Rumos da liberdade: geografia
insurgente e trabalho marítimo na
Amazônia pós-Cabanagem
(1840-c.1870)
Routes of freedom: the insurgent geographies and maritime labour
in the post-Cabanagem Amazon (1840-c.1870)
Caio Giulliano Paião∗
Resumo: A partir do conceito de “geografia insurgente”, discuto como o trabalho marítimo foi
moldado por trabalhadores de diferentes realidades étnicorraciais, durante a reorganização
dos mundos do trabalho na Amazônia, especialmente nas províncias do Pará e Amazonas,
nos anos seguintes ao término da Cabanagem (1835-1840). Os tripulantes desse período
conseguiram inverter lugares de subalternidade a que estavam destinados, valendo-se
da apropriação de terras, barcos e águas para o trânsito humano, ideias e aspirações de
liberdade. Veremos como o trabalho marítimo propiciou uma dinâmica de deslocamentos que
servisse a projetos de autonomia de vida, de tripulações que misturavam indígenas, negros
e mestiços, independentemente de sua condição jurídica. O recorte temporal diz respeito ao
período posterior à rebelião até meados dos anos 1870, quando levas de migrantes alteraram
a composição da marinhagem fluvial. O conjunto de fontes são relatos de viajantes do norteatlântico, que informam as relações de trabalho dentro dos navios. Ali o recrutamento forçado
se conjugava a pagamentos diários, além de negociação de equipes sazonais compostas por
uma heterogeneidade de sujeitos. Por fim, conclui-se que as rotas de liberdade experimentadas
no mundo marítimo não se restringem ao litoral do Brasil. O que nos leva a observar tais
agências no interior do território, sem negligenciar a extensão dessas lutas em seus cenários
aquáticos.
Palavras-chave: marítimos; Amazônia; Cabanagem.
∗
Doutorando em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), vinculado ao Centro
de Pesquisa em História Social da Cultura (Cecult/IFCH) e bolsista da Fapesp/Processo n.° 2018/18252-0.
E-mail:
[email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2204-5931.
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Caio Giulliano Paião
Abstract: From the concept of “insurgent geographies”, I discuss how maritime work was
shaped by people of different ethnic-racial backgrounds, during the reorganization of the worlds
of labor in the Amazon, especially in the provinces of Pará and Amazonas, in the years after
the end of Cabanagem (1835-1840). Workers of this period managed to reverse the places
of subalternity to which they were destined, appropriating of the land, boats and water for the
transit of people, ideas and aspirations of freedom. We will see how maritime work provided
a dynamic of displacements that served to projects of autonomy of life, to crews that mixed
indigenous, black and mixed races, regardless their legal status. The analysis concerns the
years following the end of the rebellion, going up to the 1870’s, when waves of northeastern
migrants altered the composition of river navigation. The sources are made up of reports by
travelers from different origins, most of them from the North Atlantic, who report on the working
relationships inside the ships. There, forced recruitment was combined with daily payments, in
addition to the negotiation of seasonal teams composed of heterogeneity of subjects. Finally, it
is concluded that the freedom routes experienced in the maritime world are not restricted to the
coast of Brazil. Which leads us to observe such agencies within the territory, without neglecting
the extent of these struggles in their aquatic scenarios.
Keywords: Maritime Workers; Amazon; Cabanagem.
Introdução
O
príncipe Adalberto da Prússia visitou a Amazônia dois anos depois de reprimida a
revolta da Cabanagem (1835-1840). Viajou ao Brasil, segundo ele, por distração e sem
interesses científicos ou políticos. Ao chegar em Breves, no Pará, sua comitiva buscou os
melhores profissionais para servir na navegação da intrincada malha fluvial. Um rapaz se
apresentou para guiá-los, o “mulato” Frutuoso, como o príncipe qualificou-o, sem revelar
maiores informações a seu respeito. Usando a cor da pele como critério, o monarca o rejeitou,
a quem “não nos queríamos confiar, não nos restando por isto senão procurarmos outro piloto
aqui em Breves”. Acontece que ninguém transitava ali sem levar em conta os seus saberes.
Levou muitas horas para encontrar um substituto, pois aquela área era domínio de Frutuoso.
Cada curso d’água na vastidão amazônica exigia um tipo de conhecimento adequado à direção
das viagens e ao estilo das navegações. E naquele momento, a violenta e recente repressão
aos cabanos afetava o serviço embarcado com a escassez de mão de obra.
O prussiano dizia preferir os indígenas que, além de mostrar “grande vocação para os
serviços de marinheiro”, pareciam mais fáceis de lidar. Posteriormente, descobrira a árdua
tarefa que era equipar e manter uma tripulação. Sobre os indígenas, viu que era “difícil, pela
sua completa indiferença, tirar qualquer coisa destes homens sempre alegres”. Não eram
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poucos os detentores de expertise naval, mas atraí-los e embarcá-los exigia negociação de
critérios próprios de ritmo de trabalho, autonomia quanto aos rumos da viagem e pagamentos
condicionados a mercadorias, alimentação, passagens de transporte etc. Quase não havia
circulação monetária na Amazônia. Acresce que o ambiente de bordo chefiado por um homem
branco se conectava às dramáticas vivências da revolta recém-finda e até mesmo do passado
colonial. Os tripulantes amazônicos não confiavam nem um pouco em estabelecer relações de
trabalho sem alguma margem de negociação. Adalberto via nisso um empecilho, entendendo
pelo crivo de seu racismo: a marinha brasileira seria desprestigiada mundo afora justamente
por não dispor de marujos brancos, “fortes e robustos” e utilizar-se de negros e indígenas.1
Depois, em tom de aviso a viajantes futuros, aconselhou cuidado para não entregar a
eles a direção completa das expedições. Os indígenas, por exemplo, não tinham “nenhuma
ideia de duas coisas tão importantes para nós europeus: tempo e espaço”. Na verdade,
deparara-se com a sofisticação destas noções pelos tripulantes do barco, que guardavam
seu próprio tempo e espaço de trabalho. Segundo ele, o “segredo” para um bom serviço a
bordo com os nativos era
deixá-los à vontade, nunca incitá-los. Então, trabalham de boa vontade e
tanto quanto podem. Se quiserem, porém, descansar, não se deve tentar
dissuadi-los; deve-se deixar-lhes a liberdade de decidir onde querem fazer
alto e acampar para passar a noite; e nunca abusarão desta liberdade.
Nada nestes casos é mais necessário evitar do que o descontentamento do
pessoal.2
Apesar de embarcados, eles utilizaram de sua importância para subverter a hierarquia de
bordo e a submissão a quem devia emitir ordens. Naquela altura, o barco de Adalberto havia
sido cooptado para práticas de liberdade e movimento pelo território através dos rios. Neste
artigo abordo de que formas foram possíveis a essas experiências tornarem-se cada vez
mais recorrentes na Amazônia, durante a reorganização dos mundos do trabalho no rescaldo
da Cabanagem. E como o emprego de marinheiros, pilotos, práticos e criados se relaciona
com as consequências da rebelião, como a dispersão humana pelas matas e rios. Nesses
lugares, a presença de mocambos e comunidades indígenas propiciou um aprofundamento
do conhecimento geográfico, que viria a se tornar instrumento de trabalho na navegação
fluvial. Dessa forma, o ofício marítimo construído na região não se apartava de diferentes
tipos de concepções de liberdade atribuídas à experiência de deslocamento aquático.3
Recorro ao conceito de “geografia insurgente”, seguindo a formulação de Yuko Miki. A
historiadora estudou a formação de quilombos no Brasil oitocentista, como uma estratégia dos
1
2
3
ADALBERTO, Príncipe da Prússia. Brasil: Amazônia-Xingu. Brasília: Senado Federal, 2002. p. 88-89, p. 364.
Idem, p. 313-314.
Cf. BUCHANAN, Thomas C. Black Life on the Mississippi. Slaves, Free Blacks, and the Western Steamboat
World. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2004. SCOTT, Julius S. The Common Wind. AfroAmerican Currents in the Age of the Haitian Revolution. New York: Verso, 2018. REDIKER, Marcus. Outlaws
of the Atlantic: Sailors, Pirates, and Motley Crews in the Age of Sail. Boston: Beacon Press, 2014. DAWSON,
Kevin. Enslaved Ship Pilots in the Age of Revolutions: Challenging Notions of Race and Slavery Between the
Boundaries of Land and Sea. Journal of Social History, v. 47, n. 1, 2013.
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quilombolas de viverem como agentes livres, ainda que enredados na sociedade escravista.
Segundo Miki, isso se entrelaçou como um fenômeno-chave no decorrer da colonização interna
do Brasil. Os espaços circunscritos ao interior foram um refúgio para indígenas, africanos e seus
descendentes na maior parte do século XIX. Após a Independência, essas áreas tornaram-se
alvo de um “agressivo projeto de desenvolvimento, encabeçado por agentes governamentais e
exploradores”.4 A elite proprietária culpava a população negra e indígena por um alegado atraso,
que justificava a colonização interna em nome do “progresso”. Havia um padrão explicativo
da situação econômica das províncias do extremo norte, de acordo com Alfredo Wagner de
Almeida, uma “ideologia da decadência”: alegava-se “falta” de braços, transportes apropriados,
terras ocupadas por “gentios” e quilombolas etc. para se autorizar expedições, verdadeiras
invasões, sob pretexto de “desobstrução” de vias de navegação, por exemplo.5
Na Amazônia, para efetivação de uma navegação mercante, o governo empreendeu
combates tanto a mocambos quanto às comunidades indígenas que desafiavam a ordem
social, desde o período colonial. Nesse sentido, é oportuno pensar o conceito de “geografia
insurgente”: a ocupação desses espaços, ainda que sob a ordem senhorial e escravista,
reitera mais do que experiências de “resistência”, uma expressão política de cidadania. “Uma
cidadania que se situava contra o projeto de construção da nação que tinha como premissa
a subjugação social e territorial dos sertões e de sua população escravizada”. Seria uma
prática política, de populações subjugadas e resistentes à alteração de seus modos de vida,
pela qual tornava possível reimaginar alternativas de existência na condição de livres. Uma
reimaginação efetivada de dentro de uma geografia que lhes destinava lugares permanentes
de subalternidade.6 Aqui, entenda-se: geografia como fruto da transformação dos espaços
em nível do conhecimento, por trabalhadores e trabalhadoras. Espaços reorganizados para
defesa de modos de vida autônomos, tanto nas margens dos rios quanto na ocupação fluvial
dentro dos barcos.
Neste artigo veremos como homens, mulheres e crianças conseguiam criar suas
próprias rotas de liberdade, conferindo outros sentidos ao ofício embarcado e apropriando-se
do espaço que percorriam em águas doces, no interior do território7 – lugares ainda pouco
abordados pela historiografia do trabalho marítimo, bastante concentrada nas experiências do
litoral e do cotidiano de águas salgadas. Observar esses meandros poderá alargar a análise de
4
5
6
7
MIKI, Yuko. Fugir para a escravidão: as geografias insurgentes dos quilombolas brasileiros, 1880-1881. In:
GOMES, Flávio dos Santos; DOMINGUES, Petrônio (org.). Políticas da raça: experiências e legados da
abolição e da pós-emancipação no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2014. p. 24.
ALMEIDA, Alfredo Wagner de. A ideologia da decadência: leitura antropológica a uma história da agricultura
do Maranhão. Rio de Janeiro: Casa 8, 2008. p. 22. Cf. também: PAZ, Adalberto. Classe, cor e etnia nas
legislações de compulsão ao trabalho na Amazônia: do Diretório ao fim dos Corpos de Trabalhadores (17551859). Revista Mundos do Trabalho, v. 12, 2020.
MIKI, op. cit., p. 27.
Dentre outros estudos de preocupação similar, posso citar: OLIVEIRA, Vitor. Nos limites da civilização:
história e historiografia da classe trabalhadora no Mato Grosso do Sul. Revista Mundos do Trabalho,
v. 13, 2021. CARVALHO, Marcus. Os caminhos do rio: negros canoeiros no Recife na primeira metade do
século XIX. Afro-Ásia, 19/20, 1997. CARUSO, Laura. “Onde manda capitão, não governa marinheiro”?
O trabalho marítimo no rio da Prata, 1890-1920. Revista Mundos do Trabalho, v. 2, n. 3, 2010.
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resistências embarcadas, diante do expansivo avanço da navegação mercante que buscava
penetração na Amazônia, do estuário atlântico aos Andes.
Para pensar a maneira pela qual o trabalho de bordo permitiu agências a partir “de
baixo”, entendo os embarcadiços como agentes de “práticas espaciais” que subvertem o
sentido de hierarquia naval para a criação de espaços próprios, qual seja, a capacidade de
usar da posição a bordo para movimentar ideias e tecer redes de contestação ao poder.8 Na
mesma medida em que os expedicionários coagiam e obrigavam os outros a trabalhar para
eles, esses subvertiam o cotidiano a bordo para elaborar e dinamizar aspirações de liberdade.
Ações cuja historicidade encontra os saberes da resistência à escravidão, da formação de
mocambos e das fugas e rebeliões indígenas do passado e do presente em que viviam.
O contexto de tensão política e social existente na Amazônia pós-Cabanagem permitiu que
mulheres e homens invertessem a lógica de mando e obediência para dominar a navegação
e mitigar a expropriação de seus conhecimentos geográficos.
A expressão “pós-Cabanagem” aparece aqui como referência de recorte temporal e não
em termos conceituais. Refiro-me aos anos seguintes ao fim da rebelião (1840), passando
pela gradual substituição de tecnologia naval, com a introdução dos vapores (1853) até
meados da década de 1870 – auge da navegação a vapor no século XIX, quando levas de
marítimos migrantes passaram a substituir o contingente fluvial acostumado aos remos e
às velas, abordado aqui. Essa temporalidade permite captar reações e reinterpretações da
percepção subjetiva dos espaços após a vivência do conflito e sua repressão.9
A documentação analisada são relatos de viajantes escritos entre os anos 1830 a 1860.
São textos de militares, artistas, cientistas, missionários e aventureiros que ao passarem pela
região amazônica registraram suas impressões, muitas vezes, como diários de bordo. Tratase de autores brancos, na maioria do norte-atlântico, vindos ao Brasil em prol de interesses
econômicos, diplomáticos, empresariais, religiosos ou por mera curiosidade. Por vezes,
chegavam a se irmanar com autoridades locais para reforçar a vigilância sobre o mundo do
trabalho e até reaver escravizados para seus senhores. Realizo uma leitura a contrapelo
desses textos, verificando os momentos de interação de seus autores com quem mais tempo
passavam ao longo das viagens: tripulantes de ascendências indígenas e africanas. Esse
tipo documental permite análise do cotidiano de trabalho de barcos, canoas e suas dinâmicas
de interação interétnicas. São textos bastante estudados, embora pouco abordados no que
tange ao trabalho marítimo no interior do continente; outros menos conhecidos, nunca foram
8
9
Cf. FEATHERSTONE, David. Maritime Labour and Subaltern Geographies of Internationalism: Black
Internationalist Seafarer’s Organising in the Interwar Period. Political Geography, 49, 2015. COUSIN, Justine.
Extra-european Seamen Employed by British Imperial Shipping Companies (1860-1960). 2018. Tese
(doutorado em História) – Sorbonne Université, Paris, 2018. BASSI, Ernesto. El Caribe colombiano, el Caribe
y el gran Caribe. Los marineros como creadores de una región transimperial. In: MORON, Jaime; VALBUENA,
Gerson (ed.). 20 años de estudios sobre el Caribe colombiano. Bogotá: Banco de la República, 2020.
Cf. DE LA TORRE, Oscar. After the Reign of Terror: Slavery and the Economy of Post-Cabanagem Pará, 1835c.1870. In: DE LA TORRE, Oscar. The People of the River. Nature and Identity in Black Amazonia, 18351945. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2018.
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Caio Giulliano Paião
traduzidos para o português. Os primeiros foram publicados no Brasil por diferentes editoras,
os demais estão digitalizados, podendo ser acessados pelos links nos rodapés.
Breve panorama da Cabanagem (1835-1840)
Entre 1835 e 1840, trabalhadores indígenas, negros, mestiços e brancos pobres se alinharam
a lideranças liberais numa revolta que visava tomar o poder político da província do Grão-Pará,
protestando contra a tirania da elite portuguesa do Brasil recém-independente. Havia uma
crescente reação antilusitana que associava empobrecimento e epidemias com o poder político
exercido durante a expansão econômica dos anos 1800-1820. Muitos desses insatisfeitos
habitavam cabanas nas fazendas, matas e beiras de rios, originando a forma como ficaram
conhecidos os rebeldes (cabanos) e a revolta (Cabanagem). Aos poucos, a mobilização
permitiu que diferentes grupos sociais expressassem suas queixas contra proprietários da
vasta província, adquirindo tons de uma revolução social.10 Os objetivos se espraiaram ao
longo da rebelião. Em resumo, as elites aderentes buscavam maior autonomia política para a
escolha da presidência da província, enquanto os demais cabanos encampavam demandas
ligadas a melhores condições de vida, o fim da escravidão e o acesso a terras. Luis Balkar
Pinheiro compreende a Cabanagem “como parte integrante de um contexto maior das lutas
populares, depositária de toda uma tradição de rebeldia gestada desde os primeiros anos da
vida colonial”. Na Amazônia, tais lutas envolveram uma gama variada de movimentos sociais
que iam das resistências indígenas aos levantes de negros e à formação de mocambos.11
Magda Ricci mostra que a revolta abarcou um amplo território. Iniciada em Belém
do Pará, ela avançou pelos rios e pelo Atlântico, chegou às fronteiras do Brasil central, se
aproximando até do litoral norte e nordeste. “Gerou distúrbios internacionais na América
caribenha, intensificando um importante tráfico de ideias e de pessoas”. Ademais, produziu
uma identidade partilhada entre povos de etnias e culturas diferentes. Indígenas, negros de
origem africana (especialmente da África Central), mestiços e brancos pobres perceberam
causas e problemas em comum, assentados na repulsa ao mandonismo branco e português e
na luta por direitos e liberdades.12 A luta dos rebeldes foi longa e intensa, realizando guerrilhas
nas calhas dos rios Amazonas, Madeira e Tocantins. Suas proezas alcançaram ainda o alto
Amazonas e os rios Negro e Trombetas, entre 1836 e 1837. Tomaram as cidades de Santarém
e Manaus até a fronteira do atual estado do Amapá. O saldo foi um aprendizado do uso
da natureza como aliada: envenenavam rios, incendiavam a mata, espantavam animais e
destruíram plantações para minar a subsistência das tropas inimigas etc.13 Temos então um
10 DE LA TORRE, op. cit., p. 22-23.
11 PINHEIRO, Luís Balkar. Nos subterrâneos da revolta: trajetórias, lutas e tensões na Cabanagem. 1998.
Tese (doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1998. p. 137-138.
12 RICCI, Magda. Cabanagem, cidadania e identidade revolucionária: o problema do patriotismo na Amazônia
entre 1835 e 1840. Tempo, v. 11, n. 22, 2007, p. 6-7.
13 RICCI, op. cit., p. 27-28. Para entender os percalços e a formação de uma memória sobre as ações dos
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dos argumentos do artigo: o processo de organização durante a revolta possibilitou, através
de uma expansiva solidariedade interétnica, alargar o conhecimento geográfico através de
interações a bordo e em terra, formulando diferentes projetos de liberdade no pós-Cabanagem.
A criação de uma “cumplicidade” com a natureza serviu a sua instrumentalização no mundo
embarcado e, principalmente, como recurso posterior de identificação profissional e valorização
da percepção subjetiva dos espaços.
Ao longo do oitocentos, sempre houve dificuldade para se equipar navios no Brasil, por
isso fazia-se campanhas emergenciais de recrutamento e engajamento. Só com violência
se conseguia equipar um vaso de guerra, sempre preteridos frente à marinha mercante, que
pagava melhor e possuía noções de disciplina mais frouxas.14 Contudo, é preciso dizer que no
Brasil recém-independente não havia profissionais marítimos propriamente ditos. A Armada,
por exemplo, contava basicamente com marujos estrangeiros e uma minoria de “nacionais”.
No combate aos cabanos, o Império brasileiro utilizou navios tripulados por marítimos e
mercenários portugueses, britânicos, norte-americanos e germânicos.15 Esse contingente
foi responsável por uma repressão violentíssima. Segundo Oscar de la Torre, estima-se por
volta de 20 a 30 mil mortos, algo em torno de ¼ da população amazônica, dentre indígenas,
negros e brancos pobres.16 O uso da tortura e execuções foi amplamente utilizado dentro dos
encouraçados, transformados em verdadeiras masmorras.
Por fim, apesar do morticínio e sem conquistar suas reivindicações, um dos saldos
positivos fora o enfraquecimento dos senhores sobre os trabalhadores escravizados, permitindo
brechas para fugas de fazendas e plantações. Os sobreviventes e seus descendentes obtiveram
maiores chances para reelaborar modos de vida alternativos e defender autonomias mata
adentro, formando mocambos, encontrando abrigo entre comunidades indígenas, habitando
lagos e rios inalcançáveis à navegação militar e comercial.17 É a partir desta nova relação
com a natureza e a geografia que eles moldariam o trabalho marítimo subsequente, definindo
rumos de liberdade diante do Estado Imperial e suas elites proprietárias, empenhadas em
conter a potencial rebeldia de antigos cabanos, seus filhos e netos, como veremos aqui.
“Não posso, patrão!”
Entre 1828 e 1829, o oficial da marinha britânica Henry Lister Maw percorreu o rio Amazonas
em busca de uma ligação entre o Atlântico e o Pacífico. Na descida do Amazonas, armou uma
igarité (um tipo de canoa movida a varas) com “um piloto, ou homem do leme, seis índios,
14
15
16
17
levantes, cf. HARRIS, Mark. Rebelião na Amazônia: Cabanagem, raça e cultura popular no Norte do Brasil,
1798-1840. Campinas: Ed. Unicamp, 2017.
JEHA, Silvana. A galera heterogênea: naturalidade, trajetória e cultura dos recrutas e marinheiros da Armada
Nacional e Imperial do Brasil, c.1822-c.1854. 2011. Tese (doutorado em História) – Pontifícia Universidade
Católica, Rio de Janeiro, 2011. p. 44-45.
Idem, p. 52, p. 54-55.
DE LA TORRE, op. cit., p. 24.
Idem, p. 25-26.
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um negro escravo e um rapaz índio que cozinhava”. O sistema de deslocamento das igarités
envolvia disciplina coletiva e confiança mútua nos movimentos para não virar o barco.18 No
baixo Amazonas era mais comum encontrar tripulações mistas dessa maneira, diferente do
alto Amazonas, onde a presença indígena predominava. Sobre os tripulantes indígenas, Maw
bem notou que a razão da “falta de braços” não era “outra senão a injustiça com que os
índios são tratados, sendo evidente que eles ou se aumentam ou diminuem na proporção
do tratamento que recebem”.19 O uso do trabalho indígena em embarcações resultava de
um longo efeito do processo de colonização, incluindo um aprendizado de resistência que
envolvia engajamento e deserção.
Uma boa ilustração disso ocorre no século XVII. Os indígenas da missão jesuíta de
Maracanã eram treinados para servir como remeiros e práticos na navegação de entreposto
entre as capitanias do Pará e Maranhão. Operavam ubás dirigidas com jacumãs (pás) no
lugar de lemes. O remeiro era chamado jacumahua (braço de leme) e o timoneiro, jacumaíba.
Eles aproveitavam o ensinamento do ofício, a proteção do assentamento e os ganhos desse
trabalho, até decidirem a hora certa de abandoná-lo. Usavam táticas sofisticadas para largar
canoa e missionários à deriva, enquanto escapavam mergulhando e desaparecendo nas
águas. É possível que esses homens e rapazes aparecessem posteriormente em outras
embarcações, navegando para si ou para outros.20 Claro, o repertório de sabotagens e a
consciência do seu papel estratégico seguiam com eles. Ações que colocariam em prática
para subverter a lógica de obediência esperada nos barcos dos brancos, formando talvez uma
memória de insurgência embarcada na região.
Em 1834, outra expedição patrocinada pela Coroa britânica levou os oficiais Frederick
Lowe e William Smyth a capitanear uma viagem parecida com a de Maw. No rio Javari, a dupla
contava com uma tripulação indígena, que passou a decidir a ordem das tarefas a bordo, o ritmo
de trabalho e a agenda da expedição. A cada cinco horas de trabalho, os britânicos viam o grupo
encostar o barco para uma hora de descanso regada a goles de masato (bebida fermentada
à base de mandioca, arroz, milho ou abacaxi).21 A tripulação impôs por conta própria a divisão
dos trabalhos de bordo, usando a dependência de seus conhecimentos geográficos e navais
para inverter a hierarquia de bordo, por maior liberdade e melhores condições de vida. Caso
contrário, a vida dos britânicos estaria ameaçada num simples gesto de deserção coletiva ou
motim mais violento. Prova disso foi quando o acúmulo de funções excedeu o combinado entre
eles, obrigando os ingleses cozinhar por conta própria. Para isso, os indígenas cediam-lhes
de forma calculada uma quantidade exata de lenha para cozinharem, ao que os britânicos
18 MAW, Henry Lister. Narrativa da passagem do Pacífico ao Atlântico, através dos Andes nas províncias
do norte do Peru, e descendo pelo rio Amazonas até ao Pará. Manaus: ACA, 1989. p. 217.
19 MAW, op. cit., p. 222.
20 CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz de. Índios cristãos no cotidiano das colônias do norte (séculos XVII e XVIII).
Revista de História, n. 168, p. 78, jan./jun. 2013.
21 LOWE, Frederick; SMYTH, William. Narrative of a Journey from Lima to Pará, Across the Andes and
Down the Amazon. London: J. Murray, Albermarle-Street, 1836. p. 274. Disponível em: https://archive.org/
details/narrativeofjourn00smyt/page/n7/mode/2up. Acesso em: 17 mar. 2022.
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obedeceram por toda a viagem de retorno ao Pará.22 O ambiente de bordo teria sido amistoso
durante a jornada. Bastava que os tripulantes decidissem tudo, inclusive o papel reservado aos
contratantes. Os autores chegaram a se descrever como meros espectadores de homens que
sabiam exatamente como vencer correntezas, com alegria e cantorias. Quando aportaram em
Manaus, afetada por conta da rebelião, encontram escassez de trabalhadores qualificados,
tendo como principal atividade, a pesca.23 A dificuldade de formar tripulações acentuou-se na
Cabanagem. Em Santarém, no Pará, um comerciante britânico avisou aos patrícios que um
“crioulo” de nome Jacó andava assassinando grande número de portugueses, tornando-se
perigoso navegar nas redondezas.24
Esses textos podem ter influenciado o príncipe Adalberto, pouco depois, fazendo-o
acreditar que fosse melhor embarcar com indígenas do que com negros ou mulatos. Do
outro lado, o cuidado em aceitar essas viagens era generalizado entre potenciais tripulantes.
Compor tripulações variava de acordo com o clima político e econômico; as necessidades de
venda da força de trabalho; a impossibilidade de embarcar grupos rivais ou falantes de idiomas
diferentes; e também pela autonomia de subsistência, quando não fazia sentido trabalhar em
troca de salário num mundo em que a circulação monetária era ínfima e persistia o sistema de
escambo e trocas de mercadorias.25
O jovem empresário e entomologista William H. Edwards veio dos Estados Unidos com
seu tio à Amazônia, em 1846, pesquisar a fauna e sondar mercado para a empresa de sua
família no ramo de curtume. Para subir o rio Trombetas, no Pará, ele pediu ao piloto indígena
que buscasse mais homens para sua embarcação. Esse saiu pelas praias de Óbidos ofertando
uma combinação de dinheiro e rações de alimentos, que incluíam café e cachaça. Mas foi por
causa da boa fama e da capacidade de negociação do piloto que cinco homens e mais outros
se interessaram pelo serviço.26 No rio Tonantins, em direção a Fonte Boa, no Amazonas, um
indígena caiuvicena pediu passagem na expedição de Smyth e Lowe em troca de trabalho.
A dupla achou aquilo proveitoso, pois vinham pagando diariamente os tripulantes com meio
metro de pano de algodão (tucuya). Já em Tefé, outros estavam ansiosos para voltar de onde
partiram e exigiram o pagamento em farinha, ao que foi acrescido mais panos de algodão.27
Em 1868, no oeste paraense, o naturalista mineiro Ferreira Penna não conseguiu
convencer “pescadores” e “indivíduos sem ocupação regular” a trabalhar para ele. Ao oferecer
dinheiro pelo serviço, sempre ouvia: “Não posso, patrão!”. “Nenhum deles explicava a razão
desta recusa – humilde, fria, mas inflexível e capaz de impacientar e desesperar a um
homem que não conhecesse os hábitos e a indiferença desses indivíduos para o dinheiro”.28
22
23
24
25
26
Idem, p. 274.
LOWE; SMYTH, op. cit., p. 122.
Idem, p. 293, p. 300.
SANTOS, Roberto. História econômica da Amazônia: 1800-1920. São Paulo: T. A. Queirós, 1980. p. 171.
EDWARDS, William. A Voyage Up the River Amazon, Including a Residence at Pará. New York: D. Appleton
& Company, 1847. p. 139. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4986. Acesso em: 17 mar. 2022.
27 LOWE; SMYTH, op. cit., p. 280-285.
28 FERREIRA PENNA. A região ocidental da Província do Pará. Belém: Typ. do Diário de Belém, 1869. p. 56.
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Caio Giulliano Paião
Outro naturalista, o britânico Henry Walter Bates talvez tenha encontrado a resposta. Em
sua longa expedição (1848-1859) concluiu que os canoeiros eram “donos de seu próprio
nariz” e “orgulhosos demais para se empregarem” para outros.29 Fabricar e se deslocar em
sua própria embarcação, negociar e se dispersar pelo território fez a população indiferente
aos avanços dos viajantes, esses sim, dependentes do conhecimento sobre os espaços que
ansiavam percorrer. A lógica de assalariamento não fazia sentido quando se buscava manter
o mínimo de contato com forasteiros.
Em jornada evangelística pela Amazônia (1840-1842), o missionário norte-americano
Daniel Kidder descobriu que nem a razoável soma de 800 réis diários atraía os tripulantes.30
No alto rio Negro, o naturalista britânico Alfred Russel Wallace equipou um “bom piloto” por um
valor maior ainda: quatro mil-réis a diária. Segundo ele, o preço compensava, porque “tudo ali
depende da habilidade do piloto”. Mas não foi fácil achar o restante da guarnição, pois, entre
1848 a 1852, o recrutamento forçado incentivava a deserção coletiva de eventuais tripulantes.
Por conta disso, ele apelou ao “capitão de trabalhadores” (responsável pelos recrutamentos)
e ao delegado de polícia, mas “todos eles me davam a resposta de costume: – ‘Não há gente
nenhuma aqui’”.31
Tratava-se de reflexos das limitações impostas aos espaços vividos pelos despossuídos
do final da Cabanagem. A dispersão territorial tornava-se um problema ao passo que
permitia aberturas para autonomias de vida e potencial para circular, outra vez, perigosas
ideias de rebeldia. Para Claudia Maria Fuller, apesar da introdução de escravizados negros
na Amazônia, a população de origem indígena ou mestiça não ficou aquém das tentativas
de inserção (forçada) aos quadros da produção econômica. No Pará, de 1838 a 1859, o
Corpo de Trabalhadores foi um instrumento de coerção ao trabalho para “índios, mestiços
e pretos não escravos” ou aqueles “sem propriedade ou ocupações reconhecidas como
constantes”. Autoridades provinciais definiam uma identidade de trabalhador contraposta à de
vadio, “norteada por critérios ligados à etnia, à cultura, à noção de civilização e de utilidade
creditadas ao trabalho”. O pretexto era combater “vagabundos” e “ociosos”, mas a finalidade
era a contenção de nova rebelião popular.32
Os tripulantes retratados nos relatos aqui analisados eram geralmente contratados e
pagos por diárias, método que encurtava a lealdade aos “patrões” aos quais obedeciam com
data marcada para terminar. Algo que se contrapunha aos demais tipos de servidão de longa
duração ou do passado de escravidão de alguns deles. Justamente por isso conseguiram deter
algum controle quanto à duração dos vínculos de trabalho. Ademais, houve muita subversão
29
30
31
32
Disponível em: #9 - A região occidental da provincia do Pará; resenhas estatisticas ... - Full View | HathiTrust
Digital Library. Acesso em: 17 mar. 2022.
BATES, Henry W. Um naturalista no rio Amazonas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1979. p. 88-89.
KIDDER, Daniel. Reminiscências de viagens e permanências nas províncias do Norte do Brasil. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1980. p. 179.
WALLACE, Alfred R. Viagens pelos rios Amazonas e Negro. Belo Horizonte: Itatiaia, 1979. p. 398, p. 461.
FULLER, Claudia Maria. Os Corpos de Trabalhadores e a organização do trabalho livre na província do Pará
(1838-1859). Revista Mundos do Trabalho, v. 3, n. 6, p. 52-53, 2011.
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Rumos da liberdade
dos contratos a favor de projetos de liberdade e interesses próprios dos contratados. Isso é
mais evidente na possibilidade aberta pelos serviços de bordo que permitiam outra percepção
subjetiva de espaço. A despeito da condição social dos tripulantes, a vida embarcada servia
para conhecer e alcançar outros lugares, podendo expandir noções de onde e como podiam
agir e viver.33
A viagem de Edwards é rica em exemplos de como isso podia ser realizado. Analisemos
com vagar seu relato, por dedicar mais atenção aos tripulantes do que normalmente
encontramos nesse tipo de literatura.
A heterogênea tripulação da Galliota (1846)
Edwards conheceu a Amazônia seis anos depois da Cabanagem. Partiu de Belém rumo
ao rio Amazonas, em maio de 1846, numa canoa coberta chamada Galliota, tripulada por
“dois negros fortes”.34 A dupla agradou bastante o entomologista, que decidiu fazer sua
recomendação a futuros viajantes. Primeiro realizou uma descrição física para que eles fossem
encontrados no porto de Belém, sem eximir tal gentileza de lances de racismo e preconceito:
Faustino tinha cara redonda, era alegre, bem-humorado e de pouca beleza pelas marcas de
varíola. Seus defeitos se redimiam pelo sorriso que iluminava seu “semblante negro como
carvão”, especialmente quando se animava com cachaça. Era um bom contador de histórias,
que interpretava com “um efeito dramático, muitas vezes divertido”. Além disso, um músico
talentoso que alentava as noites com ótimo repertório. O outro atendia por Chico, em função
de seu pequeno tamanho. O apelido castelhano parecia advir de sua participação em conflitos
no sul do Império, talvez na Guerra dos Farrapos (1835-1845). Que se procurasse no porto
um homem disciplinado, jeito de soldado, repleto de cicatrizes e vaidoso de suas proezas de
guerra. Detestava cachaça e tinha o costume de tomar banhos de sol, “nu como no dia em
que nasceu”.35
A dupla de marujos conquistou a confiança do contratador e tornou o ambiente a bordo
agradável o suficiente para garantir, além de um deslocamento seguro, chance futura de
novos embarques. Também a oportunidade de se ver longe da vigilância das autoridades
terrestres era estratégica: nos altos rios era possível experimentar outras formas de liberdade,
incluindo ficar nu e sem trabalhar, cantar e se divertir pela madrugada. Convém dizer que essa
é uma das principais diferenças entre o trabalho marítimo oceânico e o fluvial: enquanto no
primeiro o sentimento de coletividade tende a se restringir ao confinamento dos navios em
longas travessias, no segundo havia possibilidade bem maior de solidariedade comunitária
encontrada nas margens, onde paradas não programadas eram incluídas nas rotas com
mais frequência, diferente da constância de movimento mais demorado dos transatlânticos.
33 SECCO, Lincoln. O espaço técnico na Península Ibérica (1820-1914). Projeto História, n. 34, p. 91-92, 2007.
34 EDWARDS, op. cit., p. 64. Nessas e demais citações diretas, a tradução é livre.
35 Idem, op. cit., p. 86-87.
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Caio Giulliano Paião
Escalas curtas em fazendas, sítios, moradias de ribeirinhos, praias etc. compunham o roteiro
particular de uma longa viagem fluvial pela Amazônia – momentos menos formais e fora da
vista de autoridades, ao contrário da estadia em portos de alto fluxo. É provável que as áreas
de navegação a que esses tripulantes se especializavam fossem as mesmas de seus contatos
para emergências, a poucas horas de amigos, amigas e familiares. O prático mura Policarpo, a
serviço do pintor francês François Biard, fez questão de desembarcar em Santarém, no Pará,
sob pretexto de fazer compras, mas demorou bastante para retornar. Descobriu-se depois
que Policarpo era “filho de Santarém, ou de suas redondezas”.36 A “geografia insurgente” se
desdobrava na ocupação do território por meio de diferentes postos de trabalho.
Segundo Vicente Salles, trabalhadores negros em diferentes condições sociais ocuparam
todas as atividades produtivas na economia amazônica do século XIX. Não houve separação
estanque nessas atividades, e com frequência as mãos de obra negra, indígena e mestiça
se combinavam nos setores econômicos, incluindo o transporte fluvial.37 Além de Faustino
e Chico, a Galliota tinha um piloto indígena mestiço que trazia o seu filho consigo. Edwards
sentiu desprezo pelos dois, chamando o pai de “preguiçoso” e a criança de “macaco”. Sua
maior irritação se devia ao orgulho do profissional.38
Diferente dos dois marujos negros, o piloto era vital por conta da complexidade do
percurso que tomariam. A maioria dos pilotos e práticos amazônicos sabia muito bem da
sua importância e dispensavam maiores relações com os contratantes, realizando o serviço
sem precisar dizer nenhuma palavra. Muitas vezes nem português falavam. Esse orgulho era
facilmente tomado por antipatia e indiferença, o que comumente era visto como insubordinação
ou prepotência. O embarque do filho era outra característica desses profissionais: o ensino
do ofício era passado através de gerações, afinal, não havia outra forma de um aprendizado
que exigia ecléticos conhecimentos de clima, flora, fauna, geografia, hidrografia, e até sons
da floresta, cores e gostos da água informavam condições de trajetos. Na Amazônia, bússolas
e apetrechos náuticos eram inúteis. A pilotagem e a praticagem eram feitas com todos os
sentidos do corpo, algo aprendido apenas com os mais velhos, que certamente também
ensinavam outros tipos de valores. Melhor ainda se fossem transmitidos noutros idiomas e
sob segredo.39
Faustino e Chico se ocupavam dos remos, enquanto pai e filho faziam a direção da
Galliota. Outra vez um forasteiro estranhava os cuidados com o sono e o respeito às horas
de descanso. O piloto trazia uma rede, que armou entre os mastros do barco, “bem acima
36
37
38
39
BIARD, François A. Dois anos no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2004. p. 157.
SALLES, Vicente. O negro no Pará, sob o regime da escravidão. Rio de Janeiro: FGV, 1971. p. 176-177.
EDWARDS, op. cit., p. 87.
Cf. ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015. p. 147. NOGUEIRA DA MATA, João.
Flagrantes da Amazônia. Manaus: Ed. Sérgio Cardoso, 1960. p. 88. ARTHUR, Richard. Ten Thousand
Miles in a Yacht Round the West Indies and Up the Amazon. New York: E. P. Dutton & Co. 1906. p. 109.
Disponível em: #7 - Ten thousand miles in a yacht round the West Indies and up the ... - Full View | HathiTrust
Digital Library. Acesso em: 17 mar. 2022.
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Rumos da liberdade
das cabeças dos demais”, seguro de eventual ataque traiçoeiro dos brancos.40 Certos grupos
indígenas conheciam de perto a capacidade destrutiva deles e elaboravam formas diferentes
de impor limites a ela. Por exemplo, não eram todos que tinham habilidades navais para
negociar serviço embarcado. Grupos específicos eram procurados para isso, quando boa
parte da população indígena estava refugiada bem longe das margens dos rios. Indígenas
e descendentes que tripulavam para os brancos eram trabalhadores altamente capacitados
e conscientes dos perigos dessas relações. Por isso dispunham de variado repertório de
autodefesa, como fugas e contatos estratégicos ao longo dos rios.
Os Mura eram notoriamente conhecidos por suas expertises navais, também famosos
pela pirataria nos rios amazônicos, executada com audácia e bravura. Após incisivas e
violentas ações coloniais contra suas atividades e modos de vida, começaram a negociar
serviços embarcados por sobrevivência individual e coletiva. Ao subir o rio Amazonas, Edwards
contratou outra tripulação, formada por uma família mura originária do rio Negro: um tuxaua
(chefe) e seus cinco filhos, dos quais o mais velho ia com esposa e dois filhos pequenos. Além
deles, um piloto e mais três homens de outros grupos indígenas, totalizavam 18 tripulantes no
serviço da Galliota.41 Talvez a pretexto de servir como tripulação, essa família vivesse a vida
itinerante imposta a esse grupo desde o século XVIII. Por conta dos conflitos empreendidos
por e contra os Mura, eles permaneceram ao longo do século XIX em permanente busca de
novas áreas de caça e pesca.42 A família do tuxaua se utilizou da viagem para deslocar-se
para algum outro lugar, vendendo seus serviços como custeio do transporte.
O velho tuxaua exercia liderança sobre o grupo, mesmo sem aparentemente “chefiar”
as tarefas como um comandante naval. O respeito e a deferência de todos demonstravam
que o fato de estar naquelas condições de trabalho pouco afetava a tradicional hierarquia
e a visão de mundo desses povos. Ele ficava no ponto mais elevado do barco, falando
em “línguas desconhecidas” e cantando o tempo todo. Preenchendo os silêncios, o velho
mantinha todos em postura de reverência e acurada atenção ao rio. Edwards comenta que
o tuxaua ficou bastante feliz ao encontrar mais muras ao longo da viagem, momento em que
riam e brincavam uns com os outros.43 Segundo José Ribamar Bessa Freire, os diferentes
idiomas falados dentro dos barcos amazônicos desapareceram conforme mais portugueses
e brasileiros iam se ocupando da navegação. Até que, a partir de 1853, o navio a vapor
viria “lusitanizar” quase que por completo as práticas de sociabilidade e trabalho fluvial, pela
necessidade do cumprimento de ordens emitidas por falantes de português.44
Ao chegar a Serpa (atual cidade de Itacoatiara, no Amazonas), o relato mostra como
o recrutamento forçado nivelava experiências de exploração sobre trabalhadores de origens
40
41
42
43
44
EDWARDS, op. cit., p. 88.
Idem, p. 107.
PEQUENO, Eliane. Mura, guardiães do caminho fluvial. Revistas de Estudos e Pesquisas, v. 3, p. 150, 2006.
EDWARDS, op. cit., p. 140.
BESSA FREIRE, José Ribamar. Rio Babel: a história das línguas na Amazônia. Rio de Janeiro: Eduerj, 2011.
p. 137.
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Caio Giulliano Paião
étnicas e condições jurídicas diferentes. A Galliota estava desfalcada com a deserção de
dois tripulantes, que devem tê-la abandonado de forma pensada, bem longe das autoridades
locais. Por causa da deserção da Galliota, a esposa de um oficial de Serpa se ofereceu para
recrutar uma tripulação inteiramente feminina, mas o estrangeiro achou que isso seria “terrível
demais de se pensar”.45 Em Belém, Edwards espantou-se com o número expressivo de barcos
tripulados por mulheres, que transportavam e negociavam mercadorias. Ele e o tio procuraram
o comandante do posto militar para resolver o problema, que lhes prometeu “trazer homens
da floresta”, além de prender os tais desertores. Depois de alguns dias, ressurgiu das matas
trazendo à força onze homens, e mais um trazido preso por resistir. Segundo o entomologista,
“era difícil caçar esses ‘índios involuntários’ em sua própria floresta”. Dentre os recrutados,
constavam dois pretos ex-escravizados que “tinham sido admitidos aos direitos da tribo”.
Viviam aceitos pela comunidade para o espanto dos estrangeiros. É possível que houvesse
ali antigos laços de camaradagem tecidos durante ou depois da Cabanagem. O militar sabia
exatamente a provável localização deles e também o seu potencial de organização e revolta,
porque enviou dois guardas para acompanhar a viagem dos norte-americanos.46
O tempo e o espaço da insurgência a bordo
O espaço embarcado favorecia trocas de informações e conhecimentos interétnicos, na
medida em que uma série de violências afetava índios e negros, independentes se livres
ou escravizados. Em 1848, um negociante paraense obrigou um indígena a acompanhar a
expedição de Alfred Russel Wallace. Para embarcar na canoa do naturalista “foi somente a
custas de muitas pancadas e até mesmo de ameaças de facão”. O que não ficou barato, pois
o indígena jurava que “haveria de vingar-se dos que o forçaram a entrar a bordo ali. Queixouse então, amargamente, de que era tratado como escravo”. Wallace ofereceu dinheiro, comida
e álcool para dissuadi-lo de assassinar o negociante, mas sem sucesso. Aquele homem
conhecia de perto o tipo de tratamento dispensado naquelas equipagens.47
A propósito, combater tais tratamentos exigia conhecer o momento e o local ideal
para deflagrar um motim, paralisar ou abandonar os barcos. As insurgências contavam com
o domínio do tempo e do espaço de trabalho.48 Assim, a articulação entre os tripulantes
podia brecar exercícios de autoritarismo, obtendo sucesso ou recrudescendo a reação dos
contratantes. Daí as descrições de embates passavam a destoar das imagens idílicas da
natureza, de isolamento humano, de introspecção e harmonia tão presentes na literatura de
viajantes.
45
46
47
48
EDWARDS, op. cit., p. 35, p. 201.
Idem, p. 210.
WALLACE, op. cit., p. 210.
Cf. FRYKMAN, Niklas. The Bloody Flag. Mutiny in the Age of Atlantic Revolution. Oakland: University of
California Press, 2020.
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Rumos da liberdade
O artista e naturalista francês Paul Marcoy percorreu a Amazônia entre 1846 e 1847.
Enquanto navegava pelo rio Purus, dizia-se satisfeito com a viagem tranquila, emoldurada
por cenas bucólicas da natureza. Estava embarcado numa chalupa (pequeno barco a remo)
com alguns remadores e um timoneiro quando adentrou o furo do Aru, que faz o Purus
desaguar no rio Amazonas. Mas os remadores não tinham combinado navegar contra aquela
forte correnteza. Destoando da “tranquilidade” narrada, Marcoy afirma que desde há muito
os tripulantes vinham fazendo “carrancas” a cada ordem emitida por ele. Possivelmente os
remadores não confiavam mais na palavra de Marcoy, que decidiu por ignorar a opinião deles
e, quem sabe, avançou contra as tão respeitadas horas de sono e descanso. “De repente
eles perderam a paciência; o timoneiro atirou ao chão o seu remo; os remadores cruzaram os
braços e o barco, deixado a sua sorte, foi à deriva”.49
O motim deixou o estrangeiro totalmente entregue à força da natureza, em momento e
lugar onde suas ordens perdiam sentido e sua autoridade caía no ridículo. Para conferir outro
tipo de conotação ao evento, abrandando o controle da tripulação, Marcoy descreve-se como
herói solitário em meio à selvageria da natureza e seus habitantes, dotado de força física e
capacidade de persuasão. Leiamos nas palavras do autor.
Confesso que naquele momento fui tomado pela cólera. Levantei-me, agarrei com o
remo as duas mãos e, como Hércules prestes a executar Caco, dei a impressão de querer
quebrá-lo na cabeça dura do meu timoneiro. O homem soltou um grito de pavor, retraiu-se e,
juntando as mãos, suplicou-me que o poupasse. Então não só atendi a sua prece, como lhe
devolvi o remo, que ele imediatamente mergulhou na água.50
O próprio Marcoy considerou que a maior ameaça seria entregá-los ao recrutamento
forçado da polícia militar de Manaus. Estava inteirado de que “aqueles remadores temiam
o recrutamento forçado mais do que qualquer outro infortúnio”. Tratava-se de um legado do
morticínio da Cabanagem, ainda vivo na memória dos trabalhadores. “Percebi que os rostos
escuros empalideceram e, trocando olhares significativos, empunharam os remos e começaram
a vogar com entusiasmo que beirava a fúria”.51 A militarização do território amazônico estava
em curso desde o final do século XVIII, quando a Coroa portuguesa se esforçava por levar
“braços” à defesa de fronteiras. Depois da Cabanagem, esse sistema ganhou outra roupagem
política e se tornou ainda mais violento para impedir novas rebeliões populares.52 A equipe da
chalupa sabia das possíveis consequências de sua rebeldia organizada, principalmente porque
um motim sempre era a última alternativa para impor limites ao autoritarismo dos brancos.
Um motim era um movimento planejado, fruto da escolha de momento apropriado
para a recusa de execução de algumas ou todas as tarefas de bordo. Deflagrar esse tipo de
49
50
51
52
MARCOY, Paul. Viagem pelo rio Amazonas. Manaus: EDUA, 2006. p. 149-150.
Idem, ibidem.
MARCOY, op. cit., p. 149-150.
NOGUEIRA, Shirley. Mais histórias de desertores: fugas de militares no Xingu e Tapajós (1773-1823). In:
CARDOSO, Alírio; SOUZA, César Martins de (org.). Histórias do Xingu: fronteiras, espaços e territorialidades
(séc. XVII-XXI). Belém: EDUFPA, 2008. p. 76.
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Caio Giulliano Paião
protesto durante tempestades ou navegações turbulentas significava acelerar o atendimento
de demandas, quando o retorno ao trabalho tornava-se mais imprescindível que nunca.53 Além
das ameaças, a substituição de tecnologia naval também impulsionou projetos de contenção
à rebeldia e a retirada dos percursos do domínio dos habitantes locais.
Enquanto homens como Marcoy vangloriavam-se de supostas valentias contra tripulantes
insubmissos, o Estado Imperial discutia o implemento da navegação a vapor como forma de
incrementar o comércio interno e agilizar o transporte de autoridades políticas, policiais e
militares em espaços dominados pelos modos de vida autônomos da população.
A chegada dos vapores (1853)
Em 1853, o Império assinou um contrato de exclusividade da navegação a vapor do rio
Amazonas com Irineu Evangelista de Souza, o futuro barão de Mauá. A sua Companhia de
Navegação e Comércio do Amazonas (1853-1871) se incumbiria de servir navios de Belém
até Nauta, no Peru. Tratava-se de uma medida que visava incorporação definitiva do território
amazônico à formação da identidade geográfica do Estado Nacional, depois de apaziguadas
as chamadas revoltas regenciais.54 A efetivação do vapor incentivou a reorganização de
expedições fluviais, apoiadas pelos governos provinciais. A ideia seria conhecer os espaços
para mapear e dominar, evitar a formação de mocambos e combater economias paralelas e
autônomas em relação às elites mercantes do Pará e do Amazonas.55 Com isso, foi possível
alargar os sistemas de repressão, que conteriam ideias e práticas rebeldes. Navios mais
velozes aumentariam a eficácia dos recrutamentos forçados para o serviço militar, o trabalho
urbano e rural; das capturas de escravizados fugidos ou da reescravização de quem alcançara
a liberdade de alguma forma. Nos termos de um historiador afinado às elites proprietárias do
Amazonas, o vapor seria “uma verdadeira revolução branca”.56 Importa destacar que foi pelos
vapores que o tráfico interprovincial de escravizados adquiriu maior vigor, levando cativos do
extremo norte até as províncias do centro-oeste e sudeste.57 Apesar disso, a dependência
dos conhecimentos nativos a serviço de práticas de liberdade também viriam a adentrar e se
“apossar” dos vapores.
Uma das principais diferenças fora a maior dinâmica na circulação de pessoas e ideias
avessas às tentativas de controle de seus corpos em trânsito. A expansão das linhas e o
53 BARREIRO, José Carlos. A formação da força de trabalho marítima no Brasil: cultura e cotidiano, tradição e
resistência (1808-1850). Tempo, v. 15, p. 198, 2010.
54 Cf. GREGÓRIO, Vitor Marcos. Uma face de Jano: a navegação do rio Amazonas e a formação do Estado
Brasileiro (1838-1867). São Paulo: Annablume, 2012. BRITO, Roberta. Vapores de Mauá: a Companhia de
Navegação e Comércio do Amazonas (1852-1871). 2018. Dissertação (mestrado em História) – Universidade
Federal do Amazonas, Manaus, 2018.
55 DE LA TORRE, op. cit., p. 7.
56 Cf. REIS, Arthur. A Amazônia que os portugueses revelaram. Rio de Janeiro: MEC, 1956.
57 Cf. BEZERRA NETO, José Maia. Por todos os meios legítimos e legais: as lutas contra a escravidão
e os limites da abolição (Brasil, Grão-Pará: 1850-1888). 2009. Tese (doutorado em História) – Pontifícia
Universidade Católica, São Paulo, 2009.
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Rumos da liberdade
estímulo do Estado para a vinda de viajantes estrangeiros permitiu uma nova oportunidade de
ganhos, além de movimento estratégico para guias e práticos fluviais. No pós-Cabanagem,
a chegada dos vapores foi crucial para a criação de uma cultura de trabalho fluvial, que
favoreceu a identificação dos embarcados ao ofício marítimo, pois a navegação a vapor exigia
profissionalização e maior qualificação para embarcar e operar maquinários.
Enquanto crescia a demanda de trabalho embarcado, também ocorria um
embrutecimento da exploração a bordo e de privações às liberdades conquistadas pelo
reconhecimento da competência náutica de mulheres, homens e crianças que, em momento
algum, se constrangeram com barcos movidos a fogo. Ao revés das forças externas que os
reprimiam ou os obrigavam a trabalhar, os tripulantes passaram a criar seus próprios espaços
de trabalho a bordo, interiorizando a insurgência da geografia como forma de expandir seus
rumos de liberdade, independentes do modelo de barco em uso.
Em 1859, o médico alemão Robert Avé-Lallemant conheceu dona Maria, indígena dos
arredores de Breves. Mesmo diante do frenesi dos vapores, a hábil navegadora continuou
a exercer suas atividades comerciais em sua canoa. Remava sozinha por todos os furos e
igarapés das redondezas, vendendo ou trocando mercadorias. Segundo o viajante, a mulher
parecia ter acumulado “grande fortuna”. O médico chegou a dizer que gente como dona
Maria era muito comum e que só raramente se via um branco comandando embarcações.58
Quanto mais exteriorizavam o domínio desses espaços, mais acintoso ficava o cerceamento
de mobilidade e autonomia sobre a vida embarcada e terrestre dos embarcadiços.
Entre 1858 a 1859, o pintor francês François Auguste Biard passeou pelo norte do Brasil.
Seu relato é quase um manual sobre modos diferentes de aterrorizar e castigar embarcadiços
negros, indígenas e mestiços. Há momentos em que dizia disparar seu revólver pouco acima
da cabeça deles, apenas para firmar autoridade a bordo.59 Sua principal vítima foi o prático
mura Policarpo, com quem implicava pela altivez e ritmo próprio de executar tarefas. O pintor
passou a viagem inteira obcecado com a ideia de que uma insurreição a bordo estourasse
a qualquer momento. Andava com os bolsos cheios de balas, sabre à cintura e espingarda
a tiracolo, sempre atento aos cochichos dos tripulantes.60 Contudo, certos limites iam sendo
impostos ao pintor: suas paradas para desenhar eram sabotadas, afazeres atrasados de
propósito etc. Um episódio em particular merece destaque pela escolha do momento, local e
uso inteligente da natureza.
Um dos costumes da tripulação de Biard era tomar banho de rio logo que tinham
oportunidade. O francês julgava que não soubessem nadar e por isso preferiam ficar sempre
próximos à margem. Como não perdia a chance de se mostrar superior a eles, Biard se
lançou nas águas e passou a nadar bem ao longe. “Enquanto me afastava da terra, os índios
me observavam, sentados na praia. De repente percebi um movimento de beiços particular
58 AVÉ-LALLEMANT, Robert. No rio Amazonas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. p. 65, p. 55.
59 BIARD, op. cit., p. 210.
60 Idem, p. 201.
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e-ISSN: 1984-9222 | DOI: https://doi.org/10.5007/1984-9222.2022.e86598
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Caio Giulliano Paião
a Policarpo, como a mostrar aos companheiros o que quer que fosse que eu não via”. Todos
olhavam para algo, mas ninguém sinalizava o quê. Biard ficou amedrontado e retornou a
terra. “Ao chegar perto dos índios, compreendi então tudo. Mais uns segundos eu teria sido
devorado por um bando de jacarés que os olhos de Policarpo haviam descoberto. E todos
esperavam o resultado do meu encontro com os anfíbios”.61 Quando obtiveram uma brecha,
Policarpo e outros se evadiram daquela excursão abusiva.
Outro francês, Alexandre de Belmar, cuja biografia é praticamente desconhecida,
percorreu a Amazônia e o Nordeste brasileiro, provavelmente entre o final da década de
1850 e o ano de 1860. Belmar foi bastante crítico à escravidão no Brasil, defendendo a sua
abolição. Compreendeu que a posse sobre o corpo de outrem alimentava rebeliões, por vezes
sanguinolentas como a Cabanagem. Não chegou a ser ofensivo quando encontrou variados
tons de pele nas margens dos rios, vendo-os em todas as profissões: comerciantes, soldados,
sacerdotes e marinheiros.62 Ao chegar à província do Amazonas, afirmou que a tranquilidade
pública há tempos não era alterada, conforme se inteirava dos eventos da Cabanagem. Parecia
que os brancos começavam a ser bem-vindos na região. E que as populações indígenas,
antes indiferentes e relutantes em trabalhar para eles, passaram a se engajar lado a lado com
os negros, independentemente se escravizados ou não.63
Dentro dos navios tal convivência pode ter incentivado solidariedades em momentos-chave e/ou para granjear melhores condições de vida e trabalho. Novas formas de protesto
e organização estavam em curso, ao mesmo tempo em que a navegação ia sendo absorvida
pelos barcos a vapor.
Conclusão
Os anos 1870 trouxeram outra dinâmica às relações a bordo com a chegada de migrantes de
outras regiões do país, conforme se expandia a economia de exportação de produtos extrativos,
especialmente a borracha. Homens, mulheres e crianças de diferentes origens passaram a
equipar os vapores, que gradualmente substituíam os barcos menores, mais recorrentes no
domínio de atores sociais como os vistos ao longo do artigo. Contudo, uma observação: todo
esse processo de lutas por reconhecimento, incessante expansão e apropriação da geografia
amazônica serviria para alçar postos marítimos naquele novo contexto de navegação. Os
nativos da região, filhos e netos de antigos cabanos, passaram a se ocupar da pilotagem e
praticagem desses navios, obtendo certa ascensão social e conquistando respeitabilidade
pública.64 As evidências analisadas até aqui corroboram a hipótese de que o processo de
61 Idem, p. 197-198.
62 BELMAR, Alexandre de. Voyage aux Pará et des Amazones en 1860. London: Tresize, Beech Street, Barbican,
1861. p. 128. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/view/?45000008414. Acesso em: 17 mar. 2022.
63 Idem, p. 193.
64 Cf. PAIÃO, Caio Giulliano. Culturas de trabalho e associações de práticos em Manaus e Belém (anos finais do
século XIX). Revista Mundos do Trabalho, v. 11, 2019.
Mundos do Trabalho, Florianópolis | v. 14 | p. 1-19 | 2022
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Rumos da liberdade
“insurgência” da geografia permitiu a abertura de novas frentes de luta por valorização
profissional. Condição indispensável para o reconhecimento de sua cidadania, ainda que
diante de insistentes mecanismos que os impeliam a lugares determinados de subalternidade
em terra e a bordo.
Ainda há muito que se pesquisar sobre as dinâmicas do trabalho embarcado e da vida
marítima no interior do Brasil. Trabalhadores e trabalhadoras fluviais também foram sujeitos
históricos frente às dinâmicas da escravidão e outros mundos do trabalho, construindo de
dentro de seus modos de vida, atos próprios de ousadia e rebeldia. A proposta aqui é o
alargamento do estudo das experiências marítimas e aspirações de liberdade, sem que
essas sejam naturalmente remetidas ao litoral e/ou a portos de alto fluxo de mercadorias.
Principalmente, levando-se em conta a potencialidade de análise de um enorme e variado
contingente marítimo, atuante na vastidão de água doce do continente. A recente digitalização
de fontes, como as analisadas acima, reitera o convite. Através delas, vimos pela agência
dos marítimos amazônicos, no rescaldo da Cabanagem, o seu dilatado grau de autonomia
diante de conflitos raciais remanescentes do período das rebeliões regenciais. Conflitos que
azeitaram a formação de itinerários em prol de rumos de liberdade e de movimento por uma
geografia instrumentalizada como forma de trabalho, através de uma constante insurgência
das tripulações.
Recebido em 19/03/2022
Aprovado em 25/04/2022
Mundos do Trabalho, Florianópolis | v. 14 | p. 1-19 | 2022
e-ISSN: 1984-9222 | DOI: https://doi.org/10.5007/1984-9222.2022.e86598
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