Atos de Pesquisa em Educação - ISSN 1809-0354
Blumenau, v. 13, n.2, p.428-458, mai./ago. 2018
DOI: http://dx.doi.org/10.7867/1809-0354.2018v13n2p428-458
AS TENSÕES NORMATIVAS DA MODERNIDADE1
LES TENSIONS NORMATIVES DE LA MODERNITÉ
SINGLY, François De
[email protected]
Faculté des Sciences Humaines et Sociales de la Sorbonne
RESUMO A partir de uma análise das relações familiares a modernidade é
interrogada, aqui, em seu conjunto. As tensões e as incertezas das relações
educativas atuais podem ser vinculadas às intromissões instáveis de dois registros
modernos: um, trata-se da regra imperativa, típica da pré-modernidade, e, outro, da
regra negociada e contextualizada, indispensável à individualização. O dilema
normativo, hoje, encara assim ambas as regras, a imperativa e a cooperativa. Se a
desvalorização da norma imperativa permanece evidente, por outro lado, não
consiste em solução desvalorizar também a norma relacional, representando-a como
algo que engendra todos os males. Deve-se recusar este falso dilema entre a norma
moral ou a norma psicológica, entre o imperativo ou o individualismo, e aprender a
manter ambos como partes da regulação das condutas e das relações.
Palavras-chave: Educação. Individualização. Normatividades. Modernidade.
RÉSUMÉ En s’appuyant sur une analyse des relations familiales, l’auteur interroge la
modernité dans son ensemble. Pour lui, les tensions et les incertitudes des relations
éducatives actuelles peuvent être rapportées aux interférences instables entre deux
registres de la normativité: celui de la règle impérative, typique de la prémodernité, et
celui de la règle négociée et contextualisée, indispensable à l’individualisation.
Aujourd’hui, le dilemme normatif affronte les deux, règle impérative et règle
coopérative. Si la dévalorisation de la impérative est évidente, le remède ne consiste
pas à dévaloriser la norme relationne la dépeignant comme celle qui engendre tous
les maux. Il faut refuser ce faux dilemm entre la norme morale ou la norme
psychologique, entre l’impératif ou l’individualisme et apprendre à tenir les deux
bouts de la régulation des conduites et des relations.
Mots-clés: Éducation. Individualisation. Modernité. Normativités.
1 BRINCANDO COM FOGO
A perda ou a falta de referências é uma expressão constante no discurso
crítico do mundo moderno. Provocada por uma espécie de “doença contagiosa”
(GUILLEBAUD, 2001), esta expressão se tornou tão frequente a ponto de não ser
mais questionada (POIROT-DELPECH, 2002). Como não constatar que “a
1
Tradução para o português realizada por Tiago Ribeiro Santos e Ione Ribeiro Valle. O texto original,
intitulado “Les tensions normatives de la modernité”, foi publicado na revista Éducation et sociétés,
Ano de 2003/1, nº 11, p.11-33. Versão em francês disponível em <https://www.cairn.info/revueeducation-et-societes-2003-1-page-11.htm>
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transmissão fundamental, essa passagem de uma geração a outra” tem funcionado
mal? Isso parece decorrer de uma evidência: existem no interior das nossas
sociedades seres humanos “de certo modo desumanizados, ou seja, que não
receberam como herança nem culturas nem valores mínimos”. É preciso não
esquecer que os piores atos de barbárie, como o extermínio de judeus,
homossexuais, ciganos, foram cometidos em uma nação muito culta, com uma
lógica argumentativa na qual as referências não faltavam. Os “bárbaros” podem ser
socializados. A barbárie seria visível entre os jovens que se comportam como
selvagens na floresta. O estado de natureza na sociedade, visível através desta
desumanização, somente é possível em virtude da ausência de socialização e de
transmissão. Vejamos esta página do bloco de notas de Jean-Claude Guillebaud
que reúne muito bem os deslocamentos produzidos permanentemente por esse tipo
de raciocínio.2 Parte-se da descrição de fatos incontestáveis para chegar, sem
ruptura de tom, à evidência do diagnóstico. Existem violências cometidas por jovens,
isso demonstra que esses jovens não são socializados e que a transmissão de uma
geração a outra não está mais acontecendo. Esse texto é ilustrado pela fotografia de
um carro incendiado em Estrasburgo na noite de 31 de dezembro. Embaixo dessa
imagem aparece o seguinte texto: “Bombeiros tentam apagar o fogo de um carro
ateado por jovens para ‘se divertir’. Os novos delinquentes são incapazes de fazer a
distinção entre o que é permitido e o que é proibido”. Pode-se duvidar desta
interpretação por duas razões. Primeiramente, os carros queimados durante o
réveillon fazem alusão ao ritual de muitos carnavais que terminam – como na cidade
de Cholet onde passei minha infância – com o carro alegórico incendiado. O fogo
tem um duplo simbolismo: desfaz-se das coisas detestadas como nos “autos-de-fé”;
comemora-se um período de articulação entre a morte e a vida. Na Páscoa, a Igreja
católica coloca em prática um de seus mais belos rituais quando o padre mergulha o
sírio aceso na água. Ao incendiar automóveis, esses jovens lançam mão de usos
tradicionais do fogo. Eles fazem isso à noite para iluminar a chegada do ano novo.
2
N.T. O autor se refere a um artigo do jornalista e escritor Jean-Claude Guillebaud, excorrespondente do jornal Le Monde, publicado em 2001 no La Vie, hebdomadário francês de vertente
católica.
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Eles fazem isso queimando símbolos da sociedade de consumo – como nas
barricadas em 1968 – não mais para denunciar a abundância dos bens, mas para
protestar contra as desigualdades de acesso. Esses fogos põem em relevo a
pobreza dos rituais públicos dessa transformação. Observa-se na Avenida ChampsElysées, onde muitas pessoas se encontram sem saber o que fazer, a não ser fazer
barulho, buzinar – outro tipo de barulho historicamente associado à mudança como
nos cortejos de casamento – e beber champanhe como símbolo dos grandes
momentos. Enquanto muitos celebram a virada do ano em restaurantes ou em casa,
alguns jovens que não têm espaço privado festejam no espaço público e reabilitam,
conscientemente ou não, rituais ocidentais de passagem. O segundo erro vem da
evidência da não-socialização desses jovens. Ao contrário, eles sabem que queimar
carros é proibido. Eles não fazem isso todos os dias. Eles o fazem para festejar. A
questão não é, portanto, a selvageria desses jovens: se eles fossem “selvagens” no
sentido estrito, sem socialização, por que queimariam carros e, sobretudo, por que o
fariam justamente nessa noite?
Essas ações condenáveis merecem uma análise mais séria. Queimar carros
não é um ato inocente entre os jovens que praticam esse tipo de atividade. Eles
sabem quanto custa um carro e também sabem que se trata de bens de propriedade
privada, normalmente não disponíveis para atear fogo ou ser emprestado. A questão
colocada por esses atos não é, portanto, a da socialização e da transmissão; a
questão é outra: por que esses jovens não obedecem às regras? A resposta não é
simples, mas modifica o diagnóstico: não basta as regras serem aprendidas para
que sejam aplicadas. É preciso que elas sejam respeitadas por aqueles que as
aprendem. Uma regra pode não ser esquematicamente seguida por três razões: ou
porque ela não é legítima, perdendo, portanto, seu estatuto de regra (pensemos na
desobediência civil); ou porque, ainda que legítima, sua não aplicação traz muitos
ganhos; ou porque, mesmo legítima, ela pode de vez em quando ser contornada,
uma regra podendo ser intermitente. No caso dos carros queimados, a remuneração
não é evidente, senão simbólica, midiática: esses jovens podem ser reis por um dia,
ou por uma noite. Eles têm a oportunidade de se tornar os heróis dos jornais
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televisivos ou escritos. Uma pesquisa junto a esses incendiários seria necessária
para analisar as razões de seu desafio. Até onde isso manifesta uma forma de
reconhecimento que eles se atribuem, estimando-se demasiadamente excluídos?
Deixemos os carros incendiados e concentremo-nos nas infrações mais
frequentes, notadamente a de furar o sinal vermelho. A regra é simples e do
conhecimento de todos: no vermelho, se para. Ora, em Paris, cada vez com mais
frequência, quando surge o sinal “vermelho”, ao menos um carro passa, não no
amarelo, mas, com certeza no vermelho. Essa contravenção não decorre de uma
ignorância, de uma deficiência na socialização. O indivíduo que fura o sinal vermelho
conhece a regra; ele brinca com ela. Ele estima ainda ter tempo para passar, que o
princípio justo não merece uma aplicação estrita, que o condutor é um bom juiz.
Tudo se passa assim como se, a cada sinaleira, o condutor tivesse prazer em
negociar com o princípio. Parece-nos que as infrações desse tipo se desenvolvem,
consistindo em seguir as regras, mas com certa flexibilidade. Certamente, elas não
são contestadas, mas se é suficientemente maduro para estimar que sua aplicação
seja efetiva. A rigidez não seria um problema num mundo que celebra, de múltiplas
formas, a flexibilidade?
Ora, essa contestação, silenciosa, das regras produz seus efeitos. Assim,
neste caso, entre os pedestres, nasce uma certa desconfiança acerca de outrem
associada a um sentimento de perda da ligação social. A crise da ligação social
deriva inicialmente não da ausência de relações entre os indivíduos de uma mesma
sociedade – para muitos, o tempo dispensado para se comunicar é importante –,
mas da falta de confiança, de confiabilidade nos outros, não conhecidos. O universo
está dividido em duas partes: o próprio mundo que inclui as pessoas conhecidas,
próximas, que se aprecia ou que em certos casos se tem um pouco de receio; e o
outro mundo que compreende os outros indivíduos, anônimos. A cidade deveria ser
sinônimo da liberdade de circulação no interior de um espaço público e da
segurança, uma vez que é compartilhada por cidadãos que respeitam uma lei
comum. Ela pode se tornar ameaçadora se as regras da vida em conjunto não forem
rigorosamente seguidas. Então se recolhe sobre si mesma e, mais precisamente,
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sobre seu mundo; permanece-se num “entre si” mais seguro. Alguns sonham em
viver num espaço público que se parece com um bairro comunitário onde os vizinhos
são familiares, onde se conhece o outro. O sucesso do filme Amélie Poulain é
testemunha dessa nostalgia. O sentido da cidade moderna se perde. Quando o
temor se torna demasiadamente grande, a rejeição aumenta. A síndrome de Nimby
– not in my backyard – pode afirmar-se mais facilmente, de maneira mais legítima, e
se transformar em Noos – Not on our street (PÉNICAUT; VIROT, 2002; BISSUET,
2002). Nossa rua deve ser protegida dos desconhecidos, dos pobres, dos
estrangeiros, das pessoas de outras culturas, das pessoas diferentes de “nós”.
Aqueles que gritam contra as comunidades querem, todavia, defender a sua.
Incontestavelmente, na Europa, o desenvolvimento de tais atitudes não pode
ser visto nem com desprezo, nem com indiferença. Os discursos sobre a perda de
educação e a falta de respeito também devem ser levados a sério. Essas ausências
decorrem da mesma lógica que a das infrações de estrada. O princípio se torna
negociável conforme o contexto. Para nós, elas traduzem um dos problemas
centrais das normas nas sociedades modernas: não sua ausência, como se diz
frequentemente, mas a existência de vários tipos de normas, cuja contradição
engendra efeitos negativos. Tentemos compreender agora as “amarrações” dessa
crise normativa.
2 A NORMA DO COMANDO
Como sempre, voltemos ao funcionamento das sociedades pré-modernas.
Estas têm normas morais, geralmente religiosas, que apresentam uma maneira
precisa: a do comando. “Respeitarás teu pai e tua mãe”. Tais enunciados não são
difíceis de serem apreendidos, nem aplicados. Eles funcionam segundo o princípio
do “Sim-Não”. O indivíduo respeita ou não a regra. O pecado original de Adão e Eva
simboliza a sequência da história: Deus proibiu de comer os frutos da árvore do
conhecimento, quando Adão e Eva os comeram, desobedeceram e foram punidos.
Eles foram expulsos do Paraíso terrestre. Uma regra. Uma proibição. Uma sanção
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em caso de desobediência. Não há nem continuidade – comer a metade da maçã –,
nem consideração pelo indivíduo pecador – Adão poderia estar particularmente
cansado naquele dia. A regra e a sanção são as mesmas para todos. Elas provêm
da Lei. O ritual de confissão na sua forma tradicional consiste em admitir seus erros.
Havia – ao menos até os anos 1960, pois me lembro de havê-las utilizado – listas de
pecados abrangendo todos os pecados possíveis, hierarquizados entre os “veniais”
e os “mortais”. A aposta era importante: o acesso ao paraíso (celeste) dependia
disso.
Esse tipo de princípio normativo não se limita à esfera religiosa. Ele foi
retomado durante o primeiro período da modernidade, dos anos 1920 aos anos 1960
(DE SINGLY, 1993), e transferido às normas de higiene. Assim, nos anos 1920, é
publicado o Catecismo de puericultura prática e moderna do doutor Demirleau: as
mães devem seguir ao pé da letra regras de como bem educar seus filhos. Registro
higienista e registro moral coexistem, portanto, harmoniosamente graças a
deslocamentos progressivos. No Guia prático da mãe: noções elementares de
puericultura, dos doutores Rudaux e Montet (1926) pode-se ler: “Ao longo do dia,
geralmente é necessário interromper o sono na hora fixada para a amamentação. A
regularidade das refeições deve ser escrupulosamente respeitada... Repetindo as
mesmas ações nas mesmas horas e sempre nas mesmas condições, a criança
adquire rapidamente os bons hábitos que se deseja ensinar. Ela se disciplina
facilmente”. Em seus cursos de educação moral, Durkheim raciocina assim,
estimando que o objetivo seja regularizar as condutas e que o meio para conseguir
isso seja inculcar o espírito de disciplina: “Agir bem é obedecer bem” (1963, p. 21).
O interesse pela virtude da obediência está em se tornar independente daqueles que
exigem tal comportamento e daqueles que devem aplicá-lo. É por essa razão que
esse sociólogo não é muito favorável à educação familiar, pois tem medo de uma
grande fraqueza da parte dos pais. Ele prefere a escola por ser mais impessoal.
Embora reconheça que sempre existe “uma margem deixada à iniciativa” das
pessoas implicadas, ele afirma que essa deve ser “restrita”: “o essencial da conduta
é determinado pela regra” (DURKHEIM, 1963, p. 20). Durkheim pensa que a
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disciplina escolar está à altura da imposição às crianças desse “vasto sistema de
proibições”, dessa “espécie de barreira ideal sob a qual a força das paixões
humanas se evanesce”. A III República francesa proclama uma educação moral, à la
Durkheim, ou higienista, que repouse sobre o comando. É por isso que Catherine
Rollet (1990) estima que, durante aqueles anos, a pressão nos centros de proteção
maternal e infantil constitui “um novo rito, uma espécie de batismo republicano, o da
higiene e da instrução... A balança que define o bem e o mal... julga”.
3
O PRINCÍPIO DO “NEM UM, NEM OUTRO”
Progressivamente, sobretudo a partir dos anos 1960, a educação modifica o
regime normativo. Autores como Françoise Dolto ou Charles Bettelheim,
especialmente, difundem as novas boas maneiras de educar seus filhos: “Crer que
possam existir regras que comandam nosso comportamento diante do nosso filho
significa comprometer a compreensão empática que somente poderia vir das nossas
próprias experiências, tão únicas quanto são, para ele, as de seu filho”
(BETTELHEIM, 1988). As regras, os comandos, são percebidos como perigosos
posto que “ignoram o que é pessoal e nos levam a negligenciar o que é único no
nosso filho e nas relações com ele”. Trata-se de uma revolução pedagógica que
desloca do seu centro a regra para colocar nele a criança. Basta comparar os
enunciados de Durkheim aos de Françoise Dolto para apreender a transformação do
sistema normativo: “O desenvolvimento de uma criança se faz como deve ser feito, o
melhor que se pode, segundo sua natureza desde o início, quando ela se sente
amada pelos pais que se amam, e quando há alegria no ar... Uma criança feliz, bem
consigo mesma, é alguém que se desenvolve como deve se desenvolver, com suas
particularidades que serão respeitadas” (DOLTO, 1977-1979). Não é mais a regra ou
a disciplina que devem ser respeitadas, mas a criança e sua natureza.
Essa norma – que nomeio de psicológica, ainda que os psicólogos se
recusem a considerá-la como tal, o que não contribui para torná-la visível e assim
engendrar o sentimento de ausência de normas – se diferencia, portanto, da norma
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moral. Ela não assume mais a forma do comando; ela se escreve sob a forma de um
enunciado mais complexo, de um princípio que deve evitar os extremos: o principio é
o do “nem um, nem outro”. A criança deve ser amada, nem muito, nem pouco. A
autonomia que se lhe confere também deve ser calculada: autonomia em demasia
denuncia excesso de indiferença, pouca autonomia revela amor castrador. Assim,
uma revista educativa tenta fazer compreender como devemos nos comportar com
uma criança de 5 - 11 anos: “quanto mais questionamos, mais acreditamos mostrarlhes que nos interessamos por elas e mais elas sentem que queremos controlá-las”.
Desse modo, aconselha-se a questioná-la menos e a lhe dizer o contrário: “saiba
que quando você tiver vontade de falar comigo, quando você sentir vontade, eu
estarei disponível” (DUCAMP-MAYOLLE, 2002).
Do ponto de vista ideal, o princípio psicológico é o equilíbrio entre opostos,
entre o laisser-faire e a repressão, entre o “demasiado” e o “insuficiente”, entre o
“sob” e o “sobre”. É por isso que um “jogo da verdade” (BASSOUL; THOMAS, 2003)
conclui que, para que um casal funcione bem, é preciso que cada um dos parceiros
faça o suficiente: “o superinvestimento pode ser tão perigoso quanto o
subinvestimento. Os pais também devem procurar esse ponto tão difícil de ser
conhecido, eles têm poucas chances de consegui-lo, como sublinha Donzelot
(1977)3: “Sempre há na família presença de um excesso ou de uma insuficiência de
investimento afetivo para explicar as opressões e as frustrações dos indivíduos. O
filósofo Alain Renaut formula essa constatação de maneira diferente: “A única
solução deixada aos pais é, no fundo, a de ter talento, de serem ‘bons pais’, ou seja,
não pais que sejam bons, morais e humanos, mas bons enquanto pais, capazes de
provar talento” (RENAUT, 2002, p. 200). Na verdade, para se adaptar à situação
presente, são necessárias indicações fornecidas pela norma psicológica, no que
concerne, por exemplo, à maneira como se pode ajudar seu filho a crescer: “O maior
bem que se pode fazer por ele é não intervir sistematicamente e não decidir no seu
lugar”. Tudo está no “sistematicamente”: não intervir traduziria uma indiferença
parental, intervir sistematicamente revelaria um excesso de dirigismo, que impede a
3
Para uma versão atualizada desta perspectiva, ver Darmon (1999).
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autonomia infantil. Cabe aos pais, munidos desse conselho, decidirem sobre a
posologia de suas intervenções educativas. Eles podem saber onde se situam
respondendo às questões de um teste no qual o próprio título fornece a boa reposta,
da ordem do “nem um, nem outro”: “Você superprotege seu filho ou lhe concede
muita autonomia?”
A busca de tal equilíbrio rege a existência toda, podendo-se encontrar em
revistas femininas ou de autoajuda. Ele toma tanto a forma de uma confrontação
entre dois pontos de vista, opostos, de especialistas, devendo o leitor ou a leitora
operar a síntese, quanto à forma de uma modalidade mais desconcertante, a forma
da sucessão: de um número a outro, pontos de vista divergentes são expostos, sem
conclusão. A primeira dificuldade desse princípio é o fato de que ele dá uma direção,
uma referência, menos diretiva que a norma moral. Por definição, o “nem um, nem
outro” é mais fluído. Isso não constitui um defeito, uma vez que é necessário para
permitir um ajustamento pessoal: quando o ponto está fixado, o jogo não é mais
possível, quando a linha é flutuante, pode haver ajustamento em função da situação
e da personalidade da criança. A liberdade de expressão reside na imprecisão do
“nem um, nem outro”. Nesta perspectiva, a socialização não termina com a infância,
ela é permanente: os ajustamentos sinalizam uma atenção necessária às pessoas e
às coisas e a não rigidez dos princípios. Tomemos o exemplo de um dossiê
publicado por Biba (outubro, 2002), intitulado “Libere-se” (cujo subtítulo é: “Fazer
muito, finalmente, é melhor”; ele indica, no entanto, um certo ponto de desequilíbrio
na medida em que os jornalistas pensam que as mulheres se situam no outro
excesso. A correção exige, portanto, essa inflexão). Num dos artigos com título
denunciativo, “A ditadura da emoção. Ou como em quinze anos, o autocontrole se
tornou muito démodé”, a busca do ponto de equilíbrio é explícita: “As gerações
formadas de maneira rude (Never complain, never explain) sofreram muito e
acabaram inventando a psicanálise. Um pouco de laisser-aller somente poderia lhes
fazer bem. Liberá-las. Mas as gerações seguintes não receberam em massa o
mesmo equipamento para encontrar um equilíbrio entre a fria razão e as loucas
paixões. Resultado, alguns apareceram no painel do “libere sua inteligência
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emocional” sem na verdade se dar conta de que se tratava de adotar um outro modo
de controle: utilizar suas emoções (e as dos outros), não soltar as rédeas, brincar
com, evitar histerias”. E os artigos seguintes tentam tornar esse jogo possível:
“Exprimir-se sim, transbordar não”. O “sim-não” mascara o “nem um, nem outro”:
“entre a dose salutar de emoção e a suspeita que faz tudo transbordar, há uma
nuance... que alguns têm dificuldades de respeitar”.
Ouve-se com frequência o refrão do “nem um, nem outro” quando se presta
mais atenção à estrutura do que ao conteúdo. Assim, num editorial consagrado aos
avós, a redatora chefe sugere aos que estão “implicados, mas não muito”
(GRIMALDI, 2002): “Tudo os leva hoje a ocupar um lugar central no tabuleiro
familiar, de modo que eles devem agir com cuidado... porque seus filhos são
ambivalentes; pede-se para que estejam lá quando eles precisarem e para sumir em
outros momentos... para não se envolverem demais... Para esses novos avós seria
preciso inventar um novo modelo: estar disponível sem estar muito presente, serem
úteis sem muita ingerência..., estarem na oferta e não na demanda. Numa palavra,
encontrar uma posição delicada de equilibrista”. Essa posição não é definida uma
vez por todas. Ela não existe, pela simples razão de que é na própria variação de
distância que uma boa relação se estabelece e se mantém. O equilíbrio não
consiste, portanto, em um ponto fixo, mas, sobretudo, numa mobilidade entre
distância e proximidade, entre autoridade e laissez-faire. Para tentar encontrar, em
cada etapa, em cada momento, esse equilíbrio instável, especialistas são
mobilizados. Artigos das revistas de educação quase sempre fazem apelo a
psicólogos, pediatras, enfermeiros-puericultores... O artigo é assinado por um
jornalista, mas no início ou no final do texto é dada uma precisão: “Com o Dr...,
ginecologista obstetra no hospital...”, por exemplo, mas um encarte é acrescentado:
“A análise do psicólogo”. Por trás das variantes aflora a legitimidade dos princípios
enunciados que não repousam sobre uma moral estabelecida uma vez por todas. O
saber é reconhecido, às vezes, de maneira enganosa. Assim, sobre o fato de saber
se dormir com seu bebê na cama é ou não perigoso, os pontos de vista divergem.
Isso aumenta o risco de uma morte súbita do recém-nascido? Um pediatra pensa
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que é “muito difícil tomar uma posição favorável ou contrária sobre um assunto como
esse”. Na verdade, ainda sabemos pouquíssima coisa sobre as causas da MSN4”.
Um professor de pediatria, mesmo observando que crianças morreram enquanto
dormiam com seus pais, afirma que, apesar de tudo, “não é legítimo proibir
completamente o ‘co-sleeping’. É preciso saber também que, quando os hábitos dos
pais são precários ou irresponsáveis”, isso se torna perigoso porque estes
geralmente têm um sono muito profundo (DAVIS, 2002).
4
INDIVIDUALIZAÇÃO E PSICOLOGIZAÇÃO
A existência do princípio normativo do “nem um, nem outro” não é arbitrária.
Ele não depende de uma moda passageira, por isso torna possível a
individualização do indivíduo contemporâneo graças ao ajuste operado em função
das condições do momento e das modalidades de negociação (DE SINGLY, 1996a).
Na verdade, para ter a sensação de existir e ser respeitado, cada um reivindica sua
participação na elaboração dos compromissos. A negociação entre pais e filhos não
corresponde à imagem que seus detratores querem oferecer: ela não significa nem a
igualdade entre as diferentes partes, nem o reino absoluto da criança que de
déspota se transforma em vítima. Cada um pode estar no seu lugar tanto de pai
quanto de filho e, apesar disso, negociar. A negociação, no quadro pedagógico, cria
as condições para que o interesse da criança não seja definido exclusivamente
pelos seus pais, para que a própria criança participe da formação de sua própria
identidade. Ao contrário da representação tradicional, a criança não é uma massa de
modelar; ela já apresenta uma certa “forma” a ser respeitada e desenvolvida. A
educação contemporânea repousa sobre um duplo postulado: a criança é uma
pessoa; ela tem uma identidade própria desde o nascimento, e essa deve ser
revelada ao longo de sua existência.
A publicidade sabe fazer uso dessas novas normas para tornar legítimos seus
produtos. Uma grande marca de alimentos, com o título “Os gostos e as cores entre
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Morte súbita do recém-nascido (N.T.).
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bebês, isso se discute” (retomando o título de um famoso programa de tevê,
difundido principalmente no canal Télérama em 25 de outubro de 2000), afirma:
“porque seu filho tem um mundo a ser descoberto em matéria de gosto, N. coloca à
sua disposição 135 anos de experiência em dietética infantil. Após os primeiros
meses quando o leite é seu único alimento, ele vai progressivamente descobrir
novos sabores, afinar suas preferências e desse modo afirmar sua personalidade”. A
criança não deve mais comer o que está no seu prato para mostrar sua obediência.
Segundo uma nova imposição social, ela deve expressar sua identidade pessoal
escolhendo o que quer comer (dentro de uma gama de produtos “adaptados a suas
necessidades nutricionais”). Isso supõe que o pai compreenda uma ou outra recusa
como expressão, não de um capricho, mas de um de seus gostos em formação. No
entanto, esse pai ou essa mãe deverá fazer a diferença entre uma expressão
legítima e uma demanda não razoável, sendo, portanto, responsável pelo que seu
filho come. Ele explicitará assim sua conduta para tornar compreensível o que
poderia parecer puramente arbitrário. Ele não pode se contentar em pôr em prática
uma escuta ativa, cara a Thomas Gordon. Esse pedagogo propõe um método,
intitulado “Pais eficazes” (2000, 2001), cujo objetivo é assegurar que a criança possa
“desenvolver sua verdadeira personalidade”, graças ao fato de se sentir “amada e
aceita tal como é”. Esse programa publicado numa coleção de bolso (“Os bestsellers da educação”) está à venda nas grandes lojas. Esse pai ou essa mãe deve
conciliar o respeito às demandas do filho com o respeito aos princípios dietéticos.
Os pais podem em certos momentos esquecer essas regras, como a de
recomendar um nutricionista, remunerado por uma cadeia de fast-foods; eles sabem
que, apesar da refeição “especial para crianças”, proposta nesse espaço, “conter
proteínas, glicídios e lipídios nas proporções recomendadas para uma criança no
quadro de uma alimentação equilibrada”, não é bem assim que as coisas
acontecem, pois as crianças preferem a bebida açucarada ao suco de laranja, ao
frango ou ao hambúrguer. Portanto, eles autorizam a transgressão ao argumentar
que: “O equilíbrio alimentar é construído ao longo de uma semana inteira e, para
compensar uma refeição no Mcdonalds, há treze outras nas quais se pode equilibrar
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sua alimentação”. “Saibamos, portanto, acomodar as coisas e evitemos racionalizar
excessivamente uma refeição que deve continuar prazerosa” (“Quanto pesa um
Mcdonalds? Um nutricionista pode responder”, informativo, maio de 2002). Essa
página
de
publicidade
permite
compreender
a
contradição
normativa
da
modernidade, a qual ultrapassa o quadro das injunções do mercado. De fato, o
expert não pode negar que existam princípios alimentares que repousam mais sobre
o comando (“Você deve comer de forma equilibrada”), mas ao mesmo tempo ele
lembra que esse princípio não é exclusivo, que ele pode ser conciliado com o
princípio da livre expressão da criança. É preciso, afirma ele, “acomodar as coisas”,
ou seja, deixar que os próprios pais encontrem a maneira de conciliar as oposições.
Quando a pressão social se torna muito forte, esses produtos ou essas marcas se
defendem afirmando que elas também estão lutando contra os perigos do excesso
de obesidade – assim como os jornais femininos que afirmam, de vez em quando,
não exibir manequins quase anoréxicos (ROUSSEAU, 2002).
O expert não dá nenhum conselho para que as refeições em casa, quando se
deve comer “filé de peixe com feijões de vara”, desenvolvam-se bem, mas esse
prato é citado explicitamente na publicidade: “Se a gente os escutasse, a gente iria
todos os dias. Mas a gente optaria mais pelo filé de peixe com os feijões de vara que
se acaba de comprar no mercado”. E o texto continua habilmente, brincando com o
“a gente”: “E se a gente colocasse as perguntas certas sobre Mcdonalds?”, ou seja,
aquelas que a marca pode responder. Ele propõe um compromisso que remete a um
caderno pedagógico do centro interprofissional de documentação e de informação
sobre produtos leiteiros, redigido por uma nutricionista: “Nenhum alimento é bom ou
ruim, tudo é questão de dose... Se nutrir bem é receber uma nutrição adaptada... Por
isso é preciso comer de tudo um pouco e um pouco de tudo”. O caderno de 2002 se
intitula “À mesa crianças!”, com o seguinte subtítulo: “Para crescer bem, compartilhar
e sobretudo se divertir”. Os pais devem saber seguir esse programa que lhes deixa
uma ampla margem de manobra, permitindo-se ouvir ao menos algumas demandas
de seus filhos. Outro pediatra (MASSIONNAUD, 2002) também sublinha essa
atenção à criança: “Por que impor porções de cálcio na forma de leite a uma criança
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que prefere queijos? Abandone essa queda de braço, esse exercício inútil do qual as
crianças sempre saem vitoriosas”.
O pai comandante está condenado, a “tropa” infantil não o segue. Ele deve,
portanto, adotar outras estratégias, mais flexíveis, como sugere uma nutricionista ao
responder à questão: “É preciso realmente proibir as doçuras?”: “Não, é claro. Basta
organizar seu consumo com moderação, mas sem frustração (ARNOLD-RICHEZ;
DU FRAYSSEIX, 2002). O princípio do equilíbrio – com, sem – é relembrado e
argumentado. Primeiramente, a aparente legitimidade do “muito” (do proibido):
“Evidentemente muitos argumentos dietéticos defendem uma proibição pura e dura
dos bombons”. Em seguida, a moderação: “Mas, evidentemente, ninguém sonharia
em abolir todas as doçuras! Se se sabe gerenciar em família esse prazer normal do
doce, do suave ou do duro de chupar ou mastigar, não há nenhuma razão para
privar seu filho de um sorvete, de um bombom”. Este último terá direito a alguns
doces com a condição de que aprenda que eles fazem parte da alimentação, que
não são “guloseimas inocentes” sem, todavia, demonizá-los. O artigo termina
deslocando a proibição para o falso açúcar e com a autorização de algumas
exceções, como nas festas, com uns “‘potinhos de bombons’ a mais”. Os pais
leitores aprendem, ou veem se confirmar, a desvalorização da disciplina estrita em
beneficio de um compromisso que autoriza a criança a afirmar aquilo que ela deseja.
Na verdade, a criança tem o direito – e o dever, pois se trata de um imperativo
normativo – de aprender a ser ela mesma expressando seus desejos e seus gostos.
Reconhecer as reivindicações infantis supõe que os pais deixem de impor
seus valores, e não se coloquem no lugar do filho. Eles devem principalmente se
perguntar se o desejo de impor um ou outro comportamento não trai, como sugere
uma psicóloga, numa rubrica dedicada à idade de cinco anos (GUILLOU 2002), o
prazer de brincar de boneca com seu filho: “A criança é de alguma forma o
prolongamento da mãe, um tipo de embaixador que deve ser bonito, sedutor,
conforme o seu desejo”. A mãe deve renunciar à “criança ideal, moldada segundo os
seus sonhos” e, portanto, à proibição. Senão ela pensa demais em si mesma,
esquecendo o essencial: “Ao invés de incitar gritos horríveis diante das experiências
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de como se vestir, melhor seria considerar que se trata de uma etapa importante de
seu desenvolvimento”. A criança quer que “saibam que ela não é mais um bebê. E
essa é uma maneira clara de se afirmar e de dizer à sua mãe: ‘Eu não sou mais tua
boneca, tu não tens todo o poder sobre mim’... Ao escolher suas próprias roupas,
seu filho assina uma verdadeira declaração de independência que participa da
construção de sua personalidade”. O pai deve, em consequência, aprender a “fechar
os olhos diante dessas fantasias de um gosto às vezes duvidoso” – e também diante
dos seus próprios desejos –, a fim de permitir a esse jovem filho “independente o
seu livre arbítrio”, um dos símbolos de sua individualização. A definição de “pais
aceitáveis” pode ser encontrada em Bettelheim (1988): “Eles não devem se esforçar
para criar o filho que gostariam de ter, mas, ao contrário, ajudá-lo a se tornar o que
ele é em potencial, a desenvolver suas potencialidades”.
5
A ALTERNÂNCIA ENTRE O COMANDO E A INTERPRETAÇÃO
Nas sociedades modernas a normatividade psicológica se impôs. Apesar de
tudo, ela não fez com que desaparecesse o outro regime de normatividade, o do
comando. Um sinal vermelho não se negocia. Por um lado, a saúde também decorre
desse registro. O tabaco não é proibido, mas em cada carteira de cigarros é
lembrado que ele se constitui numa nova forma de “pecado”, pois abre a porta ao
inferno da dependência e de outros problemas e riscos (“as 22 principais doenças
ligadas ao tabaco”). O conselho se torna imperativo: “Não fume mais contra sua
vontade” (Federação Francesa de Cardiologia), apostando, todavia, na afirmação de
um eu livre (defendido, sobretudo, pelo regime psicológico). Um dos argumentos
utilizados é o da liberação: “Do tabaco, você vai se livrar quando?” (Comitê Francês
de Educação para a Saúde), ou ainda “Livre-se do desejo de acender um cigarro,
ele te consome”, seguido de algumas ilustrações (Comitê Regional de Educação
para a Saúde e SMEREP5). Outras organizações aconselham a escapar do que
consideram como uma ditadura do mercado e da globalização. Por exemplo, um
5
Centre de Sécurité Sociale Étudiant et Mutuelle.
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caderno editado por uma organização internacional – True food guide. How to shop
G.E (genetic engineering) free, Greenpeace, 2002 – que adota explicitamente um
código em três cores: verde, laranja e vermelho. Os indivíduos são convidados a
comer verde, ou seja, alimentos cujos genes não foram manipulados. As normas
higiênicas sempre funcionam segundo esse registro e repousam sobre uma
legitimidade científica indiscutível. Podem-se tomar como testemunho as campanhas
de escovação dos dentes que utilizam o argumento científico – “Entre as crianças
‘boas escovadoras de dentes’, 71% estavam livres de cáries e de cuidados
odontológicos, entre as crianças que não escovam seus dentes, 14 % estavam
livres” –, criando o ambiente tradicional da regra: “Na escola, nossos educadores
explicarão às crianças como escovar eficazmente os dentes... e, em casa, com o
seu apoio, as crianças seguirão os conselhos de bons hábitos alimentares e vocês
controlarão a escovação dos dentes de seus filhos, sobretudo a da noite” (LE FIL
DENTAIRE, 2000).
O uso de máquinas, especialmente de computadores, faz parte da lógica do
comando. É impossível negociar na programação: ou você segue as instruções e
tudo funciona ou você não as segue e “se dá mal”. O utilizador considera isso
normal; a impessoalidade da máquina e a impessoalidade da regra são coerentes.
Isso se torna mais complexo com os seres humanos: em alguns casos, eles devem
e querem ser tratados como pessoas, em outros casos, os indivíduos desejam ser
submetidos a regras comuns, impessoais de todo modo. É nessa alternância que
reside o problema central da ligação social: para que haja harmonia social é preciso
que haja acordo entre as partes envolvidas sobre o tipo de normatividade em
questão. O problema reside, se se persegue a metáfora da circulação, na confusão
engendrada pela coexistência dessas duas sinalizações. É preciso saber em que
rodovia a gente está para saber que código respeitar. Em certos momentos, em
certas situações, é a norma psicológica que domina, em outras, é a norma do
comando que se impõe. Jovem ou adulto, o indivíduo deve aprender a conhecer
esses tempos. É por isso que os livros de puericultura para aos pais, sem explicar a
alternância, funcionam permanentemente (Hors série bébé de Femme actuelle,
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“Bonjour bébé!”, 2001; Encyclopédie pratique “Parents”. Votre enfant de 0 à 6 ans,
2002). O banheiro constitui um exemplo típico de um tempo regido pelo comando:
“Lavar o bebê todos os dias... Não tirar toda a roupa do bebê antes do banho...
Passar um paninho úmido em todas as dobras. Mantenha sempre os acessórios de
banho acessíveis, etc.” O imperativo constitui o melhor indicador da norma binária.
Para os choros, o que domina é claramente a psicologização: “Nos primeiros
tempos, o bebê chora com frequência, mas isso é normal. Nossos índices ajudarão
a decodificar seus gritos para permanecer sereno”. Ao chorar, a jovem criança “se
exprime” e “espera sua resposta”.
6
A ALTERNÂNCIA INEVITÁVEL
Tudo se torna mais complicado quando os dois níveis se misturam. Esse é o
caso da alimentação. As recomendações de como “se alimentar bem” para a mulher
grávida alternam-se com as “regras” – porcentagens sublinhadas de “proteínas para
manter o equilíbrio, lipídios para a vitalidade e glucídios para a energia”. O título é
claro: “É preciso comer duas vezes melhor e não por dois” e o comentário utiliza o
imperativo. Mas essas duas páginas dedicadas à alimentação feminina também
incluem um diálogo entre dois nutricionistas que se apoiam sobre o outro princípio. A
continuidade é marcada, no entanto, pela manutenção do uso do imperativo:
“Aprenda a diferenciar entre a fome e a vontade de comer... Uma recomendação,
escute sua fome e não ceda aos seus desejos de comer”. A escuta de si supõe que
a escuta da criança deve saber diferenciar entre o “capricho” e a “verdadeira
necessidade”, os quais não receberão a mesma resposta. O objetivo é favorecer o
surgimento do “verdadeiro eu” e não dos falsos selfs. Mas, contrariamente ao
pecado ou à infração, essas duas “demandas” somente se distinguem pela
interpretação que se faz delas.
A maneira pela qual as duas normas devem ser ponderadas continua sendo o
mistério jamais elucidado pela modernidade. Essa dualidade inevitável abre a
possibilidade do jogo que permite que todas as partes intervenham, sendo também
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geradoras de conflitos. Esse é o preço da individualização. Em cada instituição,
discordâncias surgem entre os indivíduos que reivindicam uma maior consideração
da “pessoa” e os indivíduos que, em nome da justiça, reclamam da transmissão, ou
de qualquer outra virtude, colocando ênfase sobre princípios abstratos e impessoais.
Os mal-entendidos são frequentes. Assim, algumas direções administrativas
preconizam a personalização dos funcionários públicos, exigindo que eles usem um
crachá com seu nome. Esta medida desencadeia receios de afronta pessoal. A
impessoalidade protege. Outras direções desejam levar em conta o “mérito” no
cálculo das remunerações. A priori, essa ideia não deveria suscitar resistência, pois
se trata do reconhecimento dos diferentes níveis de investimentos no trabalho. Ora,
com frequência, essa solução é mal acolhida, menos por uma razão de princípio do
que por medo da arbitrariedade do julgamento (exemplo, DURAND, 2002). O poder
não seria, na realidade, recompensado em função de outros critérios, notadamente o
da docilidade à vista da direção? A rejeição traduz uma falta de confiança no
julgamento da hierarquia. Ele trai assim um sentimento de insegurança: ainda que o
mérito seja levado em conta, ele seria uma ameaça para os indivíduos mal avaliados
e também para a coerência do grupo. Que história contar para si mesmo quando se
está do lado dos perdedores do mérito? Existem circunstâncias suficientes das quais
não se pode escapar ao julgamento pessoal. Pode-se acrescentar uma bastante
importante: os salários como um critério forte de seu valor social. É por isso que a
desigualdade engendrada por um tratamento impessoal – ou seja, sem mérito – é
preferida àquela associada à diferenciação pessoal. Isso não significa que o
princípio da personalização seja jogado para fora dos muros da empresa, mas a
diversidade torna difícil a comparação, pois isso suporia encontrar um critério de
comparabilidade. Outras formas de reconhecimento, de atenção são reivindicadas
na ocasião das cerimônias, das premiações (uma delas faz referência ao mérito),
por exemplo, quando as autoridades prestam homenagem a um ou outro; ou ainda
através da gestão dos horários de trabalho. A flexibilidade (quando controlada pelos
assalariados) é apreciada, por exemplo, com a possibilidade de não estar lá em
certos momentos para ficar com seus filhos. Os assalariados nem sempre querem
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ser submetidos a um tratamento impessoal, ainda que receiem os efeitos da
personalização, a saber, as afrontas à autoestima. Na escola se observa uma
tensão comparável. Os alunos não querem ser reduzidos à dimensão de “aluno”.
Mas eles não gostam muito dos professores que fazem observações, como
acreditam, “na cara do cliente”; eles querem uma anotação justa, impessoal
(DUBET, 1995). Na família, ainda que de maneira mais sutil, as relações fraternas
também sofrem com a contradição derivada das exigências de justiça e de
personalização: os pais têm a sensação de manter um certo equilíbrio entre uma
distribuição igual de recursos econômicos ou afetivos entre cada filho e uma atenção
associada ao reconhecimento de necessidades diferenciadas, segundo a idade, as
circunstâncias; os irmãos e as irmãs podem perceber de outro modo essa
diferenciação e interpretá-la como desigual.
7
OS RISCOS DERIVAM DA COEXISTÊNCIA DAS DUAS NORMAS
O primeiro risco da coexistência dos dois regimes de normatividade reside,
portanto, no elevado descontentamento que ela engendra. O ajuste entre as duas
normas raramente satisfaz as partes envolvidas, pois elas não têm os mesmos
interesses. Não é por acaso que os conflitos mais frequentes na família surjam na
ocasião dos passeios. Os jovens têm a impressão de que seus pais aplicam regras
muito estritas, que não confiam suficientemente neles, que não levam em conta o
que eles realmente são. Em outros momentos, eles se pautam em outro registro
reivindicando direitos concedidos aos jovens da mesma idade. Os pais têm
contradições comparáveis, que alternam o uso de regras impessoais (do tipo:
“Nessa idade não se tem o direito”) com considerações pessoais (em relação às
despesas, quando seu filho tem essa necessidade). O desacordo não vem de uma
divisão do trabalho entre os pais-especialistas em uma norma e os jovensespecialistas em outra; ele é engendrado pelos usos diferenciados dos dois regimes,
ao mesmo tempo, na mesma situação.
O segundo risco dessa justaposição está na ausência de distinção entre os
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dois regimes. Como certas coisas na vida são negociáveis, tudo se tornaria
negociável. Tomemos um exemplo extraído da minha experiência de professor –
trata-se, portanto, de uma das versões da realidade. Ensino a metodologia da
pesquisa por questionário. Um saber é exigido: o da leitura de tabelas estatísticas
cruzando diversas variáveis. A competência matemática requerida não é muito
grande, basta saber distinguir uma diferença entre duas porcentagens (45% é
superior a 30%). Em contrapartida, um certo número de regras precisas deve ser
posto em prática: as percentagens são calculadas em função da variável
independente; a leitura das diferenças se faz considerando modalidade por
modalidade da variável dependente. Nada disso é difícil, mas essa leitura se
confronta com a socialização ordinária que tende a ler de outro modo a tabela. A
cada ano, um certo número de estudantes se recusa a ler segundo os princípios
solicitados; eles seguem algumas das regras, mas não as outras. Tudo se passa
como se nessa invenção de novas maneiras de ler uma tabela, eles reivindicassem
o direito de serem eles mesmos; tudo se passa como se, seguindo as regras estritas
de leitura de uma tabela, eles tivessem a impressão de serem reprimidos e
reduzidos a um papel mecânico, querendo criar mais do que obedecer. Liberdade e
inventividade são confundidas. Eles também podem pedir, por uma ou outra razão,
para entregar seus trabalhos de final de semestre com um pouco de atraso em
relação à data fixada. Isso não me incomoda se dou o meu acordo. Como fazer com
que compreendam que nem todas as situações são equivalentes, que alguns
funcionam conforme a regra (a leitura de porcentagens é comparável às normas de
higiene) e que outros funcionam pela personalização?
A resposta não é uma palavra de ordem simples: restabelecer a autoridade
argumentando inúmeras regras. Ela está na aprendizagem da diferenciação entre as
duas normas de um lado, e na explicitação das fronteiras que separam as situações
no interior das quais essas duas normas se aplicam de outro. No interior das
famílias, essas duas modalidades de socialização da normatividade são aplicadas,
ainda que não sejam assim justificadas. Em certas famílias (na França), as bebidas
açucaradas e gaseificadas não são autorizadas durante as refeições, ao passo que
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elas o são em outros momentos. Evidentemente, os produtores desses produtos
adorariam mudar essa atitude. Eles encontraram mais resistência do que poderiam
imaginar, sem compreender o que lhes parecia uma incoerência. Como uma bebida
poderia ser boa e má ao mesmo tempo? Encontra-se entre os pais o que um expert
nomeia como “a parte das coisas”: a proibição pura e simples não é concebível dada
à pressão social que assemelha essa bebida à juventude. Ela é tolerada, mas com
limites. Não é certo que esses limites sejam os mais racionais do ponto de vista da
saúde, mas eles têm um outro sentido: o de aprender que comandos existem (“Tu
não beberás CC durante a refeição”). A mensagem não se restringe a essa
proibição, ela também significa: “Tu deves obedecer porque é assim, porque eu sou
teu pai”. Esse tipo de socialização decorre de uma lógica similar à da disciplina
tradicional, a da existência de uma autoridade superior. As regras imperativas
devem ser aprendidas e, portanto, impostas na medida em que o mundo social,
mesmo o moderno, funciona conforme esses tipos de normas. Como estas últimas
são, parece-nos, cada vez mais levadas em conta pelas máquinas, é útil que a
criança possa ser confrontada desde muito cedo com esses materiais para que
encontre uma resistência e experimente a ausência de negociação possível. Há
muito tempo, os psicólogos têm insistido em jogos que repousam sobre regras. O
número de pontos atribuídos a cada carta não varia segundo os momentos ou
segundo a personalidade dos jogadores. “Isso é assim”. Compreende-se então
porque oferecer ao seu filho.
Se a instituição escolar está em crise é porque sua principal função, a da
difusão do saber, sempre decorre, em grande parte, da normatividade “imperativa”,
ao passo que o ambiente em geral valoriza a normatividade “psicológica”. É mais
difícil ensinar nesse contexto, não somente porque os jovens têm na cabeça outras
maneiras de fazer as coisas, especialmente em casa, mas também porque o próprio
mundo funciona segundo esse duplo registro. Nesta perspectiva, a escola socializa,
sobretudo, a parte da norma imperativa. Tempo – sem dúvida na III República – em
que a norma moral (laica ou religiosa) era dominante, a transmissão do saber era
compatível com ela. Hoje, existe uma certa incoerência, pois a norma psicológica
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não funciona de acordo com o mesmo registro da norma imperativa.
8
DUAS SOLUÇÕES ILUSÓRIAS
Existem duas tentações para resolver a contradição, negando-a. A primeira
consiste em reduzir o mundo da instituição a uma única dimensão: o aluno será
apenas aluno e, em consequência, na escola somente poderá funcionar a norma
imperativa (o doente será apenas doente). A análise de François Dubet sobre o
“declínio da instituição” mostra a falsa esperança desta solução (2002). A segunda
consiste em enfatizar na normatividade psicológica as dimensões que, desde os
anos 1980, decorrem do imperativo. Para sublinhar essa autoridade incontestável,
acrescentam-se maiúsculas (PROKHORIS, 1999), invocando a Lei do Pai – um dos
inspiradores desta tendência maiuscular é Legendre. A obsessão pela proibição do
incesto tem o mesmo significado. Tudo é feito para demonstrar que a criança deve
dispor de certas referências. Esse apelo é, sem dúvida, necessário na medida em
que o equilíbrio é difícil de ser descrito em livros pedagógicos e que o excesso, a
liberdade em “demasia”, caracterizou os anos 1970. Neill, por meio, sobretudo, do
livro Libres enfants de Summerhill, quis lutar contra os excessos de sua própria tese,
precisando: “A liberdade, não a anarquia” (1970). Reinvertendo a tendência, o
excesso de autoridade também pode ser nefasto. Basta ler os escritos sobre o pai,
dessa tendência, para descobrir os impasses. Uma vez que o pai cumpriu sua
função de separador entre a mãe e a criança, o que lhe resta a fazer? Como ele
deve se comportar na vida cotidiana com seu filho ou filha? A Lei não é suficiente
para definir o pai; este último também deve estar atento, disponível, próximo de seus
filhos. A outra normatividade não pode ser ignorada e o texto do Livreto de
paternidade faz referência às duas dimensões do pai.
Sobre a correção da lei da autoridade parental, em 2001-2002, alguns
esperavam retornar à ordem hierárquica de tal maneira que a normatividade
imperativa impusesse seu primado. É por essa razão que o artigo 371 – “o filho,
independente da idade, deve honrar e respeitar seus pai e mãe” –, de acordo com
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Françoise Dekeuwer-Défossés (1999), assumiu um dos comandos do Decálogo,
datado de 1804, sem nenhuma alteração. Apesar de tudo, a outra lógica está
presente, como se pode ver em dois itens do artigo 371.1: “A autoridade parental é
um conjunto de direitos e de deveres, tendo por fundamento e finalidade o interesse
da criança. Ela pertence ao pai e à mãe até a maioridade (ou a emancipação) da
criança para protegê-la em sua segurança, sua saúde e sua moralidade, para
assegurar sua educação e permitir seu desenvolvimento, respeitando sua pessoa”
(Relatório de 8 de novembro de 2001). Primeiramente, se observa que a autoridade
é limitada pela sua função – permitir o desenvolvimento da criança – enquanto, na
tradição, ela é um fato em si, a idade da “criança” importando muito pouco, pois a
autoridade é, sobretudo, o sinal de superioridade da geração dos pais sobre a
seguinte. Em segundo lugar, o respeito pela criança, recusado na formulação geral,
é introduzido explicitamente. Ele não tem o mesmo estatuto; a modificação da lei
não traduz apenas uma transformação da relação de autoridade, ela também é sinal
de outra mudança.
Seja qual for a vontade de seus apoiadores, a normatividade imperativa é
forçada a compor com o segundo tipo de norma, sem que ninguém saiba propor a
maneira de alcançar a hibridação. Na verdade, os dois componentes têm lógicas
próprias e não se misturam tão facilmente. A palavra de um pai (executivo, investido
em seu papel) mostra isso quando ele responde à questão sobre as qualidades de
um bom pai:
Então, eu acredito que é a escuta, a disponibilidade, estar disponível para
seu filho o máximo possível quando ele precisa. Dois, escutar seu filho...
Quando a gente explica alguma coisa é importante explicar os efeitos, não
explicar, não mostrar autoridade quando a criança não compreende... Eu
também creio tentar..., eu percebo as relações com meu filho como uma
relação de amigos. Mais do que ser pai para o meu filho, eu gostaria que...
claro que sempre há uma diferença de idade... mas eu gostaria que meu
filho, à medida em que cresce, mais me visse como melhor amigo, como
seu irmão. É mais esta noção do que a da autoridade parental. Eu vejo
assim.
Para esse pai, a verticalidade da relação – do lado do comando – parece
contraditória, contrariamente a uma relação mais horizontal através da educação
que ele quer oferecer. Esse homem quer trocar com seu filho, argumentando
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racionalmente e evitando o argumento de autoridade do “é assim e pronto”. Ele se
distingue de outro pai (também executivo) que deixa para sua esposa os cuidados
cotidianos, sem renunciar ao que ele pensa ser seu papel:
As coisas materiais relacionadas às crianças, eu, eu não sei e isso não me
interessa muito, como lavar a roupa, etc. Mas tem uma coisa. Eu penso que
o momento em que se tem que gritar e quando isso precisa realmente, em
que tem que ter autoridade,... No momento em que se deve gritar, é o pai
que deve fazer isso. Em todo caso, é assim que eu concebo e é assim que
a gente faz.
Por meio de suas declarações, esses dois homens ilustram, sem dúvida, os
desequilíbrios que ameaçam o exercício da paternidade: o primeiro, psicológico
demais e não suficientemente autoritário; o segundo, não suficientemente
psicológico e muito autoritário. Esses excessos não são equivalentes: o primeiro pai
participa claramente mais do que o segundo na educação cotidiana do filho. Um dos
critérios para identificar os dois tipos de pais foi o número de vezes que cada um ia
buscar seu filho na escola primária, o que corresponde mais à demanda social de
investimento da parte dos pais (FONTAINE, 2001).
Pode-se pensar que os excessos do primeiro pai se moderarão à medida que
seu filho cresce. De fato, na maioria das vezes a introdução de proibições diretivas e
de comando se faz em vista da preocupação com o sucesso escolar. O diploma
sendo a forma de capital familiar que oferecerá à geração seguinte as chances de
obter certo valor social. Essa dimensão familiar torna legítimo – até certa idade – o
fato de que os pais consideram ser seu dever encorajar o filho a trabalhar na escola.
Como testemunha Gabriel, doze anos, que reprova no sexto ano e tem dificuldades.
Seus
pais,
executivos,
lembram
constantemente
a
necessidade
de
seu
engajamento, como conta esse jovem adolescente:
De manhã, eles sempre me dizem: “trabalhe bem”; eles me perguntam:
“Você trabalhou bem? É preciso que continue assim”. Para eles, eu sempre
tenho alguma coisa pra fazer. Sempre é preciso que eu tenha deveres para
revisar. “Trabalhe bem, é preciso continuar assim”. Eles me repetem: “Você
precisa passar de ano para continuar os estudos, para ir mais longe, para
ter um bom trabalho, para que todo mundo veja que você é capaz de ser
bem-sucedido em alguma coisa”.
Seus pais não dão muitos castigos. Em compensação, eles lembram o tempo
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todo que o trabalho deve vir em primeiro lugar: “Eles me dizem: ‘Faça teus deveres’;
eles me dizem em seguida: ‘Faça teus deveres e tuas lições e depois você pode
assistir TV, se divertir, assim você ficará tranquilo’”. Gabriel acredita que seu pai está
certo ao dizer que tudo isso é para o seu próprio bem: “Ele tem razão, é para o meu
bem que eu trabalho, não para o deles. É só por mim. Eu é que terei um trabalho
mais tarde e não outra pessoa”. Ele julga que sua mãe exagera ao claramente
hierarquizar o trabalho frente a todas as outras atividades:
Minha mãe coloca muitas condições, o tempo todo... Ela sempre encontra
um meio de acrescentar, a cada vez, alguma coisa. Se eu peço uma
coisinha, como ouvir a rádio, ela me pergunta: “Você já fez teus deveres?”.
E ela coloca uma condição... Eu acho um pouco irritante, mas ainda assim,
isso me ajuda, as condições de mamãe. Eu acho isso irritante, mas é
sobretudo bom. Porque, sem essas condições, eu não creio que teria feito
os meus deveres”.
Sua mãe deseja que seu filho não desista apesar de todas as dificuldades.
Levando em conta seus recursos e sua história, o filho deve ter sucesso. E esse é
um imperativo.
Com muita frequência essa mobilização em torno da escola é esquecida nas
análises que lamentam o fato de que a educação somente leve em conta o presente,
e isso desde o final dos anos 1960, quando é a partir desse momento que a
instituição escolar se torna produtora generalizada de capital escolar e que a
concorrência entre as famílias aumenta (ROUSSEL, 2001). Ora, o equilíbrio entre as
duas normas é encontrado, por tentativa e erro, durante a juventude, em razão de
uma certa divisão: o jovem tem direito ao seu mundo pessoal – sua música, seus
amigos, seus jogos... – que pertence ao tempo presente, por meio da negociação
dos contornos com seus pais, desde que respeite, ao menos em parte, as regras do
jogo do investimento escolar que se justifica no tempo futuro. Isso pode parecer
paradoxal uma vez que é como aluno que o jovem pertence a maior parte do tempo
à sua família – confirmando a grande intuição de Ariès (1960) que estima que a
escola tenha engendrado a família moderna –, enquanto sua identidade pessoal é
construída progressivamente por meio de um descolamento de seus pais. Os pais
jogam, portanto, um duplo jogo com seus filhos, que corresponde perfeitamente à
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dualidade das normas: eles negociam o que é negociável, o mundo “pessoal” do
jovem; eles impõem o que não é negociável, notadamente o valor escolar – e social.
9
A CRISE É MAIS SOCIAL DO QUE EDUCACIONAL
Os detratores da modernidade colocam ênfase unicamente sobre a parte
autorizada, querendo fazer crer que tudo é permitido. Eles se enganam, ainda que
algumas famílias estendam muito essa zona, seja porque os pais não dominam
muito bem essa dualidade, pensando erroneamente que não é mais possível impor,
seja porque a disfunção da sociedade provoca uma perda de confiança no valor do
diploma. Na verdade, esse sistema repousa sobre o fato de que os investimentos
escolares devem ser recompensados, o que, portanto, justifica os sacrifícios do
tempo presente em nome do “futuro”. Em si, tal senso de sacrifício é possível, podese vê-lo nos alunos das classes preparatórias que sabem que seus estudos serão
pontuados por um trabalho correspondente. Mas por que investir no futuro – e
respeitar a instituição encarregada de prepará-lo – se o futuro é tão incerto,
perguntam-se outros? A falta de reflexão que acompanhou a palavra de ordem dos
“80% de bacharéis” engendrou uma desmoralização que produziu, por causa dessa
descrença no futuro, um desequilíbrio na formação normativa dos tempos atuais.
A desvalorização da norma imperativa tem duas origens. A primeira é o
inverso do movimento positivo de escalada da norma relacional. A segunda trai a
descrença nas justificativas do setor em que a norma imperativa – saber e sucesso –
permanece sendo a mais importante. Não se deve, portanto, enganar-se nas
soluções. O remédio não está na desvalorização da norma relacional, evocando-a
como aquela que engendra todos os males e ameaça a civilização. Isso seria ignorar
que globalmente o conjunto de domínios da sociedade foi afetado pela negociação,
pelo contrato, pela levada em conta dos usuários etc. Assim, para a produção da lei
em menos de duas décadas, as “injunções e regulamentos emanados de centros
políticos e administrativos poderosos, dotados de um direito de essência unilateral,
foram substituídos pela negociação e pelas relações cara a cara, assim como, em
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consequência, pelo uso de procedimentos contratuais” (LAFORE, 2003, p. 104).
Poder-se-ia imaginar que, nos anos 1950, um livro com o título Não obedeça mais!
pudesse ser publicado e recebido o grande prêmio do “livro político”, enquanto seus
autores (ALBERT; NGUYEN NHON, 2001) afirmavam que a obediência é “inibitória”
no interior da empresa, os colaboradores estando mais preocupados em respeitar a
hierarquia do que desenvolver sua eficácia? Em relação à instituição escolar, até
mesmo os que se recusam a pôr o aluno no centro, aceitam uma certa
individualização dos percursos, uma maior participação dos jovens na elaboração de
seus estudos. No entanto, o domínio da norma individualizada não significa nem o
desaparecimento, nem a inutilidade da norma imperativa. Tempos e práticas da vida
social decorrem e sempre decorrerão do imperativo. Em sociedades cada vez mais
incertas (GIDDENS, 1994; CALLON; LASCOUMES; BARTHE, 2001), em parte
devido ao próprio aumento da individualização em todas as suas formas, a lei cria
um quadro protetor que garante uma certa segurança e estabilidade. É por essa
razão que a existência de sanções severas para algumas práticas sexuais em
relação às crianças não pode ser tomada, como faz Iacub (2002), como uma
fraqueza da libertação sexual. Por que a liberdade sexual não poderia ser exercida
no quadro de uma lei que fixa limites, como a do consentimento e do consentimento
esclarecido? É preciso, portanto, alterando o título de um artigo de Alain Supiot
(2003), recusar um falso dilema: a norma moral ou a norma psicológica, o imperativo
ou a individualização. É preciso aprender a manter as duas pontas da regulação das
condutas e das relações.
Um dos meios privilegiados para que o equilíbrio entre essas duas normas
exista consiste em restabelecer a crença na norma imperativa, sancionando
severamente as transgressões aos regulamentos – o fato de lutar contra os
“bárbaros” da estrada tem o mesmo sentido, pois mostra que um código só é
pertinente se for socialmente respeitado – e também, sobretudo, criando as
condições para que o rendimento de um diploma mantenha o sentido dos
investimentos realizados para a obtenção desse título escolar (BEAUD, 2002). A
ideologia do “mérito”, concebida na forma do rendimento entre o trabalho pessoal e
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seu reconhecimento, não é incompatível com a lógica da personalização. Durkheim
havia enunciado isso em seu último curso sobre a família (1892): uma maior atenção
às relações e uma menor atenção à herança econômica vão de par com a
justificação pessoal do valor: o lugar ocupado deve remeter menos ao lugar na
filiação (como “filho de” ou “filha de”) e mais ao trabalho do próprio indivíduo, aos
seus próprios investimentos. A igualdade de oportunidades – que oferece as
condições para que cada um possa ser recompensado em função do seu valor
pessoal e do seu trabalho – é um valor que deve ser reafirmado. Ele não deve ser
mascarado pela psicologização da sociedade. Somente ele pode fazer a junção
entre a norma psicológica e a norma imperativa por meio da mediação do
reconhecimento do trabalho e dos investimentos pessoais. A luta contra as heranças
não é uma palavra de ordem ultrapassada, ao contrário dos que valorizam, com
ambiguidade, a transmissão. Ela torna compatível o duplo reconhecimento pessoal
como “pessoa” e como “valor”; ela restaura uma coerência identitária ao indivíduo
individualizado, ao mesmo tempo em que torna legível um valor coletivo, a igualdade
de oportunidades que, por outro lado, deve ser corrigida pelo valor da solidariedade.
FRANÇOIS DE SINGLY
Sociólogo francês especializado no domínio da Sociologia da Família, da Infância e
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