traduções
Jeanne Favret-Saada, os afetos, a etnografia
MARCIO GOLDMAN
Professor Adjunto do PPGAS/MN/UFRJ; pesquisador do CNPq e bolsista da FAPERJ; autor
de Razão e Diferença. Afetividade, Racionalidade e
Relativismo no Pensamento de Lévy-Bruhl (1994),
Alguma Antropologia (1999) e Como Funciona a
Democracia. Uma Teoria Etnográfica da Política
(no prelo), além de co-organizador de Antropologia, Voto e Representação Política (1996). Realiza
trabalho de campo sobre política, etnicidade e
religiões afro-brasileiras em Ilhéus, sul da Bahia.
Se o escritor é um feiticeiro é porque escrever é
um devir, escrever é atravessado por estranhos
devires que não são devires-escritor, mas devires-rato, devires-inseto, devires-lobo etc.
Gilles Deleuze e Félix Guattari
Jeanne Favret-Saada faz parte desse grupo
de autores conhecidos por terem escrito um
livro. Neste caso, ainda que isso fosse inteiramente verdadeiro, não se poderia dizer que
trata-se de pouca coisa. Les Mots, la Mort, les
Sorts é uma maravilha etnográfica e, ao mesmo
tempo, uma das raras obras-primas da história
do pensamento antropológico. Elaborado e escrito em uma época (não tão distante assim)
em que a imagem do pensamento dominante
na academia ainda não era construída com os
parâmetros empresariais capitalistas da rentabilidade e da produtividade, o livro levou quase
dez anos para ficar pronto. Período que envolveu uma longa e intensa pesquisa de campo,
conduzida entre 1968 e 1971, sua redação e
sua publicação, que só ocorreu em 1977.
Esse tempo – que hoje, certamente, seria
considerado apenas uma demora – faz, entrecadernos de campo n. 13: 149-153, 2005
tanto, parte intrínseca e constitutiva do trabalho. De fato, Favret-Saada não se cansou de
relatar, em diversas ocasiões, como os primeiros
meses no campo (quase um ano, na verdade)
foram, aparentemente, estéreis. Apenas a autora parecia se interessar por seu tema, a feitiçaria; seus interlocutores reagiam, antes, evitando
o assunto, negando ou denegando sua própria
existência, imputando-o a pessoas tidas como
ignorantes ou remetendo-o a um passado já superado há muito tempo.
Se a pesquisa tivesse, então, durado “apenas”
um ano (quantos de nós dispomos mesmo desse prazo atualmente?), Favret-Saada não teria
muito a dizer além do que pode ser obtido pelo
limitado procedimento de investigação que
Malinowski já condenava sob o nome de método de pergunta e resposta. Ou do que se pode
extrair da consulta de documentos e arquivos –
onde, como lembra Favret-Saada (1981b: 336),
“o ‘povo’ é falado mais do que fala, aparecendo
como o objeto do discurso administrativo, não
como o sujeito de um discurso autônomo” –
produzidos por aqueles mesmos que desprezam
e desejam condenar ao silêncio práticas como a
feitiçaria. De psiquiatras, jornalistas e dos que
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se consideram parte das elites, não se pode esperar muita coisa quando o tema em questão
parece desafiar suas certezas e até mesmo sua
dominação.
O passar do tempo, entretanto, não é apenas o passar do tempo. Esse falso truísmo conduziria apenas às banalidades que repetem que,
“com o tempo”, os nativos se acostumam com
a presença dos etnógrafos e passam a se comportar mais normalmente e até mesmo a relatar
a eles seus segredos mais íntimos.
Em lugar de supor que o tempo apenas
fornece um meio externo para as relações humanas, é preciso compreender que ele é, ao
contrário e em si mesmo, uma relação. Pois é
apenas com o tempo, e com um tempo não
mensurável pelos parâmetros quantitativos
mais usuais, que os etnógrafos podem ser afetados pelas complexas situações com que se deparam – o que envolve também, é claro, a própria
percepção desses afetos ou desse processo de ser
afetado por aqueles com quem os etnógrafos se
relacionam. Foi apenas quando alguém diagnosticou que a etnógrafa fora “pega” (prise) pela
feitiçaria que passou a fazer algum sentido falar
com ela sobre o assunto.
Não se trata, contudo, de imaginar nenhum
crédulo local que, para a felicidade de uma pesquisadora que permaneceria distante e incólume em sua objetividade de cientista, tivesse
decidido “acreditar” que ela também fora enfeitiçada. Na verdade, Favret-Saada tinha seus
sintomas, de repetidos acidentes de automóvel
a um certo tremor das mãos e um brilho diferente no olhar. Sintomas que permitiam levantar a hipótese do enfeitiçamento. Por outro
lado, indagar se ela também “acreditava” na feitiçaria é igualmente um exercício cheio de inutilidade, uma vez que não se trata, justamente,
de crença, mas – como o leitor aprenderá no
texto da autora aqui traduzido em ótima hora
– de afeto. Não de afeto no sentido da emoção
que escapa da razão, mas de afeto no sentido
do resultado de um processo de afetar, aquém
ou além da representação.
Não há nenhuma necessidade de supor,
tampouco, que os afetos de Favret-Saada no
mundo em que passara a viver (e que, por
um tempo, filtrava também o mundo com o
qual ela estava mais habituada e que costumamos chamar de “nosso”) fossem idênticos aos
sentidos por aqueles que viviam mais longa e
cotidianamente, não a crença, mas a experiência da feitiçaria. Basta que os etnógrafos se
deixem afetar pelas mesmas forças que afetam
os demais para que um certo tipo de relação
possa se estabelecer, relação que envolve uma
comunicação muito mais complexa que a simples troca verbal a que alguns imaginam poder
reduzir a prática etnográfica. Trata-se em suma,
como escreve a autora (Favret-Saada 1990a:
7-9), de conceder “estatuto epistemológico a
essas situações de comunicação involuntária e
não intencional”, evitando a “desqualificação
da palavra indígena” em benefício da “promoção da do etnógrafo”, assim como a armadilha
suprema de imaginar que fazer etnografia significa “explorar as trevas com uma filosofia das
Luzes” (Favret-Saada 1981b: 344).
Em função de tudo isso, Les Mots, la Mort,
les Sorts não pode ser enquadrado em nenhum
dos dois estilos etnográficos contemporâneos
mais usuais. Não se trata de apresentar as pessoas e suas ações (inclusive o que elas dizem e,
às vezes, até mesmo o que elas supostamente
pensam) como um antigo naturalista descrevia,
sobre um mesmo plano, fauna, flora e geografia.
Mas não se trata, tampouco – após condenar
essa primeira modalidade de descrição como
empirista, ingênua ou autoritária, na medida
em que se arroga o direito de representar o outro –, de voltar-se para dentro, opondo uma
suposta transparência do sujeito para si mesmo
à opacidade do mundo dos outros. Ao transitar do cientificismo para algo como um certo
tipo de autobiografia, o gênero etnográfico não
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parece ter avançado muito: “que um etnógrafo
aceite ser afetado não implica que se identifique com o ponto de vista indígena, nem que
aproveite a experiência de campo para excitar
seu narcisismo” (Favret-Saada 1990a: 7).
Na verdade, conta a autora (Favret-Saada
2004a), os afetos suscitados no campo, “a despossessão e a perda de controle de si, a aceitação do desejo desconhecido do outro, o
reconhecimento de uma opacidade constitutiva da comunicação humana”, tudo isso que
era “insuportável para os etnólogos”, era “banal
para os psicanalistas”. Por outro lado, bastou
que a autora sustentasse que a feitiçaria – ou
antes, o desenfeitiçamento – constitui uma forma de terapia que nada deve à psicanálise, para
que o cientificismo que os analistas sem dúvida
compartilham com os etnólogos impedisse que
a acolhida do trabalho de Favret-Saada fosse
muito longe. De fato, ela sugere que não se trata, no desenfeitiçamento, nem de uma forma
primitiva de lidar com aquilo que só a ciência realmente conhece, nem de uma simples
modulação cultural de uma prática universal.
Trata-se, antes, de um dispositivo completo,
destinado a “ajudar algumas pessoas”, dispositivo que funciona tão bem (ou tão mal, segundo
os casos) quanto outro qualquer e que deveria
ser investigado em conjunto com outras “instituições curativas” – a psicanálise, por exemplo
– no contexto de uma “antropologia das terapias” (Favret-Saada 1989b: 55; 1990a: 3).
É uma certa forma de cientificismo, portanto, que explica que tanto etnólogos quanto
analistas – por razões distintas, talvez – tenham, ao mesmo tempo, admirado e recusado
Les Mots, la Mort, les Sorts. Como observou
a autora (Favret-Saada 2004a), o livro parece
ter sido objeto do que Benjamin denominava
“incompreensão entusiasta”, uma espécie de
“quadro famoso, pendurado nas paredes dos
departamentos de antropologia, que os estudantes são incitados a admirar sem imitar”.
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E, de fato, é quase tão difícil encontrar uma
crítica explícita ao livro quanto um trabalho
que leve efetivamente a sério as potencialidades por ele abertas.
Para fazê-lo seria preciso abandonar de vez o
paradigma cientificista no qual ainda nos movemos em benefício de um método “clínico”,
no sentido médico e psicanalítico do termo.
Na primeira opção, as escolhas são limitadas:
ou procedemos indutivamente, generalizando a
partir do maior número possível de casos empíricos, ou dedutivamente, por meio da aplicação
a qualquer caso concreto de alguns princípios
gerais previamente estabelecidos. Favret-Saada,
por outro lado, procede por meio da observação,
exame e constituição de casos cuja singularidade
não elimina o fato de que cada um pode compartilhar com outros certos elementos e características. Isso faz com que, aos olhos do clínico,
cada caso seja, ao mesmo tempo, uma síndrome
única e parte de síndromes mais gerais, e que
cada um se beneficie indiretamente das anamneses anteriores e contribua para as futuras.
Não é de admirar, portanto, que o trabalho
de Favret-Saada tenha suscitado algumas reações estranhas, tanto na mídia (Favret-Saada
1989b: 112) – onde ela chegou a ser batizada
de “a feiticeira do CNRS” (o Centro Nacional
de Pesquisa Científica) – quanto na academia,
onde um colega chegou a sugerir que o CNRS
deveria cancelar sua bolsa uma vez que, repudiando a ciência, ela a teria empregado simplesmente para aprender a se tornar uma feiticeira
(Favret-Saada 1977a: 287).
Em outras palavras, não são apenas os fantasmas suscitados pela equívoca noção de observação participante que, como sugere a autora
(Favret-Saada 1990a: 5-6), tendem a funcionar
como obstáculos para o trabalho do etnógrafo.
Ela enumera outros: a similaridade cultural excessiva do etnógrafo com o grupo estudado; a
concentração da investigação nas elites e/ou nos
arquivos; a hipótese de que tudo se esclarece
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uma vez remetido ao “social”; a adoção de noções como a de crença ou de ideais como “objetividade” e “cientificidade”. Isso não significa,
é claro, que o antropólogo não possa estudar a
sociedade a que pertence, apenas que isso deve
ser feito com os cuidados e os distanciamentos
necessários; ou que arquivos e elites tenham
de ficar, necessariamente, fora da investigação,
apenas que devem ser colocados em seu devido
lugar; ou que as situações de enunciação, que
não se confundem com simples “contextos”,
não sejam fundamentais para a análise; ou que
as representações nativas, assim como o ideal de
conhecimento do antropólogo, não tenham que
ser respeitados, uma vez que trata-se sempre, na
etnografia, de uma espécie de alinhamento entre esses programas de verdade (cf. Favret-Saada
1977a: 287, passim).
Se fosse, então, inteiramente verdadeiro
que Jeanne Favret-Saada é autora de um livro, e
se esse livro for Les Mots, la Mort, les Sorts, isso
já seria bastante. Entretanto, e evidentemente,
não é bem assim que as coisas se passam. Na
verdade, os primeiros trabalhos de FavretSaada (reapresentados em Favret-Saada 2005)
como antropóloga remontam ao final da década de 1950, quando investigou sistemas segmentares árabes e bérberes no norte da África,
em campos relativamente próximos a seu local
de nascimento no sul da Tunísia (em 1934, em
uma família de origem judaica). Após a independência da Argélia, Favret-Saada mudou-se
para a França, onde os acontecimentos de maio
de 1968 fizeram com que decidisse concentrar
sua pesquisa, tendo em vista não deixar o país
em um momento que, como militante política,
considerava fundamental. Dessa decisão, e de
modo algo tortuoso, nasceu a pesquisa sobre
feitiçaria na região do Bocage francês.
Entre as duas temáticas, despontam alguns
pontos de contato – o mais sugestivo sendo,
sem dúvida, uma certa relação de redundância entre segmentaridade e desenfeitiçamento.
Pois se a primeira é, sabidamente, um modo de
promover modalidades de conflito (na conhecida forma das oposições e fissões segmentares)
e de, ao mesmo tempo, regulá-los (na forma
das fusões segmentares ou dos complexos sistemas de vingança e compensação), algo parecido poderia ser dito do enfeitiçamento e de
seu combate. Pois trata-se, aqui também, de
um conflito ou de uma oposição (entre feiticeiro e enfeitiçado), devidamente sistematizada
e, em geral, resolvida pela intervenção de uma
terceira instância, o desenfeitiçador, que, no
entanto, não aparece como externa e acima das
demais (como ocorreria com uma regulação estatal ou médica de conflitos ou perturbações),
e sim como um aliado e um duplo da vítima
contra seu inimigo. Nesse sentido, a violência
e as formas de, ao mesmo tempo desencadeá-la
e regulá-la, aparecem como tema que de certo
modo atravessa não apenas essas duas fases do
trabalho da autora bem como aquela que a estas se segue.
Do final da década de 1980 ao início da de
1990, foi em torno da feitiçaria e de suas implicações (como modalidade de violência, como parte de práticas terapêuticas, como locus de afetos,
como questão para a etnografia e a antropologia…) que se concentrou o trabalho de FavretSaada. A partir daí, um novo tema – sem dúvida
relacionado aos anteriores – passou a ocupar sua
atenção, a blasfêmia e o projeto de elaboração
de uma antropologia da blasfêmia. Atenção suscitada, em parte, pelas reações ao chamado Caso
Rushdie e à exibição do filme Amem, de CostaGavras, mas também pelo impacto da constatação de que “religiões que sempre se detestaram”
se uniam “contra a modernidade ‘blasfemadora’”
(Favret-Saada 2004a).
Essa antropologia da blasfêmia, por sua
vez, conduziu Favret-Saada à elaboração de
um trabalho (em colaboração, mais uma vez,
com Josée Contreras, psicanalista que com ela
trabalhou em outras ocasiões, especialmente na
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edição de parte de suas notas de campo – Favret-Saada 1981a) acerca das relações entre o
cristianismo e os judeus na Europa nos últimos
dois séculos. Assim como ao que deve ser seu
próximo livro, que examinará como, a partir
de 1880, as apresentações teatrais da Paixão de
Cristo passaram a ser condenadas por diversas
igrejas protestantes, às quais, não obstante, não
apenas não estendiam essa condenação às exibições cinematográficas da mesma Paixão, como
até mesmo as incentivavam.
Não é difícil, pois, perceber que na obra
de Jeanne Favret-Saada agenciam-se, de forma
muito singular, afetos muito diferentes: alguns
ligados à sua história pessoal, outros às suas opções éticas e políticas, outros, ainda, relacionados com a antropologia como campo de saber,
e assim por diante. Mas uma das originalidades
de seu trabalho talvez resida no fato de que o
principal operador desse agenciamento sejam
os afetos suscitados ou revelados em uma experiência vivida da alteridade, seja no trabalho de
campo, seja por outros meios. O que produz
resultados que, evidentemente, reagem sobre
os próprios afetos agenciados: “há, em mim,
uma espécie de perpétua retroação entre um
modo não partidário de ser em política e um
modo não escolar de fazer a pesquisa” (FavretSaada 1984).
Referências bibliográficas
Além dos textos acima citados, esta bibliografia, ainda que incompleta, reúne a maior
parte dos trabalhos de Jeanne Favret-Saada. Seu
último posto acadêmico foi o de diretora de pesquisa na École Pratique des Hautes Études, titular
da cadeira de etnologia religiosa da Europa.
1966. “La Segmentarité au Maghreb”. L’Homme, VI:
105-111.
1967. “Le Traditionnalisme par Excès de Modernité”. Archives Européennes de Sociologie, VIII: 71-93.
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1968. “Relations de Dépendance et Manipulation de la
Violence en Kabylie”. L’Homme, VIII: 18-44.
1977a. Les Mots, la Mort, les Sorts. Paris: Gallimard.
1977b. “Excusez-Moi, je ne Faisais que Passer”. Les Temps
Modernes, 371: 2089-2103.
1981a. Corps pour Corps. Paris: Gallimard (em colaboração com Josée Contreras).
1981b. “Sorcières et Lumières”. In Jeanne Favret-Saada
& Josée Contreras. Corps pour Corps. Paris: Gallimard,
pp. 333-363.
1981c. “Corps pour Corps”. Les Temps Modernes, 416:
1589-1607 (em colaboração com Josée Contreras).
1984. “Jeanne Favret-Saada”. In Idées Contemporaines.
Entretiens Le Monde. Paris: La Découverte.
1985. “L’Embrayeur de Violence: Quelques Mécanismes
Thérapeutiques du Désorcèlement” In J. Contreras et
alii. Le Moi et l’Autre. Paris, Denoël, pp. 95-148.
1985. “La Thérapie sans le Savoir”. Nouvelle Revue de
Psychanalyse, 31.
1989a. “La Genése du ‘Producteur Individuel’”. In Annie
M.D. Lebeuf et alii. Singularités. Textes pour Éric de
Dampierre. Paris: Plon, pp. 485-496.
1989b. “Unbewitching as Terapy”. American Ethnologist,
16 (1): 40-56.
1990a. “Etre Affecté”. Gradhiva. Revue d’Histoire et
d’Archives de l’Anthropologie, 8: 3-9.
1990b. “Ah! La Féline, la Sale Voisine…”. Terrain, 14:
20-31 (em colaboração com Josée Contreras). [http://
terrain.revues.org/document2968.html]
1991a. “Sale Histoire”. Gradhiva. Revue d’Histoire et
d’Archives de l’Anthropologie, 10: 3-10.
1991b. “Le Désorcèlement Comme Thérapie”. Ethnologie
Française, 2.
1991c. “Rushdie et Compagnie. Préalables à une Anthropologie du Blasphème”. Ethnologie Française, 3.
1994. “Weber, les Émotions et la Religion”. Terrain, 22: 93108. [http://terrain.revues.org/document2968.html]
1995. “Liaisons Fatales”. Esprit, 12.
2000. “La-Pensée-Lévi-Strauss”. ProChoix, 13: 13-18.
[http://www.prochoix.org/pdf/levi-strauss.pdf ]
2002. “Amen: une ‘Juste’ Polémique?”. ProChoix, 21.
2004a. “Glissements de Terrains Entretien avec Jeanne
Favret-Saada”. Vacarme, 28. [http://www.vacarme.
eu.org/article449.html]
2004b. Le Christianisme et ses Juifs. 1800-2000. Paris:
Seuil (em colaboração com Josée Contreras).
2005. Algérie, 1962-1964, Essais d’Anthropologie Politique. Paris: Éd. Bouchene.
“Ser afetado”, de Jeanne Favret-Saada*
PAULA SIQUEIRA
TÂNIA STOLZE LIMA
Mestranda em Antropologia Social pelo PPGAS/
MN/UFRJ e pesquisadora de grupos culturais,
política e religião em Nilo Peçanha, no Baixo
Sul da Bahia.
Professora Doutora de Antropologia pelo
ICHF/UFF.
Meu trabalho sobre a feitiçaria no Bocage
francês levou-me a reconsiderar a noção de
afeto, e a pressentir o interesse que haveria em
trabalhá-la: primeiro, para apreender uma dimensão central do trabalho de campo (a modalidade de ser afetado); depois, para fazer uma
antropologia das terapias (tanto “selvagens”
exóticas, como “científicas” ocidentais); e finalmente, para repensar a antropologia.
Com efeito, minha experiência de campo com o desenfeitiçamento, e, em seguida,
minha experiência com a terapia analítica levaram-me a pôr em questão o tratamento paradoxal do afeto na antropologia: em geral, os
autores ignoram ou negam seu lugar na experiência humana. Quando o reconhecem, ou é
para demonstrar que os afetos são o mero produto de uma construção cultural, e que não
têm nenhuma consistência fora dessa construção, como manifesta uma abundante literatura
anglo-saxã; ou é para votar o afeto ao desaparecimento, atribuindo-lhe como único destino
possível o de passar para o registro da representação, como manifesta a etnologia francesa e
também a psicanálise. Trabalho, ao contrário,
com a hipótese de que a eficácia terapêutica,
quando ela se dá, resulta de um certo trabalho
realizado sobre o afeto não representado.
De um modo mais geral, meu trabalho põe
em causa o fato de que a antropologia acha-se
acantonada no estudo dos aspectos intelectuais da experiência humana, nas produções culturais do “entendimento”, para empregar um
termo da filosofia clássica. É – parece-me – urgente, reabilitar a velha “sensibilidade”, visto
que estamos mais bem equipados para abordála do que os filósofos do século XVII.
Inicialmente, valem algumas reflexões sobre
o modo como obtive minhas informações de
campo: não pude fazer outra coisa a não ser
aceitar deixar-me afetar pela feitiçaria, e adotei um dispositivo metodológico tal que me
permitisse elaborar um certo saber posteriormente. Vou mostrar como esse dispositivo não
era nem observação participante, nem (menos
ainda) empatia.
Quando viajei para o Bocage, em 1968, havia uma abundante literatura etnográfica sobre
feitiçaria, composta de dois conjuntos de textos
heterogêneos e que se ignoravam mutuamente:
aquele dos folcloristas europeus (que se tinham
recentemente condecorado com o título vantajoso de “etnólogos”, embora não tivessem mudado em nada sua forma de trabalhar), e aquele
dos antropólogos anglo-saxões, sobretudo africanistas e funcionalistas.
Os folcloristas europeus não tinham nenhum
conhecimento direto da feitiçaria rural: seguindo
as prescrições de Van Gennep, eles praticavam
investigações regionais, encontrando-se com as
*
FAVRET-SAADA, Jeanne. 1990. “Être Affecté”.
In: Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Archives de
l’Anthropologie, 8. pp. 3-9.
cadernos de campo n. 13: 155-161, 2005
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elites locais (o grupo menos bem situado para saber alguma coisa sobre o assunto) ou enviandolhes questionários, interrogando também alguns
camponeses para saber se “ainda se acreditava
nisso”. As respostas recebidas eram tão uniformes
quanto as questões: “aqui, não, mas na aldeia vizinha, são uns atrasados…”. Seguiam-se, ainda,
algumas anedotas céticas ridicularizando os crentes. Para ir direto ao ponto, digamos que os etnólogos franceses, desde que se tratasse de feitiçaria,
dispensavam-se tanto de observar como de participar (situação que permanece, aliás, a mesma,
ainda em 1990). Os antropólogos anglo-saxões
pretendiam, ao menos, pôr em prática a “observação participante”. Levei um certo tempo para
deduzir dos seus textos sobre feitiçaria que conteúdo empírico podia-se atribuir a essa curiosa
expressão. Em retórica, isso se chama oxímoro:
observar participando, ou participar observando,
é quase tão evidente como tomar um sorvete fervente. No campo, meus colegas pareciam combinar dois gêneros de comportamento: um, ativo,
de trabalho regular com informantes pagos, os
quais eles interrogavam e observavam; o outro,
passivo, de observação de eventos ligados à feitiçaria (disputas, consultas a adivinhos…). Ora,
o primeiro comportamento não pode de forma
alguma ser designado pelo termo “participação”
(o informante, ao contrário, é quem parece “participar” do trabalho do etnógrafo); e, quanto ao
segundo, “participar” equivale à tentativa de estar
lá, sendo essa participação o mínimo necessário
para que uma observação seja possível.
Portanto, o que contava, para esses antropólogos, não era a participação, mas a observação.
Desta, eles tinham, aliás, uma concepção bastante estreita: sua análise da feitiçaria reduziase àquelas das acusações, porque, diziam eles,
são os únicos “fatos” que um etnógrafo pode
“observar”. Acusar é, para eles, um “comportamento”, é até mesmo o comportamento por
excelência da feitiçaria, já que é o único empiricamente verificável, todo o resto sendo somen-
te erros e imaginações nativas. (Ressaltemos de
passagem que, para esses autores, falar não é
um comportamento, nem um ato suscetível
de ser observado). Esses antropólogos davam
respostas precisas a uma única questão – quem
acusa quem de o ter enfeitiçado em dada sociedade? – mas ficavam mudos quanto a todas as
outras – como se entra numa crise de feitiçaria?
Como se sai dela? Quais são as idéias, as experiências e as práticas dos enfeitiçados e dos seus
magos? Nem mesmo um autor tão minucioso
quanto Turner permite sabê-lo, e, para se fazer
uma idéia disso, é preciso voltar à leitura de
Evans-Pritchard (1937).
De maneira geral, havia nessa literatura um
perpétuo deslizamento de sentido entre vários termos que teria sido melhor distinguir: a
“verdade” vinha escorrer sobre o “real”, e este,
sobre o “observável” (aqui, havia uma confusão suplementar entre o observável como saber
empiricamente verificável, e o observável como
saber independente das declarações nativas),
depois sobre o “fato”, o “ato” ou o “comportamento”. Essa nebulosa de significações tinha
por único traço comum o fato de opor-se a seu
simétrico: o “erro” escorria sobre o “imaginário”, sobre o “inobservável”, sobre a “crença” e,
por fim, sobre a “palavra” nativa.
Aliás, não há nada mais incerto que o estatuto da palavra nativa nesses textos: às vezes, ele
é classificado entre os comportamentos (acusar) e, às vezes, entre as proposições falsas (invocar a feitiçaria para explicar uma doença). A
atividade de fala – enunciação – é escamoteada,
não restando mais do discurso nativo que seu
resultado, isto é, os enunciados são impropriamente tratados como proposições e a atividade
simbólica reduz-se a emitir proposições falsas.
Como se pode ver, todas essas confusões giram em torno de um ponto comum: a desqualificação da palavra nativa, a promoção daquela
do etnógrafo, cuja atividade parece consistir
em fazer um desvio pela África para verificar
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que apenas ele detém… não se sabe bem o quê,
um conjunto de noções politéticas, equivalentes para ele à verdade.
Voltemos a minha pesquisa sobre a feitiçaria
no Bocage. Lendo essa literatura anglo-saxã para
ajudar em meu trabalho de campo, fiquei impressionada com uma curiosa obsessão presente em todos os prefácios: os autores (e o grande
Evans-Pritchard não era exceção) negavam regularmente a possibilidade de uma feitiçaria rural
na Europa de hoje. Ora, não somente eu estava
dentro dela, como a feitiçaria era amplamente
verificada em várias outras regiões, ao menos
pelos folcloristas europeus. Por que um erro empírico tão evidente, tão grande e tão compartilhado? Sem dúvida, tratava-se de uma tentativa
absurda de realizar novamente a Grande Divisão
entre “eles” e “nós” (“nós” também já acreditamos em feiticeiros, mas foi há trezentos anos,
quando “nós” éramos “eles”), e assim proteger
o etnólogo (esse ser a-cultural, cujo cérebro somente conteria proposições verdadeiras) contra
qualquer contaminação pelo seu objeto.
Talvez isso fosse possível na África, mas eu
estava na França. Os camponeses do Bocage
recusaram-se obstinadamente a jogar a Grande
Divisão comigo, sabendo bem onde isso deveria terminar: eu ficaria com o melhor lugar
(aquele do saber, da ciência, da verdade, do
real, quiçá algo ainda mais alto), e eles, com o
pior. A Imprensa, a Televisão, a Igreja, a Escola, a Medicina, todas as instâncias nacionais de
controle ideológico os colocavam à margem da
nação sempre que um caso de feitiçaria terminava mal: durante alguns dias, a feitiçaria era
apresentada como o cúmulo do campesinato, e
este como o cúmulo do atraso ou da imbecilidade. Assim, as pessoas do Bocage, para proibir
o acesso a uma instituição que lhes prestava serviços tão eminentes, ergueram a sólida barreira
do mutismo, com justificações do gênero: “Feitiço, quem não pegou não pode falar disso” ou
“a gente não pode falar disso com eles”.
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Pois então, eles falaram disso comigo somente quando pensaram que eu tinha sido “pega”
pela feitiçaria, quer dizer, quando reações que
escapavam ao meu controle lhes mostraram
que estava afetada pelos efeitos reais – freqüentemente devastadores – de tais falas e de tais
atos rituais. Assim, alguns pensaram que eu era
uma desenfeitiçadora e dirigiram-se até a mim
para solicitar o ofício; outros pensaram que eu
estava enfeitiçada e conversaram comigo para
me ajudar a sair desse estado. Com exceção
dos notáveis (que falavam voluntariamente de
feitiçaria, mas para desqualificá-la), ninguém
jamais teve a idéia de falar disso comigo simplesmente por eu ser etnógrafa.
Eu mesma não sabia bem se ainda era etnógrafa. Certamente, nunca acreditei ser uma
proposição verdadeira que um feiticeiro pudesse
me prejudicar fazendo feitiços ou pronunciando encantamentos, mas duvido que os próprios
camponeses tenham algum dia acreditado nisso dessa maneira. Na verdade, eles exigiam de
mim que eu experimentasse pessoalmente por
minha própria conta – não por aquela da ciência – os efeitos reais dessa rede particular de
comunicação humana em que consiste a feitiçaria. Dito de outra forma: eles queriam que
aceitasse entrar nisso como parceira e que aí
investisse os problemas de minha existência de
então. No começo, não parei de oscilar entre
esses dois obstáculos: se eu “participasse”, o
trabalho de campo se tornaria uma aventura
pessoal, isto é, o contrário de um trabalho; mas
se tentasse “observar”, quer dizer, manter-me à
distância, não acharia nada para “observar”. No
primeiro caso, meu projeto de conhecimento
estava ameaçado, no segundo, arruinado.
Embora, durante a pesquisa de campo, não
soubesse o que estava fazendo, e tampouco o
porquê, surpreendo-me hoje com a clareza das
minhas escolhas metodológicas de então: tudo
se passou como se tivesse tentado fazer da “participação” um instrumento de conhecimento.
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Nos encontros com os enfeitiçados e desenfeitiçadores, deixei-me afetar, sem procurar pesquisar, nem mesmo compreender e reter. Chegando
em casa, redigia um tipo de crônica desses eventos enigmáticos (às vezes aconteciam situações
carregadas de uma tal intensidade que me era
impossível fazer essas notas a posteriori). Esse
diário de campo, que foi durante longo tempo
meu único material, tinha dois objetivos:
– O primeiro era a curto prazo: tentar compreender o que queriam de mim, achar uma
resposta a questões urgentes do gênero: “Por
quem X me toma?” (uma enfeitiçada, uma
desenfeitiçadora), “O que Y quer de mim?”
(que eu o desenfeitice…). Eu tinha interesse
em achar uma boa resposta, já que no encontro seguinte, me pediriam para agir. Mas, em
geral, não tinha os meios necessários para isso:
a literatura etnográfica sobre feitiçaria, tanto
anglo-saxã quanto francesa, não permitia que
se representasse esse sistema de lugares em que
consiste a feitiçaria. Eu estava justamente experimentando esse sistema, expondo-me a mim
mesma nele.
– O outro objetivo era a longo prazo: por
mais que vivesse uma aventura pessoal fascinante, em nenhum momento resignei-me a
não compreender. Na época, aliás, não sabia
muito para que ou por que queria poder compreender, se para mim, para a antropologia
ou para a consciência européia. Mas eu organizava meu diário de campo para que servisse
mais tarde a uma operação de conhecimento:
minhas notas eram de uma precisão maníaca
para que eu pudesse, mais tarde, realucinar os
eventos, e então – como eu não estaria mais
“enfeitiçada”, apenas “reenfeitiçada” – compreendê-los, eventualmente.
Os leitores de Corps pour Corps terão notado que não há nada neste diário que o assemelhe àqueles de Malinowski ou de Métraux. O
diário de campo era para eles um espaço íntimo
onde podiam enfim se deixar livres, reencon-
trar-se fora das horas de trabalho, durante as
quais eram obrigados a representar diante dos
nativos. Em suma, um espaço de recreação pessoal, no sentido literal do termo. As considerações privadas ou subjetivas estão, ao contrário,
ausentes do meu próprio diário, exceto se tal
evento de minha vida pessoal tivesse sido evocado com meus interlocutores, quer dizer, se
tivesse sido incluído na rede de comunicação
da feitiçaria.
Uma das situações que vivia no campo era
praticamente inenarrável: era tão complexa que
desafiava a rememoração, e de todos os modos,
afetava-me demais. Trata-se das sessões de desenfeitiçamento a que assistia, seja como enfeitiçada (minha vida pessoal estava passando pelo
crivo e eu era instada a modificá-la), seja como
testemunha dos clientes, mas também da terapeuta (eu era constantemente instada a intervir
bruscamente). No começo, tomei muitas notas
depois de chegar em casa, mas era muito mais
para acalmar a angústia de ter-me pessoalmente
engajado. Uma vez que aceitei ocupar o lugar
que me tinha sido designado nas sessões, praticamente não tomei mais notas: tudo se passava
muito depressa, deixava-as correr sem pôr-me
questões, e, da primeira sessão até a última, não
tinha compreendido praticamente nada do que
tinha acontecido. Mas registrei discretamente
umas trinta sessões das aproximadamente duzentas a que assisti para constituir um material
sobre o qual pudesse trabalhar mais tarde.
A fim de evitar os mal entendidos, gostaria
de ressaltar o seguinte: aceitar “participar” e ser
afetado não tem nada a ver com uma operação
de conhecimento por empatia, qualquer que
seja o sentido em que se entende esse termo.
Vou considerar as duas acepções principais e
mostrar que nenhuma delas designa o que pratiquei no campo.
Segundo a primeira acepção (indicada na
Encyclopedia of Psychology), sentir empatia consistiria, para uma pessoa, em “vicariously expecadernos de campo • n. 13 • 2005
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riencing the feelings, perceptions and thoughts of
another”1. Por definição, esse gênero de empatia supõe, portanto, a distância: é justamente
porque não se está no lugar do outro que se
tenta representar ou imaginar o que seria estar
lá, e quais “sensações, percepções e pensamentos” ter-se-ia então. Ora, eu estava justamente
no lugar do nativo, agitada pelas “sensações,
percepções e pelos pensamentos” de quem ocupa um lugar no sistema da feitiçaria. Se afirmo
que é preciso aceitar ocupá-lo, em vez de imaginar-se lá, é pela simples razão de que o que ali
se passa é literalmente inimaginável, sobretudo
para um etnógrafo, habituado a trabalhar com
representações: quando se está em um tal lugar,
é-se bombardeado por intensidades específicas
(chamemo-las de afetos), que geralmente não
são significáveis. Esse lugar e as intensidades
que lhe são ligadas têm então que ser experimentados: é a única maneira de aproximá-los.
Uma segunda acepção de empatia – einfühlung, que poderia ser traduzida por comunhão afetiva – insiste, ao contrário, na
instantaneidade da comunicação, na fusão com
o outro que se atingiria pela identificação com
ele. Essa concepção nada diz sobre o mecanismo da identificação, mas insiste em seu resultado, no fato de que ela permite conhecer os
afetos de outrem.
Afirmo, ao contrário, que ocupar tal lugar
no sistema da feitiçaria não me informa nada
sobre os afetos do outro; ocupar tal lugar afeta-me, quer dizer, mobiliza ou modifica meu
próprio estoque de imagens, sem contudo instruir-me sobre aquele dos meus parceiros.
Mas – e insisto sobre esse ponto, pois é aqui
que se torna eventualmente possível o gênero
de conhecimento a que viso –, o próprio fato
de que aceito ocupar esse lugar e ser afetada
por ele abre uma comunicação específica com
os nativos: uma comunicação sempre involun1. Nota da tradutora: “experimentar, de uma forma indireta, as sensações, percepções e pensamentos do outro”.
cadernos de campo • n. 13 • 2005
tária e desprovida de intencionalidade, e que
pode ser verbal ou não.
Quando é verbal, acontece mais ou menos
isto: alguma coisa me impele a falar (digamos,
o afeto não representado), mas não sei o quê, e
tampouco sei por que isso me impele a dizer justamente aquilo. Por exemplo, digo a um camponês, em eco a alguma coisa que ele me disse:
“Pois é, eu sonhei que…”, e eu não teria como
explicar esse “pois é”. Ou então meu interlocutor observa, sem fazer qualquer ligação: “Outro
dia, fulano lhe disse que… Hoje, você está com
essas erupções no rosto”. O que se diz aí, implicitamente, é a constatação de que fui afetada: no
primeiro caso, eu própria faço essa constatação,
no segundo, é um outro quem a faz.
Quando essa comunicação não é verbal, o
que é então que é comunicado e como? Trata-se justamente da comunicação imediata que
o termo einfühlung evoca. Apesar disso, o que
me é comunicado é somente a intensidade de
que o outro está afetado (em termos técnicos,
falar-se-ia de um quantum de afeto ou de uma
carga energética). As imagens que, para ele e
somente para ele, são associadas a essa intensidade escapam a esse tipo de comunicação. Da
minha parte, encaixo essa carga energética de
um modo meu, pessoal: tenho, digamos, um
distúrbio provisório de percepção, uma quase
alucinação, ou uma modificação das dimensões;
ou ainda, estou submersa num sentimento de
pânico, ou de angústia maciça. Não é necessário (e, aliás, não é freqüente) que esse seja o
caso do meu parceiro: ele pode, por exemplo,
estar completamente inafetado na aparência.
Suponhamos que não lute contra esse estado, que o receba como uma comunicação de
alguma coisa que não saiba o que é. Isso me
impele a falar, mas da forma evocada anteriormente (“então, eu sonhei que…”), ou a calarme. Nesses momentos, se for capaz de esquecer
que estou em campo, que estou trabalhando, se
for capaz de esquecer que tenho meu estoque
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de questões a fazer… se for capaz de dizer-me
que a comunicação (etnográfica ou não, pois
não é mais esse o problema) está precisamente se dando, assim, desse modo insuportável e
incompreensível, então estou direcionada para
uma variedade particular de experiência humana – ser enfeitiçado, por exemplo – porque por
ela estou afetada.
Ora, entre pessoas igualmente afetadas
por estarem ocupando tais lugares, acontecem
coisas às quais jamais é dado a um etnógrafo
assistir, fala-se de coisas que os etnógrafos não
falam, ou então as pessoas se calam, mas tratase também de comunicação. Experimentando
as intensidades ligadas a tal lugar, descobre-se,
aliás, que cada um apresenta uma espécie particular de objetividade: ali só pode acontecer
uma certa ordem de eventos, não se pode ser
afetado senão de um certo modo.
Como se vê, quando um etnógrafo aceita
ser afetado, isso não implica identificar-se com
o ponto de vista nativo, nem aproveitar-se da
experiência de campo para exercitar seu narcisismo. Aceitar ser afetado supõe, todavia, que
se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de conhecimento for onipresente, não acontece nada.
Mas se acontece alguma coisa e se o projeto
de conhecimento não se perde em meio a uma
aventura, então uma etnografia é possível. Ela
apresenta, creio eu, quatro traços distintivos:
1. Seu ponto de partida é o reconhecimento de que a comunicação etnográfica ordinária
– uma comunicação verbal, voluntária e intencional, visando à aprendizagem de um sistema
de representações nativas – constitui uma das
mais pobres variedades da comunicação humana. Ela é especialmente imprópria para fornecer informações sobre os aspectos não verbais e
involuntários da experiência humana.
Noto, aliás, que, quando um etnógrafo
lembra-se do que houve de único em sua estada no campo, ele fala sempre de situações em
que não estava em condições de praticar essa
comunicação pobre, pois estava invadido por
uma situação e/ou por seus próprios afetos.
Ora, nas etnografias, essas situações, apesar de
banais e recorrentes, de comunicação involuntária e desprovida de intencionalidade não são
jamais consideradas como aquilo que são: as
“informações” que elas trouxeram ao etnógrafo
aparecem no texto, mas sem nenhuma referência à intensidade afetiva que as acompanhava
na realidade; e essas “informações” são colocadas exatamente no mesmo plano que as outras,
aquelas que são produzidas pela comunicação
voluntária e intencional. Poder-se-ia dizer, inclusive, que virar um etnógrafo profissional é
tornar-se capaz de maquiar automaticamente
todo episódio de sua experiência de campo em
uma comunicação voluntária e intencional visando ao aprendizado de um sistema de representações nativas.
Eu, ao contrário, escolhi conceder estatuto
epistemológico a essas situações de comunicação involuntária e não intencional: é voltando
sucessivamente a elas que constituo minha etnografia.
2. Segundo traço distintivo dessa etnografia: ela supõe que o pesquisador tolere viver em
um tipo de schize. Conforme o momento, ele
faz justiça àquilo que nele é afetado, maleável,
modificado pela experiência de campo, ou então àquilo que nele quer registrar essa experiência, quer compreendê-la e fazer dela um objeto
de ciência.
3. As operações de conhecimento acham-se
estendidas no tempo e separadas umas das outras: no momento em que somos mais afetados,
não podemos narrar a experiência; no momento
em que a narramos não podemos compreendêla. O tempo da análise virá mais tarde.
4. Os materiais recolhidos são de uma densidade particular, e sua análise conduz inevitavelmente a fazer com que as certezas científicas
mais bem estabelecidas sejam quebradas.
cadernos de campo • n. 13 • 2005
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Consideremos, por exemplo, os rituais de
desenfeitiçamento. Se não tivesse sido assim
afetada, se não tivesse assistido a tantos episódios informais de feitiçaria, teria dado aos
rituais uma importância central: primeiro,
porque sendo etnógrafa, sou levada a privilegiar a análise do simbolismo; segundo, porque
os relatos típicos de feitiçaria lhes dão um lugar
essencial. Mas, por ter ficado tanto tempo entre os enfeitiçados e entre os desenfeitiçadores,
em sessões e fora de sessões, por ter escutado,
além dos discursos de conveniência, uma grande variedade de discursos espontâneos, por ter
experimentado tantos afetos associados a tais
momentos particulares do desenfeitiçamento,
por ter visto fazerem tantas coisas que não eram
do ritual, todas essas experiências fizeram-me
compreender isso: o ritual é um elemento (o
mais espetacular, mas não o único) graças ao
qual o desenfeitiçador demonstra a existência
de “forças anormais”, as implicações mortais da
crise que seus clientes sofrem e a possibilidade
de vitória. Mas essa vitória (não podemos sobre
esse assunto falar de “eficácia simbólica”) supõe
que se coloque em prática um dispositivo terapêutico muito complexo antes e muito tempo
cadernos de campo • n. 13 • 2005
depois da efetuação do ritual. Esse dispositivo
pode, é claro, ser descrito e compreendido, mas
somente por quem se permitir dele se aproximar, quer dizer, por quem tiver corrido o risco
de “participar” ou de ser afetado por ele: em
caso algum ele pode ser “observado”.
Para finalizar, uma palavra sobre a ontologia
implícita de nossa disciplina. Em Meurtre dans
l’Université Anglaise (L’Âne, nº 21, abril-junho,
1985), Paul Jorion mostra que a antropologia
anglo-saxã pressupõe, entre outras coisas, uma
transparência essencial do sujeito humano a
si mesmo. Ora, minha experiência de campo
– porque ela deu lugar à comunicação não
verbal, não intencional e involuntária, ao surgimento e ao livre jogo de afetos desprovidos
de representação – levou-me a explorar mil aspectos de uma opacidade essencial do sujeito
frente a si mesmo. Essa noção é, aliás, velha
como a tragédia, e a ela sustenta também, desde há um século, toda a literatura terapêutica.
Pouco importa o nome dado a essa opacidade
(“inconsciente” etc.): o principal, em particular
para uma antropologia das terapias, é poder daqui para frente postulá-la e colocá-la no centro
de nossas análises.