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ARTE: UMA QUESTÃO EPISTEMOLÓGICA
Marcos H Camargo1
RESUMO: a arte como uma produção estética demanda pesquisa e desenvolvimento
como qualquer outra atividade do conhecimento humano. A questão epistemológica que é
abordada aqui se refere ao cientificismo de instituições públicas de fomento à pesquisa, que
enxergam a arte em segundo plano, quando comparada a outros ramos da ciência,
reservando ao campo estético poucos recursos ao desenvolvimento de suas pesquisas.
PALAVRAS-CHAVE: CNPq, pesquisa, conhecimento, estética, ciência.
ABSTRACT: art as an aesthetical production demands research and development as
anyone other human knowledge activity. An epistemological question summarized here
talks about the scientificism of the public institutions for research support that sees art as
less important production compared with other scientific areas, bringing to the aesthetical
production few resources to the development of its researches.
KEY WORDS: CNPq, research, knowledge, aisthetics, science.
Introdução - o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq) destina-se ao desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação, assim como à
formação de recursos humanos para a pesquisa no país. Entretanto, naquilo que concerne à
sub-área de pesquisa em estética e arte ainda não foram colocadas por esse órgão diretrizes
aplicáveis que posicionem o campo estético-artístico como um legítimo gerador de
conhecimento, tecnologia e inovação, de maneira a minimizar os entraves burocráticoacadêmicos ao fomento gerido pelo CNPq - especialmente no que se refere a bolsas de
iniciação científica discente e de pesquisa e desenvolvimento para docentes em artes.
O fato do CNPq ter um perfil científico é plenamente justificável. Contudo, se a
finalidade dessa instituição é promover o desenvolvimento, a inovação e a divulgação de
Detém Especialização lato senso em História do Pensamento Contemporâneo (PUCPR-1987),
Economia e Sociologia (PUCPR-1988), possui Mestrado em Comunicação e Linguagens pela
Universidade Tuiuti do Paraná (2003) e Doutorado em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da
UNICAMP (2010). E-mail:
[email protected]
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conhecimento, salientamos aqui a condição da estética (arte) como conhecimento autônomo,
embora interdependente, tão decisivo para os objetivos sociais e político-institucionais do
CNPq, como são as pesquisas científicas e tecnológicas. Por essa razão, apresentamos esta
“carta aberta ao CNPq” propugnando por um posicionamento dessa instituição em
relação ao atual contexto da pesquisa em artes.
De modo a iniciar o que pretendemos venha se tornar um proveitoso debate
desenvolvemos a seguir alguns preceitos acerca da participação da estética (artes) no
conjunto das atividades de pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação.
1. O que é o conhecimento - nos últimos duzentos anos a importância da ciência
e tecnologia só fez crescer no ocidente, estabelecendo entre nós uma ideologia dominante
conhecida por “cientificismo”. Sem desconsiderar o valor estratégico do desenvolvimento
da ciência nacional, mas até para reafirmá-lo e colaborar com tal esforço, precisamos nos
lembrar que sempre se tratou, na realidade, de expandir o conhecimento. E o viés científico do
conhecimento não deve ser generalizado para outras áreas.
Conceito tradicional de conhecimento
A raiz da palavra ‘conhecimento’ refere-se a ‘nome’ (gnomen)2. Ou seja, conhecer, na
origem, significava dar nome às coisas. Trata-se, portanto, de uma operação intelectual que
nomeia conceitos construídos a partir da compreensão de características identitárias na
definição de várias coisas particulares. Desse modo, para os antigos só poderia haver
2 Conhecer – (lat. Cognoscere) formado do prefixo cum (partícula de intensificação), da raiz protoindo européia gno (saber) e da raiz latina gnarus (aquele que conhece), significa “apreender o ser das
coisas com o intelecto”. Etimologicamente, admite-se um grau de parentesco entre o verbo
“conhecer” (cognoscere) e o verbo “nomear” (cognomen), de modo que a sobreposição dos seus
significados permite-nos deduzir que os antigos entendiam o conhecimento como o poder de
“nomear” as coisas, significando-as. Onoma (nome) é a palavra grega que designa o signo verbal,
representante das coisas (pragma) para o logos (a mente platônico-aristotética). Assim, de uma
maneira ancestral, ‘conhecer’ é dar nome às coisas, isto é, incorporá-las à linguagem verbal por meio
de sua compreensão num conceito.
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conhecimento se o logos (palavra, discurso, mente, ideia, razão) presidisse à concepção de
um nome para a classificação de algo concreto ou abstrato, segundo sua submissão a uma
categoria ou classe de coisas/ideias. A exclusividade do logos para auferir conhecimento
verdadeiro tornou-se um dogma de milhares de anos no ocidente, a ponto de ainda hoje
muitos considerarem marginais ou inválidas (falsas) quaisquer outras fontes de
conhecimento, especialmente aquelas advindas da cognitio sentiviva (estética). Desse modo, o
logos tornou-se o princípio fundamental do pensamento no ocidente, uma espécie de matriz
ancestral, da qual todas as filosofias (e ciências) são geneticamente descendentes.
Desde seu período clássico, o pensamento ocidental estabeleceu o processo pelo
qual o raciocínio alcançaria a verdade mesmo antes da ocorrência dos eventos sobre os
quais deitaria juízo: o pensamento dedutivo-apriorístico foi (e continua sendo) o modo de
inferência do real mais prestigiado entre os pensadores e cientistas. Mas, a antecipação do
futuro pelo conhecimento dos padrões de comportamento do real acabou também por
gerar a soberba da razão, que imagina poder capturar o mundo todo em suas abstrações
ideacionais.
Traduzindo-se toda a amplitude do logos como ratio, privilegiam-se a
medida e a norma e se abre caminho para um dogmatismo que, a
pretexto de adesão à gravidade do pensamento, desconhece,
irrefletidamente, a potência emancipatória contida na ilusão, na emoção
do riso e no sentimento de ironia. Esse dogmatismo decorre da idéia do
logos como redução da diversidade do real (a infinitude de opostos, o
mistério da diferença) no império da unidade. (SODRÉ, 2006, p. 25)
Elaborada como método para alcançar o bom pensamento, a lógica se tornou
sinônimo de inteligência, na medida em que essas duas instâncias visam o conhecimento
interno dos padrões e códigos que regem a manifestação das coisas. Aliadas, ambas
abstraem mentalmente as identidades que emergem com os fenômenos, para procederem a
suas classificações, generalizações e especificações das características comuns entre as
coisas, de modo a criar conceitos sobre o real. Conceitos que são blocos de ideias, com os
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quais a mente constrói um mundo abstrato, fixo e protegido do atrito transformador que a
diversidade do real impõe.
Esse mundo lógico que se constitui por meio da cognição intelectual torna-se o
molde abstrato em que o mundo real deve se encaixar, independentemente das
consequências, para justificar as previsões (os pré-conceitos) do pensamento racional.
O processo de inferência lógico-intelectual desenvolvido pelo logos filosófico há
milênios divide-se em etapas aparentemente conscientes, devido a seu viés analítico,
partindo do sujeito do conhecimento, até alcançar o conhecimento do sujeito (objeto).
Nesse percurso, muitas vezes, o conhecimento racional acumula hábitos intelectuais tão
sedimentados que nos esquecemos de questionar sua validade, para emprestar verdade a
conclusões geradas por fórmulas abstratas que nem sempre garantem mais conhecimento
do real, do que uma intuição estética poderia oferecer.
Conceito contemporâneo de conhecimento
Ainda influenciada pelo ideal moderno, a sociedade atual tende a adjetivar o
conhecimento com o qualificativo ‘científico’. Esse cientificismo generalizado, no entanto,
é um grave limitador da noção de conhecimento. “Em uma análise mais detalhada, até
mesmo descobrimos que a ciência não conhece, de modo algum, ‘fatos nus’, mas que todos
os ‘fatos’ de que tomamos conhecimento já são vistos de certo modo e são, portanto,
essencialmente ideacionais”. (FEYERABEND, 2007, p. 33) Por conta disso, o
conhecimento científico não está isento de idealizações e de ideologias que se colocam
como filtros diante da realidade. Se não houver entre nós uma aplicação de outras formas
de conhecimento para contrastar-se com o viés cientificista, e dar limites a este, ficamos
sempre sujeitos a ideologias que se tornam perigosas, porque travestem-se de “provas
irrefutáveis” extraídas de “métodos comprováveis”, que muitas vezes nos obrigam a aceitar
preconceitos no lugar de realidades.
Hoje é preciso considerar que...
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o conhecimento não é uma série de teorias autoconsistentes que
converge para uma concepção ideal; não é uma aproximação gradual à
verdade. É, antes, um sempre crescente oceano de alternativas mutuamente
incompatíveis, no qual cada teoria, cada conto de fadas e cada mito que faz
parte da coleção força os outros a uma articulação maior, todos
contribuindo, mediante esse processo de competição, para o
desenvolvimento de nossa consciência. (FEYERABED, 2007, p. 46)
Portanto, “[É] aconselhável deixar as próprias inclinações irem contra a razão em
quaisquer circunstâncias, pois isso deixa a vida menos restrita e pode beneficiar a ciência”.
(FEYERABED, 2007, p.169) A pesquisa científica, assim, ganha muito quando seus agentes
agem de maneira “artística”, experimentando mais esteticamente seus objetos de estudo, do
que apenas arrumando logicamente os elementos para se encaixarem confortavelmente no
paradigma antecipatório.
Ao inventar teorias e contemplá-las de maneira relaxada e “artística”, os
cientistas com freqüência empregam procedimentos proibidos por regras
metodológicas. Por exemplo, interpretam a evidência de modo que se
ajuste a suas idéias extravagantes, eliminam dificuldades mediante
procedimentos ad hoc, colocam-nas de lado ou simplesmente recusam-se
a levá-las a sério. (FEYERABEND, 2007, p. 209)
De fato, “a ampla divergência entre indivíduos, escolas, períodos históricos e
ciências inteiras torna extremamente difícil identificar princípios abrangentes, quer de
método, quer de fato. A palavra ‘ciência’ talvez seja uma única palavra – mas não há uma
entidade única que corresponda a essa palavra”. (FEYERABEND, 2007, p. 319) Portanto,
fiar-se na ideia de ciência (ou no cientificismo) como ápice do desenvolvimento cognitivo
de nosso tempo seria negligenciar outras formas de conhecimento, que ao fazer fronteira
com a ciência conseguem inclusive conformá-la aos seus próprios parâmetros. Assim,
entendemos que o CNPq é uma instituição, cuja finalidade de fomentar pesquisas conduza
à ampliação do conceito de conhecimento que, por sua vez, apresenta-se de variadas
formas.
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Conhecimento filosófico
Em grande parte de sua obra, Platão ocupa-se em defender a “nova” forma de
conhecimento, a filosofia, enquanto combate de maneira sistemática a sofística e a
mitologia de seu tempo. Em A República, livro X, os poetas, bardos e rapisodos, assim
como os pintores e dramaturgos, são julgados severamente por Platão ao implantarem “na
alma dos indivíduos a má conduta” e criarem “fantasmas a uma distância infinita da
verdade” (CAUQUELIN, 2005, p. 29). Em função da advertência platônica contra o modo
mitológico de conceber o mundo, as artes (que à época confundiam-se com as narrativas
dos mitos) sucumbiram ao preconceito e à desconfiança dos pensadores e só puderam ser
aceitas como uma qualidade intrínseca da moral e manifestação da harmonia do mundo
racional; qualquer outro emprego da atividade artística resvalaria para o mito, falsidade,
ilusão ou, pior ainda, em revolta contra a ‘república’ idealista.
O belo, para Platão, é o rosto do bem e da verdade. São três princípios
intimamente ligados: nada pode ser considerado belo se não for
verdadeiro; nenhum bem pode existir fora da verdade. Essa tríade é o
princípio da ordem que dá acesso à inteligibilidade e sem a qual o mundo
seria apenas caos. Esse princípio único (e de unicidade) que dá aos seres
sua consistência não pode ser encontrado no diverso, no heterogêneo,
no misturado, no sensível, nos fenômenos nem, evidentemente, na arte
tal como é praticada. (CAUQUELIN, 2005, p. 31)
A clara intenção de Platão, assim como de seus posteriores, era subtrair a
componente mitológica da manifestação artística e submetê-la à ordem do logos. Desde
então, o projeto filosófico do ocidente foi reduzir a complexidade do mundo sensível à
uniformidade da abstração. Por isso, já era consensual entre os clássicos, que o logos
habitava os fundamentos das linguagens verbal e matemática (já então consideradas as
únicas ferramentas legítimas do conhecimento humano), com a missão de afastar o
pensamento da entropia – e prevenir-nos do abismo caótico dos afetos.
Conhecimento científico
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A ciência, tal como a entendemos hoje, nasce com a era moderna e o método
cartesiano, pois antes disso seu campo de investigação e seus objetos eram cobertos pelo
que se entendia como ‘filosofia da natureza’. Essa origem revela duas questões importantes,
sendo a primeira delas o fato de que a ciência é tributária do pensamento filosófico, pois a
busca sistemática da verdade, preocupação maior da ciência, foi herdada da filosofia. Sua
outra preocupação fundamental provém do respeito à autoridade dos antigos mestres, pela
maneira com que busca preservar suas teorias e seus métodos.
Atada de vários modos ao grande campo da filosofia, a ciência ainda visa o objetivo
pelo qual se constituiu, qual seja, sua característica metodológica de previsão e antecipação
dos fatos para a consecução do domínio e do poder sobre a natureza (aí incluído o ser
humano).
Tanto na filosofia, como na ciência, por muitos séculos buscou-se o padrão, a regra,
a norma, a lei, e desprezou-se o irregular e o anormal. Como a norma, o padrão, a regra
coadunam-se com o pensamento abstrato, antes de baixar à empiria o pesquisador deveria
ater-se aos conceitos previamente construídos pelas premissas evidentes, respeitando as
conclusões já elaboradas em silogismos de valores constantes, determinados lá atrás, por
uma teoria aceita pelos pares. Tudo o mais, ou seja, todo o esforço investigativo do
cientista deveria focar-se na comprovação das regras universais do pensamento ou na
descoberta das relações de determinação impostas pelos conceitos abstratos ao mundo
concreto. Não existe, portanto, ciência do particular - é a ideia universal prevalecendo
sobre as “ilusões movediças” do mundo sensível.
Conhecimento estético ou sensível
Embora as principais correntes de pensamento à época estivessem fortemente
inclinadas a cuidar tão somente da “realidade abstrata” das ideias, o humanismo do século
XVIII também produziu “materialistas” que entendiam haver no homem não apenas uma
razão ‘soberana’, mas também um corpo capaz de sentir o mundo, ou seja, conhecer o real
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a partir de sua sensibilidade. Dentre esses pensadores, Alexander Baumgarten buscou em
seus escritos por uma ciência que conduzisse ao conhecimento sensível (cognitio sensitiva) do
mundo.
A estética nasceu como um discurso sobre o corpo. Em sua formulação
inicial, pelo filósofo alemão Alexander Baumgarten, o termo não se
refere primeiramente à arte, mas, como o grego aisthesis, a toda a região
da percepção e sensação humanas, em contraste com o domínio mais
rarefeito do pensamento conceitual. A distinção que o termo ‘estética’
perfaz inicialmente, em meados do século XVIII, não é aquela entre
‘arte’ e ‘vida’, mas entre o material e o imaterial: entre coisas e
pensamentos, sensações e idéias (...) (EAGLETON, 1993, p. 17)
As mais diversas epistemologias existentes constituem suas divisões do
conhecimento aproximadamente da mesma maneira, classificando-os em pensamento
mitológico, filosófico, científico e de senso comum. A estética, por sua vez, é considerada
uma disciplina normativa (porque dita normas às artes), juntamente com a ética e a lógica.
E essas três disciplinas estariam subordinadas à filosofia, que as fundamenta com seus
princípios metafísicos.
Em nosso entender, contudo, a ideia baumgarteniana de estética como ciência da
cognição sensível capaz de gerar um conhecimento do real pela via da percepção inaugura
todo um campo de pesquisas e formação de conhecimentos que, embora se avizinhe da
filosofia na forma de um analogon rationis, tem características autônomas próprias que a
impedem de reduzir-se ao campo da reflexão ou da ciência.
A estética contemporânea não se limita mais a discutir parâmetros ou cânones para
a fatura artística, os efeitos patêmicos de sua manifestação e a (in)definição da arte, mas
ampliou seu espaço para alcançar também as questões relativas à percepção e sensibilidade,
oferecendo interfaces com as teorias da percepção e ciências cognitivas. Ao deixar de ser
automaticamente sinônimo de filosofia ou teoria da arte, a estética se torna um campo do
conhecimento que processa suas informações a partir da percepção de fenômenos sensíveis
provenientes do mundo real, gerando inferências inconfundivelmente diversas da filosofia,
da ciência e do senso comum. Desse modo, a estética não pode ser entendida como um
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ramo da filosofia geral, devido a natureza diversa com que produz conhecimento. Aquilo
que mais bem caracteriza o pensamento filosófico, por exemplo, está no trabalho
desenvolvido pelo filósofo, cuja atividade precípua é a invenção de conceitos.
O filósofo é o amigo do conceito, ele é o conceito em potência. Quer
dizer que a filosofia não é uma simples arte de formar, de inventar ou
fabricar conceitos, pois os conceitos não são necessariamente formas,
achados ou produtos. A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que
consiste em criar conceitos. (...) Os conceitos não nos esperam
inteiramente feitos, como corpos celestes. Não há céu para os conceitos.
Eles devem ser inventados, fabricados ou antes criados, e não seriam
nada sem a assinatura daqueles que os criaram. (DELEUZE, G.,
GUATTARI, F., 2009, p. 13)
Ao constituir-se num tipo de pensamento que cria conceitos para representar o
mundo em nossa mente, a filosofia se distingue nitidamente da estética, porque esta
engendra a cognição do mundo sem conceituá-lo, sem criar o duplo da representação,
porém presentificando as coisas por meio da experiência de sua percepção e do ataque aos
sentidos ocasionado pela proximidade com o real.
A filosofia preocupa-se com o que os gregos chamam nous (mente), que comporta
o mundo das ideias, teórico e espiritual, enquanto que a estética tem por preocupação a
formação de conhecimento a partir do que os mesmos gregos chamam de physis (matéria),
que abarca o mundo físico dos corpos confusos em atrito inconstante. Segundo Friedrich
NIETZSCHE, "a estética não passa de fisiologia aplicada" (1999, p. 53).
Como contrapartida ao pensamento científico-filosófico a revolução silenciosa da
estética abre espaço para a elaboração de uma ideia de cognição sensível denominada por
Jacques RANCIÈRE de “não-pensamento”; em suas palavras,
... existe pensamento que não pensa, pensamento operando não apenas
no elemento estranho do não-pensamento, mas na própria forma do
não-pensamento (analogon rationis). Inversamente, existe não-pensamento
que habita o pensamento e lhe dá uma potência específica. Esse nãopensamento não é só uma ausência do pensamento, é uma presença
eficaz de seu oposto. (2009, p. 34)
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Se traduzirmos o “não-pensamento” de Rancière para o que entendemos como
uma cognição estética, podemos observar que diversos autores contemporâneos aceitam
haver formas de conhecimento não submetidas à representação lógica derivada de
conceitos. De fato, embora a filosofia e a ciência sejam modos de inferência distintamente
próprios, esses campos do conhecimento têm por objetivo derradeiro formar conceitos
sobre o real, ao passo que a estética gera conhecimento inconcebível do mundo. Por esse
motivo, os que inadvertidamente colocam a estética sob as comportas categoriais da
filosofia, na forma de um departamento do grande campo reflexivo (como filosofia da
arte), enganam-se ao submeter tanto a filosofia, quanto a estética, ao mesmo objetivo
cognitivo.
Atualmente, a “recognição e a representação [atividades reflexivas da filosofia e da
ciência], ainda que úteis do ponto de vista da sobrevivência do homem em sua cultura, são
ultrapassadas em favor de um pensamento que ousa criar novos parâmetros e novas
formas de existência”. (SCHÖPKE, 2004, p. 174) Este nada novo tipo de pensamento
atende pelo nome de estética, por que está vinculado a “novas” formas de perceber o
mundo, de fato, arrancadas ao domínio milenar imposto pelo logos. Este velho-novo
conhecimento estético emerge das ruínas do logocentrismo moderno, que não teve mais
como conter em seu abstrato quadrado lógico toda manifestação do mundo real
comunicada pelas mídias audiovisuais que, por sua vez, influíram no resgate da
sensibilidade humana há dois milênios sequestrada e aprisionada pela tradição do
pensamento suprassensível.
Portanto, manter a estética como um instrumento conceitual auxiliar da reflexão
filosófica sobre as artes tornou-se insustentável, porque a filosofia não pode abstrair
conceitos sobre as artes, e a produção artística já é bem pesquisada pelas teorias da arte,
que vêm constituindo um enorme patrimônio cultural em seu campo. Por outro lado,
como conhecimento autônomo a estética pode voltar a pensar o real sem abstrair dele seu
movimento singular.
A comunicação do conhecimento científico-filósofico
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A obrigatoriedade da produção de um texto verbal (e/ou matemático) para
comunicar a pesquisa realizada condena a produção científico-filosófica à redução das
investigações sobre o real à forma linguística. Trata-se, ainda, da submissão institucional à
tradição do conhecimento como capacidade de “nomeação” de fenômenos. Isso se deve
muito provavelmente à crença arquetípica de que a estrutura da linguagem verbal
representa e corresponde à estrutura da realidade (ECO, 2002, p. 51) Até a Idade Média, a
Torá, suas palavras e códigos, era vista como o esquema que Deus utilizou para criar o
mundo. No livro de Gênesis, capítulos 10 e 11, o Criador ensina a Adão o “nome” que
corresponde às coisas. Desse modo, a língua perfeita que emularia completamente o
mundo das ideias eternas se torna um projeto de Dante (De vulgari eloquentia), avança com o
mesmo propósito entre os gramáticos de Port Royal no século XVII, ganha cientificidade
com a filologia oitocentista e pode ser reconhecida nos critérios que estabelecem a
gramática gerativa de Chomsky. A força da tradição ainda visa submeter todo e qualquer
conhecimento auferido pela pesquisa ao garrote da gramática e/ou da matemática, ambas
technè do logos.
Como registro tradicional de conhecimento a escrita tipográfica não inventou a
causalidade, a simetria, a uniformidade, a univocidade, a linearidade, a teleologia, nem
sequer a lógica, uma vez que tais conceitos são conhecidos dos seres humanos desde muito
tempo. Contudo, a regularidade homogênea com que as palavras são dispostas em um
impresso, a isonomia gramatical, morfológica e ortográfica de seus textos oferecem
tamanha estabilidade e universalidade aos preceitos lógico-linguísticos, que ao longo dos
últimos quinhentos anos a cultura ocidental conformou-se completamente àqueles valores,
constituindo com eles os fundamentos de nossa consciência sobre o mundo.
A cultura do livro impresso, desde a invenção de Gutenberg, reinou
soberana durante pelo menos quatro séculos. Entretanto, a multiplicação
crescente, a partir da Revolução Industrial, dos meios de produção de
linguagem veio colocar em crise a hegemonia da cultura livresca, também
chamada de era de Gutenberg. Estendendo-se do século XV até o XIX,
essa foi a era das letras, quando a linguagem verbal escrita dominou
como produtora e difusora do saber e da cultura. Nas seculares
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universidades européias, incrementadoras do desenvolvimento da ciência
moderna e fontes de inspiração para os ideais iluministas, o livro
encontrou morada privilegiada, desempenhando sua função de registro e
transmissão do saber humanista e científico. O primeiro grande golpe na
hegemonia do livro e da cultura das letras foi dado pela invenção da
fotografia. (SANTAELLA, 2001, p.391)
Novos registros de conhecimento
Com o advento e a posterior massificação das mídias audiovisuais, o registro e
transmissão das imagens, sons e movimentos do mundo permitiram a revelação de sua
complexa existência material e concreta, que a linguagem verbal (na forma de livros e
outros impressos) jamais pôde representar, porque só comunica ideias gerais sobre as
coisas, e nunca poderá presentificá-las em suas singularidades.
Se considerarmos o livro como a grande mídia da modernidade, não podemos
desprezar o papel das mídias audiovisuais para o registro e comunicação do conhecimento
na contemporaneidade. Diferentemente do léxico e da gramática dos textos verbais,
apropriados para a comunicação de utopias, a sintaxe e as mensagens dos textos
audiovisuais estão bem mais aptos a representar e emular a empiria dos fatos concretos do
mundo real.
A mundialização da audiovisualidade recoloca a questão da aisthesis no âmbito do
conhecimento, porque o registro e a transmissão de imagens, sons e movimentos
popularizaram alguns tipos de mensagens estéticas. Daí a necessidade de adquirir
competência no âmbito do conhecimento sensível.
Em relação às escrituras verbais, portadoras privilegiadas do logos, as mídias
audiovisuais – que também comunicam sua versão do logos – põem em circulação textos
estéticos que oferecem ao perceptor um conhecimento diferente daquele auferido pelos
conceitos abstratos transmitidos por livros, artigos e outros impressos. Esse conhecimento
provém majoritariamente de linguagens audiovisuais (imagética, sonora, musical, cinestésica
etc.) que simulam o real, produzindo efeitos virtuais de presença das coisas.
O registro tecnológico da imagem, do som e do movimento permitiu o
desenvolvimento da representação das coisas, diferentemente da representação das ideias
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gerais sobre as coisas, oferecida pela escrita verbal e matemática. Essas outras linguagens
são um desafio para o pensamento tradicional, por conta de sua ‘excessiva’ materialidade o audiovisual nos apresenta o mundo denso, variado, caótico, no lugar do monocromático
conceito abstrato comunicado pelas letras e números.
[A] linguagem real não é um conjunto de signos independentes,
uniforme e liso, em que as coisas viriam refletir-se como num espelho,
para aí enunciar, uma a uma, sua verdade singular. É antes coisa opaca,
misteriosa, cerrada sobre si mesma, massa fragmentada e ponto por
ponto enigmática, que se mistura aqui e ali com as figuras do mundo e se
imbrica com elas. (FOUCAULT, 1999, p. 47)
Ao contrário dos textos verbais e matemáticos, que comunicam adequações
abstratas do real, os textos audiovisuais comunicam sensações cinéticas, óticas e sonoras da
presença do real, independentemente de seu potencial para a criação de mundos fantásticos
e virtuais. Nessa operação, as mensagens audiovisuais deixam vazar a complexa diversidade
do mundo constituída de particularidades, singularidades e acidentes, revelando-nos o
imenso abismo que separa o conceito de uma coisa, do rastro de sua presença no mundo.
Quando as mídias audiovisuais se globalizaram, a sociedade escolheu tomar conhecimento
do mundo por meio da reprodução de seus movimentos, sons e imagens, mais do que pela
representação de ideias semânticas acerca do real.
A mudança do texto verbal para os textos audiovisuais não se trata de mera questão
formal ou tecnológica. Quando se altera a forma de uma mensagem, por exemplo, de
literária para audiovisual, modifica-se profundamente a natureza do conhecimento
comunicado. Surgem dessa transformação novos conhecimentos que precisam ser
socializados.
Daí segue uma importante questão insuperada pelo CNPq, Capes e centros
acadêmicos de ensino superior: nenhuma dessas instituições permite que a defesa, a
apresentação e/ou o registro de uma pesquisa seja compilado e comunicado em mídia
audiovisual ou apresentado em performance, sem que paralelamente um texto verbal lhe dê
suporte e garanta a inteligibilidade do conhecimento construído pelo pesquisador. Esse
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excessivo tradicionalismo pode ser debitado ao temor que a cultura letrada mal disfarça em
relação ao avanço das linguagens audiovisuais.
Conhecimento estético
Enquanto o conhecimento lógico se interessa pela leitura interna [intus (dentro) +
legere (ler) = intelecção] dos padrões e leis que causam e determinam as coisas, o
conhecimento adquirido pela estética educa a percepção para a leitura das manifestações
provenientes da coisa por si mesma, desenvolvendo assim a leitura sensível de sua
existência no mundo e na interrelação com as outras coisas particulares que habitam a
vizinhança. Por exemplo, um esportista sabe imprimir (causar) um efeito na bola
produzindo uma curvatura em seu trajeto, com a aplicação da força cinética de seu chute,
atingindo assim o seu objetivo. Ele faz isso sem o concurso de cálculos de balística, nem
reflexões sobre a resistência do ar em movimento, muito menos sondando a ontologia da
bola como um ser.
De fato, cremos que seja a estética3 o primeiro conhecimento humano, quando
ainda se processava a linguagem verbal primitiva. Foi a percepção, mais do que a
intelecção, que garantiu nossa sobrevivência e prosperidade enquanto a linguagem verbal
ainda não simulava adequadamente as ideias sobre o mundo. Esse primeiro conhecimento,
amortecido e amordaçado pela hegemonia do logos, precisa ser novamente ativado, de vez
que novas exigências comunicativas emergem com a mundialização da audiovisualidade e
da tatilidade.
Estética – (gr. Aisthetikòs) esta palavra provém da raiz grega aisthesis (sensação, sentimento) em
junção com o termo technè (ciência, técnica) e significa “conhecimento sensível”, “aquele que
conhece pelos sentidos físicos”. A palavra ‘estética’ em sua primeira significação não está
diretamente vinculada às artes, mas a um modo de conhecimento pela via da percepção de sinais
captados do mundo real (no qual se encontram também os textos da cultura), diferindo-se do
conhecimento intelectual, que se alcança pela antecipação lógica dos padrões de comportamento do
mundo real (e dos textos da cultura).
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Portanto, a estética deve ser reconhecida na cena cultural como uma disciplina
dedicada ao desenvolvimento e aplicação da cognitio sensitiva no âmbito da pesquisa em
novos conhecimentos. Como contraparte à leitura interna (intus + legere = inteligência), a
leitura sensível (estética) não é um inventário ligeiro de aparências e superficialidades do
senso comum. Enquanto a leitura interna (intelectual) se interessa apenas pelo mundo
invisível e insensível das leis, normas e padrões que atuam sobre as coisas e eventos, sem
considerar a materialidade de suas existências individuais, a leitura sensível dedica-se à
cognição estética das qualidades fenomênicas das coisas e eventos reais que afetam a
percepção humana.
Além disso, a maioria das novidades, especialmente as científicas, tem início com a
leitura sensível (percepção) de fenômenos ainda não compreendidos (conceituados).
Somente quando a leitura estética do evento ou da coisa é realizada com eficiência, torna-se
possível sua adequada leitura interna, ou seja, a dedução das leis e normas que regem os
fenômenos percebidos. A leitura sensível do mundo é a melhor garantia contra os
devaneios intelectuais da razão.
A “utilidade” da arte
O estabelecimento de um estatuto autônomo para arte/estética, liberto das
prescrições religiosas, independente do mecenato aristocrático, do comércio e das censuras
políticas, conduz à criação de obras de artes que valem por si mesmas e dispensam critérios
de utilidade ou do cumprimento de funções alheias ao campo artístico. Este conceito de
autonomia da arte desenvolve-se sob o preceito romântico da “arte pela arte” em conexão
com a ideologia burguesa a partir de fins do século XVIII.
Embora se possa propugnar pela autonomia do campo da estética (arte) como um
conhecimento diverso da ciência ou da filosofia, a ideia excessivamente ingênua da
“inutilidade” da arte como pressuposto de sua independência cognitiva em relação à lógica
filosófica, científica ou tecnológica (conhecimentos “úteis”), não resiste ao um exame mais
detalhado. Mesmo considerando-se a arte como revolucionária, subversiva da percepção
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comum e problematizadora da existência, que nos perdoem os românticos de todos os
séculos, mas a arte é histórica, influenciada por valores filosóficos, socioculturais,
econômicos e políticos. A independência da arte em relação a tais influências é tão frágil
quanto a constante luta da ciência para se separar da ideologia.
Não queremos dizer com isso, que a arte deva voltar a ter “utilidade” na edificação
da moral religiosa, por exemplo, emulando a crença espiritual na forma de pinturas,
músicas, esculturas ou performances. Assim como também não estamos concluindo que a
arte perdeu sua autonomia ao ser massificada ou empregada tão-somente como ilustração
de propaganda comercial ou política.
Em seu famoso livro “A estrutura das revoluções científicas”, Thomas KUHN
aponta para a “periodização em termos de rupturas revolucionárias de estilo...” (2007, p.
258) da literatura, da música, das artes, de modo a exemplificar sua ideia de “quebra de
paradigmas”, e demonstrar a não-linearidade e a historicidade do desenvolvimento
científico. Ao empregar a arte para explicar o desenvolvimento histórico da ciência, de certa
forma Kuhn sugere sua “utilidade” fora de seu campo de produção e manifestação. Mas, a
arte teria outras “utilidades” além de ser paradigma da história científica?
Como foi sugerido anteriormente, a cognição estética gera um tipo de
conhecimento que não pode ser negligenciado, sob pena de se constituir um
desenvolvimento cognitivo claudicante e ineficiente para a apreensão do real. É preciso
considerar que não há o que inteligir, sem antes perceber, ou seja, a percepção humana é
sempre anterior à intelecção. Mesmo quando ideias abstratas são transmitidas sem a prévia
experimentação, de mente para mente por meio de palavras e números, devemos nos
lembrar que no princípio dessa cadeia de conceitos houve uma experiência que lhe deu
partida. Não se trata aqui de entrarmos no mérito das discussões sobre o inatismo, mas
certamente explicitar a função da percepção estética (aisthetikòs como teoria da
sensibilidade) na experiência que, posteriormente, irá gerar a ideia. E mesmo considerandose os instrumentos laboratoriais, que geram experiências científicas para desmentir ou
comprovar conceitos epistemológicos, devemos entender que tais equipamentos são
próteses das percepções humanas que estão por detrás deles para fazer a leitura do real.
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Desse modo, é correto supor que uma percepção estética mais bem educada
conduz a uma intelecção mais apurada. Portanto, uma sólida educação estética deveria fazer
parte da formação de cientistas e pesquisadores, não apenas em função de seu caráter
humanístico ou para adquirir competência de outros campos do conhecimento, mas
também para aperfeiçoar sua habilidade de perceber novos fenômenos, intuir novas
abordagens de fenômenos conhecidos ou criar outras experiências para se aproximar de
seus objetos de estudo.
A estética (e a arte como sua experiência concreta) é um conhecimento obscuro
apenas para aqueles que se negam a experimentar sua ciência. Por transitar na fronteira
epistemológica (entre aquilo cujos padrões são detectáveis e aquelas coisas que fogem ao
domínio da lógica), a estética (e as artes) não deve ser evitada ou temida, mas utilizada como
um batedor em terra ignota, de vez que a boa pesquisa aponta sempre para o desconhecido.
Em vista disso, propomos ao CNPq o alargamento de sua abordagem em relação à
pesquisa em arte, não apenas pelo seu valor pedagógico implícito, mas também como uma
“tecnologia” de sensibilização que reflete positivamente na criatividade e no
desenvolvimento cognitivo de cientistas e pesquisadores de quaisquer outras áreas.
E por assim dizer, gostariamos de expor aqui algumas formas de pesquisa em arte sem prejuízo de outras classificações - que contribuem para uma educação estética a ser
empregada no aperfeiçoamento da percepção de fenômenos reais.
Formas de pesquisa em arte
Sem deixar de ser arte nem desconsiderar seu principal objetivo de desenvolver o
conhecimento estético, porém, propugnando por uma aproximação com os requisitos da
ciência - dentro do modelo proposto pelo CNPq -, entendemos que a produção artística
pode realizar pesquisas em seu próprio campo e, ao mesmo tempo, contemplar outros
interesses do ponto de vista científico-tecnológico.
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Em vista disso, certos parâmetros podem ser colocados em discussão, como
apropriados para um intercâmbio mais aproximativo entre a produção artística e a
produção científica.
De início não devemos imaginar que a arte seria aqui transformada em
“treinamento” para a boa intelecção científica, mas considerar desde já a educação da
sensibilidade, por si mesma, como um objetivo cognitivo independente. Entretanto, é dessa
relativa autonomia que emerge o desafio que a estética sempre propõe à lógica, pois é lá, no
âmbito da estética, que nascem as possibilidades de um novo conhecimento.
E para educar a percepção de maneira que ela nos predisponha ao estranhamento
do novo devemos aprender a abolir ou suspender temporariamente o automatismo lógicocientífico ou lógico-filosófico. Embora seja um exercício anti-intuitivo para cientistas e
filósofos, estão justamente nos breves instantes em que ocorre a cognição estética o
vislumbre do além-fronteira e o contato com o desconhecido. É nesse aspecto ultramontano
que o conhecimento sensível se produz, por exemplo, nas seguintes áreas da pesquisa em
arte:
Fronteira epistemológica
Há várias produções artísticas que permitem aos perceptores a experiência limítrofe
da sensação de suspensão das leis naturais e, assim, no aquém-além da sensação de
regularidade/irregularidade o fruidor experimenta a ‘fronteira epistemológica’, exercitando
sua sensibilidade de modo a perceber com mais facilidade a ocorrência de padrões ou a
insistência da entropia.
Criatividade – embora não seja domínio exclusivo da arte, pois a criatividade
ocorre em todos os campos de conhecimento humano, o chamado “estado da arte” surge
num campo quando alguém inova métodos, equipamentos, abordagens ou teorias,
rompendo com padrões e antigas leis ou paradigmas. As produções artísticas, por sua vez,
são sempre criativas - mesmo quando obedecem a estilos e gêneros bem definidos ou
quando são interpretações de obras existentes -, de vez que são criadas ou ‘recriadas’ pela
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subjetividade dos autores/intérpretes. Ou seja, a criatividade emerge da competente
atuação da subjetividade na superação ou no rompimento das regras objetivas de um dado
sistema.
Sensibilização – a arte tem seus próprios meios de persuasão, e a velha e boa
fórmula da retórica clássica para a eficiente performance oratória recomenda aos artistas o
tríptico docere, delectare e commovere, ou seja, educar, deleitar e comover. Com o tempo a arte
deixou de ser meramente técnica auxiliar na edificação da moral ou da ideologia vigentes,
mas conservou sua habilidade de entreter e comover, enquanto educa a sensibilidade para a
percepção dos paradoxos culturais e para a idiossincrasia dos sentimentos humanos. Desse
modo, a sensibilidade apurada pela arte permite estranhar o senso comum, isto é,
desnaturalizar (desautomarizar) conceitos arraigados, conduzindo-nos a vê-los por ângulos
inusitados - como também convém à observação científica dos fenômenos naturais.
Educação estética – desde os primeiros registros externos do conhecimento
humano (as pictografias pré-históricas), até o surgimento das diversas escritas, a educação
dos sentidos para a leitura de símbolos tornou-se fundamental para a divulgação do
conhecimento. Como na atualidade dispomos de outras mídias além da escrita verbal, se
faz necessário educar os sentidos para a leitura de sua comunicação. Tanto os conceitos
traduzidos em palavras e/ou números, quanto o movimento, o som e a imagem
comunicam informações e conhecimentos imprescindíveis para a ciência, como para
quaisquer outros campos do saber. A arte, por sua vez, ao experimentar e produzir obras e
eventos baseados em movimento, som e imagem torna-se um exercício fundamental para a
educação da percepção humana, condição necessária e anterior à intelecção.
Marco regulatório da pesquisa em arte
O estabelecimento de um ‘marco regulatório’ para a pesquisa em arte não visa
definir o que é ou não é a arte, nem preestabelecer cânones antecipatórios como fronteiras
instransponíveis à criatividade artística, muito menos limitar a prática artística individual e
das instituições de ensino ou ‘logicizar’ a arte. Sua propositura tem por intenção o convívio
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e o relacionamento eficientes com uma instituição de direito público (CNPq) que
demanda, por força de lei, o estabelecimento de regras e critérios para o fomento da
pesquisa.
Ao propormos esta questão epistemológica ao CNPq, o principal interesse é dar
continuidade a um amplo debate, cuja finalidade precípua é desenvolver um ‘marco
regulatório’ que estabeleça critérios, segundo os quais o investimento na pesquisa em arte,
apoiado pelo CNPq, seja mais bem organizado e tenha oportunidade de se estabelecer em
paridade com os demais campos do conhecimento.
REFERÊNCIAS
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