ámbito lusitano y galaico
P A L A E O H I S P A N I C A
revista sobre lenguas y culturas de la Hispania antigua
2021 | I.S.S.N. 1578-5386
DOI: 10.36707/palaeohispanica.v21i0.416
Da fixação textual das inscrições lusitanas
de Lamas de Moledo, Cabeço das Fráguas
e Arronches: O contributo do “Modelo de
Resíduo Morfológico” (MRM), seus resultados
e principais consequências interpretativas
On the textual fixation of the lusitanian
inscriptions of Lamas de Moledo, Cabeço das
Fráguas and Arronches: The contribution of the
“Morphological Residual Model” (MRM), its
results and main interpretative consequences
José Cardim-Ribeiro
Centro de Estudos Clássicos - Universidade de Lisboa
[email protected]
Hugo Pires
CEAU - Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto
[email protected]
Resumo: A fixação, tanto quanto possível rigorosa, de antigos textos adquire máxima
pertinência no caso de línguas desde há muito desaparecidas, como o Lusitano. O intenso
desgaste de determinadas zonas dos campos epigráficos nas inscrições redigidas nesse idioma
tem vindo a dividir a comunidade científica quanto à leitura de certos vocábulos nelas exarados,
ferindo assim a plena compreensão de tais documentos. A nova técnica “Modelo de Resíduo
Morfológico” (MRM), desenvolvida por um dos autores (H. P.) e ora aplicada aos monumentos
rupestres de Cabeço das Fráguas e de Lamas de Moledo, e ainda à lápide de Arronches, oferece
resultados objectivos e desapaixonados que permitem esclarecer de forma definitiva algumas
dessas dúvidas. Com base nessa renovada e mais exacta fixação dos textos, não nos furtaremos
(J.C.R.) ainda a retirar, desde já, as convenientes ilações interpretativas.
Palavras-chave: Lusitano, Cabeço das Fráguas, Lamas de Moledo, Arronches, Modelo de
Resíduo Morfológico (MRM), Fixação textual.
Abstract: The fixation, as rigorous as possible, of ancient texts acquires maximum relevance
in the case of languages which have long since disappeared, such as Lusitanian. The intense
deterioration of certain areas of the epigraphic areas in inscriptions written in this language
has divided the scientific community as to the reading of certain words contained therein,
thus hampering the full understanding of such documents. The new “Morphological Residual
Model” (MRM) technique, developed by one of the authors (HP) and now applied to the rock
monuments of Cabeço das Fráguas and Lamas de Moledo, as well as to the stele of Arronches,
offers objective and impartial results which make it possible to definitively clarify some of these
doubts. Starting from this renewed and more exact fixation of the texts, we will not hesitate
(J.C.R.) to draw, from now on, the appropriate interpretative conclusions.
Keywords: Lusitanian. Cabeço das Fraguas, Lamas de Moledo, Arronches, Morphological
Residual Model (MRM), Textual fixation.
Recepción: 29.12.2021 | Aceptación: 26.03.2021
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A fixação, tanto quanto possível rigorosa, de antigos textos sobre os quais
se irão fundamentar considerações filológicas e interpretações históricas é
condição sine qua non e primordial para a própria solidez e credibilidade dessas mesmas análises. Esta verdade inquestionável e absolutamente consensual
adquire ainda maior pertinência — se nos é permitido escalonar um princípio
tão básico e essencial — no caso de textos que registem línguas desde há muito
desaparecidas e quase por completo ignoradas, como o Lusitano.
O desgaste, por vezes intenso, de determinadas zonas dos campos epigráficos nas únicas três inscrições total ou maioritariamente redigidas nesta
língua das quais conhecemos a localização precisa e se encontram passíveis
de observação pública, todas elas em Portugal, tem vindo, em certos casos
desde há já largas décadas, a dividir a comunidade científica quanto à leitura
dos vocábulos aí exarados — facto que, aliás, permanece bem evidenciado
nalgumas das mais recentes publicações sobre a presente temática —, ferindo
desse modo a plena compreensão de tais documentos.
A nova técnica de levantamento gráfico designada como “Modelo de Resíduo Morfológico” (MRM), desenvolvida por um dos autores desta comunicação (H.P.)1 e ora aplicada aos monumentos rupestres de Cabeço das Fráguas
e de Lamas de Moledo,2 e ainda à lápide do Monte do Coelho, Arronches,3
oferece resultados objectivos e desapaixonados que, se não logram resolver
todos os problemas subsistentes, permitem no entanto esclarecer de forma
definitiva alguns dos mais significativos; e, ainda, estabelecer pistas seguras
para uma análise dos restantes, dentro de parâmetros concretos de admissibilidade.
1
A Hugo Pires se deve o levantamento e o tratamento das imagens, segundo o “Modelo
de Resíduo Morfológico”, aqui apresentadas, base primordial e incontornável da presente
exposição. Quanto a esta nova técnica, do ponto de vista teórico e dos resultados
práticos, vd. Correia e Pires 2014; Correia, Pires et al. 2014; Correia, Pires e Sousa 2014;
Pires et al. 2014; 2015a; 2015b; 2016; Caninas, Pires et al. 2016; Fonte, Pires et al. 2017;
Santos-Estévez, Pires et al. 2017.
2
O nosso imprescindível e solidário guia a estes dois monumentos foi Patrício Curado,
profundo conhecedor dos mesmos e a quem se devem algumas das mais sedutoras
interpretações das respectivas epígrafes. A penosa ascensão às Fráguas foi-nos facilitada
pela activa presença de João Mendes Rosa, director do Museu da Guarda, e de seus
colaboradores. Para com todos eles aqui fica registada a gratidão dos autores.
3
Hoje conservada no Museu Nacional de Arqueologia, Lisboa, graças à esclarecedora
intervenção do seu director, António Carvalho, ao qual também se deve a proposta de
classificação de tão rara lápide como “Tesouro Nacional”.
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Da fixação textual das inscrições lusitanas de Lamas de Moledo, Cabeço das Fráguas e Arronches: O contributo
do “modelo de resíduo morfológico” (MRM), seus resultados e principais consequências interpretativas
Não sendo este o local adequado ao desenvolvimento ou à discussão de
hipóteses interpretativas globais, não nos furtaremos porém (J.C.R.)4 a retirar
desde já as principais ilações desta renovada e mais exacta fixação dos textos
em estudo.
1. A epígrafe e o monumento rupestre do Cabeço das Fráguas
5
1.1. A epígrafe
Quem sobe ao Cabeço das Fráguas e se aproxima da epígrafe rupestre,
a primeira sensação que tem é de que esta se encontra hoje quase totalmente
apagada. Esta impressão solidifica-se se o visitante proceder, apenas com luz
natural, à fotografia da lápide (cf. López e Vallejo 2018, 259 e n. 20 e fots. 6
a 8). E, no entanto, tal não é verdade. Se a observação fôr feita às primeiríssimas horas do dia, os próprios raios solares iluminam a rocha de molde a
salientarem-lhe a inscrição, que então se lê por completo. Do mesmo modo,
se em momento adequado se operar com luz artificial rasante, também todas
as letras aparecem nítidas e inteiramente legíveis, pese embora a maior deterioração da linha 5 (vd. fig. 1).
4
A componente científica, bem como a responsabilidade redaccional e analítica deste
estudo, são de José Cardim Ribeiro.
5
Sobre este monumento, esta epígrafe e seu conteúdo, vd.: Almeida 1943, 51-56; Vasco
Rodrigues, 1959-60; Untermann 1963, 322-325; 1987, 63-64; 1997, 755-758 L.3; 2002,
69-70; 2010; Tovar 1966-67; 1985; Blázquez 1975, 176 s.v. Trebopala; 1983, 232; 2001,
196; Guyonvarc’h 1967; Albertos 1973, 83 ss.; 1985, 504; Faust 1975, 200; Corominas
1976, 370-375; Michelena 1978, 435 ss.; Best 1981-82; Maggi 1983; Schmidt 1985,
321-322, 326; Alarcão 1988, 162, 164; 2001, 315-316; Curado 1989, 349-351; 1996,
156-157; 2002, 71-73, 75; García Fernández-Albalat 1990, 311; Garcia 1991, n.º 466;
Villar 1991, 456; 1993-95; García Quintela 1992, 338-339; 2019, 55-56, 58; De Hoz 1993,
363; Rodríguez Colmenero 1993, 104-105 n.º 47; 1995, 221-222 n.º 47; Prósper 1994;
1999; 2002, 42-56; 2004, 169-179; 2010a, 63-67; 2010b, 367-368; AE 1994, 819; HE 5
1995, 1029; HE 6 1996, 1042; HE 9 2003, 745 a.b.c.d.e.f; HE 13 2007, 992; Encarnação
1995, 269; Wodtko 1997; 2009a, pass.; 2010, 340-344; 2017, 36-37; 2020, 692; Búa 1999,
317-318, 323-326; 2000, 54, 459-460; Witczak 1999; 2005, 67-112, 466-467; Cardim
2002; 2013; 2014; Marco 2005, 318; Blažek 2006, 11-13; Correia 2007, 180-186, 213;
2008, 261-263; 2009, 187-188; Correia e Schattner 2010; Alfayé e Marco 2008, 289-296;
Moralejo 2008, 44-48, 228-230, 301, 307; Poccetti 2009, 132-133; Vaz 2009, 92; Salinas de
Frías 2010, 622-623; Schattner 2012, 284-285; Armada 2015, 134, 145; Gorrochategui e
Vallejo 2015, 350; Marco 2015, 600; López e Vallejo 2018; Siles 2018; Woudhuizen 2018,
119-121 (crítica pertinente, salientando a falta de método, de objectividade filológica e
de rigor teórico desta obra, por Jiménez 2018); Estarán 2019, 58; Luján 2019a, 329-330;
2019b; Simón Cornago 2019b, 67-68, 72, 84; BDHespGUA.01.01.
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Fig. 1. Recente levantamento fotográfico, feito com luz rasante, da epígrafe de Cabeço das
Fráguas (fot. Asociación de Amigos del Instituto Arqueológico Alemán de Madrid, in
http://www.amigos-dai.org/).
Assim, mantêm-se íntegras as condições ideais para se poder realizar,
com êxito, um levantamento de imagens conducente ao tratamento MRM, o
que fizemos em Outubro de 2018. Os resultados gerais ficam patentes na fig.
2, podendo a partir deles — creio que sem margem para hesitações — fixar-se
o texto do seguinte modo:
OILAM · TREBOPALA · / INDI · PORCOM · LAḄBO · / COMAIAM · ICCONA · LOIM/INNA · OILAM · VSSEAM · /5 TREḄARV‘NE’ · INḌI · TAVROM
/ IFADEṂ / RE‘VE’ · +Ṛ+[...c. 6 ...]
Fig. 2. Cabeço das
Fráguas, levantamento
MRM: a inscrição.
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Da fixação textual das inscrições lusitanas de Lamas de Moledo, Cabeço das Fráguas e Arronches: O contributo
do “modelo de resíduo morfológico” (MRM), seus resultados e principais consequências interpretativas
Debrucemo-nos agora com algum detalhe sobre a última palavra da linha
2. O seu levantamento MRM pormenorizado conduz-nos, de forma inequívoca, à leitura de Untermann (vd. 1997, 733, 757; 2002, 69; 2010, 82; e ainda
Wodtko 1997, 740),6 LAḄBO (vd. fig. 3); embora o primeiro B apresente um
módulo menor comparativamente ao segundo, porém equiparável, dentro do
mesmo vocábulo, ao do L e ao do A e, na linha 5, ao do Ḅ de TREBARVNE;
enquanto que o segundo B de LAḄBO, de módulo maior, se aproxima antes
do B de TREBOPALA (vd. fig. 4).
Fig. 3. Cabeço das Fráguas, levantamento MRM: inscrição, pormenor
da palavra final da linha 2.
Nestas circunstâncias, ¿como se justifica que outros autores tenham decifrado LAẸBO, e mesmo que algumas fotos — como a de Gómez-Moreno (ap.
López e Vallejo 2018, 260 fot. 4B; vd. fig. 5) — assemelhem efectivamente aí
registar-se um E?
A explicação é-nos dada pelo ductus específico com que são traçados todos os BB desta epígrafe, quer os de módulo maior quer os de módulo menor:
a seis tempos, os quatro primeiros formando como que um regular E; e os
derradeiros dois — os traços curvos — acrescentados, num segundo instante,
a esse inicial E (vd. fig. 6).
6
Já antes Rodríguez Colmenero 1993, 105; 1995, 222 (cf. ainda HE 5 1995, 1029),
tinha decifrado LAḄBO. Mas só após a tomada de posição, neste mesmo sentido, de
Untermann, tal leitura passou a ser considerada como preferencial por parte de muitos
investigadores (Wodtko 2009a, 6; 2010, 340, 343; 2017, 17, 36-37; Búa 1999, 317-318,
323, 325, 326; 2000, 459-460; HE 9 2003, 745 a.b; Correia 2007, 180, 182, 183; 2008,
261-262; 2009, 187; Encarnação e Guerra 2010, 108, 110; Cardim 2013, 241-243, 255;
2014, 107-109, 131 e figs. 1-2; Marco 2015, 600; Estarán 2019, 58; García Quintela 2019,
55; Simón Cornago 2019b, 67-68; e mesmo, a dada altura, Gorrochategui e Vallejo 2015,
350).
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Fig. 4. Cabeço das
Fráguas, levantamento
MRM: inscrição, a
dissemelhança modular
dos BB.
Assim, no erodido Ḅ de LAḄBO, a terra e o musgo que de forma recorrente se fixa sobre ele, como aliás sobre todo o campo epigráfico, dificulta — e
em certas ocasiões atendivelmente deturpa — a respectiva leitura, por vezes
condicionando mesmo o registo fotográfico, que capta apenas o que no momento permanece visível. A prévia limpeza da lápide quanto a estes elementos
intrusivos e desestabilizadores, como nós próprios fizemos antes de proceder
ao levantamento das imagens, revela-se essencial para o seu eficaz exame e
correcta transcrição.
Fig. 5. Cabeço das Fráguas, detalhe de uma antiga
fot. de Gómez-Moreno (ap. López e Vallejo 2018, 260
fot. 4B): pormenor da palavra final da linha 2.
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do “modelo de resíduo morfológico” (MRM), seus resultados e principais consequências interpretativas
Fig. 6. Cabeço das Fráguas, inscrição:
esquema do ductus dos BB.
Tal possibilitou-nos ainda um melhor registo da deteriorada linha 5 (vd.
fig. 7), bem como do final da inscrição.
Fig. 7. Cabeço das Fráguas, levantamento MRM: inscrição, pormenor da erodida linha 5.
Este último merece algumas particulares observações (vd. fig. 8):
(a) A única razão admissível para a anómala inclinação das linhas 6 e 7,
entre si paralelas mas que divergem inteiramente das anteriores, elas próprias
regulares e normais, é considerar a existência, já na Antiguidade e previamente à gravação da epígrafe, de uma fractura na rocha condicionante da
ordinatio, integrada hoje naquela que, algo mais dilatada, sucede a IFADEṂ
e a RE‘VE’ — conforme, aliás, por várias vezes referiu já Patrício Curado (v.g.
2002, 71 col. 2), porém sem eco nos restantes investigadores. O seu contorno
e dimensão corresponderiam, sensivelmente, à área que, na fig. 8, representámos preenchida com uma mancha mais escura.
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Fig. 8. Cabeço das Fráguas, levantamento MRM: inscrição, pormenor das três últimas linhas e
da fractura da rocha.
(b) Esta constatação leva-nos a outra, como igualmente viu o citado autor:
que a linha 6 deverá estar completa, sucedendo-se pois RE‘VE’, no texto original — como na actualidade —, logo a seguir a IFADEM. Aliás, tal conclusão
é agora confortada pela situação paralela, embora redaccionalmente inversa,
documentada nas linhas 3-4 da lápide do Monte do Coelho, Arronches: REVE
A HARACVI TAV[RO] / IFATE.
(c) A seguir a RE‘VE’ confirmam-se os restos de três letras, +Ṛ+. Com
grande probabilidade, como é quase consensualmente admitido, estaremos
perante um epíteto de tema treb-.
À direita da fractura não há quaisquer vestígios de caracteres, pelo que o
troço restante do vocábulo deveria, de modo necessário, condicionar-se ao espaço disponível dentro dela, onde, no máximo, apenas cabem mais seis letras.
A derradeira, a considerar um vestígio assaz incerto patente — a nível adequado — na extremidade dextra da depressão (cf. fig. 8), poderia revelar-se um
E. Se assim fôra, cremos que não seria absurdo equacionar, como hipótese,
o epíteto ṬṚẸ[BOPAL]Ẹ, supondo-o construído — tal como o teónimo Tre-
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do “modelo de resíduo morfológico” (MRM), seus resultados e principais consequências interpretativas
bopala, o primeiro a ser invocado no texto — com base num dos definidores
toponímicos locais.7
Infelizmente não podemos ter certezas quanto à fiabilidade do mencionado Ẹ final, cuja realidade seria uma prova fundamental para admitirmos que
as divindades, e seus epítetos, estariam de facto em vocativo (Cardim 2013;
2014).
1.2. O monumento rupestre
Todos sabemos que a inscrição de Cabeço das Fráguas está gravada num
suporte rupestre granítico.8 No entanto, as representações publicadas, que
se cingem quase todas ao campo epigráfico ou a pouco mais,9 não dão uma
ideia do monumento na sua globalidade, nem ainda do seu enquadramento
paisagístico.
Assim, decidimos estender o levantamento MRM ao imediato afloramento em que se inscreve o texto; e ainda inserir tal formação pétrea, em
fotografia vulgar, no seu mais amplo contexto-ambiente.
7
Entenderíamos ṬṚẸ[BOPAL]Ẹ como uma forma masc. voc. sg. de tema em -o, de
acordo com a nossa interpretação do texto desta epígrafe, que cremos formado por uma
série de invocationes em discurso directo (Cardim, 2013; 2014).
Supomos ainda que as duas primeiras divindades registadas na presente inscrição,
Trebopala e Labbo, se reportam ambas — embora de forma diferente — a definidores
toponímicos locais: Labbo, bem como o teónimo Laepus patente em várias aras
descobertas num dado ponto do sopé do Cabeço das Fráguas (v.g. Correia, 2010,
140-142), derivados da ancestral ‘designação geomorfológica’ deste acidente orográfico,
de tema lāb-/lāp- (Cardim, 2013, 242-243; 2014, 108-109); e Trebopala, assim como o
suposto epíteto de Reve, nom. sg. reconstit. *Trebopalo, baseados na possível ‘designação
funcional’ subjacente a este locus sacer (treb- + pal-) no seio da(s) comunidade(s) que,
a partir de dado momento, o antropizaram e integraram na sua estrutura paisagística
político-cultural.
8
O campo epigráfico mede c. 180 cm de altura x c. 240 cm de largura. A altura da maioria
das letras oscila entre c. 8 cm e c. 18 cm, havendo ainda alguns OO de módulo inferior,
entre 4 cm e 7 cm. A inscrição datará do séc. I d.C..
9
Constituem excepção, neste aspecto, os estudos de Correia 2010 e de Correia e
Schattner 2010, que visam, dentro dos limites decorrentes dos dados proporcionados
pelas recentes pesquisas arqueológicas e pelo exame morfológico do espaço natural
envolvente, a integralidade do santuário. E ainda, no género descritivo elementar, as
antigas notícias da prospecção do sítio elaboradas por Almeida 1943, 51-56 e Vasco
Rodrigues 1959.
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Fig. 9. Cabeço das Fráguas, levantamento MRM: o monumento rupestre, perspectiva geral 1.
As representações obtidas através do MRM evidenciam ter a inscrição
aproveitado uma rocha sensivelmente em forma de mesa, cuja superfície
cimeira — a epigrafada — se inclina suavemente, de cima para baixo, na direcção da leitura do próprio texto (figs. 9 e 10).
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do “modelo de resíduo morfológico” (MRM), seus resultados e principais consequências interpretativas
Fig. 10. Cabeço das Fráguas, levantamento MRM: o monumento rupestre, perspectiva geral 2.
Um caos de penedos rodeia por detrás essa mesa, elevando-se a uma altura suficiente para barrar, de forma imediata, a sua comunicação visual com o
poente (fig. 11), situação que sem dúvida teria implicações no ritual. A mesa e a
respectiva epígrafe encontram-se pois ocultas e abrigadas pela referida penedia
para quem acede ao Cabeço pela encosta ocidental — ainda assim a mais acessível —, sendo necessário contornar o maciço para se atingir a pedra letreira.
Fig. 11. Cabeço das Fráguas: a inscrição (assinalada por seta), sita na base
de um caos de blocos que visualmente a oculta e isola para ocidente.
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Em contrapartida, frente ao afloramento epigrafado a contemplação
abre-se sem obstáculos ao Oriente, embora tal perspectiva surja como que
canalizada por dois maciços rochosos que se erguem mais ao fundo do recinto
sagrado, condicionando a visão a um determinado ângulo do horizonte, por
onde correm várias longínquas e altaneiras cadeias montanhosas (fig. 12).
Daí emanam os raios do sol nascente que iluminam a inscrição e, nesses
primeiros alvores do dia e por mais algum escasso tempo sucedâneo — e apenas então —, conferem relevo e leitura aos caracteres. Nestas circunstâncias,
não poderão restar dúvidas sobre a importância das horas matutinas nas práticas rituais relacionadas com esta invocatio lusitana.
Fig. 12. Cabeço das Fráguas: a inscrição (assinalada por esfera), inclinada e
virada ao horizonte nascente. Note-se a perspectiva circunscrita entre dois
maciços rochosos, direccionando o olhar.
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do “modelo de resíduo morfológico” (MRM), seus resultados e principais consequências interpretativas
Seria certamente interessante e frutuoso calcular em que época do ano
e a que horas nascia o sol nos vários pontos daquele troço de horizonte há
cerca de dois milénios, e qual o concreto efeito de cada ângulo luzente na
iluminação da mesa inscrita. Mas as nossas competências técnicas são manifestamente insuficientes para o efeito.
2. A epígrafe e o monumento rupestre de Lamas de Moledo
10
2.1. A epígrafe
O levantamento MRM da inscrição de Lamas de Moledo trouxe algumas
boas surpresas, designadamente quanto ao difícil e até agora controverso final
da linha 9. Subsistem dúvidas, no entanto, sobretudo quanto à correcta interpretação — com, ou sem nexos — da palavra que ocupa a linha 6; e, ainda,
quanto ao desenvolvimento do nexo patente no segundo epíteto de Crougea,
na linha 9.
Assim, cumpre-nos fixar o texto conforme se segue (cf. fig. 13):
‘RVF’‘INVS’ ET / T‘IRO’
T‘IR’O SCR‘IP’/SE‘RVN’T / VEAM‘IN’ICORI
VEAM‘IN’ICORI //5
?
DOENTI / ‘AN’V GOM / LAMATIGOM / CROVGEAI MAGA/REAIGOI ·
PETR‘AV’?IOI · Ḅ‘ẸḶ’/10ADOM · PORGOM IOVEAỊ / CA‘IE’LOBRIGOI
10
Sobre este monumento, esta epígrafe e seu conteúdo, vd.: Pereira 1630, fls. 76v.-77
(publicado in Vale 1955, 121-122); Berardo 1857, 1-8; CIL II 416 e p. 695; Hübner 1871,
65-66 n. 2; MLI 57; Hübner e Gurlitt 1869, 6-11; Phillips 1870, 198 n.º 22; Holder 19622,
129 s.v. Veamnicori; Balmori 1935; Vendryes 1936; Gómez Moreno 1942, 11-12; 1949,
204ss.; Bähr 1948, 399-401; Cortez 1951; HAE 1955-1956, 983; Tovar 1958, 713-714;
1960, 113-114; 1961, 91-92; 1966-67, 243 n. 1; 1985, 232-233 n. 21; Schmoll 1959, 29
n.º 127; Albertos 1975, 58 n.º 50; Faust 1975, 201; Schmidt 1985, 320-321, 325-326;
Untermann 1983, 804; 1987, 64-66; 1997, 750-754 L.2; 2002, 68-69; 2018, 291-292, 741742; Alarcão 1988a, 162-164; 1988b, 97; Vaz 1988a; 1988b; 1989; 1990; 1995, 283-289;
1997, 188-192, ests. 54-55; 2009, 89-91, 104-105; AE 1989, 382; AE 1992, 944; Curado
1989, 351-353; 1996, 155-156; 2002, 73-75; Prosdocimi 1989, 202-204; Garcia 1991, n.º
467; Villar 1991, 456; Rodríguez Colmenero 1993, 99-103 n.º 46; 1995, 216-220 n.º 46;
HE 5 1995, 1064; HE 9 2003, 745 a.b.c; Wodtko 1997; 2009a, pass.; 2010, 339-344; 2017,
36-37; 2020, 692; Guerra 1998, 235-237, 364-365, 655-656, est. 28; Búa 1999, 321-326;
2000, 78-79, 436-438; Prósper 2002, 57-68; 2010b, 368; Marco 2005, 318; Varvaro 2005,
122-123; Witczak 2005, 112-143, 467; Blažek 2006, 10-11; Correia 2007, 179, 212; Alfayé
e Marco 2008, 289-292, 296-299; Moralejo 2008, 44-45, 49, 223, 230, 300-301; Poccetti
2009, 133; Salinas de Frías 2010, 622; García Alonso 2011, 183; Armada 2015, 145-146;
Estarán 2015, 323-324; 2016, 265-269; 2019, 58-59; Gorrochategui e Vallejo 2015, 343,
350; Marco 2015, 600-601; García Quintela 2019, 56; Luján 2019a, 331; 2019b; Simón
Cornago 2019a; 2019b, 67-68, 72-73, 77, 82, 84; BDHespVIS.01.01.
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313
José Cardim-Ribeiro | Hugo Pires
Fig. 13. Lamas de Moledo, levantamento MRM: a inscrição.
Do ponto de vista paleográfico, gostaríamos desde já de destacar dois
aspectos: (a) a aleatória utilização dos CC e dos GG, o que decerto traduz
hesitação no registo de fonemas muito próximos;11 (b) e o emprego de dois
diferentes AA, na maioria dos exemplos o vulgar caractere com a barra medial horizontal mas, num caso (início da linha 10), um A de tipo arcaico ou
actuário em que a barra é substituída por um curto traço central aposto na
base da letra.
Note-se que o levantamento MRM aparenta evidenciar, a meio da linha 3,
um outro A actuário, ora em nexo, parecendo mudar para SCR‘IP’/SER‘AN’T
a habitual leitura SCR‘IP’/SE‘RVN’T (vd. fig. 14).12 Embora muitíssimo mais
11
Como, aliás, tantas vezes sucede na epigrafia latina, p.ex. na frequentíssima alternância
C(aius)/G(aius).
12
Na verdade, já o desenho feito em 1868 por Gurlitt à vista do monumento (Hübner
e Gurlitt 1869, 8), devidamente aproveitado por Hübner in CIL II p. 695, Ad. N. 416,
reproduz com fidelidade o curto traço que, ao nível da linha 3, consta na pedra e parece
integrar um A actuário. Porém, o professor da Universidade de Berlim nunca se refere
de forma expressa a este detalhe e mantém, sempre, a leitura SCR‘IP’/SE‘RVN’T, chegando
314
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Da fixação textual das inscrições lusitanas de Lamas de Moledo, Cabeço das Fráguas e Arronches: O contributo
do “modelo de resíduo morfológico” (MRM), seus resultados e principais consequências interpretativas
rara a nível epigráfico, a eventual presença de uma forma da 3.ª pessoa do
pl. do pretérito mais-que-perfeito do indicativo, ao invés de uma do pretérito perfeito, não seria impossível, já que existem alguns inquestionáveis
paralelos. Assim, segundo uma pesquisa na EDH, destacaremos um exemplo
de debuerant13 (HD063117, Dalmatia, séc. II-III d.C.); outro de decreverant14 (HD027576, Mauretania Caesariensis, séc. II d.C.); dois de dederant15
(HD023255, Regio I, séc. II d.C. e HD000733, Regio II, séc. I d.C.); um de
fecerant16 (HD064662, Macedonia, séc. II-III d.C.); cinco de fuerant17 (desi-gnadamente HD021676, Numidia); um de posuerant18 (HD048895, Dacia,
sécs. II-III d.C.).
Fig. 14. Lamas de Moledo, levantamento MRM:
inscrição, pormenor do nexo ‘RVN’, linha 3.
Porém, na mesma área do campo epigráfico detectam-se vários pontos
— ou pequenos traços — sem qualquer dúvida de génese acidental mas, no
levantamento MRM, tão nítidos e vincados como os sulcos das próprias letras (vd. fig. 15). Deveremos portanto interrogar-nos se tal casualidade não
abrangerá também o detalhe que temos vindo a analisar. A correcta solução
fica clara se repararmos que o traço que sucede ao R se prolonga para cima do
ponto tangencial com a subsequente oblíqua,19 esclarecendo-nos este pormenor paleográfico que depois do R — e em nexo com esta letra — se pretendeu
de facto registar um V; o qual por sua vez se articula — igualmente em nexo
— com um N. Confirma-se pois, sem margem para dúvidas, a habitual leitura
SCR‘IP’/SE‘RVN’T.
mesmo a omitir o referido pequeno sulco no esboço da epígrafe que, mais tarde, publica
nos MLI 57.
13
Contra apenas, igualmente, um só exemplo de debuerunt in EDH.
14
Contra 14 exemplos de decreverunt in EDH.
15
Contra 53 exemplos de dederunt in EDH.
16
Contra 1520 exemplos de fecerunt in EDH.
17
Contra 60 exemplos de fuerunt in EDH.
18
Contra 442 exemplos de posuerunt in EDH.
19
Vd. fig. 14, segmento assinalado por pequena seta.
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315
José Cardim-Ribeiro | Hugo Pires
Fig. 15. Lamas de Moledo, levantamento MRM:
inscrição, pormenor que evidencia vários “falsos
pontos”.
No que se refere ao difícil final da linha 9, o levantamento MRM asseverou que a letra a seguir a PETR‘AV’?IOI é na verdade um Ḅ (vd. fig. 16),
conforme propuséramos já em estudo anterior (Cardim 2014, 131 e n. 43).20
Fig. 16. Lamas de Moledo, levantamento MRM: inscrição,
pormenor do final das linhas 9 e 10.
Porém a maior novidade residiu na efectiva constatação de existir ainda
um outro caractere depois do Ḅ, na extremidade da linha 9, confirmando as20
E não, como mais vulgarmente tem sido considerado, um R ou mesmo um simples T.
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Da fixação textual das inscrições lusitanas de Lamas de Moledo, Cabeço das Fráguas e Arronches: O contributo
do “modelo de resíduo morfológico” (MRM), seus resultados e principais consequências interpretativas
sim judiciosa apreciação desde há muito expressa por Patrício Curado 2002,
73 col. 2 al. b., geralmente ignorada. Distinguem-se claros restos de um E: a
haste vertical — embora interrompida a meio — e as barras superior e inferior. Mas esta última prolonga-se para a direita: tratar-se-á assim, cremos
bem, de um nexo ‘EL’. O que nos conduz, conjugando o fim da linha 9 (fig. 16)
e o início da 10 (fig. 17), à leitura da forma acusativa Ḅ‘ẸḶ’/ADOM.
Sob o ponto de vista fonético é interessante notarmos que, na epígrafe,
começou por se gravar B‘EL’/ATOM, alterando-se seguidamente o T para D
(cf. fig.17). O que mais uma vez vem comprovar a vincada proximidade na
língua lusitana, em posição intervocálica, entre oclusivas alveolares surdas e
sonoras — e a consequente hesitação aquando da sua representação gráfica
(vd. v.g. Vallejo 2013, 282; Wodtko 2017, 21; Luján 2019, 310).
Fig. 17. Lamas de Moledo, levantamento MRM: inscrição, pormenor do início
da linha 10.
Antes de continuarmos com a análise dos resultados do levantamento,
perseguindo a fixação do texto, ou pelo menos a redução e a caracterização
lógica das alternativas de leitura, cumpre-nos tecer algumas considerações
interpretativas não apenas sobre o vocábulo beladom, mas ainda sobre o sintagma beladom porgom (=porcom).
Belado, -onis, está registado como epíteto gaulês de Marte (Delamarre
2007, 38 col. 3; Rémy 2017, 305-306 n.os 22-24), sendo muito provável que o
seu significado se baseie no tema bel(l)o-, “forte, poderoso” (Delamarre 20032,
71-72; 2007, 213, col. 1), da raiz PIE *bel-, “forte” (IEW 96; cf. Vallejo 2005,
208-209): Belado, “o poderoso” (v.g. Rémy 2017, 292).21
21
Renel 1906, 312 n. 1, porém sem referir as suas bases ou referências, afirma que o
sentido de Belado seria “o destruidor”, no que é acriticamente seguido por vários autores
não apenas da geração seguinte, p.ex. Toutain 1920, 214, mas também por outros
bastante mais recentes, como Olmsted 1994, 334.
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317
José Cardim-Ribeiro | Hugo Pires
Idêntico tema encontramo-lo, decerto, na forma teonímia composta
Belatu-cadros/-us, amplamente documentada na Britânia e que aí surge por
vezes também utilizada como epíteto de Marte (Haeussler 2008, 41; De Bernardo 2013, 85 col. 2 § 5.4).22 Não será inoportuno salientar aqui a duplicidade
gráfica Belado / Belatu-, recordando a hesitação verificada no registo epigráfico de Lamas de Moledo.
Em Lusitano, a expressão beladom porgom (=porcom) referir-se-á assim
a uma espécie, a um tipo de suídeo especialmente robusto e de constituição
poderosa, com grande probabilidade a um varrasco, a um berrão, por definição um “porco não castrado” — e, por isso, tendente a evidenciar-se mais a
sua força, o seu vigor.
Resta assinalar que nesta formação, beladom porgom, o posicionamento
entre o adjectivo e o substantivo por ele qualificado nos surge invertido em
relação ao que observamos nas linhas 6-7, em anu?gom lamatigom, subs. +
adj., que aliás segue a mesma e normal estrutura, que aqui também vemos,
na sequência teónimos (subss.) + epítetos (adjs.). A razão de tal aparente anomalia deverá residir, cremos, no facto de beladom porgom não constituir uma
simples e ocasional exposição frásica adj. + subs., mas sim um composto em
si mesmo compreendido como uma recorrente unidade semântica, conforme,
v.g., acontece com o lat. vulg. singularis porcus (Du Cange ed. 1954, VI 493
cols. 2-3).23
Fig. 18. Lamas de Moledo, levantamento MRM: inscrição, pormenor, linhas 6 e 7.
22
De facto, belad- / belat- deverão constituir grafias diferentes do mesmo tema (cf.
Schmidt 1957, 145), que em alguns vocábulos surge inclusive vocalizado em -a- (vd.
Vallejo 2005, 208-209); e não, como sugere Delamarre 20032, 70; 2007, 212 col. 3, de um
outro, diverso, “à la signification mal assurée”.
23
Embora divergindo na leitura do qualificativo, Prósper 2002, 65-66, salienta já esta
aparente anomalia na ordem das palavras e apresenta uma solução metodologicamente
idêntica à nossa.
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Da fixação textual das inscrições lusitanas de Lamas de Moledo, Cabeço das Fráguas e Arronches: O contributo
do “modelo de resíduo morfológico” (MRM), seus resultados e principais consequências interpretativas
Voltando à pedra, quanto ao I da desinência de IOVEAI ele não surge
absolutamente nítido nas imagens (vd. figs. 13 e 16), mas a sua presença é
todavia indiscutível.
Debrucemo-nos, agora, sobre a complexa e controversa questão dos nexos, patentes ou não nas linhas 6 e 7 (fig. 18); e ainda no do segundo epíteto de
Crougea, na linha 9, este indiscutivelmente existente (fig. 19).
(a) Em primeiro lugar comparemos a estrutura dos dois inequívocos nexos de letras angulares patentes nesta epígrafe, os das linhas 3 e 9 (fig. 20, a.d).
Embora não haja dúvidas de que o primeiro se desenvolve como ‘RVN’, no
âmbito da forma verbal latina scr‘ip’se‘run’t, quanto ao segundo o mero exame
paleográfico não permite decidir se se trata de ‘AN’, ou antes, em alternativa,
de ‘AV’.
Apenas a interpretação filológica que cada autor considere como mais
pertinente no domínio da geral compreensão deste texto e deste monumento
poderá proporcionar uma opção. No nosso caso, admitimos como preferível
o desenvolvimento ‘AV’, supondo PETR‘AV’IOI como forma dativa de um
vocábulo lusitano correspondente ao adj. lat. quadrivius, “o dos quatro caminhos”. Recordemos que existem paralelos aproximados no acervo teonímico
romano, qualificando sobretudo deae mas, em certos casos, também dii — e,
noutros, simultaneamente dii e deae (síntese in Panaite 2013; vd. ainda Toutain 1907, 328).24 Contamos voltar oportunamente a este tema, num estudo
sobre Crouga / Crougea / Corougia e o significado histórico conjuntural do
penedo e do texto de Lamas de Moledo.
(b) Quanto à linha 6 (vd. fig. 20 b), o problema reside em saber se estamos
perante uma simples sequência AN, em que acidentalmente a extremidade
inferior da segunda oblíqua do A toca na extremidade inferior da primeira
oblíqua do N — como talvez aconteça na linha 7 entre o primeiro A e o início
do M, e o final do M e o segundo A, de lamaticom (fig. 20 c); ou se, de facto, se
trata de um nexo — e, nesta eventualidade, de que letras.
24
De entre eles destaquemos aquele que, na Germânia, foi — tal como o monumento de
Lamas — colocado por uma comunidade local: Diis Quadrubis vicani Bibienses d . s . p
(CIL XIII 6315); e, ainda, o único exemplar hispânico conhecido, de Laguardia, Avila,
consagrado, se a interpretação da epígrafe estiver correcta, Laribus Q(adri)v(iis) (Elorza
1967, n.º 77 = HAE 2546).
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José Cardim-Ribeiro | Hugo Pires
Fig. 19. Lamas de Moledo, levantamento MRM: inscrição, pormenor, final da linha 9.
Se optarmos por esta última solução, porventura mais provável — reparemos na apertada junção das letras antes de -GOM, contrastando de forma
manifesta com os espaçamentos sucedâneos —, poderemos considerar quer
A‘NV’GOM quer, embora mais dificilmente, ‘ANNV’GOM, passível de comparar com o lat. vulg. annuc-ulus, “com um ano de idade”.25
Evidentemente que outras opções são possíveis, como, v.g., a de Prósper
2002, 65, autora que prefere a versão singela, ANGOM, recusando a existência
de nexos e observando que “no se puede desestimar del todo (...) la idea de que
ANCOM representa el resultado de PIE *H2egwno-, ‘cordero’ com perdida del
apêndice labial ante nasal como sucede com lat. agnus, y luego com representación <ANC>- en lusitano por metátesis”. Aliás, a própria forma A‘NV’GOM,
ou ‘ANNV’GOM, poderia porventura remeter para o significado de ‘pequeno
cordeiro’ se admitíssemos como possível, em Lusitano, a assimilação -gn->n(n), fenómeno para o qual — cremos — não existem por enquanto paralelos nem confirmativos nem impeditivos.26
25
Cf., no léxico hispânico alto-medieval — e com o preciso significado de um
determinado animal com um ano de idade —, não apenas an(n)ol(l)io/-a, do lat. vulg.
annuculus, mas também an(n)ogo, coincidentemente tão próximo da possível forma
lusitana ac. an(n)ugom (vd. Menéndez Pidal et al. 2008, 51 col. 2, s.v. annolio).
26
Até ao momento, em âmbito lusitano, documentou-se apenas a eventual queda do
-g- em posição intervocálica (Vallejo 2005, 707). A nível do latim provincial hispânico
cfr., porém, INNOTV[M] por ignotum numa epígrafe emeritense datável de entre 180-230
d.C. (HE 18, 32 = AE 2009, 519, l. 9; Tantimonaco 2017, 181 e 292 § gn).
320
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Da fixação textual das inscrições lusitanas de Lamas de Moledo, Cabeço das Fráguas e Arronches: O contributo
do “modelo de resíduo morfológico” (MRM), seus resultados e principais consequências interpretativas
Fig. 20. Lamas de Moledo, levantamento MRM: inscrição,
pormenor de nexos/letras angulares juntas nas linhas 3 (a), 6 (b),
7 (c) e 9 (d).
Admissíveis são também, sob o estrito ponto de vista paleográfico, os
desenvolvimentos ‘AMNV’GOM, ‘AMV’GOM e, sobretudo, ‘AV’VGOM, que
teria um possível bom paralelo em PETR‘AV’IOI. Mas a sua interpretação útil
afigura-se ainda mais problemática do que as que antes referimos.
(c) Por fim, quanto à linha 7, Untermann MLH IV 730 § 210 e Wodtko
MLH IV 740; 2017, 36; 2020, 700, equacionam a eventualidade de estarmos
perante a forma geminada LA‘MM’ATICON. Na verdade, se entendermos
pertinente considerar, por atendíveis razões formais, a existência de nexos na
linha anterior, conforme analisámos, não existem razões de leitura objectivas
para negar agora estoutra hipótese. De facto, também aqui o grupo literal AMA
foi gravado como um cluster (fig. 20c), coincidindo a extremidade inferior
da segunda diagonal do primeiro A com a extremidade inferior da primeira
diagonal do M subsequente, e a extremidade inferior da última diagonal do M
com a extremidade inferior da primeira diagonal do segundo A, permanecendo soltas, em contraste, todas as restantes letras da palavra. Porém, o exame da
linha 4 atesta-nos que talvez nem sempre tais aglomerados de caracteres correspondam afinal a nexos (vd. fig. 21). Aqui, em VEAM‘IN’ICORI,27 também
o A e o M se pisam um ao outro, como os da linha 7, e a extremidade inferior
da última diagonal do M toca na extremidade inferior da linha comum ao I e
ao N do indiscutível nexo ‘IN’. A menos que, afinal, devamos de igual modo
ver nesta palavra uma (outra) forma geminada, VE‘AMMIN’ICORI, o que
não nos parece provável.
27
Balmori 1935 prefere ler dois vocábulos, VEAM‘IN’I CORI, interpretação que Tovar
1960, 113; 1961, 92, considera ser “bem possível”. A aparente ausência de pontuação nas
primeiras linhas da epígrafe permite, na verdade, considerar esta hipótese como válida.
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Fig. 21. Lamas de Moledo, levantamento MRM: inscrição,
pormenor, linha 4.
2.2. O monumento rupestre
Contrariamente à epígrafe de Cabeço das Fráguas, que está inscrita num
troço de afloramento mais ou menos plano que emerge do solo, distribuindo-se por uma superfície quase horizontal, a de Lamas de Moledo aproveita parte
de uma das faces arredondadas e verticais de um enorme penedo granítico,28
hoje solto e, em parte, reutilizado na construção de um rústico casebre, ora
arruinado, sito já na periferia da povoação.
O exame directo e a fotografia tradicional do texto lusitano são dificultados pelo actual posicionamento do bloco, que não é o original, e ainda
pelo referido arredondado parietal que afecta, também, o campo epigráfico.
Pela primeira vez, graças ao MRM, podemos por fim contemplar e estudar a
epígrafe, em detalhe e sem entraves, numa versão quase planificada (fig. 13);
e ainda observar a sua inserção no respectivo suporte rupestre graficamente
restituído à orientação original (fig. 22).
Este imponente penedo, como é notório quando se investigam as suas
imediatas cercanias, fazia parte de um caos de blocos ainda parcialmente
conservado, embora boa parte de tais monólitos haja sido em séculos recentes desarticulada do conjunto para ser reutilizada nas hodiernas construções
anexas a este acidente natural. É pois no referido contexto visual e ambiental
que temos de imaginar o monumento à época em que este foi concebido: um
grandioso bloco, com as faces inferior e superior sensivelmente planas mas
com as paredes boleadas — e, sobre uma delas, gravado o texto, com letras
então profundas e bem legíveis —, inserido numa pequena colina formada
por um conjunto de outros blocos líticos igualmente volumosos e impositivos
ao olhar.
28
O campo epigráfico mede c. 171 cm de altura x c. 159 cm de largura. A altura da maioria
das letras oscila entre c. 9 cm e c. 15 cm, havendo ainda alguns OO de módulo inferior,
entre 4 cm e 6 cm. A inscrição datará do séc. I d.C., porventura já da segunda metade
(Simón Cornago 2019a, 176).
322
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Da fixação textual das inscrições lusitanas de Lamas de Moledo, Cabeço das Fráguas e Arronches: O contributo
do “modelo de resíduo morfológico” (MRM), seus resultados e principais consequências interpretativas
Fig. 22. Lamas de Moledo, levantamento MRM: o monumento rupestre, perspectiva geral da
face epigrafada.
Não nos é possível adivinhar o lugar exacto do penedo epigrafado no
âmbito dessa colina rochosa, mas sem dúvida que se encontraria assaz visível
e destacado perante quem passasse, de molde a evidenciar o seu letreiro e a
transmitir o conteúdo nele exarado. O lugar seria ermo29 e dominado por este
acidente geomorfológico, um dos vários do mesmo tipo — e não o maior —
que por ali se erguem. Mas, decerto, este distinguir-se-ia por qualquer razão,
já que foi o escolhido para registar tão importante texto. Seguramente não
seria porém um santuário, na acepção do de Cabeço das Fráguas, dotado
de estruturas várias edificadas e reedificadas ao longo de séculos (Correia e
Schattner 2010). Mas pela base da colina passariam pessoas, primordiais destinatários da mensagem escrita. E, se a nossa interpretação do segundo epíteto
de Crougea fôr a acertada, porventura junto aos penedos convergiriam quatro
caminhos, formando um quadrivium.
29
Até hoje nunca foram, neste sítio, detectados quaisquer vestígios arqueológicos para
além do monumento epigráfico.
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José Cardim-Ribeiro | Hugo Pires
3. Lápide do Monte do Coelho, Arronches
30
3.1. A epígrafe
Uma imagem geral de toda a lápide de Arronches (figs. 23),31 obtida segundo o MRM, foi já alvo de anterior publicação (Cardim 2016b). Porém, a
ampliação do campo epigráfico (fig. 24) e ainda a inclusão de pormenores
expressamente trabalhados a várias escalas (figs. 25-33) permitir-nos-á agora
oferecer uma proposta superior quanto à fixação do respectivo texto.32
ḤẠṚẸ ++?AM · OILAM · ERBAṂ [...c. 6...] / HARASE OILA · X · BROENEIAE HẠ[RACAE] / OILA · X · REVE · A · HARACVI · T·AV[RO] / IFATE ·
X · BANDI · HARAGVI · AVṚ[..⊁ 4..] /5 MVNITIE · CARLA CANTIBIDONE ·
Ạ[..c. 3-4..] / APINVS · VENDICVS · ERIAC̣AINṾṢ / OVCVP̣ẠNI / ICCINVI ·
PANDITI · ATTEDIA · M · TR / PVMPI · CANTI · AILATIO
30
Sobre esta lápide, esta epígrafe e seu conteúdo, vd.: Alfayé e Marco 2008, 291-292;
Encarnação et al. 2008a; 2008b; Encarnação e Guerra 2010, 95-96; Prósper e Villar 2009;
Prósper 2010b, 369; 2010c; Vaz 2009, 94-95; Wodtko 2009a, pass.; 2009b; 2010, 340-344;
2017, 36, 38; 2020, 694; Blázquez 2010, 58-59 n.º 1; Cardim 2010; 2015; 2016; HE 17
2011, 251 a.b; HE 19 2013, 534; García Alonso 2011, 183-184; Armada 2015, 146-147;
Gorrochategui e Vallejo 2015, 344, 351; Marco 2015, 601-603; Siles 2017; Estarán 2019,
58; García Quintela 2019, 54-55, 59; Luján 2019a, 332; 2019b; Simón Cornago 2019b,
67-68, 72, 77, 82, 84; 2020, 1090; BDHespPOA.01.01.
31
Trata-se de uma laje de grauvaque com 89,5 de altura, 79 cm de largura máxima e com
uma espessura oscilando entre 3,5 cm e 14 cm. A altura média das letras é de 2,8 cm.
Esta lápide datará do séc. I d.C., porventura ainda da primeira metade (Cardim 2010,
49; 2016, 34; De Hoz 2013, 88).
32
Representamos mais claras as quatro letras iniciais, cuja leitura não podemos garantir
com total segurança.
324
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Da fixação textual das inscrições lusitanas de Lamas de Moledo, Cabeço das Fráguas e Arronches: O contributo
do “modelo de resíduo morfológico” (MRM), seus resultados e principais consequências interpretativas
Fig. 23. Monte do Coelho, Arronches, levantamento MRM: a lápide.
Analisemos agora aos detalhes relativos às interpretações que, até ao momento, têm provocado maior controvérsia:
(a) Punctum distinguens, no meio da linha 3, entre A(---) e HARACVI:
A efectiva presença deste ponto, muito erodido mas que se vê bastante
bem quer no levantamento MRM (fig. 25 a) quer numa fotografia com luz
rasante, assaz elucidativa, que já antes publicámos (fig. 25 b; vd. Cardim 2010,
61 fig. 5) — aliás situado de forma sensível à mesma altura do anterior, entre
o E e o A —, é deveras significativa para a correcta interpretação deste passo
da epígrafe, pois impele-nos a considerar que o A após REVE deverá constituir, com toda a probabilidade, uma abreviatura — plausivelmente do epíteto
latino A(ugusto).33
33
Como defendemos já anteriormente (Cardim 2010, 48-49 e 54) quanto às abreviaturas
patentes nesta lápide (a meio da linha 3 e no final da linha 8), na inexistência de uma
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325
José Cardim-Ribeiro | Hugo Pires
Fig. 24. Monte do Coelho, Arronches, levantamento MRM: a inscrição.
Tal conclusão liberta-nos de um problema fonético e ortográfico assaz difícil de compreender e de explicar: o de porventura se encontrarem registadas,
na mesma epígrafe — aliás logo em duas linhas consecutivas e ambas como
epíteto de divindades masculinas —, as formas *Aharacui (linha 3) e Haragui
(linha 4); acrescendo que o mesmo tema, har-, surge ainda aqui em Harase
(linha 2) e, diríamos que por certo, também em Hạ[racae] (linha 2).34
tradição de escrita lusitana com as suas regras e normas convenientemente estabelecidas
e generalizadas, a explicação “que nos parece mais adequada, ou verosímil, admite que
em tais casos estaremos perante palavras ou expressões latinas cuja abreviatura conste
dos formulários epigráficos correntes durante a Romanidade”.
34
Tal como nós, Luján 2019, 332, e o banco de dados Hesperia, interpretam REVE A
HARACVI.
326
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Da fixação textual das inscrições lusitanas de Lamas de Moledo, Cabeço das Fráguas e Arronches: O contributo
do “modelo de resíduo morfológico” (MRM), seus resultados e principais consequências interpretativas
Fig. 25. Monte do Coelho,
pormenor do ponto entre o A e o
H no meio da linha 3:
(b) Segunda palavra da linha 5, CARLA:
Quer os editores principes desta epígrafe (Encarnação et al. 2008a; 2008b),
quer investigadores como Prósper e Villar 2009, decifram CARIA. Apesar de
havermos com fundamentação estabelecido CARLA em anteriores leituras —
designadamente nas mais recentes, alicerçados já nas imagens conseguidas
através do MRM — e da assunção deste vocábulo também, v.g., por Vallejo
2013, 285, Wodtko 2017, 36, ou Luján 2019, 332, cremos oportuno voltar ao
assunto ora com base em imagens pormenorizadas, de forma a que fiquem
dissipadas todas e quaisquer dúvidas que ainda possam subsistir.
Fig. 26. Monte do Coelho, levantamento MRM: inscrição, linha 5, CARLA.
Remetemos pois o leitor para a fig. 26, cujo exame bastará para se concluir
de forma taxativa que o está gravado na estela é, de facto, CARLA. Inclusive, o
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327
José Cardim-Ribeiro | Hugo Pires
R e o L estão completos, e não truncados como supusemos nos nossos estudos
precedentes (Cardim 2010; 2016a; 2016b). O que aqui acontece de especial
diz apenas respeito à diversidade modular dos caracteres utilizados: o C e
o L são menores do que as restantes letras da palavra, mera particularidade
paleográfica.
Morfologicamente entendemos carla como uma forma gen. sg. cuja desinência derivará do PIE *-eh2es e que, no mundo itálico, poderemos paralelizar
com os genitivos em -as da 1.ª declinação documentados, v.g., no Latim arcaico, no Osco e no Umbro, admitindo o pressuposto de que tal desinência, nesta
fase da língua lusitana — e do mesmo modo que as das formas acusativas
plurais patentes nesta mesma epígrafe —, teria perdido a sibilante final (cf.
Cardim 2016a, 37). Idêntico vocábulo surge-nos, muitíssimo provavelmente em locativo, carlae, nas inscrições “Arroyo I” e “Arroyo III”. A respectiva
origem etimológica é consensual: do substrato pré-romano *kar-, ‘pedra’, por
sua vez derivado do PIE *ker-, ‘cortar’. Porém, a realidade concreta a que esta
palavra se reporta, nos textos em análise, é controversa. Prósper 2002, 70-71,
na sequência de Villar e de Pedrero 2001, 670-673, e circunscrevendo-se aos
exemplos da região de Arroyo de la Luz, os únicos então conhecidos, supõe
tratar-se do antigo topónimo a que se reportariam tais monumentos; idêntico
caminho interpretativo é feito, de forma independente, por Witczak 2005,
153 e n. 294. Pelo nosso lado, e atendendo ainda ao exemplo de Arronches,
propusemos — e continuamos a propor — que carla / carlae seja, em Lusitano, um substantivo comum, com o significado aproximado de “lápide”; e que,
de uma forma ou de outra, a sua menção nas citadas três epígrafes se refira
afinal, respectivamente, a cada um desses mesmos concretos suportes pétreos
(Cardim 2016a, 37).
(c) Palavra que ocupa integralmente a linha 7, OVCVP̣ẠNI:
De uma forma geral, todos os investigadores concordam que este vocábulo qualifica, em conjunto, os três indivíduos designados, na linha anterior,
com nomes paleohispânicos latinizados: Apinus, Vendicus e Eriacainus.
Tratar-se-á, pois, de um nominativo plural de tema em -o.
Questão diferente é a sua integral e correcta leitura e consequente interpretação filológica, já que alguns caracteres se encontram muito erodidos.
Assim, na editio princeps este termo foi decifrado, embora dubitativamente,
como OVOVIANI, e entendido como ‘os ovelheiros’ (Encarnação et al. 2008a,
97 e 99-100; 2008b, 172 e 174); esta hipótese de leitura é mantida por Wodtko 2017, 36. Por sua vez, Prósper e Villar 2009, 4, propõem OVGVI[-]ANI;
328
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Da fixação textual das inscrições lusitanas de Lamas de Moledo, Cabeço das Fráguas e Arronches: O contributo
do “modelo de resíduo morfológico” (MRM), seus resultados e principais consequências interpretativas
Vallejo 2013, 285, oucuiani; e Luján 2019, 332, OVGV++NI, embora em nota
indique a nossa versão, OVGVṚẠNI, que supuséramos poder corresponder,
quanto ao seu radical e ainda do ponto de vista semântico, ao Lat. augures
(Cardim 2010, 43 e 51; 2016, 34).
A proposta de leitura OVGVṚẠNI é, hoje, a que recolhe o banco de
dados Hesperia, embora — aliás com toda a razão — seja aí posta em causa a
interpretação filológica que adiantáramos. De facto, não subsistem dúvidas
de que o Lusitano mantém, sem alteração, o ditongo *au (Vallejo 2005, 697);
conforme, finalmente, se verifica nesta mesma inscrição em TAV[RO] (linha 3) e em AVṚ[..⊁ 4..] (final da linha 4). Neste contexto, será um desatento
contrassenso fonético considerar, como então fizemos, a suposta mutação
au > ou.
Fig. 27. Monte do Coelho, levantamento MRM: inscrição, pormenor, linha 7.
Mas, na verdade, a própria leitura OVGVṚẠNI fica agora invalidada
pelo novel levantamento MRM (vd. figs. 27 e 28). É certo que, quanto à letra
que consideráramos um Ṛ, aqui se evidencia possuir, de facto, uma curvatura
superior lançada para a direita da haste; porém, o traço que julgáramos constituir os vestígios inferiores de uma diagonal desse mesmo caractere pertence
já, afinal, à primeira oblíqua do Ạ subsequente — esta, uma letra que ora
deverá ser considerada como absolutamente segura.
A decifração correcta, pois, afigura-se-nos — sem margem para veras
hesitações — OVCVP̣ẠNI. Na fig. 28 aproximámos visualmente o grupo P̣ẠN,
desta palavra, com grupo idêntico patente em PANDITI,35 na linha 8; e, ainda,
35
Temos sérias dúvidas de que a pequena depressão na pedra entre o I e o T de PANDIT
possa ser interpretada, conforme tende a considerar Wodtko 2009a, 5, 7, 36; 2010, 341,
342; 2017, 19, 36; 2020, n. 33, um punctus distinguens, atendendo à sua posição abaixada
e quase tangente ao I, diferente pois das dos puncta propriamente ditos, que surgem
gravados a meia altura das linhas e centrados em relação às letras que os ladeiam.
Supomos, pois, tratar-se de um mero ludus naturae ou, talvez preferivelmente, de uma
marca de deterioração, como tantas outras similares que a lápide possui. Mas, se de facto
estivéramos perante um punctus gravado pelo lapicida, tal não nos obrigaria a dividir
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329
José Cardim-Ribeiro | Hugo Pires
com o P de pumpi, no início da última regra. O atento exame comparativo
destas três representações tranquiliza-nos quanto à nossa actual opção de
leitura, pese embora o profundo desgaste do P̣ de OVCVP̣ẠNI. Todos os referidos PP apresentam bastante aberto o respectivo traço 2, que parte do topo
superior da haste através de um curto segmento de reta horizontal, a partir
do qual então se desenvolve uma pequena curva, que termina solta e afastada
da vertical. É este mesmo esquema construtivo e formal que se detecta nas
imagens do MRM quanto à difícil letra da linha 7 (fig. 28 a).36
Dificilmente nos atrevemos a propor uma explicação etimológica e semântica para tal vocábulo. Porventura estaremos perante uma forma ternária,
ou-cup-ani. Neste composto, ou- será um prefixo cuja opção ortográfica procuraria reproduzir o som de um derivado do PIE *h1opi, ‘em’, ‘por’ (De Vaan
2008, 421), a confrontar com o Lat. *ob-cupare > occupare, ‘ocupar’, ‘apropriar-se’, ‘tomar posse’ (designadamente de um espaço).37 Por outro lado, o sufixo
-an indica ‘pertença a’. Apinus, Vendicus e Eriacainus, ocupani, seriam pois os
representantes, no ritual comemorado na lápide — que, por outras razões, supusemos já de inauguratio (Cardim 2016a, 39) —, do grupo que tomou posse
do terreno / território onde ora implantara / fundara um (novo) povoado, ou
ocupara e refundara um já anteriormente existente.
letras que tudo leva a crer pertençam afinal à mesma palavra — neste caso à forma
verbal PANDITI, em confronto com DOENTI (Lamas) e RVETI (Arroyo 3) —, visto que
existe na pedra um claro exemplo de punctus disfuncional, em concreto no final da linha
3, entre o T e o A de TAV[RO] (cf. Cardim 2010, 44 al. e).
36
Não pode ser um Ḍ, pois os DD desta epígrafe (linhas 4, 5, 6 e 8) são largos e não
afunilam para baixo — única solução para que, se fôra um Ḍ, a respectiva curva não
pisasse, em baixo, a letra seguinte. Difere extraordinariamente dos BB. Vimos já que um
Ṛ não é possível, até porque também se sobreporia ao início do Ạ. Um Ṭ também não,
pois ademais não se verificam quaisquer indícios de um prolongamento da barra para
a esquerda da haste. Nem um Ẹ nem um F̣ se adequam, não havendo barra medial nem
inferior. Um I não resulta, pois a letra é manifestamente mais complexa do que uma
singela haste vertical. Assim, não vemos outra solução defensável senão equacionar P̣ e
ler OVCVP̣ẠNI.
37
No entanto, como é por demais sabido, o *p mantém-se em Lusitano em todas as
posições documentadas. Para admitir esta nossa sugestão teríamos pois de considerar
uma eventual influência do latim ob-, não havendo depois obstáculo para a troca /
vocalização do -b- por -u-. Outra solução seria supor que, dentro do próprio domínio
linguístico lusitano, no contexto fonético proporcionado pela inusitada sequência
consonântica -pc-, o -p- do sufixo haja sonorizado em -b-, vocalizando-se em seguida
por comodidade de pronúncia.
330
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Da fixação textual das inscrições lusitanas de Lamas de Moledo, Cabeço das Fráguas e Arronches: O contributo
do “modelo de resíduo morfológico” (MRM), seus resultados e principais consequências interpretativas
Fig. 28. Monte do Coelho, levantamento MRM:
inscrição, pormenores (a) linha 7, ocuP̣ẠNi; (b) linha
8, PANditi; (c) linha 9, P de pumpi.
¿Estaremos afinal perante o testemunho epigráfico de um concreto episódio de fixação nesta área transtagana de gentes oriundas de regiões a norte do
rio, integrável na derradeira fase de um assaz longo processo iniciado de forma
coerciva — conforme sabemos — pela transferência decidida e levada a cabo,
por força do poder romano, de populações lusitanas desde “a outra margem [a
setentrional] do Tagus” (Strab., Geogr. 3.1.6) em determinado momento indefinido38 do período de Romanização, processo possivelmente pouco a pouco normalizado como vulgar e reiterada tendência migratória, talvez semi-voluntária
/ semi-incrementada, porventura ainda activa, pois, no decorrer das primeiras
décadas de Romanidade, em que se consolidava a organização do território e se
acurava a integração política das respectivas comunidades?
(d) Debrucemo-nos agora sobre o final das linhas, incompleto na sua
maior parte devido à truncagem da lápide, que afecta decrescentemente as
regras 1 a 5 (fig. 29):
– Linha 1:
A seguir a erbam, cujo Ṃ já se encontra afectado pela fractura, existiria decerto um punctum distinguens e, depois, uma palavra completa com o
máximo de seis letras. Supomos tratar-se de um qualificativo de HARASE,
teónimo com que se inicia a linha seguinte, qualificativo que teria, muito possivelmente, o significado de ‘deusa’, ou similar.39
38
Ou ainda sob D. Iunius Brutus (v.g. Pina 2004, 232), ou já no decurso do séc. I a.C. (v.g.
Pérez Vilatela 2000, 62 col. 1), p.ex. no âmbito da propretura de César na Ulterior.
39
Porventura, atendendo ao que aprendemos com o texto lusitano-latino da ara de Viseu
(Fernandes et al. 2009), *deibae.
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331
José Cardim-Ribeiro | Hugo Pires
– Linha 2:
Na sequência da opção metodológica dos editores do texto em análise,
propusemos já que se devesse aqui restituir o epíteto H[ARACAE], concordante com BROENEIAE, à semelhança do epíteto masculino HARACVI
/ HARAGVI mais abaixo aplicado a REVE e a BANDI. Hoje, com o MRM,
vê-se perfeitamente o Ạ que sucede ao H, evidência que vem fortalecer aquela
hipótese. Cumpre-nos agora, pois, reconstituir HẠ[RACAE].
Fig. 29. Monte do Coelho, levantamento MRM: inscrição,
final das linhas 1 a 5.
– Linha 3:
O ponto entre o T e o A é inequívoco. Porém, conforme explicitámos já
antes (Cardim 2010, 44 al. e), tal não obsta, atendendo ao contexto frásico e ao
seu evidente paralelo com o teor das linhas 5-6 de Cabeço das Fráguas, de ler
e de reconstituir TAV[RO]. Ou, se se preferir, T{·}AV[RO] (Luján 2019, 332).
– Linha 4:
As imagens segundo o MRP indicam-nos, de forma segura, que o vocábulo que determina a oferenda doada a Bandi se inicia não apenas por AV-,
conforme estava já estabelecido, mas sim por AVṚ-. Atendendo às reconstituições fundamentadamente supostas para as regras anteriores, sobretudo para
332
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Da fixação textual das inscrições lusitanas de Lamas de Moledo, Cabeço das Fráguas e Arronches: O contributo
do “modelo de resíduo morfológico” (MRM), seus resultados e principais consequências interpretativas
as linhas 1 e 2, podemos afirmar que, a seguir ao Ṛ, existiriam, no máximo,
mais quatro letras: AVṚ[..⊁ 4..].
É legítimo supor que a dádiva atribuída a Bandi fosse, tal como as de todos os deuses anteriores, um animal, por certo do sexo masculino atendendo
ao género da presente divindade. Possivelmente estaremos perante o início
de um vocábulo de etimologia e de conteúdo semântico equiparáveis aos dos
adjectivos latinos aureus, ‘da cor do ouro’, ou auratus, ‘dourado’, vocábulo pois
alusivo ao tom da pelagem ou à decoração ritual da vítima, por uma dessas
mesmas qualidades assim estandardizada e comummente chamada.
– Linha 5:
Confirma-se a existência de um punctum distinguens e, ainda, de uma
letra, embora truncada — aparentemente um Ạ40 —, à frente de CANTIBIDONE.
Esta ratificação é determinante para o entendimento geral do texto, ou
seja, para compreendermos a ordem redaccional utilizada na correlativa
menção das divindades e das respectivas oferendas. Assim, se Munitie carla
Cantibidone recebe uma Ạ[..c. 3-4..], não podem subsistir dúvidas de que, na
linha anterior, AVR[..⊁ 4..] se destina a Bandi; e, antes, X tauro ifate a Reve;
X oila a Broeneiae; outras X oila a Harase; e ainda, no início, uma -am, uma
oilam e uma erbam a determinada divindade, de nome curto, escondida entre
os restos de traços e as fracturas que ocupam o começo da linha 1.
Esta inversão entre a designação das vítimas e a das divindades quanto
ao que podemos observar nos textos de Lamas de Moledo, de Cabeço das
Fráguas e, talvez também, de “Arroyo I”, não constituirá decerto um acaso,
correspondendo antes — estamos convictos — a uma regra, ou hábito normativo, implícito a uma definida situação específica. Supomos tratar-se do
seguinte:
Lamas de Moledo, Cabeço das Fráguas e “Arroyo I” oferecem-nos discursos intemporais, prescrições rituais estabelecidas num dado momento para
se repetirem em determinadas circunstâncias cíclicas ou conjunturais. Ou
40
Talvez o início do nome do mesmo animal que na linha anterior, mas no feminino. À
frente, porém, não caberiam mais de 3 ou 4 letras, pelo que, se quisermos sustentar esta
hipótese, teremos de admitir o recurso a uma abreviatura, p. ex., Ạ[VR], ou Ạ[VRAT]. O
cariz excepcional da utilização deste tipo de recurso paleográfico para registar um nome
lusitano — e não um vocábulo latino — poderia aqui justificar-se pelo facto do mesmo
vocábulo, embora no masculino, se encontrar escrito por extenso imediatamente na
linha anterior, aliás em idêntica posição final.
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333
José Cardim-Ribeiro | Hugo Pires
não indicam interventores, ou fazem-no de um modo vago e conjuntivo. São
textos alheios a um evento concreto. São textos a-históricos.
De modo contrário, o conteúdo da epígrafe de Arronches — tal como
o da ara latina de Marecos (Tranoy 1981, 282) — reporta-se a um facto singular, ocorrido num demarcado e único momento. Citam-se interventores
pessoalizados, pelos seus nomes próprios. São estoutros monumentos, afinal,
comemorativos da realização de práticas rituais incluídas em cerimónias já
acontecidas. São, finalmente, textos históricos.
Esta é a pista que entendemos dever ser utilmente explorada na explicação
destas divergências, que acreditamos pois de cariz intencional e normativo.
Porém, não cremos ser aqui oportuno desenvolvê-la mais.
– Linha 8:
Fig. 30. Monte do Coelho,
levantamento MRM: inscrição,
pormenor, final da linha 8.
Supomos Wodtko 2017, 36, o único autor que, na sua transcrição, regista
um punctum distinguens no final da linha 8 (fig. 30), a seguir à abreviatura
TR. Se assim fôra, teríamos de considerar que, originalmente, existiria decerto
uma outra palavra — abreviada ou não — mais à frente, numa zona da lápide
ora supostamente truncada.
A observação dos pormenores conseguidos através do MRM patentes na
fig. 30 não confirmam, de modo evidente, essa hipótese. Depois do R vê-se,
sim, um pequeno traço oblíquo fruto de uma acidental deterioração, e ainda
um sulco mais vasto. Porém, não é impossível que tal pequeno traço oblíquo,
atendendo à sua precisa posição, tenha vindo a encobrir / destruir um eventual ponto pré-existente. Deixamos, pois, a questão em aberto.
(e) Resta-nos analisar o fragmentado e polémico início da epígrafe.
Como noutras ocasiões, o contributo do levantamento MRM revela-se aqui
determinante (cf. fig. 31):
334
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Da fixação textual das inscrições lusitanas de Lamas de Moledo, Cabeço das Fráguas e Arronches: O contributo
do “modelo de resíduo morfológico” (MRM), seus resultados e principais consequências interpretativas
Fig. 31. Monte do Coelho, levantamento MRM: inscrição, pormenor, início das linhas 1 e 2.
No começo da linha 1 evidencia-se a metade inferior de uma haste vertical. Mas, para além deste traço claro, parece entrever-se sobre ele — ou seja, a
meia altura da letra quando ela estava completa — o arranque de uma barra
horizontal, que parte para a esquerda. Ainda em posição anterior, ao nível da
base da referida haste, existe um ténue vestígio pontual que poderá pertencer
à extremidade inferior de outra haste. Confrontando com o início da linha
2 (vd. fig. 32, caractere 1), concluímos não ser impossível estarmos perante
vestígios de um Ḥ. Os restos literais descritos poderão ajustar-se a tal hipótese,
mas na verdade não são suficientemente expressivos para a confirmarem.
Segue-se um confuso emaranhado de restos de traços, quer gravados quer
acidentais, destacando-se talvez entre eles vestígios de dois oblíquos, convergindo para cima. ¿Teria aqui estado exarado um A? É essa a possibilidade que
retemos, ainda por comparação contextual com a primeira palavra da linha 2
(vd. fig. 32, caractere 2). Mas não logramos ter certezas.
Surgem depois dois traços bem mais nítidos que, numa primeira observação, parecem também eles desenhar um Ạ. Porém, vendo com maior atenção,
apura-se que o primeiro continua para cima, formando uma haste, do topo da
qual parece sair um pequeno traço à direita. Estaremos, assim, diante de um
Ṛ, similar ao da palavra inicial da linha 2 (vd. fig. 32, caractere 3).
À frente destaca-se uma haste provida de barra horizontal inferior, que
apenas se poderá pois ajustar a um Ẹ, ou a um Ḷ (fig. 32, caractere 4). Supomos que aqui termina a palavra inicial do texto, correspondente a um curto
teónimo, evidentemente em dativo.
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José Cardim-Ribeiro | Hugo Pires
Fig. 32. Monte do Coelho, levantamento MRM: inscrição, pormenor, primeira linha, número
de letras detectáveis antes de -AM, e confronto entre as primeiras três letras da linha 2 e a
primeira palavra da linha 1, possivelmente ḤẠṚẸ
Assim, a próxima letra, que não logramos identificar — ¿de novo um Ạ,
reduzido às extremidades inferiores? (fig. 32, caractere 5) —, será a inicial do
nome do primeiro animal feminino ofertado a essa divindade.
Depois parece erguer-se o vestígio de uma haste (fig. 32, caractere 6). Se
ela pertencer a uma letra larga — por exemplo, a um Ṇ —, será esta, decerto,
a última antes da desinência acusativa -AM. Idêntica situação poderá talvez
ocorrer também se a referida haste se reportar a uma letra com barras ou curva superior — como um Ẹ, um F̣, ou um P̣. Porém, se se tratar de um singelo
Ị, então teremos de imaginar um qualquer outro caractere exíguo entre ele e o
explícito fim da palavra. Francamente, não conseguimos decidir entre ++AM,
ou ++[.]AM.
Regressando ao teónimo inicial, coloca-se pois a possibilidade de o podermos decifrar ḤẠṚẸ (cfr. fig. 33).41
41
Em estudo anterior (Cardim 2016a, 36) adiantámos a hipótese Ḥ[A]ṚẠẸ. Porém agora,
que dispomos não apenas do levantamento geral segundo o MRM mas, também, de
alguns detalhes mais elucidativos, verificamos não só a impossibilidade material de tal
reconstituição mas, também, a maior adequabilidade aos vestígios literais subsistentes e
consequente maior pertinência daquela que apresentamos na presente comunicação.
Quanto às bases da nossa proposta (ib., 37) de compreender o inusitado tema har-,
com que se iniciam vários teónimos e epítetos da epígrafe em análise, a partir do PIE
*ghrH-u-, ‘intestinos’, patente no Lat. haru-spex, ‘adivinhar (através das) entranhas’,
trazendo ainda à colação o Umbro arvia, ‘¿parte do animal sacrificado?’, bem como o
Lat. hara, ‘cercado de animais domésticos’, cf., v.g., De Vaan 2008, 56 (s.v. arvum), 279 e
280.
336
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Da fixação textual das inscrições lusitanas de Lamas de Moledo, Cabeço das Fráguas e Arronches: O contributo
do “modelo de resíduo morfológico” (MRM), seus resultados e principais consequências interpretativas
Fig. 33. Monte do Coelho, levantamento MRM: inscrição, pormenor, primeira linha,
primeira palavra, possivelmente ḤẠṚẸ.
3.2. O contexto arqueológico e ambiental
Descoberta no Monte do Coelho, localizado cerca de 3 km a noroeste de
Arronches, onde se encontrava reutilizada nas estruturas de um antigo forno
de pão então demolido, todos os indícios convergem para admitir que a lápide
lusitana em análise foi executada e implantada nos primórdios do Império
neste concreto sítio. Ou seja, porventura colocada relativamente perto do
ponto onde mais de milénio e meio mais tarde se veio a erguer o dito forno,
pois (a) trata-se de uma zona alta do terreno — embora não a de cota máxima
— assaz plana e ampla; (b) zona que, em simultâneo, apresenta ainda o melhor
ângulo de visibilidade quer sobre o curto quer sobre o longínquo horizonte
desfrutável, que é o meridional; (c) possuindo por fim uma clara centralidade
em relação ao espaço directamente envolvente (vd. fig. 33, ponto A e suas
cercanias).42
42
A lápide foi encontrada em 1997 por Hélder Marques, de Arronches, no Monte do
Coelho (Notícias de Arronches, Fev. 2009, 8). Segundo Encarnação et al. 2008b, 167, o
local concreto do achado teria sido o vale da Ribeira da Venda, no limite ocidental da
propriedade. Em artigo anterior (2008a, 87-88), mais detalhado quanto às circunstâncias
da descoberta, os mesmos autores começam por afirmar que a lápide surgiu “nas
imediações de Arronches”, sendo “depois reutilizada numa lareira da própria vila
norte-alentejana”; dizem porém mais à frente que “foi aquando de obras de beneficiação
realizadas no edifício” do Monte do Coelho “que a pedra terá sido identificada”; e
acrescentam ainda que, “originalmente, havia sido recolhida em terrenos mais a norte,
entre este local e o Monte da Freirinha”.
Atendendo ao carácter algo confuso e contraditório destas informações, deslocámo-nos
(J.C.R.) a Arronches em 2014, a fim de ouvir directamente o decisivo depoimento de
Emílio Moitas, erudito arronchense que acompanhou o processo da descoberta da
lápide desde o seu início. Assim, apurámos que tudo se passara de forma bem mais
simples: a lápide encontrara-se reutilizada debaixo de um antigo forno de pão que se
erguia perto das casas do Monte do Coelho, o qual foi demolido no referido ano de 1997
aquando das obras de recuperação e remodelação daquelas casas, antigas edificações
rurais ora transformadas em habitação de lazer. Assim se justificam as largas zonas
queimadas patentes no campo epigráfico, que estaria virado para cima numa zona do
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José Cardim-Ribeiro | Hugo Pires
Para norte desta plataforma, o terreno sobe. Não detectámos aí, à superfície, quaisquer vestígios arqueológicos, conquanto não faltassem por todo o
lado pedras soltas de diferentes dimensões e, mesmo, algumas grandes lajes
de grauvaque não aparelhadas mas naturalmente lisas e geologicamente idênticas à lápide com inscrição lusitana.
Para sul o terreno declina até ao Rio Caia e, em simultâneo, para sudoeste
até ao seu afluente, a Ribeira da Venda. Metida no aparelho da parte mais
elevada do muro que circunda determinada eira — assinalada por B na fig.
34 — localizada na transição da plataforma para a vertente, observámos algumas tégulas e outros evidentes materiais laterícios romanos. Por sua vez, pela
encosta (fig. 34, área riscada) observámos: múltiplos fragmentos cerâmicos
de inequívoca antiguidade e vária tipologia, embora todos eles pertencentes a
vasos comuns; martelos de pedra; escória de ferro; e, perto da confluência entre a Ribeira da Venda e o Rio Caia, alguns blocos informes constituídos por
pequenas e médias pedras argamassadas com opus signinum, claros vestígios
ora soltos de estruturas construídas.
A densidade de todos estes materiais não se afigurou grande. Mas, tendo
em conta encontrarmo-nos perante um terreno arborizado e não lavrado,
além do mais desde há largos anos desprovido de qualquer tratamento ou
limpeza de ervas — a que acresce o facto de havermos feito a prospecção fóra
da época das chuvas —, tornou-se inequívoco estarmos perante uma estação
arqueológica coeva da Romanidade, quase decerto um habitat colectivo.
forno mais directamente exposta ao calor do fogo. Segundo Emílio Moitas esta estrutura
de combustão seria centenária, pelo que dificilmente perduraria a memória do sítio,
perto ou longe, onde a pedra pudesse outrora ter sido recolhida.
A prospecção do próprio terreno do Monte do Coelho, em torno da localização do
antigo forno e daí para sul, até ao Rio Caia — investigação a que então procedemos
juntamente com o nosso anfitrião e, ainda, com Teresa Simões, António Carvalho e João
Cardim —, convenceu-nos de que a lápide nunca viera de outro sítio, mas que provinha
daqui mesmo originalmente.
Além do mais, em função (a) do aspecto rude e desinteressante da inscrição como
eventual antiqualha para um qualquer antigo coleccionador — forçosamente anterior
à construção do forno —, bem como (b) do seu concreto emprego apenas utilitário
num sítio abundante de materiais líticos, (c) entre os quais aliás existem lousas de tipo
e dimensões equiparáveis à que serviu de suporte ao texto lusitano, seria de facto muito
estranho que alguém se tivesse dado ao trabalho e ao esforço, sem meios mecânicos e
no âmbito de numa paisagem assaz acidentada, de ir buscar longe — e por longe pode
entender-se aqui tudo quanto ultrapasse algumas poucas centenas de metros — uma
pesada lápide tão-só para a meter debaixo de um forno quando, no próprio local,
sobejavam as pedras adequadas para o mesmo efeito.
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Da fixação textual das inscrições lusitanas de Lamas de Moledo, Cabeço das Fráguas e Arronches: O contributo
do “modelo de resíduo morfológico” (MRM), seus resultados e principais consequências interpretativas
Fig. 34. Fotografia aérea do Monte do Coelho, Arronches. A: sítio aproximado do forno da
Idade Moderna onde se descobriu a inscrição lusitana; B: eira cujo muro integra tégulas e
outros vestígios laterícios de época romana; zona riscada: dispersam-se à superfície desta
área diversos materiais arqueológicos dessa mesma época.
Aliás, a sua implantação na confluência de dois cursos de água de diferentes caudais recorda a de determinados povoados de origem ou de tipologia
paleohispânica, documentados designadamente em área lusitana, tal como o
de Sansueña, sobre uma colina sobranceira a um arroio epónimo e ao Rio
Salor — perto do sítio onde foi gravado “Arroyo I” (Cardim 2021); embora no
Monte do Coelho não pareçam existir quaisquer indícios de amuralhamento,
nem ainda qualquer separação física entre o habitat e os vales circundantes,
já que os vestígios construtivos aparentam aproximar-se aqui, pelo menos em
certos pontos, das margens fluviais.
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4. O vocabulário das inscrições e o grau de exactidão das leituras
A concluir esta análise, e tendo em conta que o seu primordial objectivo
reside na procura de uma mais rigorosa fixação e consequente maior inteligência dos textos lusitanos de Cabeço das Fráguas, Lamas de Moledo e Monte
do Coelho, entendemos útil sintetizar nos quadros subsequentes o grau de
fiabilidade da leitura e da compreensão das várias palavras que constituem
o léxico destas epígrafes — e que aí seriámos alfabeticamente —, após o seu
exame através de imagens conseguidas pelo MRM e inerente reflexão interpretativa.
vocábulo
linha
observações
COMAIAM
3
leitura exacta
ICCONA
3
leitura exacta
IFADEṂ
6
leitura exacta
INDI
2, 5
leitura exacta
2
leitura exacta
LOIMINNA
3/4
leitura exacta
OILAM
LAḄBO
1, 4
leitura exacta
PORCOM
2
leitura exacta
RE‘VE’
7
leitura exacta
TAVROM
5
leitura exacta
ṬṚẸ[B.....]
7
leitura e interpretação prováveis
TREBARV‘NE’
5
leitura exacta
TREBOPALA
1
leitura exacta
VSSEAM
4
leitura exacta
Quadro 1. Vocabulário da inscrição de Cabeço das Fráguas.
(1) Cabeço das Fráguas (Quadro 1):
No caso de Cabeço das Fráguas, quase desprovido de nexos e de inequívoca leitura quanto aos poucos existentes, logrou-se discernir com total exatidão
todos os vocábulos íntegros, inclusive o controverso LAḄBO da linha 2.
Também observámos que a linha 6 deverá estar completa.
Apenas fica pois por apurar a derradeira palavra do texto, ou seja, o
epíteto de Reve. É porém legítimo aceitar que, com grande probabilidade, se
iniciasse com o tema treb-; e verificámos que, na totalidade, não possuiria
mais do que um máximo de nove caracteres.
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Da fixação textual das inscrições lusitanas de Lamas de Moledo, Cabeço das Fráguas e Arronches: O contributo
do “modelo de resíduo morfológico” (MRM), seus resultados e principais consequências interpretativas
vocábulo
linha
observações
‘AN’VGOM
6
caracteres absolutamente nítidos;
outras variantes interpretativas: ANGOM, ‘AMNV’GOM,
‘AMV’GOM, ‘ANNV’GOM, ‘AV’VGOM
Ḅ‘ẸḶ’ADOM
9/10
leitura altamente provável, ou mesmo segura
CA‘IE’LOBRIGOI
11
leitura exacta
CROVGEAI
8
leitura exacta
DOENTI
5
leitura exacta
LAMATIGOM
7
caracteres absolutamente nítidos;
variante interpretativa: LA‘MM’ATIGOM
MAGAREAICOI
8/9
leitura exacta
PETR‘AV’IOI
9
caracteres absolutamente nítidos;
outra variante interpretativa: PETR‘AN’IOI
PORGOM
10
leitura exacta
VEAM‘IN’ICORI
4
caracteres absolutamente nítidos;
variantes interpretativas: VE‘AMMIN’ICORI,
VEAM‘IN’I CORI
Quadro 2. Vocabulário lusitano da inscrição de Lamas de Moledo.
(2) Lamas de Moledo (Quadro 2):
Quanto a Lamas de Moledo, lográmos por fim a leitura completa, que
avaliamos como altissimamente provável — ou mesmo segura —, do até agora
controverso qualificativo de porgom: Ḅ‘ẸḶ’ADOM (linhas 9/10).
Fértil em clusters paleográficos, e exibindo também alguns evidentes
nexos, dois problemas insanáveis subsistem:
(a) Em primeiro lugar, saber se aquelas primeiras ocorrências são, ou
não, efectivos monogramas; ou meras aproximações tangenciais de sucessivas
letras.
(b) Em segundo lugar, quais os caracteres concretos que formam quer
alguns desses nexos seguros; quer — aceitando-se o seu cariz monogramático
— aqueles que integram os restantes conglomerados literais.
Por isso no respectivo quadro são frequentes as leituras exactas, mas com
diversas variantes interpretativas possíveis. Nestes casos, apenas a eventual
ocorrência de grafias inequívocas dos mesmos vocábulos em novas inscrições
lusitanas que se venham a descobrir poderá dissipar as dúvidas que permanecem.
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José Cardim-Ribeiro | Hugo Pires
vocábulo
A(---)
Ạ[..
..]
linha
observações
3
leitura exacta; talvez abreviatura do latim A(ugusto)
5
leitura exacta; reconstituição inviável
AILATIO
9
leitura exacta
APINVS
6
leitura exacta
ATTEDIA
8
leitura exacta
AVR[..⊁ 4..]
4
leitura exacta; reconstituição difícil
4
leitura exacta
c. 3-4
BANDI
BROENEIAE
2
leitura exacta
CANTI
9
leitura exacta
CANTIBIDONE
5
leitura exacta
CARLA
5
leitura exacta
ERBAṂ
1
leitura exacta
ERIAC̣AINṾṢ
6
leitura exacta
HẠ[RACAE]
2
leitura exacta; reconstituição provável
HARACVI
HARAGVI
3
4
leitura exacta
leitura exacta
HARASE
2
leitura exacta
ḤẠṚẸ
1
leitura hipotética
ICCINVI
8
leitura exacta
IFATE
4
leitura exacta
M(---)
8
leitura exacta; talvez abreviatura de vocábulo latino
MVNITIE
5
leitura exacta
2, 3
1
leitura exacta
leitura exacta
OILA
OILAM
OVCVP̣ẠNI
7
leitura exacta, inclusive o P̣
PANDITI
8
leitura exacta
REVE
3
leitura exacta
PVMPI
9
leitura exacta
TAV[RO]
3
leitura exacta; reconstituição segura
TR(---)
8
leitura exacta; talvez abreviatura de vocábulo latino
VENDICVS
6
leitura exacta
++?AM
1
leitura exacta; 2, ou mesmo 3 letras, antes da des. ac.
Quadro 3. Vocabulário da inscrição de Monte do Coelho, Arronches.
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Da fixação textual das inscrições lusitanas de Lamas de Moledo, Cabeço das Fráguas e Arronches: O contributo
do “modelo de resíduo morfológico” (MRM), seus resultados e principais consequências interpretativas
(3) Monte do Coelho, Arronches (Quadro 3):
Dos 33 vocábulos que compõem o longo texto do Monte do Coelho —
alguns repetidos —, 25 (c. 76 %) oferecem-nos uma leitura e interpretação
exactas. Neste número e graças ao MRM, é-nos hoje possível incluir a difícil
palavra da linha 7, OVCVP̣ẠNI.
Dos restantes, três constituem abreviaturas, com elevada probabilidade
de termos latinos. Quatro outros são vocábulos truncados, entre os quais
apenas cremos legítimo reconstituir com relativa segurança HẠ[RACAE]
(linha 2).
Resta-nos um único exemplo de leitura tão-só hipotética, no início da
epígrafe: o do possível teónimo ḤẠṚẸ — decifração que, estamos plenamente
conscientes, não colherá consenso.
Porém, mais do que a eventual aceitação das nossas propostas, aquilo que
sobretudo pretendemos com este estudo foi facultar à comunidade científica
representações gráficas seguras e detalhadas das epígrafes e dos monumentos
em análise, cujos textos e singularidades imagéticas assim fixados procurámos descrever e evidenciar, de forma a proporcionar bases mais rigorosas do
que aquelas até ao momento disponíveis conducentes ao avanço dos nossos
conhecimentos sobre a língua e a cultura lusitanas.
b i b l i o g r a f i a
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