OS QUATRO EVANGELHOS E O DIREITO CIVIL
The FoUR GoSPelS anD Civil law
Antonio Junqueira de Azevedo*
Resumo:
o texto pretende apresentar as posições evangélicas em temas de Direito Civil,
– limitadas, neste primeiro artigo, às questões mais importantes sobre Pessoas e
Bens da Parte Geral. as questões tratadas são: igualdade das mulheres, igualdade
das etnias e nacionalidades; relações homossexuais e afetivas; início e fim da
personalidade; animais e coisas.
Palavra-chaves: evangelho. igualdade. Discriminação. animais.
abstract:
The text you want to display the evangelical positions on matters of civil law
– limited, in this first article, the most important issues regarding persons and
property of the general part. The issues addressed are: women’s equality, equality of
ethnicities and nationalities; homosexual relations and affective; beginning and end
of personality; animals and things.
Keywords: Gospel. equality. Discrimination. animals.
introdução
Sem muito esforço, o leitor poderá imaginar a quantidade imensa de
livros, comentando os evangelhos, escritos nos últimos dois milênios, – especialmente
nos vários idiomas da civilização ocidental, em grego, latim, português, francês, inglês,
alemão, espanhol, italiano, etc.1 Poderá também imaginar o quanto já se publicou sobre
Direito Civil nessas mesmas línguas: bibliotecas! No entanto, especificamente sobre os
dois temas em conjunto, esse que é o nosso assunto, evangelhos e Direito Civil, chega a
ser surpreendente, mas não temos conhecimento de nenhum livro. há, – e não são poucas
–, obras sobre Religião e Direito;2 em geral, porém, examinam o direito à luz da religião
– e, por outro lado, não se limitam, no campo jurídico, ao Direito Civil nem, no religioso,
aos evangelhos. nosso intuito é diverso: pretendemos examinar somente os evangelhos, e
à luz do Direito Civil;3 por isso mesmo, o que se poderia chamar de “grade de exposição”,
*
1
2
3
Professor Titular de Direito Civil e ex-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
“evangelhos”, em todo o texto desse artigo, são os evangelhos canônicos: de São Mateus (Mt), São Marcos
(Mc), São lucas (lc) e São João (Jo).
Por exemplo, “Il diritto nel Vangelo” de Carlo Gray, 1922; “De l´influence du christianisme sur le droit civil
des Romains”, de Raymond Theodore Troplong, 1868 (3ª ed.); as considerações de Gustav Radbruch sobre
religião nos vários institutos tratados em “Filosofia do Direito”; etc.
há algo parecido já feito em outros campos do direito; em direito processual e penal, por exemplo, por causa
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para este ensaio, será o quadro de direito civil como vem sendo ensinado no Brasil nos
últimos séculos – é o quadro de origem pandetista –: uma Parte Geral, em três livros, dois,
com os elementos da estática jurídica, pessoas e bens, e um terceiro, com os elementos da
dinâmica jurídica, fatos jurídicos; e uma Parte especial, em quatro livros, família, direitos
reais, obrigações e sucessões. Este artigo, especificamente, por fraqueza humana, está
limitado aos dois elementos da estática jurídica; o restante da matéria civilista fica, se
houver disposição, para ser desenvolvido em outro texto.
Pessoas naturais
igualdade do homem e da mulher. o intenso papel das mulheres nas atividades de Jesus
antes de mais nada cumpre salientar que é recente no mundo jurídico a
norma da igualdade do homem e da mulher. Exemplificando, o Código Civil, que inaugura
os tempos jurídicos atuais, o Código Civil francês, de 1804, no seu artigo 12, determinava
que a estrangeira que tivesse casado com um francês seguia a condição do marido e, no art.
19, demonstrando que o problema não era de predominância da nacionalidade e sim, de
predominância de sexo, determinava, inversamente, que a mulher francesa que casasse com
um estrangeiro também seguia a condição do marido. Entre nós, o Código Civil de 1916,
em sua redação originária, qualificava a mulher casada entre os relativamente incapazes! A
igualdade somente veio, e não de maneira completa, com o estatuto da Mulher Casada de
1962. Somente, pois, em meados do século XX, é que as idéias dos movimentos feministas
acabaram vencendo preconceitos de superioridade masculina.
e os evangelhos? até hoje, as pessoas em geral, ainda que com boa cultura,
não têm uma idéia clara do quanto as mulheres estavam presentes nas atividades de Jesus.
Jesus, nas pregações pela Galiléia, Judéia e territórios próximos, se fazia acompanhar muitas
vezes pelos apóstolos e por um grupo de mulheres. está escrito; esses acompanhantes
eram dos dois sexos. O Evangelho de São Lucas é claro (Lc 8, 2 e 3): “E aconteceu após
isto que andava pelas cidades e aldeias pregando e anunciando o reino de Deus, e os doze
estavam com ele, como também algumas mulheres que tinham sido livradas de espíritos
malignos e enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual tinham saído sete demônios,
e Joana, mulher de Cusa, procurador de herodes, e Suzana e outras muitas, que o assistiam
do processo de Jesus: “Il processo a Gesù”, S.G.F.Brandon, trad. it. de “The Trial of Jesus of Nazareth”,
1968; “O Julgamento de Jesus, o Nazareno”, de haim Cohn,ex-presidente da Suprema Corte de israel, trad.
bras.; “Il caso Gesù. Il piú controverso processo della storia”, de w. Fricke, trad. it., 1989; etc.). Mas poderia
também haver o exame dos evangelhos à luz do Direito Tributário, pelas várias referências a impostos (“a
César o que é de Cesar” e Mt 17, 24-27); idem, no Direito do Trabalho (e contratual) pela frequência com
que nos evangelhos se apresentam operários (inclusive a difícil parábola dos operários da vinha – Mt 20,
1-16); em Direito Constitucional, pela diversidade de estruturas políticas referidas; etc.
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com as suas posses”. Mais adiante, por ocasião da via crucis, o mesmo evangelho de
São lucas (lc 23, 27-29) torna a referir a presença de mulheres: “Seguia-o, porém, uma
grande multidão de povo e de mulheres que choravam e o lamentavam. Mas Jesus voltouse para elas e disse: “filhas de Jerusalém, não choreis sobre mim, chorai sobre vós mesmas
e sobre vossos filhos”. ainda lc 23, 49.
Também por ocasião da paixão, os outros três evangelhos relatam a presença
das mulheres: “achavam-se também ali, de longe, muitas mulheres, que desde a Galiléia
tinham seguido e servido a Jesus. entre elas estavam Maria Madalena, Maria, mãe de
Tiago e José e a mãe dos filhos de Zebedeu” (Mt 27, 55). “E achavam-se ali também umas
mulheres, observando de longe; entre as quais estavam, Maria Madalena, e Maria, mãe de
Tiago o Menor e de José, e Salomé, que o tinham seguido e o haviam assistido, quando ele
estava na Galiléia; e muitas outras que juntamente com ele haviam subido a Jerusalém”
(Mc 15, 40). “Junto à cruz de Jesus, porém, estavam de pé sua Mãe, a irmã de sua Mãe,
Maria, mulher de Cléofas, e Maria Madalena” (Jo 19, 25).4
Sem esquecer que a primeira pessoa a quem Cristo ressuscitado apareceu
era uma mulher, Maria Madalena, interessa aqui, para a questão da igualdade entre homem
e mulher, examinar o conhecido episódio da samaritana junto ao poço (Evangelho de São
João 4, 4-42); esse fato revela, com antecedência de séculos e milênios, a igualdade ao
mesmo tempo social e religiosa com que Jesus tratava a todos. No relato, os apóstolos
de início não estão presentes e, quando chegam, se espantam que Jesus estivesse falando
com uma mulher desconhecida. esse não era um comportamento usual. o texto diz: “e
logo os seus discípulos chegaram, e maravilharam-se de que estivesse falando com uma
mulher. ninguém, todavia, disse: - Que perguntas? – ou: Que falas com ela?”. além
disso, observamos nós, o diálogo então travado entre Jesus e a samaritana consubstancia
a revelação sobre a água da vida – tão importante para a obtenção do Reino de Deus – e
essa revelação é feita a uma mulher. em todos os quatro evangelhos, vê-se, pois, uma
profunda igualdade entre homem e mulher, igualdade anterior, de séculos e milênios, à
norma jurídica do ocidente atual.5
4
Como se vê, Maria Madalena tinha presença importante, porque está em todas as listas. Foi também a primeira
pessoa a ver Cristo ressuscitado. não há, porém, nada que indique, além de relações afetivas, também
relações sexuais entre Jesus e Maria Madalena. Os evangelhos apócrifos é que trazem alguma coisa nesse
sentido: “Evangelho de Felipe” (meados do século iii provavelmente), logion 55 “a companheira do Filho
é Miriam (Maria) de Magdala. O Mestre amava Miriam mais que a todos os discípulos; ele freqüentemente
a beijava na boca”. Em seguida, nesse texto, os apóstolos se queixam de revelações diretas feitas a uma
mulher (“L´Evangile de Philippe”, introd. e edição de Jean-Yves leloup, Paris, albin Michel, 2003, pg. 107).
No também apócrifo “Evangelho de Maria Madalena” (texto 17), há a mesma afirmação de tratamento
preferencial e, da mesma forma, há queixa – aqui, de Pedro – de revelação direta a uma mulher. (“The Gospel
of Mary Magdalene”, Jean-Yves leloup, trad. inglesa, vermont, inner Traditions, 2002, p. 159).
5
Se a igualdade entre homem e mulher prevalecia no movimento de Jesus e está nos evangelhos, cumpre
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a igualdade (ou desigualdade) de nacionalidades e etnias
O Código Civil, de 1916, trazia artigo (o art. 3º) que era uma proclamação
de igualdade das nacionalidades: “a lei não distingue entre nacionais e estrangeiros quanto
à aquisição e ao gozo dos direitos civis”. no anteprojeto que serviu de base para o atual
Código Civil, o artigo homólogo recebeu redação mais fraca: “Salvo lei em contrário, a lei
não distingue entre nacionais e estrangeiros quanto à aquisição e ao gozo dos direitos civis”
e foi, então, objeto da crítica de Caio Mário da Silva Pereira: “logo no seu inicio eclode
a tendência acanhada ou tímida de suas soluções. Quem confrontar os texto de 1916 e de
1972, estranha o que num e noutro se enuncia sobre a igualdade na aquisição e no exercício
dos direitos civis. enquanto o diploma vigente <é o de 1916> a enuncia corajosamente,
proclamando que “a lei não distingue entre nacionais e estrangeiros quanto à aquisição
e ao gozo dos direitos civis” (art. 3°), o anteprojeto faz uma restrição ao principio no
art. 2°: “Salvo lei em contrário, não se distingue entre nacionais e estrangeiros quanto
à aquisição e ao gozo dos diretos privados”. Meio século depois de um pronunciamento
aberto e confiante, manifestar-se-ia o receio, a falta de fé, o pensamento restritivista.
Compreende-se a cautela no tocante aos direitos políticos. Mas desafina da grandeza de
nossa época, destoa do apelo que se faz à importação do capital e da técnica alienígena
este preceito, como a dizer que os teremos aqui, mas em plano de desigualdade” (jornal
“o estado de São Paulo”, 20/Xii/72). Tornou-se essa norma um dos pontos do violento
debate entre o mencionado jurista e o coordenador do novo texto civil, Miguel Reale. o
artigo da igualdade acabou suprimido do Código Civil, eis que as desigualdades residuais
eram antes de direito público que de direito privado. Com ou sem texto legal, prevalece,
porém, no campo civilista, sem sombra de dúvida a igualdade geral das pessoas, inclusive
entre nacionais e estrangeiros.
nos evangelhos, não é exatamente assim. Jesus era um bom judeu e, apesar
das várias orientações do judaísmo de então (fariseus, saduceus, essênios, zelotas) e apesar
da espiritualização da religião pelo movimento de Jesus, todas essas correntes religiosas
explicar por que ocorreu, na própria Igreja, a desigualdade posterior. Ora, em palavras simples, a causa é a
formação judaica e greco-romana da população de então, inclusive, especialmente de São Paulo; por exemplo,
i Co 11, 7-9: “O homem, certamente, não deve cobrir sua cabeça, porque é imagem e glória de Deus, mas a
mulher é glória do homem. Nem foi o homem criado por causa da mulher, mas sim a mulher por causa do
homem”. É preciso ter em mente que São Paulo, tão ativo na difusão e organização do cristianismo primitivo,
na verdade, não foi apóstolo, um dos doze, e nunca viu nem ouviu o Jesus histórico. Em suas viagens, não se
fazia acompanhar de mulher, ao contrário de São Pedro e outros. ele mesmo escreveu (i Co 9, 3-6): “Esta é
a minha defesa contra os que me examinam. Não temos nós porventura o direito de comer e beber? Acaso
não temos nós o direito de levar uma mulher irmã, assim como também os outros apóstolos, e os irmãos do
Senhor, e Cefas? Ou eu só e Barnabé não temos direito de fazer isto?”. vê-se que as idéias de desigualdade
de São Paulo não correspondem aos Evangelhos – e nem mesmo ao comportamento dos apóstolos, inclusive
São Pedro (Cefas), que foi casado.
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ou ideológicas sustentavam que o Messias deveria nascer entre os judeus, o povo eleito,
– sob esse aspecto, diverso dos demais. essa prioridade está também nos evangelhos,
escrevendo São João evangelista, literalmente, que “dos judeus é que vem a salvação” (Jo
4,22) (E há quem diga que esse Apóstolo, judeu ele mesmo, era anti-semita!) O próprio
Jesus, segundo os Evangelhos, deu prioridade aos judeus. Um episódio interessante é o
da mulher cananéia portanto, não-judia, que pediu a Jesus o favor de curar sua filha (Mt
15, 21 e Mc 7,24) e a quem Jesus respondeu que primeiramente deveria atender aos judeus
– comparados a filhos –, e não aos gentios, – comparados a cães. A mulher cananéia,
insistindo, replicou que também os cachorrinhos comem as migalhas que os meninos
deixam cair da mesa. a humildade dessa imagem tocou a Jesus que, então, atendeu ao
pedido. Percebe-se, do ponto de vista das nacionalidades e etnias, que há, pois, uma
situação dúplice: prioridade histórica para os judeus, mas também atendimento posterior
aos não-judeus. o mesmo poderia ser concluído das várias referências dos evangelhos
às populações de Tiro e Sidônia, cidades do líbano, ou de nínive e da Mesopotâmia,
da arábia, de Roma, etc. em resumo, os evangelhos não revelam preconceito de etnia
ou nacionalidade; expressam somente a transição histórica: do mundo antigo ao mundo
cristão. há passagem da religião local à religião universal, e do judaísmo, pelo menos
como era, ao “ide, pois, e ensinai todas as nações” (Mt 28, 19).
Relações homossexuais e relações afetivas
além das possíveis discriminações anteriormente examinadas – de gênero
(homem – mulher), de nacionalidade e etnia –, é importante, nos tempos de hoje, verificar
como os evangelhos tratam a questão das relações homossexuais e das relações afetivas
(sendo que por “relações afetivas” não estamos entendendo relações abstratas, meramente
teóricas, mas sim, relações de amizade entre pessoas sem parentesco próximo e com
algum envolvimento físico, isto é, com algum prazer na companhia recíproca – o que
envolve os sentidos, contato, vista, ouvido –, embora sem relações sexuais. ora, não há,
nos evangelhos, nenhuma palavra nem contra nem a favor das relações homossexuais e
há, ao contrário, uma espécie de aprovação das relações afetivas quer entre pessoas do
mesmo sexo quer entre pessoas de sexo diferente. essa diferença de tratamento entre os
dois tipos de relação justifica, até certo ponto, a distinção apresentada por Paulo VI (Cf.
“Declaração sobre algumas questões de ética sexual”, de 29 de dezembro de 1975, n. 8)
entre homossexualismo como condição ou tendência e como ato ou atividade (a atividade
é condenada – cf. “Catecismo da Igreja Católica”, n. 2357).
na condenação do homossexualismo, que muitos textos da igreja expressam,
não há nenhuma que apresente fundamento nos evangelhos. o fundamento é sempre
ou o antigo Testamento ou cartas de São Paulo. ora, o antigo Testamento, já se sabe,
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não é homogêneo e, nele, toda idéia exige interpretação cuidadosa porque vem sempre
envolta em circunstâncias da cultura do tempo. O próprio trecho básico para manifestação
condenatória na matéria (“não te deitarás com um homem, como se fosse mulher; isto
é uma abominação” – levítico, 18, 22) vem logo depois de outra prescrição, hoje nãoobrigatória na Igreja: “não te achegarás a uma mulher durante a sua menstruação”. (aliás,
levítico, capítulo 15, já havia posto a mulher nessas condições como “impura”). Uma
proibição simples, – o homossexualismo é condenado –, sem qualquer esclarecimento e
distinção de situação, parece, salvo melhor juízo, não corresponder nem mesmo ao texto
transcrito, de Levítico 18, 22, e levaria a condenações sem fim, inclusive do rei Davi e
de suas relações com Jônatas: “Tendo Davi acabado de falar com Saul, a alma de Jônatas
apegou-se à alma de Davi e Jônatas começou amá-lo como a si mesmo” (i Samuel, 18,
15). Mais adiante, é Davi quem diz: “Jônatas, meu irmão, por tua causa meu coração me
comprime! Tu me eras tão querido! Tua amizade me era mais preciosa que o amor das
mulheres” (ii Samuel 1, 26).
Por outro lado, quanto às condenações do homossexualismo por São Paulo
(Rm 1, 24-27; i Co 6, 10; i Tm 1, 10),6 cumpre lembrar mais uma vez que 1) São Paulo não
era apóstolo, um dos doze; 2) ele nunca viu, nem ouviu o Jesus histórico. Por isso mesmo,
como já vimos sobre as mulheres e adiante veremos sobre os animais (supra nota 5 e infra
nota 12), suas idéias sobre comportamento tem muito da orientação moral do tempo, e não
de Jesus e dos Evangelhos – cujo fim, aliás, é religioso, o Reino, e não propriamente ético
ou moral.
Se, porém, nada há nos evangelhos contra ou a favor das relações
homossexuais, há tudo a favor das relações afetivas – no sentido supra dito. Senão vejamos.
São João evangelista, a quem a tradição atribui uma vida longa e de muita pureza, era o
“discípulo amado”, “the beloved disciple”: “ora um dos discípulos, a quem Jesus amava,
estava à mesa reclinado ao peito de Jesus. a este Simão Pedro acenou e lhe disse: “Quem é
de quem ele fala?” Reclinando-se o mesmo sobre o peito de Jesus, pergunta-lhe: “Senhor,
quem é?” Jesus respondeu: “É aquele a quem eu der o pão embebido”. e depois que
molhou o pão, deu-o a Judas, filho de Simão Iscariotes” (Jo 13, 23-26). E em outro trecho
(Jo 21, 20-23): “voltando-se Pedro, viu que o seguia aquele discípulo que Jesus amava,
o qual estivera reclinado sobre o seu peito, durante a ceia, e lhe perguntara: “Senhor,
quem é que te há de trair?” vendo-o, pois, Pedro perguntou a Jesus: “Senhor, e este? Que
será dele?” Jesus responde-lhe: “Quero que ele fique assim até que eu venha; que tens tu
com isso? Segue-me tu!” Correu, pois, esse boato entre os irmãos: “aquele discípulo não
6
em Rm 1, 24—27, na verdade, o homossexualismo não é propriamente um ato condenado mas sim uma pena
para os estultos que não glorificam a Deus.
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morre”. Mas Jesus não lhe disse: “Não morre”, mas: “Quero que ele fique assim até que
eu venha; que tens tu com isso?”.
Também lázaro, irmão de Marta e Maria (Jo 11, 1), era certamente muito
querido por Jesus: “Quando, porém, Maria chegou aonde Jesus estava e o viu, lançou-se aos
seus pés e disse-lhe: “Senhor, se houvesse estado aqui, meu irmão não teria morrido”. ora,
vendo-a Jesus chorar, e chorarem os judeus que tinham vindo com ela, ficou intensamente
comovido em espírito. e perguntou: “onde o pusestes?” Responderam-lhe: “Senhor, vem
e vê”. E Jesus chorou. Disseram por isso os judeus “Vede como ele o amava” (Jo 11,
32-36).
As relações afetivas não tinham como pólo somente homens mas também
mulheres; assim, “ora, Jesus estimava Marta, Maria, sua irmã, e lázaro” (Jo 11, 5).
Provavelmente, entre as mulheres, deveria estar também Maria Madalena8. Finalmente,
um sinal de que Jesus não era alheio à simpatia física, própria das “relações afetivas”,
encontra-se no episódio do jovem rico: “Mas olhando-o Jesus, quis-lhe bem e disse-lhe:
“Uma só coisa te falta; vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no
céu; depois vem, e segue-me” (Mc 10, 20 e 21).
Fora dos atos e ditos de Jesus, há também a amizade que consta do relato
do centurião romano, cujas palavras são usadas na missa (“Senhor, eu não sou digno de
que entreis em minha morada”). as relações afetivas estão assim expressas: “ora, o criado
dum centurião, a quem este muito estimava, estava doente, às portas da morte. Quando
pois, ouviu falar de Jesus, enviou-lhe alguns anciãos dos judeus, rogando-lhe que viesse
e salvasse o seu criado” (lc 7, 2 e 3; cf. também Mt 8, 5-13).
em síntese, em matéria de “relações homossexuais”, os evangelhos estão
aproximadamente como está hoje a legislação civil, numa posição neutra. Sobre relações
afetivas, porém, os evangelhos contêm narrações de aprovação, – embora essas relações
pareçam não ser objeto idôneo para preceitos jurídicos, que sobre elas praticamente
silenciam.
Nascituro. Início e fim da personalidade
O art. 2º do atual Código Civil dispõe: “Art. 2º A personalidade civil da
pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os
direitos do nascituro”. Se a personalidade civil começa do nascimento com vida, percebe-
7
8
As pesquisas históricas parecem concordar, hoje, em que o capítulo 21 do Evangelho de São João é acréscimo
posterior. Há também muitos teólogos que negam que a autoria de todo esse Evangelho seja de São João
– com isso não concordamos, De qualquer forma, esse ponto tem importância menor porque o autor, nessa
hipótese, seria alguém da “comunidade joanina”, isto é, um dos fiéis instruídos por São João.
vide nota 4 supra.
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se que o nascituro – embrião no ventre materno – não é civilmente pessoa, embora já possa
ser sujeito de direito. a expressão “sujeito de direito” juridicamente é, pois, mais ampla
que “pessoa”. entes, em processo de aquisição de personalidade, como as fundações
já instituídas e ainda não registradas, podem ser sujeito de direito e ainda não tem
personalidade civil; juridicamente é a mesma situação do nascituro. essa solução jurídica,
porém, não resolve a questão filosófica sobre ser o nascituro pessoa. Ora, perante os
evangelhos, ele é pessoa, porque, nos textos, ao nascituro já se denomina “criança”. leiase, em belo trecho, o que está dito da visita de Maria à sua prima isabel, ambas grávidas:
“naqueles dias, Maria se levantou e foi com pressa às montanhas, a uma cidade de Judá;
e entrando em casa de Zacarias, saudou a Isabel. E aconteceu que, apenas Isabel ouvira a
saudação de Maria, a criança saltou no seu ventre; e Isabel ficou cheia do Espírito Santo.
e exclamou em alta voz, dizendo: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do
teu ventre. e donde me é concedido vir visitar-me a mãe do meu Senhor? Pois mal chegou
a voz da tua saudação aos meus ouvidos, a criança saltou de alegria no meu ventre. e
bem aventurada és tu que creste, pois se hão de cumprir as coisas que pelo Senhor te foram
ditas” (lc 1, 39 a 45).
Quanto ao fim da personalidade, discutem juristas e médicos sobre o que
melhor caracteriza a morte: a parada cerebral, a cardíaca, a respiratória, etc. Obviamente
a preocupação “está morto?” não encontra resposta genérica nos evangelhos mas, como
curiosidade, lembramos que, naquele tempo, houve quem fizesse a mesma pergunta: “E
quando já era tarde (pois era o parásceve, que vem a ser a véspera do sábado), veio José
de arimatéia, ilustre membro do sinédrio, que também esperava o Reino de Deus, e foi
resoluto à presença de Pilatos, e pediu o corpo de Jesus. Pilatos, porém, admirou-se de
que ele já tivesse morrido. e chamando o centurião, perguntou-lhe se já estava morto.
Certificado, pois, disso pelo centurião, deu o corpo a José” (Mc 15, 42 a 45).
Bens
o evangelho da vida. os animais não são coisas
Sobre o tema dos bens, o que há de mais atual, a nosso ver, é a valorização
dos animais. na formação civilista tradicional, os animais são considerados coisas
(semoventes). Somente de 1990 para cá, por pressão de proprietários de cães, de alguns
ecologistas e de intelectuais contrários à visão da soberania absoluta da espécie humana,
houve alterações no mundo do direito; os códigos civis da Áustria, Suíça e Alemanha,
foram alterados para fazer constar o óbvio, isto é, aquilo que, como escreveu Hans Jonas,
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qualquer dono de cachorro sabe: “os animais não são coisas”.9 infelizmente muita gente,
inclusive alguns cristãos, – por preconceito, ou judaico, ou greco-romano, ou iluminista,
ou todos juntos, – fazem radical separação entre homens e animais. não é isto, como
veremos, que está na pregação de Jesus e deflui dos textos evangélicos.
no judaísmo, na Bíblia (Gênesis 1, 26 e 28), a arrogância de “rei dos animais”
está manifestada: “então, Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança.
Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos
e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastam sobre a terra” (omissis)
“Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os
peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a
terra”. É verdade que a Bíblia (antigo Testamento) não é um modelo de coerência; por
exemplo, logo adiante, sobre o mesmo assunto, a serpente é antropomorficamente dita “o
mais astuto de todos os animais” (Gênesis 3, 1) e engana o todo-poderoso casal reinante
(adão e eva).
Por sua vez, textos filosóficos antigos, não-judaicos, também afirmam a
radical diferença entre homens e animais.10 e até os “sábios” modernos, no seu racionalismo
europocêntrico, participam da mesma opinião; é conhecida a polêmica de Descartes e
Montaigne sobre noção do animal-máquina.11
nos evangelhos, entretanto, Deus, revelado por Jesus, se preocupa com
todos os pequeninos, inclusive com os animais, a começar com os passarinhos: “Portanto
vos digo: não sejais cuidadosos da vossa vida, pelo que comereis, nem do vosso corpo,
pelo que vestireis. não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que o vestuário?
vede as aves do céu, pois que não semeiam, nem ceifam, nem recolhem nos celeiros;
todavia vosso Pai celestial alimenta-as” (Mt 6, 25-26).12
há uma espécie de vitalismo que percorre os evangelhos nas várias
referências a animais, quer “bons” quer “maus”: corvos, pombas, raposas, lobos, peixes,
serpentes, etc. mas principalmente há um terno vitalismo nas inúmeras citações dos
animais domésticos.
9
10
11
12
BGB, § 90 – a: “Os animais não são coisas. Eles são protegidos por leis especiais. A eles se aplicam as
regras vigentes para as coisas, se não houver disposição diversa”. No Brasil, esperemos que o Código Civil
também seja alterado. o livro de hans Jonas é: “Le príncipe responsabilité”, trad. fr., Paris, Flammarion,
1990. entre os escritores brasileiros, lembramos Simone eberle (“Deixando da Sombra dos homens”,
(tese), Belo horizonte, 2006. Daniel Braga lourenço (“Direito dos Animais”, Sérgio Fabris editor, Porto
alegre, 2008 e os organizadores do livro “A Dignidade da Vida e os Direitos Fundamentais Para Além dos
Humanos”, Molinaro et alii, Ed. Fórum, Belo Horizonte, 2008.
Por exemplo, Cícero no De officiis, livro i.
Cf. Thierry Gontier, “De l´homme à l´animal”, Paris, vrin, 1998, passim.
De novo, as idéias de São Paulo não são iguais – são contrárias – às acima transcritas dos evangelhos. na
Primeira Carta aos Coríntios, lê-se: “Pois na lei de Moisés está escrito: “Não atarás a boca ao boi que
debulha”. Acaso cuida Deus dos bois? Não é antes por nós que ele diz isto?” (i Co 9, 9-10).
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o jumento, para começar, é elevado à condição de trono para o Rei dos Reis:
“Quando, pois, se aproximaram de Jerusalém e de Betânia, perto do monte das oliveiras,
enviou dois dos seus discípulos, dizendo-lhes: Ide à aldeia que está de fronte de vós, e,
logo que entrardes nela, achareais preso um jumentinho, em que não montou ainda homem
algum; desprendei-o e trazei-o. (omissis) e conduziram o jumentinho a Jesus; e cobriramno com os seus mantos, e ele montou no mesmo. ora, muitos estenderam os seus mantos
no caminho; outros, ainda, cortavam ramos das árvores, e espalhavam-nos pelo caminho.
Tanto os que precediam como os que iam atrás clamavam, dizendo: “hosana; bendito o
que vem em nome do Senhor; bendito o reino, que vem, de nosso pai David, hosana nas
alturas”. (Mc 11, 1-10).
os cachorros são citados em pelo menos três circunstâncias: uma, no
episódio já referido da mulher cananéia, – episódio contado duplamente, Mt 15, 26-28 e
Mc 7 24-30 – ; uma segunda vez, na parábola do rico epulão (lc. 16, 21), quando os cães
vem lamber as chagas do mendigo lázaro, deitado à porta do rico; e uma terceira vez no
sermão da montanha (Mt 7,6), como orientação para não dar aos cães o que é santo.
os porcos também são citados pelo menos três vezes: uma na recomendação,
que se tornou máxima popular, de que não se devem dar pérolas aos porcos (Mt 7,6); outra,
no episódio de abrigarem demônios e se precipitarem no mar em Gérasa(Mc 5, 1-20)
– episódio repetido em Mateus e Lucas (Mt 8, 28-34 e Lc 8, 26-39) – ; e uma terceira,
como objeto de cuidados do filho pródigo (Lc 15, 15).
a galinha é modelo de mãe extremosa (Mt 23, 37 e lc 13, 34): “Jerusalém,
Jerusalém, que matas os profetas, e apedrejas os que te são enviados, quantas vezes quis
ajuntar os teus filhos, como a galinha agasalha os seus pintainhos debaixo das asas, mas
tu não o quiseste”. O galo marca o tempo final das três negações de São Pedro: “E Pedro
lembrou-se, da palavra que Jesus lhe havia dito: ‘antes que o galo cante duas vezes, três
vezes me negarás’. e começou a chorar” (Mc 14, 72) (também Mt 26, 75).
Mas, de todos os animais, os mais lembrados são as ovelhas e carneiros.
esses ora ilustram parábolas ou fatos (Mt 18, 10; lc 2, 8; Jo 2, 14) ora, em linguagem
figurada e com o nome no plural ou no substantivo coletivo (“rebanho”), são metáforas
para nós mesmos (Mt 12, 11; 15, 26; Lc 12, 32; Jo 21, 15-18; etc) e ora, finalmente, com
a palavra no singular, são imagens do próprio Jesus, o “cordeiro de Deus” (Jo 1, 29-35).
nesse caso, Jesus não deixa também de ser o bom pastor: “eu sou o bom pastor. o bom
pastor dá sua vida pelas ovelhas. o mercenário, porém, e que não é pastor, a quem não
pertencem as ovelhas, quando vê o lobo vir, abandona as ovelhas e foge; e o lobo rouba
e dispersa as ovelhas. o mercenário, porém, foge, porque é mercenário e não se importa
com as ovelhas. eu sou o bom pastor; conheço as minhas e as minhas me conhecem a
mim, como meu Pai me conhece e eu conheço o Pai; e dou a minha vida pelas ovelhas”
(Jo 10, 11-15).
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Finalmente, cumpre lembrar que uma das imagens de Jesus com animais,
bem enraizada no mundo católico, é a do menino Jesus no presépio, tendo de cada lado
o boi e o burrinho. Essa figuração, na verdade, não está, porém, nos Evangelhos; sua
primeira aparição escrita está em evangelho apógrifo, dito “Pseudo-Mateus”, do séc. VI13.
a meu ver, a força da imagem do presépio resulta de sua profunda correspondência ao
amor à vida, que revelam a pregação de Jesus e os textos evangélicos. É o evangelho
da vida. em interpretação ampla, é o que diz São João evangelista sobre o Cristo vivo
(Prólogo do Verbo – Jo 1, 4): “Tudo foi feito por ele, e nada do que tem sido feito se fez
sem ele. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens”.
São Paulo, outubro de 2009.
Referências
Todos os textos evangélicos foram citados conforme a 4. ed. do Novo Testamento, da editora vozes,
1950, trad. e anotado por Frei João José Pedreira de Castro o. F. M.
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1990.
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2002.
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13
no evangelho Pseudo-Mateus, texto Xiv, se lê “ali reclinou o menino em um presépio e o boi e o burro
o adoraram”. o texto continua fazendo referência a isaias 1, 3: ”o boi conheceu o seu dono e o burro, o
presépio de seu senhor” (cf. “Los evangelios apócrifos”, Aurélio de Santos Otero, Madri, 1979, p. 211).
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