Pode o Sever ino falar ?
Alexa ndre Pila ti
Mestrando em Literatura Brasileira / UnB
1. Um salto transculturador entre duas consciências
Morte e vida severina confirma a ligação da obra poética de João
Cabral de Melo Neto à concretude das coisas, deixando definitivamente de
lado possíveis ilusões místicas relativas ao fazer poético, presentes na
pesquisa fenomenológica de Psicologia da composição, Fábula de Anfion
e Antiode. Diria o crítico pernambucano Sebastião Uchôa Leite que o poeta
estava pronto para dar seu “salto participante”1, tomando a poesia como
instrumento de conhecimento da realidade brasileira.
Esse salto é percebido em outros termos pelo crítico João Alexandre
Barbosa, que, ao tratar dos textos de João Cabral da década de 50, afirma
que se dá um esforço em sua obra para uma apreensão da realidade
modulada pela poesia. Segundo ele, os textos de Cabral da década de 50,
como Morte e vida severina, acabam levando a termo as tensões expostas
no tríptico Psicologia da composição com a Fábula de Anfion e a Antiode.
Nas palavras de Alexandre Barbosa: “Fundado numa intensa negatividade
acerca das relações entre poeta e poesia, o tríptico (...) prepara o caminho
para uma apreensão corrigida da realidade”2.
É tendo como horizonte este “salto participante” ou “apreensão
corrigida da realidade” que se analisará aqui o poema Morte e vida severina,
buscando perceber em que medida e de que maneira a história do retirante
pode dar voz ao oprimido. Isso implica saber também em que termos ela é
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Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea
uma forma de conhecimento do caráter nacional, tendo em vista que, como
afirma Ferreira Gullar, “o caráter nacional, contraditório à universalidade,
deve ser superado pela obra conquanto constituinte de sua estrutura e de
seu processo formativo”3.
Severino deve ser visto, portanto, como um oprimido brasileiro que
em sua caminhada vai descobrindo que sua opressão transcende as causas
físicas e climáticas locais e, no mesmo passo, vai perdendo a voz e o espaço
dentro da estrutura da obra.
Se a literatura pode ser um local em que a voz do oprimido se manifesta,
estabelece-se uma problemática cruel. Se a voz do oprimido pode ser ouvida
em termos literários, o caminho está aberto para que se estetize o grito do
vencido tornando-o peça de museu, ou objeto pitoresco.
Mas, no poema de Cabral, Severino, o oprimido, o vencido pelo
processo modernizador, não pode falar, sua voz é silêncio. A literatura, então,
nesse caso, questiona a si própria, pois assume em sua constituição suas
falhas e contradições históricas, que, de resto, pertencem à constituição da
própria sociedade brasileira. Se Severino não fala, a literatura impõe-se a si
mesma como um problema para o próprio escritor, que não vê outra saída
senão perceber e assumir que a literatura em um país como o Brasil é um
beco sem saída, é eco de voz nenhuma.
Nesse sentido, um dos aspectos mais relevantes na análise de uma
obra como Morte e vida severina é a capacidade de formalização das
contradições e do processo modernizador no Brasil, que estabeleceram
relações muito peculiares entre oprimidos e opressores, entre centro e
periferia, entre ambiente rural e ambiente urbano.
Aprende-se com Antonio Candido4 que o artista é guiado em sua
produção por forças sociais condicionantes, que determinam a ocasião de a
obra ser produzida, a necessidade de ela ser produzida e a sua capacidade
de tornar-se um bem coletivo. Portanto, a literatura brasileira não pode deixar
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de ser analisada com a consciência de que o escritor tem sua produção
inserida em certas condições sociais, uma vez que a literatura aqui sempre
cumpriu papel diverso daquele que a ela se atribui em países centrais. Certos
autores, entre os quais se pode incluir João Cabral, têm profunda consciência
das complicações que possui a arte literária em um país como o Brasil, e,
por conseguinte, das forças sociais que o impelem à escritura.
Outra lição de Candido refere-se ao modo como uma obra de arte é
capaz de absorver aspectos sociais em sua forma, e, com isso, dar a conhecer
um aspecto da realidade. Para Candido, “o externo (no caso, o social)
importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que
desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se,
portanto, interno”5.
Em Morte e vida severina, o que se pretende observar é exatamente
a formalização da relação discursiva entre as classes sociais no Brasil, que
sempre foi, em termos gerais, a da exploração cordial, a do atraso glorificado,
a do calar a voz por meio da concessão que dissimula a exploração.
Primeiramente, é preciso ver a viagem do retirante Severino como
uma passagem de uma espécie de consciência amena do atraso brasileiro,
que aqui será representada pelo que se chamará consciência da seca para
a consciência catastrófica do atraso, chamada aqui de consciência da
miséria. Em segundo lugar, em termos formais, pode-se dizer que a
apreensão da história de Severino em uma forma teatral arcaica, um auto,
também pode representar a impossibilidade da fuga à periferia econômica,
social, cultural e artística. Resta saber se, de dentro de tal cela, pode o
Severino falar.
2. Retirar: caminhada para a denúncia da catástrofe
Para observar, em Morte e vida severina, a viagem do retirante como
uma representação da consciência catastrófica da realidade excludente do
capitalismo é preciso perceber certas estratégias literárias utilizadas por João
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Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea
Cabral de Melo Neto na composição do personagem e da narrativa.
A análise de aspectos das cenas do auto poderá contribuir, portanto,
para uma melhor reflexão sobre a capacidade que tem a forma literária de
absorver e evidenciar as contradições que habitam a forma social e também
a forma literária que quer representá-la.
Na primeira cena do auto, Severino apresenta-se ao leitor e fala
sobre características gerais de sua vida e sobre a necessidade de emigrar. O
heptassílabo cadencia a fala e será uma constante nos monólogos do
personagem, dando ao Severino uma fala cortada ou entremeada de pausas
para respirar, como cansado da caminhada. Duas das estratégias narrativas
mais interessantes da primeira cena residem na caracterização dos
interlocutores do texto. Cabral dá voz ao Severino, que é o eu-lírico da
passagem. Note-se, todavia, que, ao fim do texto, essa mesma voz constatará
que, mesmo falando, isso se deu para comunicar o abafamento de sua voz.
Do outro lado da voz de Severino, o leitor encontra a si próprio, incluído no
texto pela forma de tratamento Vossas Senhorias. Nessa forma encontrase toda carga semântica da cidade letrada, destino último do personagem, e
que segundo o crítico uruguaio Angel Rama é lugar da modernização e da
vigência do poder. Segundo Rama:
A través del orden de los signos, cuya propriedad es organizarse
estabeleciendo leyes, classificaciones, distribuiciones jerárquicas, la
ciudad letrada articuló su relación com el Poder, al que sirvió mediante
leyes, reglamentos, proclamas, cédulas, propaganda y mediante la
ideologización destinada a sustentarlo y justificarlo6.
A literatura foi peça fundamental nessa ideologia de construção da
modernização da América Latina. Por isso, a caracterização dos
interlocutores na primeira cena de Morte e vida severina impõe ao leitor,
posto que antes havia imposto ao autor, o dilema de representar uma situação
de exclusão criada também pela literatura. Mas também é preciso ver a
literatura como recurso para lutar contra essa exclusão. Está proposto, desde
a primeira cena, o problema da literatura que se quer participante e o
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questionamento da possibilidade de ela dar voz ao vencido. Assim, nos
próprios interlocutores apresentados na primeira cena percebe-se o conflito
entre regionalismo e o cosmopolitismo, entre personagem oprimido e o
distante público leitor, Vossas Senhorias, os habitantes da cidade letrada.
Por trás disso, a constatação de que se por acaso a literatura puder dar voz
ao oprimido, ela não é dirigida ao vencido. Por trás disso, a dor de
consciência do autor.
Sugestiva é também a impossibilidade de Severino definir-se a si
próprio. A tentativa esbarra sempre na existência de mais um ou dois Severinos
com nomes iguais ou parecidos, com vidas idênticas em sofrimento. A autodefinição operada pelo protagonista é aqui realizada não no sentido do geral
para o particular. O percurso é inverso e de casos particulares chega-se ao
nome genérico Severino. A partir da constatação de que:
Somos muitos Severinos/iguais em tudo na vida/na mesma cabeça
grande/que a custo é que se equilibra/no mesmo ventre crescido/sobre
as mesmas pernas finas,/e iguais também porque o sangue/que usamos
tem pouca tinta7.
Se são muitos, a história a ser contada não é de um só, mas de todos.
Por isso, o personagem não consegue definir-se, não pode ser o Severino,
mas um Severino, como deixa claro o monólogo.
A segunda cena do auto é uma evidente denúncia à questão da divisão
fundiária no Brasil. É o primeiro golpe da morte na caminhada de Severino.
Aparecem outros personagens. São os irmãos das almas que carregam um
defunto chamado também Severino, o que aponta para o destino do
protagonista. Sugestivo também é o motivo da morte do defunto Severino.
Fora morto pela “ave-bala”, pois cometera o crime de:
- Ter uns hectares de terra,/irmão das almas,/de pedra e areia lavada/
que cultivava (MVS, 174).
Na terceira cena, Severino fará duas comparações importantes para
a desilusão que sofrerá ao final. O personagem, que comparou o Capibaribe
ao seu próprio caminho, teme o corte do rio devido à seca. Segundo diz o
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próprio Severino:
Pensei que seguindo o rio/eu jamais me perderia:/ele é o caminho mais
certo,/de todos o melhor guia./Mas como segui-lo agora,/que interrompeu
sua descida (MVS, 176).
É o momento do abandono de Severino pela natureza e a constatação
de que a jornada será de fato muito difícil. É mais um golpe em sua amena
consciência da seca.
A outra comparação para o caminho de Severino é a metáfora do
rosário, que representa o próprio caminho do retirante. Seu caminho é ditado
também pela religião.
Nesse segundo monólogo, a desilusão é com a natureza. É descrita
uma situação natural desoladora, sem bichos, planta ou vida humana, nem
almas mortas nem vivas habitam o sertão. Os que ali vivem são excluídos
de tudo.
A quarta cena é a representação da paródia que faz um homem às
excelências cantadas a um defunto. Diante da devoção religiosa com que se
encomenda o defunto, surgem ironias sobre a situação do morto, mais um
de nome Severino.
Falam as excelências e o parodiante:
- Finado Severino,/quando passares em Jordão/e os demônios te
atalharem/perguntando o que é que levas.../Dize que levas cera, /capuz
e cordão/mais a virgem da Conceição./Finado Severino,/etc.../- Dize
que levas somente/coisas de não:/fome, sede, privação (MVS, 177).
Às prevenções espirituais contra os demônios, o parodiante contrapõe
a materialidade da existência do finado Severino, que não tem absolutamente
nada. Note-se que as coisas de não citadas têm todas elas profundas
implicações humanas e políticas, pois trata-se daquilo que poderia ser
garantido com ações políticas capazes de diminuir a privação das populações
rurais. Tem-se aqui a tensão entre o discurso da cidade letrada arcaizado,
representado pela religião, e a verdade do sertão.
A quinta cena é mais um momento em que Severino reflete sobre sua
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situação e desilude-se. Ainda há aqui a consciência da seca. Constata ele:
Desde que estou retirando/só a morte vejo ativa,/só a morte deparei/e
às vezes até festiva (MVS, 177).
Severino, neste momento, decide interromper a viagem para procurar
um trabalho que lhe garanta a sobrevivência até que seja seguro seguir
novamente o caminho.
Na sexta cena, o diálogo de Severino é com uma rezadeira. São feitas
reflexões sobre a questão do trabalho rural, reduzido pela seca a poucas
possibilidades. Severino é progressivamente excluído do trabalho pois o
que faz é produtivo e a economia do lugar, segundo diz a mulher, é baseada
na morte. Duas mudanças econômicas são tratadas pela mulher que fala da
chegada das usinas como forma de exclusão do trabalho e a ausência dos
bancos que não querem financiar mais os roçados, contribuindo também
para o estacionamento da produção. São dois indícios para a passagem à
consciência da miséria operada na narrativa. Diz a rezadeira:
Esses roçados o banco/já não quer financiar (MVS, 179).
E também:
Com a vinda das usinas/há poucos engenhos já (MVS, 180).
Mais uma vez Cabral expõe a chaga das contradições entre os
processos modernizadores do país, que resultam em uma espécie de indústria
da fome e da morte. Representantes da cidade letrada modernizada, o doutor
e o farmacêutico, ganham dinheiro com a morte do sertão, impondo uma
modernidade excludente, que serve apenas para ampliar os desníveis sociais.
Conforme diz a rezadeira:
Imagine que outra gente/de profissão similar,/farmacêuticos coveiros,/
doutor de anel no anular,/remando contra a corrente/da gente que baixa
ao mar,/retirantes às avessas,/sobem do mar para cá./Só os roçados da
morte/compensam aqui cultivar (MVS, 182).
Com mais este golpe, o monólogo seguinte, na sétima cena, é o
estabelecimento da consciência da miséria, com a chegada do retirante a
um latifúndio na zona da mata. A chegada a um ambiente em que a seca não
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Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea
é mais presente, e no qual a terra “se faz mais branda e mais macia” enche
de esperança o Severino.
Diante da visão paradisíaca do ambiente natural, que é representação
da consciência da seca, diz o retirante:
Como ela é uma terra doce/para os pés e para a vista./Os rios que
correm aqui/têm água mais vitalícia./cacimbas por todo lado;/cavando o
chão água mina./Vejo agora que é verdade/o que pensei ser mentira
(MVS, 182).
É o ápice da consciência da seca, que começa a se desmanchar pela
nódoa que a mesma cena propõe em seu fim:
Mas não avisto ninguém,/só folhas de cana fina;/somente ali à distância/
aquele bueiro de usina;/somente naquela várzea/um bangüê velho em
ruína./Por onde andará a gente/Que tantas canas cultiva? (MVS, 183).
Mas o Severino, ainda com esperança, imagina que os homens estão
“feriando”, graças à fartura da terra.
A oitava cena é a mais pungente da obra e marca a queda para a
consciência da miséria, pois Severino assiste ao enterro de um trabalhador
da zona da mata, que, não obstante o clima propício à agricultura, morre
como os outros Severinos, sem nada em vida, sem nada na morte severina.
Nos versos mais fortes do poema, com ironia e tragicidade, Cabral consegue
absorver a tensão do momento e transformá-la em versos como:
É uma cova grande/para tua carne pouca,/mas a terra dada/não se abre
a boca (MVS, 184).
E a terra, o “brim do Nordeste”, dará aquilo que o homem não teve
em vida: a roupa, o chapéu, o sapato. Não são excelências o que se canta.
Canta-se a tragédia da própria morte, não transcendente, mas miserável,
física, corruptora da carne pouca do homem. Nesse momento especial, o
rosário vira “milho negro e ressecado” e não objeto de ligação com o
transcendente. Ele é agora “semente inerte e sem salto”. A tomada da
consciência da miséria é também a quebra da ilusão da religião. É a
percepção de que com ou sem ela o destino é a cinza em que o homem se
tornará envolto pelo chão:
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Esse chão te é bem conhecido/(bebeu teu suor vendido)/Esse chão te é
bem conhecido/(bebeu o moço antigo)/Esse chão te é bem conhecido/
(bebeu tua força de marido) (MVS, 185).
A força dos versos denuncia a prisão do sistema que atinge ao
miserável por mais que este esteja perto da fartura. Atinge ao Severino do
sertão; atinge ao Severino do latifúndio e sela-lhe o destino desde o
nascimento.
A nona cena é o monólogo de tomada total de consciência da miséria.
Nesse sentido, são exemplares os versos:
Mas não senti diferença/entre o Agreste e a Caatinga/e entre a Caatinga
e aqui a Mata/a diferença é a mais mínima./Está apenas em que a terra
é/por aqui mais macia;/está apenas no pavio,/ou melhor, na lamparina:/
pois é igual o querosene/que em toda parte ilumina (MVS, 187).
Diante dessa constatação, só resta a Severino seguir seu caminho até
o Recife, “derradeira ave-maria do rosário”. Se o retirar é caminho para a
modernização da cidade letrada, ele é também o fim de Severino, que perderá
a voz ao chegar lá.
A décima cena, em que se vê a conversa de dois coveiros possui
também uma profunda ironia à divisão burocrática da existência humana na
cidade letrada, estabelecida além da própria vida. Os coveiros falam da
divisão do cemitério e são escutados por um Severino já desiludido e imerso
na consciência da miséria. Na indicação da cena, o autor diz que Severino
escuta tudo “sem ser notado” pelos coveiros. É o princípio da transformação
de Severino em uma espécie de fantasma da exclusão, que escuta a sentença
dos coveiros:
- E esse povo lá de riba/de Pernambuco da Paraíba,/que vem buscar no
Recife/poder morrer de velhice,/encontra só, aqui chegando,/cemitérios
esperando./- Não é viagem o que fazem,/Vindo por essas caatingas,
vargens;/Aí está o seu erro:/Vêm é seguir seu próprio enterro” (MVS,
191).
Há aqui o início da dor de consciência do autor ao retirar o personagem
de cena para dar-lhe uma voz muda.
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Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea
O golpe final da consciência da miséria é dado na décima primeira
cena, na qual o retirante percebe que havia seguido seu próprio enterro e
que:
A solução é apressar/a morte que se decida/e pedir a este rio,/que vem
também lá de cima,/que me faça aquele enterro/que o coveiro descrevia
(MVS, 192).
A seguir, na décima segunda cena, tem-se o último diálogo de Severino
com o Mestre Carpina, morador dos mocambos, que o livra da morte física,
mas ao mesmo tempo o silencia, levando-o a contemplar o nascimento do
menino. Mas, no diálogo com o Mestre Carpina, Severino, na verdade,
repete sempre a mesma fala, que pode ser resumida pelas últimas palavras
ditas pelo personagem no auto:
- Seu José, mestre carpina,/que diferença faria//se em vez de continuar/
tomasse a melhor saída:/a de saltar, numa noite,/fora da ponte e da vida
(MVS, 195).
As últimas seis cenas do auto, da décima terceira à décima oitava,
representam a invasão da cultura popular arcaica, o que contribui para o
silenciamento do protagonista e sua retirada de cena.
Os personagens que são os vizinhos, os amigos e as duas ciganas
festejam o nascimento do menino de um modo muito “belo”, se se ignorar a
dor por que passou o Severino, o protagonista do auto, que agora é
totalmente excluído, em nome da vida severina que chega. No entanto, o
nascimento não transforma nada, a previsão das ciganas condena-o a uma
vida de privações no mangue ou na fábrica. Seu destino é o proletariado.
Que tipo de esperança ele pode representar para Severino?
Além disso, a fixação exemplarmente popular da situação do
nascimento de Cristo faz sucumbir a voz de Severino, que, como diz o autor
na explicação à última cena, “esteve de fora, sem tomar parte em nada”.
Com o nascimento do menino, como mostra a fala de um dos
personagens:
Cada casebre se torna/no mocambo modelar/que tanto celebram os/
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sociólogos do lugar (MVS, 196).
O desfecho do auto é a prova de que a literatura pode operar o
processo inverso daquele a que o seu autor se propôs. Querendo retratar a
falta de resistência do Severino à opressão, Cabral não consegue fugir a um
desfecho que soa também como a bela e esperançosa consciência amena
do atraso, representada pelo menino que nasce. Prova da percepção dessa
problemática pelo autor é a formalização na estrutura da peça dessa
consciência, com a saída de cena de Severino. E Cabral dá os versos dessa
constatação ao Mestre Carpina:
É difícil defender,/só com palavras, a vida,/ainda mais quando ela é/esta
que vê, severina (MVS, 201).
É difícil fazê-lo, mas talvez, para poetas como Cabral, mais difícil
ainda seja fugir a tentar fazê-lo, nem que isso signifique assumir em seu texto
as contradições da própria literatura como forma de defesa da vida.
3. Forma e religião na construção do silêncio contra-hegemônico
A forma arcaica do auto de Natal e a presença de fortes referências à
religião católica são passos fundamentais para a construção do silêncio do
Severino.
O retratar de uma situação tipicamente brasileira em termos ibéricos
arcaizados foi interpretado por Marly de Oliveira, a organizadora da Obra
completa de Cabral para a editora Nova Aguilar, dessa forma:
Morte e vida severina é uma homenagem às várias leituras ibéricas:
os monólogos do retirante têm em comum com o romanceiro ibérico o
uso do heptassílabo e a assonância; a cena do Irmão das Almas
homenageia o romance catalão do conde Arnaud; a cena do velório é
pernambucana; a da mulher na janela é um poema narrativo em português
arcaico, incorporado ao folclore pernambucano. A cena dos coveiros é,
curiosamente, escrita em verso livre, quem sabe com intenção de
continuar a levar adiante uma conquista modernista. O diálogo do retirante
com Mestre Carpina segue os processos da tenção galega; o resto é
‘romance’ castelhano. O nascimento de Cristo se tornou um fato realista;
a cena dos presentes, como outras, tem relação com os autos
pernambucanos do século passado. As ciganas estão nos autos antigos,
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Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea
prevendo o futuro nascimento da criança. Estão em Pereira da Costa,
na obra sobre o folclore pernambucano”8.
Mas não se pode esquecer a complexidade histórica da formação da
cultura popular nordestina, fortemente marcada pela presença de elementos
ibéricos medievais e pelo atraso em termos de modernização.
A escolha da forma auto, com todos os seus matizes ibéricos
arcaizados, pode ser um sintoma de que a modernidade, literatura incluída,
não pode chegar onde não há modernização material. Uma forma literária
arcaica é, pois, um modo de denunciar a perpetuação da exploração operada
pelas formas pelas quais a colonização se deu, sejam elas estéticas, sociais,
políticas, econômicas. Vê-la como homenagem é vê-la como mero requinte
literário.
Para melhor perceber isso, é necessário tomar a narrativa de Morte e
vida severina como transculturadora, na acepção que dá ao termo Angel
Rama. A atitude transculturadora busca “insertar-se en la cultura dominante
[para] imponer en tierra enemiga su cosmovisión y su protesta”9.
Formas arcaicas de representação cultural puderam representar
resistência aos impactos homogeneizadores de subseqüentes etapas de
modernização. Uma dessas formas é a religião católica, que, segundo Rama,
“pertencia al beligerante impacto externo, pasó a ocupar la defensa del campo
interno desde el silgo XIX, oponiéndose a las ideologias que entonces
visualizó como ‘foráneas’”10.
E ainda afirma Rama que a religião católica “es la que cuenta con
mayor tiempo de asentamiento y más honda penetrabilidad popular. En el
último tercio de XIX en que se produjo la modernizacón positivista, llegó a
ser el modo expressivo de las reivindicaciones rurales contra la aculturación
violenta a que se estaban siendo sometidas las poblaciones de las regiones
internas”11.
Mas a ação de Morte e vida severina não se passa no século XIX,
e o sintoma da religiosidade no auto é o da perda da batalha da aculturação.
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Na época a que se refere o poeta, meados do século XX, a modernização
positiva já havia ganho a batalha e a religião católica e suas formas expressivas
parecem deixar de ser modo operador de reivindicações para ser prisão do
atraso. É importante não esquecer que o Severino faz de sua viagem um
rosário, símbolo da religião católica, que guiará Severino para a beira da
morte e para o silêncio
Morte e vida severina, visto por esse prisma, é resistência contrahegemônica pois é a cristalização da derrota e a reflexão sobre as próprias
possibilidades do discurso contra-hegemônico.
Pode-se encontrar a prova disso na própria estrutura do texto.
Acrescentando-se ao combate cultural entre centro e periferia a questão da
luta de classes, pode-se perceber que as formas arcaizadas em Morte e
vida severina, mais do que resistência popular ao impacto externo, são
denúncias da forma como se deu, cultural ou economicamente, a
modernização na região nordeste do Brasil.
Em Morte e vida severina, a estratégia da folclorização
homogeneizadora é denunciada quando se vê que, ao final do texto, Severino
sai de cena, não fala mais nada, e os elementos religiosos do catolicismo,
junto a outros de origem popular ibérica tomam conta da cena e fazem calar
o desespero do retirante.
Reside aí a crítica à própria impossibilidade da literatura de interferir
de modo contra-hegemônico na vida social. Se o retirante Severino, como
personagem, é “esquecido” pelo autor, se acompanha de fora, sem se
manifestar, o desenrolar da ação mais folclorizada e religiosa do auto, isso
pode querer dizer que a apreensão literária da cultura a que estão ligadas
essas populações severinas pode ser espaço não de resistência contra a
hegemonia do centro, mas de manutenção da opressão. Na literatura de um
país colonizado, as formas populares de cultura mudam de natureza,
disfarçam-se, e contribuem para a perpetuação do silêncio de Severino.
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Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea
É possível, pois, ver na obra de Cabral a profunda contradição que
habita o texto de todo grande escritor latino-americano, e que foi assim
comentada por Rama: “La modernidad no es renunciable y negarse a ella es
suicida; lo es también renunciar a si mismo para aceptar-la”12.
A resposta a Pode o Severino falar? encaminha-se para a negativa,
diante do que foi apresentado até aqui. Mas é preciso assumi-la como um
questionamento de dois níveis. Para o primeiro, que é ligado à questão da
voz de Severino ser emitida de dentro de suas próprias formas culturais,
como o caso da estrutura popular ibérica arcaica representada em Morte e
vida severina, a resposta à questão é, na maioria das vezes: Severino não
pode falar, pois a literatura dos países de periferia pode utilizar-se da cultura
popular a favor da força hegemônica capaz de silenciar o oprimido.
Para o segundo nível do questionamento, a resposta pode ser
relativamente mais otimista. Tendo em vista que é o escritor, representante
da cidade letrada, pelo fato de dominar os códigos da modernização, o
agente capaz de lutar contra a hegemonia da literatura, a resposta à pergunta
pode ser: sim, pode falar o Severino, mas não de maneira sempre evidente.
Mesmo quando sua fala é um aborto de voz, como se vê ao final do poema,
o que nos diz Severino é que ele não pode falar, nem dentro, nem fora da
literatura. À literatura impõe-se, então, o problema da participação eficaz
no debate cultural e político. João Cabral assume o problema e seu duplo
viés dando a chance de mostrar que a voz de Severino é voz vencida porque,
no Brasil, a literatura sempre funcionou como arma hegemônica do
colonizador. Por outro lado, é apenas dentro dela própria que se pode
corroer sua hegemonia. A escolha de Cabral pela forma arcaica do auto é
exatamente a exposição dessa contradição e a afirmação de que a literatura
é cela para o oprimido e também mordaça para sua voz, mesmo parecendo
servir-lhe de púlpito. Assim, o desfecho de Morte e vida severina é o
próprio questionamento do poder da literatura como voz da modernidade.
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A diluição da voz do personagem é uma forma cruel de exposição de
Severino, que, na verdade, ganha poder de enunciação para mostrar sua
própria incapacidade de resistência diante dos dilemas da modernidade de
um país como o Brasil.
Notas
Leite, Sebastião Uchôa. Participação da palavra poética. Petrópolis: Vozes,
1966.
2
Barbosa, João Alexandre. “João Cabral ou a Educação pela poesia”, em A
biblioteca imaginária. São Paulo: Ateliê, 1996, p. 241.
3
Gullar, Ferreira. Vanguarda e subdesenvolvimento: ensaios sobre arte.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p. 96.
4
Candido, Antonio. “A literatura e a vida social”, em Literatura e sociedade.
S. Paulo: Publifolha, 2000, p. 23.
5
Candido, Antonio. “Crítica e sociologia”, em id., p.6.
6
Rama, Angel. La crítica de la cultura em América Latina. Seleción y
prólogos por Saúl Sosnovski y Tomás Eloy Martinez. Caracas: Biblioteca
Ayacucho, 1985.
7
Melo Neto, João Cabral de. Morte e vida severina, em Obra completa.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.172. Daqui em diante, todas as referências
ao poema serão dadas no corpo do texto, sob a sigla MVS.
8
Marly de Oliveira, “Prefácio” a id., p. 18.
9
Apud D’Allemand, Patrícia. “Angel Rama: el discurso de la transculturación”.
Nuevo Texto Crítico, nº 16-7, 1996, p. 139.
10
Apud id., p. 47.
11
Apud id., p. 72.
12
Apud id.. p. 138.
1
Alexandre Pilati - “Pode o Severino falar?”. Estudos de Literatura Brasileira
Contemporânea, no 13. Brasília, maio/junho de 2001, pp. 3-17.
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