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NECROPOLÍTICA: NORMA PROFUNDA DA MODERNIDADE

2022

O conceito de necropolítica talvez seja um dos mais citados nas Ciências Humanas contemporâneas. Um conceito cientificamente revolucionário, elástico e que não conhece fronteiras disciplinares tem sido utilizado pela Sociologia, Ciência Política, Antropologia, Direito, Criminologia, Políticas Públicas, além de outras áreas transdisciplinares.

NECROPOLÍTICA: NORMA PROFUNDA DA MODERNIDADE Aline Gabrielle Cardoso do Rosário 1 David Junior de Souza Silva2 MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2016. O conceito de necropolítica talvez seja um dos mais citados nas Ciências Humanas contemporâneas. Um conceito cientificamente revolucionário, elástico e que não conhece fronteiras disciplinares tem sido utilizado pela Sociologia, Ciência Política, Antropologia, Direito, Criminologia, Políticas Públicas, além de outras áreas transdisciplinares. O conceito foi apresentado pela primeira vez por Achille Mbembe no ensaio Necropolítica, publicado, no Brasil pela N-1 Edições e traduzida pela revista Arte e Ensaios, em dezembro de 2016. O autor designa como necropolítica as formas contemporâneas de subjugação da vida ao poder da morte, que não são mais suficientemente explicadas pela noção foucaultiana de biopoder: propus a noção de necropolítica e necropoder para explicar as várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, armas de fogo são implantadas no interesse da destruição máxima de pessoas e da criação de “mundos de morte”, formas novas e únicas da existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de “mortos-vivos” (MBEMBE, 2016. p. 146). Michel Foucault, no último capítulo da História da Sexualidade I, Direito de Morte e Poder sobre a Vida, diferencia norma de lei, a aponta como na Modernidade, apesar de ser uma sociedade que se propõe a regência da lei – a vigência da dominação legal-estatutária, como diz Max Weber3, a norma prepondera a estruturação da vida social: “Uma outra consequência deste desenvolvimento do biopoder é a importância crescente assumida pela atuação da norma, às expensas do sistema jurídico da lei”4. Acadêmica de Ciências Sociais na Universidade Federal do Amapá (Unifap). E-mail: [email protected] Professor Adjunto do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Amapá (Unifap)). Professor Permanente e atual Coordenador do Mestrado Profissional em Ensino de História da Unifap (ProfFHistória/Unifap). Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Socioespacial e Regional da Universidade Estadual do Maranhão (PPDSR/UEMA). E-mail: [email protected]. 3 Weber, Max. Sociologia da Dominação. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa; Revisão técnica de Gabriel Cohn – Brasília: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999. 586 p.; p. 187-580. 4 Foucault, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988, p. 134. 1 2 Página 120 EM FAVOR DE IGUALDADE RACIAL, Rio Branco – Acre, v. 5, n.2, p. 120-123, mai-ago. 2022. Para Foucault, existe um intenso trabalho legiferante no mundo moderno, secundário, todavia diante da norma, instância que realmente preside e estrutura a vida social. Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida. Por referência às sociedades que conhecemos até o século XVIII, nós entramos em uma fase de regressão jurídica; as Constituições escritas no mundo inteiro a partir da Revolução Francesa, os Códigos redigidos e reformados, toda uma atividade legislativa permanente e ruidosa não devem iludir-nos: são formas que tomam aceitável um poder essencialmente normalizador5 (FOUCAULT, 1988, p. 134-135). Nesta resenha, trataremos desta que parece ser uma norma perene da Modernidade: o necropoder, investigado por Mbembe. Por mais que no âmbito legislativo e na esfera pública avance a legislação constitucionalista e a defesa aos direitos humanos, nunca o poder de decidir a vida e a morte esteve também tão avançado. O historiador e filósofo Achille Mbembe nasceu em Otelé, na República dos Camarões, em 1957. Doutorou-se em História pela Universidade de Sorbonne, em Paris, na França. Fez parte do corpo docente nas Universidade de Columbia e Universidade da Pensilvânia, ambas nos Estados Unidos. Ocupou o cargo de Diretor Executivo no − Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais na África (CODESRIA)6. Atualmente é professor de História e Ciência Política, em Witwatersrand, em Joanesburgo, e na Universidade Duke, nos EUA. Achille Mbembe inicia o ensaio relatando como a manifestação específica da soberania consiste no poder e na possibilidade de determinar quem pode viver ou morrer. O ensaio é dividido em cinco tópicos: o primeiro adentrando no conceito de biopoder, soberania e estado de exceção, onde a questão da morte acaba se tornando estratégia cotidiana na gestão de populações. No entanto a morte não se aplica a todos os indivíduos, quem tem sua morte decretada são os povos que são constantemente marginalizados e os corpos racializados pela sociedade. É interessante observar esse aspecto, pois, o autor adentra na preocupação em torno da soberania que não trabalha pela estrutura da autonomia, ao contrário, tem como objetivo a destruição de povos. Na reflexão sobre o estatuto da morte na política, o autor contrasta Hegel e Bataille. Segundo Mbembe, Hegel afirma que a morte está relacionada ao conceito de negação da natureza humana e transformação do elemento pelo aspecto do trabalho e luta; Bataille interpreta a morte e soberania em termos de troca e superabundância. No segundo tópico, Mbembe faz uma relação entre biopoder, estado de exceção e estado de sítio. Quando o Estado passa por uma crise, o poder apela pela exceção e para a produção de Idem, ibidem, p.134-135. WISER. Achille Mbembe. Wiser: Wits Institute for social and Economic Research, [s.d.]. Disponível em: https://wiser.wits.ac.za/users/achille-mbembe. Acesso em: 14 set. 2021. 5 6 Página 121 EM FAVOR DE IGUALDADE RACIAL, Rio Branco – Acre, v. 5, n.2, p. 120-123, mai-ago. 2022. uma noção ficcional de inimigo. Isso quer dizer que a temática do biopoder atua como divisão dos indivíduos (entre os que podem viver e os que devem morrer). Achille Mbembe discorre sobre como o campo biológico que passa por um controle ou administração, isso está relacionado justamente na divisão da população em grupos e subgrupos tendo um cerceamento biológico que Foucault descreve como racismo – uma manifestação específica do biopoder. [...] a raça foi a sombra sempre presente sobre o pensamento e a prática das políticas do Ocidente, especialmente quando se trata de imaginar a desumanidade dos povos estrangeiros – ou dominá-los. Referindo-se tanto a essa presença atemporal como o caráter espectral do mundo da raça como um todo, Arendt localiza suas raízes na experiência demolidora da alteradas e sugere que a política da raça, em última análise, está relacionada com a política da morte [...] (MBEMBE, 2011, p. 128). Observa-se um destaque dado no texto ao nazismo, como exemplo típico do exercício da soberania como o poder/direito de matar. O nazismo construía a existência do outro como uma ameaça que deveria ser eliminada. O Estado de Exceção decreta de forma explícita seus inimigos, indo ao extremo para eliminá-los e expondo seus indivíduos em guerras. Outro trecho de suma relevância é a ligação entre a modernidade e terror, onde a população do dito Antigo Regime adorava a forma como os inimigos de Estado eram executados em praça pública tendo seus corpos expostos. Então há, o que já foi dito, a normalização da morte quando se trata também da manutenção do poder. Achille Mbembe coloca a escravidão como uma das condições para o surgimento do terror moderno, sendo um dos primeiros exemplos de necropolítica. Sabemos como a colonização se estruturou e os diversos problemas que ela acarretou, dominando povos, cometendo genocídio e transformando-os em escravos/propriedade. O escravo era denominado como “coisa”, totalmente à mercê da morte. No item 3 − sobre Necropoder e ocupação colonial na modernidade tardia, o autor relata como a violência consiste na forma original do direito. Com a posse colonial existia a afirmação do controle tanto físico como geográfico, Mbembe diz que: “[...] a soberania é a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem não é” (MBEMBE, 2016, p. 135). Por ocupação colonial tardia, o autor cita a ocupação colonial da Palestina, caracterizando-a por um controle disciplinar, biopolítico e necropolítico. Seguindo, já no quarto ponto, Mbembe adentra nas guerras contemporâneas, sendo a tecnologia um dos principais fatores para destruição do inimigo, como exemplo, o autor aponta a Guerra do Golfo, no qual a tecnologia militar garantiu a vitória da coalizão internacional. Trata-se Página 122 EM FAVOR DE IGUALDADE RACIAL, Rio Branco – Acre, v. 5, n.2, p. 120-123, mai-ago. 2022. de um novo tipo de guerra: em que os civis são mais afetados do que os próprios militares, pela natureza dos ataques realizados no contexto dos conflitos bélicos. No quinto e último ponto, Mbembe retorna ao exemplo da Palestina pautando duas lógicas distintas: uma, a lógica do martírio; a outra a da sobrevivência. Partindo da conceituação de Elias Canetti de sobrevivente, Mbembe declara que o sobrevivente é aquele indivíduo que lutou contra muitos inimigos e conseguiu escapar. Assim, o autor encerra seu ensaio contextualizando como a contemporaneidade dominam a vida ao poder da morte, colocando todos os significados de biopoder e afirmando que esse conceito não é o suficiente para esclarecer a subjugação da vida ao poder da morte. O ensaio evidencia que quando maior for a fragilidade de um povo/etnia, maior é instabilidade entre a vida e a morte. O conceito de necropolítica tem sido apropriado de forma intensa no Brasil, para pautar estruturas sociais, históricas da sociedade brasileira e eventos contemporâneos. Os quatro séculos de escravidão, ditadura militar, genocídio histórico contra a população negra e a indígena têm sido interpretados com o conceito de necropolítica. Igualmente, os efeitos sociais amplamente desiguais da pandemia da COVID-19, vitimando fatalmente de forma exponencial maior população trabalhadora, negra e indígena, têm sido caracterizados pela lógica da necropolítica. Conclui-se, por sua longitude e latitude, assim, que a necropolítica tem sido a norma profunda e perene estruturante da modernidade, indiferente às mudanças de superfície que se operaram nesta, e contínua na fundação permanente do mundo contemporâneo. Enviado em: 04/10/2021 Aprovado em: 04/01/2022 Página 123 EM FAVOR DE IGUALDADE RACIAL, Rio Branco – Acre, v. 5, n.2, p. 120-123, mai-ago. 2022.