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Questões epistemológicas sobre a arte

2022

Por longo tempo costumou-se colocar a arte no âmbito da doxa, enquanto a ciência e a filosofia se encaixavam no universo da episteme. Estudos recentes relacionados às ciências cognitivas e à epistemologia contemporânea sugerem que também a arte precisa ser considerada do ponto de vista da episteme, pois que o conhecimento produzido pela arte contém verdades específicas que contribuem para o entendimento da realidade objetiva do mundo e subjetiva, da humanidade.

1 Questões epistemológicas sobre a arte Marcos H. Camargo GIIP/Unespar RESUMO Por longo tempo costumou-se colocar a arte no âmbito da doxa, enquanto a ciência e a filosofia se encaixavam no universo da episteme. Estudos recentes relacionados às ciências cognitivas e à epistemologia contemporânea sugerem que também a arte precisa ser considerada do ponto de vista da episteme, pois que o conhecimento produzido pela arte contém verdades específicas que contribuem para o entendimento da realidade objetiva do mundo e subjetiva, da humanidade. Palavras-chave: Cognição estética, conhecimento, epistemologia, arte. ABSTRACT For a long time we used to put art within the scope of doxa, while science and philosophy fit into the universe of episteme. Recent studies related to cognitive sciences and contemporary epistemology suggest that art also needs to be considered from the point of view of episteme, since the knowledge produced by art contains specific truths that contribute also to the understanding of the objective reality of the world. Keywords: Aesthetic cognition, knowledge, epistemology, art. 1. Modos da pesquisa artística Há meio século, os cientistas vêm prestando atenção ao fato de que o conhecimento é muito mais do que uma notícia objetiva, visível, explícita e exprimível em linguagem. Karl Polanyi (1886-1964), químico e filósofo austríaco, explanou em seu livro Personal Knowledge (1958) os aspectos in-significantes, tácitos e implícitos do conhecimento. Para Polanyi, o ato de conhecer é um intercâmbio, um relacionamento entre o pessoal (o conhecedor) e o real (objeto do conhecimento). Porém, se o real ou o objeto é aquilo que está alegoricamente fora do conhecedor, o conhecimento jamais será completamente objetivo, porque só pode ser apreendido por um ato pessoal. “Seres humanos só podem ver o universo inevitavelmente de um centro que se encontra dentro de nós próprios e falamos sobre o mundo a partir de uma linguagem humana formatada pelas exigências de nossa comunicação intersubjetiva. Qualquer tentativa rigorosa de eliminar a perspectiva humana de um conhecimento sobre o mundo conduzirá ao absurdo”, disse Polanyi. Neste sentido, a pesquisa artística nada deve aos métodos objetivos da pesquisa científica, mesmo porque é impossível afirmar o grau de objetividade de cada afirmação ditada pela ciência. Na base da concepção mais objetiva se encontra um sujeito. 2 A história do pensamento científico narrada por Thomas Khun (1922-1996), especialmente em seu livro A estrutura das revoluções científicas (1962), trouxe a ciência mais para perto da arte, ao reconhecer na evolução da ciência movimentos encontrados nas escolas e estilos das artes (períodos de normalidade e de quebras de paradigmas). Enquanto para a ciência a menor distância entre dois pontos é uma reta, para a arte a melhor distância entre dois pontos é uma curva. Retas e ângulos retos são invenções humanas, idealidades transplantadas para o mundo, facilmente reconhecíveis como traços de uma inteligência racional. Uma rápida olhada pelo mundo afora é suficiente para perceber que o real, a natureza, prefere curvas como melhores trajetórias para alcançar objetivos. Impor ao mundo um desenho retilíneo pode servir para obter-se algumas soluções, embora se trate de uma antropologização do real. O conhecimento humano, contudo, não pode ater-se tão-somente ao exercício de humanização do mundo, mas entender o mundo tal como ele realmente se apresenta a nós. 2. Parâmetros gnosiológicos da pesquisa em arte Neste século, tem se ampliado a compreensão de que o conhecimento humano se apoia em duas bases cognitivas (estética e lógica), que operam simultaneamente entre a consciência e o inconsciente, de modo miscigenado. Ao considerarmos as duas bases do conhecimento humano, a pesquisa artística deve ser incluída no processamento da pesquisa gnosiológica, de modo a construir um relacionamento profícuo com sua contraparte: a pesquisa filosófico-científica. Neste sentido, apresentamos a seguir algumas qualidades gnosiológicas, presentes nas cognições estética e lógica, que a cultura logocêntrica sempre acreditou estar em oposição, mas que de fato são complementares, pois atuam dentro de um arco cognitivo que vai do estético ao lógico, sem solução de continuidade. 2.1. Presentificação – Teleologia Há pelo menos cinco mil anos, a invenção da escrita concluiu o período pré-histórico e transformou-se no início da história das civilizações e no modelo, por extensão, do pensamento humano. O caráter tecnológico da escrita, bem documentado por estudiosos, como Walter ONG 3 (1998), promoveu um esgarçamento entre as formas de conhecer do período oral e as formas de conhecimento constituídas a partir da escrita, que vai ganhar de Jacques DERRIDA (1973) uma palavra para descrever sua influência sobre nossa operação cognitiva: “logocentrismo”. É a escrita que vai permitir ao ocidente superar a matriz auditiva da oralidade, produzindo pensamentos determinados pelas formas semânticas e gramaticais da grafia dos textos. As palavras escritas em superfícies (pedra, argila, papiro, couro etc.) começam a ganhar existência própria e independente, dando a impressão de constituir um mundo à parte, dominado pelos humanos, em oposição à caótica e complexa existência do real. A escrita se torna a matéria prima que concebe esse mundo abstrato em nossas mentes, para além do mundo real – um mundo meta-físico, um lugar para onde o humano pode fugir da realidade e construir suas utopias. A teleologia ocidental surge como um forte efeito colateral da capacidade de registrar fatos e pensamentos, a partir da escrita. Quando se escreve, por exemplo, sobre os atos, realizações e a vida de um rei, tais registros escritos vão se tornar passado (história) quando forem lidos por seus descendentes. E esses descendentes também registram seus próprios feitos que, para o primeiro rei, são acontecimentos futuros. Da mesma forma, para os atuais soberanos, suas histórias tornar-se-ão passado, quando seus descendentes estiverem lendo sobre elas, no futuro. Com isso, percebe-se que o passado e o presente (quando registrados em histórias) criam necessariamente o futuro. A necessidade de continuação da história remete a importância de tudo, para o futuro. Assim nasce a teleologia, isto é, o sequestro do tempo presente, pela importância de se perpetuar o projeto em vista do futuro. O arco de tempo (passado – presente – futuro) é um efeito colateral da escrita. A passagem do tempo se torna história e sua superação passa a ser a meta pessoal e coletiva do mundo ocidental. O “estar aqui” perde valor, enquanto se busca pelo “estar para”. O ocidental é alguém que sempre “está para...”. Está para a felicidade, está para o amor, está para o trabalho, está para o dever, está para a morte, como consumação de seu tempo no futuro. Mas, o ocidental quase nunca “está aqui”. Quase nunca se reconhece no presente momento, porque sua consciência foi sequestrada pela finalidade (teleologia) de sua ação, de seu pensamento – que está sempre pré-ocupado com o futuro. Em outras palavras, aprendemos que tudo o que fazemos, sentimos e pensamos deve ter uma finalidade, algum motivo exterior ao que estamos fazendo, um propósito que torna nossa ação parte de um projeto que só se concluirá no futuro (que sempre se distancia e nunca se consuma). 4 O “estar para” nos remete a um sentido (na direção de...). De modo que tudo passa a demandar um sentido, ou seja, a direção que se deve tomar rumo ao futuro, ao que ocorrerá como saldo de nossas ações, sentimentos e pensamentos. Assim, tudo tem de fazer sentido (senso, direção, finalidade). No ocidente, as pessoas acreditam que não existem fatos fortuitos, porque tudo tem um sentido, nem que seja oculto – ele está lá, dando finalidade ao acontecimento, mesmo que não possamos compreendê-lo. A ideia de que tudo tem sentido leva a considerar as coisas “sem sentido” (nonsense) como sem valor. Algo que não remete em direção a uma ideia, não tem sentido. A noção de que o conhecimento é o produto da tradução de um signo em um ou mais sentidos, praticamente impede que percebamos a insensatez do mundo. A ideia de “presentificação” desafia o pensamento ocidental corrente. “Presentificar” é recusar a formação de um sentido, que remeta nossa mente para algum lugar, e afirmar a experiência sensível da coisa presentificada, sem dar-lhe finalidade, sem provê-la de qualquer significado coletivo. Trata-se de um exercício anti-intuitivo, pois a tendência quase irresistível é dotar a coisa de um nexo com alguma representação – a tentativa quase automática de projetar na coisa o preceito ocidental do “estar para...”. O jogo entre as potências da presentificação e da teleologia perfaz os fundamentos das relações entre a arte e a ciência, respectivamente, na medida em que a ciência tem por meta o sentido e o significado dos fenômenos, enquanto a arte desenvolve seu conhecimento a partir da presentificação da coisa material e concreta, que forma o corpo do artefato. Se para a ciência, o fenômeno é um mero ponto de partida que deve remeter ao conhecimento das leis gerais que o causam, enquanto para a arte, a experiência estética e a obra artística encerram nelas próprias o conhecimento a ser produzido para/pelo fruidor. 2.2. Criatividade – Generalização A ideia tradicional de conhecimento está vinculada às linguagens verbal e matemática, ambos sistemas de signos, cujas sintaxes permitem uma ordenação da caótica realidade, que está sempre à beira de subjugar a débil razão humana, sob o mar da diversidade absoluta e da abundância inominável do mundo. ‘Inteligível’ é uma palavra que em sua origem latina significa “ler por dentro” – inter+legere. Trata-se de uma metáfora, uma figura de linguagem para designar a interpretação 5 de signos – “ler por dentro” significa sacar o conteúdo que deve ser extraído de uma forma simbólica, embora essa operação não se dê assim no cérebro: quando percebida pelos sentidos, a forma simbólica aciona uma memória já existente, de modo que o signo é sempre uma reapresentação, uma redundância. Os linguistas preferem a definição de um signo que se forma a partir de um significante (forma perceptível e codificada: palavra), que permite um ou vários significados (ideia ou conteúdo atribuível à palavra). ‘Inteligência’ é um tipo específico de conhecimento que se adquire, se reproduz e se comunica por meio da interpretação de palavras e equações (signos). A sintaxe dessas linguagens (verbal e matemática) produz tamanha segurança na definição das coisas do mundo, que dá a nítida impressão de que o real pode ser controlado pelo humano. O poder da linguagem verbal se demonstra pela capacidade que uma palavra substantiva (‘cadeira’) tem, ao se referir a todas as cadeiras existentes no mundo, generalizando por meio de seu conceito. Generalizar é o papel precípuo da linguagem, posto que uma única palavra (‘cadeira’) tem o poder de nominar todas as cadeiras existentes e pensáveis no mundo inteiro. Um gênero, portanto, acolhe muito mais coisas sob um único rótulo (palavra), permitindo assim que a linguagem verbal possa abarcar grande parte do que o humano pode conhecer. Porém, ao generalizar (colocar coisas semelhantes num mesmo conjunto), a linguagem verbal e matemática geram um processo de identificação (idem = igual) que negligencia e exclui todas as diferenças existentes entre as coisas de um conjunto, para se focar tão-somente naquilo que as iguala (cadeira: elemento do mobiliário, com pernas, assento, encosto, cuja utilidade é acomodar o corpo humano). Mas, uma cadeira pode existir contendo apenas as suas qualidades gerais? A resposta mais segura a essa pergunta é ‘não’. As qualidades gerais que formam o conceito de cadeira são abstrações, são ideias que precisam ser “materializadas” pelas formas reais, concretas e existentes, que se encontram no mundo. Uma cadeira é formada, na realidade, de madeira, pedra, ferro, plástico etc. Sua forma material pode conter mil e uma variações, como três pernas, assento inclinado, encosto angulado etc. Ao cientista não interessa as eventuais variações de formato entre duas folhas da mesma árvore, já que todas devem conter um formato geral e reconhecível, que pode dizer ao botânico, por exemplo, qual é a espécie ou o gênero de determinada planta. Como contraponto, a arte busca justamente pelo que difere, diferencia e distingue uma coisa da outra. Assim, por meio 6 da criatividade, a arte constrói coisas únicas. O principal efeito da criatividade é o rompimento das identidades. Enquanto a ciência se interessa pelas causas, a arte se interessa pelas coisas. Enquanto a ciência busca pelo que se identifica, a arte busca pelo que distingue. O fato de se empenhar pelo que é permanente, sustentado por regras e leis, evita que a lógica seja criativa. Qualquer sistema baseado em lógica deve afastar a criatividade em sua aplicação, pois isso causaria o colapso de sua organização. Imaginemos um engenheiro sendo criativo com as equações que definem a estrutura de uma ponte? Imaginemos um contabilista que seja criativo com as partidas de crédito e débito? Imaginemos um linguista criando suas próprias regras gramaticais para a língua? Mas, então, porque ser criativo, se a criatividade pode ser perigosa para a sociedade? Esse foi o motivo pelo qual Platão expulsou os artistas de sua república ideal. Platão sempre temeu o poder criativo da arte, que pode romper com regras que ele considerava eternas e imutáveis, tanto na matemática, no verbo, quanto na sociedade. Esta é a importância da criatividade: quando a lógica dos sistemas não é mais útil, nem eficiente para produzir os resultados que dela espera a sociedade, chega o momento de mudar as regras, de quebrar os paradigmas para criar outras soluções. Ao estudar o fenômeno da criatividade, a pesquisa artística descortina o processo pelo qual os sistemas (científico, técnico, social, político, cultural etc.) se degeneram e demandam transformações, que são propostas por meio da criatividade dos especialistas (de qualquer arte ou ciência). 2.3. Subjetividade – Objetividade Aqui se encontra uma das oposições preferidas dos tradicionalistas, usada como divisão entre a arte e a ciência, sugerindo que ao lidar com a subjetividade, a arte não alcança a objetividade necessária para a formação de um conhecimento efetivo. A filosofia e a ciência tradicionais acreditam que têm métodos e meios para lidar com o real, a partir de uma visão objetiva, ou seja, independentemente das opiniões e impressões humanas. Para esses tradicionalistas, o saber artístico é muito dependente da subjetividade do artista, como também do fruidor, tornando impossível generalizar um conhecimento da mesma forma que a universalidade filosófica ou científica. Para os tradicionalistas, só existe ciência do geral. Em outras palavras, eles creem que a função da filosofia e da ciência é produzir conceitos acerca das leis gerais que causam as coisas, independentemente das coisas mesmas. Assim, imaginam 7 agir para além de quaisquer vínculos pessoais com coisas do mundo, evitando o contato com o existente. A ideia de objetividade, no entanto, é mais antiga que a ciência e independe dela. Ela se ergueu sempre que uma nação, uma tribo ou uma civilização identificou seus meios de vida com as leis do universo (físico e moral) e ela tornou-se perceptível quando culturas diferentes com visões objetivas diferentes se confrontaram. (...) Nações mais beligerantes usaram a guerra e mataram para erradicar aquilo que não se enquadrava em sua visão de Bondade. (FEYRABEND, 2010, p. 12) Em primeiro lugar, precisamos entrar em acordo com o fato inescapável de que filósofos e cientistas são pessoas, sujeitos que agem no mundo real, sem poder escapar de suas subjetividades. Por detrás de toda pretensa objetividade do filósofo ou do cientista existe uma carga de subjetividade inerente à existência humana. A ilusão de que a filosofia ou a ciência pode ser completamente objetiva mascara uma subjetividade inevitável, pois tal formulação de pensamento é humana, portanto proveniente de um sujeito. Contra a ilusão de objetividade decantada pelo filósofo e pelo cientista tradicionais, somente a arte contém o antídoto cognitivo, pois a pesquisa e a fatura artística lidam desde sempre com o sujeito e sua subjetividade. Só pode haver uma objetividade filosófica e científica, na medida em que se reconheça o grau de subjetividade do filósofo e do cientista envolvido nos processos. A epistemologia contemporânea reconhece essa interferência pessoal do pesquisador, inclusive alertando-os para tais fenômenos, quando da análise de objetos de pesquisa. A arte, por sua vez, lida com a subjetividade do próprio artista, como também do fruidor das obras de arte. Ao invés de menosprezar a dimensão subjetiva do conhecimento, a pesquisa artística tem seus meios para evidenciar a participação do sujeito no desvelamento da obra de arte, o modo singular com que cada fruidor se relaciona com o artefato. A relatividade do conhecimento adquirido pelo sujeito, não permite qualquer pretensão à pura objetividade, mas nos convida ao diálogo entre a arte e a filosofia/ciência. Um relacionamento certamente profícuo, em que a arte ensina à filosofia/ciência como lidar com o sujeito oculto em suas teorias. 2.4. Complexidade – Simplicidade 8 Por milênios, a filosofia e a ciência ensinaram que a verdade provém de enunciados simples, pois uma proposição complexa 1 pode conter elementos que fogem das características necessárias e suficientes para definir um fenômeno. Até recentemente, em pleno século XX, movimentos românticos e seus intérpretes ainda rezavam a cantilena da simplicidade, como foi o caso de Antoine de Saint Exupéry, que teria dito num de seus livros que “a perfeição não é alcançada quando já não há mais nada para adicionar, mas quando já não há mais nada que se possa retirar”. Frases como esta, do criador de O Pequeno Príncipe, servem para emoldurar tendências do pensamento que ficaram conhecidas como “positivismo”, “funcionalismo”, “minimalismo”, cuja ideia de simplificação tinha por objetivo o retorno ao Uno, recusando nos fenômenos qualquer idiossincrasia, enfeite, ornamento, adereço que fosse acusado de supérfluo. A busca pela perfeição é aliada do anseio pela eternidade, o mesmo sonho de exatidão e rigor que se encontra nas formulações filosóficas e científicas. Aqui reside um dos erros apontados por Friedrich Nietzsche (1844-1900), quando denunciou o engano que teria se iniciado com Sócrates: a ideia de que tudo pode ser resumido no interior do Uno. Quando pensadores e cientistas inventam proposições e equações para traduzir os fenômenos que estudam, parecem não se dar conta de que os signos das linguagens verbal e matemática não criam a realidade, mas apenas a representam precariamente. Como criação humana, as linguagens também são imperfeitas, estão sujeitas à evolução cultural que as transformam com o tempo. Ao contrário do que sonham os idealistas, o mundo real é complexo demais para caber nas linguagens. Ao invés de perseguir o enganoso propósito de simplificar o mundo, em busca de uma essência inexistente, é preciso encarar a abundante complexidade que caracteriza o real. Então, entreguemo-nos às suas idiossincrasias para conhecer melhor seus meandros. Ao invés de lidar apenas com o punhado de causas que supostamente regem o mundo, a pesquisa artística visa estudar a abundância de coisas que habitam o real. Uma obra de arte não é um conceito – não existe “arte abstrata” –, mas uma coisa existente no mundo real. Por isso mesmo, os artefatos sempre serão, como o próprio real, resistentes a qualquer explicação. De uma vez por todas, precisamos entender que se queremos construir um conhecimento sobre a parte do mundo que nos é perceptível, devemos aceitar a complexidade inerente ao real. Pensamento complexo é aquele que não despreza as coisas, em favor das causas, mas leva em consideração as relações assimétricas e conflituosas que emergem do atrito inconstante entre 9 os existentes. A pesquisa artística está mais bem equipada para pensar a complexidade, porque desconhece definições, categorias, gêneros e classes que separam artificialmente as coisas. A filosofia e ciência tradicionais ainda tentam simplificar (sim+plex – desdobrar) o mundo, alisando, planificando seus fenômenos na forma de uma representação. Este mundo criado pelo pensamento sistemático e pelas linguagens verbal e matemática não é real, mas sua pálida representação. A pesquisa artística, por seu turno, também não cobre a totalidade de informações e dados que poderiam ser apreendidos do real, porém, abre outras perspectivas cognitivas que vão além do verbo e do número, permitindo ampliar os horizontes do conhecimento humano. 2.5. Diversidade – Identidade A tradição do pensamento ocidental costuma enxergar o mundo como composto de identidades (espécies, classes, categorias, gêneros etc.). Do latim identitatem, vem ao português a palavra ‘identidade’, como o conjunto de marcas comuns a todas as unidades de um grupo. Dentre as principais ferramentas socioculturais que servem à sustentação das identidades está a linguagem verbal. Por exemplo, quando falamos, ouvimos, lemos ou escrevemos a palavra ‘chapéu’, sabemos que este termo se refere a todos os chapéus existentes no mundo, por nomear um conjunto finito de qualidades que devem estar presentes em todos as coisas que podem ser chamadas de ‘chapéu’ (peça do vestuário, que protege a cabeça, de cobertura ovalada e dotada de abas). Com apenas uma palavra (chapéu), a linguagem verbal nos permite nominar milhões de itens, porque todos detém aquelas qualidades mínimas necessárias e suficientes para ser um ‘chapéu’ – a isso chamamos identidade. Temos poucos nomes e poucas definições para uma infinidade de coisas singulares. Assim, o recurso ao universal não é uma força de pensamento, mas uma enfermidade do discurso. O drama é que o homem fala sempre em geral enquanto as coisas são singulares. A linguagem nomeia ofuscando a irresistível evidência do individual existente. (...) Mas o drama do ser não é que seja apenas efeito de linguagem. É que nem mesmo a linguagem o define. Não há definição do ser. (FEYRABEND, 1998, p. 28) Pensar por identidades equivale a pensar por conceitos. Todo conceito é uma receita de identidade. Desde sempre, nas culturas humanas, as coisas são agrupadas por semelhança física, estrutural, funcional e/ou genealógica, mesmo não sendo iguais. Esta estratégia de controle do meio ambiente natural e social permitiu ao humano reduzir a extrema diversidade existente no 10 mundo real, e classificá-la por espécies, categorias, gêneros etc. Com o auxílio da linguagem verbal, foram conferidos a cada um desses grupos identitários um nome próprio, trazendo para o domínio humano vastos setores do mundo. Fonte produtora de identidade, o conceito de espécie se relaciona a agrupamentos de indivíduos (os espécimes) com grandes semelhanças físicas, estruturais, funcionais e/ou genealógicas, que lhes confere acentuada uniformidade coletiva. Por exemplo: o humano é uma espécie, porque seus espécimes têm semelhanças que nos conferem acentuada identidade psicobiológica. Porém, mesmo hoje em dia, devido ao cacoete de pensar por identidades, ainda se aplicam os princípios lógicos da não-contradição e do terceiro excluído contra pessoas que não se adequam às definições gerais, como é o caso dos portadores de deficiências, étnicos, estrangeiros e gays. Classes e espécies fazem parte da forma como organizamos os conhecimentos conceituais em uma linguagem comum, para que possamos entrar em acordo dentro do grupo social a que pertencemos – no entanto, classes e espécies não passam de convenções culturais humanas, inventadas pela sociedade para gerar identidades. Por assim dizer, a identificação é uma atividade de anulação das diferenças entre as coisas, para elencar apenas o que elas têm em comum, negligenciando o que elas têm de diferente. Segundo Emilia STEUERMAN, para Jean François Lyotard, ... a razão e a capacidade discursiva da linguagem tornaram-se os males responsáveis pela domesticação e repressão da criatividade, enquanto a dimensão da retórica, exemplificada pela expressão artística, simboliza o que a razão tenta por todos os meios oprimir e reprimir, o que, em sua própria definição, não pode ser conhecido: a ‘alteridade’ da razão. (2003, pp. 35-36) A diversidade é o estado natural do mundo realmente existente. Pelo fato de que nada permanece o que é, tudo o que existe está em inconstante estado de diferenciação, não apenas em relação a outras coisas, como em relação a si próprio. O racionalismo tradicional, que ainda vige no senso comum, não lida bem com a diversidade, porque pensa apenas em termos de espécie, classe, categoria, gênero etc. A importância da pesquisa artística serve também para contornar esse cacoete idealista, que imagina o mundo sempre composto de identidades. De fato, trata-se do contrário: o mundo é diferença e para conhecer o mundo precisamos aprender a lidar com a diversidade inerente às coisas que realmente existem. 2.6. Inefabilidade – Discusividade 11 Parte das propriedades das coisas não pode ser significada em palavras, sendo, portanto, inefável2. Como é impossível à lógica linguística lidar com o inefável, entra em cena a estética, que tem a capacidade de perceber, ler e comunicar o inominável, pois os sintomas estéticos não se manifestam por meio de conceitos. A inefabilidade do mundo real é sua característica de ser apenas parcialmente discursável. Tudo aquilo que não cabe em discurso; tudo aquilo que ainda não foi nomeado, ou não pode ser nomeado, pertence à esteticidade das coisas. O célebre ‘Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar’ (Wittgenstein) pode com efeito ser interpretado como a flecha que traspassa o rígido rigor da lógica e mostra sua vaidade ou no mínimo seu limite: a arte, a se acreditar nessa interpretação, seria justo aquilo que é preciso calar, pois não se pode falar dela corretamente. A arte para além do discurso, a arte trans-lógica, trans-gramatical. (CAUQUELIN, 2005, p. 125) Não precisamos nos deter diante do inefável, pois quem se cala é o logos. A incapacidade de vencer a inefabilidade das coisas faz a lógica encontrar sua definição (de finis = limite) e compreender-se na finita extensão de sua techne (verbo e número) – precarizando a universalidade que acreditava possuir. Nem por isso devemos limitar a construção do conhecimento humano, só porque as palavras e os números não alcançam as cognições inefáveis. Aqui entram em cena algumas linguagens, como a imagética, cinestésica, musical, dentre outras, que dão vez e vaza a formas diferentes de pensamentos e conhecimentos nãoverbais, não-matemáticos. A linguagem imagética, por exemplo, representa por meio da iconicidade das aparências, podendo comunicar algo que a palavra não consegue interpretar. A inefabilidade se encontra inclusive na percepção da música, na sensação de um aroma, na fruição de uma obra de arte, tanto quanto na captura da presença das coisas singulares. Não só as pinturas, mas inclusive as plantas e os proverbiais besouros são todos indivíduos, todos supostamente únicos; a todos eles se aplica o chavão escolástico: “individuum est ineffabile”, o indivíduo não pode ser capturado pela rede da nossa linguagem [verbal], pois a esta é imprescindível operar com conceitos e proposições universais. (GOMBRICH, 1990, p. 106) É preciso prestar atenção a certa cegueira inteligente que insiste em submeter o mundo real à rede de interpretações linguísticas, inclusive negando existência para aquilo que não pode ser interpretado no discurso. O verbo não é a moeda de troca de todo conhecimento auferido pelo humano, porque o mundo não pode ser completamente interpretável pelas palavras. As operações linguísticas são muito úteis para a comunicação de conhecimentos socialmente 12 relevantes, mas por vezes leva à ilusão de que todo o mundo pode ser contido em sua rede de significados, levando-nos a cometer graves erros de avaliação da realidade, engano que pode ser minimizado com o auxílio da pesquisa artística, de vez que a arte lida com aquilo que não pode ser interpretado pelas linguagens lógicas. O nosso é um tempo em que o projeto da interpretação é em grande parte reacionário, asfixiante. (...) Numa cultura cujo dilema já clássico é a hipertrofia do intelecto em detrimento da energia e da capacidade sensorial, a interpretação é a vingança do intelecto sobre a arte. Mais do que isso. É a vingança do intelecto sobre o mundo. Interpretar é empobrecer, esvaziar o mundo – para erguer, edificar um mundo fantasmagórico de “significados”. (SONTAG, 1987, p. 16) 2.7. Insensatez – Sentido A noção de sentido entendida como ‘razão de ser’, ‘destino’, ‘direção’, provém do hábito ancestral de buscar pelas regularidades do real, de modo a prever como as coisas vão se suceder no futuro. Daí advém o senso comum de que o mundo tem um sentido, que é inteligível, tendo por meta uma finalidade cósmica. Portanto, o entendimento lógico das coisas deve levar em consideração sua conformidade a fins. Por outro lado, uma direção (sentido) não indica apenas seu fim, mas também sua causa (ou princípio). A apreensão da causalidade (princípio da finalidade) por meio de conceitos da lógica fornece ao sujeito o sentido das coisas. A conformidade a fins revela-se em toda a sequência de causas e efeitos, sendo que os elos dessa cadeia de sentido funcionam como meios que conduzem aos fins. O sentido é a direção para onde o signo conduz a interpretação de seu objeto. Para o logocentrismo, o texto só faz sentido quando direciona o entendimento rumo a uma ideia verdadeira. Quando não há texto, também não há sentido. Sendo todas as ações dos homens dependente da busca de um fim, seu conhecimento se reduz espontaneamente, portanto, ao conhecimento das causas finais: eles consideram tudo o que os envolve somente com referência a tal finalidade, visto que concebem tudo o que existe na natureza somente como meios para alcançar o que lhes é útil. Da mesma maneira que eles pensam que seus olhos foram feitos para ver, eles pensarão que os peixes são feitos para alimentá-los. Toda visão finalista é ao mesmo tempo uma concepção antropocentrista do mundo visto que ao final a perseguição de seu próprio interesse prevalece sobre todos os outros na natureza. (MIQUEU, 2009, pp. 128-129) “O não-senso (insensatez) é ao mesmo tempo o que não tem sentido, mas que, como tal, opõe-se à ausência de sentido, operando a doação de sentido. (...) o sentido não é nunca princípio ou origem, ele é produzido” (DELEUZE, 2006, p. 74/75). Esta citação do filósofo 13 francês nos alerta para o hábito da lógica em “produzir” causas e efeitos para justificar o sentido das coisas. O princípio teleológico do conhecimento intelectual está no fundamento dos conceitos sobre as coisas, emprestando a eles o sentido, a finalidade, uma razão de ser, que só é encontrada no âmbito abstrato da mente. Enquanto uma representação é definida como ‘algo que está no lugar de alguma outra coisa’, os fatos artísticos não são representáveis, porque não revertam sentidos na direção de outras coisas – neste caso, parte das obras de arte contêm acentuado grau de in-sensatez. Todos os signos (de que são formados os textos) têm natureza teleológica, pois eles sempre cumprem uma finalidade, um telos, que se realiza na condução do intérprete a uma certa dedução sobre o objeto. Por outro lado, a esteticidade das coisas não nos transporta para além delas mesmas, pois a cognição estética não é uma dedução, mas uma percepção – só comunica seu conhecimento apenas quando presente à sensibilidade do perceptor. Obras de arte não são teleológicas, sua função representativa é colateral, o artefato não pode ser entendido como um signo a indicar um sentido pois, como coisa existente, a obra de arte é insensata, inefável, inconcebível. Nos sistemas codificados, os signos são representações de ideias sobre as coisas que podem ou não estar presentes. Ao ler o signo a mente nos conduz à ideia de algo, em direção a algo – este é o seu sentido. Mas, as sensações despertadas pela esteticidade das obras são construídas por quem é afetado em sua presença. Assim, no caso das artes, a obra não se completa senão na relação singular que estabelece com o perceptor. Essa “relação singular” não é representável, não é concebível, nem significante – é uma experiência estética. O mundo real não tem finalidade, nem sentido, nem destino, movimenta-se em evolução darwiniana produzindo um ambiente em inconstante transição. Um entendimento mais próximo da realidade implica nesse modo de ver: a experiência estética não encarna mais a utopia da experiência, as obras de arte não são mais encarregadas de transcenderem a realidade atual e anteciparem uma vida infinitamente boa, bela e redimida. Sob esse ponto de vista, o interesse estético reside unicamente nele mesmo, destituído de toda finalidade ulterior (GUIMARÃES et alii, 2006, p. 23). 3 O pensamento inteligente tem uma direção, um sentido, a finalidade de dirigir-se para o mundo de modo a dizer o que ele é, assenhorando-se de sua existência material por meio das linguagens lógicas. A percepção da insensatez dos artefatos demanda uma abolição do sentido da lógica, para que se possa ser paciente de seus afetos e, assim, conhecer esteticamente a 14 caleidoscópica manifestação da realidade. A insensatez não é a falta de sentido, mas a recusa de um sentido unívoco, próprio da lógica, que impede a experiência dos múltiplos sentidos que a percepção do mundo nos oferece. O que é a criatividade senão um ataque de insensatez que se bate contra a voz única da lógica? Longe de ser desprezível, a insensatez é um dos sintomas a se considerar na pesquisa artística, como constituinte da cognição sensível, pois habita em diversas coisas e eventos que circulam no meio natural e social. Os sete parâmetros da pesquisa gnosiológica mencionados acima e resumidos na “Tabela 1” abaixo são apenas um trecho da fronteira entre arte e ciência, que precisa ser aberta, de modo que o conhecimento ganhe trânsito, e se livre de preconceitos tradicionalistas, a fim de que sua complexidade coincida com a abundância indefinível do mundo. PARÂMETROS DA PESQUISA GNOSIOLÓGICA Pesquisa Estético-Artística Pesquisa Filosófico-Científica Presentificação Teleologia Criatividade Generalização Subjetividade Objetividade Complexidade Simplicidade Diversidade Identidade Inefabilidade Discursividade Insensatez Sentido Tabela 1, Autor (2021). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAUQUELIN, A. Teorias da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2005. DELEUZE, G., GUATTARI, F. O que é a filosofia. Rio de Janeiro: Editora 34, 2009. DERRIDA, J. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973. FEYERABEND, P. A conquista da abundância. Editora Unisinos, São Leopoldo, 2005. _____ . Adeus à razão. São Paulo: Editora UNESP, 2010. FREUD, S. A interpretação dos sonhos. Companhia das Letras, S. Paulo, 2019. GOMBRICH, E. H. Norma e forma. São Paulo: Martins Fontes, 1990. GUIMARÃES et al. Comunicação e expressão estética. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. KIRCHOF, E. R. Estética e semiótica: de Baumgarten e Kant a Umberto Eco. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. MIQUEU, C. in: MARTINS, A. (org) O mais potente dos afetos: Spinoza & Nietzsche. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. 15 ONG, W. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Campinas, SP. Papirus, 1998. SONTAG. S. Contra a interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987. STEUERMAN, E. Os limites da razão: Habermas, Lyotard, Melanie Klein e a racionalidade. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2003. Do latim, recebemos os termos plici/plica/plicare, que significam ‘pregar’, ‘prega’, ‘dobra’, gerando o termo francês plissé, que reafirma a ideia de ‘prega’, ‘dobra’. As palavras que comportam essa raiz latina (plici) referem-se a algo que contém dobras, protuberâncias, superfícies de difícil superação. Quando se desejam significar alguma coisa de difícil execução ou de raro entendimento, utilizam-se da palavra ‘complicação’, cujo prefixo latino cum significa ‘junto com’ ou ‘ajuntamento’, permitindo designar algo ‘com muitas dobras’ ou algum tipo de evento, coisa ou ideia de difícil acesso, devido suas múltiplas características. A contrário, a diminuição ou eliminação das ‘dobras’ incompreensíveis, deixa de fora (ex) ou elimina as plici – a palavra ‘explicação’ significa alisar, aplainar, desdobrar, abstrair as complicações de um problema, para torná-lo de fácil acesso ao intelecto. 2 Proveniente do latim, Inexfabillis, esta palavra é uma formação que inclui a partícula in (negação), associada à partícula ex (fora), e acrescida da declinação fa (do verbo fari – falar), e do sufixo billis (capacidade de...) e significa literalmente “incapacidade de ser traduzido em palavras”. Trata-se de uma limitação da linguagem verbal já conhecida entre os escolásticos e clássicos. No século XX, quando se convencem de que a palavra não pode traduzir o mundo, a decepção de muitos filósofos foi retratada na famosa frase de Ludwig Wittgenstein: “Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”. Em razão disso, os filósofos devem se calar diante de tudo o que o verbo não pode representar, como exemplo o campo da estética. 1 MARCOS H. CAMARGO Mestre em Comunicação e Linguagens (UTP, 2003). Doutor em Artes Visuais (IAR-UNICAMP, 2010). Pósdoutor pela Escola de Comunicação (UFRJ, 2015). Professor de Graduação em Cinema e Audiovisual, Artes Cênicas, Música e Dança (Campus de Curitiba II – UNESPAR, desde 2006). Professor de Pós-graduação stricto sensu do Mestrado Profissional em Artes (Campus de Curitiba II, UNESPAR, desde 2018).