10.
Preservação do
Património
Fotografia José Aguiar
10. Preservação do Património
10. Preservação do Património
10.1. Introdução
O património arquitetónico e o urbanístico são hoje, na Europa,
imperativos tanto culturais, como ambientais, ecológicos e económicos.
A relação do ser humano com a memória é condição necessária para a
construção da sua identidade e revela-se muito mais importante do que antes se
julgava: sem ela temos dificuldade em configurar, ou projetar, um futuro.
O valor das construções antigas evolui e altera-se muito rapidamente. Hoje
classificamos como património objetos, conjuntos e sítios, partes extensivas da
cidade ou paisagens que ontem julgávamos correntes, ou até vulgares.
A acelerada extensão cronológica, geográfica e tipológica do conceito de
património reflete-se na atual diversidade de categorias patrimoniais na
Arquitetura, e, por isso falamos hoje também em património urbanístico,
paisagístico, conventual, industrial, militar, moderno e do século XX, habitacional
ou corrente, etc 1.
O património cultural é um desígnio e uma oportunidade, mas também um
problema: na era da globalização e do auge de uma economia neoliberal explodiu
o consumo de património 2, e este tornou-se muito apetecível para novas
indústrias dependentes do turismo massificado 3 e de um mercado imobiliário
implacável. Intervenções imediatistas, tendem a reduzir a densidade narrativa
das edificações, apagando irremediavelmente a autenticidade, a integridade e os
valores patrimoniais, ao mesmo tempo que fazem ressurgir fenómenos de
segregação social.
Simone Ruivo
Figura 10.1 – Arq.º Álvaro Siza, Casa de Chá da Boa Nova (Monumento Nacional
desde 2012). A reabilitação recente, de Álvaro Siza, mantém a integridade espacial
e construtiva do edifício.
1 Uma resenha atualizada das taxionomias, conceitos e critérios fundamentais em património cultural,
foi disponibilizada no livro online de Helena Barranha (org.), Património Cultural. Conceitos e critérios
fundamentais.
Lisboa:
IST
Press
e
ICOMOS-Portugal,
2016.
Disponível
em:
http://istpress.tecnico.ulisboa.pt/files/E-book-patrimonio.pdf (consulta em Maio de 2019).
2
Françoise e Choay. Património e Mundialização. Évora: Casa do Sul Editora/CHAIA, 2005.
Se continuarmos a aceitar a síntese Vitruviana, segundo a qual a definição
da própria Arquitetura se resolve como uma arte eminentemente funcional (na
resolução prática dos usos) e conceptual (o pensamento e a reflexão aplicadas
ao projeto), implicando uma íntima concatenação/fundamentação/articulação
entre firmitas, utilitas e venustas, podemos fazer a crítica de que nos processos
de reabilitação do século XX e do início do século XXI nos concentramos,
algo obcessivamente, nos problemas da salvaguarda das formas ou ‘imagens’,
sobretudo do exterior. Deste modo, são muitas vezes esquecidas a matriz
tipológica da edificação, a lógica da organização dos seus espaços, na sua íntima
relação com uma cultura da construção (e os seus específicos valores
materiais e tecnológicos) resultando, em muitos casos, em intervenções
epidérmicas e pouco qualificadas (em muitos casos, demolição acrítica,
desnecessária e infundamentada dos interiores mantendo apenas a fachada, i.e.
fachadismo 4).
Mesmo quando é inevitável a conservação de alguns interiores, pelo seu
inegável valor intrínseco, a estética minimalista vigente suporta intervenções de
"branqueamento" literal dos programas decorativos existentes, numa
incompreensão cultural que impossibilita a sua leitura para as gerações futuras.
Cores, texturas, nível de brilho dos acabamentos são características da expressão
arquitetónica que devem ser reequacionadas numa intervenção contemporânea
sobre estruturas construídas do passado.
Figura 10.2 – O "Branqueamento" dos programas decorativos policromáticos.
Edifício República 37, Prémio Nacional de Reabilitação Urbana, Arq., Frederico
Valsassina.
https://expresso.pt/economia/2018-05-13-Edificio-Republica-37em-Lisboa-ganha-tres-premios#gs.dsc8ek, acedido em 23 de maio de 2019.
3 Javier Rivera Blanco, De Varia Restauratione. Teoría e Historia da la Restauración de la
Arquitectónica. Valladolid: Editorial América Ibérica, 2001, p. 187.
4 Aquilo a que se chama fachadismo – a destruição de um edifício com qualidade espacial e
construtiva preservando apenas as fachadas - implica graves perdas de valor patrimonial e cultural,
por perda de autenticidade de integridade (excesso de demolições, de repristinação e renovação).
Sobre o tema veja-se José Aguiar, “Reabilitação ou Fraude”. Em: Revista Património, n.º 2 (2014): pp.
56-69.
Guia FNRE
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10. Preservação do Património
de filósofos, artistas, historiadores, políticos, etc. 6 A partir do século XIX,
intensifica-se o debate e a teorização sobre a intervenção em preexistências, a
par com o alargamento do conceito de valor do património monumental,
evoluindo do monumento histórico, enquanto peça isolada, para os contextos,
conjuntos urbanos e sítios, e depois, progressivamente, para as paisagens
culturais, o património vernacular, industrial, moderno, os saberes…
Se a teorização sobre a intervenção em preexistências foi marcada nos
séculos passados por posições doutrinárias e prescritivas – do restaurorepristinação à mais estrita conservação-manutenção – hoje tende a evitar-se
posições predeterminadas ou normativas defendendo-se a problematização e
reflexão crítica e a interpretação arquitetónica em que “cada caso é um caso”.
Teresa Cunha Ferreira
Figura 10.3 – Recuperação e manutenção de policromias de revestimentos
interiores. Arq. º Fernando Távora, Casa Primo Madeira, 1986-1988 (Prémio João
de Almada, 1990).
As construções antigas são entidades complexas e pluri-estratificadas com
valores culturais, sociais, ambientais, económicos e tecnológicos, que o projeto
tem de considerar e integrar, construindo com o construído. Considerando o
edifício como um palimpsesto a ler e a interpretar, importa identificar os
elementos arquitetónicos essenciais que materializam a sua identidade e
descodificar as suas metamorfoses 5, evitando obliterar valores e criar
desnecessárias antinomias, como quem procura desenhar uma nova poesia, que
evoca antigos versos, e que nos (re)surge com íntima familiaridade.
A atenção à recuperação de valores do passado é um processo intrínseco
às práticas da Arquitetura ao longo de séculos, acompanhada pelo pensamento
5
Alton Capitel. Metamorfosis de monumentos y teorías de la restauración. Madrid: Alianza Forma,
1992
6
Para aprofundamento cfr., entre outros, Anton Capitel (1992); Carolina di Biase (coord.), Il restauro
e i monumenti, Milano, Clup, 2003; Ignacio Gonzales-Varas, Conservacion de Bienes Culturales.
Teoria, história, princípios y normas, Madrid, Cátedra, 1999.
146
Guia FNRE
José Adrião
Figura 10.4 – Arq. José Adrião, reabilitação habitacional na Rua dos Fanqueiros,
Lisboa.
Sobre o tema, entre outros: Ignasi Solà-Morales, "Teorias de la Intervencion arquitectónica”.
In Intervenciones, ed. Ignasi Solà-Morales. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, 2006; Francisco Di
Gracia, Construir en lo construido. Madrid: Nerea, 1992; Ignasi Solá-Morales, “Do contraste à
analogia”. Em A la recherche du temps perdu, «JA- Jornal Arquitectos», n.º 213 (2003).
10. Preservação do Património
ética de um rigoroso e exaustivo (re)conhecimento do edifício a transformar” 7.
Surge assim um aliciante campo de ação, assente no desafio de reabilitar as
antigas construções, adaptando-as a novos usos, exigências e desígnios
contemporâneos, num eterno “continuar-inovando” 8.
Sendo verdade que qualquer projeto arquitetónico opera sempre sobre
preexistências, a presença de valores culturais implica, porém, a seleção e
hierarquização de valores, já não só os rememorativos e de contemporaneidade 9,
mas hoje também os sociais, económicos e ambientais 10, implicando um
criterioso estudo, análise e interpretação das arquiteturas a transformar.
10.2. O Quadro Regulamentar Atual
João Ferrand
Figura 10.5 – Arq.s Francisco Barata, Nuno Valentim, José L. Gomes (CEFA-FAUP),
Reabilitação de edifício projetado pelo J. Marques da Silva na Rua Alexandre Braga,
Porto (Prémio João de Almada 2014).
O desenvolvimento de um projeto de reabilitação em património cultural
(nacional ou local, em património urbanístico ou em conjuntos e sítios) parte
sempre do reconhecimento e da avaliação da preexistência onde intervimos de
acordo com uma essencial teoria de valores. O essencial dessa teoria está
transcrito na Lei Quadro do Património Português (Lei 107/2001), que destaca
o valor de civilização e cultura e especializa o interesse cultural relevante em
histórico, arqueológico, arquitetónico, documental, artístico, etnográfico,
científico, social, industrial ou técnico (entre outros) refletindo ainda valores de
memória, antiguidade, autenticidade, originalidade, raridade, singularidade ou
exemplaridade 11.
Quando o projeto de reabilitação incide sobre edificações com valor
patrimonial, e ainda mais nas já classificadas - individualmente ou em conjuntos
e sítios, ou em património urbanístico - as intervenções devem sempre ser
precedidas de estudos históricos e de arqueologia da arquitetura, que ajudem a
identificar e a hierarquizar os valores a salvaguardar.
José Campos, Architectural Photography
Figura 10.6 – Atelier in Vitro, Reabilitação Casa da Boavista, Porto 2014-2015
(Prémio João de Almada 2017). Conservação cuidada de soluções construtivas,
revestimentos e elementos preexistentes; reposição da solução original da fachada
tardoz.
A teoria que informa cada intervenção nascerá assim de “cada
circunstância, dificilmente generalizável – circunstância de que faz parte não só
a expressão da individualidade de cada obra, de cada autor, como a obrigação
7 Alexandre Alves Costa. “O Património entre a aposta arriscada e a confidência nascida da
intimidade”, em: Jornal dos Arquitectos, n.º 213. Lisboa: Ordem dos Arquitectos, 2003, pp. 9-10.
8 Fernando Távora (coord.). Estudo de Renovação Urbana do Barredo. Porto: C.M. Porto, 1969
(policopiado), p.34.
9 Aloïs Riegl, O culto moderno dos monumentos e outros ensaios estéticos. Lisboa: Edições 70,
[1903] 2013.
10
11
Ana Pereira Roders, Re-architecture. Tese de Doutoramento. Delft: T/U Delft, 2007.
Lei quadro da política e do regime de proteção e valorização do património cultural (Lei 107/2001).
(…) Artigo 2.º, Conceito e âmbito do património cultural. 1 — Para os efeitos da presente lei integram
o património cultural todos os bens que, sendo testemunhos com valor de civilização ou de cultura
portadores de interesse cultural relevante, devam ser objeto de especial proteção e valorização.
Em edifícios e em áreas urbanas ou rurais classificadas a Lei quadro obriga
à realização de um Relatório Prévio (Decreto-Lei n.º 140/2009) o que se adequa
particularmente, enquanto método, a projetos comprometidos com o
fundamental conhecimento da realidade, i.e. os projetos de reabilitação. O
Relatório Prévio obriga-nos a estudar e descrever: as relações entre os imóveis
em causa e o meio envolvente; o sistema construtivo e suas alterações ao longo
do tempo implicando uma metodologia de conservação que implica a análise e o
diagnóstico com indicações das soluções de reforço, consolidação ou de
alteração preconizadas; estudar a autenticidade da envolvente exterior e dos
interiores, incluindo a cor, a ornamentação e os tipos de revestimentos, o que
implica a identificação dos elementos autênticos e com valor cultural, a sua
alteração ao longo do tempo; adequação da introdução de novas infraestruturas
2 — A língua portuguesa, enquanto fundamento da soberania nacional, é um elemento essencial do
património cultural português. 3 — O interesse cultural relevante, designadamente histórico,
paleontológico, arqueológico, arquitetónico, linguístico, documental, artístico, etnográfico, científico,
social, industrial ou técnico, dos bens que integram o património cultural refletirá valores de memória,
antiguidade, autenticidade, originalidade, raridade, singularidade ou exemplaridade. Para
aprofundamento veja-se de Flávio Lopes, Património Arquitetónico e arqueológico. Noção e Normas
de proteção. Lisboa: Caleidoscópio, 2012; e ainda Flávio Lopes; Manuel Brito Correia, Património
Cultural. Critérios e normas internacionais de proteção. Lisboa, Caleidoscópio_Edição e Artes
Gráficas,SA. Fev. 2014, ISBN: 978-989-658-250-0 e, ambém, Património Arquitectónico e
Arqueológico. Cartas, Recomendações e Convenções Internacionais. Lisboa: Livros Horizonte, 2004.
Guia FNRE
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10. Preservação do Património
e minimização das alterações provocadas; em suma avaliando e minimizando os
conflitos entre o dever da preservação e as modificações espaciais ou
construtivas pretendidas em projeto, demonstrando a adequação das formas
preconizadas para a preservação dos valores culturais preexistentes. Importa
ainda evidenciar o interesse de produzir um relatório intercalar e um relatório
final (como prevê o Decreto de Lei referenciado acima). Seria da maior relevância
adotar esta metodologia em todas as preexistências intervencionadas no
contexto do FNRE.
Reconhecendo o desajuste entre o quadro regulamentar (concebido para a
construção nova) quando aplicado à reabilitação, o Governo de Portugal
estabeleceu em 2014 o RERU (Regime Excecional de Reabilitação Urbana),
aplicado transitoriamente durante um período de sete anos. Paradoxalmente,
esta medida de desregulamentação (ao excecionar os edifícios com mais de trinta
anos de cumprimento da maioria das disposições legais aplicáveis a projetos
contemporâneos), se por um lado simplificou enormemente os processos de
reabilitação, abriu também as portas a intervenções danosas, desde a
transformação abusiva e extensiva demolição de valores em presença, à
desconsideração de aspetos basilares de compatibilidade entre sistemas
construtivos e segurança estrutural (isto num país historicamente assolado por
sismos).
Segundo vários autores, o atual quadro regulamentar deve ser considerado
como desadequado 12 e muitas vezes até perigoso, pelo que deve ser
cuidadosamente analisado e interpretado criticamente pelos Arquitetos, que
neste processos de projeto se devem apoiar em Engenheiros com sólida
formação, capacitação e/ou experiência na reabilitação, i.e. conservação,
reparação e reforço de estruturas - sejam estas de madeira, alvenaria, betão ou
outras, conforme aplicável -, ou de outras especialidades, na inserção de redes e
infraestruturas compatíveis com os valores patrimoniais em presença, entre
outras questões. Em contexto nacional e internacional, surgiram propostas de
compatibilização destas distintas e conflituosas exigências, como o conceito
de ‘reabilitação adaptativa’, já adotado na atual legislação espanhola, procurando
um equilíbrio entre a preservação de valores patrimoniais e as atuais exigências
atuais de conforto, energia e segurança.
Para além da legislação geral aplicada à construção, importa referir também
os regulamentos Municipais, designadamente os Planos Diretores Municipais
(PDM) ou outras disposições normativas. A maioria dos PDM´s tem o
instrumento da Carta do Património que inventaria os bens patrimoniais,
identifica os valores em presença e estabelece recomendações para a sua
preservação.
No que respeita à manutenção regular de edifícios, a legislação existente
também é deficitária, referindo a obrigatoriedade de executar reparações de
manutenção em cada oito anos, mas muito raramente estas regras são
cumpridas 13.
12
Por exemplo, consulte-se a tese de doutoramento de Nuno Valentim. “Projecto, património
arquitetónico e regulamentação contemporânea. Sobre práticas de reabilitação no edificado
corrente”. Tese de Doutoramento. Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, 2015.
13
Artigo 9.º (Revogado pela alínea e) do artigo 129º do diploma que estabelece o RJUE, Decreto-Lei
n.º 555/99, de 16 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 177/2001, de
148
Guia FNRE
10.3. Uma Nova Abordagem na Reabilitação Habitacional
10.3.1. Questões de Método
A reabilitação de edifícios para programas de habitação implica desde logo
analisar e compreender a matriz tipológica preexistente adequando os novos
usos e modos de habitar - sendo particularmente relevante a importância de
adequar os usos (ou a escolha dos usos) às características físicas específicas
da preexistência - bem como compatibilizar a preservação de valores
patrimoniais com as atuais exigências regulamentares (de segurança, conforto,
higiene, uso, etc.).
O contexto cultural e tecnológico de cada época (as formas de habitar,
o quadro regulamentar, os materiais e as tecnologias disponíveis) fez surgir
tipologias edificatórias específicas (como os lotes-tardo-góticos, a casa burguesa
do Porto, edifícios coletivos Pombalinos, os Gaioleiros, os “esquerdo-direito
RGEU”, etc.) que importa hoje adaptar às novas exigências da vida
contemporânea tanto quanto salvaguardar o reconhecimento da sua identidade
e integridade, o que pressupõe conhecimento, sensibilidade e talento.
Defendendo a especificidade de cada caso propõem-se, no projeto sobre
preexistências com valor cultural, os seguintes passos metodológicos,
interrelacionáveis:
i.
conhecimento exaustivo e rigoroso da preexistência, implicando os
estudos e as análises necessários;
ii.
diagnóstico de problemas, anomalias e dissonâncias;
iii.
projeto como ato de síntese analítica e criativa, fundado na
necessidade objetiva de um (re)uso contemporâneo o que sempre
implica a seleção e garantia da salvaguarda de valores preexistentes
e na proposta de uma terapia para as anomalias, problemas e
dissonâncias encontrados;
iv.
obra, adaptando e compatibilizando soluções com as preexistências,
e privilegiando empresas com experiência no setor;
v.
conservação preventiva e manutenção continuada ao longo do
tempo. Esta última fase, geralmente esquecida, é de grande
importância como garante de um bom desempenho dos edifícios, da
satisfação dos utilizadores e preservação dos valores patrimoniais em
presença.
4 de Junho): “As edificações existentes deverão ser reparadas e beneficiadas pelo menos uma vez
em cada período de oito anos, com o fim de remediar as deficiências provenientes do seu uso normal
e de as manter em boas condições de utilização, sob todos os aspetos de que trata o presente
regulamento”.
10. Preservação do Património
Desenhar neste contexto implica, portanto, documentar com rigor o antes
(a preexistência), esclarecer o durante (ponderando cuidadosamente o que irá
desaparecer materialmente da história) e fundamentar o depois, assegurando
também processos de inspeção e de fácil manutenção futuras: uma reabilitação
bem sucedida é apenas uma das muitas intervenções que ocorrerão num edifício
antigo a que seja dado um novo futuro 14.
10.3.2. Conhecer e Valorizar as Preexistências
Os projetos de reabilitação devem identificar e documentar com rigor
disciplinar a matriz tipológica, espaços, materialidades e elementos a
salvaguardar, o que sempre depende de uma sólida capacidade de análise
histórica, de interpretação arquitetónica e de uma cuidada identificação de
valores presentes.
Referimo-nos aqui a um conhecimento exaustivo e rigoroso das
preexistências recorrendo sempre que necessário à História e à Ciência,
utilizando:
i.
fontes indiretas (estudos documentais, arquivísticos, cartográficos,
iconográficos, conhecimento oral, etc.)
ii.
fontes diretas (o estudo in loco da obra, p.e. através da arqueologia
da arquitetura e da produção de uma documentação rigorosa,
recorrendo às novas tecnologias de produção e análise de imagem,
como a fotogrametria digital, o laser scanner e a fotografia
multiespectral, que permitem obter e gerir hoje muito mais
informação do próprio edifício 15).
Deverá ser produzida uma análise prévia ao edificado onde se identificam
os valores e os elementos a preservar de acordo com:
i.
a sua relevância patrimonial estrita (espaços, partes, obras de arte,
pintura mural, ornamentos, peças escultóricas, etc.)
ii.
critérios de autenticidade, identidade e integridade do objeto
arquitetónico
iii.
critérios de sustentabilidade e economia do processo construtivo
(reaproveitamento de materiais construtivos, relação sempre positiva
entre qualidade do que se retira e qualidade do que se acrescenta).
Na fase de registo, análise e interpretação, poderão ser desenvolvidos
diferentes tipos de levantamentos: geométrico (levantamento clássico, ou
recorrendo à fotogrametria digital e varrimento laser 3D), fotográfico,
construtivo, estado de conservação e anomalias, dissonâncias e alterações.
Figura 10.7 – Levantamentos laser e com fotogrametria digital: Casa de Vale de
Flores (2017), realizado pelo Grupo ARCHC3D CIAUD FAUL (Projeto de Restauro
do Arq.º Pedro Pacheco com José Aguiar).
14
Sobre questões metodológicas na intervenção em preexistências, v. entre outros, Antoni Gonzalez
Moreno-Navarro. La restauración objetiva (método SCCM de restauración monumental), Memoria
SPAL 1993-1998. Barcelona: Diputación de Barcelona, 2000; Stefano Musso. Recupero e Restauro
degli edifici Storici. Guida pratica al rilievo e alla diagnostica, Roma: EPC Libri, 2006; Giovanni
Carbonara. Trattato di restauro architettonico. Turim: UTET, 2004.
15 Sobre Arqueologia da Arquitetura v., entre outros, AA. VV., Património Arquitetónico. Registo,
Interpretação e Critérios de Intervenção, in «Património Estudos», n.º 9, Lisboa: IPPAR, 2006. [textos
de Caballero Zoreda, F. Doglione, L.Fontes, M.Ramalho, J.Aguiar, F. Vegas e C. Milleto, e al.]. Sobre
As fontes disponíveis, interpretadas através do desenho, poderão informar
um estudo arquitetónico que clarifique, entre outros aspetos: evolução e fases
de construtivas, análise estratigráfica, estudos geométrico-formais (traçados
o tema ver também, entre muitos outros as revistas Arqueologia de la Arquitectura (CSIC-UPV/EHU)
e Archeologia Medievale (ed. Riccardo Francovich, All’Insegna del Giglio). Sobre processos
contemporâneos de documentação em património veja-se a teses de Luís Mateus, Contributos para
o projeto de Conservação, Restauro e Reabilitação. Uma metodologia documental baseada na
fotogrametria digital e no varrimento laser 3D terrestre (2 volumes). Lisboa: Universidade de Lisboa,
Faculdade de Arquitectura, 2012, disponível, assim artigos mais recentes sobre o tema, em
http://home.fa.utl.pt/~lmmateus/investigacao.html.
Guia FNRE
149
10. Preservação do Património
geométricos e esquemas de modulação), identificação de usos e alterações e
valores patrimoniais em presença.
composições e os diversos tipos de texturas e formas de acabamento. Os
elementos autênticos apenas poderão ser removidos e substituídos por cópias
se essa for a única forma de garantir a sua preservação futura.
No processo de caracterização do existente, importa ainda estudar e
conhecer os materiais e tecnologias de construção 16 aplicados – seja os ditos
tradicionais ou pré-industriais, seja os ditos ‘modernos’ ou industriais -, tendo em
conta que materiais diferentes têm processos de alteração e degradação
distintos.
Também pela evolução da ciência da construção, que reconhece cada vez
mais a necessidade de conhecer a História da Construção 17, importa em cada
construção perceber os princípios materiais e tectónicos, e garantir processos de
compatibilidade funcional, tecnológica, física e química entre estruturas e
construções de diversos tempos. Deste modo, considera-se hoje inadmissível
não estudar e considerar as materialidades e os valores construtivos
preexistentes.
Por ser fundamental a sobreposição de tempo e de modos de fazer cidade,
enquanto documento da história e da arte arquitetónica e urbanística, são de
interditar processos de reordenamento cadastral (junção de diversas parcelas
numa nova unidade alheia ao padrão fundiário original) que ponham em causa
a autenticidade e integridade de património urbanístico 18.
Em projetos de reabilitação é necessário um conhecimento profundo e um
estudo rigoroso do edifício a intervir, seja por registos escritos e iconográficos
seja pela análise da obra e pelo desenho, garantindo uma completa
documentação do antes, do durante e do depois. No caso da existência de
elementos de índole patrimonial e/ou artística cuja especificidade ultrapasse o
conhecimento do projetista, este deverá sempre socorrer-se da opinião
e validação dum especialista dessa área.
Os acabamentos e ornamentos de diverso tipo em interiores e exteriores
(azulejaria, trabalhos de massa e estuques, existência de esgrafitos ou de texturas
peculiares, pinturas ou guarnecimentos com cor, etc.) devem ser estudados e
restaurados 19, tanto no interior como no exterior, resolvendo as lacunas
existentes com técnicas de conservação e restauro, assegurando a coerência das
16
Sobre técnicas e materiais de construção em Portugal ver, entre muitos outros estudos mais
específicos ou geograficamente localizados: as compilações sobre sistemas de construções, já em
dezena e meia de volumes e da autoria de Jorge Mascarenhas, Sistemas de Construção, vol. I a XV
Edição Livros Horizonte; Gabriela Teixeira; Margarida da C. Belém (coord.), Diálogos de edificação,
estudo de tecnologias tradicionais. Porto: CRAT, 1998; F. Pereira Costa. Enciclopédia Prática da
Construção Civil. Lisboa: Edição do Autor, 1930-1939. Sobre materiais mais recentes ver tb, entre
outros: Susan Macdonald e Gail, Osstergreen. Conserving Twentieth-Century Built Heritage: a
Bibliography. Los Angeles: Getty Conservation Institute, 2013; Carolina di Biase (a cura di). Il degrado
del calcestruzzo nell’architettura del Novecento. Santarcangelo di Romagna: Maggioli, 2009.
17
Relativamente à História da Construção em Portugal ver, entre outros: João Mascarenhas-Mateus
(ed.). A História da Construção em Portugal - Alinhamentos e Fundações, Almedina: Coimbra, 2011;
João Mascarenhas-Mateus (ed.). História da Construção em Portugal: consolidação de uma disciplina.
Lisboa: By the book, 2018. Numa perspetiva mais alargada, ver Atas de Congressos internacionais
de História da Construção: Congresso Internacional de História da Construção Luso-Brasileira;
International Congress on Construction History; Congreso Internacional Hispanoamericano de
Historia de la Construcción, entre outros.
18 Sobre abordagens integradas de intervenção em conjuntos urbanos ver, entre outros: Francisco
Barata. Transformação e permanência na habitação portuense. Porto: FAUP Publicações, 1999; Ana
Pinho. Conceitos e politicas de reabilitação urbana: análise da experiência portuguesa dos gabinetes
150
Guia FNRE
João Pernão
Figura 10.8 – A identificação e levantamento dos elementos qualificadores da préexistência (no quadro de uma teoria de valor) é fundamental para uma ação correta
de reabilitação.
10.3.3. Diagnóstico
Com o desaparecimento da antiga e qualificada mão-de-obra, importa
tanto no projeto como em obra reforçar a interdisciplinaridade da sua prática e
recorrer à nova disciplina da Conservação 20 e aos seus agentes
locais, Tese de Doutoramento, Lisboa: FAUTL, 2009. Rossa, Walter (2015), Fomos condenados à
cidade: uma década de estudos sobre património urbanístico. Coimbra: Imprensa da Universidade.
19 Sobre cor e revestimentos ver, entre outros: José Aguiar, Cor e Cidade Histórica – Estudos
cromáticos e conservação do património. Porto: FAUP, 2002; João Nuno de Carvalho Pernão. “A cor
como forma do espaço definida no tempo. Princípios estéticos e metodológicos para o estudo e
aplicação da cor em arquitetura e nas artes”. Tese de Doutoramento. Faculdade de Arquitetura da
Universidade Técnica de Lisboa, 2012; Pedro Providência. “Bases para um plano de ação da
salvaguarda dos revestimentos e acabamentos tradicionais em centros históricos : o caso de estudo
do plano de cor do centro histórico de Coimbra”. 2 vol. Coimbra: FCTUC, Tese de doutoramento,
2014; Sofia Salema, “O corpus do esgrafito no Alentejo e a sua conservação. Uma leitura sobre o
ornamento na arquitetura”. Tese de Doutoramento. Universidade de Évora, 2012; Milene Gil. “A
Conservação e Restauro da pintura mural nas fachadas alentejanas: estudo científico dos materiais e
tecnologias antigas da cor”. Tese de Doutoramento. Faculdade de Ciências e Tecnologia da
Universidade Nova de Lisboa, 2009.
20 Os Conservadores-Restauradores têm hoje em Portugal uma formação específica e um
reconhecimento profissional estabelecido, estando habilitados a intervir em superfícies e
revestimentos antigos, bem como em património integrado e móvel (ex: pedra, pintura mural, azulejo,
talha, fingidos, etc.) Cfr., entre outros,Mascarenhas, J. M., (trad): Campanella, C. (2003). Capitolato
10. Preservação do Património
(os Conservadores-Restauradores) para em conjunto definir soluções de
intervenção mais orientadas para o salvamento do que para a demolição.
A disciplina da Conservação do património tem-nos dado soluções
metodológicas, processuais e técnicas, cada vez mais conhecidas e dominadas,
que permitem salvar elementos construtivos que jugávamos condenados.
A Engenharia desenvolveu novas metodologias de intervenção mínima
muito mais compatíveis e muito menos intrusivas tanto sob o ponto de vista
estrutural como construtivo, alterando a excessividade praticada no século XX 21.
Recorrendo a análises in situ e em laboratório, a protocolos de inspeção,
a ensaios não destrutivos e à monitorização higrotérmica e estrutural, é hoje
possível recolher grande quantidade de informação sobre os edifícios de forma
não intrusiva e sem os sacrificar materialmente.
É fulcral podermos recorrer no anteprojeto, nas diversas especialidades, a
técnicos formados e com sólida experiência em inspeção, diagnóstico e
reabilitação. Importa hoje incluir desde o primeiro momento de projeto, sempre
que pertinente, especialistas em Arqueologia (com especial enfase na
Arqueologia da Arquitetura), Restauradores-Conservadores e Engenheiros Civis
competentes (entre outras áreas disciplinares, consoante a especificidade de
cada caso) na análise, diagnóstico e no projeto de reparação e de reforço de
estruturas e soluções construtivas preexistentes. Estes agentes terão um papel
importante, entre outros aspetos, no registo de vestígios arqueológicos e
mapeamento de anomalias, bem como na identificação das possíveis causas, dos
fenómenos de degradação e alteração e os tratamentos mais adequados a cada
situação.
A Arqueologia deve ser integrada em fase de estudo prévio, sempre que a
legislação aplicável o preveja (Decreto-Lei n.º 107/2001; Decreto-Lei
n.º 140/2009; Planos Diretores Municipais) ou quando solicitada pelas entidades
competentes (DRCN, DGPC, entidades municipais de tutela do património
cultural) ou ainda quando se verifique (previamente ou durante a obra) a
existência de vestígios de relevância arqueológica. Neste quadro, a Arqueologia
contribuirá positivamente para uma adequada gestão de risco e para
a preparação e execução de projetos de intervenção no património através do
diagnóstico arqueológico (em subsolo ou do edificado) adaptando as soluções e
medições às presenças arqueológicas registadas, considerando: i) a identificação
prévia de eventuais vestígios arqueológicos que poderão ser afetados por
trabalhos decorrentes da implementação do projeto (e a sua caracterização em
termos de valor científico e patrimonial); ii) a definição de eventuais medidas de
minimização a aplicar em fases subsequentes com vista à salvaguarda
patrimonial dos vestígios arqueológicos integrados na área do projeto;
iii) a definição de uma estratégia geral de intervenção, garantir a execução de
todos os trabalhos de construção civil previstos em
articulação com
a salvaguarda do património arqueológico.
speciale d'appalto per opere di conservazione e restauro, Obras de conservação e restauro
arquitectónico – condições técnicas especiais, Lisbon: Câmara Municipal de Lisboa.
21
Ver ICOMOS ISCARSAH. Principles for the Analysis, Conservation and ... and Structural
Restoration of Architectural Heritage, 2003. Sobre aplicação a casos de estudos portugueses ver,
entre outros: João Appleton. Reabilitação de Edifícios Antigos, patologias e tecnologias de
intervenção, Lisboa: Orion, 2003; Aníbal Costa [et al.] - A intervenção no Património. Práticas de
Conservação e Reabilitação. Porto: FEUP, 2005. p. 21; Aníbal Costa, António Arede, Esmeralda
É importante também reforçar a capacidade de análise de materiais em
laboratório para melhor compatibilização da nova intervenção. Os Laboratórios
do Estado (com destaque para o LNEC) e as Universidades (através dos seus
Laboratórios e Centros de Investigação), têm desempenhado um papel
importantíssimo nesta área, articulando a investigação de ponta com a
investigação aplicada e a prestação de serviços ao exterior.
10.3.4. O Projeto e a Reabilitação Arquitetónica
10.3.4.1. A Importância do Contexto Urbano e Das Envolventes
Um ponto fulcral é a relação dos edifícios com a sua envolvente. Qualquer
edifício, nomeadamente aqueles a que atribuímos valor cultural, estabelece
sempre relações particulares com o seu contexto e espaços envolventes. Para
além da regulamentação de cérceas - muitas vezes o aspeto a que se dá mais
importância em ações de Reabilitação - é necessário atentar também à
morfologia do contexto envolvente e à lógica de coerência de um conjunto maior
do que o valor específico de cada unidade per se. O mesmo sucede com o
desenho do espaço público e suas materialidades, bem como os sistemas de
transição entre público e privado.
Câmara Municipal de Guimarães
Figura 10.9 – A base do projeto de intervenção em cada edifício do centro
histórico de Guimarães é o respeito absoluto pela sua tipologia cadastral e
arquitetónica.
Pauperio et al. Reabilitação estrutural - Casos práticos de intervenção em Estruturas Patrimoniais,
Porto: Instituto da Construção, 2014; Vítor Cóias. Reabilitação estrutural de Edifícios antigos, Lisboa:
Argumentum, 2007; Vítor Cóias, Inspeção e ensaios em edifícios antigos, Lisboa: IST - Instituto
Superior Técnico, 2008. LNEC, Cadernos Edifícios n.º 5 - Conservação e Reabilitação de Edifícios
Recentes, 2010; Vasco Freitas (Coord.), Manual de Apoio ao Projecto de Reabilitação de Edifícios.
Porto: Ordem dos Engenheiros Região Norte, 2012.
Guia FNRE
151
10. Preservação do Património
Os edifícios com valor cultural raramente foram construídos de uma só
penada, observando as suas materialidades é usual reconhecermos o contributo
de diversos tempos, numa sobreposição de narrativas materiais e formais. Assim,
assume especial importância a compreensão das cidades e arquiteturas antigas
enquanto palimpsestos, contendo em si estratos, sedimentos, testemunhos dos
diversos tempos, revelando marcas, permanências, transformações e lacunas
que compõem a sua história e a da paisagem urbana.
As intervenções meramente e injustificadamente fachadistas destroem os
valores espaciais, anulam os valores artísticos e construtivos acrescentados pelo
tempo e presentes no recheio interior dos edifícios antigos, obliterando o valor
dos edifícios enquanto testemunhos documentais da história e produtos da arte
arquitetónica e do construir.
As intervenções de reabilitação deverão preservar, sempre que possível, as
características identitárias da obra preexistente ou/e do projeto original quando
aplicável, também na sua relação com a envolvente, com as áreas ajardinadas ou
de logradouro com o(s) edifício(s) que constituem o lote.
Neste aspeto importa ainda salvaguardar:
i.
a relação do edificado com os traçados viários;
ii.
a relação do número de pisos preexistente com o número de pisos
proposto;
iii.
a relação da volumetria preexistente com a volumetria proposta;
iv.
a composição arquitetónica das fachadas preexistentes,
v.
a leitura de continuidade cromática e material com a sua envolvente
construída.
Em operações de reabilitação, importa, portanto, articular a intervenção
pontual no edificado com processos de requalificação de espaços públicos e
semipúblicos.
José Aguiar
Figura 10.10 – Bairro Alto, 2012. O Fachadismo, i.e. a anulação ou destruição
sistemática dos espaços, estruturas, construções e elementos autênticos e
originais, tornou-se um dos maiores problemas da reabilitação em Portugal.
No espaço urbano, nas partes antigas das cidades a que chamamos centros
históricos é crucial preservar tanto as tipologias arquitetónicas como a tipologia
fundiária, i.e. o cadastro com diversos tipos de parcelas que condicionaram
decisivamente as diversas soluções da arquitetura ao longo do tempo,
estabelecendo relações específicas entre permanências arquitetónicas de longo
prazo (os monumentos, as igrejas e conventos, os palácios, etc.), o sistema de
espaços públicos (ruas e praças), e morfotipologias edificatórias (arquiteturas em
lotes góticos, renascentistas, pombalinos, imóveis de arrendamento dos finais do
século XIX e blocos de habitação coletiva de meados do século XX - como os
ditos “esquerdos-direitos” do RGEU), de que resultam arquiteturas da cidade
absolutamente distintivas e peculiares.
Teresa Cunha Ferreira
Fernando Távora e Adalberto Dias
Figura 10.11– Quarteirão da Casa Forte Porto, fase intermédia antes da demolição
total com exceção da fachada.
Figura 10.12 – Requalificação da Praça da Batalha, Porto Capital da Cultura, 19992001 Projeto e fotos de Fernando Távora e Adalberto Dias.
152
Guia FNRE
10. Preservação do Património
A requalificação do espaço público em património urbano é fundamental
para potenciar e induzir a participação dos privados em processos mais alargados
de reabilitação urbana, constituindo hoje uma estratégia fundamental em
núcleos urbanos de grande valor cultural como sucedeu antes (na ação do GTL
de Guimarães) e depois da candidatura a inscrição na Lista do Património
Mundial de Guimarães e, de novo, no decorrer da capital europeia da cultura em
Guimarães, também na cidade do Porto, sobretudo no quadro da iniciativa “2011
- Porto capital europeia da Cultura” 22) e como está também hoje a suceder em
Lisboa (depois da reabilitação do Chiado conduzida por Álvaro Siza Vieira e as
novas iniciativas de ligação da Baixa à Colina do Castelo).
Deste modo, constituirão elementos a preservar, não apenas as fachadas do
edifício, mas também os elementos estruturadores dos seus espaços interiores,
acessos verticais, iluminação vertical (claraboias, lanternins), princípios de
composição volumétrica e de hierarquização, entre outros.
10.3.4.2. O Edifício, Programa, Espaços e Materialidades
Um aspeto grandemente desconsiderado nas últimas décadas respeita
à importância da leitura tipológica e adequação dos programas funcionais
às particularidades específicas de cada arquitetura. Se reabilitação implica
adequar a um uso contemporâneo um edifício antigo (salvando os seus valores
patrimoniais, mas atualizando desempenhos, condições de segurança, de
higiene e conforto), importa não esquecer que a capacidade de análise da matriz
originária desse edificado é também um valor maior para o projeto. Pelo que
importa estudar atentamente como compatibilizar funções às preexistências,
evitando impor programas funcionais incompatíveis ou desajustadas das
possibilidades concretas dos espaços e das estruturas preexistentes.
Podemos sempre adaptar património para novos usos. Podemos por
exemplo reconverter património industrial para novos usos residenciais, no
entanto o seu projeto de reabilitação valoriza-se culturalmente quando se
preservam narrativas e significados i.e., quando depois das intervenções ainda
podemos reconhecer que aquela construção foi uma antiga fábrica, o mesmo
poderíamos dizer sobre o reuso de conventos (património religioso), quartéis
(património militar), etc.
Em projetos de Reabilitação considera-se imprescindível o
desenvolvimento de estudos programáticos que avaliam e validem previamente
as possibilidades funcionais dos espaços e estruturas preexistentes, no sentido
de minimizar as demolições e alterações às edificações com valor cultural.
É dever ético do arquiteto de propor e discutir a compatibilização dos programas,
procurando alternativas juntamente com o encomendador, sempre que
manifestamente os programas inicialmente propostos não se adequem à
estrutura tipológica, espacial e construtiva da preexistência com valor
patrimonial.
Um projeto de reabilitação deve permitir ler a história e a matriz tipológica
de uma edificação preexistente, mesmo quando existe modificação funcional.
22
O plano/projeto de requalificação dos espaços públicos de áreas urbanas históricas do Porto está
descrito em Manuel Mendes, Catálogo da Exposição - Porto 2001: Regresso à Baixa, Consulta para
a elaboração do Programa de Requalificação da Baixa Portuense. Porto: Porto 2001 e FAUP edições,
2000 e ainda na tese de Mestrado de Ana Sousa Brandão Alves Costa, A Requalificação da Baixa
Portuense. Uma oportunidade para o Porto, em 2001. Porto: FAUP, 2009 (policopiado).
Teresa Cunha Ferreira
Figura 10.13 – Arqs., Armenio Losa e Cassiano Barbosa, Bloco da Carvalhosa.
Escada comum do edifício de habitação.
É necessário atender à preservação dos espaços comuns nos edifícios de
habitação. Os edifícios habitacionais contêm 23 um património notável referente
à sua qualificação através dos espaços de entrada e a sua continuidade nas
circulações verticais, de onde provém normalmente a iluminação zenital para a
entrada dos diversos apartamentos (por sua vez a iluminação zenital era por
vezes pautada por soluções formais distintas também no partido que obtinham
da luz natural). A reabilitação destes edifícios não deve prejudicar estas
qualidades, que infelizmente já não encontramos com frequência nos edifícios
habitacionais de hoje. A manutenção das qualidades descritas foi extremamente
condicionada, desde à cerca de duas décadas, pela exigência de
compartimentações corta-fogo no quadro da aplicação da Regulamentação
de Segurança contra Risco de Incêndios em Edifícios.
Pela natureza e importância dos espaços comuns em edifícios antigos, a
inclusão de meios mecânicos (elevadores) não deve afetar as qualidades desses
espaços nem obliterar o “poço de luz” dessas comunicações verticais. Devemos
considerar também o reforço da segurança, por exemplo através do desenho de
meios de fuga como a colocação de escadas de emergência eventualmente
adicionadas em espaço exterior. O maior dos dramas que hoje vivemos é que o
reforço dos meios de saída pode também provocar a facilitação da intrusão,
donde o reforço de uma segurança (ao fogo) pode provocar a diminuição de
outra segurança (aos roubos, por exemplo).
Habitacional. Espaços e compartimentos, ITA 4. Lisboa: LNEC, 2009; Gisela Lameira; Luciana Rocha;
Marta Cruz, . "Affordable 20th century housing in Porto. The transformation processes under scope".
In Proceedings of 3rd International Conference on Preservation, Maintenance and Rehabilitation of
Historical Buildings and Structures. Amoêda, R; Lira, S and Pinheiro, C. (eds.): REHAB 2017, 877-886.
Braga, Portugal: Greenlines Institute.
23
Sobre reabilitação para habitação ver, entre outros, José Paiva; José Aguiar; Ana Pinho et al.. Guia
Técnico de Reabilitação Habitacional, Lisboa: LNEC, 2006; João Branco Pedro, Programa
Guia FNRE
153
10. Preservação do Património
Teresa Cunha Ferreira
Figura 10.14 – Elementos de valor em Casa Burguesa do Porto (séc. XIX): claraboia,
caixa de escadas central em madeira, revestimentos em técnica de escaiola.
Na reabilitação de edifícios é sempre importante ter em consideração que
os materiais existentes, como por exemplo a pedra e os revestimentos (ornatos
em relevo, estuques, azulejaria, pinturas decorativas) e as madeiras aplicadas são,
em geral, de melhor qualidade do que aquelas que se irão agora aplicar de novo
(muitas vezes com utilização de materiais, como os aglomerados, de duração
muito mais limitada). Para além deste aspeto, o trabalho da madeira é
normalmente mais detalhado e muitas vezes executado por processos hoje já
não utilizados, ou de execução muito onerosa para serem replicados. A pretexto
duma arquitetura ‘minimalista’ perdem-se, na reabilitação corrente, qualidades
estéticas e de conforto que não serão facilmente repetíveis.
No caso das madeiras, no entanto, é também necessário o maior dos
cuidados quando temos madeira infestada por térmitas e outros tipos de ataque
biológico, que pode rapidamente propagar-se a novas partes acrescentadas, se
não houver uma cuidadosa desinfestação.
Nos materiais de revestimento e acabamento, a qualidade artística e de
execução, a cor, as texturas, o nível de brilho das tintas, são elementos da
comunicação formal da arquitetura originalmente fundamentados num Color
Loci, i.e. uma Geografia da Cor, em que cada região utiliza os recursos que tem à
sua disposição (as suas terras, pedras e outros materiais locais) e que a torna
diferenciável relativamente a qualquer outra. Veja-se o exemplo da diferença do
ambiente cromático entre Porto e Lisboa advinda da utilização dos materiais
pétreos como o granito (no Porto) e o calcário (em Lisboa), desde o espaço
urbano (pavimentos, lancis, fontes, etc.) aos edifícios, no guarnecimento dos
vãos, na utilização em socos, cornijas e elementos decorativos.
A unidade e especificidade material que caracteriza cada local e que se
estende dos revestimentos aos pavimentos e a outros elementos do espaço
público urbano e à construção (por exemplo a disponibilidade de madeiras
nobres como os carvalho e castanho no Norte vs as mais brandas casquinha e
pinho a Sul, por exemplo), é ainda bastante visível em Portugal e estas
especificidades devem ser preservadas, sempre que possível. Nos pavimentos,
24 Os LED´s são muito direcionais e sem grande amortecimento com a distância, podendo provocar
ofuscamento. Ao contrário dos outros sistemas de iluminação que tem uma distribuição com alguma
154
Guia FNRE
João Pernão
Figura 10.15 – Deturpação na leitura do objeto arquitetónico devido a uma má
escolha da iluminação (inversão do sentido de leitura).
essa identitária e característica diferença encontra-se hoje ameaçada pela
utilização genérica e descontextualizada de tijoleiras, ou betonilhas e
pré-fabricados de betão.
A iluminação tem uma importância vital na qualificação dos espaços
interiores e espaços públicos exteriores, para além das questões da poupança
energética é importante considerar as questões de conforto, de leitura e
apresentação das arquiteturas e da qualificação no uso dos espaços privados
e públicos.
A iluminação deve ser cuidadosamente projetada, uma vez que aliada ao
desconforto que pode ocasionar nos utentes, pode descaracterizar a
apresentação e leitura morfológica da arquitetura, desqualificando-a. No exterior
deve evitar-se a inversão da marcação de sombras, como sucede com a
iluminação rasante e intensa a partir do solo, bem como atender à definição da
correta temperatura de cor da luz. As novas soluções LED podem ser demasiado
frias (tendendo para os azuis) e de intensidade excessiva e muito direcionais
(focos de excessiva luminosidade, sem adequada proteção) afetando
a comodidade do uso dos espaços 24. Em espaços patrimoniais, a existência de
azulejaria e de ornamentação (como a talha dourada) e jogos de espelhos pode
ser também prejudicada por excessos de iluminação e sua má colocação (a luz
indireta, por exemplo, é muito pouco indicada para sublinhar volumes, texturas
e brilhos).
Também as caixilharias e serralharias têm uma grande importância para a
composição das fachadas, as dimensões e proporções, espessura, e ritmo dos
abertura angular, a excessiva direccionalidade do LED provoca desconforto mesmo a grandes
distâncias.
10. Preservação do Património
Álvaro Siza
João Pernão
Figura 10.16 – Arq.ª Álvaro Siza, Reabilitação do Chiado. Reprodução do Caixilho
pombalino pelo exterior com vidro simples e introdução de novo caixilho com vidro
duplo pelo interior.
Figura 10.17 – Os elementos arquitetónicos como testemunhas do tempo: porta
chapeada na entrada de quinta do sec.XVIII em zona conturbada pelas invasões
Francesas (Torres Vedras).
caixilhos correspondem a distintos períodos históricos assim como sucede com
distinto tipo de formas das guardas (em ferro estirado ou forjado). O mesmo
sucede nos interiores com a manutenção das portadas e diverso tipo de
ferragens, por vezes insubstituíveis.
A introdução de vidros duplos altera as espessuras e a relação proporcional
com os elementos da fachada, pelo que deve ser avaliada caso a caso, por
exemplo equacionando também a possibilidade de conservação de caixilhos
existentes e introdução de novo caixilho pelo interior.
Guia FNRE
155
10. Preservação do Património
gradeamentos, portas, ferragens, beirados, cantarias, platibandas, pilastras,
caixilharias, pavimentos, revestimento de paredes, etc.
As intervenções em edifícios onde se verifiquem estratos de várias épocas
com valor arquitetónico devem, sempre que possível, incorporar o potencial
narrativo das camadas preexistentes, mais do que anular definitivamente esses
testemunhos históricos retirando riqueza, complexidade e autenticidade à obra.
As novas materialidades a utilizar em projeto devem ser compatíveis (física
e quimicamente) com as preexistências e sempre que necessário devemos incluir
nos cadernos de encargos ensaios em laboratório e testes aos materiais
preexistentes para o seu cabal conhecimento.
O mesmo sucede com o garantir de reversibilidades, i.e. o poder regressar
a um estado anterior perante um acrescento ou modificação, assim como
assegurar a repetibilidade de tratamento, i.e. a possibilidade de procedermos no
futuro a tratamentos similares aos que hoje aplicamos.
João Pernão
Deve-se também respeitar o princípio do acréscimo de qualidade: i.e. a
solução nova deve promover mais qualidade e melhoria do desempenho do que
a solução existente.
Figura 10.18 – Muitos dos efeitos estéticos do interiorismo português baseiam-se
numa especial qualidade de luz (parca, quente, à altura da vista, reproduzida por
espelhos…), uma iluminação desadequada pode destruir as qualidades expressivas
das talhas douradas ou da azulejaria.
Num processo de reabilitação o projeto de arquitetura deve conter um
Estudo de Cor e de Iluminação que permita, para além da observância da
legislação no domínio luminotécnico (índices quantitativos), uma solução que
traga conforto de utilização de acordo com as diversas atividades desenvolvidas
e qualidade estética adequada à leitura morfológica da arquitetura em presença.
Neste capítulo e em património urbano, devem ser observadas as
recomendações da Carta de Taxco para a iluminação em núcleos urbanos
históricos, não só para esses casos, mas para todas as ações de reabilitação 25.
10.3.4.3. Da Autenticidade, Compatibilidade e Reversibilidade às
Questões do Desenho
Um projeto de Reabilitação pressupõe uma resolução coerente dentro de
uma nova unidade temporal, incorporando os valores preexistentes numa nova
totalidade, uma nova harmonia na integração dos antigos e novos espaços, assim
como na compatibilização de funções e sistemas construtivos. É assim
igualmente primordial salvaguardar a autenticidade, a integridade e a coerência
da composição arquitetónica preexistente, recuperando ao máximo o sistema
estrutural e construtivo, os materiais e elementos decorativos, o produto das
artes aplicadas e outros elementos caracterizadores da obra tais como varandas,
25 Instituto Nacional de Antropología e Historia (ed.), “Chart of Taxco 2009”, México, 2012.
Disponível em http://www.academiadelpartal.org/files/carta_taxco_061111.pdf.
156
Guia FNRE
Teresa Cunha Ferreira
Figura 10.19 – Arq. Eduardo Souto Moura, Reabilitação da Herdade de São
Lourenço do Barrocal, 2016 (Prémio Leão de Ouro, Bienal de Veneza 2018).
Revestimento de paredes com rebocos de cal, beirados com telha original, desenho
cautelosos de caixilhos semelhantes aos preexistentes com introdução de vidro
duplo; caixas de ar condicionado integradas com o desenho do caixilho pelo
interior.
10. Preservação do Património
Os quadros dos vãos, as caixilharias, serralharias e ferragens devem ser
salvaguardas. Uma solução para manter a tipologia de vãos num edifício histórico
melhorando o seu desempenho térmico e acústico pode passar pelo seu
restauro, complementado pela duplicação pelo interior das janelas (de peito ou
sacada) com soluções contemporâneas.
As partes e detalhes em madeira são de manter, reutilizando ao máximo as
preexistências (concretizando junções e semblagens entre partes originais e
novos acrescentos).
O desenho de arquitetura em reabilitação, para além de assegurar os
tradicionais processos de registo com amarelos e vermelhos, deve assegurar a
eficaz leitura da preexistência e das reformulações, numa nova síntese
desenhada.
Os desenhos técnicos de levantamento das pré-existências devem
expressar com rigor os valores fundamentais a preservar, numa estratégia de
documentação que guie o projeto de reabilitação, clara na sua interpretação, e
que esteja presente até aos desenhos de comunicação à obra.
João Pernão
Figura 10.20 – Planear o cruzamento entre especialidades é fundamental para a
qualidade da obra final, importa prever o mínimo de impacto na construção.
Assim sendo, para além do desenho de vermelhos e amarelos
(esclarecimento essencialmente administrativo das demolições e da introdução
de novas partes) devem existir desenhos síntese que esclareçam a nova unidade
atingida entre o novo e o antigo, i.e. entre a salvaguarda de preexistências e a
nova composição (por exemplo utilizando negro e diferentes tonalidades de
cinzentos para representar o que se salvaguardou – e as distintas fases de uma
construção - e o que se acrescenta de novo).
10.3.5. Relação entre as Diversas Especialidades
É fundamental existir uma inter-relação entre especialidades que permita
uma melhor adequação das soluções à preexistência e à sua qualificação. Muitos
edifícios preexistentes têm bom comportamento passivo (boa inércia nas
paredes exteriores, bom isolamento térmico, sistemas de ventilação natural) e é
possível reutilizar antigas instalações técnicas ou usar as suas condutas e ramais.
Esta compreensão holística e a compatibilização das instalações técnicas a
incluir, procurando a sua conciliação com os valores patrimoniais (através de um
‘conforto adaptativo’ ou da ‘minimização’ do desconforto), terá benefícios no
custo da obra, no seu comportamento futuro e na preservação da integridade e
autenticidade material da obra.
Muitas vezes são implementadas soluções intrusivas e pouco compatíveis,
que acabam por piorar o desempenho a longo prazo e ter insustentáveis custos
de manutenção. Uma opção pode ser introduzir as infraestruturas por fora das
paredes, sem abrir roços (ex: instalação elétrica por trás de rodapés, entre a vigas
do soalho, canalização à vista, etc.
José Aguiar
Figura 10.21 – Centro Histórico de Évora, 2005. A obrigatoriedade de introduzir
caixas de visitas paras as diversas redes afeta gravemente a resistência estrutural
de edifícios antigos, neste caso num conjunto urbano inscrito na Lista do
Património Mundial da UNESCO.
Guia FNRE
157
10. Preservação do Património
incluindo no processo de concursos, uma lista de preços unitários de trabalhos e
materiais que permitam enquadrar a resolução desses imprevistos. Se esta
precaução é verdadeira em obra nova, será ainda mais importante na intervenção
no existente.
A boa documentação em fase de obra é fulcral e os processos de
desmontagem obrigam obviamente a uma cuidadosa identificação e enumeração
dos elementos para posterior reposicionamento. Pelo que importa prever e
reforçar os processos e as capacidades de documentação em obra.
Teresa Cunha Ferreira
Figura 10.22 – Minimização de impactes através da introdução cautelosa de redes
de infraestruturas entre as vigas de pavimento e em paredes, com preservação dos
sistemas construtivos preexistentes.
Particularmente grave á a obrigação legal de introduzir caixas de visitas
separadas para diversos serviços (gás, eletricidade, etc.) nas fachadas exteriores,
o que implica o esburacar das paredes, afetando muito negativamente a
segurança estrutural dos edifícios antigos.
Neste domínio, das redes, importa utilizar sempre que possível as
instalações preexistentes ou as suas condutas e ramais para a introdução de
novas infraestruturas. Quando viável, preferir soluções passivas, menos
intrusivas e que se possam melhor compatibilizar com a preservação dos valores
patrimoniais.
O planeamento e os cronogramas das obras necessitam de incorporar
também tempos de preparação e de execução bem distintos das obras novas
(restrições de estaleiro, exiguidade dos espaços, tempos de aplicação e cura dos
ligante muito mais demorados, etc.).
Exatamente o mesmo sucede no cálculo dos rendimentos na execução das
tarefas e na aplicação de materiais, que oneram substancialmente os distintos
trabalhos.
Em obras de reabilitação é particularmente importante recorrer a empresas
com experiência demonstrada em reabilitação, restauro e conservação (obras
muito diferentes da demolição/renovação) e com pessoal especializado,
sobretudo aquelas empresas que integram coletivamente grémios orientados
para a reabilitação. Estas empresas devem assegurar um elevado rigor filológico,
com cuidado nos ‘desmontes’ em obra, assim como na documentação,
implicando registo e numeração.
10.3.6. Em Obra
Para lançamento dos concursos e para a melhor fundamentação do projeto
é essencial dispor de medições realizadas por técnicos com experiência neste
tipo de atividades, e o mesmo sucede com a especificação dos trabalhos em
cadernos de encargos e na descrição de condições técnicas especiais. Para além
de alguns contributos do LNEC, Portugal dispõe de pouca bibliografia técnica
específica para este tipo de prescrições pelo que se recomenda o recurso à
compilação de origem italiana e traduzida e publicada pela Câmara Municipal de
Lisboa “Obras de conservação e restauro arquitetónico – condições técnicas
especiais” 26.
Pela dificuldade de prever tudo em projeto sobre preexistências, mesmo
dispondo de excelentes análises, deparamos constantemente com novas
realidades e problemas nos processos de desmontagem e demolição em obra.
Assim, é extraordinariamente frequente surgirem surpresas inesperadas,
positivas ou negativas e que provocam a necessidade de constantes
reformulações do projeto. Não sendo possível fugir às surpresas (pois são
surpresas) é sempre possível antecipar “tipos” de surpresas, por exemplo
26 Christian Campanella (2003), Capitolato speciale d'appalto per opere di conservazione e restauro,
traduzido por João Mascarenhas Mateus como: Obras de conservação e restauro arquitectónico –
158
Guia FNRE
Teresa Cunha Ferreira
Figura 10.23 – Armazenamento em obra de elementos preexistentes a preservar,
após limpeza e numeração.
condições técnicas especiais. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 2003 (Coordenação e adaptação
de João Mascarenhas-Mateus).
10. Preservação do Património
No decurso da execução dos trabalhos é crucial: projetar com atenção e
cuidado o estaleiro (as áreas disponíveis são muito parcas); proteger com eficácia
todos os elementos com valor patrimonial (por exemplo, as portas e superfícies
pintadas, os balaustres de escadas, os soalhos, etc.) antes de começar a obra;
demolir ou desmontar muito cuidadosamente elementos preexistentes,
escorando os elementos de valor, e numerar sempre que aplicável; prestar uma
particular atenção ao posicionamento e na ancoragem de andaimes e tapumes
de forma a não danificar estruturas ou revestimentos; utilizar materiais física e
quimicamente compatíveis, controlando a sua aplicação em obra,
nomeadamente através do conhecimento preciso da sua composição, através de
fichas técnicas, dosagens e modalidades de execução 27; sempre que possível
devemos colocar as infraestruturas entre as vigas ou por detrás dos rodapés de
modo a minimizar a abertura de roços em alvenarias; tratar elementos como
ferragens, escoras, abraçadeiras metálicas, sempre que possível in situ, etc.
10.3.7. Inspeções, Conservação Preventiva e Manutenção
As catástrofes naturais, ou provocadas pelo homem, são dos fatores
primordiais na destruição e obliteração de património. A minimização destes
impactes obriga-nos a assegurar tanto inspeções regulares quanto a
implementação de processos de manutenção. Um dos atuais desafios na
reabilitação do património edificado consiste na implementação de processos de
inspeção e reparação programada dentro de planos de conservação preventiva
e de manutenção, assentes na passagem de uma filosofia de intervenção
excecional e reativa (pós-dano) para uma estratégia de prevenção e de cuidado
continuado no tempo (pré-dano).
Deste modo, a manutenção continuada é fundamental na preservação da
autenticidade e integridade das soluções construtivas e materiais, assim como na
garantia de um bom desempenho dos edifícios e, consequentemente,
da satisfação dos utilizadores.
Na fase de projeto importa pensar e definir como aceder em segurança às
diversas partes e elementos dos edifícios que necessitam inspeções e operações
de manutenção periódicas (por exemplo como aceder às coberturas, como
garantir a segurança quando estas são limpas, etc. etc.).
Os Planos de Manutenção 28 – através dos Manuais de Manutenção e
Manuais de Utilização - englobam um vasto conjunto de operações – inspeção,
reparação, limpeza, uso, etc. -, diretas ou indiretas, mais simples ou qualificadas,
variáveis na sua periodicidade (diária, semanal, mensal, semestral, plurianual) ou
em função das estações do ano.
27
Em edifícios feitos com argamassas à base de cal aérea, devemos evidentemente evitar argamassas
à base de cimento Portland e cais hidráulicas com elevado teor de sais solúveis, sendo o inverso
também verdadeiro, pois não faz sentido recorrer à cal aérea quando intervimos em património do
Moderno feito à base de cimento. Se um edifício tem caiações então devemos recusar o uso de tintas
acrílicas e vinílicas preferindo-lhes as tintas minerais.
28
Para aprofundamento ver Teresa Cunha Ferreira – “Plano de Manutenção dos Monumentos da
Rota do Românico. Enquadramento, metodologia e implementação”. Em Aníbal Costa, Alice Tavares,
Ana Velosa (Eds) – CREPAT Congresso da Reabilitação do Património (Universidade de Aveiro, Junho
2017). Aveiro: Universidade de Aveiro, 2017, p. 489-498; Rui Calejo (Ed.) – Manutenção de Edifícios:
Perspetiva Multidisciplinar. Porto: GEQUALTEC, 2015; Vítor Cóias, Guia prático de conservação de
Teresa Cunha Ferreira
Figura 10.24 – Manutenção de janelas de madeira, Oficina Janelas com TINTA têm
muito + PINTA, Porto (Org: ICOMOS-PT/ FEUP-IC/ CEAU-FAUP/ AOF).
A Arquitetura do Século XX 29 aplicou novas soluções construtivas e
materiais industrializados – como o betão à vista, uma profusão de metais e
diferentes tipos de vidro, depois os plásticos e os vinílicos, etc. – ou reconverteu
materiais tradicionais, reaplicados de forma experimental ou inovadora, muitas
vezes durabilidades substancialmente menores do que anteriormente se julgava.
A rápida degradação de algumas destas materialidades (como a corrosão
do aço no betão) levanta importantes problemas de conservação e reparação.
A resolução estrutural de armaduras que já perderam secção ou as lacunas no
betão são particularmente difíceis de reintegrar e resolver. As formas e
geometrias, por vezes muito aventurosas, colocam hoje grandes dificuldades na
melhoria do seu conforto, por exemplo através da aplicação de revestimentos
pelo exterior que alteram enormemente as qualidades dessas formas, ou da
alteração de caixilharias e tipos de vidro (o vidro duplo não tem a mesma
transparência dos antigos vidros, as novas caixilharias com corte térmico são
muito mais volumosas que as antigas).
É fundamental que os projetos de arquitetura e de especialidades em
reabilitação sejam acompanhados de Planos de Manutenção com indicação
detalhada de ações de inspeção, limpeza e manutenção corrente, incluindo a
imóveis: manual para a utilização durável e económica da habitação através de uma adequada
manutenção. Lisboa: Dom Quixote, 2004.
29 Sobre a intervenção em património do século XX ver, entre outros: ICOMOS ISCAH20. Madrid
Document: Approaches for the Conservation of Twentieth-Century Architectural Heritage. Madrid:
ICOMOS, 2011; Vicenzo Rizo (Ed.). Modern building reuse: documentation, maintenance, recovery
and renewal. Guimarães: EAUM, 2014; Teresa Cunha Ferreira, “Conservation of 20th-century
architecture in Portugal. The lesson of Álvaro Siza”. In Metamorphosis. The Continuity of Change.
15th International Docomomo Conference (Lubliana, 28-31 Agosto 2018), eds. Ana Tostões e
Nataša Koselj, p. 338-344. Lisboa/Ljubljana: Docomomo International/ Docomomo Slovenia, 2018.
Guia FNRE
159
10. Preservação do Património
periodicidade, as modalidades de execução, a composição ou fichas técnicas de
materiais, entre outros. Desejavelmente deverão existir também Manuais
de Utilização com indicações para o bom funcionamento, limpeza e usos do
edifício.
É necessário conhecimento e pesquisa específica sobre a conservação de
materiais tradicionais e industrializados, sobre a análise do seu estado
de conservação e sobre os processos da sua deterioração, assim como dos
processos de reparação e restauro que muitas vezes obrigam à repristinação de
elementos impossíveis de recuperar.
10.4. Considerações Finais
Projetar sobre o construído com valor cultural, implica representar e
desenhar eficazmente a preexistência e fundamentar a coerência das alterações
propostas, conjugando todas as intervenções de especialidade, procurando um
fio condutor entre novo-antigo e desenhando uma nova e contemporânea
unidade arquitetónica (porque a interpretação histórica será sempre um ato de
plena contemporaneidade, i.e. dependendo do zeitgeist em que ocorre) 30.
A intervenção em preexistências lida com uma variedade de questões e
fatores, das opções conceptuais às soluções materiais e construtivas
(compatibilidades, reversibilidades, etc.) em diversas escalas (da estrutura ao
valor dos revestimentos, da cor, da textura, do brilho e da luz), passando pela
melhoria do desempenho funcional também em múltiplas áreas (do conforto à
higiene, segurança e energia, etc.), minimizando os seus conflitos numa arte da
conjugação que resulta num fundamental gesto de síntese crítica: o projeto!
Em época de grande mediatismo autoral na Arquitetura, em que muitas
vezes a obra de autor se sobrepõe ou anula a preexistência, importa recordar as
palavras de Álvaro Siza, defendendo um princípio de “absoluta integridade” 31 e
aconselhando os arquitetos a resistir à tendência de deixar a sua “assinatura” na
obra de recuperação 32. Este é, assim, um novo e aliciante campo de atividade
para o projeto e para os arquitetos, assente no desafio de re(-h)abi(li)tar
preexistências - isto é, “continuar-inovando” 33 - adaptando as antigas
arquiteturas aos usos, exigências e desígnios contemporâneos.
30 Alois Riegl. Le culte moderne des monuments, Son essence et as genèse, Paris, Éditions du Seuil,
1984 [1903].
32
31 “No trabalho de recuperação há um requisito obrigatório que é, em minha opinião, a absoluta
integridade. Não há que fazer alterações a não ser (…) em casos especiais ou excecionais”, Álvaro
Siza. Conferencia para el CAH20, Em: Intervention Approaches in the 20th-Century Architectural
Heritage. International Conference CAH20th, Madrid, 2011, p. 188.
33
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Guia FNRE
Álvaro Siza. Recuperação e Manutenção. Em: Aníbal Costa [et al.] - A intervenção no Património
.Práticas de Conservação e Reabilitação. Porto: FEUP, 2005. p. 21.
Fernando Távora (1969) e ainda em: Pousada de Santa Marinha: Guimarães. Boletim da DGEMN,
n.º 130, Barcelos: DGEMN, 1985 p. 77.