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“Responsabilidade civil: funções punitiva e preventiva”

Revista IBERC

Fruto das pesquisas desenvolvidas pelo autor durante o curso de mestrado em Direito Civil junto à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo no Largo de São Francisco, sob a orientação do Professor Doutor Marco Fábio Morsello, a obra nos permite refletir sobre os acertos e desacertos deste caminhar e, longe de buscar uma uniformização dos direitos nacionais, possibilita conhecer as diferenças entre os modelos jurídicos adotados por cada sistema, com riqueza de dados e detalhes provenientes do Master of Comparative Law concluído junto à Cumberland Law Of School, na Stanford University, sob orientação do Professor Michael D. Floyd.

Revista IBERC v. 3, n. 3, p. 139-148, set./dez. 2020 www.responsabilidadecivil.org/revista-iberc DOI: https://doi.org/10.37963/iberc.v3i2.143 “RESPONSABILIDADE CIVIL: FUNÇÕES PUNITIVA E PREVENTIVA”, RESENHA DA OBRA DE RICARDO DAL PIZZOL (INDAIATUBA, SP: FOCO, 2020) ______________________________________________________ “RESPONSABILIDADE CIVIL: FUNÇÕES PUNITIVA E PREVENTIVA”, REVIEW OF RICARDO DAL PIZZOL’S BOOK (INDAIATUBA, SP: FOCO, 2020) Vitor Ottoboni Pavan 1 Muito me honra a árdua missão de resenhar a excelente obra “Responsabilidade Civil: funções punitiva e preventiva” de autoria do associado do IBERC, magistrado, mestre em Direito Comparado pela Stamford Unversity (Alabama, USA) e pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e doutorando em Direito Civil, também nas Arcadas, Ricardo Dal Pizzol. O livro, lançado em 2020 pela Editora Foco, representa grande contribuição para a ciência jurídica brasileira, em especial para o estudo da responsabilidade civil em perspectiva comparada, posto trazer uma acurada e ampla análise dos diferentes caminhos que os países de sistema civil law (romano-germânico) e aqueles da common law quanto às funções exercidas pela responsabilidade civil. Fruto das pesquisas desenvolvidas pelo autor durante o curso de mestrado em Direito Civil junto à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo no Largo de São Francisco, sob a orientação do Professor Doutor Marco Fábio Morsello, a obra nos permite refletir sobre os acertos e desacertos deste caminhar e, longe de buscar uma uniformização dos direitos nacionais, possibilita conhecer as diferenças entre os modelos jurídicos adotados por cada sistema, com riqueza de dados e detalhes provenientes do Master of Comparative Law concluído junto à Cumberland Law Of School, na Stanford University, sob orientação do Professor Michael D. Floyd. Segundo Anderson Schreiber2 corresponde a função, no Direito, "aos interesses que um certo instituto jurídico pretende tutelar, e é, na verdade, o seu elemento de maior importância, já que determina em última análise, os traços fundamentais da estrutura". Isto é, o instituto jurídico se define a partir de sua tarefa no sistema e seus reflexos no mundo dos fatos e a partir Advogado. Professor de Responsabilidade Civil em cursos de Pós-Graduação em Direito Lato Sensu. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Associado do IBERC. E-mail: [email protected]. ID Orcid https://orcid.org/0000-0003-4556-4486. 2 SCHREIBER, Anderson. Direito Civil e Constituição. São Paulo: Atlas, 2013, p. 245. 1 139 daí se constrói a sua estrutura. Tal visão subverte a ordem antes instaurada onde “aqueles que se dedicaram à teoria geral do direito se preocuparam muito mais em saber ‘como o direito é feito’ [análise estrutural] do que ‘pra que o direito serve’ [análise funcional]”3. Assim, do ponto de vista teleológico, a função determina o próprio conteúdo do conceito jurídico e garante a sua unidade sistemática, o que, em última análise, tem como elemento de congregação a tutela da pessoa humana constitucionalmente prevista. Por meio do Direito comparado a função que determinado instituto exerce pode ser repensada e ressignificada. A proposição de uma análise da responsabilidade civil a partir de seus aspectos funcionais permite ao autor superar as diferenças estruturais-dogmáticas que podem existir entre os países de tradição romano-germânica e os países inseridos no sistema jurídico de common law para apresentar de forma vertical e exaustiva a realização das funções punitiva e preventiva pelo instituto no contexto brasileiro4. A obra assume a direção à uma teoria funcionalista do direito, conferindo dinamicidade ao Direito, e enxerga este não apenas como um sistema ordenador das relações sociais, mas como instrumento que também busca promover transformações5. Não descuida, entretanto, do rigor quanto a aspectos estruturais relevantes, apresentando estrutura e função em relação de complementariedade e não de antítese 6 .O primeiro capítulo traça de forma clara este background do trabalho, introduzindo ao leitor a perspectiva do autor para o desenvolvimento do trabalho. Sem o necessário aprofundamento quanto aos punitive damages 7 , grande parte da doutrina refere-se, de forma irônica, à adoção de uma punição decorrente da responsabilização civil do agente como se fosse "um instrumento mágico, dotado de um mirabolante efeito de desestímulo, que inauguraria um absoluto far west no plano do Direito Civil"8 (ROSENVALD, 2017, p. 43, grifos do autor). 3 BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do Direito. Barueri: Manole, 2007. p. 53 4 Nesse sentido destacam Marcos Ehrhardt Junior e Farias que “a análise funcional permite que ordenamentos com categorias dogmáticas diversas – o que impossibilitaria uma comparação meramente estrutural ou normativa – sejam analisadas em razão da semelhança das funções que as normas exercem abstratamente ou nos casos concretos” In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; FARIAS, Luiz Roberto Barros. Por um sistema jurídico que funcione: discutindo a funcionalização do Direito Civil. In: EHRHARDT JUNIOR, Marcos; FEITOSA, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer; SANTIAGO, Maria Cristina Paiva (org.). Temas de Direito Civil-Constitucional: da constitucionalização à humanização. João Pessoa: IDCC, 2017. p. 17-36. p. 27. 5 DAL PIZZOL, Ricardo. Responsabilidade civil: funções punitiva e preventiva. Indaiatuba, SP: Foco, 2020. p. 3 6 Ibidem. p. 5. 7 Segundo o Black's Law Dictionary, os punitive damages podem ser definidos como "Damages awarded in addition to actual damages when the defendant acted with recklessness, malice, or deceit; [...] Also termed exemplary damages; vindictive damages; punitory damages; presumptive damages; added damages; aggravated damages; speculative damages; imaginary damages; smart money; punies." (GARNER, Bryan A (ed.). Black's law dictionary. 9. ed. St. Paul: West, 2009., p. 448). Em tradução livre: "Danos conferidos em complemento aos danos compensatórios quando o réu agiu com culpa grave, malícia ou calúnia intencional; [...] Também denominado exemplary damages; vindictive damages; punitory damages; presumptive damages; added damages; aggravated damages; speculative damages; imaginary damages; smart money; punies". 8 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 43. 140 Não só no Brasil, mas também em outros países integrantes do sistema jurídico do civil law, a defesa de uma posição a favor do exercício de outras funções pela responsabilidade civil que não a reparatória, era vista com maus olhos. Em Itália, por exemplo, De Cupis ressaltava que aqueles que defendiam a aplicação de uma pena por meio da responsabilidade civil eram taxados de imbecis, reacionários, obtusos e fechados ao pensamento moderno, por estarem propondo o que se julgava uma involução, um retorno ao arcadismo do Direito de outrora9. Na obra resenhada, Ricardo Dal Pizzol traz uma abordagem sobre os punitive damages nos países de common law eivada de ineditismo na literatura jurídica brasileira. Nenhuma outra obra antes esmiuçou os punitive damages da forma como fez o autor. Inicialmente, no Capítulo 2, o autor define o conceito de punitive damages, que assumem o caráter de multa privada, e os diferencia quanto aos compensatory damages, danos com “função exclusivamente reparatória” 10 . Enquanto o arbitramento dos primeiros “é fundamentalmente uma expressão, do júri ou do juiz, de sua condenação moral da conduta do ofensor” 11 , os compensatory damages abarcam os danos patrimoniais e extrapatrimoniais derivados do ato antijurídico. Os punitive damages constituem assim remédio jurídico aplicável a um ofensor quando este incorre em uma conduta particularmente reprovável de natureza dolosa ou com culpa grave, tendo por finalidades exclusivas punir o comportamento pretérito e dissuadir comportamentos futuros, nesta segunda hipótese inclusive de outros membros da sociedade, através da fixação de uma pena civil com base em elementos relativos à conduta e ao ofensor. Ressalta-se, dessa forma, que se trata de remédio jurídico inaplicável a situações de culpa leve ou levíssima (negligence), de mero inadimplemento contratual – em regra – e que não constitui direito subjetivo da vítima, cabendo ao julgador com absoluta discricionariedade condenar o ofensor, ou não, ao pagamento de punitive damages.12 Dal Pizzol apresenta ao leitor com riqueza de detalhes as transformações às quais os punitive damages foram submetidos desde as penas previstas no sistema anglo-saxão entre os séculos V e XI (wite, wer e bote) até as decisões mais famosas proferidas no final do século XX, quando “a doutrina dos punitive damages deixou de ser um assunto de baixa visibilidade”13 e assumiu protagonismo tanto na academia quanto nos tribunais estadunidenses, principalmente pela progressiva elevação dos valores arbitrados nas condenações por punitive damages. Este escorço histórico não é, de forma alguma, mera formalidade acrítica, mas uma digressão necessária que revela os problemas já enfrentados nos países de common law conforme os contextos histórico-sociais de cada período analisado, especialmente pelo Direito Inglês e pelo Direito dos Estados Unidos da América, antecipando soluções que constituem dados úteis quando da análise da viabilidade de uma função punitiva da responsabilidade civil em solo brasileiro. Fica claro no trabalho do autor, como este próprio indica, que “[a]s cortes da DE CUPIS, 1986 apud ROSENVALD, Nelson. op. cit. p. 43. DAL PIZZOL, Ricardo. op. cit. p. 12. 11 Ibid. p. 14. 12 DAL PIZZOL, Ricardo. op. cit. p. 15. 13 Ibid. p. 29. 9 10 141 common law sempre estiveram mais preocupadas com a finalidade e a eficácia dos institutos jurídicos do que com conceitos e classificações”14 Esclarecidos conceitos e traçado o percorrer histórico do instituto, é apresentado o regime atual dos punitive damages nos Estados Unidos da América. Neste capítulo, o terceiro da obra, são analisados dados políticos, legislativos e de constitucionalidade do instituto já debatidos na doutrina e nas cortes americanas. O debate político nos Estados Unidos a partir da década de 1980 estabeleceu-se de forma politizada e polarizada. Enquanto associações de defesa dos consumidores e advogados especializados em demandas envolvendo torts defendiam os punitive damages como única medida corretiva apta a evitar os cálculos de custo-benefício realizados pelos lesantes quando da prática consciente e pragmática de um ilícito , ou seja, um importante instrumento – especialmente no campo dos direitos da concorrência e do consumidor – de private enforcement of law, a iniciativa privada – principal destinatário das condenações por punitive damages, trazia como principal crítica ao instituto a imprevisibilidade na fixação dos valores das indenizações. Ocorre que esta imprevisibilidade era, justamente, o argumento que, segundo as entidades defensoras dos punitive damages, evitava que os ofensores se antecipassem à condenação o que, de outra via, acabaria por afastar o efeito dissuasório da aplicação desta espécie de damages. Os embates argumentativos entre defensores e opositores aos punitive damages foi seguido do movimento do “tort reform” que, por meio de ação legislativa e judicial, buscou estabelecer parâmetros e limites para a aplicação dos punitive damages. Ocorre que, como é de conhecimento notório, a regulamentação do direito privado nos Estados Unidos da América é de competência legislativa dos Estados, e não do poder legislativo central estabelecido em Washington. O movimento do tort reform provocou, assim, o surgimento de diferentes regulamentações (statutory law) nos Estados norte-americanos. Novamente, a obra dá provas concretas da profundidade e do pioneirismo de sua abordagem. O autor traz dados sobre o tratamento conferido aos punitive damages nos estados quanto a aspectos de direito material e processual, mais especificamente (a) quanto à adoção deste remédio, (b) quanto aos limites quantitativos fixados em lei – statutory caps – para os punitive damages, (c) quanto à distribuição do ônus da prova conforme os níveis de persuasão – standards que podem ser mais fáceis ou mais difíceis de se alcançar – exigidos para que seja procedente a pretensão referente aos punitive damages; (d) quanto à destinação do valor fixado a título de punitive damages, se integralmente à vítima ou se distribuído entre a vítima e ao Estado ou fundos públicos; (e) quanto ao regramento dos punitive damages em questão de seguros privados; (f) quanto aos aspectos procedimentais do julgamento de pretensões de punitive damages; (g) quanto à possibilidade ou não de uma mesma conduta dar origem a múltiplas demandas – e, portanto, múltiplas condenações – em casos de danos provocados a um grupo extenso de vítimas; (h) quanto à sucessão ativa e passiva nos polos da obrigação 14 DAL PIZZOL, Ricardo. op. cit. p. 22. 142 exigida em juízo; e (i) quanto à responsabilidade vicária15 - vicarious liability. Enfim, os punitive damages são abordados sob o aspecto constitucional no contexto da tort reform. Este ponto é de suma importância, pois argumentos frequentemente utilizados pela doutrina brasileira para rechaçar a função punitiva da responsabilidade civil, especialmente a constitucionalidade de que a fixação de valores em decisões judiciais fundadas em um ato ilícito exceda a extensão do dano e a caracterização de bis in idem pela existência de outras penas de natureza criminal ou administrativa. Dal Pizzol traz casos paradigmáticos julgados pela Suprema Corte que fixaram parâmetros que tanto orientam as condenações em punitive damages nas cortes inferiores quanto pautam a análise de constitucionalidade das indenizações fixadas, são estes: (a) o grau de reprovabilidade da conduta; (b) disparidade entre os danos compensatórios e os danos punitivos; (c) diferença entre a indenização punitiva e as demais penalidades existentes para condutas semelhantes.16 Não se limitando aos Estados Unidos da América, a obra traz dados quanto ao tratamento conferido aos danos punitivos em outros países do sistema jurídico da common law. Com destaque para o Reino Unido, onde são usualmente denominados exemplary damages, e onde, com exceção da Escócia – país em que não são nem nunca foram admitidos – foram largamente debatidos no século passado. A obra ainda perpassa pela experiência de Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Irlanda, África do Sul, com interessantes abordagens nestes países onde, por vezes, há intersecções entre os sistemas jurídicos da common law e do civil law no que tange ao direito privado, o que oferece um rico panorama para o estudo comparado do instituto visando à sua aplicação no ordenamento brasileiro. Este passo – da incorporação da função punitiva pela responsabilidade civil brasileira – não poderia ser concluído sem antes adentrar na cultura jurídica dos países de tradição romanogermânica para analisar como a função punitiva foi aplicada, abandonada e readmitida desde o Direito Romano até a contemporaneidade. De plano o início do capítulo 5 desmistifica a errônea ideia de que a função punitiva da responsabilidade civil é totalmente estranha à construção do direito privado nos países de civil law. Como bem demonstra o autor, o regime de delitos privados romano “estava mais próximo do regime atualmente existente nos países da common law do que daquele em vigor nos países de civil law”17. O sistema de penas privadas do direito romano entra em declínio a partir do período denominado de Alta Idade Média em que as punições preestabelecidas pelo Estado e a individualização da punição na pessoa do ofensor são substituídas por um sistema em que a responsabilidade civil era predominantemente baseada na vingança privada e na responsabilidade coletiva fruto da influência das tribos germânicas e que reinou até o século XII Sobre a responsabilidade vicária ver ROSENVALD, Nelson. O Direito Civil em movimento: desafios contemporâneos. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2019. 16 DAL PIZZOL, Ricardo. op. cit. 85. 17 Ibid. p. 133. 15 143 na Europa Ocidental.18 Relata o autor que é a partir da recuperação das fontes romanas no século XII, contudo, que a análise alcança seu principal relevo para o desenvolvimento da obra. Aponta que, ainda que o redescobrimento do direito romano evidenciasse as actio poenales, as actiones mixtaes e as actiones reipersecutoriae, três fatores levaram à consolidação do paradigma reparatório em sede de responsabilidade civil no período compreendido entre a Baixa Idade Média e as grandes codificações liberais oitocentistas: (a) a forte influência do Direito Canônico; (b) os dogmas da Escola do Direito Natural; (c) o estabelecimento de uma separação rigorosa entre as esferas cível e penal pelo movimento das grandes codificações durante o século XVIII. Demonstra o autor que ao contrário do que muitas vezes se argumenta, os caminhos tomados pelos sistemas de common law e de civil law não se distanciam na origem, já que ambos bebem da fonte romana, mas se bifurcam em um determinado momento por diferentes razões histórico-sociais listadas por Dal Pizzol com clareza lógica ao final do quinto capítulo. O transcorrer da obra demonstra, contudo, que mesmo que em um dado momento histórico as estradas da responsabilidade civil na common law e na civil law possam ter seguido direções diferentes a partir de uma bifurcação, nada impede que nos dias atuais, isto é, em um ponto futuro em relação ao anterior distanciamento, estes caminhos voltem a se tangenciar e se cruzar. Fica claro na análise de Ricardo Dal Pizzol que, enquanto os países de civil law experimentaram um movimento de expansão da função reparatória da responsabilidade civil em direção à vítima, buscando ampliar a tutela dos danos, os países de common law desenvolveram de forma mais apurada instrumentos voltados à contenção de comportamentos lesivos, oferecendo à própria vítima remédios diversos aptos a tutelá-la em sua integridade. Esta análise, ao contrário de nos levar à conclusão pela incompatibilidade entre os institutos, deve, na verdade, ser usada para extrair dessas diferentes experiências elementos que aprimorem em cada sistema aquilo que neles é deficiente. O andar do tema em Portugal e no Brasil não foi diferente de outros países de civil law, o que é claramente demonstrado no capítulo 6. No capítulo 7 é apresentado o renascimento da função punitiva. Um fenômeno observável essencialmente na doutrina e na jurisprudência de diversos países do sistema civil law, como demonstra o autor em análises sobre esse movimento em Itália, Alemanha e França. Da mesma forma “a jurisprudência brasileira acabou por importar o ‘sentimento’ dos punitive damages para a indenização por danos extrapatrimoniais, acoplando à função reparatória uma função punitiva ou punitivo-pedagógica” 19 , mas sem o rigor técnico-científico que a obra resenhada nos oferece, por exemplo, o que foi motivo de severas, e acertadas, críticas da doutrina nacional20. A referência genérica e pouco fundamentada à uma função punitiva nas indenizações DAL PIZZOL, Ricardo. op. cit. p. 136. PAVAN, Vitor Ottoboni. Responsabilidade civil e ganhos ilícitos: a quebra do paradigma reparatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. p. 110. 20 MARTINS-COSTA, Judith; PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva: punitive damages e o Direito Brasileiro. Revista CEJ, Brasília, v. 1, n. 28, p.15-32, jan. 2005. 18 19 144 por danos extrapatrimoniais representa uma verdadeira hipertrofia da indenização por danos morais21, em que não são estabelecidos limites divisórios claros entre o que é compensação, o que é punição e o que é prevenção, encontrando ainda, no temor do enriquecimento sem causa da vítima, um limite muitas vezes artificial dado o baixo valor das indenizações por danos morais no Brasil22. Como bem aponta Dal Pizzol, trata-se de “muita retórica, pouco resultado”. O autor demonstra como a punição através da responsabilidade civil importada às pressas é incoerente não com o sistema jurídico privado brasileiro, mas com a forma com a qual é aplicada. A obra claramente indica o equívoco da aplicação dos punitive damages como um remédio jurídico prêt-à-porter para os problemas da nossa sociedade. A incoerência fica clara, por exemplo, quando se refere a função punitiva em casos de responsabilidade civil objetiva, sendo que, como antes abordado na obra, os punitive damages constituem remédio exclusivamente pautado na conduta do ofensor, avaliada subjetivamente. O livro ainda explora as muitas vezes turvas águas da análise econômica do direito com maestria. Apoiado nas ideias utilitaristas de Bentham e Mill, e na aplicação dessas ideias ao Direito operada por doutrinadores como Ronald Coase, Guido Clabresi, Richard Posner e Roberto Pardolesi, o autor investiga os conceitos e princípios básicos da Law & Economics – Análise Econômica do Direito, quais sejam: (a) racionalidade – escolhas racionais dos agentes direcionadas à maior utilidade para si; (b) individualismo metodológico – a análise recai sobre as ações dos indivíduos tomadas singularmente ou em conjunto, mas sempre vistas de forma individual; (c) eficiência – o critério de análise das ações humanas deve ser a busca pelo menor custo social. Estabelecidas estas premissas, a obra procede à aplicação da teoria da Análise Econômica do Direito à função punitiva da responsabilidade civil. A investigação realizada comprova que as “indenizações que excedem os danos compensatórios [...] são perfeitamente justificáveis sob o prisma da Análise Econômica do Direito, visto que necessárias, em certas circunstâncias, para induzir os agentes a adotarem as soluções mais eficientes (isto é, de menor custo social)”23. E ainda que à primeira vista a Análise Econômica do Direito possa parecer antítese, por exemplo, à metodologia do Direito Civil-Constitucional, os elementos extraídos da análise realizada por Dal Pizzol permitem compreender como a adoção da função punitiva no Direito brasileiro pode representar uma alternativa viável para a realização dos princípios e valores constitucionais e cumprimento do objetivo de tutela integral da pessoa, aproximando-se, portanto, as duas visões que a priori seriam incongruentes. Se, como bem mostra a obra, os países de civil law rumaram à expansão da função reparatória, por vezes declamando seu monopólio – principalmente da segunda metade do século XX em diante, com a justificada ânsia de tutelar a pessoa no contexto de ROSENVALD, Nelson. op. cit. 2019, p. 475. Cf. PUSCHEL, Flávia. A quantificação do Dano Moral no Brasil: Justiça, segurança e eficiência. Série Pensando o Direito, Brasília, n. 37, 2011. Disponível em: http://pensando.mj.gov.br/wpcontent/uploads/2015/07/37Pensando_Direito1.pdf. Acesso em: 28 jul. 2019. 23 DAL PIZZOL, Ricardo. op. cit. p. 239. 21 22 145 redemocratização –, o fato é que na sociedade contemporânea também a contenção de condutas lesivas deve ser um goal da responsabilidade civil. Afinal de contas, se o objetivo prioritário é a tutela da pessoa, a lógica é que muito melhor que reparar danos é evitar que estes aconteçam. E nisso, a Análise Econômica do Direito nos fornece dados ricos para verificar a eficiência das funções preventiva e punitiva na dissuasão de novas condutas ilícitas. Dal Pizzol, sob este prisma da L&E, aponta que é preciso admitir o ingresso da função punitiva da responsabilidade civil no ordenamento jurídico brasileiro, com a necessária alteração legislativa para não só abrir essa possibilidade conforme a legalidade, mas para estabelecer balizas de aplicação que impeçam o julgador de incorrer nos mesmos erros até então apontados e ofereça a necessária segurança jurídica ao instituto. Por fim, no nono e último capítulo, Dal Pizzol nos mostra que a responsabilidade civil pode atuar também ex ante facto, isto é, se antecipando à ocorrência do evento danoso em realização de sua função preventiva stricto sensu. Se quando da aplicação da função punitiva a dissuasão (deterrence) é um efeito da aplicação de uma pena civil ao lesante que provoca neste (prevenção especial) e nos demais membros da sociedade (prevenção geral) o temor de novas sanções, prevenindo, por esse motivo, a prática de novos ilícitos, na prevenção como função autônoma da responsabilidade civil o direito age antes da concretização do dano, inibindo-o. Isso se faz necessário principalmente em razão do desenvolvimento de uma categoria de danos denominada “danos graves e irreversíveis”24-25. Para fazer frente à essa nova categoria de danos a responsabilidade, tomada em uma acepção mais ampla que a mera obrigação de reparar danos – expressão de uma dentre outras funções que o instituto pode assumir –, orienta-se pelos princípios da precaução e da prevenção, que virão a representar os principais instrumentos de uma nova responsabilidade, que o autor adjetiva preventiva. Enquanto a prevenção lida com riscos concretos, a precaução se incumbe de riscos potenciais, isto é, a primeira trata de riscos já constatados e a segunda de riscos hipotéticos ainda não comprovados26. Pautado nas premissas de uma responsabilidade preventiva, que tem por ferramentas o princípio da precaução e o princípio da prevenção, Ricardo Dal Pizzol demonstra como a responsabilidade civil preventiva apresenta-se como solução viável para responder a dois problemas identificados na pesquisa: “(i) o enfraquecimento da sanção-indenização como instrumento dissuasivo de condutas antissociais, conforme item 9.2 acima; (ii) proliferação dos riscos de danos graves e irreversíveis, conforme item 9.3 acima”27. Separam-se, assim, os conceitos de responsabilidade e indenização, sendo o primeiro DAL PIZZOL, Ricardo. op. cit. p. 273. Para uma visão completa sobre o tema cf. SANTOS, Romualdo Baptista dos. Responsabilidade civil por dano enorme. Curitiba: Juruá, 2018 26 LOPEZ, Teresa Ancona. Responsabilidade civil na sociedade de risco. In: LEMOS, Patrícia Faga Iglecias; LOPEZ, Teresa Ancona; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz (coord.). Sociedade de risco e direito privado: desafios normativos, consumeristas e ambientais. São Paulo: Atlas, 2013. p. 3-14. 27 DAL PIZZOL, Ricardo. op. cit. p. 280. 24 25 146 mais abrangente que o segundo. A responsabilidade deve, para além da reparação, ser preventiva atuando ex ante facto por meio de tutelas inibitórias capazes de atenuar os riscos e minimizar as probabilidades de que o dano venha a se concretizar. A visão oferecida por Ricardo Dal Pizzol é consoante com a sociedade em que vivemos. A responsabilidade civil é um valioso instrumento de tutela integral da pessoa – a qual constitui, em última análise, o fundamento da responsabilidade civil contemporânea – e resumir a sua atuação a uma contenção ex post facto dos danos provocados é insuficiente no contexto da sociedade de riscos28 em que vivemos. A obra traz um completo e aprofundado panorama dos punitive damages, de forma inédita na literatura brasileira, apontando importantes questões que ultrapassam a dogmática jurídica e revelam aspectos históricos, políticos e sociais dos remédios punitivos nos ordenamentos da common law. A análise acurada e meticulosa permite a extração de importantes dados que, contrapostos face aos ordenamentos da civil law nos mostram que não só é possível como recomendável a adoção da função punitiva na responsabilidade civil contemporânea. Se a preocupação geral da doutrina, principalmente nos últimos trinta anos, foi com a identificação, classificação e conceituação de novos danos indenizáveis, ampliando a tutela da pessoa quanto aos danos ressarcíveis a expansão dos riscos e o surgimento de danos graves e irreversíveis exige que o olhar agora se volte, também, para a contenção de condutas lesivas, seja através da dissuasão seja através da prevenção. Ricardo Dal Pizzol traz significativa e ímpar contribuição para a pesquisa da responsabilidade civil no Brasil, principalmente no que tange à pesquisa comparada envolvendo os sistemas de common law e civil law. Um trabalho dotado de alta técnica, profundidade e olhar crítico, que para além de identificar problemas propõe soluções coerentes orientadas à construção de uma responsabilidade civil polifuncional preparada para enfrentar os dilemas sociais hodiernos. REFERÊNCIAS BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011. BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do Direito. Barueri: Manole, 2007. DAL PIZZOL, Ricardo. Responsabilidade civil: funções punitiva e preventiva. Indaiatuba, SP: Foco, 2020. EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; FARIAS, Luiz Roberto Barros. Por um sistema jurídico que funcione: discutindo a funcionalização do Direito Civil. In: EHRHARDT JUNIOR, Marcos; FEITOSA, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer; SANTIAGO, Maria Cristina Paiva (org.). Temas 28 Cf. BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011. 147 de Direito Civil-Constitucional: da constitucionalização à humanização. João Pessoa: IDCC, 2017. p. 17-36. GARNER, Bryan A (ed.). Black's law dictionary. 9. ed. St. Paul: West, 2009. LOPEZ, Teresa Ancona. Responsabilidade civil na sociedade de risco. In: LEMOS, Patrícia Faga Iglecias; LOPEZ, Teresa Ancona; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz (coord.). Sociedade de risco e direito privado: desafios normativos, consumeristas e ambientais. São Paulo: Atlas, 2013. MARTINS-COSTA, Judith; PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva: punitive damages e o Direito Brasileiro. Revista CEJ, Brasília, v. 1, n. 28, p.15-32, jan. 2005. PAVAN, Vitor Ottoboni. Responsabilidade civil e ganhos ilícitos: a quebra do paradigma reparatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. PUSCHEL, Flávia. A quantificação do Dano Moral no Brasil: Justiça, segurança e eficiência. Série Pensando o Direito, Brasília, n. 37, 2011. Disponível em: http://pensando.mj.gov.br/wpcontent/uploads/2015/07/37Pensando_Direito1.pdf. Acesso em: 28 jul. 2019. ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. ROSENVALD, Nelson. O Direito Civil em movimento: desafios contemporâneos. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2019. SANTOS, Romualdo Baptista dos. Responsabilidade civil por dano enorme. Curitiba: Juruá, 2018 SCHREIBER, Anderson. Direito Civil e Constituição. São Paulo: Atlas, 2013. Como citar: PAVAN, Vitor Ottoboni. “Responsabilidade civil: funções punitiva e preventiva”: resenha da obra de Ricardo Dal Pizzol (Indaiatuba, SP: Foco, 2020). Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 3, n. 3, p. 139-148, set./dez. 2020. 148