http://dx.doi.org/10.5965/2175234608152016004
EPISTEMOLOGIA DA ARTE: O FRUIDOR E O
OBJETO DE ARTE
EPISTEMOLOGY OF ART: THE FRUITION AND ART
OBJECT
Tiziana Cocchieri¹
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Resumo
Por meio deste artigo, trazemos uma
perspectiva da relação sujeito/objeto, fruidor/objeto de arte1, refletida no prisma das
implicações presentes no processo de construção de significado da leitura de imagem.
As considerações apontadas são tecidas a
partir do objeto de arte, traduzidas por meio
da multiplicidade de leituras possíveis, que
fornecem subsídios enfatizando a subjetividade como volição, porém, dissertando a
partir de caminhos de significação objetiváveis. Para explicitar esta relação, o primeiro
aspecto a ser exposto diz respeito ao caráter
expressivo da necessidade da razão como
parte do processo que faz emergir significado, considerando extremos conceituais e os
conteúdos de verdade das múltiplas facetas
do objeto de arte, fundindo-se ao conteúdo
crítico deontológico. O segundo ponto, parte da tese sobre a qual a arte se delineia mediante espaço conceitual, formado a partir
da subjetividade que se inicia no sujeito que
configura o objeto. Neste contexto, os objetos de arte apontam para a subjetividade do
artista e do fruidor na construção de sentido,
por meio de um processo imbricado de criação, em que seu contraponto se apoia sobre
a objetividade da realidade material do objeto reverberada através do repertório conceitual do sujeito. Trazemos também para este
contexto a autonomia presente na construção de significação conceitual enquanto
substrato de verdades possíveis, com intuito
de delinear campos de significação.
Palavras-chave: Epistemologia. Objetividade. Subjetividade. Fruição. Objeto
de arte.
1
Usamos o termo em sentido composto, por não possuir status de
um objeto qualquer, porém, traz consigo uma identidade; em termos benjaminianos, uma aura. Este termo encontra-se descrito no artigo de Walter Benjamin, publicado em 1955: A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica.
Tiziana Cocchieri
Abstract
In this article, we present a perspective on the subject / object, spectator / object
ofart relations, reflected through the prism
of the implications present in the meaningmaking process of image reading. The mentioned considerations are woven from the art
object, translatedthrough the multiplicity of
possible readings. These readings emphasize
subjectivity as volition,however, expounding
from paths of objective significance. To explain this relationship, we firstexplain the expressive character of the need for reason as
part of the process that brings outmeaning,
considering the extreme conceptual and real
content of the multiple facets of the artobject, merged with critical ethical content.
The second part of the thesis holds that art
is delineated by a conceptual space, formed
from the subjectivity that begins in the subject that sets up the object. In this context,
art objects point to the subjectivity of the
artist and the spectator in the construction
of meaning, through an elaborate creation
process. The counterpart to this process is
based on the objectivity of the real material object , which reverberates through the
conceptual repertoire of the subject. We also
bring to this context the autonomy present
in the construction of conceptual significance as substrate possible truths, in order to
delineate significant areas.
Keywords: Epistemology. Objectivity.
Subjectivity. Fruition. Art object.
ISSN 2175-2346
Professora assistente na Universidade Federal de Rondônia – UNIR
Porto Velho – RO
[email protected]
Palíndromo, v8, nº 15, p.4-19, jan/jun 2016
5
Procuramos partir da perspectiva das artes visuais para expor a relação entre
fruidor e objeto de arte, buscando no repertório teórico da epistemologia filosófica
a similitude que perpassa esta relação, com intuito que esta forneça corolário lógico-argumentativo para a compreensão da construção de significado na elaboração
de leitura de imagem. A relação sujeito/objeto é recorrente ao longo de toda história
da filosofia e tema central no que tange pesquisas sobre epistemologia, pois trata da
relação entre o sujeito que observa e interpreta seu entorno e o objeto que é analisado e lido por este sujeito. Como este tema é bastante extenso e cheio de imbricações complexas, não pretendemos criar digressões em seu entorno. Logo, faremos
um recorte para atender ao nosso propósito, que abranja o contexto da polarização
clássica: sujeito (teor de subjetividade representacional)/objeto (mundo a ser interpretado) apresentado por um ponto de partida específico, a saber, a leitura feita pelo
fruidor (sujeito) sobre o objeto de arte (objeto).
De modo distinto ao da dicotomia clássica sujeito/objeto, a natureza imagética
da arte nos permite abordar essa relação por meio de uma tricotomia esquematizada
por: fruidor, representação mental, objeto de arte; estes presentes em um processo
relacional entrelaçado, indissociável e irredutível da/na fruição estética. O foco acaba por ser direcionado para responder às questões: O que há de objetivo na leitura
subjetiva da fruição em arte? Retoricamente, se o processo de fruição de objetos
artísticos não possui necessariamente estrutura subjacente cognoscível, como poderíamos classificá-los como educacionais? Como qualificar, estabelecendo critérios
objetivos, os objetos de arte em meio a processos de seleção nas exposições de arte?
E se assumimos a hipótese de serem estes processos necessariamente cognoscíveis,
como se configuram?
Mediante estas questões, procuramos defender a tese de que há necessariamente nesses processos, além destes estarem permeados de carga emocional e
expressiva, uma estrutura subjacente cognoscível passível de objetivação. Para desenvolvermos a argumentação sobre os problemas colocados acima, partiremos das
seguintes hipóteses:
a) A subjetividade presente na fruição é indissociável da objetividade intrínseca
ao objeto de arte.
b) O objeto de arte é per si de natureza híbrida: ontológica (o ser do objeto) e
deontológica (possibilidade do que deve ser).
c) A formação e expansão de visão de mundo e espaço conceitual do fruidor faz
parte fundamental do processo de criação e construção de significado do objeto de
arte, na medida em que abarca as relações: sujeito/objeto, subjetividade/objetividade, ontologia/deontologia, mente/mundo, por meio da sincronicidade entre objeto
de arte e o entorno em que está inserido contextualmente.
A arte traz consigo um campo em que a subjetividade se manifesta como espaço de criação de significado, não só por parte do artista criador, como também
por parte do fruidor, enfatizado neste contexto. Com isso, como dito anteriormente,
intentamos descrever como está imbricada, de modo indissociável, a relação sujeito/
objeto percebida em analogia à relação fruidor/objeto de arte, porém introduzindo
um terceiro elemento ao da configuração filosófica tradicional, que é a representação mental (SILVEIRA, 2007, pp. 38-59). Este elemento medeia a relação entre a coisa
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e a impressão que ela provoca ao se revelar através do objeto em contato com o repertório contido no sujeito.
Há teor de subjetividade e de objetividade associados e mediados em complexa
relação, nem sempre mensuráveis ou passíveis de identificação. No entanto, mesmo
sendo uma relação dinâmica, há elementos que são apreensíveis, que tomam forma de um padrão. Por analisarmos a imagem, a estrutura ordenada de forma causal
contida nas sentenças (próprias do aparato argumentativo que compõe as teorias),
não se aplica às figuras percebidas em relação, pois, estas imagens se configuram em
experiência simultânea que se configura na forma de representação mental. Trata-se
de uma relação que poderia ser representada por meio de estrutura risomática dinâmica, em que as concatenações se constroem como sinapses, conectando-se em
múltiplas combinações simultâneas.
O ser do objeto de arte e sua natureza deontológica
Ao delinear o ponto de partida para a construção do processo de significação
da materialidade fenomênica do objeto de arte, analisamos estruturas subjacentes
que estão presentes no contexto da leitura do mesmo objeto, considerando a adoção
da hipótese da cognoscibilidade adjacente presentes nos processos de fruição. Neste sentido, descrever esta estrutura seria tão relevante, quanto discernir as marcas
sulcadas pela cultura e os sinais das múltiplas vivências individuais e coletivas materializadas nesses mesmos objetos. Buscamos focar na análise dos elementos que
poderiam constituir-se como padrão, sem preterir a presença da pura qualidade, ou
seja, do que é irredutível a um padrão mensurável.
Em outro dizer, enfatizamos a subjetividade presente no artista, como no fruidor, plasmada na própria materialidade objetual da produção estética, como também
na singularidade da expressão sígnica do objeto de arte. Buscando, através de um
viés representacional, compreender a estrutura de delimitação de espaços conceituais (BODEN, 2001) e configuração de visões de mundo.
As novas ideias se mostram possíveis por meio da compreensão dos elementos
constitutivos: eventos, sensações, situações inseridas em um espaço conceitual, ou
seja, relacionadas a princípios organizadores que unificam e dão estrutura a um dado
domínio de pensamento. Além de se mapear o espaço conceitual e compreender
seu funcionamento, há também a possibilidade de expansão ou transformação desse
espaço, na medida em que novas relações são formadas, a partir da tríade básica relacional citada anteriormente.
Neste sentido, a arte aponta para um caminho, ao abordar a esfera da objetividade presente na realidade fenomênica existente no objeto artístico, que desemboca na percepção compartilhada da leitura de múltiplas subjetividades; incluindo os
registros emocionais de vivências e categorias mnemônicas, que, em última análise,
no decorrer do processo de significação, nos remete à busca da compreensão de
identidades e classificação das diferenças. Assumimos a tese de que esta estrutura,
que está presente na construção de teorias, também está presente na construção
representacional do objeto artístico, em que seu significado é construído a partir do
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delineamento de espaços conceituais, porém, ambas se apresentam de forma idiossincrática e de acordo respectivamente com a natureza narrativa (esquematizada) e
imagética (experienciada).
Ainda em contexto idiossincrático, ao recorrermos a um método que nos leve
à compreensão sígnica do objeto de arte, estamos analisando a constituição de um
ente que está limitado em sua materialidade; mas, que possui certa autonomia no
sentido de ser lido como sistema aberto, com diversidade de significações e espaço
conceitual dinâmico e flexível, que pode expandir-se ad continuum. A limitação da
materialidade em dado tempo é o que restringe as possibilidades de construção e de
significado, na medida em que se configura como negação. Seria possível com isso
atribuir significados do que o objeto possa ser, porém, sem contradizer os aspectos
de sua materialidade, tampouco seria possível reconhecer suas formas sem que haja
um correspondente conceitual para dar-lhe estofo.
Expondo de outro modo, podemos construir significações sobre o objeto de
arte de forma bastante livre (por meio de livres associações)1, porém, o repertório
conceitual que temos como substrato de percepção imagética é o que nos orienta quanto ao seu reconhecimento e inteligibilidade. Neste aspecto a identidade do
objeto, para que o mesmo seja lido de modo cognoscível, deve ser preservada. Há
outros elementos em intersecção, colocados em relação com os campos da ética e
estética, aparecendo no teor deontológico (possibilidade de dever ser), pois há um
compromisso com a verdade entendida como factualidade, ou seja, como fato fenomênico, como acontecimento. O conceito de ética exposto aqui se refere ao ponto de vista de Dewey, que entende que ética se relaciona à noção de valor. No dicionário de Filosofia de Abbagnano aparece esta descrição conceitual à qual estamos
nos concentrando de forma bastante pontuada:
Dewey tem em comum com boa parte da filosofia do valor a crença de que os
valores são não só objetivos, mas também simples e, portanto, indefiníveis, mas
não a crença de que eles são absolutos ou necessários. Para Dewey, os valores
são qualidades imediatas sobre as quais, portanto, nada a que dizer; só em virtude
de um procedimento crítico e reflexivo é que podem ser preferidos ou preferidos
(Theory of Valuation, 1939, p. 13). Mas, eles são fugazes e precários, negativos e
positivos, além de infinitamente diferentes em suas qualidades. Daí a importância
da filosofia, que, como ‘crítica das críticas’, em primeiro lugar tem o objetivo de
interpretar acontecimentos para deles fazer instrumentos e meios da realização
dos valores, e em segundo lugar, o de renovar o significado dos valores (Experience and Nature, pp. 394 ss.). Essa tarefa da filosofia é condicionada pela renúncia à crença na realidade necessária e no valor absoluto. (2007, pp. 448, 449)
1
Este conceito aparece na obra de C. S. Peirce denominado Musement, significando a livre associação de ideias que antecedem os processos de
raciocínio lógico. Vide M. H. Fisch, “Introductory Note”, The Play of Musement, T. A. Ed. Sebeok, Indiana University Press, Bloomington, 1981, p. 17. Também na
tradução original para o português em: PEIRCE, C. S. Um argumento negligenciado para a realidade de Deus. Trad. Cassiano Terra. In: Revista Cognitio, v.4, n.
1, pp. 98-133, jan-jun. 2003. Ainda no original em inglês: CP 6.640-641: “In any mere Play they can be used by way of exercise alone; while logical analysis can be
put to its full efficiency in Musement. So, continuing the counsels that had been asked of me, I should say, ‘Enter your skiff of Musement, push off into the lake of
thought, and leave the breath of heaven to swell your sail. With your eyes open, awake to what is about or within you, and open conversation with yourself; for such
is all meditation.’ It is, however, not a conversation in words alone, but is illustrated, like a lecture, with diagrams and with experiments. [...] I have sometimes been
half-inclined to call it reverie with some qualification; but for a frame of mind so antipodal to vacancy and dreaminess such a designation would be too excruciating
a misfit. In fact, it is Pure Play. Now, Play, we all know, is a lively exercise of one’s powers. Pure Play has no rules, except this very law of liberty. It bloweth where
it listeth. It has no purpose, unless recreation. The particular occupation I mean – a petite bouchée with the Universes – may take either the form of aesthetic
contemplation, or that of distant castle-building (whether in Spain or within one’s own moral training), or that of considering some wonder in one of the Universes,
or some connection between two of the three, with speculation concerning its cause. It is this last kind – I will call it “Musement” on the whole – that I particularly
recommend, because it will in time flower into the N.A.” Disponível em: <http://www.commens.org/dictionary/term/musement> . Acesso em: 06.05.2016. [Grifo
nosso].
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Em alguns pontos, os modelos filosóficos clássicos podem fornecer descrições
de estruturas sistematizadas que corroborem para a compreensão de como a relação,
aparentemente polarizada, se configura paralelamente de modo dicotômico. Pois, o
que nos é vedado afirmar é o que o objeto não é, ou seja, dizer que objeto de arte
possui características referentes à sua materialidade que não corresponde factualmente a ela mesma não seria ético, não teria valor de verdade a respeito das relações
construídas sobre a correspondência com a realidade fenomênica do objeto. Porém,
ele, o objeto de arte, não se limita somente a esta relação de materialidade, seu teor
representacional amplia suas possibilidades sígnicas, ainda que restringido à sua materialidade. A dialética aparece aqui como método de identificação de semelhanças e
diferenças, porém a estrutura relacional triádica entre fruidor, representação mental
e objeto de arte permanece válida.
Para descrever esse processo de modo didático, tomemos como exemplo, o
trabalho de Ed Ruscha, Noise [1963]. Suspendendo a força do tempo, do contexto
histórico, e pinçando a leitura do processo sígnico; este é um construto que serve de
visor para que possamos entender um dos modos com que se processa a leitura de
objetos artísticos, enfatizando seu teor cognoscível. Este objeto de arte tomado por
expressão faz parte do repertório de arte conceitual, o que favorece nosso campo
de leitura, tendo em vista que faz parte da natureza discursivo-filosófica a descrição
conceitual, para compreender a configuração transposta a partir do espaço conceitual para o plano da imagem (e vice-versa), tanto em sua expansão como limitação.
Outro fator que favorece nossa análise é o fato deste trabalho não ser recorrentemente divulgado, logo, não há muita literatura previamente sistematizada sobre ele,
o que nos permite olhar, observar, antes de buscar referências e sistematizações convencionalmente estabelecidas.
A partir da evocação de diversos conceitos, torna-se possível delinear a presença subjetiva do agente (quer autor ou fruidor) que escolhe de modo aparentemente
arbitrário sua via de construção, levando em conta as múltiplas e multifacetadas referências, que por sua vez emergem de um dado espaço conceitual. Neste sentido,
a delimitação do espaço conceitual poderia configurar-se em um padrão, ainda que
complexo e instável, porém, teoricamente objetivável. Façamos um exercício de análise, de caminhos possíveis e cognoscíveis de fruição. Primeiro sobre o trabalho de
Ruscha2.
2
Imagem disponível em:< http://artobserved.com/2010/09/ao-on-site-stockholm-ed-ruscha-fifty-years-of-painting-at-moderna-museet-through-september-5th-2010/>. Acesso em 06.06.2016.
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Em primeira análise, o desenho da palavra “ruído” (tradução do inglês noise para
o português), grosso modo, está imbricado ao significado relacionado ao som, que
não emite significação objetiva. Esse barulho não comunica algo que possua sentido
semântico, pois, segundo Shannon3, o conceito de ruído é justamente uma restrição de linguagem, uma distorção originada da compreensão imperfeita emitida por
parte do gerador informacional. Por que ruído não poderia ser entendido como um
som simplesmente, ao invés de barulho? Justamente por haver uma expectativa de
recepção informacional. Porém em seu teor mnemônico, a palavra ruído, leia-se representação mental, pode ser construída ou concatenada a camadas de significação
e jogos relacionais inusitados, em que se questiona, por que não poderia ser um som,
no que tange, em última análise, o conceito do que é música, desembocando na reflexão: por que ruído não poderia ser música? Pois os sons, ainda que ruidosos, podem remeter a significados concernentes a diversas vivências, trazendo em seu bojo
a capacidade de ordenar e classificar e reclassificar, em sistema aberto e ampliando
o espaço conceitual. Tanto o ordenar como o classificar, ambos fazem parte de processos cognoscíveis, ou seja, passíveis de inteligibilidade. Neste experimento mental
proposto passamos hipoteticamente por um exercício de transliteração do discurso
para a memória da experiência sensorial.
Por outro lado, deslocando a perspectiva do agente para o discurso, lembramos que este é um ruído sem som, pois só nos aparece o desenho da letra, sem que
possamos ouvir algo. Neste sentido, o processo mental sinestésico se desenvolve por
meio conceitual, pois ao pensar em “ruído” o entendimento de som é evocado. Logo,
há cognição, e não somente emoção e imaginação, este elemento cognoscitivo, parte do espaço conceitual, se constitui como parte do processo de fruição.
Complexificando um pouco mais nosso processo de fruição, as camadas de
construção de significado e ampliação do espaço conceitual do que foi exposto an3
1975.
SHANNON, Claude E. & WEAVER, Warren. Teoria matemática da comunicação. Tradução de Orlando Agueda. São Paulo / Rio de Janeiro: Difel,
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teriormente seria delimitado pelo estofo do agente que domina um determinado
código, neste caso, o da língua inglesa. Para seguir nesse processo sugerido, sem
o domínio da língua, o caminho de significação se constrói de outra maneira, sem
estabelecer esta relação com o significado convencionado da língua. Outro ponto de
partida para uma ordenação da informação, da palavra noise, se delinearia com vistas no desenho das letras em concatenação fonética, em um processo contínuo de
desdobramentos de significações a partir da forma relacionada ao som, ou mesmo às
cores referentes ás frequências sonoras. Logo, a cor também é outro elemento a ser
lido. Neste caso, na condição de pura qualidade que poderia derivar em adjetivações,
associações de livres jogos relacionais, emocionais ou códigos convencionados. Algo
também a ser considerado diz respeito à combinação de todos os elementos em sua
totalidade, na plasticidade do conjunto, que não se reduz a suas partes. O porquê de
estar onde e como estão, conquistam relevância conjuntamente, em seu todo.
Esta abordagem de fruição pode ser aplicada em diversas análises que envolvam
as categorias de objetividade e subjetividade postas em relação. Cada qual ligada a
contexto específico, mediante um repertório conceitual peculiar e configuração de
espaços conceituais dimensionalmente múltiplos; que poderiam variar em graus de
objetividade e subjetividade, de acordo com cada contexto de construção de significado que seja dominante no próprio objeto de arte, considerando um sistema aberto
de relações sígnicas.
No entanto, quer se tome um caminho ou outro (leitura predominantemente
subjetiva ou objetiva) ao ordenar o processo de significação, na leitura do objeto de
arte não há erro; pois, não há o compromisso de correspondência simétrica entre
representação perceptual e a realidade; na arte não se pretende descrever o que o
mundo é, tal qual o cientista o faz, porém, busca o entendimento, o sentido de um
mundo construído a partir de um singular - o artista, e quanto ao fruidor lhe é apresentado o desafio de construir significação a partir do próprio objeto de arte. Quer
se tome uma perspectiva ou outra para a ordenação dos elementos transliterados
para sentenças, qualquer um deles é válido e potencializa a construção/compreensão deste mesmo objeto frente à somatória das múltiplas leituras subjetivadas, em
um crescente. O que invalidaria as concatenações da relação triádica de construção
de significado mediante a leitura do objeto de arte, como dito anteriormente, seria
atribuir ao objeto qualidades contraditórias à sua própria realidade material. Em outro dizer, quer em uma ou em outra abordagem, o valor de verdade factual se mantém eticamente válido, pois, tanto um como outro ponto de partida contêm teor de
realidade abstrata e concreta, válidas enquanto construção e conexão de relações;
considerando que o significado se constrói a partir da realidade fenomênica do próprio objeto, de como ele aparece no mundo e para um sujeito que reflete sobre sua
ontologia.
Ao deslocarmos o olhar para um mais amplo labor de construção de significado,
a objetividade também está presente, pois os conceitos não são privados, pelo contrário, existem para serem compartilhados. Dialeticamente, são parte intrínseca do
espaço conceitual do agente, hora de forma mais aparente, hora em emaranhados
sígnicos, se configurando por meio dos processos de representação mental em contextos diferenciados e dinâmicas distintas.
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A hipótese levanta aqui é de que o aparato cognitivo que possibilita a criação
de teorias, em sua formação, em princípio é o mesmo da produção do objeto de arte.
As semelhanças começam na geração de hipóteses, tanto as plausíveis pertinentes
ao comprometimento da formulação de teorias, quanto na geração de significações
atribuídas ao objeto de arte pelo fruidor, como na seleção da forma do objeto material para o artista. Peirce argumenta que:
O trabalho do poeta ou novelista não é tão profundamente diferente do homem
da ciência. O artista introduz uma ficção, porém não uma ficção arbitrária; essa
ficção demonstra certas afinidades às quais a mente atribui uma certa aprovação
[...]. As realidades compelem-nos a colocar algumas coisas num relacionamento
estrito, e outras em um relacionamento nem tão estrito, de modo altamente complicado e inteligível no (para?) o próprio sentido; mas é a habilidade da mente que
apanha todas essas sugestões de sentido, acrescenta muita coisa a elas, torna-as
precisas e as exibe numa forma inteligível nas intuições do espaço e do tempo.
[1995, p. 17]
A diferença de um contexto para o outro irá ocorrer em momento ulterior. Em
princípio, o que se pode considerar é a finalidade com que se pretende gerar hipóteses. No caso das formulações de teorias a verdade é gerada pela correspondência das
hipóteses com a realidade testável, e no caso da arte, as verdades são geradas tendo
em vista a coerência com seu objeto. De qualquer modo, em sua estrutura, ambos
são caracterizados como processos permeados de razoabilidade.
Sobre estas relações, Santaella argumenta que:
A essência de um sistema processador de informação, um sistema físico de símbolos, está no fato de que ele codifica informação sobre o mundo, opera sobre
essa informação de algum modo que pode ser caracterizado como significativo e
está estruturado como um conjunto de partes interatuantes, funcionalmente organizadas. [2005, p. 60].
E, ainda em outro trecho, tece considerações sobre o conceito de verdade entendido pelo pragmatista W. James, a saber:
James se recusa sempre a nomear diretamente a “verdade” ou a “essência” que
só existe para ele sob a forma de múltiplas aparências. Este preconceito,nos diz
Todorov, afeta profundamente a organização de suas obras, chamando sua atenção para as técnicas do “ponto de vista” ou aquilo que James, ele mesmo, chama
de “aquela obliquidade magnífica e magistral” (that magnificente and masterly
indirectness). [SANTAELLA, 2005, p. 336].
Independente do delineamento do processo de significação que é atribuído aos
conceitos de mente e de verdade, as representações perpassam pelos polos: singular
e plural, particular e universal, subjetivo e objetivo; relações estas que estão presentes em diversos contextos, inclusive em construtos teoréticos coerentes e bem
delimitados, pertinentes a contextos diversos do saber, inclusive nos mais rigorosos
campos de ordenação de sistemas.
E não seria esta a seriedade e hegemonia das verdades produzidas em sua gênese pelo saber científico? Argumentamos que há uma ordem implicada e indissociável, que se delineia a relação sujeito/objeto. Ao tomarmos a tríade: fruidor/objeto de
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arte/ representação mental, procuramos dar visibilidade à geração de verdades que
são produzidas em diversos contextos de formulação de hipóteses.
Possibilidade do que deve ser: a natureza híbrida do objeto de
arte
Em sentido amplo, o próprio pensamento possui um caráter objetivo e constituído de materialidade. Para dar estofo a esta argumentação recorremos à tese do físico David Bohm, que reforça a argumentação de Peirce quanto às imbricações analogicamente articuladas entre mente e mundo (sujeito e objeto), pinçando um trecho
de sua teoria sobre a Totalidade e Ordem Implicada (2008, p. 66):
Assumindo que o pensamento é um processo material que pode ser relevante em
algum contexto mais generalizado quando se move em paralelo com a percepção
inteligente, somos agora levados a questionar a relação entre o pensamento e a
realidade. Logo, é comum acreditar que o conteúdo do pensamento é algum tipo
de correspondência reflexiva com as “coisas reais”, talvez como sendo um tipo
de cópia, ou imagem, ou imitação das coisas, ou talvez [junto com as linhas similares àquelas sugeridas por Platão] uma apreensão das formas mais internas e
essenciais das coisas.
A própria materialidade do objeto de arte sugeriria uma leitura plural, que poderia variar em graus, por meio da dimensão do espaço conceitual. Neste sentido,
tomamos por expressão o trabalho de Jane Sterbak, Quero que Você Sinta o que Eu
Sinto … (O Vestido), [1984-1985]4.
4
Disponível em: < http://performatus.net/jana-sterbak/>. Acesso em: 06.06.2016.
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Este objeto de arte se caracteriza de modo distinto ao de Ruscha, pois se lhe
acrescenta a tridimensionalidade, alterando assim a percepção e afetando o repertório da malha conceitual. Nesta obra, o título é considerado como nome do objeto,
que ao nomeá-lo lhe dá parte de sua significação e sentido de existência. “Quero que
você sinta o que eu sinto” evoca um desejo, uma presença subjetivada do agente que
está a desejar. No entanto, este sujeito não está presente na cena, no objeto, é uma
presença ausente.
O vestido sem sujeito permite que qualquer um o vista. Sem cabeça, sem corpo e sem pé, somente roupa suspensa e armada; o sistema fica aberto à identidade
que o queira vestir, sugerindo que ao vesti-lo se sinta o que eu sinto. Quem é este
eu? Poderia ser um coletivo? Logo, a inversão da subjetividade do sujeito5 que veste
é substituída pela objetividade (materialidade) do vestido que se torna o sujeito da
cena. Este mover pode ser descrito como um sistema relacional de aparentes oposições, que poderia complexificar-se de acordo com o espaço conceitual que o possa
delinear.
Outro elemento a ser considerado, diz respeito à transparência, na trama vazada do vestido e na translucidez, que faz passar a luz que o contorna, plasmado
à substância concreta da veste, encharcada de pontos nodais de significação. Por
exemplo, poderíamos partir da própria natureza da luz descrita por meio da polaridade energia/matéria. Na descrição do fenômeno luz, há uma natureza recorrente,
abarcando em si o duplo estado: onda e partícula. Tecendo uma trama de significações para o objeto de arte produzido por Sterbak. Poderíamos evocar a metáfora da
natureza da luz, relacionando-a com a dicotomia mente/corpo, em que colocamos
em correspondência as leis que se aplicam ao mundo (objetividade) em relação ao
agente cognoscitivo (subjetividade).
Buscamos na argumentação do filósofo/físico Goswami o estofo conceitual que
dê base para nossa argumentação:
Todos os objetos quânticos evoluem como possibilidades em potentia transcendente até serem levados à imanência – o estado de coisa – pelo colapso via observação consciente. [...]. Na mecânica quântica, podemos correlacionar objetos de
modo que permaneçam interconectados mesmo enquanto percorrem, em potentia, grandes distâncias. [...]. Obviamente, a correlação é não local, existente em
um domínio de interconexão que transcende o domínio espaço-tempo imanente
da realidade. (2008, p. 99).
Neste sentido, “o vestido”, e a sua leitura, poderia apresentar-se como pura possibilidade, no entanto, aparecendo com a materialidade vazada do arame e dúbia nas
lâmpadas que remetem à natureza da luz. Esta abordagem está concatenada com
um dado reportório conceitual, que se constrói a partir de referências apreendidas
e/ou vivenciadas, desembocando em novas relações de natureza aberta e contínua.
Obviamente, outras leituras são possíveis de acordo com o repertório de cada qual,
porém sem que essa leitura esteja desconectada da materialidade do objeto estético.
Se não houver relação com o objeto, a relação estabelecida não seria mais sujeito/
objeto como pretendemos apontar aqui.
5
Pleonasmo intencional, não vicioso.
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Expondo de outro modo esse sistema de relações, o mundo é uma esfera empírica onde se processa toda experiência humana, com a qual a arte justificaria sua
permanência enquanto presença de necessidade em uma situação de carência de
subjetividade. Em um mundo repleto de necessidades, e, nos voltando para a polarização necessidade/liberdade, a arte preenche o espaço de uma carência específica,
carência de singularidade, de criatividade espontânea; que gera contradição e conflito, por considerar a necessidade, que está associada ao inexorável, e o desejo que
pode ser construído em um querer deontológico.
Dito de outra forma, de modo geral a arte não se compromete em descrever a realidade como ela se apresenta6, mas, busca apontar leituras de realidade, de
mundos possíveis ou não acessíveis. Como também poderia apresentar fantasias e
conceitos não sistematizados, sem preterir a coerência com a materialidade do objeto, que é a condição de apresentação do que se pretende „dizer”, por meio de uma
cadeia de relações. Não creio que se produza arte se não para ser lida ou para ser
expressa em uma forma diferente da habitual.
Uma das questões apresentadas, gravita em torno de como estão articulados
estes polos, e de que modo suas verdades podem ser compreendidas, trazendo à
tona o significado para a esfera da consciência. O significado é atribuído mediante
um sistema que possa trazer coerência, tornando-se consciente na percepção da
articulação dos elementos envolvidos nessa relação imagético-objetual, em que os
significados criados estão relacionados ao objeto, tornam-se verdades em crescimento de combinações contínuas.
O que se manifesta para fora do sujeito que produz o objeto-de-arte está encarnado no aquém e além de seu objeto, sem que este se limite (ou a fruição esteja
condicionada) a seu criador. Porém, o conteúdo subjetivo do artista influencia suas
escolhas ao longo do processo de criação, por meio de um viés comum, que é a estrutura do aparato cognitivo. Logo, a fruição acontece, sem necessariamente considerar a intencionalidade daquele que a produziu. Pois, não há como ter acesso a este
conteúdo intencional, salvo se este for manifesto. Há outra contingência, o agente
nem sempre está consciente do que produziu, porém a presença da subjetividade
amplia o repertório de relações em seu potencial criativo. Por não haver pretensões
necessárias de manifestar sua intencionalidade, é dado espaço para que o fruidor
participe e também imprima sua subjetividade na construção de significado, somando-se assim às múltiplas subjetividades, do que produz e dos que fruem.
Enfatizando a argumentação anterior, o objeto não é produzido ou mesmo lido
mediante pura subjetivação, mas encontra-se em relação com a realidade e com a
alteridade do mundo. Colocamos as perguntas retóricas: um objeto de arte pode ser
pensado sem que haja manifestação de sua materialidade? E quem produz arte, se
não um sujeito? Em termos gerais, este seria outro aspecto do teor de objetividade,
como condição necessária, porém, não suficiente para pensarmos um objeto-de-arte.
Em síntese, o espaço conceitual se delineia em meio a essa tessitura de referências, pois é o conceito que medeia a relação de significação, necessária para que seja
atribuído um sentido ao objeto, para torná-lo sensível à atitude consciente. Convém
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A física se compromete a fazê-lo, ou seja, a descrever a realidade de modo objetivo, por meio do discurso racional.
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enfatizar que percebemos por meio de conceitos7. Através do viés representacional,
é proposto um recorte com fins de apontar para as verdades da arte, como elas podem ser cognoscíveis, como também tornam explícito o enfoque da relação sujeito/
objeto, sem polarizá-la. Considerando também que há a mediação da representação
mental, que não é um meio, porém se constitui como um dos elementos desta relação.
Formação da visão de mundo e o processo de construção de significado do objeto de arte
Em esfera social, compreender a natureza do objeto de arte é uma atividade que
corrobora para o desenvolvimento de uma consciência crítica da subjetividade, enquanto instância de resistência contra a totalização objetivada das esferas do que se
entende por racionalidade humana. Assim, como não se deve atribuir ao objeto estético a função clínica de descrever a realidade, também não se deve escapar ao caráter
de mediação do conceito; este é o ponto nodal que nos importa tocar aqui, a saber,
como as verdades da arte tangem o caráter expressivo da necessidade da razão objetivada no teor conceitual. A relação do enigmático nas artes, enquanto linguagem
cifrada e elementos que constituem este ser da arte potencializa o afastamento do
que é produzido e no que se pode esperar ter sentido, ou entender, a partir da tríade:
objeto-de-arte, representação, fruidor; mediante conteúdo de verdades não previamente estabelecidas ou convalidadas.
Neste sentido, o próprio agente está em processo, ao atentar para a percepção
de outro sobre o que externalizou a partir de si. Pois, quanto ao corpo, podemos
perceber quais os limites de nossa forma, de como ela se configura, nos vemos em
espelhos. Mesmo que a percepção de si tenha forte teor subjetivo, que envolve complexas relações de autoimagem podemos ver nossos corpos através de espelhos, e
somos reconhecidos em nossa identidade do corpo. No entanto, como perceber o
que o corpo não mostra? Como termos o retorno sobre a configuração de nossa personalidade, por exemplo, se não por meio do outro? Não há espelho que nos mostre
a alma. E mesmo que adotemos a imagem que se constrói, por meio do outro e de
nosso entrono, de nós mesmos, ela própria não é a verdade. Novamente enfatizando
que tomamos verdade como correspondência à realidade, mas, por sermos seres
dinâmicos, em constante movimento e transformação, estamos por nos fazermos
ser, mediante um norte deontológico, que nos guia por intermédio de um dever ser.
Somando-se múltiplas verdades, ou seja, diversas perspectivas fenomênicas sobre uma mesma subjetividade, esta nos é, por si, apresentada como elemento do
devir, do vir a ser da mesma subjetividade. O que significa dizer que corresponde com
as variadas leituras que os que estão fora do “eu” elaboram sobre o mesmo agente.
O que enfatizamos com isso é que a subjetividade é também construída por meio de
um coletivo, não se perfaz sozinha. A tese solipsista cartesiana, no contexto contemporâneo de percepção de realidade, não se sustenta. Mediante ferramentas disponíveis que nos possibilitam ver o microcosmo (microscópios, nanotecnologia e afins) e
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HANSON, R. N. Patterns of Discovery. Cambridge: Cambridge University Press, 1972.
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as que nos permitem observar distâncias antes incomensuráveis, nos permite ampliar
a percepção de como o mundo se configura. Neste sentido, tudo está conectado e
tudo se perfaz, de forma direta, emergente ou superveniente; o que parece haver são
desdobramentos e não quebras individualizadas8. Porém, a visão que se tangencia
sobre o mundo é de que todos seus elementos estão em relação, que as antigas demarcações e topologias não estão contidas na totalidade do cosmos. As linhas que
delimitam um conhecimento de outro, uma área de atuação de outra, servem como
limite para diferenciarmos o um e o múltiplo, para separar didaticamente uma coisa
de outras coisas. O que não significa dizer que as relações que permeiam as coisas
no mundo, mesmo que muitas delas não sejam percebidas de pronto, não estejam
envoltas numa gama múltipla e mais abrangente e complexa de relações, como as
camadas de uma cebola.
De modo análogo, no aspecto de contradição/complementaridade, o objeto
de arte se encerra em sua apresentação. No que está posto do que seja o objeto em
si, como um ente em sua condição de alteridade, que carece de significação. Porém,
permanece com dinâmica intrínseca ao ser pensado de diferentes modos, a partir de
múltiplas verdades idiossincráticas, com possibilidade de pensar-se a si no outro e no
próprio processo de fruição, no embate com o objeto estético.
Seria o caso de trazermos novamente para o contexto a obra Noise, em outra
possibilidade de leitura. Traduzindo, o que está posto na palavra “ruído”, escrita sobre
suporte, com seu fundo neutro, destacado em amarelo, se faz pronunciar um ruído
agudo, que se destaca na relação figura/fundo, tornando evidente o que se pretende
destacar, ou seja, a própria palavra. Não foi dito, não foi emitido som, o que há é silêncio. Surge como que por acidente, o que se interpõe ao que se pretende escutar,
ou mesmo entender. Neste sentido, o quanto de ruído nós somos? Será que sempre
que expressamos esta forma, ou quando a palavra aparece está acompanhada de
sentido? O sentido se constitui e se configura como uma vestimenta que perfaz o
devir. Vestimos camadas de significação em esferas diversificadas do mundo vivido.
Do mesmo modo acontece com o Vestido de Sterbak, ele apresenta sua materialidade, ainda que o corpo não esteja presente, seus índices acusam sua presença,
há um formato de corpo que cabe ali, e que está ligado a sua representação, pois ao
confeccionarmos vestidos o fazemos para pessoas, que possuem dimensões, medidas e se situam no mundo. Esta relação indexical, em que não aparece o corpo, aparece o vestígio do corpo, seu rastro, poderia nos remeter a este plano do que não é
visto, porém está relacionado. Talvez esse corpo não possa ainda ser percebido, sem
sabermos exatamente por que, sem sabermos a causa, mas que se mostra desta maneira, nos deixando impotentes e perplexos frente à factualidade do objeto que tem
veste, mas não tem corpo, está oco.
Novamente, trazendo para nosso contexto específico, quanto à relação sujeito
e objeto de arte, a dialética da ausência do corpo presente, também poderia servir de
mote para pensar em um sujeito sem corpo, analogamente em “cérebros em barris
de vidro”. Poderíamos evocar também um sujeito que não se permite capturar, pois
habita fora de si, alienado. E, se esse sujeito não se permite capturar, como definir sua
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Sobre este tema, o universo como um sistema ,recomendo a leitura dos livros: GREEENE, B. Universo Elegante. Trad. José V. Filho. São Paulo,
Companhia das Letras, 2001; LUFT, E. Sobre a Coerência do mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
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identidade?
Por outro lado, há restrições, como posto anteriormente, ao querer atribuir uma
natureza que seja contrária a da materialidade do objeto, atribuindo-lhe predicações
que contrariem a determinação do próprio objeto artístico, estaríamos a desconectar as relações pertinentes, omitindo suas imbricações factuais por meio de um agir
arbitrário. Logo, o objeto de arte diz em parte o que ele é sem sua materialidade
objetiva, porém, as demais camadas de significação, configuradas como devir, como
processo, como dinâmicas, são construídas em um contínuo, mediante múltiplos antagonismos e protagonismos.
O reflexo da realidade, que aparece nas obras, não é um empréstimo de elementos ou unidades materiais, mas uma espécie de reestruturação; onde os antagonismos não resolvidos da realidade retornam aos objetos estéticos, como problemas
imanentes de sua forma, como historiografias conscientes ou inconscientes de sua
época, ou mesmo como topologias e topografias de estados informacionais que aparecem por meio de planos de significação.
Finalizando a argumentação, o objeto de arte pode “apoderar-se” dos agentes
de fruição através de um apelo à razão que requeira um despertar consciente, quanto
à compreensão de movimentos que estão presentes em sua estrutura intrínseca de
estruturação. Logo, seria possível deduzir que as normas que fixam as relações entre
agente produtor, fruidor e objeto de arte são tratadas como temporárias, provisórias;
de maneira que o fruidor pode-se lançar, transpondo a mera observação, permitindo-se, inclusive, ser levado a pensar e formular um juízo, que envolve a escolha de
valor (esfera ética), quanto ao que percebe (esfera estética), desembocando, assim,
em participação reflexiva e autônoma na construção ampliada, no plano do tecido
representacional da realidade.
Em síntese, a arte é autônoma em sua relação com o mundo, recorre a ele como
fonte de seu material, e é necessária (em sentido deôntico), enquanto possui em si
a capacidade de instigar a percepção de um outro estado de coisas, de perceber a
natureza conciliatória (e não somente na aparente contradição) entre particular e
universal. Mas que, num primeiro momento, aparece como impossibilidade racional,
como aporia. Estas aparentes contradições estão expressas abundantemente em diversos contextos na contemporaneidade.
O caráter de necessidade da arte é autorreflexivo, como se fosse um espelho a
mostrar múltiplas realidades, por meio de uma representação cifrada. Decifrar cabe
ao fruidor, seu espaço é determinante nesta relação, pois para que se criarão objetos estéticos se não para estarem sujeitos à exposição, ao fruidor? A arte tem algo
a dizer e não o diz explicitamente, nem de modo trivialmente conceitual, mediante
conceitos estandardizados. Porém, não critica a linguagem conceitual que é incapaz de mostrar a verdade como totalidade. Ainda que se pretenda, nenhuma área de
sistematização do conhecimento poderia fazê-lo, e o objeto de arte denuncia esta
impossibilidade almejada como possibilidade em um devir. Este enigma é o amálgama entre necessidade e autonomia enquanto interdependentes, que intentamos
desenvolver introdutoriamente.
A arte que toma o choque como princípio fundamental é a que serve de refúgio em sua própria negação. Em seu direito à existência, ela precisa transcender seu
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próprio conceito para não ser capturada e forçada a encerrar-se como sendo isso ou
aquilo, de modo que seja negado seu crescimento. Sua conceituação deve permanecer aberta ao devir, por isso não é possível defini-la. De modo hiperbólico, e em
última análise, o andar humano é desejoso de conhecer o incognoscível, expressar o
inexprimível e dizer o inefável, pois para preencher seu conceito precisa superar-se
continuamente.
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