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NECROPOLÍTICA NAS MORTES CONTEMPORÂNEAS

2019, NTERthesis

R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.16, n.1, p.145-149 Jan-Abr 2019 ISSN 1807-1384 DOI: https://doi.org/10.5007/1807-1384.2019v16n1p143 Resenha recebida em: 18.12.2018 Aceita em: 21.12.2018 RESENHA – REVIEW – RESEÑA NECROPOLÍTICA NAS MORTES CONTEMPORÂNEAS NECROPOLITICS IN CONTEMPORARY DEATHS NECROPOLÍTICA EN LAS MUERTES CONTEMPORÁNEAS MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Trad: Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2018, 71 p. Afastado de um princípio de reflexão eurocêntrico, o filósofo camaronês Achille Mbembe, em “Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte” (2018), propõe pensar a morte como estratégia e efeito do poder. Leitor de Michel Foucault, o autor questiona se a noção de biopoder seria suficiente para dar conta das formas contemporâneas de violência e, considerando-a insuficiente, sugere os conceitos de necropoder e necropolítica para pensar as novas formas de submissão da vida ao poder da morte. Ao longo de 71 páginas 1, Mbembe interpreta o mundo a partir da provincialização da Europa, analisando episódios de colonização tardia e guerra, especialmente em países africanos e na região da faixa de Gaza. A fim de discutir as condições práticas para se exercer o poder de matar, nas duas primeiras seções de seu livro, o autor explora e ressignifica a noção de soberania. Mbembe critica o que chama de teorias normativas da democracia, que tomam a soberania como sinônimo de normas produzidas para um povo, visando sua “autoinstituição” ou, dito de outro modo, um acordo coletivo que, dentro de um território, visa à autonomia de um povo. Para ele, o projeto central da soberania é a O texto original foi publicado em inglês em 2003, com o título “Necropolitics”. No Brasil, saiu pela primeira vez em 2016 pela revista Arte & Ensaios, do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRJ. Em 2018, ganhou sua versão em livro através da n-1 edições. 1 Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons 144 “instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações” (MBEMBE, 2018, p. 10-11). Percebe-se, então, que o filósofo trata a soberania como o direito de matar o outro. Para sustentar sua argumentação, recorre ao conceito de biopoder e o relaciona com outros dois: estado de exceção e estado de sítio. Nos termos foucaultianos, biopoder se refere a um modelo de poder que para gerir a vida em sociedade, tornando-a protegida, permite a morte de um outro que não pertence àquela sociedade (FOUCAULT, 2010 [1999]). Nesse sentido, opera uma espécie de divisão entre vida e morte nos termos biológicos. O nazismo, para Foucault, materializou o funcionamento do biopoder, uma vez que permitiu o extermínio de judeus e outros grupos humanos em prol da superioridade da população alemã, que precisava ser “purificada”. Diante disso, o racismo é o que autoriza, segundo o filósofo francês, o direito soberano de matar na contemporaneidade. Mbembe concorda com Foucault ao compreender que os mecanismos de biopoder estão inscritos em todos os Estados modernos, porém vai além: para ele, a possibilidade de matar o outro é vista como elemento constitutivo do poder do Estado na modernidade. Sob o argumento de estado de exceção, isto é, um estado de emergência para solucionar um problema, instala-se um estado de sítio e se suspendem direitos e garantias dos cidadãos, permitindo que mortes sejam executadas sem que adquiram o efeito de crime condenável, o que resulta em um terror coletivo. Em uma perspectiva histórica, o autor afirma que a ligação entre a modernidade e o terror que o nazismo concretiza provém de várias fontes. Cita, entre elas, a escravidão, por ele considerada como uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica. Nesse modelo, na maioria das vezes, o escravo não é morto no sentido biológico, mas é mantido vivo em um “estado de injúria”, tornando-se uma vida mediada por processos de crueldade e profanidade, que obedecem a um fim econômico. Outros exemplos apresentados se referem às colônias e ao regime do apartheid, onde biopoder, estado de exceção e estado de sítio se intercalam e formam zonas de guerra e desordem. De acordo com Mbembe (2018, p. 35), “as colônias são o local por excelência em que os controles e as garantias de ordem judicial podem ser suspensos – a zona em que a violência do estado de exceção supostamente opera a serviço da civilização”. 145 Mesmo que não faça clara referência, percebemos como as reflexões do filósofo se aproximam de outros autores que procuraram pensar como certas vidas são precarizadas e possuem valor menor, vidas simplesmente matáveis ou que podem ser deixadas para morrer. Giorgio Agamben, por exemplo, em Homo sacer (1995), entende o modelo biopolítico de poder como contribuição original do poder soberano de matar. Nesse sentido, atualiza o conceito romano arcaico de homo sacer para se referir a uma vida indigna de ser vivida que, desassistida pelo Estado na atualidade, tampouco adquire valor de vida. Diante disso, essa vida poderia ser morta sem que isso se configurasse como um assassinato. Judith Butler, em Quadros de Guerra (2006), analisa as guerras contemporâneas e propõe que há vidas que sequer são qualificadas como vidas. Dentre as funções do poder, a autora elenca o trabalho de enquadrar certas biografias em molduras que tornam suas ausências sequer passíveis de luto. Feitas tais aproximações, que demonstram que os posicionamentos de Mbembe se sustentam também sob o prisma de outras autoras e autores, é a partir da metade do livro que o filósofo vai esgotar a noção de biopoder a partir da análise de casos concretos. Se no século 20, conforme Foucault, a morte se torna o limite do poder apenas para garantir a vida de certas sociedades, o filósofo camaronês caminha por outros trilhos demonstrando que matar também se define como função coextensiva do Estado. Daí, então, a necessidade de pensar certas mortes em termos de necropoder, isto é, uma formação específica de terror e medo. A ocupação colonial contemporânea da Palestina é vista por Mbembe como a forma mais bem-sucedida de necropoder. Isso ocorre porque, segundo o autor, violência e soberania reivindicam um fundamento divino: “a qualidade do povo é forjada pela adoração de uma divindade mítica, e a identidade nacional é imaginada como identidade contra o Outro, contra outras divindades” (MBEMBE, 2018, p. 42). Assim sendo, a dinâmica, diferentemente dos modelos antigos de colonização, não mantém relação exclusiva com a preservação do território, mas com uma identidade religiosa. Mais do que isso, ocorre uma fragmentação territorial, cujo objetivo é a segregação, ultrapassando o caráter disciplinar e alcançando o patamar de exclusão da população. A ocupação israelense, fragmentada via assentamentos na faixa de Gaza, de acordo com Mbembe, produz espaços de violência, além de utilizar como “armamento” a ocupação espacial (conflitos aéreos se juntam aos terrestres), bem 146 como técnicas de inabilitação do inimigo, ao destruir casas e cidades. A guerra, portanto, agora se torna infraestrutural e populações inteiras viram alvo do soberano. Outro caso examinado pelo autor são as guerras contemporâneas. Seus objetivos se distanciam da conquista e gerência de um determinado território, uma vez se tratarem de ataques-relâmpago. Como diferencial, o filósofo enxerga nelas um caráter econômico, que não mais se fundamenta no monopólio dos Estados. Tomando como exemplo a Guerra do Golfo e a de Kosovo, percebe como a mão de obra militar passou a ser comprada e vendida; estados vizinhos e/ou movimentos rebeldes oferecem recursos aos países em disputa, acarretando no que chama de “máquinas de guerra”, isto é, a formação de organizações políticas e comerciais. Apesar das maneiras de matar não variarem muito, a utilização de altas tecnologias faz com que populações sejam decompostas em categorias como rebeldes, crianças-soldados, vítimas ou refugiados. Para o autor: Se o poder ainda depende de um controle estreito sobre os corpos (ou de sua concentração em campos), as novas tecnologias de destruição estão menos preocupadas com a inscrição de corpos em aparelhos disciplinares de que em inscrevê-los, no momento oportuno, na ordem da economia máxima, agora representada pelo “massacre”. Por sua vez, a generalização da insegurança aprofundou a distinção social entre aqueles que têm armas e os que não têm (“lei de distribuição de armas”) (MBEMBE, 2018, p. 59). Por fim, Mbembe retorna à Palestina e identifica como nesses casos duas lógicas distintas se confrontam. Primeiramente uma lógica de sobrevivência: nos casos de violência contemporânea, sobrevivente não é apenas aquele que escapa da morte, mas aquele que, após lutar contra os inimigos, não só manteve sua vida como matou seus agressores. Para ele, a morte do outro é o grau mais baixo da sobrevivência. Em termos práticos, a presença física do cadáver inimigo é o que faz o sobrevivente se sentir vitorioso e único. Não basta, portanto, escapar; é preciso também aniquilar. Em paralelo, os confrontos na Palestina também escancaram uma lógica do mártir, personificada pela figura do homem-bomba. Personagem categórico nos episódios de violência recentes, o homem-bomba não veste uniforme de soldado e não expõe arma alguma; pelo contrário, a arma faz parte do seu próprio corpo. Segundo Mbembe, suicídio e homicídio agora andam de mãos dadas e são realizações de um mesmo ato. Mas não somente a forma de matar e morrer se tornam singulares, mas os locais de terror também são atualizados: ponto de ônibus, 147 cafeteria, discoteca, enfim, espaços da vida cotidiana são transformados em emboscada. Como conclusão, o filósofo evidencia como as guerras contemporâneas reconfiguram as relações entre resistência, sacrifício e terror. Marcadas sempre pelo excesso, não poderiam ser explicadas apenas pelo biopoder, uma vez que não estão exclusivamente a serviço da preservação da vida. Quando Mbembe afirma que somente uma necropolítica, ou seja, uma política da morte é capaz de explicar tais fenômenos, é porque reconhece como o conceito de necropoder embaralha fronteiras historicamente estabilizadas, sejam elas territoriais e corporais. As análises do filósofo, portanto, oferecem um olhar de quem, nacionalmente inscrito nesses processos, percebe como o poder de matar agora atinge outro patamar, muito mais complexo, que não somente mata sujeitos como cria “mundos de morte”. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010 [1995]. BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016 [2009]. FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Còllege de France (19751976). 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010 [1999]. MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Trad: Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2018. Por: Luiz Barp, doutorando do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, SC, Brasil. Email: [email protected] Myriam Mitjavila, doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professora do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas e do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, SC, Brasil. E-mail: [email protected]