalmente, algumas das pessoas desta aldeia viviam inclusivamente nas antigas câmaras subterrâneas, lado a lado com os espólios funerários, até serem realojados noutro local, nas proximidades, em finais dos anos 40 do séc. XX. Ficou registado um indivíduo chamado Mustafa Agha Ayat (que surge no filme como o mercador Ayub que se desloca a Gurna para comprar o colar com o Udjat) comerciante de antiguidades em Lucsor e agente consular de Rússia, Inglaterra e Bélgica. A imunidade diplomática que advinha deste cargo permitia-lhe uma grande liberdade de acção e, no filme, é ele quem negoceia directamente com a família. A sucessão de acontecimentos no filme está bastante similar com o que aconteceu na realidade e com a descrição contida na citada obra de Gaston Maspero. Este havia sido nomeado director do Serviço Nacional de Antiguidades em 1881 (ano da morte de Auguste Mariette, no Egipto), e foi logo nesse primeiro ano que este francês de origem italiana promoveu sérias tentativas de desmantelamento de redes e influências relativas ao comércio ilegal de antiguidades. Tal como o próprio descreve, o Museu foi tomando conhecimento do aparecimento de algumas peças na Europa, sobretudo em França, que, apesar a fraca qualidade eram originais. Maspero chegou a ser informado pelos próprios compradores finais (ele próprio chegara ao Egipto com o intuito de fundar um instituto francês de arqueologia) da circulação de papiros que deveriam pertencer a espólios funerários de faraós e outros indivíduos importantes, cujos sarcófagos ou templos funerários estavam ainda por descobrir. Esta descrição tem, no entanto, algumas divergências comparativamente à acção do filme (ou melhor, o filme tem dissemelhanças com as descrições contidas na obra), alterações deliberadas empreendidas pelo realizador que procuraram abordagens mais eficazes, não só à própria acção, como a um dos grandes objectivos finais. Na realidade, uma investigação que já estava em curso há alguns meses, tinha permitido identificar os três irmãos Abd el-Rassul. Nem Ahmed, nem Hussein (que haviam estado sob interrogatório no início do ano) revelaram coisa alguma, tendo sido libertados em Maio. Aparentemente, os dois irmãos interrogados acabam por reclamar maiores parcelas na divisão dos lucros, algo que esteve na origem das querelas que, a 25 de Junho desse ano, levou Mohamed, o irmão mais velho, a adiantar-se e a revelar o local exacto do esconderijo às autoridades de Qena. Por essa altura Maspero estava em França, mas havia deixado as instruções necessárias a Emil Burgsch para que este agisse em caso de necessidade. Dois dias depois o kédiva, que já estava a par do problema, ordena a partida da missão a 1 de Julho, da qual fizeram parte o verbalizado arqueólogo alemão, Thadeos Matafian (futuro «inspecteur de la circonscription des pyramids»), o piloto do barco Mohamed al-Salam e Ahmed Kamal, secretário do museu e, no filme, o principal responsável pela expedição. Perante os elementos expostos, podemos situar o início da acção do filme nesta altura. Neste, Mohamed é o sheikh Salim, o mais velho da tríade. A acção inicia-se com o funeral deste, enquanto os outros dois tentam, imediatamente, introduzir os dois sobrinhos no “segredo” que “durante gerações se manteve na tribo”. A versão oficial refere que o local estava a ser explorado desde 1871, dez anos antes, enquanto o filme, porventura salientando o carácter mais ou menos permanente que o tráfico teve ao longo dos séculos, e seguramente durante o séc. XIX em virtude do crescente interesse dos países europeus no Egipto e nas antiguidades egípcias, remete a actividade para uma durabilidade muito mais extensa, dando-lhe até um certo cariz iniciático com referências à “preparação” dada pelo falecido sheikh aos dois filhos e o secretismo que a envolvia (apenas os dois anciões e, depois, Wanis e o irmão, sabiam da exacta localização e do carácter da “fonte” de tal “modo de vida”: os cadáveres dos mortos). Em Julho de 1881, data da chegada a Lucsor da referida equipa, estavam já em vigor algumas leis de protecção ao património cultural devido às referidas acções de Auguste Mariette. A lei otomana proibia a realização de escavações ilegais, a venda não autorizada de artefactos, o arrombamento de túmulos e o transporte de antiguidades sem a permissão das autoridades. Conduzidos por Mohamed à falésia tebana, num local muito próximo do templo funerário de Hatchepsut em Deir el-Bahari, a cerca de doze metros de profundidade estavam armazenados os sarcófagos de alguns dos mais conhecidos faraós da XVIII dinastia (Ahmés, o fundador, Amenhotep I, Tutmés I, II e III) e da XIX dinastia (Ramsés I, II, III, IX e Seti I), para além de algumas rainhas (Nefertari, Ahhotep, eventualmente o de Hatchepsut) e outros elementos das famílias reinantes da XVII, XX e XXI dinastias. Mais de quarenta múmias com diverso material funerário foi encontrado e removido em quarenta e oito horas (no filme esta acção é feita numa noite). Tudo foi transportado para o Museu de Bulak, sendo famosa a cena em que homens e mulheres se aproximavam das margens fluviais, à medida que o barco subia o Nilo, acenando e carpindo pela passagem dos ancestrais monarcas. Mas que túmulo era este e porque é que albergava mais de quarenta múmias, quando o normal seria cada uma delas estar no seu próprio túmulo, como praticamente sempre se fez na história do antigo Egipto? Não há certezas sobre quem era o primeiro proprietário do local. Sabe-se no entanto que foi o sumo-sacerdote de Amon, Pinnedjem I (1070-1055 a.C.), quem fez uma série de retumulações incluindo esta em Deir el-Bahari. Este sumo-sacerdote pontificou numa altura muito particular da história egípcia, durante a qual não só o cardeal cargo se tinha tornado hereditário, como os seus ocupantes pontualmente reclamaram para si a titulatura real, facto atestado por algumas cartelas com os seus nomes. Tal como surge nas inscrições do Templo de Khonsu em Karnak, Pinnedjem assumiu-se como faraó no ano 15 de Smendes (nome grecizado do monarca Nusebanebdjed), monarca que reinava a partir da cidade de Tânis, no Baixo Egipto, a cerca de 2000 quilómetros de distância da capital da região autonomizada. Vivia-se por esta altura um período de transição entre as duas fases que os especialistas, séculos mais tarde, designaram como Império Novo e Terceiro Período Intermediário. O Egipto do Império Novo conheceu alguns dos momentos mais brilhantes da sua longa história de mais de 3000 anos, como por exemplo na arquitectura (o Ramesseum e o templo de Medinet Habu onde decorrem algumas cenas do filme). Pela primeira vez, de forma organizada e permanente, a civilização africana expandiu-se para Nordeste, para o Próximo Oriente, conquistando as regiões cananaica e síria, chegando inclusivamente ao Alto Eufrates, onde Tutmés III deposita a Estela de Karkemish marcando os limites fronteiriços da sua governação. Incontáveis riquezas e gentes de todos os países vizinhos afluíram ao país do Nilo, reconfigurando e reestruturando uma sociedade que sempre viveu, até em virtude da própria geografia envolvente, afastada das comunidades exógenas. Perante tanta riqueza e prestígio, diversos povos vizinhos lançaram olhares cobiçosos aos férteis terrenos nilóticos: os Núbios ao Sul, os Povos do Mar por mar e por terra, pelo Sinai, e sobretudo os Líbios a Noroeste, ao Delta. Os especialistas hesitam perante a ambiguidade das poucas provas referentes ao final da XX dinastia e início da XXI, mas este facto por si só é indicativo de uma notória desorganização governativa, num país que sempre se distinguiu pela eficiência burocrática da sua administração. É evidente que esta anómala situação só podia ter ocorrido numa fase da história onde, fundamentalmente, o poder real não tinha suficiente preponderância para se afirmar sobre o poder religioso, cenário que progressivamente se impõe a partir do final do reinado de Ramsés III (considerado por autores como Peter Clayton como o «último grande faraó»). Durante esta fase, o Egipto ainda detinha o domínio político sobre parte do Corredor Sírio-palestiniano e a imagem do faraonato, interna e externamente, teria certamente saído reforçada pelas vitórias de Ramsés III sobre os Povos do Mar. David O'Connor, prudentemente, não sobrevaloriza as causas económicas do declínio, ainda que cheias insuficientes e falta de mão-de-obra tenham intensificado o problema nos finais da XX dinastia (período que seria lembrado em fases tardias como «o tempo das hienas, o tempo em que havia fome»). As informações existentes relativas aos tributos e rendas fundiárias feitas ao rei são bastante parcelares mas, pelo menos teoricamente, as terras continuavam a pertencer ao faraó, e o ouro núbio manteve-se acessível até ao final da dinastia. Porém, a progressiva diminuição do prestígio e da solidez política do faraonato contrastou com a estabilidade e continuidade no sacerdócio amoniano. A «secundarização do aparelho burocrático do palácio» provocou uma reconfiguração das relações entre os poderes real, local e religioso, originando divisões sociais que afectaram a distribuição dos recursos e, em última análise, distúrbios, como os recorrentes assaltos a túmulos. Sobre este período, escreveu Claire Lalouette: «A fraqueza do poder central, a instabilidade económica e a miséria que grassou no país foram responsáveis pelo crescente desgoverno e por certos escândalos». Entre os escândalos conhecidos estão os assaltos, perpetrados pelo menos desde o reinado de Ramsés IX (1127-1109 a.C.) no Vale dos Reis, e sobre os quais nos chegaram alguns interessantes relatos com descrições de acções judiciais, como por exemplo o segundo Papiro Leopoldo II, o Papiro Meyer A e B ou o Papiro Abbott. Neste último, observamos uma disputa entre Pewero (governador da necrópole tebana) e Peser (governador da cidade), onde as denúncias de assaltos por parte do segundo levaram a que o vizir ordenasse uma investigação. As buscas centraram-se sobretudo na zona de Dra Abu el-Naga (onde seria encontrado, dez anos depois, um segundo esconderijo abrigando várias dezenas de múmias e outros bens), entre Deir el-Bahari e el-Tarif, local onde repousavam, principalmente, monarcas da XVII dinastia. Entre os diversos túmulos inspeccionados, de faraós, de Cantoras de Amon e de outros nobres, poucos apresentavam sinais de violação. Não obstante, Pewero considerou isso como uma vitória perante as acusações de seu rival. James H. Breasted considera que essa desculpabilização do «administrador dos finados» foi um sinal do envolvimento das autoridades nesses actos, pois acabou mesmo por receber o apoio político do vizir. A PROBLEMÁTICA DA NOMEAÇÃO Manifesta e transversal a toda a obra, evocada directa e indirectamente e com reflexões evidentes representadas em alguns dos diálogos, está a problemática do nome e do poder deste na invocação e existência da pessoa nomeada. Este foi efectivamente um dos eixos explorados pelo realizador, para além da piedosa acção dos sacerdotes da XX dinastia que veio a resultar num entusiasmante e até comovente episódio, em pleno séc. XIX da nossa era. A escolha de um nome no Egipto antigo tinha uma enorme carga funcional, pois acreditava-se que existia uma relação mágica entre as palavras que compunham esse nome e a vivência do seu possuidor. Actualmente a escolha de nomes é feita, de forma geral, por questões estético-linguísticas. A evidência do significado dos nomes varia bastante, perdendose, em alguns casos, na imensidão do tempo. Noutros, essa relação continua bem presente e objectiva, como em nomes de origem grega, por exemplo Filomena (Philoméne – “a que é amada” ou “ser amada”), ou em certas preferências localizadas em determinados contextos (a abundância do nome Fátima nos registos de determinado período da História de Portugal, ou de José, Maria – remissões ás personalidades cristãs). A este propósito, recordemos o único nome de origem egípcia conhecido no território português: Onofre, que deriva da palavra egípcio “uen-nefer”, um dos epítetos do deus Osíris e que se traduz por “belo e estável”. Precisamente, no antigo Egipto o nome devia enunciar uma série de qualidades e características que se pretendiam ver identificadas com a pessoa. Nomear era consignar ao indivíduo ou ao objecto uma natureza e um horizonte de realização da sua acção individual e comunitária, e até pela própria integração dessa pessoa ou desse elemento no cosmos cultural em que se encontrava integrada. A verbalização de um nome remete o emissor e os receptores, seja pela oralidade ou pela escrita, para uma determinada realidade, conceptual ou material. O nome é, em certo sentido, uma dimensão simbólica da realidade que se pretende evocar. Assim, qualquer pessoa no antigo Egipto recebia um nome no momento do nascimento. Mas ao longo da vida podia receber um ou mais nomes, fosse por via do que vulgarmente se conhece por “alcunhas” (determinado nome\epíteto que representa bem, dentro daquela relação pessoal, a personalidade do nomeado, ou por mérito, divino ou institucional, normalmente através do desempenho de uma determinada ascendência ou função que o nomeado gostaria de perpetuar e potenciar através da sua integração no nome, como por exemplo em Ramessu («Ré criou-o») ou Hemnethertepienamon (que significa “Sumo sacerdote de Amon”) e que Herihor da XXI dinastia adoptou como nome chegando inclusivamente a colocá-lo numa cartela, prática que de resto simbolizou e, nesse mesmo sentido, materializou uma cisão política do Alto com o Baixo Egipto. As motivações para a escolha de nomes podiam ser muito diversas. Contudo, saliente-se o já referido carácter funcional do mesmo e, neste caso específico, a sua importância para o culto dos mortos. O defunto era recordado principalmente pela nomeação, o seu nome consistia na primeira dimensão, na melhor forma ao dispor da memória no processo de evocação do defunto. Tratase efectivamente de uma fórmula, de uma instituição, de um processo de síntese de determinada individualidade. É, inclusivamente, uma questão prática que radica na economia temporal. Mas, se por um lado se acreditava que a recordação ou recitação do nome do defunto podia propiciar a eterna existência do mesmo, pelo contrário, o seu esquecimento, destruição ou alteração tinham efeitos inversos (o nome do faraó Hatchepsut que foi insistentemente apagado dos registos; Amenhotep IV, cujo forma significa «Amon está Satisfeito» ou «Possa Amon estar satisfeito», mudou o seu nome para Akhenaton («Esplendor de Aton») na sequência das profundas reformas político-religiosas que encetou no país, através das quais pretendeu alterar a divindade proeminente no panteão egípcio de Amon para Aton noutro gesto político e simbólico; ou também o igualmente famoso caso de Tutankhaton («Imagem viva de Aton») e da alteração onomástica para Tutankhamon («Imagem viva de Amon»), que vem na sequência do exemplo anterior. Estes são exemplos de conhecidos processos de desmemorização ocorridos no período faraónico e que revelam a grande importância do nome no contexto não só desta civilização, mas de praticamente todo o mundo Pré-Clássico. No filme, o problema é logo evocado na primeira imagem que antecede o genérico: um dos objectos mais misteriosos do Museu Egípcio do Cairo, um sarcófago real encontrado no KV 55 (um túmulo do período amarniano, mas de proprietário incerto) por Edward R. Ayrton em Janeiro de 1907. Especialistas defendem que albergava a múmia de Akhenaton, ou a de Semenkhkaré (cujo nome significa «Vigoroso é o ka de Ré»), eventualmente em coregência com o anterior monarca, ou ainda a de um irmão (ou meio-irmão) de Tutankhamon. Contudo, e apesar da positiva identificação estilística com o período amarniano, e a descoberta de que fora inicialmente destinado a uma mulher (muito provavelmente à rainha Tié) os danos infligidos e a obliteração das cartelas que nomeavam o verdadeiro ocupante, não permitem nenhuma conclusão definitiva. Mas a grande referência a esta reflexão está contida no próprio nome do filme A Noite em Que Se Contam os Anos, e que remete para o capítulo 25 do «Livro dos Mortos». Livro dos Mortos é uma designação meramente convencional, forjada pelo grande egiptólogo prussiano do séc. XIX Karl Richard Lepsius, e representa na verdade um conjunto de textos funerários utilizados a partir do Império Médio para envolver paredes de túmulos, faces exteriores e interiores de sarcófagos, ou serem inscritas em estatuetas funerárias ou outros objectos que acompanhassem o defunto na sua viagem até ao Além. A este conjunto de formulações os antigos Egípcios chamavam de «Fórmulas para sair à luz do dia», através das quais tentavam prevenir acontecimentos e eventos que sucederiam ao defunto no caminho que este teria de percorrer até chegar ao processo de Justificação (julgamento perante Osíris e Maet) e a pretendida identificação com o primeiro (Osíris) que permitiria a sua ressurreição para uma aprazível vida eterna. Assim, essas fórmulas iriam auxiliar o defunto no percurso pelo desconhecido que se tornava conhecido pelo conjunto de saberes transmitidos pelo texto. Durante as diversas etapas e perigos, entre os quais estava, por exemplo, a passagem em várias portas guardadas por demónios e que o defunto apenas transporia se conhecesse e proferisse o nome correcto desses seres e desses locais, está a alusão ao capítulo 25 escolhida por Shadi Abdel Salam. Ao enunciar esta fórmula, o defunto obteria a capacidade de recordar o seu próprio nome podendo, através disso, trazer a sua existência de volta à vida (aqui, a “noite em que se contam os anos” é, para Paul Barguet, um pedido de direito à vida no decurso da imensidão do tempo). Um cadáver sem nome é um corpo sem a antiga essência, sem a presença da sua personalidade. É assim que os defuntos são tratados pelos membros antigos da tribo Hurabat, incapazes de compreender e de ler esse passado, porque precisamente não o conhecem. Os corpos dos antigos faraós, desses deuses da Antiguidade, são tratados como pura mercadoria, sem qualquer dignidade, e os seus usurpadores não hesitam em desmembrá-los para obter o espólio, naquela que é a cena porventura emocionalmente mais intensa de todo o filme. A questão da nomeação é invocada em situações diversas, como no momento em que a mãe decide exonerar e amaldiçoar o filho mais velho pelas desonras proferidas para com o nome do recém-falecido marido. Da memorização e repetição do nome (e invoque-se uma das cenas finais em que o assistente, à medida em que os sarcófagos vão sendo retirados, vai simbolicamente pronunciando o nome do ocupante) dependia, em parte, a sobrevivência do falecido após a morte; esse acto consistia numa das funções dos familiares e visitantes dos túmulos dos defuntos. Esta questão ilustra a dimensão artística e mais refinada deste filme. A Múmia é um filme totalmente antropomórfico. Possui, na disposição, nos diálogos e nas formas de relacionamento das personagens, pormenores de grande beleza. Simultaneamente, é um filme com concepções e padrões figurativos estranhos às estruturas ocidentais, contribuindo por isso para a criação de novas referências no espectador impreparado. The Night of Counting the Years veicula uma preocupação com o passado histórico do Egipto. Incita o país a encarar o seu passado como um património comum, exorta a população egípcia a estimar e a valorizar devidamente os vestígios desse passado, do seu próprio passado. E utiliza o cinema para esse fim. “A ficção”, disse um dia Abdel Salam, “é o que liga o conflito ao acordo. O que os personagens deste filme descobriram é maior do que eles, ultrapassa-os. Algo se começou a mover e ninguém o pode deter. Acaso se pode deter o curso do Nilo?”