ATEOLOGIA BÍBLICA
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Colóquio
Ateologia bíblica: convite a uma exegese laica
Biblical atheism: An invitation to a secular exegesis
Anderson de Oliveira Lima1
Resumo
Desenvolvido a partir de uma comunicação científica, apresentada em maio de 2017, na Pontifícia Universidade Católica
de Campinas (num painel cuja temática era: Pluralismo e fundamentalismo: desafios religiosos em colóquio intitulado
Por uma cultura da paz, em comemoração aos 50 anos da Populorum Progressio, organizado pelo Núcleo de Fé e
Cultura da mesma universidade), este artigo apresenta a visão pessimista de um exegeta sobre sua profissão, e traz uma
proposta para uma renovação das produções exegéticas em geral. Em poucas palavras, o autor propõe uma análise
literária da Bíblia, que aproveita a laconicidade própria da narratividade bíblica para criar novas leituras, que faz um
uso inusitado da filosofia materialista e hedonista do escritor francês Michel Onfray, em sua hermenêutica para fugir
às leituras canônicas e institucionais, e que expõe a pluralidade de caminhos interpretativos possíveis para negar a
produção dogmática e inaugurar o que aqui foi chamado de ateologia bíblica.
Palavras-chave: Ateologia bíblica. Bíblia como literatura. Exegese. Hedonismo. Michel Onfray.
Abstract
Developed from a scientific communication presented in May 2017 at the Pontifícia Universidade Católica de Campinas,
(on a panel whose theme was: Pluralism and fundamentalism: religious challenges in an event entitled For a culture of
peace, commemorating the 50th anniversary of Populorum Progressio, organized by the Núcleo de Fé e Cultura [Center
of Faith and Culture] of the same university), the article shows the pessimistic view of an exegete about his activity and
brings a proposal for a renovation of the exegetical works. In few words, the author proposes a literary approach to the
Bible that uses the typical gaps in the biblical narratives to create new readings, that uses the materialist and hedonist
philosophy of the French writer Michel Onfray in its unused hermeneutics to differ from canonical and institutional
readings, and shows the plurality of possible interpretative ways to deny the dogmatic production about the Bible and
to begin with the art which has been called here biblical atheology.
Keywords: Biblical atheology. Bible as literature. Exegeses. Hedonism. Michel Onfray.
Introdução
Confissões de um exegeta2
A exegese bíblica é minha atividade rotineira, uma arte cujo aprendizado (o contato com
seus variados métodos) fez-me apaixonado pela literatura bíblica. Apresento-me, portanto, como
1
2
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Centro de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Religião. Campus I, R. Professor Doutor Euryclides de Jesus Zerbini, 1516, Parque Rural Fazenda Santa
Cândida,13087-571, Campinas, SP, Brasil. E-mail: <
[email protected]>.
Notará o leitor (espero que sem pesar) que este conteúdo preserva elementos de oralidade por ter sido preparado para ser
apresentado sob a forma de comunicação científica. Estes trabalhos são parte da pesquisa de pós-doutorado que o autor
atualmente desenvolve na PUC-Campinas com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(Capes).
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um biblista, um exegeta, e é-me difícil deixar de pensar o mundo e a vida sem passar pelos temas
bíblicos. A custosa aquisição dessa competência (a exegese bíblica) me ocupou, especialmente
durante os anos em que estive vinculado, como estudante, ao Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. Ali, entre os anos de 2006 e 2014,
obtive títulos no Lato-Sensu, mestrado e doutorado, e foi a exegese, dedicada sobretudo à analise
do Evangelho de Mateus, o grande objeto de meu maior interesse.
Nos últimos anos afastei-me daquela Universidade que, para mim, se tornou o centro
geográfico da exegese. Segui os estudos noutros centros universitários, primeiro na Universidade
Presbiteriana Mackenzie, onde doutorei-me em Letras, e mais recentemente na Pontifícia
Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), onde desenvolvo pesquisa de pós-doutorado.
Essa mudança de cenários me fez refletir sobre minha área de atuação de maneira desfamiliarizada3,
me levando a assumir um novo ponto de vista que me proporciona novas conclusões sobre minha
atividade. Permitam-me enumerá-las:
1) Percebi que raramente alguém se dedica à leitura de textos exegéticos (e isso inclui os
exegetas). Triste constatação! O discurso exegético é um gênero hermético, um produto técnico,
um texto utilitário, feito para consultas eventuais, de alcance reduzido. Ou seja, fui forçado a
admitir que todo material que eu produzia dificilmente seria lido e, consequentemente, eu teria
pela frente uma carreira pouco promissora (especialmente estando fora dos meios religiosos
institucionalizados). Passei a pensar que era urgente a necessidade de transmitir os resultados de
minhas análises de um modo distinto, mais atrativo: era o primeiro problema que eu tinha para
resolver.
2) A exegese de que falo é um conjunto de métodos, de instrumentos desenvolvidos para
melhor interpretar a Bíblia. Antigamente o que se queria com essa ciência era alcançar a verdade,
recuperar a voz dos autores reais, combater as leituras consideradas abusivas, as alegorizações
desenfreadas, as heresias em geral. Atualmente todos esses objetivos estão fora de moda. Os
sentidos originais, encontrados pelos mais dedicados exegetas, nunca coincidiram; foram, na
verdade, criados pelos leitores que usaram o arsenal exegético para impor suas leituras com novos
argumentos. Portanto, meu segundo problema era que, ainda seria preciso trabalhar para superar
os métodos tradicionais, Histórico-Críticos e, para continuar desenvolvendo e atualizando os
instrumentos analíticos, o que se faz melhor, constatei, aprendendo dos críticos literários, que não
possuem relações com a longa história da leitura bíblica e que, justamente por isso, se encontram
em melhores condições para o desenvolvimento de novas abordagens para a Bíblia.
3) Relacionado ao item anterior, também pude perceber que a exegese bíblica, de
pretensões acadêmicas, tornou-se mesmo um instrumento legitimador de muitas leituras abusivas.
Fundamentalistas religiosos diplomaram-se para tornar mais aceitáveis suas ideologias. Diante
dessa ameaça, muitos diriam que uma exegese honesta, imparcial, laica (o que é também uma
opção ideológica), tornar-se-ia um modo de expor o conteúdo bíblico de maneira mais direta,
livre de qualquer mediação religiosa e interessada. Mas, é uma crença ingênua essa, que confia
3
O conceito de desfamiliarização foi desenvolvido nas primeiras décadas do século XX por representantes do chamado
Formalismo. Segundo ele, nossa percepção habitual do mundo tende a se gastar; o cotidiano anestesia nossa capacidade
de julgamento até o ponto em que absurdos como a violência das guerras se tornam normais. Os formalistas sugeriram que
a arte produz instrumentos capazes de nos fazer repensar a realidade, de alterar nosso ponto de vista habitual, para que
possamos sentir a vida de maneira renovada.
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na possibilidade de uma aplicação direta – imediata – do conteúdo bíblico. Quem a defende julga
que, basta viver a Bíblia, basta aderir a seus valores e submeter-se a seus imperativos. Entretanto,
a verdade é que estes antigos textos não podem servir sem uma ação hermenêutica, sem uma
devida atualização e, muito menos, sem uma posição ideológica por parte do leitor. Ainda é
preciso ler a Bíblia criticamente, usando essa obra clássica como ponto de partida para novos
discursos, sem servir passivamente ao texto nem a usar como mero pretexto. O terceiro problema,
portanto, é de ordem ideológica: como ler criticamente a Bíblia? Que usos são, dessa literatura,
aceitáveis, úteis a uma sociedade laica?
Foi desse lugar inusitado, desse estado inquieto, insatisfeito, crítico, que passei a pensar
sobre o caminho a seguir, não apenas em busca de uma formulação que pudesse servir como
contribuição à ciência exegética, mas, especialmente, como alternativa viável ao exercício profissional dessa minha (talvez um pouco excêntrica) paixão exegética.
O nascimento da ateologia bíblica
Com essas questões em mente, fui convidado, no início de 2016, a trabalhar sobre
os primeiros capítulos de Gênesis para uma disciplina que tratava de mitologia. Vi nisso a
oportunidade de desenvolver uma literatura exegética mais atraente, uma hermenêutica mais
atual, uma abordagem mais crítica. O primeiro exercício de leitura ateológica foi apresentado aos
mestrandos do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-Campinas e, meses
depois, se transformou num livro, que deverá ser lançado em breve, cujo título (provisório) é
Ateologia das origens.
Ao término dessa produção acreditei ter encontrado meu caminho. Os primeiros capítulos
do Gênesis foram lidos de um modo que, a meu ver, solucionavam os problemas apontados
anteriormente. Mas eu havia trabalhado como um artista, não como um professor: agi como
alguém que executa uma fuga bachiana, deslumbrado por sua beleza polifônica e, sequer,
cogita a possibilidade de explicar aos leigos que há um tema melódico a ser perseguido, que
há um método composicional, uma lei do contraponto, característica do gênero que restringia
a liberdade do compositor e exigia muitas daquelas tantas notas. Era chegada a hora de refletir
sobre o empreendimento, tempo de racionalizar a criação literária, de expor os pressupostos de
minha abordagem ateológica e, quiçá, esboçar um roteiro que tornasse esta produção singular
num modelo aplicável a novos objetos.
Inauguro esse segundo tempo aqui, dizendo que foram três as posturas adotadas, as ações
que deram origem a essa literatura exegética.
Primeiro planejei um meio de suavizar o problema relativo à linguagem exegética. O
objetivo era desenvolver um discurso que não fosse tão dependente da leitura acompanhada
da Bíblia. Ainda que a intertextualidade continuasse sendo marca indelével dessa produção, eu
queria elaborar uma metalinguagem que pudesse ser lida por si mesma. Procurei comunicar-me
em linguagem escrita através de uma prosa mais leve, com maiores preocupações estéticas e
maior fluidez. Empenhei-me por livrar meu texto dos hábitos acadêmicos, quis trabalhar sem a
constante preocupação com a objetividade científica, sem importar-me tanto com o apoio em
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referencial teórico legitimador. Embora eu considere o resultado obtido satisfatório para uma
primeira experiência, esse é um elemento que não poderei demonstrar aqui, e cuja avaliação
requer outros olhares.
Para a atualização metodológica segui ampliando as distâncias entre minha exegese e
os métodos tradicionais. Acerquei-me mais das teorias literárias contemporâneas, da Semiótica
Discursiva e da Crítica Narrativa. De especial interesse para meu novo fazer exegético foi a produção
de Erich Auerbach sobre a laconicidade das narrativas bíblicas, que revela a Bíblia como obra não
apenas fragmentária, mas intencionalmente aberta, obra que incentiva a constante participação
do leitor no processo de produção de sentidos. Demonstrou o crítico alemão que é exatamente
pelos espaços brancos deixados na própria obra, que a Bíblia continua a ser lida e considerada
relevante, promovendo um fácil diálogo com leitores de todas as gerações:
[...] o crente se vê motivado a se aprofundar uma e outra vez no
texto e a procurar em todos os seus pormenores a luz que possa
estar oculta. E como, de fato, há no texto tanta coisa obscura e
inacabada, e como ele sabe que Deus é um Deus oculto, o seu afã
interpretativo encontra sempre novo alimento (AUERBACH, 2011,
p.12).
Auerbach, um dos primeiros a emitir juízos dessa ordem a respeito das narrativas bíblicas,
estava atuando em pleno acordo com o que diziam as teorias literárias de meados do século XX,
que viam o texto como objeto interacional, como processo comunicativo que espera sua efetiva
realização no ato da leitura. Ainda que sigamos afirmando que a comunicação é, neste caso,
conduzida por um texto escrito, fixado, a lacuna deixada no interior de uma narrativa pode ser
compreendida como espaço privilegiado para a participação do leitor no processo criativo, lugar
que prevê ou até pede a participação do leitor (ISER ,1999).
Pode-se dizer que a leitura bíblica tradicional, assim como a maior parte da literatura
exegética, toda a produção teológica, dogmática, todos os comentários bíblicos etc., são trabalhos
que oferecem resultados de leituras já realizadas, preenchimentos de algum leitor à essas lacunas
narrativas. De meu ponto de vista atual, diria que essas produções empobrecem a tradição bíblica
por preencherem aqueles espaços estimulantes, com a pretensão de colocar fim às conjeturas,
querendo inserir-se no cânone. Deveras, o que querem muitos leitores é a eleição de suas próprias
leituras, a canonização de suas interpretações, o que é um desserviço àquela literatura que, por
lançar reiteradamente mão de tantos espaços, parece ter a ambiguidade como efeito desejado
(ISER,1999).
Para fugir a esse problema é necessário que a leitura, a composição da metalinguagem,
não seja compreendida como produto definitivo, como esgotadora da literatura que comenta
e que, por sua vez, deve permanecer ambígua, incerta, plurissignificante, sempre aberta a
novas apropriações. A importância da exegese não está no desvendamento dos segredos, na
intepretação dos enigmas, mas no aspecto hermenêutico, atualizador, tradutor. Isto é, a produção
metatextual oferece, em seu próprio tempo e lugar, uma versão adaptada da literatura original, e
isso é importante quando lidamos com textos tão antigos quanto a Bíblia.
Por mais que digam que todo leitor deve ter acesso imediato à literatura bíblica, segue
sendo verdadeiro o fato de que, um texto tão antigo não pode ser compreendido sem alguma
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forma de mediação. Traduções e versões já são, obviamente, maneiras mediadas de transmitir o
conteúdo bíblico a novos leitores. Minha pretensão é, nesse sentido, oferecer uma leitura a mais,
a minha leitura, produção que parte da Bíblia e aproveita seu conteúdo como ponto de partida
para discutir questões que até ousam excedê-la, temas que hoje possuem relevância e que aquelas
antigas páginas não poderiam dar conta.
Conhecer a história de Caim e Abel, retomá-la junto a uma nova geração, é algo que vale
por si. Mas o prazer literário será maior quando pudermos, livres das pressões religiosas, brincar
nos pontos cegos do texto; quando nos for concedido o direito de conjeturar sobre as razões que
fizeram Eva agradecer ao Deus que a amaldiçoou com dores de parto pelo custoso nascimento
de seu primogênito. E por que não discutir essa suposta maldição? Por que não falar dos avanços
da medicina que chegam a invalidar as palavras infelizes do Deus hebreu? Por que não questionar
as teologias, os dogmas, as estruturas sociais que por tantos séculos se sustentaram sobre esses
frágeis alicerces mitológicos?
Suponho que saborearemos mais a literatura bíblica quando pudermos elucubrar sobre os
possíveis motivos que levaram Caim a oferecer uma oferenda nunca solicitada a Javé, ou sobre as
curiosas preferências daquele Deus carnívoro. Também nos deleitará imaginar como caminhava
Caim ao exílio e como surpreendeu-se ao descobrir que o mundo era maior do que aquele que os
mapas de Javé representavam. Sem dúvida, dar passos sobre terrenos tão incertos e refletir com
rigor, para oferecer saberes de maneira tão despretensiosa e tolerante, é mais difícil aos leitores
acostumados à busca da verdade unívoca de suas Escrituras Sagradas. Isso me conduz ao terceiro
aspecto que dá identidade à minha leitura, abre espaço para explicar porque tenho chamado
minha abordagem de ateologia bíblica.
O termo ateologia foi tirado de um polêmico livro intitulado Tratado de ateologia: física da
metafísica, de autoria do filósofo francês Michel Onfray. A obra faz um ataque feroz às religiões
monoteístas, combate a permanência sub-reptícia das tradições e valores cristãos em nossas
sociedades supostamente laicas (ONFRAY, 2014a). Não negarei a influência do pensamento
onfrayano sobre minha atual prática de leitura, contudo, devo dizer que o que tenho chamado de
ateologia bíblica difere daquilo que o autor pratica. Em resumo, o que faço é explorar a pluralidade
teológica dos textos bíblicos para usá-la contra as pretensões dogmáticas. Minha ateologia consiste mais na demonstração da pluralidade de caminhos interpretativos, possibilitados pelos
próprios textos bíblicos (e a laconicidade acima comentada é elemento de singular importância
para torná-la possível), do que no combate aos monoteísmos que caracteriza a ateologia de
Onfray. Busco ignorar as leituras mais comuns, a maior parte da história da leitura bíblica (que,
como já mencionei, partiram do pressuposto de que era interessante estudar a Bíblia a fim de se
aproximar mais de sua verdadeira significação) e as produções hermenêuticas, que servem quase
sempre aos interesses das instituições, para seguir em busca de uma exegese criativa, que tenho
chamando de fazer ateológico.
A ateologia bíblica como uma leitura exegética descristianizada
Não é apenas pelo empréstimo do título de seu livro que a presença de Michel Onfray se
fará notar em minha nova maneira de ler a Bíblia. Quero dedicar este item para declarar como, de
modo imprevisto, o pensamento onfrayano se tornou decisivo no trabalho de um exegeta.
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Eu disse anteriormente que é ingenuidade supor que seja útil fazer uma simples
tradução do conteúdo bíblico para que ele se torne inteligível e aplicável à atual geração de
leitores. A mediação do leitor não é só inevitável como necessária, embora a complexidade de
uma competente atividade hermenêutica não deva ser subestimada. Um exegeta competente
de nossa América Latina alcança bons resultados na leitura e na teologia de um livro como o
do profeta Amós, fonte fecunda para todas as leituras de pretensões libertadoras. Todavia, o
que fará ele, se mantiver a honestidade científica e o rigor metodológico, ao se deparar com a
ideologia opressora do segundo salmo? Rasgará a Bíblia? Apelará à abordagem tipológica típica
dos primeiros cristãos? Proporá inutilmente uma revisão da antologia canônica? Converter-se-á a
novas utopias religiosas em cada nova exegese realizada? Quando a exegese revela um conteúdo
impróprio – falemos honestamente – é preciso recusar os mandamentos; é necessário resistir com
veemência às construções ideológicas dos mundos bíblicos quando elas são abusivas, misóginas,
racistas, violentas, intolerantes etc. É preciso ter opinião própria, preservar a autonomia sem se
curvar precipitadamente ante o objeto sagrado.
Se o exegeta bíblico serve bem à sua geração, apresentando-os sempre, e de novo, o
acervo cultural que a literatura bíblica preserva, e se nessa tarefa ele não é apenas tradutor, mas
intérprete, crítico, atualizador, recriador, ele não precisa abster-se do livre pensar, não precisa
reduzir-se à atividade de um simples arauto de velhos sábios. Convencido disso, decidi abusar da
filosofia marginal explanada por Michel Onfray em sua Contra-história da filosofia, coleção que
conta, no Brasil, com 6 volumes publicados até agora. Nessa coleção estão os autores que orientam
ideologicamente minha ateologia bíblica e, dentre eles, destacam-se os pré-socráticos Aristipo (o
hedonista) e Demócrito (o atomista), Epicuro, Lucrécio (vol. 1), Montaigne (vol. 2), Espinosa (vol.
3), Barão de Holbach (vol. 4), John Stuart Mill (vol. 5.), Thoreau, Stirner, Schopenhauer (vol. 6) e,
acima de todos, Nietzsche (vol. 7)4 (ONFRAY, 2014a).
A seleção dos autores feita por Onfray tem o objetivo de compor uma história da filosofia
que traga à tona uma série de pensadores que, em geral, são negligenciados pela historiografia
dominante que, segundo o autor, privilegia uma filosofia de linha idealista, herdeira do platonismo,
sempre bem recebida por ser o fundamento filosófico do cristianismo. Para Onfray, “a historiografia
dominante no Ocidente liberal é platônica”, pois “O idealismo, a filosofia dos vencedores desde
o triunfo oficial do cristianismo que se tornou pensamento de Estado [...] passa tradicionalmente
por ser a única filosofia digna desse nome” (ONFRAY, 2008, p.15). Cito mais algumas linhas do
autor a esse respeito:
[...] a historiografia dominante procede de um a priori platônico
em virtude do qual o que procede do sensível é um ficção. A única
realidade é invisível [...] verdade das Ideias, excelência do mundo
Inteligível, beleza do Conceito e, em contrapartida, feiura do mundo
sensível, rejeição da materialidade do mundo, desconsideração do
real tangível e imanente (ONFRAY, 2010, p.6).
Para deixar os lugares comuns da história da Filosofia “cindida por três tempos: o momento
platônico, o tempo cristão, o idealismo alemão” (ONFRAY, 2010, p.7), exige-se que a história
4
Nietzsche é considerado no sétimo volume da Contra-história da filosofia de Onfray, título não publicado no Brasil até a
presente data. Todavia, há uma obra mais antiga do mesmo autor que elege o pensamento nietzschiano como tema e está
disponível ao leitor brasileiro. Trata-se de A sabedoria trágica: sobre o bom uso de Nietzsche.
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do pensamento ocidental seja reescrita, já que “falta evidentemente uma história dos vencidos,
uma historiografia dos pensadores dominados, uma doutrina oficiosa e alternativa” (ONFRAY,
2008, p.18). Faz-se necessário que se reconheça que a filosofia não nasce com Sócrates e Platão,
que não era na antiga ágora coisa de acadêmicos e profissionais, mas reflexão para o cotidiano,
ensinamento para os passantes. Por conta disso o leitor percorrerá mais de mil páginas de Contra-história da Filosofia sem encontrar (a não ser de maneira indireta) Platão, Aristóteles, Agostinho,
Tomás de Aquino, Descartes, Kant ou Hegel. É claro que tudo isso soa como uma tentativa de
dar prosseguimento à transvaloração nietzschiana, inspiração que Onfray não nega ao conjeturar
sobre um futuro pós-cristão (ONFRAY, 2014b).
Apesar de a filosofia que se pratica no mundo ser quase sempre a dos vencedores idealistas,
uma “Velha filosofia sempre ativa, nebulosa e de elite, absconsa e autista, salpicada de neologismos
e saturada de brumas [...]” (ONFRAY, 2008, p.21), o pensamento alternativo dos materialistas
sempre encontrou representantes, e sua sabedoria ainda pode ser reencontrada. Materialistas,
hedonistas, epicuristas e ateístas podem ser desenterrados, devidamente conhecidos e muito bem
aproveitados. E, fazendo uso dessa riquíssima herança negligenciada, Michel Onfray elaborou um
sistema filosófico que propõe uma “moral ateológica”, descristianizada, que passará por uma
“erótica solar”, uma “estética cínica”, uma “bioética prometeica”, uma “política libertária”5.
De Michel Onfray minha ateologia bíblica colhe tanto quanto possível. Para ler a Bíblia a
partir de um sistema ideológico imprevisto, extremamente incomum na história da leitura bíblica,
lanço mão de uma série de posicionamentos materialistas, que podem ser extraídos principalmente
de obras como A potência de existir (ONFRAY, 2010) e Cosmos (ONFRAY, 2010). O materialismo
“reduz a totalidade do que existe a combinações que não deixam nenhum espaço para o delírio
ou a fantasia que animam os idealistas, afeitos a elucubrações pouco preocupadas com o real”
(ONFRAY, 1999, p.116), e é partindo dele que Michel Onfray propõe a reaproximação inteligente
entre o homem e o mundo para que reconheçamos em nós as leis que determinam a vida de
todos seres vivos e aceitemos o destino que temos em comum com os demais mamíferos. Ele nega
não apenas a necessidade de qualquer esperança religiosa, mas também a ideia de que a cultura
seja algo que se oponha à natureza: “A cultura é uma secreção da natureza, mesmo quando
parece uma antinatureza. Pois, o quê na natureza poderia escapar à natureza?” (ONFRAY, 2016,
p.151). Depois, aproveitando pensadores como Schopenhauer6 (ONFRAY, 2015, p.24), afirma que
a diferença entre os homens e as demais espécies animais não passa de uma pequena gradação
e, procurando construir um discurso filosófico que seja acessível, que sirva ao homem em seus
interesses mais práticos, afirma que a filosofia deve partir do conhecimento do corpo que, enfim,
deve nos conduzir a uma espécie de hedonismo.
O hedonismo é definido por Michel Onfray em A potência de existir a partir de uma
máxima de Chamfort, o autor cita: “frua e faça fruir, sem fazer mal nem a você nem a ninguém,
eis toda a moral”. Onfray a comenta: “Com isso, tudo está dito: fruição de si, decerto, mas
também e sobretudo fruição do outro, porque sem ela nenhuma ética é possível ou pensável,
5
6
Cito aqui os títulos dos capítulos de “A potência de existir” (Cf. ONFRAY, 2010).
Por exemplo, Schopenhauer escreveu em O mundo como vontade e representação (Tomo 1), §6: “O entendimento é o mesmo
em todos os animais e em todos os seres humanos, possui sempre e em toda parte à mesma forma simples: conhecimento
da causalidade, passagem do efeito à causa e desta ao efeito, e nada mais. Porém o grau de acuidade do entendimento
e a extensão de sua esfera cognitiva são extremamente diversos, variados e se escalonam em diferentes graus [...]” (Cf.
SCHOPENHAUER, 2015, p.24).
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já que somente o estatuto do outro a define como tal” (ONFRAY, 2010, p.28). Em A arte de ter
prazer o autor trata do “pleno sentido” do hedonismo de maneira que nos permite compreender
melhor sua relação com o materialismo: “Vontade de produzir formas únicas, de transfigurar
o real em emoções, de tomar o mundo como um pretexto para beleza, excelência e prazer. Os
instrumentos dessa alquimia são os cinco sentidos exacerbados pela consciência” (ONFRAY, 1999,
p.218).
Assim, o pensador francês atualiza a herança pré-socrática cirenaica, para a qual o prazer
era o bem supremo, a felicidade a soma dos prazeres (LAÉRCIO 2014, p.69) e aplica, em novas
circunstâncias, a antiga “aritmética dos desejos” de Epicuro7 (EPICURO, 2016). Em outras palavras,
sua filosofia busca a maximização dos prazeres e a minimização dos desprazeres, trata-se de uma
filosofia prática, que tem o bem-estar humano como objetivo, que ensina que “a verdadeira
certeza não é a de uma vida depois da morte, mas a de uma vida antes da morte e que se deve
fazer dela o melhor uso possível” (ONFRAY, 2016, p.346), que insta os leitores a calcular seus atos
para que possam, sem prejuízos futuros, coletar no presente os impulsos capazes de suscitar no
cérebro as sensações que, de fato, nos proporcionam a sensação de felicidade.
Considerações Finais
Portanto, a que me refiro quando falo de Ateologia bíblica? Falo de uma proposta que
parte da abordagem literária dos textos bíblicos, uma abordagem laica que se inspira no valor
das narrativas sem ter que se curvar precipitadamente ante suas ideologias, sem superestimar a
utilidade da compreensão e aplicação literal de suas passagens, sem exigir submissão a todo e
qualquer imperativo que nos venha de um mundo ficcional e supostamente edênico.
A Ateologia bíblica é a saída que tenho encontrado como exegeta afeito aos métodos
e rigores acadêmicos, é a proposta que faço àqueles que porventura tenham feito uma leitura
semelhante à minha sobre a atividade exegética em nossos dias. Estou disposto a reconhecer que
a adesão à filosofia materialista e hedonista de Michel Onfray não é obrigatória, que a alternativa
ideológica que me seduziu não será tão atraente a outros, mas insisto que não seria perda de
tempo refletir a respeito do trabalho exegético, sobre a renovação de sua linguagem, sobre sua
autonomia quanto às pressões religiosas e institucionais, sobre sua teoria como pretensa ciência
literária.
Evidentemente não tenho condições de apresentar aqui exemplos suficientes, pelo que
estas páginas parecerão inacabadas a muitos leitores. Certamente elas funcionarão melhor quando
puderem ser lidas como paratexto daquela Ateologia das origens, livro que tenho anunciado e
que, espero, estará disponível até o fim de 2017.
Referências
AUERBACH, E. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2011. p.12.
7
Com “aritmética dos desejos” Onfray se refere no primeiro volume de sua Contra-história da filosofia (Cf. ONFRAY, 2008,
p.194) a uma famosa passagem da carta de Epicuro em que o autor aconselha seu destinatário sobre que desejos escolher,
classificando-os e medindo-os a partir de seus efeitos (Cf. EPICURO, 2002, p.35).
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EPICURO. Carta sobre a felicidade (A Meneceu). São Paulo: Editora Unesp, 2002. p.35-39.
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LIMA, A.O. Ateologia bíblica: convite a uma exegese laica. Cadernos de Fé e Cultura, v.3, n.1, p.57-65, 2018. http://dx.doi.
org/10.24220/2525-9180v3n12018a4303
http://dx.doi.org/10.24220/2525-9180v3n12018a4303
Cad. Fé e Cultura, Campinas, v.3, n.1, p.57-65, 2018