IBICABA, UMA FAZENDA DE CAFÉ MODELO
Mateus Rosada, Vladimir Benincasa, Maria Angela P.C.S. Bortolucci
Universidade de São Paulo
Av. Trabalhador São-carlense, 400, Centro
São Carlos – SP – Brasil
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Resumo
Este trabalho conta parte da história do café no Brasil através de uma propriedade
que foi modelo na sua produção por muitos anos: a fazenda Ibicaba, em Cordeirópolis, no estado brasileiro de São Paulo. A unidade rural foi aberta em 1817, pelo senador Vergueiro, homem importante que chegou a governar o Brasil 14 anos depois, no
período regencial. Foi pioneira em várias atividades e eventos importantes para a
região e para o país, como na plantação de café no município (1828), na contratação
de mão-de-obra assalariada estrangeira (quando todos trabalhadores rurais do Brasil
ainda eram escravos), no uso do arado em terras brasileiras (1847) e no emprego de
maquinários movidos a vapor (cerca de 1850). Foi um centro que teve muitos de
seus modelos copiados e que passou pelo auge e pela crise do sistema assalariado
e pelas oscilações do valor do café, sendo que chegou aos anos 1860 como a maior
produtora nacional. Também se tornou um exemplo da posterior ascensão social dos
imigrantes no país quando, falida, foi levada a leilão e arrematada em 1889 pelos
irmãos Levy, alemães, antigos empregados da fazenda. Sofreu com a decadência da
cafeicultura, voltou a cultivar a cana de açúcar e, hoje, utiliza suas imensas instalações do período cafeeiro como atrativo na recente atividade turística. Isso tudo faz da
Ibicaba uma crônica da trajetória do café no estado de São Paulo.
Ibicaba e a Ocupação da Região
A fazenda Ibicaba localiza-se no município de Cordeirópolis, emancipado em 1948
de Limeira, ao qual sua história esteve intimamente ligada. Possui 222 hectares, área
relativamente pequena para o padrão das grandes propriedades da região, que oscilam de 500 a 700 hectares. Cultiva a cana de açúcar, além de utilizar as instalações
remanescentes do período cafeeiro como atração turística.
O nome Ibicaba significa terra fértil (da língua indígena tupi: ibi = terra; caba = gorda,
fértil), mas não foi apenas devido à fertilidade de seu solo que se tornou conhecida.
Seu pioneirismo, especialmente na contratação de imigrantes assalariados faz com
que seja, atualmente, uma das fazendas mais visitadas nas redondezas.
Até o século XVIII, a região
onde se encontra a Ibicaba
era pouco explorada, com
densas matas e uma população rarefeita formada de
posseiros de Minas Gerais
que, se estabeleceram ao
longo do caminho conhecido
como Picadão de Cuiabá,
estrada de fluxo de tropas
Imagem 1: Localização da região da fazenda Ibicaba.
que faziam comércio e abasteciam de víveres as minas de Mato Grosso. A existência de grandes espécimes
de árvores padrão em meio à mata, ao longo da estrada, indicava a ocorrência de
boas manchas de terra roxa, solo muito fértil.
De conhecimento dessa informação, proprietários de terras de outros municípios
paulistas, como Piracicaba, Campinas, Itu e mesmo da capital (a cidade de São Paulo), solicitaram ao governo da Capitania a concessão de sesmarias na região. A que
mais se destacou pela produtividade foi a sesmaria do Morro Azul (BUSH, 1967: 28),
onde se instalou Ibicaba, que não fugiu à regra vigente: iniciou a ocupação com a
instalação de engenhos, a vinda de senhores e escravos e a expulsão dos posseiros
que ali haviam. Foi aberta em 1817 por Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, homem extremamente influente no cenário político e econômico de sua época.
O Senador Vergueiro
Vergueiro nasceu em Val da Porca, Portugal, em 1778 e formou-se em direito na
Universidade de Coimbra em 1801. Mudou para o Brasil dois anos depois (à época,
ainda colônia de Portugal), instalando-se em São Paulo. Numa sociedade de poucas
pessoas ilustradas (exceto Vergueiro, havia apenas mais três advogados na Capitania de São Paulo), a posse de um diploma e o título de doutor o fez rapidamente circular pela mais alta sociedade local, de modo que, em 1804, casou-se com Maria
Angélica de Vasconcellos, dama de uma das famílias mais prestigiadas da capital.
Prosperou na carreira de advogado, sendo vereador da Câmara Municipal de São
Paulo (1813) e juiz de sesmarias da capitania (1811-18), quando adquiriu a sua primeira data de terra. Em pouco tempo, associou-se ao brigadeiro Luís Antônio de
Souza, um dos homens mais ricos de seu tempo. Nicolau e Luís Antônio adquiriram
muitas sesmarias e fundaram uma sorte de estabelecimentos agrícolas em Piracicaba, Limeira e São Carlos. Com a morte do Brigadeiro, em 1819, a sociedade foi desfeita e restou a Vergueiro o engenho Ibicaba, localizado nesta época em Piracicaba
(Limeira seria fundada pouco depois em 1826), dentre outras posses menores.
Foi homem político de grande influência, líder do
Partido Liberal e membro das Assembléias Constituintes de Portugal (1822) e do Brasil (1823), que
havia se tornado independente no ano anterior. Em
1828, já deputado geral, foi nomeado senador pela
Província (agora não mais Capitania) de Minas Gerais, mesmo residindo na de São Paulo. Foi ministro de Negócios, ministro da Justiça e ministro da
Fazenda do Brasil e, quando da abdicação do imperador D. Pedro I, assumiu, junto com o senador
Carneiro de Campos e o brigadeiro Francisco de
Lima e Silva, a Regência Trina Provisória, primeiro
dos quatro governos interinos que comandaram o
Imagem 2: Senador Nicolau Pe-
país até o herdeiro do trono completar a maiorida-
reira de Campos Vergueiro, por
de. Com a coroação de D. Pedro II, Vergueiro tor-
volta de 1850.
nou-se membro e presidente do conselho do imperador. Afirma-se que vários títulos
nobiliárquicos lhe foram oferecidos, mas que ele não os aceitou (FORJAZ, 1924).
Ficou então conhecido como senador Vergueiro, pois o cargo era vitalício e seu
mandato se estendeu por 31 anos.
Ibicaba, de Engenho a Fazenda de Café
Ao lado de todas as suas atividades políticas, o Senador não descuidava das atividades econômicas. Em 1817, ainda sócio do brigadeiro Luís Antônio, adquiriu parte
do Morro Azul, sesmaria de terras fertilíssimas, próxima a Piracicaba: era o alvo principal de sertanistas, posto que estes para aqui vieram, em busca de terras férteis,
para tomarem posse e mais tarde efetuarem o pedido de sesmaria (MIKAMI, 1986:
4). Foi nessas terras que abriu o engenho Ibicaba, desbravando a mata para o cultivo
de cana-de-açúcar, escolhendo o sopé do Morro Azul para implantação do núcleo
produtivo. Era uma área relativamente plana e com grande número de nascentes, o
que era importante, pois, afinal, a água era a principal força motriz disponível até
então.
O engenho caminhou a passos lentos sob a sociedade com o Brigadeiro Luís Antônio, e, a partir de 1825, quando Vergueiro fixa residência em Ibicaba, inicia-se um
processo de modernização e dinamização da propriedade. Levaria alguns anos para
que o engenho passasse a ser um dos maiores da região, porém o domínio da cana
durou pouco, pois o Senador logo a substituiria pelo café, cultura que se apresentava
muito mais rentável.
Vergueiro era hábil negociante e empresário de visão. Estava ciente de todas as modificações e oscilações que ocorriam no mercado, antecipando-se muitas vezes em
novas frentes de investimentos.
Ao mesmo tempo em que os sócios começavam a plantar cana,
Vergueiro abriu uma agência em seu nome para exportar açúcar via
Santos. Ele também era o maior comerciante de escravos da província. Esses negócios eram mais importantes para Vergueiro que
1
as suas duas propriedades em Limeira e Rio Claro . (DEAN, 1977:
59)
Bem amparado economicamente pelas companhias portuárias de comércio de escravos e exportação de açúcar em Santos, Vergueiro tinha liberdade para fazer de
suas fazendas campos de experimentação. No engenho Ibicaba, já estava cultivando
algodão, cultura que se mostrava promissora e, em 1828, plantou um talhão com
seis mil pés de café (FORJAZ, 1924: 57), como forma de testar o fruto. Foi a primeira
plantação na região de Limeira. A lucratividade do café foi animadora e, aos poucos,
a cana foi dando lugar a essa cultura. A atividade canavieira perdia espaço e importância na propriedade e o engenho passava a ser conhecido agora como fazenda
Ibicaba, unidade que serviria de modelo e incentivo aos proprietários das redondezas
a também plantarem o fruto, pois o mercado externo para o café se expandia: a partir
de 1840, quando o açúcar perdeu seu valor comercial com o produto de exportação,
os fazendeiros, seguindo exemplo de Vergueiro, passaram a substituir a lavoura de
cana pelo café (REDONDANO et. al., 2000: 26).
1
Além do Ibicaba (1817) em Limeira, Vergueiro possuía a fazenda Angélica (1825) em Rio
Claro, assim batizada em homenagem a sua mulher, Maria Angélica de Vasconcellos. Esta foi
O Início do Trabalho Assalariado
Ibicaba era a maior fazenda da região de Limeira e os lucros cresciam a cada ano
com a substituição dos canaviais pelos cafezais e a abertura de novas áreas para o
plantio com a derrubada das matas remanescentes. A mão-de-obra utilizada era a
escrava, que vinha se tornando mais dispendiosa. Restrições ao comércio negreiro e
à expansão de fazendas no interior paulista diminuíam a oferta e aumentavam a procura pelo elemento servil, fazendo com que se buscassem alternativas ao sistema
escravagista.
Diante desse quadro, Vergueiro adotou o sistema em que famílias assalariadas seriam contratadas para trabalhar como colonos na Ibicaba e dividiriam com ele os lucros da venda do café que colhessem, dessa forma, senhor e empregados seriam
parceiros. Estava instalado o sistema de parceria e para isto criou a empresa Vergueiro & Cia., que seria responsável pelo recrutamento dos trabalhadores em seus
locais de origem, pelo transporte e pelo agenciamento dos mesmos nas fazendas
paulistas.
O regime de parceria no meio rural baseia-se na divisão do produto
da colheita entre o proprietário e o lavrador que nela trabalha.. O
primeiro entra com o capital, ou seja, as terras, as plantações, etc.;
o segundo, com o seu trabalho, as ferramentas, o cultivo, a limpeza
das terras e as colheitas. O lucro líquido – retiradas as despesas
previamente estabelecidas, como gastos com beneficiamento,
transporte até o porto, armazenagens, comissões de corretores,
quebras por acidentes, umidade, etc. – é dividido em partes iguais
ente o proprietário das terras e o lavrador. (BENINCASA, 2003: 64)
O sistema, revolucionário para os padrões de emprego brasileiros, não trazia grandes novidades a outros já experimentados em outras partes do mundo. Assemelhava-se muito ao endividamento, sistema praticado nos Estados Unidos (HOLLANDA,
1941: XXVII). Vê-se que não houve nenhum lampejo visionário em Nicolau Vergueiro
ao criar o sistema de parceria. Como presidente do Conselho do Imperador D. Pedro
II, além de suas atividades no Senado, mantinha-se sempre a par das discussões
políticas sobre as tentativas do governo de inserção do trabalho assalariado de imigrantes e do esforço em diminuir e mesmo impedir o uso da mão-de-obra escrava no
país. Antevendo que as leis abolicionistas não tardariam a serem aprovadas, Vergueiro, que também era o maior traficante de escravos da Província de São Paulo,
2
a maior propriedade do Senador, com 130km , mas tinha uma produção menor que a primeira.
tratou logo de encontrar uma alternativa à falta da mão-de-obra que o mercado exigia. Assim, utilizou sua experiência de importador de africanos para contratar imigrantes europeus assalariados, implantando o sistema de parceria dez anos antes da lei
Eusébio de Queirós (1850), que proibiria o tráfico interatlântico de escravos para o
Brasil. Em 1840, com a contratação de 80 famílias portuguesas oriundas do Minho,
foi fundada a colônia Senador Vergueiro, na fazenda Ibicaba. A tentativa acabou obtendo pouco êxito, não pela forma em si, mas por causa de agitações políticas ocorridas nos anos conseguintes: Vergueiro envolveu-se na Revolução Liberal de 18422,
abafada ferozmente pelo Governo Nacional, sendo obrigado a afastar-se da fazenda
nesse período; e, com sua ausência, boa parte daquelas famílias de imigrantes deixou a Ibicaba.
Em 1846, com a estabilização política, Vergueiro voltou a insistir na implantação do
sistema de parceria e recrutou 64 famílias, na maioria prussianos e bávaros, renanos
e camponeses do Holstein que vieram ter ao Brasil, em julho de 1847, à fazenda Ibicaba, onde já havia 215 escravos e 7 famílias de colonos [provavelmente portugueses da primeira experiência] (TSCHUDI, 1980: 138). Desta vez, com a liderança do
Senador e o auxílio de seu filho José (pois Vergueiro comumente se ausentava para
cumprir suas funções no Senado e no Conselho do Imperador no Rio de Janeiro), foi
possível garantir que o sistema funcionasse e as famílias permanecessem na fazenda. A experiência de Ibicaba tornou-se conhecida em todo o território nacional e muitas outras propriedades rurais passaram a considerar a substituição do escravagismo
pela mão-de-obra assalariada.
Ibicaba passou a ser, então, a fazenda importante e destacada da
vida agrícola da Província de São Paulo. Não era mais o engenho
em organização, nem o pequeno centro de produção de cana-deaçúcar, algodão e café. Passa a se constituir agora no novo modelo
de colonização no interior da Província. Como tal passa a ocupar
lugar de destaque na vida econômica e social. Do minúsculo engenho chegou a grande fazenda e, como tal, foi objeto de admiração e
motivo de emulação para os fazendeiros de café de São Paulo ou
mesmo de outras províncias. (WITTER, 1982: 26)
O sucesso alcançado na fazenda Ibicaba levou outros fazendeiros a contratarem os
serviços da Vergueiro & Cia. para obtenção de mão-de-obra sob sistema de parceria.
Assim, a empresa passou também a agenciar imigrantes da Suíça e Alemanha para
2
Na Revolução Liberal de 1842, deputados e senadores tentaram, infrutiferamente, diminuir o
poder absolutista do jovem Imperador D. Pedro II e parte de seus líderes foi presa.
outras fazendas. Os resultados vantajosos obtidos na fazenda Ibicaba, encorajaram
os fazendeiros da Província, a seguir o exemplo, contratando também colonos de
parceria, quando a importação de escravos provenientes da costa africana cessou,
no ano de 1850 (TSCHUDI, 1980: 139).
A empresa de colonização manteve as mesmas regiões no exterior para o recrutamento dos colonos, de modo que seus agentes no exterior contratavam portugueses
e, em sua grande maioria, germânicos. As dezenas de colônias de parceria criadas
na Província de São Paulo trabalharam com imigrantes nesse perfil. Na visão da época, os povos da região da atual Alemanha (Bavária, Prússia, Áustria, Reno, Suíça,
Bélgica, etc.) eram tidos pelos brasileiros como mais civilizados, educados e disciplinados e, por essas qualidades, auxiliariam numa melhora, em médio prazo, das qualidades das populações locais. Na própria Ibicaba, depois das levas de 1840 e 1846,
houve outras em 1847, 1849, 1852, 1853, 1854, 1855, 1856, 1857 e 1862 (STHALBERG, 1999: 26), todas com maioria germânica. Os parceiros dedicavam-se ao trato
com o café, enquanto os escravos se ocupavam com cana e outras culturas.
A presença de muitos artífices, ferreiros, carpinteiros entre os alemães trouxe novidades ao cotidiano da Ibicaba e das redondezas:
A fazenda foi logo substituindo o carro de boi, com rodas presas ao
eixo, pelo carro de eixo fixo mais leve e mais rápido. O arado foi usado pela primeira vez na cultura de café em 1847, segundo afirmativa de André Rebouças. As oficinas do Ibicaba começaram a fabricar e fornecer às outras fazendas, instrumentos agrícolas, carruagens, etc... Até um descascador de café inventado por Vergueiro lá
se fez e limpava 1000 arrobas por dia. Quanto à casa de máquinas,
trabalhava com dois motores a vapor, que movimentavam as máquinas de beneficiar café e oficinas e que, segundo consta, foram os
primeiros que subiram a serra de Santos para serem empregados
no benefício de café. (HEFLINGER JUNIOR, LEVY, 1998: 18)
Ibicaba tornara-se uma fazenda modelo para as demais, com uma enorme estrutura
instalada e expressiva produção de café. Na década de 1860, possuía a maior plantação do fruto no Brasil, com 1,25 milhão de cafeeiros. O terreiro para secagem do
produto tinha então 60 mil metros quadrados (seis hectares). Em seu auge, a fazenda chegou a ter, entre escravos e imigrantes, 700 famílias: mais de três mil pessoas.
A fazenda Ibicaba era uma célula viva, onde uma intensa movimentação se fazia sentir, pois a fazenda, para manter sua produção de
café sempre com altos índices necessitava, é claro, da manutenção
de todo o seu sistema interno, pois era constante o problema de
ampliação de todos os setores. Ao lado de sua produção principal, o
café, precisava também manter seus serviços subsidiários, tais como olaria, ferraria e carpintaria, bem como a necessária conservação de açudes. (WITTER, 1982: 66-7)
Toda essa estrutura acabava por assemelhar-se a uma cidade de pequeno porte:
Tão importantes eram algumas delas [as fazendas], que por si só se
constituíam em categoria de Vila, pois, dispunham de igreja, escola,
banda de música e um comércio privado, além da faculdade de emitir vales em papel forte, de valores que iam de $500 (quinhentos
réis) até cinqüenta mil réis, que circulavam livremente como si moeda nacional fossem, não só pelos seus habitantes como também
nos povoados e cidades vizinhas, e, dentre elas é de salientar-se as
do Ibicaba e Cascalho. (RODRIGUES, 1995: 4)
A movimentação ocasionada com a vinda dos imigrantes foi tamanha que a quantidade de papel-moeda em circulação na região tornou-se insuficiente para suprir a
demanda do comércio local. Nos meados do século XIX, a economia brasileira baseava-se no trabalho servil, o
que fazia com que o capital
em giro fosse pequeno. A
presença de uma massa assalariada rompeu os limites
da oferta de moeda e fez com
que alguns fazendeiros emitissem vales equivalentes a
dinheiro para o pagamento da
colheita. Esses vales passaram a ser aceitos no incipiente comércio regional e circu-
Imagem 3: Litografia da Fazenda Ibicaba, autor desconhecido, c. 1880. In: CAFÉ, 2000: 25.
lavam livremente, paralelos ao dinheiro oficial. O Senador, por causa dessa atitude,
foi acusado de emitir dinheiro em sua fazenda: Vergueiro chegou ao cúmulo de mandar imprimir moeda papel em forma de notas de banco, para, com tal moeda, pagar
colonos. Tenho em mãos a nota número 836, no valor de 1 mil réis, mas Vergueiro
fez também imprimir notas de dois e de cinco mil réis (TSCHUDI, 1980: 168-9).
A Revolta dos Parceiros
Mas a mudança de sistema de trabalho e a vinda de pessoas estranhas aos costumes da terra certamente ocasionaria choques de culturas e de expectativas, somando a isso uma série de problemas com as cláusulas contratuais da Vergueiro & Cia.,
que lesavam os colonos e deveriam ser revistos.
Os custos de transporte de navio e via terrestre do porto à fazenda (uma semana de
viagem) entravam no contrato como dívida do colono, da qual eram cobrados juros
de 6%, mas os livros-caixa da fazenda registram juros de até 12%. As instalações
para os imigrantes eram bastante precárias: logo que chegavam eram acomodados
provisoriamente em um grande galpão, depois, levados às suas casas, que tinham
chão de terra batida, não possuíam janelas (apenas uma porta de entrada) e nem
divisões internas. Qualquer reforma deveria ser realizada pelo colono. Além disso,
era cobrada uma anuidade como aluguel da moradia.
A liberdade era muito cerceada, sendo necessária autorização até para sair da fazenda nos dias de folga. A impossibilidade de se ausentar da propriedade forçava os
imigrantes a comprar o que necessitavam nas mercearias da Ibicaba, que vendiam
seus produtos a valores acima dos cobrados nas cidades vizinhas, e que, em grande
parte dos casos, aumentava ainda mais o endividamento dos colonos.
Segundo D. Hartung, em 1853 não havia escola, assistência médica e liberdade religiosa. A família Hartung era protestante. As condições na fazenda estavam aquém
do prometido na Europa e quando questionavam acerca das promessas, ouviam em
seu próprio idioma: “Aber jetzt, du bist in Brasilien!” – tradução: “Mas agora, você
está no Brasil!” (HARTUNG, s/p). Após muitas queixas, Vergueiro instituiu um sistema de saúde, onde os colonos, mediante anuidade, eram atendidos por um médico
de Rio Claro, que visitava a fazenda. Além disso, esporadicamente, um pastor alemão, de São Paulo, vinha realizar cultos protestantes.
Na leva de 1855, entre os imigrantes estava o mestre-escola Thomas Davatz, que
posteriormente, a pedido dos colonos, assumiu também funções de ministro luterano
para as celebrações locais. Em sua cidade natal, Fanas, na Suíça, Davatz recebeu
instruções específicas para enviar relatórios das condições de vida e trabalho no
Brasil, que revelariam sérios problemas.
Apesar de algumas melhorias na estrutura, os contratos não se alteraram e a presença de Davatz, letrado e empenhado nos seus relatórios, acabou por levantar que
os valores cobrados pelos serviços eram altos e os pagos pelo café colhido, abaixo
do mercado. Apareceram, com a análise do mestre-escola, fortes evidências de que
os imigrantes estavam sendo lesados pela fazenda, liderada a essa época pelo quarto filho do senador, o Comendador José Vergueiro3. Os colonos, ao invés de conseguir pagar suas contas com a venda de sua metade de café colhido, estavam cada
vez mais endividados.
Na fazenda Ibicaba havia, em 1856, mais de 800 colonos estrangeiros, dos quais 216 de origem portuguesa e os demais alemães e suíços. Estes eram 87 famílias, 10 delas já livres dos compromissos
financeiros, 4 deviam menos de 100 mil réis, e mais 4 eram devedoras de somas variando entre 100 e 200 mil réis. Os demais estavam afogados em dívidas. (TSCHUDI, 1980: 141)
A situação foi se tornando cada vez mais tensa. No final de 1856, Davatz solicitou
um inquérito ao consulado da suíça no Rio de Janeiro para avaliar os valores e as
medidas utilizados na Ibicaba e assistência às causas dos colonos Em 24 de dezembro daquele ano, o mestre-escola foi chamado à sede da fazenda, onde estavam o
velho senador, seu filho Luiz, os diretores da fazenda Jonas e Schimid, o médico Dr.
Gatticker, o deputado suíço Dr. Hueser e o Dr. Diethelm, cônsul suíço do Rio de Janeiro. Ameaçado, pediu socorro aos colonos através de um garoto de recados. Estes, armados de cacetes, ancinhos, foices, pistolas, espingardas e pedaços de pau,
cercaram a sede. Houve dois disparos e, como o pequeno contingente da Polícia de
Limeira não daria conta de apaziguar os ânimos, foi chamado um destacamento da
Guarda Nacional, vindo de São Paulo. Após esse período de tensão, a ordem foi
restabelecida alguns dias depois, por intermediação dos representantes suíços (BENINCASA, 2003: 67). É importante salientar que nem os escravos nem os imigrantes
portugueses e espanhóis tomaram parte nesse conflito. Estes, evidentemente, contavam com o idioma a favorecê-los nos seus contatos com os brasileiros dos campos
e das vilas próximas. (WITTER, 1982: 57)
A Crise do Sistema de Parceria
A Revolta dos Parceiros, apesar de curta e localizada, teve várias conseqüências.
Davatz foi afastado e retornou à Suíça, onde escreveu em livro sua experiência na
Ibicaba, o que resultou, dois anos mais tarde, num decreto que proibia a emigração
da Prússia para a Província de São Paulo. Posteriormente, com a criação do Império
Alemão, em 1871, o novo governo emitiu proibição semelhante.
3
O Senador Vergueiro, à época com 78 anos, idoso, adoentado e com várias atividades na
capital imperial (Rio de Janeiro) havia se retirado do comando das empresas da família, deixando-as a cargo de seus filhos.
Em quase todas as fazendas de café, deixou-se de lado a parceria e o sistema utilizado passou a ser a remuneração por alqueire4 de café colhido. A Ibicaba entrava
em um nítido processo de declínio e, em pouco tempo, deixava de ser espelho para
as demais propriedades agrícolas do país. Em 1859, falece no Rio de Janeiro o senador Vergueiro. A companhia de imigração já vinha sendo administrada por seus
filhos e a Ibicaba, por José Vergueiro.
Nas mãos de José, iludido pelos conflitos com alemães, a fazenda deixou de contratar imigrantes e voltou ao trabalho essencialmente escravo. A Ibicaba, aos poucos,
tornou-se deficitária, mesmo assim, o funcionamento da propriedade no dia-a-dia
continuava normal e a produção de café aumentava.
O ano de1865 foi marcante para as empresas da família: a Vergueiro & Cia. pediu
falência, pois se encontrava bastante endividada, embora a fazenda de Rio Claro e a
Companhia Imigratória de Santos pudessem saldar suas dívidas. O Brasil entrava
num período difícil: a Guerra do Paraguai e, conseqüentemente, a necessidade de
desvio de moeda e fundos para sustentá-la, levaram o país à recessão econômica. A
Ibicaba, também com sérios problemas financeiros, ironicamente, atingiu o ápice de
sua produção nesse ano, com 54.896 alqueires (27,5 toneladas) e funcionou como
campo de treinamento para os soldados que combateriam na guerra.
A crise financeira que se seguiu à Guerra do Paraguai também atingiu a saúde financeira da fazenda Angélica: a propriedade dos Vergueiro em Rio Claro, que foi hipotecada e tomada pelo London and Brazilian Bank em 1871.
A Ibicaba, maior empresa da
família,
teria
uma
agonia
mais lenta: em 1876 era inaugurada a estação ferroviária Ibicaba, dentro da fazenda, o que facilitou o escoamento da produção. Porém a
situação da propriedade já
estava muito comprometida.
A fazenda, que em 1856
tinha 800 colonos e 215 es-
Imagem 4: Demonstração de ferramentas no terreiro da
cravos, contava em 1887,
fazenda Ibicaba, onde se vêem escravos e imigrantes jun-
com 400 escravos e apenas
tos (c. 1880). In: HEFLINGER et. al., 2005: 73-74
50
4
trabalhadores
livres
Alqueire era uma medida antiga de volume, correspondente a 13,8 litros.
livres (LAMBERG, 1896: 327), que não eram os germânicos dos tempos do sistema
de Parceria, mas italianos em sua maioria.
Partes da fazenda já haviam sido vendidas, sua área diminuíra e sua produção cafeeira também. Endividada e hipotecada, a fazenda foi a leilão em hasta pública. Era o
fim da era Vergueiro, agora novos rostos e idéias comandariam essa fazenda que
chegou a ser modelo de produção de alternativas de mão-de-obra no país.
A Família Levy
Em 1889, apenas um ano após a abolição da escravidão no Brasil, a Ibicaba foi arrematada pelo coronel Flamínio Ferreira de Camargo, em sociedade com os irmãos
Simão e José Levy, ex-colonos da própria fazenda, enriquecidos com outros negócios, um exemplo emblemático da ascensão dos imigrantes no Brasil. Ibicaba possuía, então, 2427 hectares.
Simão e José chegaram à colônia Senador Vergueiro em 1857, com o pai, Jakob
Levy, e mais três irmãos. Eram protestantes, mas com as dificuldades de culto locais,
acabaram abraçando a fé católica, incentivados pela proprietária da fazenda, Maria
Angélica de Vasconcellos, que mandava trazer padres para as atividades religiosas e
conversão dos colonos. Ela foi madrinha de batismo de José, o caçula da família
que, ironicamente, seria o proprietário que manteria, de certa forma, a pujança da
Ibicaba (LEVY, in LEVY, 1997: 9).
Ao saírem da Ibicaba, em 1871, os Levy foram com suas economias para Limeira,
onde se estabeleceram comercialmente com mercearia, açougue e selaria. Dos cinco
irmãos, dois se mudaram para Pirassununga e um para Campinas. Simão e José
continuaram na cidade e abriram a Casa Bancária Levy & Irmão e enriqueceram.
Para conseguir capital para a compra da Ibicaba, se associaram ao coronel Flamínio,
de quem comprariam a parte anos mais tarde. Simão passou a se dedicar mais aos
imóveis urbanos de Limeira, enquanto José se dedicou à fazenda. Em 1910, um novo casarão foi construído por ele na Ibicaba. Por um período, o casarão edificado
pelo senador Vergueiro manteve-se ao lado do novo, mas foi incendiado e demolido
por volta de 1920, após um surto de tuberculose na fazenda.
Os irmãos Levy também
trabalharam com exportação, abrindo uma casa comissionaria
em
Santos.
Dessa forma, Ibicaba retomou parte de sua importância, mas, em 1926, num
período em que existiam
fazendas com mais de três
milhões de pés de café, ela
possuía meio milhão de cafeeiros, menos da metade
Imagem 5: Fotografia da Família Levy na Ibicaba em 1892
(sentados, José Levy, de calças brancas, e Simão, de terno preto). In: LEVY, 1997: 15.
do que havia no seu auge.
Ainda assim, era a segunda maior fazenda do município de Limeira.
Com a morte do Coronel José Levy, em 1928, a fazenda foi dividida entre seus descendentes (os de Simão ficaram com as propriedades de Limeira). Logo em seguida,
a cafeicultura sofreu um forte impacto com a crise mundial de 1929 e o café, como
produto de exportação, perdeu muitos mercados, se recuperando após a crise. No
entanto, nunca mais atingiu o preço e a rentabilidade do período anterior.
O Fim do Ciclo Cafeeiro
Deixando de ser um produto tão atraente, o café foi sendo erradicado num lento processo, entre os anos de 1930 e 1960, e substituído pela cana-de-açúcar. Mais de um
século depois, a cana voltou a dominar a paisagem da região, agora apoiada em
uma nova dinâmica econômica, em que os pequenos engenhos deram lugar às
grandes usinas de açúcar e álcool, que além de serem proprietárias da terra, também
arrendam canaviais. A mecanização da agricultura eliminou a necessidade de colonos nas fazendas e quase toda a população que vivia no campo, ligada à produção
cafeeira, acabou migrando para os centros urbanos.
Em 1975, dos 2427 hectares de terra arrematados pelos Levy em 1889, restavam
apenas 222 hectares ao redor da sede da Ibicaba, fruto das várias divisões de herança. Nesse mesmo ano, foi vendida à família Carvalhaes, a atual proprietária. Toda
a documentação da fazenda, como livros-caixa, registro de imigrantes e fotografias,
ficou em poder dos Levy, de modo que quase nenhum documento que trata de uma
das fazendas mais importantes na história paulista se encontra em seus domínios.
A Ibicaba Atual
Em 1996, a propriedade iniciou a atividade turística e, desde então, recebe grande
número de visitantes nacionais e estrangeiros. Também se dedica à atividade canavieira, que lhe proporciona a maior fatia de seu orçamento: suas terras são arrendadas à Usina Iracema.
Apesar de várias demolições ocorridas durante sua história, ainda existe significativo
conjunto edificado do período cafeeiro: o casarão erguido pela família Levy, o prédio
da administração, a casa de força, as garagens, a capela, duas tulhas e a casa de
máquinas com todo o maquinário dos anos 1930 (o maquinário mais antigo foi destruído num incêndio naquela década), uma antiga senzala, a serraria, a casa de farinha, algumas casas de colônia, a escola, a pocilga, o paiol, as cocheiras e a torre do
relógio, que também funciona como mirante. Dos terreiros de café, restam ainda 10
mil metros quadrados dos 60 mil originais, com lavadores, aquedutos e um completo
sistema de canalização de água. Há também um enorme bosque e jardins, localizados na lateral e nos fundos do casarão. No jardim dos fundos há uma enorme figueira (com 35 m de altura e 45 m de diâmetro na copa), que já existia quando a fazenda
foi aberta, sendo mantida como indicativo da boa qualidade do solo para o plantio de
café. Todas as instalações são muito amplas e impressionam pelo porte.
Imagem 6: Implantação da fazenda Ibicaba em 2003. Desenho: Mateus Rosada.
Parte das estruturas que presenciou o período mais importante da fazenda, como o
antigo casarão em que viveu o senador Vergueiro, as primeiras casas de colonos e o
maquinário mais antigo de beneficiamento de café não existem mais. Novos tempos
exigiram novos usos e fatos imprevistos eliminaram edificações importantes. A Ibicaba de hoje se diferencia consideravelmente da Ibicaba dos tempos de Vergueiro e
das iniciativas pioneiras que a tornaram célebre, mas sua alma ainda vive no patrimônio que se conservou ajudando a contar episódios que foram decisivos para a
formação do Estado de São Paulo e do Brasil.
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