A
NUVEM
ARTE | FILOSOFIA | TECNOLOGIA | EDUCAÇÃO
Foi, sem dúvida, um fenômeno, um caso novo
e estranho do tipo “acredite se quiser”. No
mínimo, foi uma anomalia. E, assim, dia após dia,
novas pessoas chegavam a Porto Alegre para
vivenciá-lo. Artistas, cientistas, meteorologistas
e até mesmo sismólogos, caçadores de tornados,
outros especialistas do clima e aficionados.
Um novo tipo de cúpula social se formou às margens do Guaíba, local de acampamentos e deliberações. A razão para esse agrupamento foi a
observação de um raro cúmulo no céu. Era uma
Nuvem estranhamente imóvel. A Nuvem não se
movia naturalmente com a mudança do tempo,
tampouco era minimamente provocada por
máquinas de vento artificiais. A Nuvem estava
simplesmente ali, ancorada à atmosfera. E foi
crescendo lentamente, inchando com o passar
das semanas.
Teorias do surgimento da Nuvem variavam.
Alguns alegavam que era, de fato, Laputa, encalhada por causa de alguma revolução magnética
acontecendo naquela ilha flutuante. Sismólogos
e escritores tinham inventado essa teoria, observando que o solo de Porto Alegre tremia, mesmo
com a ausência de falhas geológicas, e argumentando que a ficção já havia previsto outros
acontecimentos, e até mesmo geografias. Outros
consideravam a Nuvem um OVNI camuflado. Tão
logo essa teoria começou a circular, recepções
de boas-vindas a seres extraterrestres começaram a ser cuidadosamente [continua na contracapa]
A NUvEm
Uma antologia para professores,
mediadores e aficionados da
9a Bienal do mercosul | Porto Alegre
A
NUVEM
9ª BiENAL dO mErcOSUL | POrTO ALEGrE
Fundação Bienal de Artes Visuais do Mercosul
7
23
111
apreSentaçãO
O rOmance da Lua
PATriciA FOSSATi drUcK
JúLiO vErNE
9
29
O SatéLite e
a Obra de arte
na era daS
teLecOmunicaçõeS
SObre nuvenS
e perturbaçãO
atmOSférica
a Lua
EdUArdO KAc
viLém FLUSSEr
SOFíA HErNáNdEz cHONG cUy
38
14
a mediçãO dO
mundO
123
a ciência e a ética
da curiOSidade
SUNdAr SArUKKAi
de uma chuva
de ideiaS àS
redeS de fOrmaçãO
ANNETTE HOrNBAcHEr
môNicA HOFF
SObre a
impOrtância
dOS deSaStreS
naturaiS
ciência e arte:
nOvOS paradiGmaS
na educaçãO e
reSuLtadOS
prOfiSSiOnaiS
WALTEr dE mAriA
LiNdy JOUBErT
213
bibLiOGrafia
146
46
49
169
eSperandO Gaia.
a cOmpOSiçãO de
um mundO em
cOmum pOr meiO da
arte e da pOLítica
arteSanatOS
recenteS
ABrAHAm crUzviLLEGAS
177
BrUNO LATOUr
pOr que
mediar a arte?
75
mAriA LiNd
aS revOLuçõeS
cOmO mudançaS
de cOncepçãO
de mundO
THOmAS KUHN
191
entreviSta cOm
eduardO viveirOS
de caStrO
rEviSTA SExTA-FEirA
APRESENTAÇÃO
PATriciA FOSSATi drUcK
Realizada na cidade de Porto Alegre, Brasil, a Bienal do
Mercosul tem se caracterizado pela criatividade, ineditismo e profundidade com que aborda, a cada edição,
novos temas e conceitos através da arte, da educação e da
formação de uma economia criativa na cultura.
Além disso, por meio de um eficaz sistema de gestão
e de um intenso programa de relacionamentos, contando
ainda com o apoio dos governos federal, estadual e
municipal, além de empresários e da comunidade, a
Bienal do Mercosul tem possibilitado o pleno atendimento
aos desafios curatoriais; uma forte integração entre os
diversos agentes culturais e a sociedade; o conhecimento
e a aplicação das melhores práticas de gestão e de
produção cultural; e um ambiente profícuo às artes e ao
reconhecimento de seu relevante papel na formação
da cidadania.
É com muita satisfação que estamos lançando, com
esta publicação, a 9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre
e seu projeto pedagógico, que é hoje uma relevante
7
referência na educação da arte e na formação de público
no Brasil. Nas oito edições realizadas, atendeu
mais de 1 milhão de estudantes. Nesta edição, ocupa
especial espaço.
Em português, o título da 9a Bienal é Se o clima for
favorável. Tenho certeza de que o tempo será favorável,
sim, e teremos uma mostra realmente memorável – dando
continuidade ao excelente trabalho desenvolvido pela
Fundação Bienal de Artes Visuais do Mercosul em
outras edições –, que acolherá todos os porto-alegrenses –
e todos os que aqui estejam – abaixo da Nuvem e que
enviará, como um vendaval, as boas-novas da arte latino-americana aos quatro cantos do mundo.
SObRE NuvENS
E PERTuRbAÇÃO
ATmOSféRicA
SOFíA HErNáNdEz cHONG cUy
O que é afeição? Um amor medido, uma forma de carinho,
uma emoção equilibrada? Se é isso, ou parece com algo
do tipo, por que o tempo nos afeta? Ninguém diz que o
tempo nos ama, se importa conosco ou sente qualquer
coisa por nós. Assim mesmo, uma condição climática é
sentida. Seus efeitos afetam. O curioso é que falar sobre o
tempo é tipicamente considerado uma conversa casual,
uma forma essencial de comunicação fática, a chamada
“conversa fiada”, a menos que, claro, o assunto vire o
aquecimento global. Essa última abordagem envolve certa
autoridade sobre o tempo – ao menos uma relação mais
evidente entre cultura e natureza, uma reciprocidade
afetiva entre o comportamento social e a conduta do tempo.
Não há dúvidas de que o tempo mexe com as pessoas,
seja minimamente, dramaticamente ou intensamente.
A visão de um raio de sol pode provocar um piscar de
olhos, despertar um sorriso nos lábios. Um céu nublado
pode trazer melancolia. Um trovão pode fazer alguém
estremecer. O raio, causar aflição. E, claramente, condições
8
9
extremas de tempo também provocam diferentes tipos
de efeitos. Furacões desalojam comunidades. Chuvas
torrenciais causam enchentes, lançando sonhos para
longe. Secas limitam colheitas. Terremotos destroem
áreas construídas. É algo pessoal – físico e psicológico.
Tendemos a chamar o segundo tipo de efeito de desastre;
o tempo é um fenômeno natural. É social – ecológico
e econômico.
O tempo também funciona como linguagem, como
ideias expressas em imagens ou articuladas em figuras
de linguagem que expressam atmosferas emocionais e
climas políticos. São esses tipos de perturbações atmosféricas – que vêm com suas próprias forças interiores e
exteriores, seja como posições singulares ou como
movimentos sociais – que influenciam, impulsionam a
9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre. O título desta
edição da Bienal é, em português, Se o clima for favorável;
em espanhol, Si el tiempo lo permite; em inglês, Weather
Permitting. Esses títulos, usados coloquialmente como
locuções e não como nomes próprios, são um convite
para refletir sobre quando e como, por quem e por que
certos trabalhos de arte e ideias ganham ou perdem
visibilidade em um dado momento no tempo.
O título deste livro, A nuvem, também traz uma
história em seu nome, mas primeiro algumas palavras
para você, o seu leitor. Este livro é especialmente criado
para educadores, mediadores e todos os futuros aficionados da 9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre. É uma
antologia de textos (narrativas e ensaios, tratados filosóficos e declarações de artistas) que influenciaram a conceituação da Bienal e, mais importante, que podem
inspirar modos de vivenciar e articular a arte contemporânea e a cultura em geral.
10
O título do livro refere-se a duas espinhas dorsais
intrínsecas, ainda que intangíveis, desta Bienal. Em
primeiro lugar “nuvem” (Cloud, em inglês) é o nome
casual dado ao servidor digital no qual a pesquisa curatorial é arquivada, catalogada e acessada por qualquer
membro da equipe, a qualquer hora, onde quer que ele
esteja. Ele é, podemos dizer, um lugar para informação
compartilhada, um tesouro em comum. Em segundo
lugar, o título A nuvem também se refere à chuva como
condensação de informação de forma conhecível, transformada em ideias por meio dos prazeres de brainstorming 1 – uma atividade praticada recorrentemente, mais
que um método rigoroso, pela equipe da Bienal. Surpreendentemente, nos primeiros estágios da organização da Bienal –
que inaugura suas exposições meses depois do lançamento de A nuvem –, muitas das sessões de brainstorm
centraram-se no lugar da informação na apresentação
pública da arte. Se de início essa preocupação pareceu
demasiadamente introspectiva, olhando agora, em retrocesso, ela faz todo sentido; afinal, se a expressão e a comunicação são princípios do fazer artístico, compartilhar e
levar a público são as bases da produção de exposições.
A nuvem é apenas uma das instâncias pelas quais
esta Bienal convida o público a refletir sobre os mecanismos de apresentação e os ambientes espaciais nos quais
descobertas e insights são criados, comunicados e compartilhados publicamente. Este livro e as publicações,
exposições e iniciativas vindouras que, juntas, compõem
a 9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre, dão atenção a
culturas de trabalho existentes e imaginadas. Isso envolve
observar e pensar sobre aspectos de reclusão e abertura,
assim como sobre o privado ou o público, em processos
que envolvem experimentação, seja no campo da arte ou
11
em outras áreas. Em cada uma de suas interações, a
9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre aborda a arte e as
ideias como portais, como ferramentas e disparadores
para vivenciar nossa contemporaneidade de forma mais
consciente e sensual.
A promessa da 9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre
é identificar, propor e modificar sistemas de convicções
em transformação e o modo como avaliamos a experimentação e a inovação. Ela pretende levantar questões
ontológicas e tecnológicas por meio da prática artística,
da fabricação de objetos e de nós de experiência. Esta
edição da Bienal pode ser considerada um ambiente para
encontrar recursos naturais e cultura material sob
uma nova luz, e para especular sobre as bases que marcaram as distinções entre descobertas e invenções, assim
como os valores da sustentabilidade e da entropia.
Para que isso ocorra, a 9a Bienal do Mercosul | Porto
Alegre junta a arte de artistas visuais às vozes de outros
que se dedicam aos pontos de encontro da cultura e da
natureza. Ela reúne trabalhos considerando diferentes
tipos de perturbações atmosféricas que impelem deslocamentos de viagem e deslocamentos sociais, avanços
tecnológicos e o desenvolvimento mundial, expansões
verticais no espaço e explorações transversais pelo tempo.
Esta Bienal envolve olhar para os sentimentos que
esses movimentos provocam, olhar para os afetos que se
manifestam. Ela requer habitar, garimpar, investigar
e explorar o que está abaixo e acima da esfera social –
o que é palpável e tênue, o que está no fundo do mar e na
atmosfera, o que está subterrâneo e no espaço sideral.
A nuvem não é apenas um ponto de início para
considerar e tratar dessas questões. A publicação deste
livro também marca o início das atividades públicas da
12
9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre. Para fazer este
início possível, para reunir este material e torná-lo
público para você, leitor, agradeço à equipe curatorial da
9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre – Raimundas
Malašauskas, Mônica Hoff, Bernardo de Souza, Sarah
Demeuse, Daniela Pérez, Júlia Rebouças e Dominic
Willsdon. Agradeço, também, aos artistas participantes
que inspiraram nossas leituras ou sugeriram autores e
textos aqui incluídos. Agradeço, especialmente, a Mônica
Hoff, por assumir a liderança na tarefa de reunir esta
antologia, e a Luiza Proença e Ricardo Romanoff, pela
atenção e cuidado editorial. Finalmente, este livro e,
em última análise, a 9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre
como um todo, não seriam possíveis sem o incansável
apoio de Patricia Fossati Druck, presidente da Fundação
Bienal de Artes Visuais do Mercosul, e o trabalho dedicado dos membros de seu conselho e equipe. Juntos, eles
formam um time dos sonhos que me deixa, e deixaria
você, ou qualquer um, flutuando agradavelmente como
uma nuvem.
NOTA
1
A expressão, utilizada para referir-se
a processos que exploram a criatividade por meio da elaboração e da
troca de ideias em grupo, significa, em
português, “tempestade cerebral” ou
“chuva de ideias”. [N.T.]
13
DE umA chuvA
DE iDEiAS àS
REDES DE fORmAÇÃO
môNicA HOFF
Toda antologia é, por excelência, uma chuva de ideias.
A nuvem não é diferente. Concebida com um fim imediato
e outro a longo prazo, ela não versa sobre um único
tema, não corresponde a uma única voz, nem impõe uma
leitura linear ao seu leitor. Como uma nuvem que se
forma no céu para preparar a chuva que regará a terra, a
presente antologia é um conjunto de ideias-partículas
condensadas a partir de um dado fenômeno, a 9a Bienal
do Mercosul | Porto Alegre.
Assim como as ideias, a formação das nuvens anuncia
uma mudança de clima e as mudanças, como sabemos,
podem ser sutis – como uma garoa de outono – ou arrebatadoras – como uma chuva de granizo no verão.
“Andorinhas a mil braças, céu azul sem jaça; andorinha rente ao chão, muita chuva com trovão”, “Março
ventoso, abril chuvoso”, “Névoa no lodo, chuva de novo”,
diz o dito popular.
Da mesma forma que a nuvem, a chuva nunca
representa apenas um fim em si mesma, mas algo que
14
conta o que pode vir depois. Chuva de verão, intensa e
torrencial, lava a alma e refresca o dia, mas não manda
o calor embora. Garoa fina no inverno amplifica a
sensação de frio e avisa que a noite será de forte geada.
Chuvas fortes favorecem a colheita, mas em demasia
acabam com a lavoura. O que poderia anunciar, então,
uma chuva de ideias? Seria o prenúncio de uma
grande tormenta, seria a garantia de uma boa safra?
Com o fim primeiro de servir como material de
investigação, leitura e deleite para educadores, mediadores, artistas e público curioso e aficionado da arte, a
presente antologia constitui uma intensa chuva de ideias.
Consiste numa viagem científico-literária – da lua à
cosmologia indígena; da natureza às telecomunicações;
das revoluções da ciência às éticas da curiosidade; dos
satélites à crise ecológica; dos desastres naturais à arte –
que anuncia o campo de pensamento com o qual se
relaciona a 9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre.
Entendida como uma rede, materializa-se como uma
publicação de caráter transversal com muitos inícios,
inúmeros meios e infindáveis fins.
Para isso, toma como ponto de partida o espaço sideral.
O texto que inaugura esta antologia, “O romance da
Lua”, foi escrito em 1865 por Júlio Verne. Nele, o grande
escritor francês, um dos pais da ficção científica, “desnuda”
a lua minuciosamente como se fora um objeto de desejo.
Com uma linguagem ora científica, ora poética que
toma o leitor pela riqueza de detalhes, Verne anuncia um
projeto de conquista do território lunar que, na prática,
vingaria exatamente um século depois. Na sequência, e
ainda em tom literário, partimos do espaço sideral rumo
ao campo da ciência a da linguagem. O segundo texto,
publicado no Brasil em 1979 por Vilém Flusser, versa
15
sobre a lua como construção cultural. A partir de um
bem-humorado ensaio e com uma inteligência multicultural, o autor traça uma rede de relações para discutir
a existência da lua como elemento da natureza e como
produto da cultura.
Em “A medição do mundo”, Annette Hornbacher
discute as dimensões culturais da chamada crise
ecológica a partir do questionamento da concepção
moderna de ciência – e consequente processo de industrialização – e do conceito ocidental de natureza, colocando
em xeque o lugar da própria crise. Como um atravessamento poético ao ensaio de Hornbacher, mas não menos
político se o analisarmos a fundo, no texto seguinte, o
artista Walter De Maria nos presenteia com uma breve
reflexão sobre a beleza e a importância dos desastres
naturais. “Devemos ser gratos por eles”, nos diz De Maria.
Bruno Latour, por sua vez, em “Esperando Gaia”,
quinto texto desta antologia, nos arremessa, com certo
sarcasmo e sabedoria, no olho do furacão das discussões
sobre a crise ecológica, tomando como ponto de partida o
que ele chama de uma série de desconexões acerca da
relação moral que estabelecemos com a natureza (ou com
a noção que temos dela). Como uma espécie de elogio ao
desaparecimento do sublime (aquilo que nos faz infinitamente menor que a “Natureza” e que nos possibilita a
melancolia), Latour ironiza a culpa (e a falta dela também) e sugere que estejamos atentos à medida das (e a
como se medem as) coisas. Mais que compreender a
escala, é preciso entender como ela é produzida. Para ele,
a natureza é uma montagem de entidades contraditórias
que precisam ser compostas conjuntamente. “Ninguém
encara a Terra globalmente e ninguém enxerga um
sistema ecológico a partir do Nada, o cientista não
16
mais que o cidadão, que o agricultor ou que o ecologista –
ou que uma minhoca, não nos esqueçamos dela”,
afirma Latour.
E o que hoje é uma minhoca, amanhã pode ser um
pato, provavelmente argumentaria Thomas Kuhn ao ler
o comentário de Latour. Em “As revoluções como mudanças de concepção do mundo”, sexto texto a compor esta
imensa nuvem, o físico e filósofo da ciência norte-americano nos regala com uma preciosa reflexão acerca das
revoluções científicas e de como elas não mudam nossa
percepção sobre o mundo, mas o mundo em si. Ao passo
que se o mundo já não é mais o mesmo, tampouco nós o
somos. E se nós já não somos, o mundo tampouco o é. Ao
usar como exemplo uns óculos com lentes invertidas,
Kuhn discorre sobre a ‘construção da percepção’ e atesta
que as revoluções científicas são também revoluções
dos sentidos. Além de necessário, o pensamento de Kuhn
é um importante portal para compreendermos as relações
de similitude entre arte e ciência.
A paixão dos artistas pela ciência, como sabemos, não
é recente. Tem como marco inicial o século Xiv, com os
experimentos renascentistas, e apogeu conceitual, pós-Revolução Industrial, na primeira metade do século XX,
com os futuristas, amantes das máquinas, da aventura, da
velocidade e das alturas. Desde então, a relação entre arte
e ciência tem se estreitado a olhos nus. Em “O satélite e a
obra de arte na era das telecomunicações”, publicado em
1986, Eduardo Kac reflete sobre como artistas passaram a
se relacionar e se valer dos sistemas de telecomunicações
via satélite em suas práticas. A construção de um foguete,
a manipulação de códigos de DNA e o envio de objetos,
mensagens e imagens para o espaço tornaram-se ações
presentes no processo de criação de muitos artistas.
17
Para Sundar Sarukkai, o ponto de conexão entre esses
dois campos de conhecimento historicamente separados
é a curiosidade. Para o físico e filósofo indiano, a curiosidade é um catalisador do conhecimento. No texto “A
ciência e a ética da curiosidade”, Sarukkai nos diz: “por
estarmos insatisfeitos com as respostas que obtemos,
bolamos novas maneiras de pensar. Por sermos curiosos,
descobrimos métodos. Descobrimos a ciência”. Estudos
recentes têm comprovado que crianças e cientistas têm
uma maneira de pensar e aprender muito semelhante.
Acredita-se que as crianças, mais que os adultos, sejam
capazes de inventar teorias incomuns para resolver
problemas. Ao pensar de forma hipotética, “os pequenos”
são tão astutos e inovadores em seus argumentos e
questões quanto os cientistas. Mas, por que, quando se
trata da arte, a maior parte das experiências educacionais
ainda orbitam galáxias localizadas a bilhões de quilômetros da ciência?
Lindy Joubert atribui essa distância física ao pensamento contemporâneo que busca separar arte e ciência
em duas esferas distintas de aprendizado. Em “Ciência e
arte: novos paradigmas na educação e resultados profissionais”, a artista e educadora australiana propõe uma
revisão e um realocamento dos modelos educacionais
atuais à luz das conexões entre arte e ciência. Para tanto,
constrói seu ensaio a partir do relato de experiências
que têm nessa relação sua condição de existência. Assim
como Sarukkai, Joubert acredita na curiosidade como
força motriz por trás da inteligência humana, logo, como
mola propulsora das experiências científicas e artísticas.
E se, em vez da relação com a arte, estivéssemos
falando da relação entre ciência e artesanato? Faria
alguma diferença? Como estabelecer o que é ciência –
18
conceito ocidental – tomando em conta a produção
material e imaterial de uma comunidade, um grupo, uma
etnia? Em “Artesanatos recentes”, o artista e educador
mexicano Abraham Cruzvillegas, descendente de
purépechas, parte de binômios tradicionais como o
individual e o massivo, o manual e o industrial, e arte e
artesanato para refletir sobre a sobrevivência do
artesanato no contexto capitalista contemporâneo. Para
construir sua reflexão, Cruzvillegas questiona sua
funcionalidade, sua cientificidade (natural ou social) e sua
pureza cultural. Ao longo do texto, ele parece nos perguntar a todo momento: como mediar essa relação?
Maria Lind, crítica e curadora sueca, muda o foco e
o sujeito da questão e nos pergunta: “Por que mediar a
arte?” Em seu ensaio, Lind ressalta que deve haver maior
empenho e responsabilidade por parte de artistas e
curadores em pensar sobre como comunicar o seu
‘objeto’, sua mensagem, seu pensamento em detrimento
de um possível “excesso de didatismo” proveniente da
educação (da arte) no contexto das instituições culturais
atuais. Lind nos diz: “Estamos diante de um paradoxo
evidente: um excesso de didatismo e, simultaneamente,
uma necessidade renovada de mediação”. Então, me
pergunto: como mediar diferentes perspectivas?
Por fim, fechando a rede de vozes que orientam esta
antologia e, portanto, o pensamento da 9a Bienal, temos
a mediação em si. Ou a “desmediação”. Na entrevista
realizada com o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros
de Castro sobre sua trajetória como pesquisador das
sociedades indígenas situadas no norte do Brasil, ao
mesmo tempo descemos às profundezas do que nos
constitui como seres vivos – humanos e não humanos –
e subimos aos céus para reposicionar mais uma vez nosso
19
entendimento de natureza e cultura. E se o que Viveiros
de Castro (nos) faz parece ser uma mediação a priori,
por outro lado, ela é uma desmediação completa. Diz-nos
o pesquisador que, diferentemente da lógica binária
de construção do pensamento à qual estamos acostumados
na cultura ocidental e, portanto, afeita a constantes
mediações, nas sociedades indígenas, sobretudo do Alto
Xingu, há uma espécie de interação entre as dimensões
física e moral, natural e cultural, orgânica e sociológica.
Tudo faz parte de um só corpo, e esse corpo é tanto
individual como coletivo. Ou seja, é corpo-corporal e
corpo-social, ao mesmo tempo. Viveiros de Castro se vale
da sua teoria do perspectivismo ameríndio para, nessa
entrevista, colocar-nos constantemente no lugar do outro –
vendo o outro – animal, humano ou coisa – sempre como
sujeito. Logo, como algo que tem uma intenção, como
algo que se relaciona.
Possibilitar encontros, ativar relações, atuar como
corpo-corporal e corpo-social é o que propõe o projeto
pedagógico da 9a Bienal do Mercosul | Porto Alegre com o
programa Redes de Formação. Como uma iniciativa
de formação integrada para educadores, mediadores e
público curioso e aficionado da arte, a educação na
9a Bienal se amplia no espaço e no tempo a fim de colocar
em diálogo, numa única rede, agentes comumente situados em redes isoladas. Assim, se o clima for favorável, de
maio a novembro de 2013, através de diálogos abertos,
laboratórios, oficinas, intercâmbios universitários,
residências de educadores e mediadores, e viagens de
campo, o projeto pedagógico da 9a Bienal estará “fundindo” Porto Alegre com Manaus, Osório com Montevidéu,
a Vila Mário Quintana com Roterdã, para citar alguns,
numa grande rede de conhecimento e afetos.
20
A nuvem é a nossa maneira discursiva e carinhosa de
dar início a tudo isso!
De uma chuva de ideias a uma efetiva rede de
formação de conhecimento e afetos – isso é tudo o que
podemos desejar. Se o clima for favorável, é claro.
21
O ROmANcE DA LuA
JúLiO vErNE
2013-05-16
19:27
Temp 10°C
Umidade 66%
Vento 10 Km/h
(1865)
NA éPOcA Em que o Universo ainda era um caos, um
observador dotado de uma visão infinitamente penetrante – e colocado no centro desconhecido no qual
gravita o mundo – teria visto miríades de átomos
enchendo o espaço. Mas, aos poucos, foram ocorrendo
mudanças; os átomos, até então errantes, obedeceram a
uma lei de atração e se combinaram quimicamente,
de acordo com suas afinidades, transformando-se em
moléculas e formando aglomerados nebulosos espalhados pelas profundezas do céu.
Esses aglomerados iniciaram um movimento de
rotação em torno do seu ponto central. Esse centro, pelo
movimento de rotação, se condensou progressivamente.
À medida que seu volume diminuía pela condensação,
o movimento de rotação se acelerava, resultando numa
estrela principal, centro do aglomerado volumoso.
As outras moléculas do aglomerado se comportaram
como a estrela central e também se condensaram pelo
movimento de rotação acelerado progressivamente,
23
gravitando em torno da estrela central, na forma de
inúmeras estrelas. Estava formada a nebulosa.
A uma dessas nebulosas, com milhões de estrelas, o
homem deu o nome de Via Láctea.
Se o observador examinasse uma das mais modestas
e menos brilhantes dessas estrelas – uma estrela de
quarta grandeza que orgulhosamente chamamos de Sol –,
teria visto todos os fenômenos da formação do Universo
se repetirem.
De fato, o Sol, em estado gasoso e composto de
moléculas móveis, também iniciou um movimento de
rotação. Esse movimento, fiel às leis da Mecânica,
foi se acelerando com a diminuição do volume e chegou
um momento em que a força centrífuga prevaleceu
sobre a força centrípeta, que tende a empurrar as moléculas para o centro.
Então, outro fenômeno teria sido visto pelo observador. As moléculas situadas no plano do equador escaparam, como a pedra de um estilingue cuja correia arrebentasse subitamente, e formaram vários anéis
concêntricos em torno do Sol, como os de Saturno. Por
sua vez, esses anéis de matéria cósmica, tomados por um
movimento de rotação em torno da massa central, se
teriam quebrado e formado os planetas.
Se o observador concentrasse a atenção nos planetas, veria que eles se comportaram exatamente como
o Sol, também formando anéis cósmicos, dando origem a
astros de ordem inferior que chamamos de satélites.
Portanto, do átomo para a molécula, da molécula
para o aglomerado nebuloso, do aglomerado nebuloso
para a nebulosa, da nebulosa para a estrela principal, da
estrela principal para o Sol, do Sol para o planeta e do
planeta para o satélite, temos a série de transformações
sofridas pelos corpos celestes, desde os primeiros dias
do mundo.
Mesmo sendo uma estrela de quarta grandeza, o Sol,
centro do nosso Universo, é enorme. Em volta dele
gravitam os planetas, saídos das entranhas do grande
astro. E, entre esses servos que giram em torno do rei em
órbitas elípticas, alguns possuem satélites. A Terra
tem apenas um satélite, a Lua. E é esse satélite que o
gênio audacioso dos americanos pretendia conquistar.
O astro noturno, pela sua rotatividade próxima,
sempre dividiu com o Sol a atenção dos habitantes da
Terra. No entanto, o esplendor da luz do Sol nos obriga a
baixar os olhos.
A loura Febe, mais humana, se deixa contemplar
na sua graciosidade modesta; ela é doce ao olhar, pouco
ambiciosa.
Os primeiros povos dedicaram um culto particular a
essa casta deusa. Os egípcios chamavam-na de Ísis; os
fenícios, de Astarteia; e os gregos a adoraram com o nome
de Febe, explicando seus eclipses pelas visitas misteriosas de Diana ao belo Endimião.
Mesmo que os antigos tenham compreendido as
qualidades morais da Lua do ponto de vista mitológico,
eles nada conheciam da selenografia, que é a parte da
Astronomia que estuda a Lua, especialmente em relação
aos seus aspectos físicos.
Vários astrônomos de épocas distintas descobriram certas particularidades, confirmadas hoje em dia
pela ciência.
Entre eles podemos citar Tales de Mileto, que viveu
muitos séculos antes de Cristo e foi o primeiro a afirmar
que a Lua era iluminada pelo Sol. Muito depois, Copérnico,
no século Xv, e Tycho Brahe 1, no século Xvii, explicaram
O rOmance da Lua
JúLiO verne
24
25
totalmente o Sistema Solar e o papel desempenhado pela
Lua no conjunto dos corpos celestes.
Nessa época, os movimentos do nosso satélite já
haviam sido quase todos explicados, mas pouco se sabia
sobre sua constituição física. Galileu explicou os fenômenos de luz produzidos em certas fases, pela existência de
montanhas. Houve grande discussão entre vários astrônomos em relação à altura dessas montanhas. Mas foram
os pacientes estudos de Beer e Mädler 2 que resolveram
a questão. Graças a eles, a altura das montanhas da Lua é
perfeitamente conhecida hoje em dia.
Também se chegou à conclusão de que não havia
atmosfera na Lua. Portanto, os selenitas, para viverem
nessas condições, deveriam ser bem diferentes dos
habitantes da Terra.
Enfim, graças a novos métodos e a instrumentos
aperfeiçoados, os cientistas levaram bem mais longe as
prodigiosas observações sobre a superfície lunar.
No entanto, ainda havia muitos pontos obscuros que os
americanos esperavam poder esclarecer algum dia.
Quanto à intensidade da luz da Lua, não havia mais
nada a aprender sobre esse aspecto. Sabia-se que é
trezentas mil vezes mais fraca do que a do Sol e que seu
calor não tem influência nos termômetros.
O Clube do Canhão tinha a intenção de completar
esses conhecimentos sobre a Lua e acrescentar outros,
em todos os seus aspectos: cosmográfico, geológico,
político e moral.
26
O rOmance da Lua
NOTAS
1
Astrônomo dinamarquês (1546–1601).
(N. T. da edição original.)
2
O mapa da Lua mais exato e mais
detalhado do período pré-fotográfico
foi feito por Wilhelm Beer (1797–1850),
banqueiro e astrônomo amador,
e Johann Heinrich von mädler
(1794–1874), astrônomo profissional
e diretor do Observatório de dorpat.
(N. T. da edição original.)
JúLiO verne
27
A LuA
viLém FLUSSEr
2013-05-16
19:27
Temp 10°C
Umidade 66%
Vento 10 Km/h
(1979)
PERTENciA, ATé REcENTEmENTE, à classe das coisas
visíveis, mas inacessíveis ao ouvido, cheiro, tato ou gosto.
Agora, alguns homens tocaram nela. Isto terá tornado
a Lua menos duvidosa? Descartes afirma que devemos
duvidar dos nossos sentidos porque, entre outras razões,
eles se contradizem mutuamente. Até agora, a Lua era
percebida por um único sentido. Não houve contradição de
sentidos, portanto. Agora, tal contradição se tornou
possível. Podemos, doravante, duvidar da Lua, mas de
maneira diferente. Por exemplo: como sabemos que
alguns tocaram nela? Por termos visto o evento na Tv e
por termos lido nos jornais a respeito. Imagens na Tv são
duvidosas, podem ser truques. Se vêm acompanhadas da
inscrição “live from the Moon”, passam a ser, não apenas
duvidosas, mas suspeitas. Quem diz “está chovendo, e
isto é a verdade”, diz menos que aquele que diz apenas
“está chovendo”. E quanto aos jornais, a sua credibilidade
não é absoluta. De maneira que podemos duvidar que a
Lua foi tocada. Mas tal dúvida será ainda menos razoável
29
que a outra: a Lua será ficção ou realidade? Menos
razoável, porque é menos razoável duvidar da cultura que
da natureza. Duvidar da natureza é razoável, se for feito
metodicamente, porque resulta nas ciências da natureza.
Mas duvidar da cultura (da Tv e dos jornais) aparentemente em nada resulta. Já que a Lua passou (conforme
Tv e jornais) do campo da natureza para o da cultura,
melhor é não mais duvidar dela. Passou da competência
dos astrônomos, poetas e mágicos para a dos políticos,
advogados e tecnocratas. E quem pode duvidar destes?
A Lua é doravante propriedade imobiliária (embora
móvel) da NASA. Pode haver maior prova de realidade?
A Lua é “real estate” = estado real, e todas as dúvidas a
seu respeito cessaram. Mas, ainda assim, há certos
problemas. Relativos, não tanto à própria Lua, mas ao
nosso estar-no-mundo. Problemas confusos. Falarei em
alguns dentre eles.
Quando olho a Lua em noites claras, não vejo um
satélite da NASA. Vejo um C, ou um D ou um círculo
luminoso. Vejo “fases da Lua”. A Lua muda de forma.
Aprendi que tal mudança é aparente, que a Lua mesma
não muda de forma. Por que “aparente”? A sombra da
Terra não será tão real quanto o é a Lua? O senso comum
manda que eu veja mudanças não da “Lua em si”, mas
da “minha percepção da Lua”. Tal senso comum não se
estende a povos primitivos. Tais povos veem a Lua
nascendo, morrendo e renascendo. Vejo a lua, não apenas
com os olhos, mas também com o senso comum à minha
cultura. Tal senso comum me manda ver “fases da Lua”,
mas não (ainda), “propriedade da NASA”.
Será a visão o sentido mais comum que o senso
comum, isto é, comum a todos os que têm olhos? Todos os
que têm olhos podem ver a Lua? Máquinas fotográficas e
formigas? Não será antropomorfismo dizer que a Lua é
vista por formigas? Se eu construir uma lente estruturalmente idêntica ao olho da formiga, verei a Lua? Ou
haverá senso comum apenas aos olhos humanos, o qual
manda aos homens verem a Lua? Haverá doença de vista
ocidental que me manda ver “fases da Lua”, e outra
doença mais geralmente humana que manda ver a Lua?
Quando olho a Lua em noites claras não vejo o
satélite da NASA, embora saiba que o que vejo é satélite da
NASA. Continuo vendo satélite natural da Terra, a
minha visão não integra o meu conhecimento. Tal falta
de integração do conhecimento pela visão caracteriza
determinadas situações, as chamadas “crises”. É provável
que os gregos do helenismo sabiam que a Lua é bola,
mas continuavam a ver uma deusa nela. É provável que
os melanésios saibam ser a Lua satélite da NASA,
mas continuam vendo símbolo de fertilidade nela. Em
situação de crise a cosmovisão não consegue integrar
o conhecimento.
Para ver a Lua, preciso olhá-la. Não preciso escutar o
vento para ouvi-lo. Posso, mas não preciso. Para ver,
preciso gesticular com os olhos e com a cabeça. “Levar os
olhos para o céu.” Preciso fazer o que os cachorros fazem
para ouvir ou cheirar: gesticulam com o nariz e os
ouvidos. Seu mundo deve ser diferente do nosso. Para
nós, sons e cheiros são dados, mas luzes são provocadas
pela atenção (gesticulação) que lhes damos. Para cachorros, sons e cheiros são igualmente provocados. Vivemos
em dois mundos: um dado e outro provocado pela atenção que lhe damos. Nisto a vista se parece com o tato:
dirige-se para o fenômeno a ser provocado. A explicação
“objetiva” que a vista é recepção de emissões de ondas
eletromagnéticas (como o ouvido é recepção de ondas
a Lua
viLém fLuSSer
30
31
sonoras) encobre o fato que olhos são mais parecidos com
braços que com ouvidos. Buscam, não ficam parados.
Isto é importante em casos como o é a Lua, a qual é
visível, mas não audível. Foi buscada, não foi negativamente percebida.
Culturas que não levantam o seu olhar para o céu,
mas concentram sua atenção no solo (as chamadas
“telúricas”) não buscam, não “produzem” a Lua. Culturas
que passam o tempo olhando o céu (as chamadas “urânicas”), “pró-duzem” a Lua que passa a ocupar papel
importante em tais culturas. A Lua é, neste sentido,
“produto” de determinadas culturas. Como então posso
afirmar que a NASA transformou a Lua de fenômeno
natural em fenômeno cultural (em instrumento de
astronáutica) ao tê-la tocado? Se a Lua sempre tem sido
produto da cultura “urânica” que é a nossa? Para responder a tal pergunta, devo olhar a Lua mais de perto.
Que significa “olhar de perto”? Pode significar
aproximar-se da Lua subindo montanha ou em foguete.
Pode significar aproximá-la com telescópio e truques
semelhantes. Mas não preciso significar isto. Como a Lua
não é um dado, mas um buscado pela atenção dada a
ela “olhá-la de perto” pode significar olhá-la com maior
atenção para vê-la mais claramente. Pois se, em noites
claras, eu for olhá-la com tal maior atenção, verei porque
a vejo enquanto fenômeno da natureza. Não posso vê-la
quando e onde quero. Embora deva querer vê-la para
vê-la, tal querer meu é condicionado pela própria Lua.
A Lua é provocada pelo meu querer vê-la, mas tal querer
se dá dentro das regras de jogo da própria Lua. A Lua
impõe sobre mim suas próprias regras de jogo. Por isso, é
difícil duvidar dela e manipulá-la. A Lua não é minha
imaginação, é uma coisa da natureza.
Meu olhar provou que a Lua não é imaginação
minha, mas por enquanto nada provou quanto ao seu ser
natureza ou cultura. Sim, provou-o. A lua é cabeçuda.
Impõe suas regras de jogo. Só vejo onde ela está por uma
necessidade dela própria, necessidade esta chamada
“leis da natureza”. As coisas da cultura não são assim
cabeçudas. Estão onde devem estar para servir-me.
Se quero ver meus sapatos, olho na direção em que devem
estar, vejo-os e utilizo-me deles. Isto é a essência da
cultura. Se quero ver a Lua enquanto fenômeno da
natureza, embora saiba que atualmente a Lua não mais
está onde está por necessidade, mas agora está onde
deve estar para servir de plataforma para viagens rumo a
Vênus. Ainda não sou capaz de ver a utilidade da Lua.
Vejo-a cabeçudamente inútil. Vejo-a como se fosse ainda
satélite natural da Terra.
Mas meu olhar não deu resposta satisfatória à
minha pergunta. Não perguntei porque vejo a Lua como
coisa natural a despeito da NASA, mas porque a vejo
assim a despeito do fato de ser ela, desde sempre, produto
do aspecto “urânico” da minha cultura. Não perguntei,
portanto, pela minha incapacidade de integrar conhecimento novo, mas pela minha incapacidade de rememorar origens. Devo ajudar meu olhar para provocá-lo a dar
resposta a uma pergunta assim difícil. Por que não vejo
que a Lua foi originalmente provocada por minha cultura, mas a vejo como se fosse dada? A resposta começa a
articular-se. Porque sou ambivalente quanto à minha
cultura. De um lado, admito que minha cultura é composta de coisas que esperam, fielmente, serem por mim
utilizadas. De outro lado, devo admitir que não posso
passar sem tais coisas. Por isso, a Lua é o exato contrário
dos meus sapatos. A Lua é necessária, mas dispensável.
a Lua
viLém fLuSSer
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33
Os sapatos são deliberados (desnecessários), mas indispensáveis. A Lua impõe suas regras sobre mim por sua
cabeçuda necessidade. Os sapatos me oprimem por sua
desnecessária indispensabilidade. Por isso, não posso ver
que a Lua foi, originalmente, provocada por minha
cultura. Por que teria minha cultura provocado algo
necessário e dispensável?
É que minha visão é deformada por um preconceito
que faz parte do senso comum da minha cultura: tudo
que é necessário e dispensável chamo “natureza”, tudo
que é desnecessário e indispensável chamo “cultura”.
Progresso é transformar coisas necessárias e dispensáveis em desnecessárias e indispensáveis. Natureza é
anterior à cultura, e progresso é transformar natureza
em cultura. Quando a NASA tocou a Lua e a transformou
em plataforma, foi dado mais um passo em direção
ao progresso.
Tal preconceito do senso comum é logicamente
contraditório, ontologicamente falso, existencialmente
insustentável, e deve ser abandonado. E, se conseguir
afastá-lo, verei a Lua mais claramente. Vejo agora,
surpreso, que a Lua, longe de ser fenômeno da natureza
em vias de transformar-se em cultura, é, e sempre foi
fenômeno da cultura que está começando a transformar-se em natureza. Eis o que é, na realidade, cultura:
conjunto de coisas necessárias que se tornam progressivamente mais indispensáveis. E eis o que é, na realidade,
natureza: conjunto de coisas desnecessárias e dispensáveis. Natureza é produto tardio e luxo da cultura.
O meu olhar para a Lua o prova, da seguinte maneira:
Imaginemos por um instante que a NASA tivesse
realmente transformado a Lua de natureza em cultura.
Então seria um caso excepcionalmente feliz para um
“retorno à natureza”. Bastaria cortar as verbas da NASA e
a Lua voltaria a ser assunto para poetas, e escaparia à
competência dos tecnocratas. Porque o romantismo
(a partir de Rousseau até inclusive os hippies) é isto: cortar
as verbas da NASA. Mas terá sido isso um “retorno”? Não,
terá sido um avanço. Antes da NASA, a Lua era produto da
cultura “urânica” ocidental que tinha por meta projetada
a sua derradeira manipulação pela NASA. Os nossos
antepassados neolíticos olharam para a Lua (e assim a
“pró-duziram”) a fim de transformá-la, em última instância, em plataforma para Vênus. E é isto que estamos
vendo quando para ela olhamos, nós, os seus descendentes: símbolo de fertilidade, deusa, satélite natural, são
várias fases do caminho rumo à plataforma. Vemos a Lua
sempre como potencial plataforma, embora não o saibamos conscientemente. A NASA está em germe dentro do
primeiro olhar dirigido rumo à Lua.
Pois cortar as verbas da NASA seria um passo além
da própria NASA. Transformaria a Lua em objeto de “l’art
pour l’art”, desnecessário, dispensável, e cantável por
poetas. E a um tal objeto podemos chamar “objeto de
natureza” em sentido existencialmente sustentável. Tal
transformação de cultura em natureza está se dando por
todos os cantos. Nos Alpes, nas praias, nos subúrbios das
grandes cidades. Os românticos do século Xviii “descobriram” a natureza (isto é, a inventaram), e os românticos
do nosso “fin de siècle” a estão realizando. Um dos
métodos de tal transformação se chama “ecologia aplicada”. Se tal método for aplicado à Lua, ela virará natureza. De maneira que quando formos olhar, em noites
claras, a Lua, e a virmos enquanto fenômeno da natureza,
estaremos vendo não o passado pré-NASA da Lua, mas o
seu estado pós-NASA. A nossa visão será profética, isto é,
a Lua
viLém fLuSSer
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35
2013-05-16
19:27
inspirada pelo romantismo. E, com efeito, é isto que
sempre fazemos: olhamos a Lua romanticamente. Por
isso a vemos como se já fosse objeto da natureza, e não
como sabemos que ela é: objeto de uma cultura que visa
transformá-la em plataforma.
Resposta perturbadora esta. A Lua é vista como
objeto de natureza, isto é, como derradeiro produto da
nossa cultura. Como, em tal situação, engajar-me em
cultura, se ela tende a transformar-se em sua própria
traição, em romântica natureza? Tal pergunta, no
entanto, não toca a Lua. Ela continua imperturbável em
seu caminho necessário e por enquanto dispensável.
Perguntar assim nada adianta. Nada adianta levar até ela
os olhos. “Lift not your eyes to it, for it moves impotently
just as you and I.”
Temp 10°C
Umidade 66%
a Lua
Vento 10 Km/h
36
(2008)
A mEDiÇÃO DO muNDO
ANNETTE HOrNBAcHEr
NumA RARA uNANimiDADE, os representantes da política
mundial e das ciências naturais atribuem o ameaçador
aquecimento do clima da Terra à ação antropogênica, ou
seja, à maciça emissão de gases de efeito estufa a qual,
por sua vez, é consequência direta da industrialização.
Faz pouco tempo que essa constatação vem sendo
oficialmente aceita pelos políticos do mundo inteiro. No
entanto, desde o início os efeitos negativos da industrialização sobre o meio ambiente natural das pessoas têm
sido reconhecidos e lamentados. Ainda no século XiX
iniciou-se – principalmente nos EuA – um movimento de
defesa da natureza que levou à construção idealizada de
uma natureza intocada pelo homem e carente de proteção. Esse movimento desembocou na criação de reservas
naturais a salvo da exploração industrial, bem como na
ideia de “povos naturais” que, como representantes dos
primórdios da história da humanidade, conviveriam em
harmonia com uma “natureza” eternamente em equilíbrio. Da mesma maneira que o conceito de “povo natural”
38
demonstrou ser um mito eurocêntrico, a ideia da conservação da natureza também pode se revelar insuficiente.
Ambas permanecem no contexto de um projeto moderno
de realidade que é parte do problema, e não a sua solução.
Para clarificar em que consiste este projeto especificamente moderno e como ele se diferencia de outras
circunstâncias mundiais, é preciso, antes de tudo, traduzir o diagnóstico científico de mudanças climáticas e
de industrialização em categorias culturais. Ao fazê-lo,
logo descobrimos que as causas das mudanças climáticas
não são simplesmente antropogênicas e sim consequências concretas daquela cultura europeia contemporânea
cuja visão de mundo e de humanidade gerou a industrialização moderna. A crise ecológica global, portanto,
expressa o efetivo domínio da visão de mundo e do
modelo de vida eurocêntricos – quer dizer, da cultura
ocidental – em relação a outras formas de vida, às quais
impõe sem piedade seus efeitos colaterais.
Por outro lado, a crescente consciência da crise
ecológica aponta que há muito mais em questão do que a
mera erosão de litorais longínquos: o que está em jogo
não é nada menos do que a amplitude e a capacidade de
resistência de uma visão de mundo eurocêntrica baseada
na ciência que tem sido, ao longo de muitos séculos, o
paradigma do progresso e o motor de um modelo de
industrialização que se autoconsidera a vanguarda do
desenvolvimento humano. Esta orgulhosa autoconfiança
começou a ruir no exato momento em que se evidenciou
que, se a ciência moderna abriu dimensões jamais
imaginadas do domínio da natureza, infelizmente
também produz efeitos colaterais que não é capaz de
antecipar nem de controlar. Para dissolver a contradição entre a dominação da natureza pela técnica e a
39
incontrolável mudança climática, será preciso, portanto,
mais do que uma solução técnica – talvez uma mudança
do paradigma da visão eurocêntrica de mundo e de estilo
de vida que, em última análise, dissesse respeito ao
próprio conceito de natureza?
Num primeiro momento, limitemo-nos a perguntar
de que visão cultural de mundo nasceu a moderna
industrialização e em que esta se diferencia das condições de vida de sociedades não europeias.
É comum definir-se a visão de mundo europeia
moderna pela sua compreensão objetiva e metódica da
natureza. É importante ressaltar, porém, que esta não
se fundamenta em nenhuma cognição racional, mas que
reflete em primeiro lugar um programa cultural que só
reconhece como sendo real o que é passível de explicação
e manipulação racional, quer dizer, com uma relação
de causa e efeito. Portanto, desde os primórdios a ciência
empírica tem um fundamento ideológico e, ao mesmo
tempo, utópico, pois o controle racional exigido é um
projeto interminável. Esta utopia se torna especialmente
nítida na fábula Nova Atlântida, escrita no início da
Era Moderna pelo fundador da ciência empírica, Francis
Bacon. Dor, doenças e colheitas perdidas desaparecem
do mundo ideal de Bacon, marcado pela ciência e regulado pela técnica, porque a natureza dentro do homem
e à sua volta é controlada sem brechas com o objetivo
de servir em seu benefício e à sua felicidade. O cientista
assume o lugar do santo e substitui ademais decisões
políticas ao eliminar, com ajuda da técnica, todos os
conflitos humanos potenciais causados por doenças,
escassez de recursos e catástrofes naturais.
O que torna a fábula de Bacon tão interessante é a
clareza com que ressalta o caráter utópico da ciência e da
técnica. A tentativa de atingir um estágio de falta total de
sofrimento humano através da conquista racional da
natureza gera precisamente aquele conceito cultural que
continua sobrevivendo na dinâmica da industrialização
global e cuja promessa se constitui em “humanizar” a
natureza, transformando-a em paraíso terrestre.
De lá para cá, este ideal já se espatifou nos efeitos
indesejados e incontroláveis da industrialização, e foi
assim que as sociedades industriais passaram a perceber
a mudança irreversível do clima, antes de tudo, como
crise profunda de sua identidade cultural.
Não é um acaso, portanto, que, neste contexto, tenham
sido descobertas tribos pré-industriais nas selvas da
América Latina até o Sudeste Asiático consideradas
“guardiãs da Terra” e cuja forma de vida é vista como
alternativa “ecocêntrica” à dominação técnica e “antropocêntrica” da natureza. Mas essa alternativa romântica
se baseia em premissas questionáveis: pressupõe que a
falta de industrialização equivalha à adaptação a um
equilíbrio ecológico atemporal e exclua interferências
humanas maciças. Essa visão não apenas ignora as
diferenças fundamentais entre o conceito moderno de
natureza e projetos de mundo extraeuropeus, mas
também pressupõe prematuramente que a crise ecológica
deva ser pensada como alienação da sociedade humana
“da” natureza.
Na verdade, a utopia de Bacon sugere mais a conclusão oposta, a de que a crise ecológica não se fundamenta
tanto no distanciamento do homem em relação à natureza, e sim, pelo contrário, na vontade especificamente
moderna de humanizar totalmente a natureza como
nunca antes. O conceito moderno de natureza se destaca
principalmente pelo fato de oscilar entre dois extremos, o
a mediçãO dO mundO
annette hOrnbacher
40
41
de uma total dominação da natureza pelo homem e o da
total adaptação do homem a um estado de equilíbrio
ecológico. Em outras palavras: exploração da natureza e
a conservação da natureza são duas faces da mesma
visão de mundo.
As visões de mundo de sociedades não europeias vão
de encontro a esta alternativa por não imaginarem
nenhuma natureza ou nenhum “meio ambiente” independente do homem e, consequentemente, não procurarem nem domínio nem adaptação a um ecossistema
estático. O que encontramos aqui é mais uma inter-relação ente atores humanos e não humanos, sendo os
últimos considerados como contrapartes de uma história
em movimento e jamais como uma natureza atemporal
e muito menos “intocada”. Isso é evidenciado exemplarmente pelos habitantes primitivos da Austrália que,
apesar de sua tecnologia rudimentar, forjaram a aparência atual de seu espaço vital natural através de interferências maciças e principalmente de queimadas. Não se
pode falar, neste caso, de uma adaptação passiva a uma
natureza preexistente, trata-se antes de uma coevolução
dirigida pelo homem da qual fazem parte, neste caso, a
transformação de vastas regiões do continente australiano em estepes e possivelmente o extermínio de muitas
espécies animais.
O fato de essas ingerências terem sido menos destruidoras do que as dos colonizadores europeus tem a ver
principalmente com o fato de que, para os aborígines, seu
mundo da vida não é uma “natureza” sistematicamente
dominável que o homem enfrenta como um objeto. Sua
compreensão do mundo é marcada pelas relações de
parentesco entre diversos clãs e determinados fenômenos do seu mundo da vida, entrelaçados com a estrutura
social: determinadas árvores, fontes de água e formações
rochosas são vistas como traços vivos e legados de seres
estranhos e míticos que devem ser respeitados e lembrados, pois marcaram o mundo e o homem em sua configuração atual como espaço vital significativo que não
pode ser substituído por leis gerais ou ser melhorado pelo
ser humano.
Esse conceito se diferencia da moderna visão do
mundo basicamente por não pressupor o próprio mundo
da vida como uma natureza que pode ser definida em
todas as suas leis sem brecha nenhuma, e sim o reconhece como coexistência historicamente mutável de
atores humanos e não humanos. A prática humana,
nesses casos, não se guia por leis naturais universais que
possibilitam ingerências humanas, e sim pelo respeito
por fenômenos individuais vivenciados como a fronteira
do controle humano. Na cultura aborígine tradicional,
portanto, a exploração sistemática de recursos naturais
faz tão pouco sentido quanto medidas de proteção à
natureza. O que há para proteger, isso sim, são sempre as
circunstâncias especiais de um mundo da vida desde
sempre marcado também por interferências humanas.
Visto assim, seria interessante considerar se não é o
conceito moderno de uma natureza atemporal regulada
por leis universais e, com ele, a alternativa da subjugação
racional da natureza e da adaptação ecológica à natureza
que forma o contexto conceitual da crise ecológica.
Ambas as variantes colocam a liberdade de ação humana
frente a uma natureza controlável, enquanto a mudança
climática irreversível nos confronta com o problema
irritante da historicidade imprevisível – e, com ela, da
indisponibilidade da natureza. Na dinâmica da mudança
climática, o próprio ser humano se torna parte de uma
a mediçãO dO mundO
annette hOrnbacher
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2013-05-16
19:27
tentativa de ordenação que há muito já lhe escapou,
e assim se impõe inesperadamente um princípio dos
mitos australianos: a natureza já não é mais o contraponto atemporal ou a base, e sim um aspecto ambivalente da história humana. Só na sequência desse experimento revelar-se-á se o conceito ocidental de natureza
ainda oferece uma saída para as contradições insolúveis
da industrialização global, ou se ele deve ser mudado
no confronto com outros conceitos, mais próximos
da realidade.
Temp 10°C
Umidade 66%
a mediçãO dO mundO
Vento 10 Km/h
44
(1960)
SObRE A
imPORTâNciA DOS
DESASTRES NATuRAiS
Sem falar no céu e no oceano.
Mas é nos desastres imprevisíveis que as mais altas
formas têm lugar.
Eles são raros e devemos ser gratos por eles.
WALTEr dE mAriA
AchO quE OS desastres naturais têm sido encarados da
maneira errada.
Os jornais sempre dizem que são ruins, uma pena.
Eu gosto de desastres naturais e penso que talvez eles
sejam a mais alta forma de arte possível de
experienciar.
Não acredito que a arte possa confrontar-se com a
natureza.
Coloque o melhor objeto que você conhece ao lado do
Grand Canyon, das Cataratas do Niágara, das
sequoias.
As coisas grandes sempre ganham.
Agora pense em uma enchente, um incêndio em uma
floresta, um tornado, um terremoto, um furacão,
uma tempestade de areia.
Pense em gelo acumulado se quebrando. Crack.
Se todas as pessoas que vão a museus pudessem ao
menos sentir um terremoto.
46
47
Vento 10 Km/h
Umidade 66%
Temp 10°C
(2011)
ESPERANDO GAiA.
A cOmPOSiÇÃO DE
um muNDO Em cOmum
POR mEiO DA ARTE
E DA POLíTicA
BrUNO LATOUr
2013-05-16
19:27
Resumo: Não há uma única instituição capaz de cobrir,
inspecionar, dominar, gerir, lidar ou simplesmente traçar
problemas ecológicos com formato e escopo de grande porte.
Muitos dos problemas são demasiadamente intratáveis e
emaranhados em interesses contraditórios. Temos problemas,
mas não temos o público que deveria acompanhá-los. Como
podemos chegar a imaginar acordos em meio a tantos interesses entrelaçados? Serão analisadas diversas tentativas para
enfrentar problemas ecológicos por meio da conexão de
ferramentas de representação científica, além daquelas
ligadas à arte e à política, e também apresentaremos o
programa de Experimentação em Arte e Política que está
sendo oferecido na Sciences Po desde setembro de 2010.
O quE DEvEmOS fazer quando nos deparamos com uma
crise ecológica que não encontra precedentes em
nenhuma das crises econômicas ou de guerra, e cuja
escala é certamente formidável, mas à qual estamos
habituados de certa forma em função de sua origem
49
em grande parte, essa desconexão e o que fazemos em
relação a isso.
Existe alguma maneira de fazer uma ponte entre a
escala dos fenômenos de que ouvimos falar e o minúsculo
Umwelt de dentro do qual testemunhamos, tal e qual um
peixe dentro do aquário, esse oceano de catástrofes que
está para eclodir? Como podemos nos comportar de
maneira sensata quando não dispomos de nenhuma
estação de controle de solo para a qual possamos enviar a
mensagem de socorro “Houston, temos um problema”?
O mais estranho dessa distância abismal entre
nossas pequenas preocupações egoístas de humanos e as
grandes questões da ecologia é o fato de ela ser exatamente aquilo que foi tão valorizado por tanto tempo em
tantos poemas, sermões e palestras edificantes sobre as
maravilhas da natureza. Se todo esse aparato era tão
maravilhoso assim, isso acontecia justamente por causa
dessa desconexão: sentir-se impotente, maravilhado e
totalmente dominado pelo espetáculo da “natureza” é boa
parte daquilo que passamos a apreciar, pelo menos desde
o século XiX, dentro do conceito de sublime.
Vale relembrar Shelley:
demasiadamente humana? O que fazer quando nos
dizem, dia após dia, e de maneiras cada vez mais estridentes, que a civilização atual está condenada, e que a
própria Terra vem sendo tão manipulada com isso tudo
que não há meios de retomar nenhum de seus vários
estados de estabilidade do passado? O que fazer quando
se lê, por exemplo, um livro como o de Clive Hamilton,
intitulado Requiem for a Species: Why We Resist the Truth
about Climate Change 1 – no qual a espécie em questão não
é o dodô nem a baleia, mas sim nós, você e eu? Ou então
o livro Guerras climáticas: Por que mataremos e seremos
mortos no século XXI, de Harald Welzer, que é agradavelmente dividido em três partes: como matar ontem, como
matar hoje e como matar amanhã! A cada capítulo,
para somar os mortos, é preciso acrescentar diversas
ordens de magnitude à sua calculadora!
O tempo das grandes narrativas já ficou para trás, sei
disso, e pode até parecer ridículo abordar uma questão
tão grande a partir de uma porta de entrada tão pequena.
Mas esse é justamente o motivo pelo qual desejo fazer
isso: o que podemos fazer quando as perguntas são
grandes demais para todos, e especialmente quando são
grandes demais para o escritor, ou seja, para mim?
Um dos motivos pelos quais nos sentimos tão
impotentes quando solicitados a nos preocupar com a
crise ecológica, o motivo pelo qual eu, para início de
conversa, me sinto tão impotente, é por causa da total
desconexão entre o alcance, a natureza e a escala dos
fenômenos, além do conjunto de emoções, hábitos de
pensamento e sentimentos que seriam necessários para
lidar com essas crises – nem mesmo para reagir a elas,
mas simplesmente para dedicar algo mais que um
simples ouvido distraído. Por isso, este ensaio vai abordar,
Como adorávamos nos sentir pequeninos quando éramos
abarcados pelas forças portentosas das Cataratas do
Niágara ou a imensidão impressionante das geleiras do
eSperandO Gaia
brunO LatOur
50
Nos bosques selvagens, por entre as montanhas
solitárias,
Onde as cachoeiras dos arredores lançam-se para
a eternidade,
Onde a mata e os ventos rivalizam, e um amplo rio
rebenta e divaga incessantemente sobre suas rochas 2.
51
Entretanto, o que atende por sublime ultimamente,
agora que somos convidados a considerar outra desconexão, desta vez entre nossas ações humanas gigantescas, de
um lado, e nossa total falta de compreensão daquilo que
fizemos coletivamente, de outro?
Vamos refletir um minuto sobre o que significa a
noção de “antropoceno”, essa incrível invenção lexical
proposta por geólogos para classificar o período atual.
Acabamos nos dando conta de que o sublime evaporou
assim que deixamos de ser considerados como esses
seres humanos franzinos dominados pela “natureza”,
mas, pelo contrário, como um gigante coletivo que, em
termos de terawatts, intensificou-se de tal forma a ponto
de se tornar a principal força geológica agindo sobre a Terra.
O que é tão irônico nesse argumento do antropoceno
é que ele surge justamente quando os filósofos de vanguarda falavam de nosso tempo como sendo o “pós-humano”; e exatamente na época em que outros pensadores sugeriam chamar esse mesmo momento de “fim
da história”. Parece que tanto a história quanto a natureza têm mais de uma carta na manga, considerando
que estamos presenciando agora o aumento na velocidade e nas proporções da história não com uma abordagem pós-humana, mas sim com algo que poderíamos
chamar de reviravolta pós-natural! Se é verdade que o
“antropo” é capaz de literalmente moldar a Terra (e não
apenas metaforicamente por meio de seus símbolos),
estamos testemunhando agora um antropomorfismo sob
efeito de esteroides.
Em seu excelente livro Eating the Sun 4, Oliver
Morton oferece uma escala de energia bastante interessante. Nossa civilização global é movida por cerca de
treze terawatts (TW), enquanto o fluxo de energia do
centro da Terra é de cerca de quarenta terawatts. Sim,
estamos no patamar da tectônica das placas. Claro que
esse dispêndio de energia não é nada se comparado aos
170 mil TW que recebemos do sol, mas representa bastante coisa se comparado à produção primária da biosfera (130 TW). E se todos os humanos consumissem tanto
quanto os norte-americanos, operaríamos na base de
100 TW, ou seja, o dobro das placas tectônicas. Isso é uma
façanha e tanto. “É um avião? É a natureza? Não, é o
Super-Homem!” Acabamos nos transformando em
Super-Homem sem nos darmos conta de que, lá de
dentro da cabine telefônica, não só trocamos de roupa,
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brunO LatOur
Ártico, ou ainda a paisagem desolada e seca do Saara.
Que sensação deliciosa perceber nosso tamanho em
comparação com o das galáxias! Somos pequenos quando
comparados à Natureza, mas, no que diz respeito à
moralidade, somos muito maiores que até mesmo Sua
mais grandiosa demonstração de poder! Tantos poemas,
tantas meditações sobre a falta de comensurabilidade
entre as forças duradouras da natureza e os pequenos
humanos franzinos que alegam conhecê-la ou dominá-la.
Então, seria possível dizer, afinal, que essa desconexão sempre existiu e que é ela a origem interna desse
sentimento do sublime.
O universo perpétuo das coisas
Flui pela mente e revolve suas rápidas ondas
Ora escurecidas – ora resplandecentes – ora refletindo
a obscuridade –
Ora emprestando seu esplendor, de cujas nascentes
secretas
A fonte do pensamento humano retira seus tributos 3.
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mas também crescemos imensamente! Podemos nos
orgulhar disso? Na verdade, não muito, e eis o problema.
Essa desconexão se alterou de tal forma que não gera
mais nenhuma percepção do sublime desde que somos
incitados a assumir responsabilidade pelas mudanças
rápidas e irreversíveis vivenciadas na superfície da
Terra, ocasionadas em parte como resultado da quantidade gigantesca de energia que gastamos: pedem-nos
para que voltemos novamente o olhar para as Cataratas
do Niágara, mas agora com o sentimento ranzinza de que
elas podem simplesmente parar de jorrar (uma pena
para as cachoeiras dos arredores que se lançam para a
eternidade, como diz Shelley); pedem-nos para observar o
mesmo gelo eterno, exceto pelo fato de que, agora, temos
o sentimento pesaroso de que talvez ele não dure para
sempre; somos mobilizados para entrever o deserto
ressecado, mas acabamos percebendo que ele se expande
inexoravelmente por causa do uso desastroso que fazemos do solo! Talvez somente as galáxias e a Via Láctea
continuem disponíveis para esse antigo jogo de humildade do deslumbramento, por estarem além da Terra
(e, portanto, além de nosso alcance, por estarem situados
na parte da natureza que os antigos chamavam de supralunar – retomaremos esse assunto mais adiante).
Como sentir o sublime quando a culpa está remoendo suas entranhas? E remoendo de uma maneira nova
e inesperada, porque é claro que eu não sou responsável
por isso, muito menos você, você, nem você. Nenhuma
pessoa é, por si só, responsável.
Tudo acontece como se fosse subvertido o antigo
equilíbrio entre a contemplação da lei moral dentro de nós
e aquela das forças inocentes da natureza fora de nós.
É como se todos os sentimentos de deslumbramento,
junto com a moralidade, tivessem trocado de lado. O
verdadeiro deslumbramento atual está na pergunta:
“Como posso ser acusado de ter tanta culpa sem sentir
culpa alguma, sem ter feito nada de mau?” O ator
humano coletivo a quem se atribui a realização da ação
não é um personagem que pode ser pensado, dimensionado ou mesmo medido. Você nunca conheceu esse ator.
Não se trata nem da raça humana compreendida em sua
totalidade, considerando que o criminoso é apenas parte
da raça humana, formada por ricos e abastados, um
grupo que não tem forma definida nem limites, muito
menos representação política. Como poderíamos ser
“nós” os responsáveis por “tudo isso”, se não há política,
moral, pensamento, nem sequer uma entidade com
sensibilidade capaz de assumir esse “nós” – nem ninguém que possa dizer, orgulhosamente: “Pode parar por
aí, amigão”? Basta lembrar as reuniões lamentáveis de
Copenhague em 2009, nas quais os chefes de Estado
negociaram em segredo um tratado não obrigatório,
dizendo impropérios e discutindo feito crianças por
causa de um saco de bolinhas de gude.
Mas o outro motivo que levou ao desaparecimento
do sublime, o motivo pelo qual nos sentimos tão culpados
por termos cometido crimes pelos quais não sentimos
nenhuma responsabilidade, é a complicação agregada
trazida à discussão pelos “céticos” do clima ou, para
evitar usar um termo tão positivo e venerado, os negadores do clima.
Devemos conferir a esses personagens o mesmo
tempo para equilibrar o posicionamento dos climatologistas – situação em que arriscaríamos rejeitar nossa responsabilidade e nos associar aos criacionistas, lutando contra
as teorias de Darwin e toda a biologia? Ou devemos
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assumir posições e nos recusar a oferecer a esses negadores uma plataforma para poluir o que provavelmente é a
maior certeza que jamais teremos sobre como causamos a
destruição de nosso próprio ecossistema – situação em
que arriscaríamos ser considerados parte de uma cruzada
ideológica destinada a retomar a moral em nossas interações com a natureza e também repetir o julgamento de
Galileu, como se ignorássemos a voz solitária da razão
lutando contra a multidão de especialistas?
Não é de admirar que, diante dessa nova desconexão,
muitos de nós passemos da admiração diante das forças
inocentes da natureza a uma completa prostração – e, por
vezes, até damos alguma trela aos negadores do clima.
Como argumentado por Clive Hamilton em Requiem
for a Species, de certa forma somos todos negadores do
clima, pois não temos nenhuma percepção desse personagem coletivo – o antropo do antropoceno, o “humano”
da catástrofe “feita pelos humanos”. É por meio de nossa
própria indiferença embutida que chegamos a negar o
conhecimento de nossa ciência. Pense um pouco: seria
ótimo voltar a um passado onde a natureza ainda pudesse
ser sublime, e nós, pequenos humanos franzinos, na mais
plena irrelevância, estivéssemos nos deleitando no
sentimento interno de nossa superioridade moral em
relação à pura violência da natureza. De algum modo,
essa desconexão é a verdadeira origem da negação em si.
O que significa ser moralmente responsável em
tempos de antropoceno, quando a Terra é moldada por nós,
por nossa falta de moralidade – exceto pelo fato de que
não existe um “nós” reconhecível de maneira aceitável a
quem possamos relegar o peso de tal responsabilidade –,
e até mesmo esse laço que conecta nossa ação coletiva à
sua consequência é colocado em xeque?
Para resumir meu primeiro tópico, como ainda é
possível querer sentir o sublime enquanto se assiste às
cachoeiras “eternas” cantadas por Shelley, quando,
número um, você sente, ao mesmo tempo, que elas
podem desaparecer; quando, número dois, você pode ser
o responsável pelo seu desaparecimento; quando,
número três, você se sente duplamente culpado por não
se sentir responsável; e considerando ainda a manifestação de um quarto nível de responsabilidade, por não ter
mergulhado fundo o suficiente naquilo que é chamado de
“polêmica climática”? Você não leu o suficiente, não
pensou o suficiente, não sentiu o suficiente.
Aparentemente, não existe solução além de explorar
a desconexão e esperar que a conscientização humana
eleve nosso senso de comprometimento moral ao nível
exigido por este que é o globo de todos os globos, a Terra.
Mas se nos pautarmos pelas notícias recentes, apostar
nessa conscientização é um pouco arriscado, considerando que a quantidade de cidadãos americanos,
chineses e até britânicos que negam a origem antrópica da
mudança climática está aumentando em vez de diminuir
(até mesmo na França, tão “racionalista”, um antigo
ministro da pesquisa de elevada reputação, o Professor
Alegre, conseguiu convencer boa parte do público
esclarecido de que existe tanta polêmica na questão
climática que, por fim, não precisamos nos preocupar
com ela).
Como acontece no filme Melancolia, de Lars von
Trier, parece que todos nós preferiríamos estar apreciando em silêncio o espetáculo solitário da colisão de um
planeta com nossa Terra contando apenas com a proteção de uma cabana de criança feita com alguns galhos,
com ajuda da Tia Quebra-Aço. É como se o Ocidente,
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bem quando a atividade cultural de dar forma à Terra
está finalmente chegando ao ponto de ter significação
literal, e não apenas simbólica, recorresse à ideia totalmente ultrapassada de usar a mágica como meio de
esquecer completamente o mundo. Na impressionante
cena final de um filme ainda mais surpreendente, as
pessoas hiper-racionais retrocedem aos efeitos dos
antigos rituais primitivos – proteger mentes infantis
contra o impacto da realidade. Von Trier pode ter captado
exatamente o que acontece quando o sublime desaparece.
Você acha que o Juízo Final traria os mortos de volta à
vida? Nada disso. Quando as cornetas do julgamento
soarem em seus ouvidos, você irá se entregar à melancolia! Nenhum novo ritual irá salvar você. Vamos apenas
nos sentar numa cabana mágica e continuar negando,
negando, negando até chegarmos ao amargo fim.
Então o que fazemos quando estamos encarando
uma questão que é simplesmente grande demais para
nós? Se não a negação, então o quê? Uma das soluções é
ficarmos atentos às técnicas por meio das quais se obtém
uma escala e aos instrumentos que tornam possível a
comensurabilidade. Afinal, a própria noção de antropoceno implica tal medida comum. Se é verdadeiro que “o
homem é a medida para todas as coisas”, isso também
poderia funcionar nessa conjuntura.
Um dos princípios dos estudos científicos e da teoria
ator-rede é que um sujeito nunca deve presumir que as
diferenças de escala são preexistentes e, em vez disso,
deve sempre procurar saber como a escala é produzida.
Felizmente, esse princípio se adéqua de maneira ideal à
crise ecológica: não há nada da Terra enquanto Terra que
não tenha chegado ao nosso conhecimento por meio das
disciplinas, instrumentos, mediações e expansões de
redes científicas – seu tamanho, sua composição, sua
longa história e assim por diante. Até mesmo agricultores dependem do conhecimento especial dos agrônomos,
dos cientistas do solo e outros. E isso é ainda mais verdadeiro quando falamos do clima global: por definição, o
globo não é global, mas sim um modelo de escala que se
conecta por meio de redes seguras e confiáveis a estações
onde pontos de dados são coletados e enviados de volta a
seus modeladores. Este não é um argumento relativista
capaz de colocar tal ciência em dúvida, mas sim um
princípio relacionista que explica a solidez de disciplinas
que servem para estabelecer, multiplicar e fazer a manutenção dessas conexões.
Sinto insistir no que parece ser uma distração banal
do assunto, mas não há meios de explorar uma saída
dessa desconexão, se não esclarecermos o instrumento de
dimensionamento que gera o global no âmbito local. Meu
argumento (na verdade, o argumento de estudos científicos) é que não existe efeito de zoom: as coisas não são
organizadas por tamanho como se fossem caixas dentro
de caixas. Elas costumam ser organizadas por conectividade, como se fossem nós conectados a outros nós.
Ninguém demonstrou isso melhor que Paul
Edwards em seu ótimo livro sobre a ciência climática,
A Vast Machine 5. Se os meteorologistas e cientistas
do clima que se seguiram foram capazes de obter uma
visão “global”, é porque eles conseguiram construir
modelos cada vez mais poderosos para recalibrar
os pontos de dados suscitados de um número cada vez
maior de estações ou documentos – satélites, anéis
circulares no tronco das árvores, registros de navegadores
mortos há tempos, análises de núcleos de gelo e assim
por diante.
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Curiosamente, é exatamente isso que leva os negadores do clima a suas negações: eles consideram esse conhecimento muito indireto, muito mediado, muito distante do
acesso imediato (sim, esses incrédulos São Tomés epistemológicos aparentemente acreditam apenas no conhecimento não mediado). Eles ficam enfurecidos ao ver que
nenhum ponto de dados por si só é portador de algum
sentido, que todos esses dados precisam ser recalculados e
reformatados. Assim como faziam os negacionistas em
relação aos crimes do passado, os negadores do clima
utilizam, para fins de crimes futuros, um marco positivista para incutir lacunas naquilo que é um quebra-cabeça
extraordinário de interpretações entrecruzadas de dados.
Não se trata de um castelo de cartas, mas sim de uma
tapeçaria, provavelmente uma das mais bonitas, resolutas
e complexas já tecidas. É claro que há muitas lacunas
nela, pois ter lacunas é o cerne da questão da tecelagem de
nós e enredos. Mas essa tapeçaria é surpreendentemente
resiliente em função da maneira com que foi tecida – que
permite a recalibragem de dados por modelos e vice-versa.
Parece que a história do antropoceno (por definição, as
ciências climáticas são um conjunto de disciplinas históricas) é o evento mais bem documentado que já existiu. Paul
Edwards até chega a demonstrar, no final do livro, que
nunca saberemos mais a respeito da tendência atual de
aquecimento global, pois nossa ação modifica suas linhas
de base de tal forma, ano após ano, que não teremos mais
uma linha de base para calcular o desvio da média… Que
perversidade: testemunhar a raça humana apagando seus
feitos por meio de desvios de tal magnitude que seus
desvios para além disso se tornam intraçáveis.
O motivo pelo qual é tão importante ressaltar esse
processo lento de tecelagem da tapeçaria que envolve
calibragem, modelagem e reinterpretação é porque ele
mostra que nem mesmo para os cientistas climáticos há
meios de traçar uma correspondência direta com a Terra.
Graças aos lentos processos de calibragem de muitas
instituições de padronização, o que eles fazem é acompanhar cuidadosamente um modelo local a partir do espaço
minúsculo de um laboratório. Por esse motivo, existe
uma desconexão que sequer deve ser compartilhada:
não temos, de um lado, os cientistas se beneficiando de
uma visão globalmente completa do globo e, de outro lado,
os pobres cidadãos comuns com uma visão “local limitada”. Existem apenas vistas locais. Entretanto, alguns de
nós encaramos os modelos de escala conectados, com
base em dados reformatados, por programas cada vez
mais poderosos executados por instituições cada vez
mais respeitadas.
Para aqueles que desejam fazer uma ponte para
solucionar essa lacuna e adentrar a nova desconexão,
esse primeiro plano dos instrumentos de medida pode
oferecer um recurso crucial – desta vez, no âmbito
político. Para o ativista de motivação ecológica, é vão
tentar envergonhar o cidadão comum por não pensar
globalmente o suficiente, por não ter uma percepção da
Terra como tal. Ninguém encara a Terra globalmente
e ninguém enxerga um sistema ecológico a partir do
Nada, o cientista não mais que o cidadão, que o agricultor
ou que o ecologista – ou que uma minhoca, não nos
esqueçamos dela. A natureza não é mais aquilo embarcado por um ponto de vista distante em que o observador,
idealmente, é capaz de mergulhar em um meio para
ver as coisas “como um todo”, mas sim uma montagem
de entidades contraditórias que precisam ser
compostas conjuntamente.
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Esse trabalho de montagem é especialmente necessário se imaginarmos agora o “nós” do qual os humanos
deveriam se sentir parte integrante para assumir responsabilidade pelo antropoceno. Neste momento não existe
um caminho que ligue meu simples ato de trocar uma
lâmpada diretamente ao destino da Terra: essa escada
não tem degraus; essa progressão não tem patamares. Eu
teria que pular, e esse pulo seria um salto mortale e tanto!
Todas as montagens precisam de intermediários: satélites, sensores, fórmulas matemáticas e modelos climáticos, é claro, mas também os Estados-nação, as ONGs, a
conscientização, a moralidade e a responsabilidade. Essa
lição de montagem pode ser seguida?
Um caminho diminuto rumo a essa montagem é
oferecido pelo trabalho de diversos intelectuais persuadidos por mim acerca do que chamamos de “mapeamento
de polêmicas científicas”. Polêmicas não devem ser algo
de que fugimos, mas sim o que deve ser composto, ator
após ator, exatamente à maneira daqueles que modelam a
propaganda climática, ator após ator – o papel de turbulências aéreas, seguido das nuvens, do papel da agricultura, dos plânctons, obtendo a cada vez uma renderização
mais e mais real desse verdadeiro teatro do globo.
Tal tentativa de mapear polêmicas é um exemplo dos
instrumentos que, em parte, fazem uma ponte ligando a
desconexão do tamanho dos problemas que enfrentamos
e o pequeno alcance de nossa compreensão e atenção.
Isso é especialmente verdade se tomarmos as oportunidades oferecidas pela comunicação digital para reunir,
no mesmo espaço óptico, documentos produzidos pela
ciência e documentos oriundos de esferas públicas.
Num primeiro momento, ocorre uma confusão
terrível, como se fatos e opiniões estivessem misturados.
Mas a questão é exatamente essa: fatos e opiniões já estão
misturados, e ficarão ainda mais misturados no futuro. O
que precisamos fazer é tentar não isolar novamente o
mundo da ciência e o mundo da política – como é possível
imaginar manter um programa desses em funcionamento
no tempo do antropoceno, que mistura todas as misturas? –,
mas sim decifrar por meio de uma nova metrologia o
peso relativo das cosmologias enredadas. Como agora são
os mundos que estão em questão, comparemos as cosmologias entre si. Em vez de tentar distinguir o que não é
mais distinguível, faça estas perguntas-chave: que mundo
é esse que você está montando, a que pessoas você se
alinha e com que entidades você está se propondo viver?
Afinal, isso é pura e simplesmente o que permitiu há
pouco aos intelectuais acompanhar como a origem
antrópica dessa “situação climática estranha”, um fato
que foi considerado como bem estabelecido há quinze ou
vinte anos, e que vem sendo reduzido aos olhos de
milhões de pessoas ao nível de mera opinião. Foi possível
para os intelectuais valer-se de maneira muito rápida dos
mesmos instrumentos que nos permitem acompanhar a
produção científica (mecanismos de busca, ferramentas
de cientometria e bibliometria, mapas de blogosferas), as
pessoas, os lobbies, as referências e os fluxos de valores
daqueles que insistem em transformar o assunto em
polêmica. Neste ponto, estou pensando no trabalho de
Naomi Oreskes ou de James Hoggan. Como é interessante ver as conexões feitas entre grandes petrolíferas,
fabricantes de cigarros, antiabortistas, criacionistas,
republicanos e uma visão de mundo composta por poucos
seres humanos e poucas entidades naturais. Se a situação
coloca cosmogramas contra cosmogramas, passemos à
comparação de cosmogramas entre si. A política se
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transformou nisso. Vamos colocar os mundos em rivalidade, já que se trata de uma guerra dos mundos.
Tentei introduzir na filosofia o conceito de composição e “composicionismo” justamente por esse motivo. Não
apenas por ter uma boa ligação com o termo compost 6,
mas também porque descreve exatamente o tipo de
política capaz de trilhar o caminho da ciência climática.
A função pode não ser a de “libertar a climatologia” do
peso indevido da influência política (é isso o que alega o
governador do Texas Rick Perry: os cientistas estão nessa
para ganhar dinheiro e aproveitar a oportunidade para
avançar com um plano socialista que nem Lênin conseguiu impor aos corajosos ianques). Pelo contrário, a função
é de acompanhar os fios da meada com os quais os climatologistas construíram os modelos necessários para trazer
à cena toda a Terra. Com essa lição em mãos, começamos
a imaginar como fazer o mesmo em nossos esforços para
montar um corpo político capaz de assumir sua parte na
responsabilidade pela situação cambiante da Terra.
Afinal de contas, essa mistura de ciência e política é
exatamente o que vem embutido precisamente na noção
de antropoceno: por que continuar tentando separar o
que foi emaranhado pelos próprios geólogos, pessoas
sérias, se é que isso existe? Na verdade, o próprio espírito
da língua já diz tudo isso, conectando termos como
húmus, humano e humanidade. Nós, terráqueos, nascemos
do solo e do pó ao qual retornaremos, e é por isso que o
que costumamos chamar de “humanidades” também são,
de agora em diante, nossas ciências.
Até aqui, insisti em um lado dessa desconexão, aquele
que nos leva à desamparada raça humana vestindo com
relutância a roupa de Super-Homem. Agora é o momento
de voltar a atenção ao outro lado, aquilo que costumáva-
mos chamar de “natureza”. A noção capciosa de antropoceno modifica ambos os lados daquilo que precisa ser
vinculado: o lado humano, obviamente, uma vez que
somos privados da possibilidade de sentir o sublime, mas
também o lado das forças geológicas a que os humanos
passaram a ser alinhados e comparados. Ao mesmo tempo,
enquanto os humanos modificavam o formato da Terra
sem ainda estarem habituados a seus novos trajes gargantuescos, a Terra acabou por se metamorfosear em
algo que James Lovelock sugeriu chamar de Gaia. Gaia é
a maior trapaceira 7 da história atual.
No restante deste ensaio, eu gostaria de explorar o
quanto Gaia pode ser diferente da Natureza das antigas.
Quando reunimos essas duas mutações, uma por parte
dos terráqueos e outra por parte da Terra, podemos nos
vislumbrar em posição levemente mais favorável para
suprir essa lacuna.
Em primeiro lugar, Gaia não é sinônimo de Natureza
por se tratar de algo altamente e terrivelmente local.
Durante o período estudado por Peter Sloterdijk como
sendo o tempo do Globo, ou seja, do século Xvii até o
final do século XX, havia alguma continuidade entre
todos os elementos daquilo que poderia ser chamado de
“universo”, porque ele fora de fato unificado – mas
unificado com muita rapidez. Conforme dito por
Alexandre Koyré, nós deveríamos ter passado de uma
vez por todas de um cosmos restrito para um universo
infinito. Depois de termos atravessado os limites estreitos
desse regime humano, todo o resto era constituído
pela mesma substância material: a terra, o ar, a Lua,
os planetas, a Via Láctea e tudo o mais, até o Big Bang.
Essa é a revolução implicada quando se caracteriza
algo como sendo “de Copérnico” ou “de Galileu”: as
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diferenças entre o mundo sublunar e o supralunar deixaram de existir.
Isto posto, qual não é a surpresa ao ficar sabendo, de
maneira bastante abrupta, que, afinal, existe sim distinção entre os mundos sublunar e supralunar. E ficar
sabendo também que apenas robôs e talvez uma meia
dúzia de astronautas ciborgues podem ir além, mas que o
resto da raça, nós que somos nove bilhões, permaneceremos presos aqui embaixo nisso que mais uma vez se
tornou uma “fossa de corrupção e decadência”, como no
velho cosmos – ou, pelo menos, um local superlotado e
repleto de riscos e consequências indesejáveis. Nada mais.
Nada além. Não há escapatória. Como eu disse antes,
ainda somos capazes de sentir o sublime, mas somente
naquilo que resta de natureza além da Lua, e somente
quando ocupamos uma Visão do Nada. Abaixo disso, não
há mais sublime. Eis aqui uma periodização um pouco
grosseira: depois do cosmos, o universo, mas depois do
universo, mais uma vez o cosmos. Não somos pós-modernos, mas sim pós-naturais.
Em segundo lugar, Gaia não é como a Natureza,
indiferente a nossos apuros. Não se pode dizer que Ela
“se importe conosco” como uma deusa ou como a Mãe
Natureza alardeada em tantos panfletos ecológicos da
Nova Era; nem como a Pachamama da mitologia inca, que
foi ressuscitada recentemente como novo foco da política
latino-americana. Apesar de James Lovelock sempre
ter flertado com metáforas do divino, acho essa exploração
da indiferença de Gaia muito mais espinhosa: porque
Ela é, de uma só vez, extraordinariamente sensível a
nossas ações, mas também se orienta por metas que não
visam nem um pouco nosso bem-estar. Se Gaia é uma
deusa, Ela é uma divindade que conseguimos tirar do
prumo facilmente, ao passo que, em resposta, Ela é
capaz de exigir um tipo de “vingança” (emprestando o
termo do título do livro mais áspero de Lovelock) das
mais estranhas, livrando-se de nós, fazendo-nos “estremecer” até deixar a existência, por assim dizer. Então,
no final das contas, Ela é muito frágil para desempenhar
o papel apaziguador da antiga natureza, muito despreocupada com nosso destino para ser uma Mãe, e muito
incapaz de ser aplacada por acordos e sacrifícios para
ser uma deusa.
Lembre-se da energia dispendida antigamente por
muitos estudiosos para firmar a diferença entre “natureza” e “nutrição” 8. O que acontece agora quando nos
voltamos à “natureza” e percebemos que nós é que
deveríamos estar cuidando dela para que não sejamos
reduzidos à irrelevância com a mudança repentina de
Sua situação de estabilidade? Ela irá resistir. Não precisamos nos preocupar com Ela. Nós é que estamos em
apuros. Ou, então, com esse enigma do antropoceno,
existe algum tipo de fita de Moebius em ação aqui, como
se fôssemos, simultaneamente, aquilo que a envolve –
já que somos capazes de ameaçá-la – enquanto Ela nos
envolve – já que não temos mais para onde correr. Uma
bela de uma trapaceira essa Gaia.
Apesar de não me ser possível percorrer todos os
elementos que compõem a originalidade de Gaia, ainda
preciso concluir com mais dois tópicos.
A terceira e provavelmente mais importante das
características de Gaia é o fato de ser um conceito científico. Ele não teria interesse se fosse associado em nossas
mentes a alguma entidade mística indefinida como a
Aywa, a articulada Gaia do planeta de Pandora mostrada
em Avatar, de James Cameron. Apesar de Lovelock ser
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um cientista heterodoxo há tempos e manter em grande
medida sua posição de dissidente, o verdadeiro interesse
do conceito montado por ele a partir de vários pequenos
elementos, é que ele é montado por esses vários pequenos
elementos cuja maioria vem de disciplinas científicas –
independentemente do nome sugerido a ele por William
Golding. Desenvolver um conceito que não é formado
principalmente por conteúdo científico seria um perda
de tempo, considerando que a exigência de nosso período
é ir atrás do antropoceno ao longo de linhas que são
ditadas por seu caráter híbrido. O que queremos dizer
com espiritualidade foi muito enfraquecido por ideias
errôneas da ciência para ser capaz de oferecer qualquer
alternativa. Nesse sentido, o supernatural é muito pior
que o natural a partir do qual ele se origina. Por isso,
apesar desse nome, até onde temos conhecimento de
estudos religiosos comparativos, Gaia não desempenha
de fato o papel mais tradicional de uma deusa. Até
onde sou capaz de imaginar, Gaia é apenas um conjunto
de loops cibernéticos de eventualidades positivas e
negativas – como demonstrado no conhecido modelo
do Daisy World [Mundo das margaridas] . Um após o
outro, esses loops apenas adquirem, por acaso, um efeito
totalmente inesperado de ampliar as condições para
novos loops positivos e negativos de complexidade ainda
mais intrincada. Não há nenhuma teleologia, nenhuma
Providência, em tal argumento.
É claro que devemos ser cuidadosos com esse rótulo:
quando digo que Gaia é um conceito “científico”, não uso
esse adjetivo no sentido epistemológico de algo que introduz uma diferença radical e rastreável entre verdadeiro e
falso, racional e irracional, natural e político. Abordo isso
em um sentido novo e, de certa forma, muito mais antigo,
do conceito de “científico”, enquanto termo cosmológico
(ou melhor, cosmopolítico) que designa a busca, bem como
a domesticação e a acomodação de novas entidades que
tentam encontrar seu espaço em meio ao coletivo para
além daquele dos humanos, muitas vezes até deslocando
estes. A melhor coisa da Gaia de Lovelock é que ela
reage, sente e pode se livrar de nós sem ser unificada
ontologicamente. Não se trata de um superorganismo
dotado de qualquer tipo de operação unificada.
É exatamente essa total falta de unidade que torna
Gaia um elemento politicamente interessante. Ela não é
uma força soberana que reina sobre nós. Na verdade, em
consonância com o que eu encaro como uma filosofia
saudável do antropoceno, Ela não tem uma atividade
mais unificada que a raça humana, de quem se espera
que ocupe o outro lado dessa ponte. A simetria é perfeita,
considerando que não temos um conhecimento maior
sobre a constituição Dela em relação ao que sabemos
sobre a nossa constituição. É por isso que a Gaia-em-nós
ou o nós-em-Gaia, ou seja, essa estranha faixa de Moebius,
é tão apropriada à tarefa de composição. Ela precisa ser
composta peça por peça, assim como nós. Aquilo que
desapareceu do universo – pelo menos sua parte sublunar – foi a continuidade. Sim, ela é a perfeita trapaceira.
O quarto e último artifício que quero analisar não
poderia deixar de ser bastante deprimente. Toda a
desconexão que percorri aqui se constrói sobre a própria
ideia de uma imensa ameaça à qual reagiríamos de
maneira lenta e seríamos incapazes de nos ajustar. Eis a
mola com a qual a ratoeira foi armada. É claro que,
quando confrontados com uma armadilha tão ameaçadora, os mais razoáveis de nós reagem com o argumento
totalmente plausível de que previsões apocalípticas são
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tão antigas quanto a humanidade. E é fato que a minha
geração, por exemplo, passou pela ameaça do holocausto
nuclear, analisado com maestria por Gunther Anders em
termos muito semelhantes àqueles usados hoje em dia
por profetas do Juízo Final – e, ainda assim, cá estamos
nós. Do mesmo modo, historiadores do meio ambiente
podem argumentar que o alerta contra a morte da Terra
é tão antigo quanto a chamada Revolução Industrial.
De fato, uma boa dose de ceticismo saudável parece estar
sempre garantida ao ler, por exemplo, que Dürer, o
próprio mestre Dürer, estava ao mesmo tempo preparando sua alma para o fim do mundo que era esperado
para 1500, enquanto investia boa quantidade de seus
valores na impressão de suas belas e caras gravuras do
Apocalipse, na expectativa de obter um lucro considerável. Então, munidos desses pensamentos reconfor tantes,
podemos nos tranquilizar quanto à loucura de profetizar
o Juízo Final.
Sim, sim, sim. Quer dizer, a menos que seja exatamente o contrário e nós estejamos testemunhando agora
mais um caso de alarme falso prolongado. E se tivéssemos mudado de uma definição simbólica e metafórica da
ação humana para uma definição literal? Afinal, isso
é exatamente o que significa o conceito de antropoceno:
tudo o que era simbólico agora deve ser considerado
literalmente. Culturas antigas costumavam “moldar a
Terra” de maneira simbólica; agora o fazem de vez. Além
disso, a própria noção de cultura foi-se embora junto
com a noção de natureza. Pós-naturais, sim, mas também
pós-culturais.
Em referência ao famoso estudo que deu origem à
própria noção de “dissonância cognitiva” (do livro When
Profecy Fails 9, de Festinger, Riecken e Schachter), Clive
Hamilton argumenta que deveríamos voltar novamente
as atenções ao estudo da Sra. Keech e sua predição do fim
do mundo. Nossa desconexão pode não residir nessa
espera do fim e, com ela, na necessidade de reorganizar
nosso sistema de crenças para prestar contas de por que
ele não está acontecendo (assim como os primeiros
cristãos tiveram de fazer quando se deram conta de que o
Fim não seria a vinda de Cristo pelo céu em uma clara
demonstração de pirotecnia apocalíptica, mas sim pela
lenta expansão por terra do império de Constantino).
Mas hoje para nós a desconexão poderia estar na crença
de que o Juízo Final não vai acontecer de uma vez por
todas. Seria um caso bem interessante e aterrador de
Quando a profecia dá certo! E a negação, desta vez, significaria que estamos reorganizando nosso sistema de
crenças de modo a não encarar a chegada do Grande Dia.
É por esse motivo que Clive Hamilton afirma de
maneira estranha e aterrorizadora que é a esperança que
devemos deixar de lado se desejamos fazer qualquer
transação com Gaia. A esperança, esperança ininterrupta, é, para ele, a fonte de nossa melancolia e a causa de
nossa dissonância cognitiva.
Eu espero (mais uma vez a esperança!) ter mostrado
por que pode ser importante e até mesmo urgente reunir
todos os recursos possíveis para preencher a lacuna
entre o tamanho e a escala dos problemas que temos de
encarar e o conjunto de estados emocionais e cognitivos
que associamos às tarefas de responder ao chamado
de responsabilidade, sem cair em melancolia ou negação.
É em boa parte por isso que ressuscitamos a expressão
um pouco antiquada de “arte política” para o novo
eSperandO Gaia
brunO LatOur
70
71
programa criado na Sciences Po para treinar profissionais da arte e da ciência – tanto social quanto natural –
para essa tarefa tripla de representação científica, política e artística.
72
eSperandO Gaia
NOTAS
1
réquiem para uma espécie: por que
resistimos à verdade sobre a mudança
climática, em tradução livre. [N. T.]
2
“in the wild woods, among the
mountains lone,/Where waterfalls
around it leap forever,/Where woods
and winds contend, and a vast river/
Over its rocks ceaselessly bursts
and raves”, tradução nossa.
3
“The everlasting universe of things/
Flows through the mind, and rolls
its rapid waves,/Now dark – now
glittering – now, reflecting gloom – /
Now lending splendor, where from
secret springs/The source of
human thought its tribute brings”,
tradução nossa.
4
comendo o sol, em tradução livre.
[N. T.]
5
Uma máquina ampla, em tradução
livre. [N. T.]
6
Adubo ou compostagem, em inglês.
[N. T.]
7
“Trickster” no original. [N. E.]
8
“Nurture” no texto original. [N. E.]
9
Quando as profecias falham, em
tradução livre. [N. T.]
brunO LatOur
73
Vento 10 Km/h
AS REvOLuÇõES cOmO
muDANÇAS DE
cONcEPÇÃO DE muNDO
THOmAS KUHN
2013-05-16
19:27
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(1962)
O hiSTORiADOR DA ciência que examinar as pesquisas
do passado a partir da perspectiva da historiografia
contemporânea pode sentir-se tentado a proclamar que,
quando mudam os paradigmas, muda com eles o próprio
mundo. Guiados por um novo paradigma, os cientistas
adotam novos instrumentos e orientam seu olhar em
novas direções. E o que é ainda mais importante: durante
as revoluções, os cientistas veem coisas novas e diferentes quando, empregando instrumentos familiares, olham
para os mesmos pontos já examinados anteriormente.
É como se a comunidade profissional tivesse sido subitamente transportada para um novo planeta, onde objetos
familiares são vistos sob uma luz diferente e a eles se
apegam objetos desconhecidos. Certamente não ocorre
nada semelhante: não há transplante geográfico; fora do
laboratório os afazeres cotidianos em geral continuam
como antes. Não obstante, as mudanças de paradigma
realmente levam os cientistas a ver o mundo definido por
seus compromissos de pesquisa de uma maneira diferente.
75
Na medida em que seu único acesso a esse mundo dá-se
através do que veem e fazem, poderemos ser tentados a
dizer que, após uma revolução, os cientistas reagem a um
mundo diferente.
As bem conhecidas demonstrações relativas a uma
alteração na forma (Gestalt) visual demonstram ser muito
sugestivas, como protótipos elementares para essas
transformações. Aquilo que antes da revolução aparece
como um pato no mundo do cientista transforma-se
posteriormente num coelho. Aquele que antes via o
exterior da caixa desde cima passa a ver seu interior
desde baixo. Transformações dessa natureza, embora
usualmente sejam mais graduais e quase sempre irreversíveis, acompanham comumente o treinamento científico. Ao olhar uma carta topográfica, o estudante vê
linhas sobre o papel; o cartógrafo vê a representação de
um terreno. Ao olhar uma fotografia da câmera de
Wilson, o estudante vê linhas interrompidas e confusas;
o físico, um registro de eventos subnucleares que lhe são
familiares. Somente após várias dessas transformações
de visão é que o estudante se torna um habitante do
mundo do cientista, vendo o que o cientista vê e respondendo como o cientista responde. Contudo, este mundo
no qual o estudante penetra não está fixado de uma vez
por todas, seja pela natureza do meio ambiente, seja pela
ciência. Em vez disso, ele é determinado conjuntamente
pelo meio ambiente e pela tradição específica de ciência
normal na qual o estudante foi treinado. Consequentemente, em períodos de revolução, quando a tradição
científica normal muda, a percepção que o cientista tem
de seu meio ambiente deve ser reeducada – deve aprender a ver uma nova forma (Gestalt) em algumas situações
com as quais já está familiarizado. Depois de fazê-lo, o
mundo de suas pesquisas parecerá, aqui e ali, incomensurável com o que habitava anteriormente. Esta é uma
outra razão pela qual escolas guiadas por paradigmas
diferentes estão sempre em ligeiro desacordo.
Certamente, na sua forma mais usual, as experiências
com a forma visual ilustram tão-somente a natureza das
transformações perceptivas. Nada nos dizem sobre o
papel dos paradigmas ou da experiência previamente
assimilada ao processo de percepção. Sobre este ponto
existe uma rica literatura psicológica, a maior parte da
qual provém do trabalho pioneiro do Instituto Hanover.
Se o sujeito de uma experiência coloca óculos de proteção
munidos de lentes que invertem as imagens, vê inicialmente o mundo todo de cabeça para baixo. No começo,
seu aparato perceptivo funciona tal como fora treinado
para funcionar na ausência de óculos e o resultado é uma
desorientação extrema, uma intensa crise pessoal. Mas
logo que o sujeito começa a aprender a lidar com seu novo
mundo, todo o seu campo visual se altera, em geral após
um período intermediário durante o qual a visão se
encontra simplesmente confundida. A partir daí, os
objetos são novamente vistos como antes da utilização
das lentes. A assimilação de um campo visual anteriormente anômalo reagiu sobre o próprio campo e modificou-o 1. Tanto literal como metaforicamente, o homem
acostumado às lentes invertidas experimentou uma
transformação revolucionária da visão.
Os sujeitos da experiência com cartas anômalas,
discutida no Cap. 5 2, experimentaram uma transformação
bastante similar. Até aprenderem, através de uma
exposição prolongada, que o universo continha cartas
anômalas, viam tão-somente os tipos de cartas para as
quais suas experiências anteriores os haviam equipado.
aS revOLuçõeS cOmO mudançaS
thOmaS Kuhn
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Todavia, depois que a experiência em curso forneceu as
categorias adicionais indispensáveis, foram capazes de
perceber todas as cartas anômalas na primeira inspeção
suficientemente prolongada para permitir alguma
identificação. Outras experiências demonstram que o
tamanho, a cor, etc., percebidos de objetos apresentados
experimentalmente também variam com a experiência e
o treino prévios do participante3. Ao examinar a rica
literatura da qual esses exemplos foram extraídos, somos
levados a suspeitar de que alguma coisa semelhante a um
paradigma é um pré-requisito para a própria percepção.
O que um homem vê depende tanto daquilo que ele olha
como daquilo que sua experiência visual-conceitual
prévia o ensinou a ver. Na ausência de tal treino, somente
pode haver o que William James chamou de “confusão
atordoante e intensa”.
Nos últimos anos muitos dos interessados na história
da ciência consideraram muito sugestivos os tipos de
experiências acima descritos. N. R. Hanson, especialmente, utilizou demonstrações relacionadas com a forma
visual para elaborar algumas das mesmas consequências
da crença científica com as quais me preocupo aqui 4.
Outros colegas indicaram repetidamente que a história da
ciência teria um sentido mais claro e coerente se pudéssemos supor que os cientistas experimentam ocasionalmente alterações de percepção do tipo das acima descritas. Todavia, embora experiências psicológicas sejam
sugestivas, não podem, no caso em questão, ir além disso.
Elas realmente apresentam características de percepção
que poderiam ser centrais para o desenvolvimento científico, mas não demonstram que a observação cuidadosa e
controlada realizada pelo pesquisador científico partilhe
de algum modo dessas características. Além disso, a
própria natureza dessas experiências torna impossível
qualquer demonstração direta desse ponto. Para que um
exemplo histórico possa fazer com que essas experiências
psicológicas pareçam relevantes, é preciso primeiro que
atentemos para os tipos de provas que podemos ou não
podemos esperar que a história nos forneça.
O sujeito de uma demonstração da Psicologia da
Forma sabe que sua percepção se modificou, visto que ele
pode alterá-la repetidamente, enquanto segura nas mãos
o mesmo livro ou pedaço de papel. Consciente de que
nada mudou em seu meio ambiente, ele dirige sempre
mais a sua atenção não à figura (pato ou coelho), mas às
linhas contidas no papel que está olhando. Pode até
mesmo acabar aprendendo a ver essas linhas sem ver
qualquer uma dessas figuras. Poderá então dizer (algo
que não poderia ter feito legitimamente antes) que o que
realmente vê são essas linhas, mas que as vê alternadamente como pato ou como coelho. Do mesmo modo, o
sujeito da experiência das cartas anômalas sabe (ou, mais
precisamente, pode ser persuadido) que sua percepção
deve ter-se alterado, porque uma autoridade externa, o
experimentador, assegura-lhe que, não obstante o que
tenha visto, estava olhando durante todo o tempo para um
cinco de copas. Em ambos os casos, tal como em todas as
experiências psicológicas similares, a eficácia da demonstração depende da possibilidade de podermos analisá-la
desse modo. A menos que exista um padrão exterior
com relação ao qual uma alteração da visão possa ser
demonstrada, não poderemos extrair nenhuma conclusão
com relação a possibilidades perceptivas alternadas.
Contudo, com a observação científica, a situação
inverte-se. O cientista não pode apelar para algo
que esteja aquém ou além do que ele vê com seus olhos e
aS revOLuçõeS cOmO mudançaS
thOmaS Kuhn
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instrumentos. Se houvesse alguma autoridade superior,
recorrendo à qual se pudesse mostrar que sua visão se
alterara, tal autoridade tornar-se-ia a fonte de seus dados
e nesse caso o comportamento de sua visão tornar-se-ia
uma fonte de problemas (tal como o sujeito da experiência para o psicólogo). A mesma espécie de problemas
surgiria caso o cientista pudesse alterar seu comportamento do mesmo modo que o sujeito das experiências com
a forma visual. O período durante o qual a luz era considerada “algumas vezes como uma onda e outras como
uma partícula” foi um período de crise – um período
durante o qual algo não vai bem – e somente terminou
com o desenvolvimento da Mecânica Ondulatória e com
a compreensão de que a luz era entidade autônoma,
diferente tanto das ondas como das partículas. Por isso,
nas ciências, se as alterações perceptivas acompanham
as mudanças de paradigma, não podemos esperar que os
cientistas confirmem essas mudanças diretamente. Ao
olhar a Lua, o convertido ao copernicismo não diz “costumava ver um planeta, mas agora vejo um satélite”. Tal
locução implicaria afirmar que em um sentido determinado o sistema de Ptolomeu fora, em certo momento,
correto. Em lugar disso, um convertido à nova astronomia diz: “antes eu acreditava que a Lua fosse um planeta
(ou via a Lua como um planeta), mas estava enganado”.
Esse tipo de afirmação repete-se no período posterior às
revoluções científicas, pois, se em geral disfarça uma
alteração da visão científica ou alguma outra transformação mental que tenha o mesmo efeito, não podemos
esperar um testemunho direto sobre essa alteração.
Devemos antes buscar provas indiretas e comportamentais de que um cientista com um novo paradigma vê de
maneira diferente do que via anteriormente.
Retornemos então aos dados e perguntemos que
tipos de transformações no mundo do cientista podem
ser descobertos pelo historiador que acredita em tais
mudanças. O descobrimento de Urano por Sir William
Herschel fornece um primeiro exemplo que se aproxima
muito da experiência das cartas anômalas. Em pelo
menos dezessete ocasiões diferentes, entre 1690 e 1781,
diversos astrônomos, inclusive vários dos mais eminentes observadores europeus, tinham visto uma estrela em
posições que, hoje supomos, devem ter sido ocupadas por
Urano nessa época. Em 1769, um dos melhores observadores desse grupo viu a estrela por quatro noites sucessivas, sem contudo perceber o movimento que poderia ter
sugerido uma outra identificação. Quando, doze anos
mais tarde, Herschel observou pela primeira vez o
mesmo objeto, empregou um telescópio aperfeiçoado, de
sua própria fabricação. Por causa disso, foi capaz de notar
um tamanho aparente de disco que era, no mínimo,
incomum para estrelas. Algo estava errado e em vista
disso ele postergou a identificação até realizar um exame
mais elaborado. Esse exame revelou o movimento de
Urano entre as estrelas e por essa razão Herschel anunciou que vira um novo cometa! Somente vários meses
depois, após várias tentativas infrutíferas para ajustar o
movimento observado a uma órbita de cometa, é que
Lexell sugeriu que provavelmente se tratava de uma
órbita planetária 5. Quando essa sugestão foi aceita, o
mundo dos astrônomos profissionais passou a contar
com um planeta a mais e várias estrelas a menos. Um
corpo celeste, cuja aparição fora observada de quando
em quando durante quase um século, passou a ser visto
de forma diferente depois de 1781, porque, tal como
uma carta anômala, não mais se adaptava às categorias
aS revOLuçõeS cOmO mudançaS
thOmaS Kuhn
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perceptivas (estrela ou cometa) fornecidas pelo paradigma anteriormente em vigor.
Contudo, a alteração de visão que permitiu aos
astrônomos ver o planeta Urano não parece ter afetado
somente a percepção daquele objeto já observado anteriormente. Suas consequências tiveram um alcance bem
mais amplo. Embora as evidências sejam equívocas, a
pequena mudança de paradigma forçada por Herschel
provavelmente ajudou a preparar astrônomos para a
descoberta rápida de numerosos planetas e asteroides
após 1801. Devido a seu tamanho pequeno, não apresentavam o aumento anômalo que alertara Herschel. Não
obstante, os astrônomos que estavam preparados para
encontrar planetas adicionais foram capazes de identificar vinte deles durante os primeiros cinquenta anos do
século XiX, empregando instrumentos-padrão 6. A história da Astronomia fornece muitos outros exemplos de
mudanças na percepção científica que foram induzidas
por paradigmas, algumas das quais ainda menos equívocas que a anterior. Por exemplo, será possível conceber
como acidental o fato de que os astrônomos somente
tenham começado a ver mudanças nos céus – que anteriormente eram imutáveis – durante o meio século que se
seguiu à apresentação do novo paradigma de Copérnico?
Os chineses, cujas crenças cosmológicas não excluíam
mudanças celestes, haviam registrado o aparecimento de
muitas novas estrelas nos céus numa época muito anterior. Igualmente, mesmo sem contar com a ajuda do
telescópio, os chineses registraram de maneira sistemática o aparecimento de manchas solares séculos antes
de terem sido vistas por Galileu e seus contemporâneos 7.
As manchas solares e uma nova estrela não foram
os únicos exemplos de mudança a surgir nos céus da
astronomia ocidental imediatamente após Copérnico.
Utilizando instrumentos tradicionais, alguns tão simples
como um pedaço de fio de linha, os astrônomos do fim
do século Xvi descobriram, um após o outro, que os cometas se movimentavam livremente através do espaço anteriormente reservado às estrelas e planetas imutáveis 8.
A própria facilidade e rapidez com que os astrônomos
viam novas coisas ao olhar para objetos antigos com
velhos instrumentos pode fazer com que nos sintamos
tentados a afirmar que, após Copérnico, os astrônomos
passaram a viver em um mundo diferente. De qualquer
modo, suas pesquisas desenvolveram-se como se isso
tivesse ocorrido.
Os exemplos anteriores foram selecionados na
Astronomia, porque os relatórios referentes a observações celestes são frequentemente apresentados em um
vocabulário composto por termos de observação relativamente puros. Somente em tais relatórios podemos ter a
esperança de encontrar algo semelhante a um paralelismo completo entre as observações dos cientistas e as
dos sujeitos experimentais dos psicólogos. Não precisamos contudo insistir em um paralelismo integral e
teremos muito a ganhar caso relaxemos nossos padrões.
Se nos contentarmos com o emprego cotidiano do verbo
“ver”, podemos rapidamente reconhecer que já encontramos muitos outros exemplos das alterações na percepção científica que acompanham a mudança de paradigma. O emprego mais amplo dos termos “percepção” e
“visão” requererá em breve uma defesa explícita, mas
iniciarei ilustrando sua aplicação na prática.
Voltemos a examinar por um instante ou dois nossos
exemplos anteriores da história da eletricidade. Durante
o século Xvii, quando sua pesquisa era orientada por
aS revOLuçõeS cOmO mudançaS
thOmaS Kuhn
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uma ou outra teoria dos eflúvios, os eletricistas viam
seguidamente partículas de palha serem repelidas ou
caírem dos corpos elétricos que as haviam atraído. Pelo
menos foi isso que os observadores do século Xvii afirmaram ter visto e não temos razões para duvidar mais de
seus relatórios de percepção do que dos nossos. Colocado
diante do mesmo aparelho, um observador moderno
veria uma repulsão eletrostática (e não uma repulsão
mecânica ou gravitacional). Historicamente entretanto,
com uma única exceção universalmente ignorada, a
repulsão não foi vista como tal até que o aparelho em
larga escala de Hauksbee ampliasse grandemente seus
efeitos. Contudo, a repulsão devida à eletrificação por
contato era tão somente um dos muitos novos efeitos de
repulsão que Hauksbee vira. Por meio de suas pesquisas
(e não através de uma alteração da forma visual), a
repulsão tornou-se repentinamente a manifestação
fundamental da eletrificação e foi então que a atração
precisou ser explicada 9. Os fenômenos elétricos visíveis
no início do século Xviii eram mais sutis e mais variados
que os vistos pelos observadores do século Xvii. Outro
exemplo: após a assimilação do paradigma de Franklin, o
eletricista que olhava uma Garrafa de Leyden via algo
diferente do que vira anteriormente. O instrumento
tornara-se um condensador, para o qual nem a forma,
nem o vidro da garrafa eram indispensáveis. Em lugar
disso, as duas capas condutoras – uma das quais não
fizera parte do instrumento original – tornaram-se
proeminentes. As duas placas de metal com um não
condutor entre elas haviam gradativamente se tornado o
protótipo para toda essa classe de aparelhos, como atestam
progressivamente tanto as discussões escritas como as
representações pictóricas. Simultaneamente, outros
efeitos indutivos receberam novas descrições, enquanto
outros mais foram observados pela primeira vez.
Alterações dessa espécie não estão restritas à
Astronomia e à Eletricidade. Já indicamos algumas das
transformações de visão similares que podem ser extraídas da história da Química. Como dissemos, Lavoisier
viu oxigênio onde Priestley vira ar desflogistizado e
outros não viram absolutamente nada. Contudo, ao
aprender a ver o oxigênio, Lavoisier teve também que
modificar sua concepção a respeito de muitas outras
substâncias familiares. Por exemplo, teve que ver um
mineral composto onde Priestley e seus contemporâneos
haviam visto uma terra elementar. Além dessas, houve
ainda outras mudanças. Na pior das hipóteses, devido à
descoberta do oxigênio, Lavoisier passou a ver a natureza
de maneira diferente. Na impossibilidade de recorrermos
a essa natureza fixa e hipotética que ele “viu de maneira
diferente”, o princípio de economia nos instará a dizer
que, após ter descoberto o oxigênio, Lavoisier passou a
trabalhar em um mundo diferente.
Dentro em breve perguntarei sobre a possibilidade
de evitar essa estranha locução, mas antes disso necessitamos de mais um exemplo de seu uso – neste caso
derivado de uma das partes mais conhecidas da obra de
Galileu. Desde a Antiguidade remota muitas pessoas
haviam visto um ou outro objeto pesado oscilando de um
lado para outro em uma corda ou corrente até chegar ao
estado de repouso. Para os aristotélicos – que acreditavam que um corpo pesado é movido pela sua própria
natureza de uma posição mais elevada para uma mais
baixa, onde alcança um estado de repouso natural – o
corpo oscilante estava simplesmente caindo com dificuldade. Preso pela corrente, somente poderia alcançar o
aS revOLuçõeS cOmO mudançaS
thOmaS Kuhn
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repouso no ponto mais baixo de sua oscilação após um
movimento tortuoso e um tempo considerável. Galileu,
por outro lado, ao olhar o corpo oscilante viu um pêndulo,
um corpo que por pouco não conseguia repetir indefinidamente o mesmo movimento. Tendo visto este tanto,
Galileu observou ao mesmo tempo outras propriedades
do pêndulo e construiu muitas das partes mais significativas e originais de sua nova dinâmica a partir delas. Por
exemplo, derivou das propriedades do pêndulo seus
únicos argumentos sólidos e completos a favor da independência do peso com relação à velocidade da queda,
bem como a favor da relação entre o peso vertical e a
velocidade final dos movimentos descendentes nos
planos inclinados 10. Galileu viu todos esses fenômenos
naturais de uma maneira diferente daquela pela qual
tinham sido vistos anteriormente.
Por que ocorreu essa alteração de visão? Por causa
do gênio individual de Galileu, sem dúvida alguma. Mas
note-se que neste caso o gênio não se manifesta através
de uma observação mais acurada ou objetiva do corpo
oscilante. Do ponto de vista descritivo, a percepção
aristotélica é tão acurada como a de Galileu. Quando este
último informou que o período do pêndulo era independente da amplitude da oscilação (no caso das amplitudes
superiores a 90°), sua concepção de pêndulo levou-o a ver
muito mais regularidade do que podemos atualmente
descobrir no mesmo fenômeno 11. Em vez disso, o que
parece estar envolvido aqui é a exploração por parte de
um gênio das possibilidades abertas por uma alteração
do paradigma medieval. Galileu não recebeu nenhuma
formação totalmente aristotélica. Ao contrário, foi
treinado para analisar o movimento em termos da teoria
do impetus, um paradigma do final da Idade Média que
afirmava que o movimento contínuo de um corpo pesado
é devido a um poder interno, implantado no corpo pelo
propulsor que iniciou seu movimento. João de Buridan e
Nicolau Oresme, escolásticos do século Xiv, que deram à
teoria do impetus as suas formulações mais perfeitas,
foram, ao que se sabe, os primeiros a ver nos movimentos
oscilatórios algo do que Galileu veria mais tarde nesses
fenômenos. Buridan descreve o movimento de uma corda
que vibra como um movimento no qual o impetus é
implantado pela primeira vez quando a corda é golpeada;
a seguir o impetus é consumido ao deslocar a corda contra
a resistência de sua tensão; a tensão traz então a corda
para a posição original, implantando um impetus crescente
até o ponto intermediário do movimento; depois disso o
impetus desloca a corda na direção oposta, novamente
contra a tensão da corda. O movimento continua num
processo simétrico, que pode prolongar-se indefinidamente. Mais tarde, no mesmo século, Oresme esboçou
uma análise similar da pedra oscilante, análise que
atualmente parece ter sido a primeira discussão do
pêndulo 12. Sua concepção é certamente muito próxima
daquela utilizada por Galileu na sua abordagem do
pêndulo. Pelo menos no caso de Oresme (e quase certamente no de Galileu), tratava-se de uma concepção que se
tornou possível graças à transição do paradigma aristotélico original relativo ao movimento para o paradigma
escolástico do impetus. Até a invenção desse paradigma
escolástico não havia pêndulos para serem vistos pelos
cientistas, mas tão somente pedras oscilantes. Os pêndulos nasceram graças a algo muito similar a uma alteração
da forma visual induzida por paradigma.
Contudo, precisamos realmente descrever como
uma transformação da visão aquilo que separa Galileu de
aS revOLuçõeS cOmO mudançaS
thOmaS Kuhn
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Aristóteles, ou Lavoisier de Priestley? Esses homens
realmente viram coisas diferentes ao olhar para o mesmo
tipo de objetos? Haverá algum sentido válido no qual
possamos dizer que eles realizaram suas pesquisas em
mundos diferentes? Essas questões não podem mais ser
postergadas, pois evidentemente existe uma outra
maneira bem mais usual de descrever todos os exemplos
históricos esboçados acima. Muitos leitores certamente
desejarão dizer que o que muda com o paradigma é
apenas a interpretação que os cientistas dão às observações que estão, elas mesmas, fixadas de uma vez por
todas pela natureza do meio ambiente e pelo aparato
perceptivo. Dentro dessa perspectiva, tanto Priestley,
como Lavoisier viram oxigênio, mas interpretaram suas
observações de maneira diversa; tanto Aristóteles como
Galileu viram pêndulos, mas diferiram nas interpretações daquilo que tinham visto.
Direi desde logo que esta concepção muito corrente
do que ocorre quando os cientistas mudam sua maneira
de pensar a respeito de assuntos fundamentais não pode
ser nem totalmente errônea, nem ser um simples
engano. É antes uma parte essencial de um paradigma
iniciado por Descartes e desenvolvido na mesma época
que a dinâmica newtoniana. Esse paradigma serviu
tanto à Ciência como à Filosofia. Sua exploração, tal
como a da própria Dinâmica, produziu uma compreensão fundamental que talvez pudesse ser alcançada de
outra maneira. Mas, como o exemplo da dinâmica
newtoniana também indica, até mesmo o mais impressionante sucesso no passado não garante que a crise
possa ser postergada indefinidamente. As pesquisas
atuais que se desenvolvem em setores da Filosofia, da
Psicologia, da Linguística e mesmo da História da Arte,
convergem todas para a mesma sugestão: o paradigma
tradicional está, de algum modo, equivocado. Além disso,
essa incapacidade de ajustar-se aos dados torna-se cada
vez mais aparente através do estudo histórico da ciência,
assunto ao qual dedicamos necessariamente a maior
parte de nossa atenção neste ensaio.
Nenhum desses temas promotores de crises produziu até agora uma alternativa viável para o paradigma
epistemológico tradicional, mas já começaram a sugerir
quais serão algumas das características desse paradigma.
Estou, por exemplo, profundamente consciente das
dificuldades criadas pela afirmação de que, quando
Aristóteles e Galileu olharam para as pedras oscilantes,
o primeiro viu uma queda violenta e o segundo, um
pêndulo. As mesmas dificuldades estão presentes de
uma forma ainda mais fundamental nas frases iniciais
deste capítulo: embora o mundo não mude com uma
mudança de paradigma, depois dela o cientista trabalha
em um mundo diferente. Não obstante, estou convencido
de que devemos aprender a compreender o sentido de
proposições semelhantes a essa. O que ocorre durante
uma revolução científica não é totalmente redutível a
uma reinterpretação de dados estáveis e individuais. Em
primeiro lugar, os dados não são inequivocamente
estáveis. Um pêndulo não é uma pedra que cai e nem o
oxigênio é ar desflogistizado. Consequentemente, os
dados que os cientistas coletam a partir desses diversos
objetos são, como veremos em breve, diferentes em si
mesmos. Ainda mais importante, o processo pelo qual o
indivíduo ou a comunidade levam a cabo a transmissão
da queda violenta para o pêndulo ou do ar desflogistizado
para o oxigênio não se assemelha à interpretação. De
fato, como poderia ser assim, dada a ausência de dados
aS revOLuçõeS cOmO mudançaS
thOmaS Kuhn
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fixos para o cientista interpretar? Em vez de ser um
intérprete, o cientista que abraça um novo paradigma é
como o homem que usa lentes inversoras. Defrontado
com a mesma constelação de objetos que antes e tendo
consciência disso, ele os encontra, não obstante, totalmente transformados em muitos de seus detalhes.
Nenhuma dessas observações pretende indicar que
os cientistas não se caracterizam por interpretar observações e dados. Pelo contrário: Galileu interpretou as
observações sobre o pêndulo. Aristóteles a sobre as
pedras que caem, Musschenbroek aquelas relativas a
uma garrafa eletricamente carregada e Franklin as sobre
um condensador. Mas cada uma dessas interpretações
pressupôs um paradigma. Essas eram partes da ciência
normal, um empreendimento que, como já vimos, visa
refinar, ampliar e articular um paradigma que já existe.
O Cap. 2 [do volume original] forneceu muitos exemplos
nos quais a interpretação desempenhou um papel
central. Esses exemplos tipificam a maioria esmagadora
das pesquisas. Em cada um deles, devido a um paradigma
aceito, o cientista sabia o que era um dado, que instrumentos podiam ser usados para estabelecê-lo e que
conceitos eram relevantes para sua interpretação. Dado
um paradigma, a interpretação dos dados é essencial
para o empreendimento que o explora.
Esse empreendimento interpretativo – e mostrar
isso foi o encargo do penúltimo parágrafo – pode somente
articular um paradigma, mas não corrigi-lo. Paradigmas
não podem, de modo algum, ser corrigidos pela ciência
normal. Em lugar disso, como já vimos, a ciência normal
leva, ao fim e ao cabo, apenas ao reconhecimento de
anomalias e crises. Essas terminam, não através da
deliberação ou interpretação, mas por meio de um evento
relativamente abrupto e não estruturado semelhante a
uma alteração da forma visual. Nesse caso, os cientistas
falam frequentemente de “vendas que caem dos olhos”
ou de uma “iluminação repentina” que “inunda” um
quebra-cabeça que antes era obscuro, possibilitando que
seus componentes sejam vistos de uma nova maneira – a
qual, pela primeira vez, permite sua solução. Em outras
ocasiões, a iluminação relevante vem durante o sonho 13.
Nenhum dos sentidos habituais do termo “interpretação”
ajusta-se a essas iluminações da intuição através das
quais nasce um novo paradigma. Embora tais intuições
dependam das experiências, tanto autônomas como
congruentes, obtidas através do antigo paradigma, não
estão ligadas, nem lógica, nem fragmentariamente a itens
específicos dessas experiências, como seria o caso de
uma interpretação. Em lugar disso, as intuições reúnem
grandes porções dessas experiências e as transformam
em um bloco de experiências que, a partir daí, será
gradativamente ligado ao novo paradigma e não ao velho.
Para aprendermos mais a respeito do que podem
ser essas diferenças, retornemos por um momento a
Aristóteles, Galileu e o pêndulo. Que dados foram colocados ao alcance de cada um deles pela interação de seus
diferentes paradigmas e seu meio ambiente comum? Ao
ver uma queda forçada, o aristotélico mediria (ou pelo
menos discutiria – o aristotélico raramente media) o peso
da pedra, a altura vertical à qual ela fora elevada e o
tempo necessário para alcançar o repouso. Essas – e mais
a resistência do meio – eram as categorias conceituais
empregadas pela ciência aristotélica quando se tratava de
examinar a queda dos corpos 14. A pesquisa normal por
elas orientada não poderia ter produzido as leis que
Galileu descobriu. Poderia apenas – e foi o que fez, por
aS revOLuçõeS cOmO mudançaS
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91
outro caminho – levar à série de crises das quais emergiu
a concepção galileiana da pedra oscilante. Devido a essas
crises e outras mudanças intelectuais, Galileu viu a
pedra oscilante de forma absolutamente diversa. Os
trabalhos de Arquimedes sobre os corpos flutuantes
tornaram o meio inessencial; a teoria do impetus tornou
o movimento simétrico e duradouro; o neoplatonismo
dirigiu a atenção de Galileu para a forma circular do
movimento 15. Por isso, ele media apenas o peso, o raio, o
deslocamento angular e o tempo por oscilação – precisamente os dados que poderiam ser interpretados de molde
a produzir as leis de Galileu sobre o pêndulo. Neste caso,
a interpretação demonstrou ser quase desnecessária.
Dados os paradigmas de Galileu, as regularidades
semelhantes ao pêndulo eram quase totalmente acessíveis à primeira vista. Senão, como poderíamos explicar a
descoberta de Galileu, segundo a qual o período da bola
do pêndulo é inteiramente independente da amplitude da
oscilação, quando se sabe que a ciência normal proveniente
de Galileu teve que erradicar essa descoberta e que
atualmente somos totalmente incapazes de documentá-la?
Regularidades que não poderiam ter existido para um
aristotélico (e que, de fato, não são precisamente exemplificadas pela natureza em nenhum lugar) eram, para um
homem que via a pedra oscilante do mesmo modo que
Galileu, uma consequência da experiência imediata.
Talvez o exemplo seja demasiadamente fantasista,
uma vez que os aristotélicos não deixaram qualquer
discussão sobre as pedras oscilantes, fenômeno que no
paradigma destes era extraordinariamente complexo.
Mas os aristotélicos discutiram um caso mais simples, o
das pedras que caem sem entraves incomuns. Nesse
caso, as mesmas diferenças de visão são evidentes. Ao
contemplar a queda de uma pedra, Aristóteles via uma
mudança de estado, mais do que um processo. Por
conseguinte, para ele as medidas relevantes de um
movimento eram a distância total percorrida e o tempo
total transcorrido, parâmetros esses que produzem o que
atualmente chamaríamos não de velocidade, mas de
velocidade média 16. De maneira similar, por ser a pedra
impulsionada por sua natureza a alcançar seu ponto final
de repouso, Aristóteles via, como parâmetro de distância
relevante para qualquer instante no decorrer do movimento, a distância até o ponto final, mais do que aquela a
partir do ponto de origem do movimento 17. Esses parâmetros conceituais servem de base e dão um sentido à maior
parte de suas bem conhecidas “leis do movimento”.
Entretanto, em parte devido ao paradigma do impetus e
em parte devido a uma doutrina conhecida como a
latitude das formas, a crítica escolástica modificou essa
maneira de ver o movimento. Uma pedra movida pelo
impetus recebe mais e mais impetus ao afastar-se de seu
ponto de partida; por isso, o parâmetro relevante passou
a ser a distância a partir do, em lugar da distância até o.
Além disso, os escolásticos bifurcaram a noção aristotélica de velocidade em conceitos que, pouco depois de
Galileu, se tornaram as nossas velocidades média e
instantânea. Mas, quando examinados a partir do paradigma do qual essas concepções faziam parte, tanto a
pedra que cai, como o pêndulo, exibiam as leis que os
regem quase à primeira vista. Galileu não foi o primeiro
a sugerir que as pedras caem em movimento uniformemente acelerado 18. Além disso, ele desenvolvera seu
teorema sobre este assunto, juntamente com muitas de
suas consequências, antes de realizar suas experiências
com o plano inclinado. Esse teorema foi mais um
aS revOLuçõeS cOmO mudançaS
thOmaS Kuhn
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elemento na rede de novas regularidades, acessíveis ao
gênio, em um mundo conjuntamente determinado pela
natureza e pelos paradigmas com os quais Galileu e
seus contemporâneos haviam sido educados. Vivendo em
tal mundo, Galileu ainda poderia, quando quisesse,
explicar por que Aristóteles vira o que viu. Não obstante,
o conteúdo imediato da experiência de Galileu com a
queda de pedras não foi o mesmo da experiência
realizada por Aristóteles.
Por certo não está de modo algum claro que precisemos preocupar-nos tanto com a “experiência imediata” –
isto é, com os traços perceptivos que um paradigma
destaca de maneira tão notável que eles revelam suas
regularidades quase à primeira vista. Tais traços devem
obviamente mudar com os compromissos do cientista a
paradigmas, mas estão longe do que temos em mente
quando falamos dos dados não elaborados ou da experiência bruta, dos quais se acredita proceda a pesquisa
científica. Talvez devêssemos deixar de lado a experiência imediata e, em vez disso, discutir as operações e
medições concretas que os cientistas realizam em seus
laboratórios. Ou talvez a análise deva distanciar-se ainda
mais do imediatamente dado. Por exemplo, poderia
ser levada a cabo em termos de alguma linguagem de
observação neutra, talvez uma linguagem ajustada às
impressões da retina que servem de intermediário para
aquilo que o cientista vê. Somente procedendo de uma
dessas maneiras é que podemos ter a esperança de reaver
uma região na qual a experiência seja novamente estável,
de uma vez para sempre – na qual o pêndulo e a queda
violenta não são percepções diferentes, mas interpretações
diferentes de dados inequívocos, proporcionados pela
observação de uma pedra que oscila.
Mas a experiência dos sentidos é fixa e neutra?
Serão as teorias simples interpretações humanas de
determinados dados? A perspectiva epistemológica que
mais frequentemente guiou a filosofia ocidental durante
três séculos impõe um “sim!” imediato e inequívoco. Na
ausência de uma alternativa já desdobrada, considero
impossível abandonar inteiramente essa perspectiva.
Todavia ela já não funciona efetivamente e as tentativas
para fazê-la funcionar por meio da introdução de uma
linguagem de observação neutra parecem-me agora
sem esperança.
As operações e medições que um cientista empreende
em um laboratório não são “o dado” da experiência, mas
“o coletado com dificuldade”. Não são o que o cientista
vê – pelo menos até que sua pesquisa se encontre bem
adiantada e sua atenção esteja focalizada –; são índices
concretos para os conteúdos das percepções mais elementares. Como tais, são selecionadas para o exame mais
detido da pesquisa normal, tão somente porque parecem
oferecer uma oportunidade para a elaboração frutífera de
um paradigma aceito. As operações e medições, de
maneira muito mais clara do que a experiência imediata
da qual em parte derivam, são determinadas por um
paradigma. A ciência não se ocupa com todas as manifestações possíveis no laboratório. Ao invés disso, seleciona aquelas que são relevantes para a justaposição
de um paradigma com a experiência imediata, a qual, por
sua vez, foi parcialmente determinada por esse mesmo
paradigma. Disso resulta que cientistas com paradigmas
diferentes empenham-se em manipulações concretas de
laboratório diferentes. As medições que devem ser
realizadas no caso de um pêndulo não são relevantes no
caso da queda forçada. Tampouco as operações
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relevantes para a elucidação das propriedades do oxigênio
são precisamente as mesmas que as requeridas na
investigação das características do ar desflogistizado.
Quanto a uma linguagem de observação pura, talvez
ainda se chegue a elaborar uma. Mas, três séculos após
Descartes, nossa esperança que isso ocorra ainda
depende exclusivamente de uma teoria da percepção e do
espírito. Por sua vez, a experimentação psicológica
moderna está fazendo com que proliferem rapidamente
fenômenos que essa teoria tem grande dificuldade em
tratar. O pato-coelho mostra que dois homens com as
mesmas impressões na retina podem ver coisas diferentes; as lentes inversoras mostram que dois homens com
impressões de retina diferentes podem ver a mesma
coisa. A Psicologia fornece uma grande quantidade de
evidência no mesmo sentido e as dúvidas que dela
derivam aumentam ainda mais quando se considera a
história das tentativas para apresentar uma linguagem de
observação efetiva. Nenhuma das tentativas atuais
conseguiu até agora aproximar-se de uma linguagem de
objetos de percepções puros, aplicável de maneira geral.
E as tentativas que mais se aproximaram desse objetivo
compartilham uma característica que reforça vigorosamente diversas teses principais deste ensaio. Elas pressupõem, desde o início, um paradigma, seja na forma de
uma teoria científica em vigor, seja na forma de alguma
fração do discurso cotidiano; tentam então depurá-lo de
todos os seus termos não lógicos ou não perceptivos.
Em alguns campos do discurso esse esforço foi levado
bem longe, com resultados bastante fascinantes. Está
fora de dúvida que esforços desse tipo merecem ser
levados adiante. Mas seu resultado é uma linguagem que –
tal como aquelas empregadas nas ciências – expressa
inúmeras expectativas sobre a natureza e deixa de
funcionar no momento em que essas expectativas são
violadas. Nelson Goodman insiste precisamente sobre
esse ponto ao descrever os objetivos do seu Structure of
Appearance: “É afortunado que nada mais (do que os
fenômenos conhecidos) esteja em questão; já a noção
de casos “possíveis”, casos que não existem, mas poderiam ter existido, está longe de ser clara” 19. Nenhuma
linguagem limitada desse modo a relatar um mundo
plenamente conhecido de antemão pode produzir meras
informações neutras e objetivas sobre “o dado”. A
investigação filosófica ainda não forneceu nem sequer
uma pista do que poderia ser uma linguagem capaz
de realizar tal tarefa.
Nessas circunstâncias, podemos pelo menos suspeitar de que os cientistas têm razão, tanto em termos de
princípio como na prática, quando tratam o oxigênio e os
pêndulos (e talvez também os átomos e elétrons) como
ingredientes fundamentais de sua experiência imediata.
O mundo do cientista, devido à experiência da raça, da
cultura e, finalmente, da profissão, contida no paradigma, veio a ser habitado por planetas e pêndulos,
condensadores e minerais compostos e outros corpos do
mesmo tipo. Comparadas com esses objetos da percepção, tanto as leituras de um medidor como as impressões
da retina são construções elaboradas às quais a experiência somente tem acesso direto quando o cientista, tendo
em vista os objetivos especiais de sua investigação,
providencia para que isso ocorra. Não queremos com isso
sugerir que os pêndulos, por exemplo, sejam a única
coisa que um cientista poderá ver ao olhar uma pedra
oscilante. (Já observamos que membros de outra comunidade científica poderiam ver uma queda forçada).
aS revOLuçõeS cOmO mudançaS
thOmaS Kuhn
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Queremos sugerir que o cientista que olha para a oscilação de uma pedra não pode ter nenhuma experiência que
seja, em princípio, mais elementar que a visão de um
pêndulo. A alternativa não é uma hipotética visão “fixa”,
mas a visão através de um paradigma que transforme a
pedra oscilante em alguma outra coisa.
Tudo isso parecerá mais razoável se recordarmos
outra vez que, nem o cientista, nem o leigo aprendem a
ver o mundo gradualmente ou item por item. A não ser
quando todas as categorias conceituais e de manipulação
estão preparadas de antemão – por exemplo, para a
descoberta de um elemento transurânico adicional ou
para captar a imagem de uma nova casa – tanto os
cientistas como os leigos deixam de lado áreas inteiras do
fluxo da experiência. A criança que transfere a aplicação
da palavra “mamãe” de todos os seres humanos para
todas as mulheres e então para a sua mãe não está
apenas aprendendo o que “mamãe” significa ou quem é a
sua mãe. Simultaneamente, está aprendendo algumas
das diferenças entre homens e mulheres, bem como algo
sobre a maneira na qual todas as mulheres, exceto uma,
comportam-se em relação a ela. Suas reações, expectativas e crenças – na verdade, grande parte de seu mundo
percebido – mudam de acordo com esse aprendizado.
Pelo mesmo motivo, os copernicanos que negaram ao sol
seu título tradicional de “planeta” não estavam apenas
aprendendo o que “planeta” significa ou o que era o Sol.
Em lugar disso, estavam mudando o significado de
“planeta”, a fim de que essa expressão continuasse sendo
capaz de estabelecer distinções úteis num mundo no qual
todos os corpos celestes e não apenas o Sol estavam sendo
vistos de uma maneira diversa daquela na qual haviam
sido vistos anteriormente. A mesma coisa poderia ser
dita a respeito de qualquer um dos nossos exemplos
anteriores. Ver o oxigênio em vez do ar desflogistizado, o
condensador em vez da Garrafa de Leyden ou o pêndulo
em vez da queda forçada, foi somente uma parte de uma
alteração integrada na visão que o cientista possuía de
muitos fenômenos químicos, elétricos ou dinâmicos. Os
paradigmas determinam ao mesmo tempo grandes áreas
da experiência.
Contudo, é somente após a experiência ter sido
determinada dessa maneira que pode começar a busca
de uma definição operacional ou de uma linguagem de
observações pura. O cientista ou filósofo, que pergunta
que medições ou impressões da retina fazem do pêndulo
o que ele é, já deve ser capaz de reconhecer um pêndulo
quando o vê. Se, em algum lugar do pêndulo, ele visse
uma queda forçada, sua questão nem mesmo poderia
ter sido feita. E se ele visse um pêndulo, mas o visse da
mesma maneira com que vê um diapasão ou uma
balança de vibração, sua questão não poderia ter sido
respondida. Pelo menos não poderia ter sido respondida
da mesma maneira, porque já não se trataria da mesma
questão. Por isso, embora elas sejam sempre legítimas
e em determinadas ocasiões extraordinariamente
frutíferas, as questões a respeito das impressões da
retina ou sobre as consequências de determinadas
manipulações de laboratório pressupõem um mundo já
subdividido perceptual e conceitualmente de acordo
com uma certa maneira. Num certo sentido, tais questões são partes da ciência normal, pois dependem da
existência de um paradigma e recebem respostas
diferentes quando ocorre uma mudança de paradigma.
Para concluir este capítulo, vamos daqui para diante
negligenciar as impressões da retina e restringir
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novamente nossa atenção às operações de laboratório
que fornecem ao cientista índices concretos, embora
fragmentários, para o que ele já viu. Uma das maneiras
pelas quais tais operações de laboratório mudam juntamente com os paradigmas já foi observada repetidas
vezes. Após uma revolução científica, muitas manipulações e medições antigas tornam-se irrelevantes e são
substituídas por outras. Não se aplicam exatamente os
mesmos testes para o oxigênio e para o ar desflogistizado. Mas mudanças dessa espécie nunca são totais. Não
importa o que o cientista possa então ver, após a revolução o cientista ainda está olhando para o mesmo mundo.
Além disso, grande parte de sua linguagem e a maior
parte de seus instrumentos de laboratório continuam
sendo os mesmos de antes, embora anteriormente ele os
possa ter empregado de maneira diferente. Em consequência disso, a ciência pós-revolucionária invariavelmente inclui muitas das mesmas manipulações, realizadas com os mesmos instrumentos e descritas nos
mesmos termos empregados por sua predecessora
pré-revolucionária. Se alguma mudança ocorreu com
essas manipulações duradouras, esta deve estar nas suas
relações com o paradigma ou nos seus resultados concretos. Sugiro agora, com a introdução de um último
exemplo, que todas essas duas espécies de mudança
ocorrem. Examinando a obra de Dalton e seus contemporâneos, descobriremos que uma e a mesma operação,
quando vinculada à natureza por meio de um paradigma
diferente, pode tornar-se um índice para um aspecto
bastante diferente de uma regularidade da natureza.
Além disso, veremos que ocasionalmente a antiga
manipulação, no seu novo papel, produzirá resultados
concretos diferentes.
Durante grande parte do século Xviii e mesmo no
XiX, os químicos europeus acreditavam quase universalmente que os átomos elementares, com os quais eram
constituídas todas as espécies químicas, se mantinham
unidos por forças de afinidade mútuas. Assim, uma
massa informe de prata mantinha-se unida devido às
forças de afinidade entre os corpúsculos de prata (mesmo
depois de Lavoisier esses corpúsculos eram pensados
como sendo compostos de partículas ainda mais elementares). Dentro dessa mesma teoria, a prata dissolvia-se no
ácido (ou o sal na água) porque as partículas de ácido
atraíam as de prata (ou as partículas de água atraíam as
de sal) mais fortemente do que as partículas desses
solutos atraíam-se mutuamente. Ou ainda: o cobre
dissolver-se-ia numa solução de prata e precipitado de
prata porque a afinidade cobre-ácido era maior que a
afinidade entre o ácido e a prata. Um grande número de
outros fenômenos era explicado da mesma maneira. No
século Xviii, a teoria da afinidade eletiva era um paradigma químico admirável, larga e algumas vezes frutiferamente utilizado na concepção e análise da experimentação química 20.
Entretanto, a teoria da afinidade traçou limites
separando as misturas físicas dos compostos químicos,
de uma maneira que, desde a assimilação da obra de
Dalton, deixou de ser familiar. Os químicos do século
Xviii reconheciam duas espécies de processos. Quando a
mistura produzia calor, luz, efervescência ou alguma
coisa da mesma espécie, considerava-se que havia
ocorrido a união química. Se, por outro lado, as partículas da mistura pudessem ser distinguidas a olho nu ou
separadas mecanicamente, havia apenas mistura física.
Mas, para o grande número de casos intermediários –
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o sal na água, a fusão dos metais, o vidro, o oxigênio na
atmosfera e assim por diante – esses critérios grosseiros
tinham pouca utilidade. Guiados por seu paradigma, a
maioria dos químicos concebia essa faixa intermediária
como sendo química, porque os processos que a compunham eram todos governados por forças da mesma
espécie. Sal na água ou oxigênio no nitrogênio eram
exemplos de combinação química tão apropriados como
a combinação produzida pela oxidação do cobre. Os
argumentos para que se concebessem as soluções como
compostos eram muito fortes. A própria teoria da afinidade fora bem confirmada. Além disso, a formação de
um composto explicava a homogeneidade observada
numa solução. Se, por exemplo, o oxigênio e o nitrogênio
fossem somente misturados e não combinados na atmosfera, então o gás mais pesado, o oxigênio, deveria depositar-se no fundo. Dalton, que considerava a atmosfera uma
mistura, nunca foi capaz de explicar satisfatoriamente
por que o oxigênio não se comportava dessa maneira. A
assimilação de sua teoria atômica acabou criando uma
anomalia onde anteriormente não havia nenhuma 21.
Somos tentados a afirmar que os químicos que
concebiam as soluções como compostos diferiam de seus
antecessores somente quanto a uma questão de definição.
Em um certo sentido, pode ter sido assim. Mas esse
sentido não é aquele que faz das definições meras comodidades convencionais. No século Xviii, as misturas não
eram plenamente distinguíveis dos compostos através de
testes operacionais e talvez não pudessem sê-lo. Mesmo
se os químicos tivessem procurado descobrir tais testes,
teriam buscado critérios que fizessem da solução um
composto. A distinção mistura-composto fazia parte de
seu paradigma – parte da maneira como os químicos
concebiam todo seu campo de pesquisas – e como tal ela
era anterior a qualquer teste de laboratório, embora não
fosse anterior à experiência acumulada da Química
como um todo.
Mas, enquanto a Química era concebida dessa
maneira, os fenômenos químicos exemplificavam leis
diferentes daquelas que emergiram após a assimilação
do novo paradigma de Dalton. Mais especificamente,
enquanto as soluções permaneceram como compostos,
nenhuma quantidade de experiências químicas poderia
ter produzido por si mesma a lei das proporções fixas. Ao
final do século Xviii era amplamente sabido que alguns
compostos continham comumente proporções fixas,
correspondentes ao peso de seus componentes. O químico alemão Richter chegou mesmo a notar, para algumas categorias de reações, as regularidades adicionais
atualmente abarcadas pela lei dos equivalentes químicos 22. No entanto nenhum químico fez uso dessas regularidades, exceto em receitas e, quase até o fim do século,
nenhum deles pensou em generalizá-las. Dados os
contraexemplos óbvios, como o vidro e o sal na água,
nenhuma generalização era possível sem o abandono da
teoria da afinidade e uma reconceptualização dos limites
dos domínios da Química. Essa conclusão tornou-se
explícita ao final do século, num famoso debate entre os
químicos franceses Proust e Berthollet. O primeiro
sustentava que todas as reações químicas ocorriam
segundo proporções fixas; o segundo negava que isso
ocorresse. Ambos reuniram evidências experimentais
impressionantes em favor de sua concepção. Não obstante, os dois mantiveram um diálogo de surdos e o
debate foi totalmente inconclusivo. Onde Berthollet via
um composto que podia variar segundo proporções,
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Proust via apenas uma mistura física 23. Nem experiências, nem uma mudança nas convenções de definição
poderiam ser relevantes para essa questão. Os dois
cientistas divergiam tão fundamentalmente como
Galileu e Aristóteles.
Essa era a situação que prevalecia quando John
Dalton empreendeu as investigações que acabaram
levando à sua famosa teoria atômica para a Química. Mas
até os últimos estágios dessas investigações, Dalton não
era um químico e nem estava interessado em Química.
Era um meteorologista investigando o que para ele eram
os problemas físicos da absorção de gases pela água e da
água pela atmosfera. Em parte porque fora treinado
numa especialidade diferente e em parte devido a seu
próprio trabalho nessa especialidade, Dalton abordou
esses problemas com um paradigma diferente daquele
empregado pelos químicos seus contemporâneos. Mais
particularmente, concebeu a mistura de gases ou a
absorção de um gás pela água e da água pela atmosfera
como um processo físico, no qual as forças de afinidade
não desempenhavam nenhum papel. Por isso, para ele, a
homogeneidade que fora observada nas soluções era um
problema, mas um problema que ele pensava poder
resolver caso pudesse determinar os tamanhos e os pesos
relativos das várias partículas atômicas nas suas misturas experimentais. Foi para determinar esses tamanhos
e pesos que Dalton se voltou finalmente para a Química,
supondo desde o início que, no âmbito restrito das reações que considerava químicas, os átomos somente
poderiam combinar-se numa proporção de um para um
ou em alguma outra proporção de simples números
inteiros 24. Esse pressuposto inicial permitiu-lhe determinar os tamanhos e os pesos das partículas elementares,
mas também fez da lei das proporções constantes uma
tautologia. Para Dalton, qualquer reação na qual os
ingredientes não entrassem em proporções fixas não era,
ipso facto, um processo puramente químico. Uma lei que
as experiências não poderiam ter estabelecido antes dos
trabalhos de Dalton tornou-se, após a aceitação destes,
num princípio constitutivo que nenhum conjunto isolado
de medições químicas poderia ter perturbado. Em
consequência daquilo que talvez seja o nosso exemplo
mais completo de uma revolução científica, as mesmas
manipulações químicas assumiram uma relação com
a generalização química muito diversa daquela que
anteriormente tinham.
É desnecessário dizer que as conclusões de Dalton
foram amplamente atacadas ao serem anunciadas pela
primeira vez. Berthollet, sobretudo, nunca foi convencido. Considerando-se a natureza da questão, não era
preciso convencê-lo. Mas para a maior parte dos químicos, o novo paradigma de Dalton demonstrou ser
convincente onde o de Proust não o fora, visto ter implicações muito mais amplas e mais importantes do que um
critério para distinguir uma mistura de um composto.
Se, por exemplo, os átomos somente podiam combinar-se
quimicamente segundo as proporções simples de números inteiros, então um reexame dos dados químicos
existentes deveria revelar tanto exemplos de proporções
múltiplas como de proporções fixas. Os químicos deixaram de escrever que os dois óxidos de, por exemplo,
carbono, continham 56 por cento e 72 por cento de
oxigênio por peso; em lugar disso, passaram a escrever
que um peso de carbono combinar-se-ia ou com 1,3 ou
com 2,6 pesos de oxigênio. Quando os resultados das
antigas manipulações foram computados dessa maneira,
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saltou à vista uma proporção de 2:1. Isso ocorreu na
análise de muitas reações bem conhecidas, bem como na
de algumas reações novas. Além disso, o paradigma de
Dalton tornou possível a assimilação da obra de Richter e
a percepção de sua ampla generalidade. Sugeriu também
novas experiências, especialmente as de Gay-Lussac
sobre a combinação de volumes, as quais tiveram como
resultado novas regularidades, com as quais os cientistas
nunca haviam sonhado antes. O que os químicos tomaram de Dalton não foram novas leis experimentais, mas
uma nova maneira de praticar a Química (ele próprio
chamou-a de “novo sistema de filosofia química”), que se
revelou tão frutífera que somente alguns químicos mais
velhos, na França e na Grã-Bretanha, foram capazes de
opor-se a ela 25. Em consequência disso, os químicos
passaram a viver em um mundo no qual as reações
químicas se comportavam de maneira bem diversa do
que tinham feito anteriormente.
Enquanto tudo isso se passava, ocorria uma outra
mudança típica e muito importante. Aqui e ali, os próprios dados numéricos da Química começaram a mudar.
Quando Dalton consultou pela primeira vez a literatura
química em busca de dados que corroborassem sua teoria
física, encontrou alguns registros de reações que se
ajustavam a ela, mas dificilmente poderia ter deixado de
encontrar outras que não se ajustavam. Por exemplo, as
medições do próprio Proust sobre os dois óxidos de cobre
indicaram uma proporção de peso de oxigênio de 1,47:1,
em lugar dos 2:1 exigidos pela teoria atômica; e Proust é
precisamente o homem do qual poderíamos esperar que
chegasse à proporção de Dalton 26. Ele era um excelente
experimentador e sua concepção da relação entre misturas e compostos era muito próxima da de Dalton. Mas é
difícil fazer com que a natureza se ajuste a um paradigma.
É por isso que os quebra-cabeças da ciência normal
constituem tamanho desafio e as medições realizadas
sem a orientação de um paradigma raramente levam a
alguma conclusão. Por isso, os químicos não poderiam
simplesmente aceitar a teoria de Dalton com base nas
evidências existentes, já que uma grande parte destas
ainda era negativa. Em lugar disso, mesmo após a aceitação da teoria, eles ainda tinham que forçar a natureza e
conformar-se a ela, processo que no caso envolveu quase
toda uma outra geração. Quando isto foi feito, até mesmo
a percentagem de composição dos compostos bem
conhecidos passou a ser diferente. Os próprios dados
haviam mudado. Este é o último dos sentidos no qual
desejamos dizer que, após uma revolução, os cientistas
trabalham em um mundo diferente.
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NOTAS
1
2
As experiências originais foram
realizadas por George m. Stratton,
“vision without inversion of the
retinal image”, Psychological Review,
iv, pp. 341–360, 463–481 (1897).
Uma apresentação mais atualizada é
fornecida por Harvey A. carr, An
Introduction to Space Perception
(Nova york, 1935), pp. 18–57.
No texto, o autor faz referência a
capítulos anteriores do livro A
estrutura das revoluções científicas,
no qual foi publicado originalmente.
Aqui, especificamente, o autor se
refere ao capítulo “A anomalia e a
emergência das descobertas
científicas”, onde comenta o experimento psicológico das cartas de
baralho anômalas. (N. E. desta edição.)
8
Thomas S. Kuhn, The Copernican
Revolution (cambridge, mass., 1957),
pp. 206–209.
9
duane roller & duane H. d. roller, The
Development of the Concept of Electric
Charge (cambridge, mass., 1954),
pp. 21–29.
10 Galileo Galilei, Dialogues concerning
Two New Sciences (Evanston, ill.,
1946), pp. 80–81, 162–166, trad. H.
crew e A. de Salvio.
11 id., pp. 91–94, 244.
12 marshall clagett, The Science
of Mechanics in the Middle Ages
(madison, Wisc., 1959),
pp. 537–538, 570.
Para exemplos, ver Albert H. Hastorf,
“The influence of Suggestion on the
relationship between Stimulus Size
and Perceived distance”, Journal of
Psychology, xxix, pp. 195–217 (1950);
e Jerome S. Bruner, Leo Postman e
John rodrigues, “Expectations and
the Perception of colour”, American
Journal of Psychology, Lxiv,
pp. 216–227 (1951).
13 [Jacques] Hadamard, Subconscient
intuiton et logique dans la recherche
scientifique (Conférence faite au
Palais de la Découverte le 8 Décembre
1945 [Alençon, s.d.]), pp. 7–8. Um
relato bem mais completo, embora
restrito a inovações matemáticas,
encontra-se no livro do mesmo autor
The Psychology of Invention in the
Mathematical Field (Princeton, 1949).
4
Norwood russell Hanson, Patterns
of Discovery (cambridge, 1958), cap. i.
5
Peter doig, A Concise History of
Astronomy (Londres, 1950),
pp. 115–116.
14 Thomas S. Kuhn, “A Function for
Thought Experiments”. in: Mélanges
Alexandre Koyré, editado por r. Taton
e i. B. cohen, publicado por Hermann
(Paris) em 1963.
6
rudolph Wolf, Geschichte der
Astronomie (munique, 1877),
pp. 513–515, 683–693. Note-se
especialmente como os relatos de
Wolf dificultam a explicação dessas
descobertas como sendo uma
consequência da Lei de Bode.
3
7
Joseph Needham, Science and
Civilization in China (cambridge,
1959), iii, pp. 423–429, 434–436.
108
15 Alexandre Koyré, Etudes Galiléennes
(Paris, 1939), i, 46–51; e “Galileo and
Plato”, Journal of the History of Ideas,
iv, pp. 440–428 (1943).
16 Kuhn, op. cit., nota 14.
17 Koyré, op. cit., ii, pp. 7–11.
18 clagett, op. cit., caps. iv, vi e ix.
aS revOLuçõeS cOmO mudançaS
19 Nelson Goodman, The Structure of
Appearance (cambridge, mass., 1951),
pp. 4–5. A passagem merece uma
citação extensa: “Se todos os
indivíduos (e somente esses)
residentes de Wilmington em 1947
que pesam entre 175 e 180 libras têm
cabelos ruivos, então ‘o residente de
Wilmington em 1947 que tem cabelos
ruivos’ e ‘o residente de Wilmington
em 1947 que pesa entre 175 e 180
libras’ podem ser reunidos numa
definição construída (constructional
definition)… A questão de saber se
‘pode ter havido’ alguém a quem se
aplica um desses predicados, mas não
o outro, não tem sentido… uma vez
que tenhamos determinado que tal
indivíduo não existe… é uma sorte de
que nada mais esteja em questão;
pois a noção de casos ‘possíveis’, de
casos que não existem, mas poderiam
ter existido, está longe de ser clara”.
25 Andrew Norman meldrum, “The
development of the Atomic Theory:
(6) reception Accorded to the Theory
Advocated by dalton”. in: Manchester
Memoirs, Lv, (1911), pp. 1–10.
26 Quanto a Proust, ver meldrum, op. cit.,
nota 23, p. 8. A história detalhada das
mudanças graduais nas medições da
composição química e dos pesos
atômicos ainda está por ser escrita,
mas Partington, op. cit., nota 22,
fornece muitas indicações úteis.
20 Hélène metzger, Newton, Stahl,
Boerhaave et la doctrine chimique
(Paris, 1930), pp. 34–68.
21 id., pp. 124–129, 139–148. No tocante
a dalton, ver Leonard Nash, “The
Atomic-molecular Theory” (Harvard
Case Histories in Experimental Science,
Case 4; cambridge, mass., 1950),
pp. 14–21.
22 J. r. Partington, A Short History
of Chemistry (2. ed.; Londres, 1951),
pp. 161–163.
23 Andrew Norman meldrum, “The
development of the Atomic Theory:
(1) Berthollet’s doctrine of variable
Proportions”. in: Manchester Memoirs,
Liv (1910), pp. 1–16.
24 Leonard K. Nash, “The Origin of
dalton’s chemical Atomic Theory”,
Isis, xLvii, pp. 101–116 (1956).
thOmaS Kuhn
109
Vento 10 Km/h
O SATéLiTE E A
ObRA DE ARTE NA ERA DAS
TELEcOmuNicAÇõES
EdUArdO KAc
Temp 10°C
Umidade 66%
(1986)
2013-05-16
19:27
O PRimEiRO SiSTEmA de telecomunicações via satélite
surgiu em 1945, na fantasia do famoso escritor de ficção
científica Arthur C. Clarke, autor de um dos maiores
clássicos do gênero: 2001, uma odisseia no espaço. Foi nesse
ano que Clarke publicou um texto visionário, “Extraterrestrial relays” [“Repetidoras extraterrestres”], na
edição de outubro da revista Wireless World, antecipando
o lançamento real dos satélites artificiais, cujo marco
inaugural se deu em 1957, quando a União Soviética
colocou em órbita o seu Sputnik. De lá para cá, o desenvolvimento tecnológico e a corrida espacial foram tão
acelerados que hoje já há cerca de cem satélites de
telecomunicações a girar em torno da Terra.
ideias são intangíveis. Satélites são reais. depois do
rádio, eles são provavelmente as ferramentas mais
importantes na comunicação do século xx. A importância dos satélites começa agora a se fazer sentir,
embora ainda permaneça um mistério, mesmo para
111
as pessoas que dependem deles para o trabalho ou
o lazer. Por quê? de um lado, satélites são invisíveis.
Quando uma pessoa faz uma ligação telefônica, não
está preocupada se a conversa será transmitida por
cabo, micro-onda ou satélite, desde que seja bem
realizada. de outro, o custo de operação do satélite é
pulverizado entre tantos usuários que nenhum deles
parece ter direito de propriedade sobre ele. O design, o
lançamento e a manutenção de um satélite estão além
dos recursos de qualquer um, a não ser das grandes
corporações ou instituições públicas, daí as pessoas
se sentirem alheias ao empreendimento e provavelmente admiradas de que alguém possa entendê-lo
(Glatzer, 1983).
De fato, a compreensão total do mecanismo de funcionamento de um engenho espacial escapa ao conhecimento
leigo. Não é difícil entender, contudo, que os sinais são
emitidos das estações terrestres, amplificados no interior
do satélite e recebidos na Terra em outra estação.
Pairando sem gravidade a 36 mil quilômetros de altura,
os satélites soltam diariamente sobre nossas cabeças um
enorme contingente de informações que abrangem toda a
gama de interesses e atividades dos homens. Notícias,
conversas pessoais, novelas, programas educativos,
documentos, anúncios, fenômenos naturais, competições
esportivas, filmes, catástrofes, serviços bancários,
música, conferências, dados digitais, guerras, espetáculos, tudo é recebido via satélite, em âmbito público ou
particular, nacional ou internacional.
112
O SatéLite e a Obra
Telecultura, videofone, nova arte
Hoje o uso criativo das telecomunicações é discutido
de duas maneiras: o acesso dos artistas aos meios de
massa do gênero teledifusão (broadcast) ou teledistribuição (a cabo) – Arte versus dallas – de um lado, e as
mágicas high tech – tipo Buck rogers e Guerra nas
Estrelas – do outro. A oposição Arte/dallas peca pela
unidirecionalidade do sistema, uma vez que este não é
especificamente interativo ou “comunicativo”. O
material flui em uma direção apenas, do produtor do
programa ao telespectador, elemento passivo que
serve aos canais de televisão à medida que estes
possam mensurar e controlar o consumo. Neste caso,
pouco importa o tipo de emissão difundida (Arte =
dallas): a relação entre as partes permanece a mesma,
uma vez que a hierarquia não é questionada pela
simples alteração do tipo de material transmitido
(Adrian x, 1984).
O uso do satélite artificial em arte, portanto, aprofunda
os problemas levantados por outros gêneros de arte
telemática. Se a memória dos computadores introduz as
questões do acesso (o espectador observa apenas as
obras que deseja e na ordem que opta) e do armazenamento (centenas de obras podem ser guardadas em um
disquete), o satélite possibilita ao artista gerar um fluxo
bidirecional de signos em tempo real; em outras palavras, criar um fato estético que é consumido simultaneamente com a mesma carga informacional em dois
locais distantes, em decorrência de uma troca e não de
uma consulta. A supressão do espaço (físico) em função
do tempo (real) estabelece uma relação transmaterial
eduardO Kac
113
entre signos (sinais) e uma percepção simultânea
(instantânea) entre públicos diferentes. Ao funcionar
como videofone (troca de sinais de áudio e vídeo), a
artesat desencadeia novas formas de telecomportamento.
Surpreendentemente, o avanço tecnológico parece
às vezes conduzir a percepção a um ponto extremo,
no qual tangencia um estado mental paralelo ao real,
comumente denominado parapsicológico. É o caso, por
exemplo, do fenômeno estudado por Jung e conhecido
como “sincronicidade de eventos”, o qual encontra um
correlato direto em um interlink por satélite.
Telespaço, teletempo
Na arte eletrônica, a palavra espaço perde o sentido a ela
agregado pelas correntes mais radicais da vanguarda,
do cubismo ao abstrato-expressionismo, e até mesmo o
proposto pelas vertentes da nova escultura. Não se trata
mais do rígido espaço pictórico nem do espaço vazio
sugerido na ou ao redor da matéria, e sim de um espaço
cósmico que possui relação dialógica com o espaço
informacional, tornado presente pela holoiconografia e
a percepção multidimensional que demanda.
Ao criar artesat, o artista trabalha o espaço de
propagação das ondas eletromagnéticas, virtualmente
integrado pelo processo de transmissão e recepção
mútuas, que não pode ser visualizado au grand complèt,
nem experimentado sensorialmente in loco pelo espectador, esteja ele no vácuo ou em um dos dois pontos
conectados na superfície terrestre. Ao pressupor a
conexão entre duas regiões distantes do globo, digamos
Brasil e Japão, o artista opera com noções relativas de
tempo, pois o fuso horário deve ser agenciado como um
elemento expressivo da obra.
114
O SatéLite e a Obra
A artesat, do ponto de vista da pesquisa estética,
amplia os limites da experiência sensorial e do conhecimento humano. O artista high tech processa um tipo de
investigação espacial que não é a do cientista nem a do
ufologista; de ambas, porém, extrai elementos para a
formulação de uma nova gramática e de um novo vocabulário. O trabalho de especulação se dá no espaço da
imaginação, valendo-se de um novo código expressivo
que se fundamenta em dois links (subida e descida do
sinal), cujo principal agente é o satélite artificial.
Estamos diante de uma “ressemantização” perceptual,
pois no espaço livre a menor distância entre dois pontos
não é necessariamente uma linha reta e as noções de
“acima” e de “abaixo” perdem o sentido diante do desaparecimento dos pontos de referência que orientam nossos
processos mentais.
Também o nosso conceito de distância se modifica
ante a sensação de proximidade que temos ao contemplar
a Lua. Saber que a distância da Terra ao satélite natural é
de 380.000 km e visualizar fotos da Terra se pondo no
horizonte lunar não apenas substituem o olhar romântico
pela consciência cósmica, como também fundam uma
nova escala psicológica. O próprio sistema solar passa a
ser a nossa casa, a nossa referência, e não mais o homem.
A ideia de distância se desfaz diante da grande incógnita
que é a estrutura do universo.
Signos em órbita
A paixão dos artistas pelas máquinas voadoras surgiu com
os futuristas, amantes da aventura, da velocidade e das
alturas. Foi em 1984, entretanto, que Ginny Lloyd, artista-residente no centro espacial de Alamogordo, New Mexico,
e Mike Mages, artista e técnico em foguetes, lançaram, na
eduardO Kac
115
Califórnia, Leonardo I, o primeiro foguete-arte de que
se tem notícia. A propósito de Leonardo I, Terrence
McMahon, em seu artigo “Suborbital Art”, defende:
“Precisamos de um artista de vanguarda no espaço que
reflita os elementos caóticos e unificados que formam a
alma do cosmo” (McMahon, 1985).
O lançamento do primeiro foguete artístico conduz a
outros voos, como o da colocação de uma escultura ou
poema (satélite artificial não utilitário) no campo magnético terrestre ou o do envio de uma obra de arte holográfica aos confins do universo (visível apenas quando
houver luz incidindo em ângulos exatos), para ser observada pelos cosmonautas, colonos ou, sabe-se lá, seres
extraterrestres. Refletindo a luz, essas obras chegariam a
espectadores muito distantes como pseudoestrelas. O
artista norte-americano Arthur Woods, residente na
Suíça, já desenvolveu projetos de esculturas espaciais.
Assim, a artesat reformula de maneira direta a
rigidez das noções que estruturam nossa consciência.
Uma escultura de Henry Moore possui o mesmo peso em
qualquer parte do globo, entretanto o peso de um corpo
no espaço não é o mesmo que na atmosfera, pois depende
da distância do centro da Terra em que se encontra.
Um artista que projete a colocação em órbita de uma
escultura ou poema cósmicos deve aplicar, em seu
cálculo, a clássica fórmula da gravitação universal,
segundo a qual dois corpos se atraem com força proporcional ao produto de suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância entre eles. Deve fazê-lo
para equacionar a força centrífuga a ser criada pela
escultura ou poema, pois é esta força, produzida pelo
giro dos satélites, que compensará seu peso e os sustentará em órbita.
A Lua é o espaço-porto mais próximo e as estrelas, uma
fonte de energia barata e lucrativa. Na ausência quase
total de gravidade, conhecida por “microgravidade”,
pode-se obter cristais, ligas metálicas e misturas químicas perfeitas dificilmente obtidas na Terra. O céu, que já
foi um dia o limite, é hoje um rico filão comercial e
industrial. Com o voo solitário do homem com a mochila
cósmica no espaço, abriu-se uma nova dimensão existencial para a espécie, rompeu-se o cordão umbilical com
o planeta mãe. Não é em vão que a NASA planeja uma
estação espacial, na qual oito pessoas viverão durante
um ou dois anos, trabalhando em uma oficina de satélites
O SatéLite e a Obra
eduardO Kac
116
Para manter a escultura ou poema na velocidade
correta, o artista deve se preocupar com a altura de voo, e
não com a massa, pois satélites de massa diferentes em
altitudes idênticas voam à mesma velocidade: quanto
maior a altura de voo de um satélite, menor a velocidade
para conservá-lo em órbita. Outro aspecto a ser considerado é que uma obra de arte aeroespacial não precisa ter
linhas aerodinâmicas: no espaço, não há ar e, consequentemente, inexiste atrito. Daí as formas estranhas e
incomuns que são dadas aos satélites. Desafiando nosso
sistema visual que associa a massa ao peso, um corpo
celeste artificial possui um pequeno peso em razão da
altura da órbita e da força centrífuga, bastando uma
simples peça de metal para unir dois elementos com peso
superior a uma centena de toneladas. Na atmosfera
terrestre, essa harmonia é impossível, da mesma maneira
que o equilíbrio térmico se mostra inviável, uma vez que
a superfície de um satélite no vazio, por exemplo, pode
oscilar entre mais de 100°C e menos de 50°C negativos.
O espião que veio do vácuo
117
e em um observatório de astronomia, livres do calor, da
poluição e das distorções causadas pela atmosfera. A vida
humana no espaço sai lentamente do papel e começa a
se tornar realidade.
Enquanto isso, na Terra, a apreensão natural dos
sentidos é substituída pelos sistemas intermediativos. A
própria Natureza cedeu lugar a uma nova paisagem, da
qual fazem parte as tecnoimagens e os novos hardwares,
como terminais de videotexto e antenas parabólicas.
Nessa telessociedade, um veículo fundamental como o
satélite propicia ao artista uma nova vivência de uma
pouco experimentada realidade tecnoespacial, ao mesmo
tempo em que alarga os limites sensoriais ao desempenhar o que lhe cabe nesta natureza informatizada, ou
seja, o papel de agente propulsor do espírito de um
mundo futuro, nos planos tecnocientífico, sociocultural e
político-econômico.
Nos planos social e político, o uso criativo do satélite
artificial assume importância simbólica (artística)
particular. O controle institucional dos meios de comunicação planetários é, na verdade, o controle do imaginário
coletivo e, portanto, da consciência social e individual,
pois este mecanismo filtra as palavras, os sons, as imagens e as “sintaxes” a que o grande público pode ter
acesso, impondo uma visão de mundo limitada e limitadora. Contrariamente, o artista usa os mesmos meios de
maneira livre, solta a imaginação (a sua e do público)
no espectro de frequências empregado nas telecomunicações terrestres e espaciais. Ao exercer domínio sobre
hardwares e sistemas, o artista não só recupera para a
arte um pouco da espontaneidade característica da
conversação interpessoal, em que cada estímulo corresponde a outro, numa reação em cadeia de improvisos,
118
O SatéLite e a Obra
como também a equilibra com o uso racional e programático da teletecnologia. Desta harmonia resulta, então,
uma nova experiência, que só pode ser realmente
vivenciada no terreno da arte, que não tem por obrigação
comunicar mensagens fechadas, nem empregar sistemas de maneira ortodoxa.
Outro aspecto importante é que as grandes descobertas científicas e inovações tecnológicas são fruto da
injeção de verbas militares, pois os próprios satélites
podem atuar como verdadeiros espiões eletrônicos, ao
captar sinais de tropas, bases de mísseis em construção
e demais comunicações secretas em circulação pela
estratosfera. Paira no ar, portanto, a ameaça de uma
hecatombe sideral e o uso artístico dos satélites artificiais reforça seu caráter pacífico, como um sinal lançado
ao infinito em defesa da vida.
Gigahertz à estratosfera
O artista propõe situações qualitativamente novas
entre arte, hardwares e sistemas. Cria um vínculo que
produz o “estético”, no instante em que o improvável se
converte em um elo acausal de situações possíveis.
Assim, a artesat afirma o que possui de específico e
irredutível em relação às artes videográficas, performáticas e televisivas. A fruição do estado estético não converge para a apreensão do objeto, mesmo porque
a artesat não tem por finalidade a produção de nenhum
tipo de artefato. Essa fruição se dá, à diferença de
outras estéticas não objetais, como a “arte conceitual”,
no emprego da lógica (sintaxe) dos sistemas de telecomunicação, que são deslocados de seu contexto social
para uma rede individualizada que enfatiza sua
própria estrutura.
eduardO Kac
119
Assim como mozart dominou com maestria o recém-inventado clarinete, o artista que trabalha com satélite
deve compor sua arte de acordo com determinadas
condições físicas e gramaticais. A artesat, no sentido
superior, não é apenas a transmissão de sinfonias e
óperas para outras regiões. Ela deve saber como atingir
uma conexão em mão dupla entre pontos opostos da
Terra; como dar uma estrutura conversacional à arte;
como controlar diferenças no tempo; como jogar com
improviso, indeterminação, ecos, feedbacks e espaços
vazios; e como operar, instantaneamente, com preconceitos e diferenças culturais existentes entre várias
nações. A artesat deve empregar esses elementos,
enfraquecendo ou reforçando-os, na criação de uma
sinfonia multiespacial, multitemporal (Paik, 1984).
BiBLiOGrAFiA
AdriAN x, robert. “die Kunst der
Kommunikation/communicating/
L’art de communiquer”. in: Art +
Telecommunication, Western Front,
canadá & Blix, áustria, 1984.
GLATzEr, Hal. The birds of Babel:
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PAiK, Nam June. “Satelliet/Kunst/Art/
Satellite”. in: Het Lumineuze Beeld/The
Luminous Image. Amsterdã: Stedelijk
museum, 1984.
A verdadeira arte sempre redefine seus parâmetros, coloca
em xeque seus estatutos, ultrapassa barreiras historicizadas e códigos assimilados. O uso criativo do satélite artificial
ou artesat proporciona a projeção da subjetividade interpessoal sobre o complexo tecnológico, em contraste com a
imposição da objetividade que a paisagem tecnotrônica
exerce sobre o homem e as categorias do seu pensamento.
O que está em jogo, na verdade, é a revelação do significado
do humano no contexto eletrônico da nova sociedade
telematizada. Assim, palavras, imagens e ações envolvidas
em uma obra de artesat visam não à simples troca informacional entre dois emissores/receptores, e sim à expressão dessa troca. Na arte e na vida, estamos em sintonia
com o desconhecido. Assim na Terra, como no céu.
120
O SatéLite e a Obra
eduardO Kac
121
Vento 10 Km/h
A ciêNciA E A éTicA
DA cuRiOSiDADE
SUNdAr SArUKKAi
Temp 10°C
Umidade 66%
(2009)
2013-05-16
19:27
O conturbado relacionamento entre ética e ciência
O que a ética tem a ver com a ciência? Afinal de contas,
por séculos acreditou-se que a ciência não é responsável
pelas questões éticas. A ciência tomada como um tipo
específico de atividade (e de discurso) é frequentemente
encarada como sendo independente da ética. Essa crença
é tão arraigada entre a comunidade científica, que ainda
hoje cientistas de renome e estudantes da área repercutem a crença de que a ciência descobre apenas verdades,
e que a ética entra em cena somente no contexto de como
esses produtos da ciência podem ser bem ou mal utilizados. O exemplo mais comum é o da faca: ela pode ser
usada para matar, mas também para outras finalidades
úteis. Quando usada para matar, a ciência não deve ser
culpada por isso (na medida em que a faca é considerada
como produto da ciência). Trata-se de um argumento
repetido com frequência para transferir a responsabilidade ética da ciência para o conjunto maior de seus
usuários – o que pode incluir desde cidadãos comuns até
123
seus governos. Ao fazer isso, é reiterado o fato de que as
verdades da ciência são de ordem transcendental,
estando além dos interesses humanos e, consequentemente, das preocupações éticas.
Filósofos dão ainda mais munição para esse posicionamento assinalando a diferença entre fatos e valores,
uma distinção que tem um uma longa história intelectual. Essa distinção filosófica oferece um caminho
possível para argumentar a independência da ciência em
relação à ética. A ciência é o discurso dos fatos – fatos
sobre o universo. A ética diz respeito a valores – valores
sustentados pelos humanos. Os fatos e a verdade científica não são centrados nos humanos. Na verdade, seu
status elevado surge primariamente por serem considerados independentes de sujeitos humanos e, por isso, é
razoável esperar que não digam respeito à ética. Essa
distinção é reforçada pelo que os filósofos chamam de
“falácia naturalista”. Essa falácia surge a partir da
confusão do mundo dos fatos com o mundo dos valores, o
que “é” e o que “deveria ser” – considerando o mundo do
“é” como o mundo dos fatos, e o mundo do “deveria ser”
como o da ética normativa. A maneira como alguém deve
se comportar é uma questão ética, ao passo que o mundo
é assunto para a ciência.
No entanto, mesmo se concordarmos com a visão de
que os fatos e valores não deveriam se confundir, ainda
existe um problema nessa relação entre ética e ciência.
A ciência não é uma iniciativa meramente descritiva. Ela
não consiste apenas da listagem de fatos do universo.
A ciência diz respeito à intervenção tanto quanto diz
respeito à descrição 1. Na verdade, a explanação, que é uma
categoria importante para a ciência moderna, é privilegiada na ciência porque dispõe de um controle maior
sobre a intervenção no mundo. Em outras palavras, a
ciência entende o mundo para intervir nele, para “re-formar” o mundo de modo a adequá-lo a nossas necessidades e desejos. Muitas discussões contemporâneas
sobre ética e ciência – por exemplo, a questão da ética na
clonagem e em pesquisas com células-tronco – orbitam
ao redor dessa estratégia intervencionista da ciência.
Ao intervir no mundo, cientistas desviam a questão
da ética do domínio “puro” ao “aplicado”. A criação
dessas duas categorias de puro e aplicado é, por si só,
uma movimentação interessante dentro das ciências. A
ciência pura geralmente é posicionada em “oposição” à
ciência aplicada (o que inclui a engenharia). O privilégio
concedido às ciências puras teve impacto significativo no
crescimento de instituições científicas. A hierarquia que
posiciona o puro “sobre” o aplicado reflete-se com frequência na prática científica ainda nos dias hoje.
Como essa distinção é defensável? Uma maneira de
entendê-la é invocando a ideia de “desinteresse”, que foi
utilizada por filósofos de maneiras eficazes. Kant, por
exemplo, usa essa ideia como marcador definitivo em seu
conceito de arte. O desinteresse é outra maneira de
expressar a ausência de interesse humano em qualquer
crença ou afirmação. Ele também sugere uma falta de
motivação prévia, os “motivos ulteriores” que levam a
fazer algo. A afirmação é que a ciência pura reflete esse
desinteresse. Suas descobertas versam sobre a maneira
como o mundo é e, portanto, não podem ser influenciadas
por interesses e desejos humanos. A ciência pura capta
esse caráter da ciência a partir do qual revela uma série
de verdades independentes do ser humano. A ciência
aplicada é a aplicação dessas descobertas, e os cientistas
não têm muita dificuldade em aceitar que tais aplicações
a ciência e a ética da curiOSidade
Sundar SaruKKai
124
125
podem sofrer influência de indivíduos, estados, religiões
e assim por diante.
A própria distinção entre puro e aplicado já vem
repleta de valor. Os opostos habituais de puro são
“impuro”, “contaminado” e assim sucessivamente.
Aplicado não é exatamente o contrário de puro, mas traz
consigo elementos desses contrários. O valor dado à
imagem de puro é de fato muito significativo – a pureza é
associada a determinados estados da mente, a práticas
austeras do corpo, à ação ética elevada, a indivíduos que
realizam certos atos heroicos etc. O puro tem um valor
ético elevado em sistemas religiosos e demonstra valor
similar até em áreas como a química, em que o isolamento da substância pura pode ser um desafio que vale a
pena. Do ponto de vista racial, a ideia de puro tem conotações significativas e deu origem a diversos desafios
fundamentalistas para a sociedade. É nesse mundo mais
amplo que o “puro” da “ciência pura” deve ser situado.
Considerando essa trajetória do puro, a palavra “aplicada” de “ciência aplicada” pode ter conotações pejorativas. O que é aplicado é, em alguma medida, “impuro” – a
mácula ou a contaminação vem da mistura de interesses
humanos com o que é conhecimento puro. Para aquilo
que é aplicado, o valor reside na materialidade, e não na
pesquisa desinteressada. Isso também significa que o
puro das ciências puras tem uma função importante para
a ciência – a de manter a ciência pura fora das preocupações da ética. A ciência pura é vista como se estivesse
acima dos desafios éticos. Isso não quer dizer que as
afirmações das ciências puras sejam eticamente saudáveis ou não; significa que elas não são responsáveis pela
ética, antes de tudo. Se a ética é absolutamente aplicável à
ciência, isso deve acontecer no domínio da ciência
aplicada – eis a afirmação frequente a respeito da ciência
no contexto da ética. Esse argumento é tão disseminado
que acaba sendo usado comumente por cientistas para
questões éticas dentro de uma ampla faixa de assuntos,
que vão desde o uso da faca até os usos da bomba e da
energia nuclear.
É impressionante que até mesmo em um ensaio
publicado em 2006 e republicado em um livro editado em
2007, tão pouco tempo atrás, o cientista Mario Bunge
refaz esse mesmo argumento. Por exemplo, a primeira
parte do ensaio é intitulada “Do not blame scientists:
Frisk technologists” [Não culpe os cientistas: reviste os
tecnólogos], onde Bunge continua fazendo essa distinção
problemática entre ciências básicas e aplicadas, observando que “à ciência básica, que é uma tentativa de
entender o mundo, foi atribuído erroneamente o poder de
mudá-lo” (p. 29) 2. Ele continua fazendo ecoar esse clichê
que impera sobre a ciência e a ética ao afirmar que “a
tecnologia pode ser usada pela indústria ou pelo governo
para o bem ou para o mal (…) a engenharia nuclear, que
se baseia na física nuclear, pode ser usada tanto para
projetar usinas quanto bombas nucleares”. Ele vai
adiante e intitula a parte seguinte de “The Ethics of Basic
Science” [A ética da ciência básica], onde essa distinção
conveniente é reiterada com a observação de que “cientistas básicos” (que trabalham com ciência básica) não
precisam ter “tais escrúpulos” (os de ordem ética, que
podem afligir um tecnólogo) porque “é pouco provável
que seu trabalho tenha aplicações práticas” (ibid., p. 30).
Ele também ressalta que a ciência básica é caracterizada
por um éthos particular. Seguindo o raciocínio de Merton,
ele lista elementos desse éthos como consistindo de
“honestidade intelectual, integridade, comunismo
a ciência e a ética da curiOSidade
Sundar SaruKKai
126
127
epistêmico, ceticismo organizado, desinteresse, impessoalidade e universalidade” (ibid.). Todas essas seriam
virtudes subjacentes da ciência básica ou pura. A permutabilidade de “básico” e “puro” é expressa por ele de
maneira explícita ao indicar que “a ciência básica é pura,
mas cientistas individuais podem vir a ser corrompidos”
(ibid., p. 33). Esses cientistas são corrompidos quando
“têm a oportunidade de fazer jornada dupla como tecnólogos ou consultores de políticas”! Ele vai além para
acrescentar que “a pesquisa básica é a busca pela verdade, e não pela riqueza, justiça, salvação ou beleza” (ibid.).
Bunge não está sozinho em suas crenças sobre a
ciência pura ou básica e seu éthos. Incontáveis cientistas
enfatizam imensamente essas crenças, embora pareça
óbvio que haja pouca pureza na ciência dita pura. A
recompensa de fazer ciência pura também é algo material – testemunhar o drama humano em suas reivindicações de originalidade, autoria, politicagem para ganhar
prêmios e assim por diante. Nenhuma dessas motivações
é desinteressada! Mas o motivo pelo qual essa distinção
continua sendo importante hoje é que existe uma ideologia por baixo da insistência na distinção e também na
celebração do éthos da pureza. Acredito que essa distinção e a invocação do puro sejam, fundamentalmente,
a maneira mais eficaz de desviar preocupações éticas
pelas quais a ciência poderia ser responsabilizada.
Cientistas assumem essa posição para que lhes seja
possível escapar do caráter imperioso da ética e, ao fazer
isso, expõem sua agenda política de salvaguardar seus
trabalhos das pressões da sociedade em um sentido mais
amplo. O fato de eles terem conseguido escapar até aqui
de responder ao desafio ético ilustra bem a eficácia
dessa ideologia.
Neste artigo, levarei em conta um elemento catalisador essencial para essa distinção. Ao passo que o desinteresse e outras características afins são indicadores da
ciência pura, todos eles se baseiam em uma única capacidade humana, a capacidade de sentir curiosidade. Muitas
narrativas científicas influentes feitas por cientistas que
descrevem o porquê de fazerem ciência identificam a
natureza da curiosidade como uma característica primordial para a atitude científica. A curiosidade é uma
faculdade especial da mente. A curiosidade não é a
razão; pelo contrário, ela precisa da razão para sustentar-se. A curiosidade é o fator comum entre crianças e
cientistas, o que levou psicólogos e filósofos a encontrar
paralelos entre cientistas e crianças 3. Essa é uma posição
que encontra forte ressonância entre cientistas ativos e
contribui para o distanciamento entre a ética e a ciência,
já que crianças podem ser perdoadas por excessos éticos.
A ciência utiliza a noção de curiosidade para construir
uma muralha contra críticas à ética. Portanto, acredito
que uma base ética adequada para a ciência somente
possa ser desenvolvida se entendermos antes a ética da
curiosidade. […]
a ciência e a ética da curiOSidade
Sundar SaruKKai
128
ciência e curiosidade
Por que alguém opta por fazer ciência? Por que os cientistas dizem que fazem ciência? O que os atrai a essa atividade em comparação a outras? Em alguns discursos
populares na ciência, particularmente da parte de
cientistas, coloca-se muita ênfase sobre a empolgação
em fazer ciência no nível individual. A descrição dessa
empolgação geralmente é feita usando noções como
reverência, o prazer de descobrir algo novo, saciar a
curiosidade, envolver-se com algo belo e assim por diante.
129
Muitas dessas características são derivativas de uma
característica primária da mente humana, algo que tem
muita influência no caminho rumo ao fazer da ciência.
E essa característica é a curiosidade humana. Alguém
começa a fazer ciência simplesmente por ser curioso,
num contexto em que a curiosidade é considerada um
elemento muito importante da existência humana. No
entanto, apesar de ser onipresente, não é fácil entender
a natureza da curiosidade.
A curiosidade é considerada o catalisador que cria o
conhecimento. Por sermos curiosos, pensamos. Por
estarmos insatisfeitos com as respostas que obtemos,
criamos novas maneiras de pensar. Por sermos curiosos,
descobrimos métodos. Descobrimos a ciência. Somos
capazes de distinguir – por alto – diferentes tipos de
curiosidade. Podemos sentir curiosidade em relação ao
que é algo – por exemplo, quando vejo um objeto que
nunca vi antes e fico curioso para saber “o que” é esse
objeto. Ficamos curiosos para saber por que algo é como é –
por que o céu é azul? Por que a porta do vizinho está
sempre trancada? Ficamos curiosos sobre o funcionamento de algo. A ciência experimental baseia-se em
grande parte no caráter da curiosidade – nossa primeira
interação com ferramentas e objetos tecnológicos normalmente vem da curiosidade. Como exemplo, foi
realizado um experimento em Délhi que consistia de um
computador que ficava num buraco na parede em um
local onde viviam crianças pobres (consulte o site: www.
hole-in-the-wall.com). Em vez de ensiná-las formalmente
como usar o computador, essas crianças eram expostas à
máquina para fazer o que quisessem. Incrivelmente, as
crianças aprenderam muitos aspectos do computador e o
fizeram porque foram orientadas pela curiosidade.
A curiosidade é bastante disseminada, mas geralmente existe uma suspeita ligada à curiosidade excessiva.
A expressão “a curiosidade matou o gato” é usada amplamente. Não são raras as ocasiões em que alertamos uma
criança para não ser “curiosa demais”. As crianças
demonstram um senso de curiosidade mais intenso que
parece arrefecer à medida que crescemos. Essa tendência geralmente falha no caso dos bons cientistas. A
imagem do cientista ideal é a de alguém eternamente
curioso – isso deve nos lembrar da visão universal de que
cientistas são “como crianças”.
As crenças sobre a ciência e a curiosidade são
numerosas e profundamente enraizadas entre a comunidade científica. Algumas dessas crenças bastante arraigadas são: a ciência começa a partir da curiosidade; a
curiosidade é o catalisador da ciência pura; cientistas não
devem perder sua curiosidade nem quando velhos; a
atitude questionadora se manifesta quando o espírito de
curiosidade é mantido; a ciência é o domínio onde “a
curiosidade é institucionalizada” e assim por diante.
Einstein repercute o discurso de incontáveis cientistas:
a ciência e a ética da curiOSidade
Sundar SaruKKai
130
O mais importante é nunca parar de questionar. A curiosidade tem sua própria razão para existir. Não é possível evitar o sentimento de reverência ao contemplar os
mistérios da eternidade, da vida, da admirável estrutura
da realidade. Já basta alguém tentar apenas compreender um pouco desse mistério todos os dias. Nunca
deixe passar uma curiosidade sagrada 4.
A curiosidade é frequentemente encarada como sinônimo da atitude questionadora. Neste ponto, vale a pena
fazer a distinção entre dúvida e curiosidade. A dúvida é
131
um termo epistemológico – ela deriva de algo mais
básico, como a percepção 5. Vejo um objeto que parece um
homem, mas, por estar a certa distância, não tenho
certeza se é uma árvore ou se pode ser um homem alto.
Isso desperta a dúvida em mim e fico com uma questão
em relação a essa dúvida. A dúvida também pode ser
classificada em tipos – assim como a curiosidade, temos
dúvidas sobre o que é algo, por que é de tal jeito, como
funciona e assim por diante. Mas a dúvida não é um traço
humano de caráter tão básico quanto se considera a
curiosidade. Não é porque duvidamos que fazemos essas
perguntas – a dúvida baseia-se em alguns julgamentos
que fazemos sobre nossas percepções e deduções. Mas a
dúvida, assim como a curiosidade, é o que nos leva a fazer
perguntas e também nos faz chegar ao conhecimento.
Entretanto, a curiosidade é uma ação psicológica, e não
epistemológica. Ou seja, a curiosidade é “biológica” – o
fato de algumas pessoas serem mais curiosas que outras
é como dizer que algumas pessoas têm a vista melhor
que outras. Mas todos dispõem da visão e todos nós temos
a capacidade de sentir curiosidade. A dúvida é um termo
de ordem mais elevada nesse sentido.
No entanto, o que é mais interessante é que a curiosidade nem sempre foi tida em tão alta estima. Expressões
como “intrometido”, “curiosidade mórbida” e “a curiosidade matou o gato” captam os problemas em potencial
que são inerentes à curiosidade. Ser curioso também
significa ser intrometido além da conta, interferir em
assuntos onde não deveria, não ficar na sua, perguntar
demais, entre outros. Histórias de diferentes culturas
geralmente trazem situações que não são das mais
simpáticas para personagens que são curiosos demais.
No pensamento ocidental, o impacto do mito da caixa de
Pandora e o que isso revela sobre a curiosidade são
bastante conhecidos. O influente romance O asno de ouro
de Apuleio ilustra os riscos de se fazer muitas perguntas,
o que leva a consequências desastrosas. Apuleio é, de
acordo com Walsh 6, responsável pelo uso popular da
palavra “curiositas”. O personagem principal da narrativa é punido não apenas por ser curioso, mas também
por insistir em satisfazer sua curiosidade. Um paralelo
semelhante ocorre na história mitológica de Cupido e
Psiquê. Psiquê paga um preço alto por sua curiosidade
“precipitada”, mas eventualmente acaba sendo salva pelo
Cupido que diz que: “Mais uma vez, pobre menina, a
mesma curiosidade foi sua ruína” (ibid., p. 77). Nesse
caso, a curiosidade como caminho para se chegar ao
conhecimento torna-se problemática quando uma pessoa
que não é elegível para determinado tipo de conhecimento tenta chegar a ele por meio de sua curiosidade.
(É interessante notar que histórias indianas parecem não
enfatizar aspectos negativos da curiosidade como fazem
as tradições ocidentais. Existem algumas histórias como
a da curiosidade de Kunti, que a leva a se tornar mãe
solteira, mas que, no geral, demonstra uma diferença
cultural definitiva na maneira com que essa ideia foi
usada em outras culturas.)
Walsh discute os vários sentidos da ideia de curiosidade, começando a partir de Plutarco, que discute a
curiosidade desmedida dos indivíduos. Plutarco se
preocupou com o efeito da curiosidade em hábitos
sociais, como se intrometer nos assuntos dos vizinhos,
“suas dívidas e suas conversas privadas” (ibid., p. 73).
Plutarco passa, então, à distinção de duas maneiras de
responder ao impulso questionador. Uma delas é evitar a
tentação de ser questionador no que diz respeito ao
a ciência e a ética da curiOSidade
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132
133
comportamento social. A outra é direcionar a curiosidade para a natureza – o céu, a terra e o mar. A solução
de Plutarco para o problema da curiosidade está em
diferenciar a curiosidade “vulgar” de uma curiosidade
mais “intelectual”. Dessa forma, o desenvolvimento da
curiosidade “intelectual”, que mais tarde se tornaria tão
importante no exercício da ciência, deveria ser cultivado
no lugar da tendência a uma curiosidade vulgar.
A ênfase na curiosidade intelectual também despertou muito interesse em Santo Agostinho. Sêneca acreditava que a curiosidade em relação à natureza era uma
virtude positiva, e é interessante observar o porquê disso –
para Sêneca, esse tipo de curiosidade era justificável
porque a curiosidade em relação ao mundo acrescenta ao
nosso entendimento do valor da vida humana e, portanto,
pode ser vista como uma “busca moral”. A curiosidade
desse tipo, que passa a ser valorizada na curiosidade
científica, tinha um caráter moral intrínseco, pelo menos
nos primórdios da tradição ocidental. (Contrariamente a
isso, essa curiosidade que caracteriza a ciência moderna
foi totalmente excluída do âmbito da moralidade.) Como
Walsh observa, a tradição aristotélica apoiava um questionamento desinteressado, ao passo que os estoicos
defendiam que essa curiosidade só se justificava se
aumentasse a virtude.
Na época de Santo Agostinho, podemos observar um
uso ideológico estabelecido da “curiosidade”. Na tradição
cristã, a curiosidade sempre foi algo problemático – até
mesmo a queda de Adão e Eva se deve à curiosidade.
Para Santo Agostinho, atingir o conhecimento por outros
meios que não a Bíblia (e que sejam contrários a ela), era
visto como trabalho da curiosidade “deslocada”, “abominável”, “incrédula” e outros similares. Walsh sugere que
O asno de ouro tem influência significativa nas Confissões
de Santo Agostinho. Um tema comum e importante para
ambos é o significado da curiosidade. Para Santo
Agostinho, a curiosidade fazia parte do processo que o
levou a trilhar os caminhos errados antes de “se submeter ao batismo cristão” (ibid., p. 82). Segundo ele, a
curiosidade da visão é vulgar, enquanto a curiosidade da
mente é desordenada. Em meio aos três vícios, ele
observa que a curiosidade está junto com o orgulho e a
luxúria. Além disso, a desconfiança em relação às artes
obscuras como a magia foi codificada nessas artes
chamando-as de “artes curiosas” (p. 268) 7. Santo Agostinho
utiliza a imagem da luxúria para descrever atos de
curiosidade como sendo uma “luxúria por experimentar
e saber”. Ele chama a curiosidade de “luxúria dos olhos”,
mas devemos nos atentar às implicações de uma “luxúria
da mente”, que é inerente a essa percepção.
Considerando a influência de Santo Agostinho na
teologia e na ética, não é de surpreender a descoberta do
impacto de suas visões sobre a curiosidade. Teólogos
medievais continuaram a desconfiar da curiosidade e,
junto com a magia, as religiões pagãs e a necromancia
atacaram também a astrologia (que estava começando a
se tornar popular), considerando-a uma atividade catalisada pela curiosidade. Até mesmo São Tomás de Aquino,
apesar de aceitar o estudo da natureza, manteve a curiosidade na lista de vícios. A condenação da curiosidade foi
bastante disseminada, desde a época do Renascimento
e da Reforma Protestante, até a era do puritanismo, em
fins dos séculos Xvi e Xvii na Inglaterra. Como sinalizado por Harrison, essas visões da curiosidade “não se
restringiam a moralistas e eclesiásticos, e alusões a esse
vício intelectual são abundantes em trabalhos de poetas,
a ciência e a ética da curiOSidade
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134
135
prosadores e dramaturgos do século Xvii” (ibid., p. 271).
Semelhante a visões anteriores da curiosidade, o vício
mais pungente associado a ela era o orgulho, o “pecado
capital”. Harrison observa como John Downame,
no século Xvii, afirmava que o orgulho e a curiosidade
viviam uma relação cíclica. O orgulho era a mãe da
curiosidade e, ao mesmo tempo, a curiosidade levava a
um conhecimento vão, que aumentava (ou “empolava”,
um termo que começava a ser amplamente usado na
época) o orgulho do sujeito. No século Xvii, métodos de
questionamento estavam sujeitos à análise ética e, assim,
cada método de análise passou a ser associado a vícios
e virtudes, dependendo do caso. Se determinados métodos de conhecimento e questionamento eram associados
a vícios como a curiosidade, a vaidade e assim por diante,
isso levava ao entendimento de que o conhecimento
adquirido por tal método de questionamento estava
contaminado por esses vícios.
Não só a astrologia e a alquimia eram vistas como
“frutos dúbios da curiosidade”, mas também assuntos
como a matemática e as artes mecânicas eram “associados às práticas proscritas de feitiçaria e magia” (ibid.,
p. 277) na época do Renascimento. Existe uma estrutura
comum que pode ser discernida na desconfiança em
relação à curiosidade. Há um reconhecimento dominante de que a curiosidade porta um aspecto duplo – “o
status moral do questionador e a natureza do conhecimento sugerido” (ibid., p. 278). Essa invocação explícita
do status moral do questionador, bem como a natureza do
conhecimento derivado da curiosidade são elementos
importantes da resposta ética à curiosidade.
Essa suspeita em relação à curiosidade vã/pura e o
conhecimento sobre o mundo, como se pode imaginar,
deve ter constituído um desafio sério ao nascimento da
ciência moderna, para a qual ambas as características
são essenciais. Francis Bacon é frequentemente citado
como uma figura importante no estabelecimento da
ciência, e nesta história da curiosidade ele também
desempenha um papel importante. Bacon começa
fazendo a distinção do conhecimento sobre o mundo e a
curiosidade vã, que ele relaciona à magia, à alquimia e
afins. Em seguida, parte para a argumentação sobre a
utilidade do conhecimento sobre o mundo relacionando-o à virtude ética da caridade. Então, ele passa à associação do conhecimento com o orgulho, a curiosidade etc.
até uma virtude cristã seminal, a saber, a caridade.
Ainda mais significativo foi o estabelecimento sagaz feito
por ele da legitimidade do estudo da natureza a partir de
dois argumentos – o primeiro, mostrando como esse
esforço é consistente com a interpretação bíblica; e o
segundo, negando que a aquisição do conhecimento seja
moralmente errada quando feita adequadamente. Existe
uma conotação moral para essa conduta adequada e,
portanto, para realizar a filosofia natural (para nós, a
ciência) são necessárias “certas qualificações morais”
(ibid. p. 281). Vejamos algumas dessas qualificações: a
pureza da mente em relação à motivação, a restrição da
luxúria intelectual e a “tendência ao excesso”. No lugar
da “luxúria e da gula” (em relação à mente), ele sugere
“a abstinência e a castidade” para a atividade intelectual
adequada. Como observado por Harrison, esse é um
modelo asceta da busca do conhecimento, cujos elementos estão presentes nas narrativas atuais sobre o trabalho
científico, o que inclui abrir mão (ou pelo menos ter uma
indulgência comedida) dos prazeres do mundo, uma
perseverança mental disciplinada e continuada, e assim
a ciência e a ética da curiOSidade
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136
137
por diante. Para Bacon, “é a caridade que deve motivar o
conhecedor, e não a curiosidade” (ibid., p. 282). Portanto,
Bacon possibilita a busca da ciência de modo aceitável
para a sociedade como um todo ao colocar o conhecimento na esfera da moralidade aceita, além de apagar
visões negativas da curiosidade.
A partir do século Xvii, valores positivos passaram a
ser ligados à curiosidade. Hobbes caracterizou a curiosidade como um “‘apetite por conhecimento’ moralmente
neutro” (ibid., p. 283). Hobbes também usou a curiosidade
para distinguir humanos de animais e, assim, colocou a
curiosidade em meio a uma constelação de ideias como a
racionalidade, o que serviu para fazer essa distinção em
Aristóteles. Para Hobbes e Descartes, a curiosidade era a
origem da busca pelo conhecimento. Para Descartes,
o problema estava na curiosidade sem metodologia e, a
partir disso, ele construiu métodos para controlar a
“curiosidade cega”. Ao longo do século Xvii, a curiosidade
foi se estabelecendo como algo natural e inato, que
caracteriza o pensamento e a ação humana. Não é por
acaso que esse período também observou a invocação de
uma obrigação com respeito à aquisição de conhecimento. O conhecimento deixou de ser um passatempo
desocupado ou algo pertencente às artes curiosas e
malignas, e tornou-se um dever reconhecido pelo qual se
orienta a busca intelectual. Mas mesmo quando a curiosidade passa a ser aceita como parte natural do ser humano,
seu propósito ainda tinha algo de “buscar regularidades
morais na natureza” (ibid., p. 287).
Harrison também discute brevemente como a
curiosidade é legitimada ao ser relacionada com o Divino.
Entre outros teóricos, Robert Boyle encarava a natureza
como portadora de diversas características curiosas.
A curiosidade é, então, destituída de seu caráter de
propensão específica dos humanos e passa a ser algo que
caracteriza aspectos do mundo, aspectos que talvez
aticem nossa curiosidade. (Algo semelhante ocorre com
vários outros conceitos subjetivos, como o Belo, que passa
de resposta psicológica específica a “propriedade” inerente de objetos belos.) Se a curiosidade agora caracteriza
o mundo (de modo que podemos falar sobre “criaturas
curiosas”, “objetos curiosos”, “características curiosas de
um inseto” e assim por diante) e se o mundo foi criado
por Deus, então o valor negativo associado à curiosidade
é negado – este é um argumento de Harrison (ibid.,
p. 287) que ganha alguma força.
No século Xviii, a curiosidade foi completamente
“reabilitada”. A definição de curiosidade como “amor
pela verdade”, estabelecida por David Hume, fez parte
desse processo no qual a curiosidade, assim como para
Descartes, era a gênese do conhecimento. Além disso,
Hume também afirmou que não ser curioso leva à
ignorância e à “barbárie”. Então, a curiosidade passa a
não só ser uma virtude positiva, mas também se torna
necessária para determinados fins positivos. Como
observado por Harrison, “se, para Aristóteles, a admiração era o início do conhecimento, para Hume e seus
contemporâneos essa honra agora recaiu sobre a curiosidade” (ibid., p. 287). Harrison conclui sugerindo que a
trajetória da ideia de curiosidade também indica uma
mudança na maneira como as relações entre o conhecedor e o conhecido eram entendidas – antes, o caráter
moral do conhecedor era importante, mas esse papel de
conhecedor perde em significância à medida que a noção
de curiosidade adquire status positivo. Em outras palavras, a moralidade do conhecedor torna-se menos
a ciência e a ética da curiOSidade
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138
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importante conforme a curiosidade vai adquirindo
importância, até o ponto de, na ciência moderna, a
moralidade do cientista ser completamente apagada na
avaliação do conhecimento científico. Assim, um método
impessoal substitui o sujeito do conhecedor – uma
tendência que Harrison descobre não apenas em Descartes,
mas também em Bacon e outros teóricos. Com o passar
do tempo, e um distanciamento cada vez maior entre
o cristianismo e a ciência, a ideia de método domina a
visão da ciência.
A criação da ciência moderna também passou pela
criação de novos significados para a curiosidade. A
reabilitação da curiosidade como termo positivo foi
essencial para o desenvolvimento da ciência moderna.
Peters 8 indica como a mudança no significado de curiosidade fazia parte do discurso de exploração e descoberta
que vinha desde Colombo. Legitimar viagens para locais
distantes e a exploração do mundo – incluindo a exploração com fins comerciais, como a mineração – era necessário, porque viajar e explorar não eram ações vistas com
uma carga positiva. A recriação do significado de curiosidade foi utilizada para validar essas explorações e a
descoberta dos segredos do mundo. Parte desse programa de legitimação tinha relação com a tentativa da
Igreja de levar o cristianismo para o resto do mundo.
Cientistas tinham consciência do discurso cambiante sobre a curiosidade e, na verdade, trabalhavam
para promover novos significados do termo. O que talvez
melhor ilustre isso seja a maneira como a Royal Society
usou a curiosidade no século Xviii 9. Para a ciência, a
validação do querer aprender sobre fenômenos novos e
desconhecidos repousava sobre a ideia de curiosidade.
Na primeira metade do século Xviii, a Royal Society
contribuiu para o valor da curiosidade por meio de
diversos canais institucionais. Nos comunicados apresentados pela instituição, constavam não só eventos médicos,
mas também astronômicos, que eram geralmente descritos como curiosos. Como observa Costa, até os “certificados de eleição apresentados pela Royal Society ilustram
essa ‘linguagem da curiosidade’” (ibid., p. 148). Por
exemplo, um certificado apresentado a Henry Stevens
“o descrevia como ‘um cavalheiro de vasta curiosidade’”.
Costa argumenta que “ser curioso” passou a ser promovido como um traço importante para ser cientista, e a
“busca por curiosidades” tornou-se uma ação valiosa. A
instituição encarregou-se de promover essa prática da
curiosidade – por isso, aconteciam “demonstrações
regulares de curiosidades naturais e artificiais nas
reuniões”, os integrantes eram incentivados a ter sua
própria coleção de curiosidades e virou tradição entre os
membros a doação de curiosidades (Newton doou um
“pequeno pássaro trazido da Pensilvânia” [ibid., p. 159]).
As curiosidades desempenharam um papel importante não apenas nas atividades da Royal Society, mas
também no esboço de definições de conhecimento e
ciência no século Xviii. Costa conclui observando que o
“lugar das curiosidades da natureza na Royal Society
mostra, portanto, a variedade e a complexidade de
elementos envolvidos no feitio e na difusão do conhecimento natural no período” (ibid., p. 160). Em fins do
século Xviii, a preocupação com as curiosidades decaiu,
mas, então, a curiosidade já havia sido completamente
reabilitada. Na verdade, essa influência da curiosidade
científica podia ser observada até na literatura. O exemplo
mais notável é o da ficção policial. Histórias de detetives
geralmente são moldadas sobre aspectos científicos e
a ciência e a ética da curiOSidade
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trazem consigo vários instintos científicos. Edgar Allan
Poe é frequentemente creditado como autor do primeiro
romance policial moderno (Os assassinatos da rua
Morgue), que “se apresenta como científico” 10. Virtudes
positivas da curiosidade – incluindo uma verdadeira
paixão por ela e também algo como um questionamento
desinteressado – marcaram a história do detetive
moderno. O “jargão do questionamento científico” foi
uma influência primária para os detetives ficcionais
(ibid., p. 54), e a reabilitação da curiosidade desempenhou
um papel importante nisso.
O discurso relativo às noções de puro e aplicado
também mudou significativamente ao longo da história
da curiosidade. A justificativa do conhecimento a princípio se baseava em sua utilidade moral e religiosa. Mas
depois ela passou a ser feita em termos de uso prático –
uma mudança que, como argumenta Harrison, também
estabelece uma distância entre a moralidade do conhecedor e aquilo que é conhecido. Dessa forma, a noção
inconstante de utilidade no contexto do conhecimento
científico significava que o status moral do cientista
era irrelevante para o que aquele conhecimento afirmava –
neste ponto podemos notar o início da expulsão que foi
imposta à ética na prática científica. O próprio fato
de usarmos “ciência” (como uma disciplina impessoal, um
método) em vez de “cientista” até mesmo em contextos
em que a atuação humana é óbvia, é outro indicativo do
sucesso desse projeto de apagar o humano da natureza,
o ético do científico.
A trajetória do desenvolvimento da narrativa sobre
a curiosidade traz lições importantes sobre a ética e a
ciência. Como sinalizado por Blumenberg 11, a curiosidade
era uma “tentação” para Santo Agostinho. Hoje em dia,
ela se encontra bem distante dessa visão, mas, em
meio a esse percurso, a curiosidade despiu-se também de
qualquer noção de responsabilidade. Entre outras virtudes positivas, ela foi associada a uma característica
infantil e também passou a ser vista como uma virtude
relacionada à inocência. É essa inocência da curiosidade
que a ciência compartilha com as crianças, e é essa
inocência que normalmente atua como baluarte das
insistentes questões éticas que remetem à ciência. É essa
inocência presumida que faz os cientistas afirmarem que
seu único dever é descobrir “verdades”, sejam quais
forem as consequências trazidas por elas. O argumento
de Blumenberg é que a revolução científica, como
demonstrado no caso das observações feitas por Galileu
com seu telescópio, libertou a curiosidade das garras da
moralidade religiosa. Isso leva à fuga da “autorrestrição”
que, ainda de acordo com Blumenberg, catalisou o
esclarecimento e o estabelecimento do método científico
que, por sua vez, levou à ciência moderna. Ao passo que
esse retrato talvez seja muito amplo, ainda assim é
verdade que a retirada da “autorrestrição” foi e continua
sendo extremamente importante para a prática da
ciência. A crença de que não deveriam existir grilhões
para o pensamento científico tem sua origem nessa
complexa história 12. […]
a ciência e a ética da curiOSidade
Sundar SaruKKai
142
143
2
Bunge, m. “The Ethics of Science and
the Science of Ethics”. Science and
Ethics (ed. Kurtz, P.). Nova york:
Prometheus Books, 2007.
3
Gopnik, A. “The Scientist as child”.
Philos. Sci., 1996, vol. 63, pp. 485–514.
4
www.asl-associates.com/
einsteinquotes.htm, em inglês.
5
Sarukkai, S. Indian Philosophy and
Philosophy of Science. délhi: cSc/
motilal Banarsidass, 2005.
6
Walsh, P. G. “The rights and Wrongs
of curiosity (Plutarch to Augustine)”.
Greece and Rome, 1988, no. 1,
pp. 73–85.
7
Harrison, P. “curiosity, Forbidden
Knowledge, and the reformation of
Natural Philosophy in Early modern
England”. Isis, 2001, vol. 92,
pp. 265–290.
8
Peters, E. “The desire to Know the
Secrets of the World”. J. Hist.
Ideas, 2001, vol. 62, pp. 593–610.
9
costa, Fontes da. “The culture of
curiosity at the royal Society in the
First Half of the Eighteenth century”.
Notes Rec. r. Soc. London, 2002,
vol. 56, pp. 147–166.
12 Evans, r. J. W. e marr, A. (eds.).
Curiosity and Wonder from the
Renaissance to the Enlightenment.
Burlington: Ashgate, 2005.
11 Blumenberg, H. The Legitimacy
of the Modern Age. cambridge:
miT Press, 1985.
a ciência e a ética da curiOSidade
Vento 10 Km/h
144
Umidade 66%
10 Goulet, A. “curiosity’s Killer instinct:
Bibliophilia and the myth of the
rational detective”. Yale French
Studies, 2005, no. 108, pp. 48–59.
Temp 10°C
Hacking, i. Representing and
Intervening. Nova york: cambridge
University Press, 1983.
19:27
1
2013-05-16
NOTAS
(2002)
ciêNciA E ARTE: NOvOS
PARADiGmAS NA
EDucAÇÃO E RESuLTADOS
PROfiSSiONAiS
LiNdy JOUBErT
iNTrOdUçãO
O pensamento contemporâneo separa a arte e a ciência
em duas esferas distintas de aprendizado. No entanto,
muitos aspectos dessas duas disciplinas têm origem na
mesma fonte e nas mesmas aspirações. A curiosidade é a
força motriz por trás da inteligência, e a mente humana
busca constantemente encontrar um significado para o
mundo físico, intelectual e espiritual. Isso nos levou a
grandes avanços, descobertas e profundas expressões de
criatividade. A arte se revela de muitas formas na ciência, assim como a ciência tem sido uma forte inspiração
para a arte ocidental.
É importante rever e repensar os modelos educacionais atuais à luz das conexões entre as artes e as ciências.
Pesquisas nesse campo indicam que a inteligência
humana atinge seu maior potencial quando se trabalha
com o aprendizado sob uma perspectiva holística.
Não podemos mais depender dos paradigmas contemporâneos para ensinar e aprender; atitudes inéditas
146
na maneira como as pessoas aprendem e devem ser
ensinadas estão sendo desenvolvidas. Não há dúvida
de que a era da tecnologia transformou nossas vidas e
afetará nossos futuros. Em breve, a maior parte do
trabalho será informatizada, de modo que, para se
tornarem independentes, nossos alunos precisam ser
educados em um nível de habilidade intelectual,
emocional e prática sem precedentes. Os trabalhadores
do futuro devem ser intuitivos, flexíveis e bem informados, além de ser capazes de resolver problemas de
forma criativa.
Talvez o termo “educação” não seja mais suficiente;
talvez devêssemos falar em “caráter e comportamento”.
Só poderemos nos considerar educados quando nos
tornarmos seres humanos com habilidades múltiplas,
demonstrando flexibilidade e confiança para enfrentar
um mundo que ainda está por ser imaginado. Metade
dos empregos que serão necessários neste século ainda
estão por ser inventados, precisamos, portanto, educar
uma força de trabalho capaz de adaptar-se ao futuro
em desenvolvimento.
Uma educação simbiótica e holística, tanto nas
ciências quanto nas artes, pode levar ao desenvolvimento
de todos os aspectos do potencial humano. A ciência
explora os meios de elucidar processos naturais que
obedecem a leis fundamentais. Ela investiga as leis que
controlam o comportamento do mundo e do universo,
e expressa os resultados em uma linguagem matemática
abstrata. A dedução lógica baseada na observação
prática e na pesquisa é o veículo para as descobertas e os
resultados científicos. A arte é o meio pelo qual todas
as civilizações expressaram e avaliaram suas ideias, seu
comportamento e sua cultura através de suas próprias
147
linguagens artísticas. Os artistas geralmente expressam
seus sentimentos (conscientes ou subconscientes), indo
além de suas próprias observações. Essas qualidades
expressivas da arte apelam para as sensações, para a
imaginação e também para as mais altas capacidades da
mente. Cientistas como Newton e Einstein, em sua
época, corroboraram o conceito deste artigo ao reconhecer a importância do imaginário vívido que provém de
experiências visualmente criativas para atingir resultados científicos.
Para estabelecer conexões geralmente ausentes na
prática educacional contemporânea, é preciso desafiar os
modelos educacionais atuais, ampliar os horizontes e
estimular o novo pensamento. Mudanças na visão de
mundo atual, por parte de alguns setores, favorecem a
aproximação entre as ciências e as artes. Muitos exemplos foram apresentados, nos quais a maneira como
percebemos essas disciplinas foi melhorada, revelando a
unidade subjacente entre esses dois campos. Cientistas
e artistas que trabalham colaborativamente em diferentes
áreas concordam que essa parceria traz resultados mais
produtivos. A prática educacional atual direciona os
alunos para um campo ou outro, diminuindo a possibilidade de desenvolvimento do campo que não é escolhido.
O propósito deste artigo é identificar novos desenvolvimentos das ciências no contexto da aprendizagem
multidisciplinar, assim como as conexões entre as ciências
e as artes. Outras questões relacionadas ao assunto
também são apresentadas, com o objetivo de maximizar
o potencial humano. Aspectos políticos, econômicos,
espirituais e sociais são igualmente importantes quando
consideramos o papel do ensino da ciência para o futuro.
Grupos marginalizados da sociedade, como a população
pobre de países em desenvolvimento, correm maior risco
de ser deixados completamente para trás na corrida pelo
avanço econômico. Preocupações éticas sobre o ensino
da ciência no futuro demandam que uma boa educação
seja assegurada para todos.
ciência e arte
Lindy JOubert
148
rEcONHEcimENTO dO cAmPO
As evidências atuais no campo da educação, das ciências,
das artes e das humanidades indicam que áreas especializadas de conhecimento melhoram consideravelmente
em um ambiente de aprendizagem multidisciplinar
quando associadas a áreas de habilidade até então
isoladas. Essa abordagem holística permite que a inteligência humana atinja um maior potencial. O treinamento especializado em uma área pode, de fato, levar a
uma habilidade reduzida de se adequar a um mundo
em acelerada transformação. Essa teoria está na linha de
frente do novo pensamento em educação, ligando disciplinas que permaneciam separadas na maioria das grades
curriculares ao redor do mundo.
Este artigo não só examina as questões relacionadas
ao aprendizado multidisciplinar e o ensino das ciências
e das artes, mas também enfoca a aplicação dessas teorias.
Ele prossegue com estudos sobre formação profissional,
destacando resultados práticos. Minha pesquisa nos
Estados Unidos, na Europa e na Austrália resultou na
compilação de dados sobre os últimos desenvolvimentos
nas ciências e nas artes. Quando os alunos completam
sua formação, é necessário chamar atenção para a
natureza limitada de suas áreas de especialização. Isso se
aplica aos campos da engenharia, medicina, ciência,
matemática etc. Os exemplos a seguir fornecem alternativas viáveis para alcançar resultados mais produtivos
149
para as profissões, buscando fortalecer os professores
como agentes de mudança e aumentar as oportunidades
para desenvolver grades curriculares que levem em
consideração os resultados profissionais.
rELAçõES dE SUcESSO ENTrE ciêNciAS E ArTES
As artes e a medicina
Em algumas áreas da medicina, nos Estados Unidos e na
Europa, diversos profissionais estão percebendo que a
relação com as artes é capaz de gerar resultados mais
benéficos no que se refere à diminuição de medicação e
ao tempo de internação em hospitais. Os novos desenvolvimentos no campo da medicina precisam ser aplicados
ainda nos estágios iniciais da educação. Os médicos
precisam entender melhor, por exemplo, sobre as artes,
de um modo geral, e seu papel na cura. Essas questões
foram negligenciadas no ensino médico tradicional e
também nos estágios iniciais da educação secundária,
quando médicos potenciais são direcionados apenas para
a matemática e as ciências.
Os artistas que trabalham em ambientes de saúde
instauram criatividade nesses espaços – uma reconhecida fonte para melhorar a sensação de bem-estar e o
senso de si mesmo e a autovalorização, com efeitos
positivos sobre processo de cura. Ao trabalhar com
artistas, médicos e profissionais da saúde desenvolvem
novas habilidades de comunicação e atenção aos pacientes. Cada vez mais, hospitais recorrem à arte como um
auxílio adicional ao processo de cura que fornece uma
ferramenta visual para apoiar o atendimento de saúde 1.
150
ciência e arte
As artes e o design do hospital
Atualmente, os arquitetos que projetam hospitais trabalham em parceria com artistas, designers e paisagistas
para construir ambientes de cura harmoniosos de efeitos
comprovados sobre os pacientes. Esses projetos revolucionários incluem jardins e espaços para meditação. Os
arquitetos trabalham juntamente com artistas e designers para construir novos hospitais cujos ambientes
diferenciados atuam positivamente sobre o processo de
cura. É sabido que um hospital com quartos que deem
para um jardim e sacadas com vista para plantas, que
seja cheio de luz e beleza, melhora a saúde emocional e,
consequentemente, a saúde física. Florence Nightingale
escreveu em 1885:
O efeito de objetos bonitos sobre a doença, de sua variedade, e, especialmente, do brilho de suas cores, é
raramente considerado. Acredita-se que seu efeito seja
apenas sobre a mente. Não é. Eles afetam o corpo,
também. mesmo conhecendo pouco sobre como a
forma, a cor e a luz nos afetam, sabemos que esses
elementos têm um real impacto físico. A variedade de
formas e as cores brilhantes dos objetos apresentados
aos pacientes são, de fato, um meio de recuperação.
As artes e as ciências de engenharia
Os engenheiros que trabalham com fenômenos naturais,
como a turbulência do ar e do vento, e os padrões do fluxo
de ondas em um contexto científico, concordam que
muitas descobertas surgem da sensibilidade perceptiva
do artista. Norman J. Zabusky é famoso por seu trabalho
teórico sobre ‘sólitons’, no qual utiliza a visualização
como uma ferramenta heurística para entender
Lindy JOubert
151
processos não lineares. A visualização de fenômenos
complexos é muito difícil, e a ajuda de artistas é frequentemente solicitada. Por outro lado, descobertas da
engenharia e da física também estimularam novas
técnicas nas artes.
Há muitos anos Milton Van Dyke, da universidade
de Stanford, pesquisa os padrões de turbulência em
fluxos de ar e água, tendo publicado monografias que
destacam a natureza criativa e estética desses padrões.
Guido Buresti estuda o fluxo turbulento com ondaletas,
uma ferramenta matemática que permite analisar a
frequência no tempo, de maneira análoga às notas
musicais. Ele vê uma forte relação de seus estudos com
a música e se interessa pela percepção auditiva. Um
de seus projetos é investigar, por meio de ondaletas,
o impacto psicológico do som de motores de carro
sobre passageiros.
Renzo L. Ricca é um estudioso italiano com grande
conhecimento na área da ciência e um profundo interesse pelas artes. Ele desenvolve pesquisas sobre as
estruturas da coroa solar e a física dos nós magnéticos –
que são estruturas complexas de nós. Seria interessante,
ele afirma, comparar esses “nós científicos” aos nós
usados pelos Incas no antigo Peru, ou aos nós de outras
culturas. O professor Werner Jauk é um músico que
pesquisa o tema da “percepção”. O assunto é de grande
importância para cientistas que apresentam seu trabalho
por meio de visualizações, uma vez que elas auxiliam a
compreensão do público. Frequentemente, apenas
os especialistas conseguem entender o que um autor
quer dizer, assim, os artistas que trabalham em conjunto
com cientistas e engenheiros podem ajudar a ampliar
a comunicação 2.
152
ciência e arte
As artes e as ciências
Muitos cientistas percebem a forte relação de sua ciência
com a arte e o design. A atuação de Frank Oppenheimer,
fundador do Exploratorium Science Museum, foi um
bom exemplo de como o trabalho conjunto de cientistas e
artistas possibilita que as pessoas compreendam melhor
o significado de padrões. Ele percebe a busca por padrões
como algo fundamental para as duas áreas. Kepler
descobriu um padrão no movimento dos planetas, que ele
identificou como o motivo de suas subidas e descidas ao
longo de sua trajetória elíptica ao redor do sol. Também
encontramos padrões nas estruturas da poesia e na
melodia da música. Os físicos descobrem padrões e
ritmos nas cores, enquanto botânicos revelam como certas
estruturas de plantas demonstram soluções perfeitas de
engenharia e design. Esses padrões de crescimento
natural são de beleza, harmonia e equilíbrio excepcionais. Tais descobertas podem ser comparadas a padrões e
desenhos provenientes do campo da criação artística.
As artes e a arquitetura
Frank Gehry, Coop Himmelblau, Norman Foster, Renzo
Piano, Richard Rogers, Rem Koolhaas e Zaha Hadid são
exemplos de arquitetos que se interessam pela ciência e
pela arte da arquitetura. Rem Koolhaas acredita em
progresso social e renova os laços entre tecnologia e
progresso. O vocabulário high-tech da Foster Associates
demonstra uma inquestionável exploração das formas e
das inovações tecnológicas. As estruturas sempre novas
de Zaha Hadid surpreendem o mundo, ao mesmo tempo
em que suas pinturas, representações de possíveis
construções, são amplamente reconhecidas. A arquiteta
narra seus projetos por meio de diferentes mídias
Lindy JOubert
153
– esboços, pinturas, colagens, fotografias, diagramas e
apresentações de computador. O Guggenheim Museum
de Bilbao, projetado por Frank Gehry, foi descrito como
“a construção mais importante de nosso tempo” e “o
melhor prédio do século”. Originalmente concebido
como uma escultura com um conglomerado de formas e
materiais, o prédio foi pensado para ser a primeira obra
de arte do museu. Frank Gehry “busca noções de liberdade e indeterminação em vez da tradição e doutrina
arquitetônica”. Suas formas não racionais e não lineares
aguçam os sentidos e estimulam a percepção, dando aos
visitantes confiança em suas próprias intuições, emoções
e sensações. É uma grande contribuição para a arte e a
ciência da arquitetura.
As artes, as ciências e os museus
Museus cuja concepção relaciona a arte e a ciência
fornecem vasto material a favor do paradigma de uma
educação holística da arte e da ciência, tanto para
escolas quanto para o público em geral. Artistas com
formação científica, além da artística, produzem exposições altamente inventivas, as quais capturam a imaginação e estimulam o desejo de seus públicos por mais
conhecimento. Algumas mostras relacionadas ao
Exploratorium, em São Francisco, Estados Unidos,
incluem Wave Organ [Órgão de ondas], uma escultura
acústica ativada por ondas localizada em um molhe na
baía de São Francisco; Aeolian Landscape [Paisagem
eólica]; Chaotic Pendulum [Pêndulo caótico]; Confused
Sea [Mar confuso]; Magnetic Field Stone [Pedra de campo
magnético] – para mencionar apenas algumas. Artistas
e cientistas trabalham exitosamente para criar exposições, realizando o sonho de Frank Oppenheimer de
154
ciência e arte
que as ciências e as artes, em conjunto, produzirão um
mundo melhor.
O trabalho de Jim Tattersall no Museum of Natural
History, de Nova York, combina holografia com informação científica e computacional para criar exposições
inovadoras. O modo como essas técnicas estimulam a
educação e a percepção visual é revolucionário. Por
exemplo, The Holographic Woman [A mulher holográfica]
explica a anatomia feminina usando tecnologia de ponta.
A arte e a ciência são totalmente integradas como forças
harmoniosas, unidas para demonstrar o espírito de
invenção e as novas formas de ver o mundo natural.
A arte dos padrões, a matemática e mandelbrot
Podemos encontrar na natureza uma extraordinária
variedade de padrões, sendo que a composição de suas
estruturas pode ser explicada usando as fórmulas matemáticas fractais. Benoit B. Mandelbrot, um matemático
do centro de pesquisa T. J. Watson, da ibm, desenvolveu
uma geometria capaz de analisar e quantificar formações
naturais como rochedos, espirais, ondas e ramificações.
Ele batizou esse novo ramo da matemática de “geometria
fractal”. Desde então, cientistas e matemáticos usam
fractais para encontrar ordem em estruturas naturais
que antes desafiavam a análise. Uma encosta rochosa
pode ser estudada por meio da análise fractal, por
exemplo. A análise de formas naturais por meio da
geometria fractal levou à criação de falsos fractais –
imagens geradas por computador semelhantes às formas
encontradas na natureza. Por trás de qualquer fractal
gerado por computadores, há uma fórmula matemática.
Usando diferentes fórmulas, os computadores geraram
formas que se assemelham a paisagens, nuvens e
Lindy JOubert
155
As evidências de que relacionar as artes e as ciências por
meio do ensino e da aprendizagem multidisciplinar traz
resultados produtivos se tornam claras quando examinamos o trabalho de músicos e cientistas que exploram
a experiência musical. A pesquisa e as técnicas de Paul
Robertson estão fornecendo respostas a questões antigas
sobre o mundo da música. Ele é líder do Medici String
Quartet [Quarteto de cordas Médici] e professor convidado de música e psiquiatria na Kingston University, no
Reino Unido. Sua pesquisa no campo da neurologia,
junto com o neuropsiquiatra Peter Fenwick, desenvolveu
uma nova compreensão sobre como o cérebro e a música
funcionam, se relacionam e sintetizam. Seu estudo é
baseado em antigos modelos de filósofos gregos que
perceberam que os intervalos de altura do som obedeciam
a princípios da matemática.
O neurologista e neurobiólogo Mark Tramo, da escola
de medicina de Harvard, investiga como a percepção da
música afeta o nível mais elementar de resposta cerebral.
Cientistas contemporâneos já desenvolveram estudos
sobre temas como “cor tonal”, dispositivos de localização,
paradoxos auditivos, o exame do cérebro musical, o
significado do som em nossas vidas e a neurologia da
recepção musical.
Pesquisadores americanos ganham as manchetes ao
alegar que escutar Mozart nos torna mais inteligentes.
Por mais extraordinário que pareça, isso vai ao encontro
do argumento defendido pelo tema deste artigo. Estudos
apresentam evidências consistentes de que tocar ou
escutar música aumenta a capacidade de alunos de pon tuar melhor em testes de qi, predispondo o cérebro
a funcionar de maneira mais criativa, chegando a promover uma melhora de até 47% em tarefas de juntar objetos
(como montar quebra-cabeças). Esses resultados foram
alcançados por crianças que passaram por oito meses
de treinamento em piano, em comparação com um grupo
de controle que não recebera aulas do instrumento.
Poderíamos perguntar, então, se escutar ou tocar
música afeta a inteligência. A resposta reside no sistema
ciência e arte
Lindy JOubert
árvores. Essas imagens exemplificam, de maneira
bastante poderosa, a beleza e a complexidade da arte
e do design na natureza.
A arte do artista científico
Ao longo da história, grandes obras de arte que representam e explicam as ciências botânicas, a história
natural e a anatomia foram produzidas. Dos caçadores do
período paleolítico até os homens do século XX, muitos
contribuíram significativamente com a arte e a ciência.
Trabalhos de artistas célebres ou menos conhecidos
podem ser encontrados nos acervos mais importantes do
mundo, incluindo o British Museum, o Smithsonian e a
Mellon Collection. Esses exemplos destacam a ciência de
retratar a natureza por meio da arte. Alguns desses
artistas são Leonardo Da Vinci, Albrecht Dürer, Jim Dine
e Georgia O’Keefe. Suas obras constituem ilustrações
de descobertas da botânica e da história natural, do
tempo das viagens de Colombo aos estudos de Charles
Darwin nas Ilhas Galápagos; do imperador do Sacro
Império Romano-Germânico Rodolfo II aos povos indígenas da Austrália; de Sydney Parkinson, artista
que viajou ao lado do Capitão Cook no navio Endeavour;
a WalterHood Fitch, um dos mais prolíficos artistas
botânicos da história.
A arte da música e da mente
156
157
auditivo, que tem a função de inferir e descobrir padrões.
Ele rapidamente interpreta padrões no tempo, percebendo-os como ritmo, e os relaciona às pulsações do
próprio corpo. Essa pesquisa ampara a tese de que
estudar ou escutar música afeta o modo como pensamos,
aguçando ativamente o pensamento abstrato. Novamente, a incorporação dessa forma artística na educação
estimula de maneira evidente a capacidade intelectual
dos alunos.
aprender. Acima de tudo, ao integrar as artes ao aprendizado, a matéria se torna automaticamente mais compreensível, e os alunos se sentem estimulados a aprender.
PESQUiSAS FUNdAmENTANdO UmA GrAdE
cUrricULAr mULTidiSciPLiNAr
O conceito de educação holística, no sentido da inclusão
das artes ao longo do espectro da grade curricular, foi
perdido ao longo das reformas educacionais do século
passado que transformaram em regra um foco simplificado e especializado. Em seu lugar, consolidou-se um
modelo de aprendizado no qual o aluno permanece
sentado em uma carteira, tentando entender a experiência de outra pessoa, condensada e abstraída na forma de
um livro didático. As diretrizes do ensino secundário
atual direcionam os alunos para campos especializados,
enquanto as pesquisas de ponta indicam que áreas
especializadas da educação são consideravelmente
favorecidas quando as artes são combinadas às ciências e
às humanidades.
A verdade é que, quando incorporadas a uma grade
curricular tradicional de ciências, as artes podem servir
como um catalisador para superar atitudes predeterminadas, aumentando a taxa de permanência dos alunos
em sala de aula. Uma grade curricular que inclui as artes
pode aumentar o interesse pela matéria principal, deixar
os alunos mais autoconfiantes e fornecer novos meios de
O Project Zero, da universidade de Harvard, a Association
for the Advancement of Arts Education – AAAE
[Associação pelo Avanço na Arte-Educação], nos Estados
Unidos, e a National Foundation for Educational
Research – NfER [Fundação Nacional de Pesquisa em
Educação], do Reino Unido, conduziram vastos programas
de pesquisa cujos resultados poderão redesenhar o
terreno da educação em relação a ambientes educacionais sociais, políticos, econômicos e tecnológicos.
Esses programas de pesquisa apresentam bons
argumentos para a reavaliação fundamental dos modos
como as escolas se organizam em relação ao ensino e à
aprendizagem. Os educadores estão sendo desafiados a
reexaminar noções tradicionais do que deve ser ensinado
nas escolas e como isso deve ser feito. Isso inclui uma
ênfase em uma grade curricular mais articulada, rigorosa e interdisciplinar, que reconhece e valoriza a contribuição de todos os aspectos de uma dada sociedade.
As pesquisas teóricas e práticas do Reviewing
Education and the Arts Project [Projeto Revisando
a Educação e as Artes], parte do Project Zero, concluem
que quando inovações acadêmicas que incorporam as
artes são introduzidas em escolas, elas fornecem formas
de motivação e envolvimento a alunos que costumam
obter pouco sucesso nas estruturas e culturas do ensino
contemporâneo 3.
ciência e arte
Lindy JOubert
UmA ABOrdAGEm HOLíSTicA dO APrENdizAdO
158
159
Tal fato pode ser aplicado no ensino de estudantes
em países em desenvolvimento, que frequentemente se
deparam com desvantagens a superar. A educação
precisa não só ser relevante para as demandas, os valores
e as tradições culturais dos alunos, mas também considerar suas realidades econômicas e sociais locais.
O projeto REAP, da Harvard, defende que, quando uma
disciplina adquire inclinação artística, os alunos têm
mais vontade de permanecer nela. Uma maior confiança
leva a maior motivação e esforço, que, por sua vez,
resultam em maiores realizações. O bom senso dita que
todos os alunos podem se beneficiar de uma abordagem
que inclui a arte – mesmo os de alto desempenho –
simplesmente porque uma abordagem que inclua a arte
torna qualquer assunto mais interessante.
PESQUiSAS SOBrE EdUcAçãO Em ciêNciA/ArTES Em
EScOLAS SEcUNdáriAS
Um artigo publicado pelo NfER do Reino Unido apresenta o resumo de um relatório detalhado sobre a educação artística nas escolas secundárias, seus efeitos e
eficácia. O relatório apresenta os resultados de um estudo
de três anos sobre os efeitos e a eficácia da educação
artística em escolas secundárias na Inglaterra e no País
de Gales. Lançada pela British Royal Society of Arts em
1997, a pesquisa foi desenvolvida pelo NfER 4.
Os principais objetivos do estudo eram:
–
investigar o alcance dos resultados atribuíveis ao
ensino das artes em escolas de nível básico e secundário, considerando particularmente a hipótese de
que o envolvimento com a arte pode alavancar o
160
ciência e arte
–
desempenho acadêmico de maneira geral;
analisar os principais processos e fatores que podem
causar esses efeitos, incluindo a identificação e
a descrição de práticas particularmente eficazes.
descobertas dos estudos de caso a respeito dos efeitos da
educação em arte
Os efeitos da educação em arte foram divididos em
categorias amplas. As seis primeiras reúnem resultados
diretos no processo de aprendizagem dos alunos,
enquanto as três restantes abrangem outros tipos de
efeitos. Os resultados atribuíveis às artes relevantes para
os objetivos deste artigo são mostrados no anexo.
Nas escolas com forte reputação na área de artes,
diferentes efeitos relacionados a alunos com bom desempenho em ao menos uma forma de arte foram relatados.
Resultados relacionados a avanços nas habilidades
técnicas e conhecimento referente a formas específicas
de arte foram o tipo de efeito mais mencionado. Foram
registrados, ainda, testemunhos vívidos de muitos outros
resultados, incluindo:
–
–
–
–
sensação de satisfação em relação às próprias
realizações dos alunos;
habilidades sociais (especialmente as necessárias
para trabalhar em equipe);
autoconfiança;
habilidades expressivas e criatividade.
Para entender os benefícios das novas formas de
ensino de ciências que incorporam as artes, é preciso
examinar os resultados dos estudos de caso dos principais programas de pesquisa descritos aqui. Questões
Lindy JOubert
161
como a melhora da autoestima, e o desenvolvimento
pessoal e social são de extrema importância para
o desafio de lidar com os problemas de desavenças e
exclusão social entre jovens.
1.
2.
Quando integradas à grade curricular de ciências
e humanidades, as artes favorecem uma base sólida
para o aprendizado;
A educação deve promover e adotar uma estrutura
de valores capaz de melhorar a qualidade de vida.
cONcLUSãO
Por que incorporar as artes a uma grade curricular
de ciências?
Incorporar as artes no ensino de ciências, tanto em
escolas de nível básico quanto de nível secundário,
facilita o aprendizado e torna a educação mais prazerosa
por meio de experiências criativas. Isso permite que os
alunos compreendam o conceito de humanidade, experimentando aquilo que os seres humanos fazem de
maneira única – dar forma a experiências de vida por
meio de um conjunto de símbolos e entendimentos
estéticos e científicos. Pesquisas comprovam que privilegiar as artes em grades curriculares de educação secundária de fato melhora o desempenho acadêmico. A busca
por inserir as artes nas grades curriculares de ciência é
de evidente importância, especialmente quando tomamos como referência para comparação as grades curriculares que não estabelecem essas relações. Pesquisadores
continuarão investigando como as artes podem ser
veículos de transformação, possibilitando que os educadores coloquem em prática essa grade curricular integrada.
Três programas de pesquisa – Project Zero, da
universidade de Harvard, o AAAE Review, dos Estados
Unidos, e o relatório do NfER, do Reino Unido, chegaram
a conclusões bastante similares de que a educação deve
se basear em dois princípios:
162
ciência e arte
No futuro, não precisaremos mais da memória para
armazenar grandes quantidades de informação. Os computadores mudaram o mundo do aprendizado ao fornecer
toda a informação de que necessitamos. Precisamos, agora,
de habilidades para pensar de maneira clara e inteligente,
o que é muito diferente de saber grandes quantidades de
informação. Isso só será possível quando os alunos forem
ensinados a pensar de maneira holística, de modo multidimensional e quando as disciplinas forem ensinadas
simultaneamente –ciências, artes, história e literatura.
Para aprender bem, os alunos não precisam seguir as
regras que a educação tradicional por tanto tempo ditou.
Importantes programas de pesquisa chegaram às mesmas
conclusões: os alunos podem aprender de inúmeras formas
ao combinar as artes com a história, a literatura e as
ciências. É muito mais provável que esse método de
aprendizado permaneça com o estudante para sempre,
permitindo-lhe desenvolver todo o seu potencial.
O valor de uma grade curricular que integra ciências
e artes na educação de nível básico e secundário e sua
capacidade de desenvolver ao máximo o poder intelectual
do aluno podem ser percebidos por meio de exemplos
de resultados profissionais. Um programa baseado em
ciências e artes, como demonstram os resultados das
pesquisas, também oferece aos estudantes a oportunidade de adquirir comportamento responsável e reforçar
valores em um contexto ético e social.
Lindy JOubert
163
Para entender o conceito de preocupações éticas,
assim como adquirir um comportamento responsável, é
importante manter em foco valores de responsabilidade
social e atuar como uma pessoa humana e comprometida. O trabalho acadêmico é importante, mas ele precisa
ter qualidade e responsabilidade.
Essa educação responsável não se completa nos
primeiros anos do ensino, mas alcança seu maior
impacto durante os anos do ensino secundário – na fase
adulta, já é tarde demais. Pais e professores devem
abraçar essa tarefa e procurar nutrir um senso de responsabilidade em todos os jovens. Além disso, o conhecimento no campo das ciências da saúde é essencial para
estimular o comportamento responsável por meio de
programas de formação, a fim de combater problemas
crescentes como as drogas e o hiv/Aids.
O mundo desenvolvido vive uma época que favorece
as explicações baseadas na ciência. Garantir um caminho para o futuro responsável, sábio e esclarecido dependerá de combinar o melhor da ciência e o melhor das
artes com os mais altos valores éticos.
ANExO: rESULTAdOS ASSOciAdOS à EdUcAçãO
Em ArTE
Efeitos nos estudantes
1.
2.
3.
Sensação ampliada de alegria, empolgação,
realização e alívio de tensões.
Aumento do conhecimento e habilidades relacionadas a formas de arte específicas.
Ampliação do conhecimento sobre questões
sociais e culturais.
O desenvolvimento da criatividade e das formas
de pensar
4.
5.
6.
Enriquecimento da comunicação e das habilidades
de expressão.
Avanços no desenvolvimento pessoal e social.
Efeitos que se transferem para outros contextos,
como o aprendizado de outras matérias, o mundo
do trabalho e atividades culturais extracurriculares
e extramuros.
Outros efeitos
7.
8.
9.
164
ciência e arte
Efeitos institucionais na cultura da escola.
Efeitos na comunidade local (incluindo pais
e governantes).
A própria arte como um resultado.
Lindy JOubert
165
BiBLiOGrAFiA
NOTAS
1
2
3
John Graham-Pole, doutor em
medicina, membro do royal college
of Physicians (mrcP), professor de
pediatria, é referência na área de arte
e saúde nos Estados Unidos e diretor
do centre for Arts and Health
research and Education [cAHrE –
centro de Pesquisa e Educação em
Artes e Saúde], University of Florida:
www.arts.ufl.edu/main/cahre/
homepage.html. O European Forum on
the Arts in Hospitals and Healthcare
[Fórum Europeu sobre Arte em
Hospitais e Assistência médica]
ocorreu em Estrasburgo, França, em
fevereiro de 2001, atraindo artistas,
médicos, profissionais da saúde,
arquitetos e pessoas de toda a Europa
que trabalham para promover as artes
na área da saúde.
4
O relatório completo desse estudo do
NFEr, intitulado Arts Education in
Secondary Schools: Effects and
Effectiveness [Educação artística em
escolas secundárias: efeitos e
eficácia], foi disponibilizado pela
Publications Unit, The Library, NFEr
The mere, Upton Park, Slough,
Berkshire SL1 2dQ, United Kingdom.
Solicitações de pesquisa devem ser
enviadas a John Harland, através do
e-mail:
[email protected].
Esse trabalho foi apresentado na
terceira international conference on
Flow interaction of Science and Art
[ScArT – conferência internacional
sobre interação de Fluxos em ciências
e Artes], em zurique, 2000. Seu
objetivo era promover o diálogo entre
um grupo internacional de cientistas,
principalmente especialistas em
dinâmica de fluidos, e artistas.
O rEAP, do Project zero, da universidade de Harvard, analisa os dados
coletados por inúmeros estudos a
respeito dos efeitos do ensino em
artes (arte multimídia, artes plásticas,
música, artes cênicas e dança) sobre
a cognição e o aprendizado em
domínios não artísticos.
166
ciência e arte
dAviS, J. “The History of the Arts at
Harvard Project zero”. Artigo elaborado
para o Annual meeting of the American
Psychological Association, division 10,
Washington, dc. [disponível através
do Project zero da universidade de
Harvard], 1992.
GArdNEr, H. “Problem Solving in the
Arts and Sciences”. Journal of Aesthetic
Education (champaign, iL), vol. 5,
pp. 93–113, 1971.
GOLEmAN, d. Emotional Intelligence.
Nova york: Bantam Books, 1995.
KOrNHABEr, m.; Gardner, H. “critical
Thinking across multiple intelligences”.
Artigo apresentado na cEri conference,
‘The curriculum redefined (Learning to
Think, Thinking to Learn)’, OEcd, Paris,
França, 1989.
KrEcHEvSKy, m.; Seidel, S. “minds at
Work: Applying multiple intelligences in
the classroom”. in: Sternberg, r. J.;
Williams, W. (eds.). Intelligence, Instruction
and Assessment. mahwah, NJ: Lawrence
Erlbaum Associates, 1998.
PErKiNS, d. N. Smart Schools: From
Training Memories to Educating Minds.
Nova york: The Free Press, 1992.
Lindy JOubert
167
ARTESANATOS REcENTES
ABrAHAm crUzviLLEGAS
2013-05-16
19:27
Temp 10°C
Umidade 66%
Vento 10 Km/h
(2006)
ENTRE OS vERõES de 1995 e 1997, visitei várias comunidades indígenas do estado de Michoacán, no México, com
o objetivo de realizar uma série de esculturas com
diferentes técnicas artesanais. Recebi um financiamento
para isso, e contava com a experiência da exposição
Nuevas manías [Novas manias] na Fundación para el Arte
Contemporáneo em 1993, onde desenvolvi uma ironia
visual sobre as linguagens artísticas e suas convenções
contemporâneas, traduzida em uma instalação que incluía
três diferentes níveis de recursos técnicos: eletrônico,
mecânico e artesanato.
Paralelamente à investigação dos ofícios da região
purépecha (etnia de meus antepassados pelo lado
paterno) e na elaboração das peças, substituí a iconografia tradicional por uma representação tridimensional que
funciona também como metáfora: a reabilitação física
e os aparelhos que nela se usam. Fiz objetos para exercício, bolas, pesos, mesas para terapia, instrumentos de
ortopedia, um colar cervical, talas com madeira, tecidos,
169
borracha, pedra, ferro, barro e cobre. Fiz também objetos
que não obedecem nem à pureza da técnica nem ao tema.
Talvez esses sejam os mais interessantes, já que são filhos
não planejados, ou melhor, os híbridos do projeto original: são autônomos. Essas obras são produto do choque
entre minha experiência cotidiana na cidade e a esquizofrenia intermitente da vida camponês-turística, indianista-exploradora-familiar que tive na região onde eles
foram desenvolvidos.
Partindo de binômios tradicionais como o individual
e o massivo (a identidade), ou o manual e o industrial
(a impressão e o readymade) e, talvez por último, a arte
versus o artesanato (Ocidente em cima da periferia), esse
projeto tomou rumos que o levaram a reflexões bem
diferentes dessas articulações e suas premissas.
1.
Como afirma o antropólogo colombiano Andrés
Ortiz, deve-se planejar uma apreciação social do
valor dos artesanatos em relação a seu uso cotidiano, uso, por assim dizer, normal. O consumo dos
artesanatos em nossa sociedade é puramente
contemplativo: o artesanato não tem função, por
isso, não tem vida. Esse consumo notável e contemplativo do artesanato evidentemente o desnaturaliza,
porque, entre seus produtores, esse artesanato
teria um uso direto e prático. Seria necessária uma
campanha de promoção cultural permanente
que reivindicasse não só o caráter estético-cultural
do artesanato, mas também a possibilidade de seu
uso direto e cotidiano. Em outras palavras, isso
significa promover o desaparecimento do artesanato.
170
arteSanatOS recenteS
2.
Por outro lado, é evidente que, a partir do ponto de
vista estritamente econômico, a produção artesanal
não pode competir com a produção industrial.
Nesse sentido, a possibilidade de sobrevivência do
artesanato indígena residiria, precisamente, em
um incremento de suas qualidades – tanto esté ticas
como materiais –, dos insumos que utiliza e em
poder assumir a característica, já existente em
alguns países, de ter seu valor intrínseco relacionado
a seu caráter expressivo único. Esta é uma tendência acentuada em certas nações capitalistas como,
na Itália, com o cristal de Murano; na Espanha
e na França, com a cerâmica; ou na antiga Checoslováquia, com o cristal cortado.
3.
A estrutura econômica do artesanato e seu contexto
(a troca e o mercado) implicam, sob a perspectiva
e a lógica do desenvolvimento capitalista, não só um
retrocesso, mas também grupos sociais completamente excluídos dos benefícios que significam a
mobilidade social e a acumulação de capital e de
bens, aspirações novas em numerosas etnias ainda
muito atrasadas (vale a pena recordar os ianomâmis
da Venezuela e do Brasil, grupo nativo de quase
10 mil anos, cujas habilidades manuais se reduzem
a arcos, flechas, redes e cabanas, e que só consome
o que produz com base na endogamia e na economia
familiar, unicamente para satisfazer suas necessidades mais básicas, que não incluem, naturalmente,
luz, telefone ou roupa). Mas essas peças sempre
acabam por ser algo pitoresco e exportável na forma
de uma imagem docilizada da miséria.
abraham cruzviLLeGaS
171
Por outro lado, o deslocamento para uma preponderância
dos costumes e das práticas originárias dos grupos
indígenas implica, por sua vez, a diferenciação tanto
jurídica (os huichóis, sim, poderiam transportar e consumir peiote) como econômica dos mesmos; dessa maneira,
é necessária a promulgação de uma lei extinta (por
exemplo, os Derechos de los Pueblos Indígenas en la
Constitución Mexicana [Direitos dos Povos Indígenas na
Constituição Mexicana], artigo quarto, parágrafo primeiro, inscritos na Carta Magna apenas em 1992, quando
se aceitou por decreto que a nação mexicana é formada
pluriculturalmente). Ao final, conclui-se que o conceito
de artesanato deveria desaparecer e abrir espaço para
o uso original dos produtos e ferramentas das minorias
étnicas em seu devido contexto. As guerras floridas,
inventadas pelos purépechas de Michoacán, caracterizavam-se pela ingestão de algum órgão interno do oponente, sempre que este estivesse na mesma categoria ou
classe militar e social, para a qual se utilizava uma
ferramenta de cristal brilhante polido de obsidiana que,
em si, era a representação material terrena de Deus.
Atualmente as obras são analisadas não só pelos
seus aspectos formais ou conceituais, mas também pelos
vínculos que cada espectador constrói na sua aproximação com elas, enunciando, de acordo com Lucy Lippard,
uma provável desmaterialização da obra de arte, que,
no caso da instalação, implica uma abertura discursiva
difícil de planejar pelo seu autor.
No caso do artesanato, é impossível aplicar critérios
desse tipo, pois ele, por sua vez, foi visto historicamente
de forma homogênea, para não dizer plana. Uma peça
balinesa de pele policromada, cuja função original é
representar o demônio durante o teatro de sombras, tem,
ante nossos olhos, exatamente o mesmo valor que uma
caixinha de Olinalá: seu uso se torna ornamental, morre.
Designar-lhe a categoria de arte é, por princípio, uma
perda de tempo, já que esta é, como a democracia, uma
invenção do Ocidente.
Quando um artesanato vive? Quando é usado?
Um sapato feito à mão e sob medida não aspira a
nada além disso. Não é exposto em museus e não se
debatem os riscos da desaparição da categoria. Não há
teorias sobre ele e não importa se um dia o modelo muda
ou se é coerente com a identidade nacional ou não; está
claro, a não ser que partamos para uma genealogia da
sandália ou da babucha.
Para os purépechas, a palavra artesanato não existe;
no entanto, fizeram própria a ideia da mercadoria. Nas
arteSanatOS recenteS
abraham cruzviLLeGaS
4.
Um vasto setor da sociedade identificou-se tanto
com o resgate das espécies em extinção como das
áreas verdes, com a defesa dos direitos humanos,
das minorias étnicas e de crianças de rua, hasteando uma bandeira cujo signo mais evidente é uma
profunda culpa. A série de contradições que acompanha o resgate do indígena e sua consabida nostalgia dos valores nacionais erigiram-se sobre um
racismo cotidiano, um insolúvel classicismo e um
mais frequente olhar turístico ao espelho por parte
dos setores chamados progressistas da intelectualidade e de instituições culturais. Em si, como atitude
benfeitora, a promoção dos produtos artesanais
indígenas acarreta a industrialização de seus
processos, assim como a rápida perda das técnicas
originais (predominantemente manuais) e da finalidade primária desses objetos: seu uso.
172
173
suas casas, as corundas e o atole de putzuti 1 são servidos
em recipientes de plástico sem o menor pudor. Faz muito
tempo que viajam de suas comunidades aos centros
urbanos (como Uruapan, Moralia, Tijuana ou Laredo,
Texas) para comercializar o que antigamente se trocava
nas praças de Erogarícuaro ou Pátzcuaro pelo peixe
branco, vassouras ou trigo.
Como metáfora, a reabilitação das técnicas artesanais – sem falar do seu uso original – pode ser pensada por
meio da aplicação de usos novos ou diferentes, não
meramente ornamentais, independentemente da narrativa que isso pressupõe. Daí que é possível desqualificar
a iconografia de forma que seu valor simbólico possa
desviar, por irreal (na atualidade é tão impostada como a
danza de los Viejitos 2), nosso interesse primordial: a
reativação de um saber acumulado, mais além de sua
cientificidade (natural ou social) ou de sua pureza cultural.
Evidentemente, não é o indianismo o que anima uma
provável reabilitação dos ofícios herdados (quem sabe até
que ponto) por Vasco de Quiroga aos índios do estado
de Michoacán. É mais uma conjuntura que tenta se abrir,
em meio ao caos visual e discursivo contemporâneo, para
trazer questionamentos, mais que respostas ou reivindicações de qualquer tipo.
É possível valorizar de maneira justa e sem breguice
ou chantagem tais técnicas e ofícios? Se é, inclusive
rebaseando as ideias de integração ou de adaptação
comumente trazidas a esses casos em espacial.
Agustín Jacinto Zavala, pesquisador purépecha,
considera que “é bem possível que a linguagem com
a qual a técnica moderna se veste seja apenas em parte
indispensável para seu transplante a outros grupos
humanos, assim como parece que a assimilação da
174
arteSanatOS recenteS
técnica moderna pelos grupos indígenas só seja factível
ao chegar à superação da técnica (como coloca Heidegger),
ou seja, quando a técnica se humaniza”.
Invertendo a relação, nossa assimilação da técnica
indígena se dará em função de uma mudança total de
nossa conduta e nossos nexos com a natureza, partindo
sempre de uma experiência que não se sustente já
na identidade coletiva, mas na individualidade que
se compartilha.
NOTAS
1
Corunda e atole são, respectivamente,
uma comida e uma bebida típicas
pré-hispânicas à base de milho. [N. T.]
2
dança tradicional do estado mexicano
de michoacán. A danza de los Viejitos
se realizava em bailes em homenagem ao dios viejo [deus velho] ou
dios del fuego [deus do fogo]. [N. T.]
abraham cruzviLLeGaS
175
Vento 10 Km/h
POR quE mEDiAR
A ARTE?
mAriA LiNd
2013-05-16
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Umidade 66%
(2011)
vERmiTTLuNG – “mEDiAÇÃO”, Em alemão – significa uma
transferência de uma parte para outra, a transmissão
pragmática de uma mensagem. A palavra também se
refere a tentativas de reconciliar grupos que discordam
sobre algo: nações, por exemplo, ou pessoas em conflito.
Apesar da abundância ou até mesmo o excesso de atividades tradicionalmente didáticas presentes nas atuais
instituições de arte, acredito que agora seja o momento de
pensar com ainda mais empenho sobre a mediação da
arte contemporânea. Pensar sobre com quem nós,
artistas e curadores, queremos nos comunicar, e sobre as
consequentes questões a respeito do funcionamento da
arte na cultura contemporânea. Estamos diante de um
paradoxo evidente: um excesso de didatismo e, simultaneamente, uma necessidade renovada de mediação.
As duas condições a esclarecer, antes que a discussão sobre mediação possa começar, ocupam posições
diferentes nos debates sobre arte e curadoria. A primeira
é geralmente considerada mais irritante que útil pela
177
comunidade profissional. A segunda, por sua vez, é
pouco discutida, passando até mesmo despercebida pelo
radar da maioria dos praticantes. Refiro-me às abordagens educacionais e pedagógicas que acontecem na
maioria das instituições artísticas. Por um lado, podem
ser exageradas, chegando até mesmo a obscurecer a arte.
Por outro, temos a crescente bifurcação entre a arte e a
curadoria de cunho experimental e inovador, e a ambição
das instituições artísticas em romper barreiras sociais e
econômicas. Um efeito desta última condição é a
crescente sensação de isolamento entre as esferas de
interesse e atuação nas artes, sem falar, nas arenas mais
experimentais, em uma quase absoluta falta de mediação
que consiga ir além de círculos relativamente fechados.
A instituição que desempenhou o principal papel no
estabelecimento dos parâmetros para a educação em
museus foi o Museum of Modern Art de Nova York –
MoMA. Em vez de acrescentar a pedagogia ao final do
processo de criação de uma exposição, como a cereja em
um bolo, o modelo que seu diretor fundador Alfred Barr
promoveu na década de 1930 integrava-a a cada exposição. No brilhante livro Spaces of Experience: Art Gallery
Interiors from 1800 to 2000 1, a historiadora da arte
Charlotte Klonk demonstra que as exposições do MoMA
sempre foram conscientemente didáticas, promovendo a
visão de arte formalista de Barr. O principal objetivo dele
era refinar a sensibilidade estética dos visitantes e
moldar um espectador 2 baseado no que ela chama de “o
consumidor educado”, em contraste com o ideal do
século XiX do “cidadão responsável”. Apesar dos famosos
gráficos de Barr sobre desenvolvimentos estilísticos e de
seus textos de catálogo bem escritos e acessíveis, a
abordagem educativa de suas exposições tendia a ser
mais visual e espacial que discursiva. As pinturas eram
penduradas ao nível dos olhos em paredes brancas, e
numerosas divisões criavam mais espaço de parede.
Tanto a seleção das obras quanto as estratégias de exibição eram cruciais. Argumentos eram elaborados nas
exposições, como a mostra Cubism and Abstract Art
[Cubismo e a arte abstrata], de 1936, que identificava
fontes visuais históricas e não ocidentais para a abstração
geométrica ocidental do século XX.
O fato de o MoMA ter, desde o início, situado a si
próprio como mediador entre produtores e distribuidores
industriais (um poderoso grupo de interesse com forte
presença no conselho diretor) e um público repleto de
compradores em potencial não pode ser subestimado. O
MoMA utilizou abertamente técnicas de exibição inspiradas em lojas de departamento e outros estabelecimentos
comerciais. Os visitantes eram considerados não só
consumidores, que depois de percorrer as exposições
poderiam comprar os objetos de design expostos na loja
do museu, mas também formadores de gosto, que deveriam se tornar membros responsáveis da emergente
sociedade de consumo. Assim, estratégias de mercado e
interesses de negócios se misturaram para moldar novos
ideais de relação entre público e arte. Dada a posição
influente do MoMA, sua abordagem acabou sendo adotada em inúmeras instituições de arte ao redor do
mundo. A ideia de “conquistar as pessoas”, de persuadi-las, foi central para a didática do museu desde o início,
assim como o foi para a indústria de propaganda contemporânea, que, por sua vez, amadurecia e se transformava para a nova era moderna. Dentro desse esquema
amplamente comercial, a arte pouco convencional
e “inovadora” só era aceita contanto que as inovações
pOr que mediar a arte?
maria Lind
178
179
permanecessem no nível formal, sem aludir, muito
menos provocar, qualquer sobreposição entre a esfera da
arte e a esfera da ação política e social.
Aqueles familiarizados com museus de arte contemporânea e curadoria devem estar reconhecendo muitos
pontos nesta história. Outro fenômeno conhecido é
o conceito de departamento educativo ou pedagógico.
Mesmo com uma curadoria basicamente apoiada em
estratégias didáticas, em 1937 o MoMA institui um
departamento educativo à parte. Sob a liderança de
Victor E. D’Amico, o departamento se distanciou das
ideias de Barr a respeito de um espectador mais ou
menos distanciado para promover a participação dos
visitantes. Em vez de enfatizar a fruição ou o julgamento
da arte exibida nas paredes, sua atuação procurava
incentivar os visitantes a explorar sua própria criatividade. A mudança foi influenciada pela filosofia pragmatista de John Dewey e por teorias que consideravam
a arte uma atividade emancipatória capaz de estimular a
participação política em sociedades democráticas. No
entanto, tanto no caso do consumidor educado de Barr
quanto no caso do participante de D’Amico, promoveu-se
um senso mais agudo de individualidade. Tais abordagens diferiam de modo substancial das visões coletivistas
sobre o espectador da arte, que, influenciadas pelo
construtivismo, foram promovidas na Europa por volta
da mesma época, e mesmo antes, por artistas como El
Lissitzky e curadores como Alexander Dorner. Entre as
inspirações dessa ideia de fruição coletiva, estavam a
Revolução Russa e a Teoria da Relatividade de Einstein.
Tal concepção encorajava uma experiência variada e ativa
por meio de uma expografia dinâmica, na qual as coisas
pareciam diferentes conforme o ângulo em que fossem
observadas, ao mesmo tempo em que a totalidade da
instalação era enfatizada. A corrente também promoveu
ideias de encontros coletivos e compartilhados com a arte.
Atualmente, o modelo didático baseado no “público
consumidor educado” de Barr pode ser facilmente
identificado nas operações dos principais museus e
instituições expositivas, do MoMA, em Nova York, à Tate
Modern, em Londres, passando pelo Moderna Museet
de Estocolmo. A ideia do “espectador construtivista” 3 foi
praticamente deixada de lado, ainda que tenha ficado
adormecida, e reapareceu nos trabalhos do Group
Material; do grupo reunido no centro cultural Shedhalle,
em Zurique, no final dos anos 1990; e de artistas como
Dominique Gonzalez-Foerster, Philippe Parreno e Liam
Gillick. Ao mesmo tempo, os museus dos Estados Unidos
alegam, desde o início do século XX, atuar pela ampliação
de seu público. Os Estados de bem-estar social europeus
fizeram mais ou menos o mesmo durante o período
pós-guerra e, em nome da igualdade, apoiaram tanto um
acesso mais amplo à alta cultura quanto uma reformulação do que a constituiria. Preocupações educativas são
importantes, talvez até mesmo essenciais para as sociedades democráticas, mas essa atitude frequentemente vai
de encontro ao ideal do alto modernismo de que a arte não
deve ser imposta a seus espectadores – uma vez que é, ou
deveria ser, potente o suficiente para se apoiar em seus
próprios pés e a falar por si própria, independentemente
de contextos “exteriores”. O que nos leva à pedagogia
descontextualizada do “O que você vê e o que você sente?”.
Novamente, a arte em questão não desafia o status
quo, sendo voltada para a fruição e o julgamento. Podemos
chamar este método de “o estabelecimento do cânone”,
fundado basicamente em desenvolvimentos internos da
pOr que mediar a arte?
maria Lind
180
181
arte, certamente um reflexo das ideias de Barr. Tal
método tem como objetivo produzir uma genealogia de
artistas cujas obras possam ser incluídas no grande
relato da história da arte e, em certa medida, também
uma sequência de temas aceitáveis. É importante perceber, no entanto, que essa manobra acontece em detrimento de abordagens mais investigativas que procuram
contextualizar a prática artística, e estudar e questionar
os fenômenos atuais, assim como as normas e procedimentos herdados. Em outras palavras, que buscam
decodificar e recodificar artefatos e atividades pertencentes à vida contemporânea, considerando antes o interessante e relevante que o “prazeroso”, “bom” e “duradouro”.
Atualmente, podemos situar esse próprio modelo dentro
de uma demanda maior por cânones culturais, parâmetros de “qualidade eterna” para guiar as grades curriculares de escolas e universidades.
Mas o que isso tem a ver com mediação? Todos os
procedimentos acima – didatismo integrado, educação
e pedagogia participatória suplementares e, finalmente, a
informação narrativa utilizada tanto dentro quanto fora
das instituições – constituem formas de mediação empregadas de maneira mais ou menos consciente. O último
dos procedimentos aqui citados foi historicamente gerado
pelos departamentos educativos e pedagógicos, porém
procede com cada vez mais frequência de profissionais de
relações públicas e marketing. Enquanto a educação
participatória é baseada no pressuposto de que há uma
deficiência entre os visitantes – uma ponte a ser construída, uma lacuna a ser preenchida ou mesmo um conflito
a ser resolvido –, as outras duas formas estão mais
preocupadas com a falta de contato entre as partes, um
“mal-entendido” ou uma confusão a ser esclarecida. Elas
partem da ideia de que uma espécie de “serviço de
encontros” seja necessário para colocar as pessoas e as
“coisas” certas em contato. Ao mesmo tempo, mediação
pode ser muito mais que isso: trata-se, essencialmente,
de estabelecer superfícies de contato entre obras de arte,
projetos curatoriais e pessoas, de criar várias formas
e intensidades de comunicar sobre e a partir da arte. A
palavra “mediação” parece aberta o suficiente para
permitir outras maneiras de abordar as relações entre
arte, instituições e o mundo lá fora. Resumindo, mediação parece abrir menos espaço para didatismo, educação
e persuasão, e mais para um engajamento ativo não
necessariamente autoexpressivo ou compensatório.
Mas voltemos por um momento à atual abundância
de didatismo. Trata-se de um excesso que pertence tanto
ao que é tipicamente considerado como central para a
atividade de curadoria (por exemplo, o modelo de Barr
para selecionar, instalar e contextualizar a obra), quanto
às atividades e elementos acrescentados a um projeto
de exposição (visitas guiadas, workshops, textos de parede,
etiquetas, audioguias etc.). Enquanto os últimos procedimentos são frequentemente taxados de demasiadamente
didáticos, os primeiros nem sequer são vistos como
“didáticos”. Pelo contrário, são considerados uma prática
comum, o normal a ser feito. Operam de maneira
quase invisível, como acontecia com a curadoria antes
de Harald Szeemann – mãos invisíveis selecionando
e organizando. Além do tipo de curadoria descrito acima
(o estabelecimento didático do cânone, com acréscimo
de informação narrativa), o formato participativo proposto por D’Amico permanece entre as abordagens mais
comuns de arte-educação em instituições culturais.
Visitas guiadas e workshops baseados na experiência, nos
pOr que mediar a arte?
maria Lind
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quais se pede que os visitantes compartilhem o que veem,
pensam e sentem, que descubram “o criador” em si
mesmos, são parte essencial desse processo.
O modo como o trabalho é dividido nas grandes
instituições responsabiliza o departamento educativo ou
pedagógico por educar o público, ou seja, “consertar”
o que deveria ser responsabilidade de outras instituições
sociais como escolas, faculdades e universidades. Os setores de acervo e exposições temporárias se encarregam
da mais persuasiva e integrada das didáticas e, portanto,
provavelmente a mais eficiente. Dentro desse esquema,
uma característica interessante dos formatos de mediação baseados no modelo de D’Amico é que eles são
facilmente evitáveis – não é preciso tomar parte, a não
ser que realmente se queira –, ao contrário do modelo de
Barr, que é forjado a partir do interior da instituição ou
da exposição. O mesmo acontece com os textos de parede
e folhetos demasiadamente simplificados e promocionais, e outras formas de narrativa supostamente generosas, que tendem a tornar a arte mais simples e ao mesmo
tempo mais espetacular. A mera promoção alcança níveis
quase obscenos, especialmente nos releases de imprensa.
Os departamentos de marketing e relações públicas pouco
a pouco assumiram responsabilidades antes compartilhadas por curadores e educadores. Em muitas instituições culturais, são esses setores que controlam qualquer
narrativa acrescentada a uma exposição, podendo,
inclusive, decidir não oferecer informação escrita sobre
um projeto específico, mesmo que ele já esteja em andamento, para não desviar a atenção dos eventos blockbusters. Representantes do marketing e das relações públicas
podem, em alguns casos, até mesmo interferir na programação dos espaços em que atuam.
Mas precisamos, de fato, de mais mediação? Talvez
devêssemos reivindicar tipos diferentes de mediação, em
outros contextos, assim como uma maior consciência
sobre as formas específicas de mediação já em uso nas
instituições, sem nos esquecer da mediação persuasiva
inerente ao ofício tradicional do curador. Como profissionais, certamente nos beneficiaríamos de métodos para
refletir sobre o que fazemos e como fazemos, como forma
de despertar a consciência. Além disso, a maior parte das
formas de mediação utilizadas hoje em dia foi elaborada
a partir da arte moderna, que funciona de maneira
radicalmente diferente das práticas contemporâneas.
Portanto, formatos derivados de um paradigma estão
sendo aplicados à arte de outro.
Acima de tudo, é hora de considerar seriamente o
fato de que a arte e os projetos curatoriais experimentais,
capazes de formular novas questões e de criar novas
histórias, distanciam-se cada vez mais do grande circuito.
Essas correntes independentes, que muitas vezes trabalham a partir do “espectador construtivista”, aos poucos
se afastam das situações nas quais a maioria das pessoas
tem contato com a arte e com projetos curatoriais (as
grandes instituições das grandes cidades), e aqui qualquer
tipo de mediação é marginal. Esse tipo de separatismo é,
em muitos aspectos, uma estratégia de sobrevivência
para assegurar outras proporções de autodeterminação;
o grande circuito não é particularmente simpático aos
independentes, enquanto os independentes preferem se
juntar aos seus pares. O resultado inevitável é a automarginalização, na qual apenas os já convertidos são alcançados.
Outro motivo para nos perguntarmos quais são
os benefícios da mediação: cada vez mais, ao longo da
última década, tenho observado entre curadores
pOr que mediar a arte?
maria Lind
184
185
emergentes e estudantes de curadoria um interesse
relativamente limitado por estabelecer uma comunicação que extrapole os círculos profissionais. Tal padrão
contrasta de forma marcante com os desenvolvimentos
das grandes instituições discutidos acima, que sofrem de
um didatismo excessivo (especialmente de um didatismo
de mão única). Ao lado de diversos colegas, sou parcialmente culpada por essa situação, já que apoiei todo tipo
de experimentação, tanto artística quanto curatorial,
defendendo a necessidade de testar o desconhecido sem
precisar considerar a todo momento a recepção. Fomos
motivados pelo desejo de criar outras maneiras de pensar
e agir – uma reação direta à inércia que percebíamos
nas instituições tradicionais, incluindo suas abordagens
excessivamente didáticas. De maneira geral, a experimentação só vem sendo possível nas práticas fora do
circuito hegemônico. E continuarei a persegui-la, mas
tentarei, ao mesmo tempo, ficar atenta a como comunicar
o que estamos fazendo para um público além dos já
convertidos, e a como a mediação pode criar espaços para
outros tipos de troca.
Esse interesse limitado em uma comunicação que vá
além dos próprios pares se manifesta em duas tendências
comuns entre jovens curadores e estudantes. Uma
destaca conceitos curatoriais inteligentes, enquanto a
outra privilegia colaboração e novas produções. A primeira, que chamarei de “piruetas curatoriais”, enfoca as
ideias do curador. Nela, a arte tende a ser incluída
com base em princípios de ilustração ou representação,
resultando geralmente em uma exposição coletiva.
Também podemos inserir nessa categoria alguns dos
modelos curatoriais mais autorreflexivos, que tendem a
privilegiar a remodelação de estruturas e formatos.
A segunda, que chamarei de “supercolaboração”, envolve
o trabalho conjunto entre curador/estudante e artista,
com o propósito de criar novas produções. Apesar de seus
participantes afirmarem “evitar noções tradicionais de
autoria” e “escapar da individualidade”, essa interação
intensa entre dois agentes frequentemente acaba no que
seria uma simbiose. Os outros são deixados de fora, e o
resultado é um sujeito “superartístico” que tem dois corpos,
em vez de um, e é surpreendentemente autoexpressivo.
Em ambas as situações, falta um terceiro termo,
capaz de estimular um dinamismo dialético. Em vez
disso, há pouca exterioridade e quase nenhum “outro”
com quem se relacionar. Outra vez, é o oposto da estratégia supostamente acolhedora das grandes instituições
artísticas. O curador/estudante cria um universo à parte
para si próprio e suas ideias ou seu colega artista. É claro
que qualquer exposição exige um trabalho detalhado que
precisa ser feito a portas fechadas, mas acredito que
tenha chegado o momento de, simultaneamente, insistir
na experimentação e tentar desenvolver novas formas
de mediação; de considerar seriamente o papel que a arte
desempenha na cultura, suas possíveis funções na
sociedade, e ser mais generosos com o material em nossas
mãos. E também para mudar os termos das formas de
mediação existentes nas instituições dominantes a fim de
criar espaço para outros tipos de trocas, permitindo,
possivelmente, que a arte utilize melhor seu potencial.
Uma vez que o consumo é uma das formas mais
conhecidas e aceitas de relação com a realidade ao nosso
entorno, devemos nos perguntar se descartar o modelo do
MoMA do “consumidor educado” é necessariamente uma
boa opção. Seria ele, de fato, o meio mais rápido e eficiente de alcançar novos públicos ou mesmo desenvolver
pOr que mediar a arte?
maria Lind
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uma outra “exterioridade”? Talvez seja possível utilizá-lo
de formas diferentes, para outros propósitos. Ao mesmo
tempo, pergunto-me se já não testemunhamos a emergência de ainda outro modelo, o do “consumidor entretido”, no qual os visitantes chegam ao museu com a
expectativa de que devem ser entretidos o tempo todo.
Seja lá como for, o contato coletivo defendido pelos
construtivistas continua sendo atraente. A teórica Irit
Rogoff defendeu um tipo similar de espectador, ou
melhor, de “termos de engajamento”, no qual a participação física, que faz parte de um habitus de duzentos anos,
funciona como o cerne de uma forma de democracia
qualitativamente melhor que a separação oferecida pela
democracia representativa. Se levarmos as ideias de
Rogoff a sério, “alcançar novos públicos” torna-se menos
importante que mudar a forma de falar sobre como,
juntos, produzimos um espaço público ou semipúblico
por meio, com e ao redor da arte, de projetos curatoriais,
de instituições e além.
188
pOr que mediar a arte?
NOTAS
1
Espaços de experiência: interiores
de galerias de arte de 1800 a 2000,
em tradução livre. [N. T.]
2
O termo que aparece no original
é “spectatorship”, que se refere a
toda recepção e experiência de
um espectador ou plateia. No texto
optou-se pelo uso da tradução
“espectador”. [N. E.].
3
O termo que aparece no original é
“constructivist spectatorship”. [N. E.]
maria Lind
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Vento 10 Km/h
ENTREviSTA cOm
EDuARDO vivEiROS
DE cASTRO
rEviSTA SExTA-FEirA
Temp 10°C
Umidade 66%
(1998)
Realizada no Rio de Janeiro em 21 de dezembro de 1998,
por Renato Sztutman, Silvana Nascimento e Stélio Marras,
para a revista Sexta-feira.
2013-05-16
19:27
Qual era o seu ideal de antropologia quando você
começou a estudar as sociedades indígenas?
Eu queria fazer uma etnografia “clássica” de um grupo
indígena. Meu problema teórico era entender aquelas
sociedades em seus próprios termos, isto é (e só pode ser),
em relação às suas próprias relações: as relações que
as constituem e que elas constituem, o que obviamente
inclui suas relações com a alteridade social, étnica,
cosmológica… Acho que existem dois grandes paradigmas que orientam a etnologia brasileira. De um lado, a
imagem antropológica de “sociedade primitiva”; de outro,
a tradição derivada de uma “Teoria do Brasil”, de que a
obra de Darcy Ribeiro é talvez o melhor exemplo. O título
de um livro de Roberto Cardoso de Oliveira, Sociologia do
Brasil indígena, é expressivo desta segunda orientação:
191
o foco é o Brasil, os índios são interessantes em relação ao
Brasil, na medida em que são parte do Brasil. Nada a
objetar, esta sociologia do Brasil indígena é uma empresa
altamente respeitável e resultou em trabalhos extremamente importantes. Mas esta não era a minha. A minha
era a malchamada “sociedade primitiva”, meu foco eram
as sociedades indígenas, não o Brasil: o que me interessava eram as sociologias indígenas. A minha era Lévi-Strauss, Pierre Clastres, as antropologias de Malinowski,
de Evans-Pritchard…
Em que pé estavam os estudos sobre a Amazônia
indígena na época de suas primeiras investigações
etnológicas?
Amazônia existisse como possibilidade de trabalho. Em
parte, porque estava lendo maciçamente teses e livros
dos meus professores, e associados deles, que eram todos
sobre grupos Jê, Bororo e tal. Todo o meu trabalho
posterior foi muito marcado por um “escrever contra” a
etnologia centro-brasileira – “contra” não no sentido
polêmico ou crítico, mas contra como a partir de, como
figura que se desenha contra um fundo: contra a paisagem em que se deu minha formação.
O que mais o impressionou no campo com os
yawalapíti do Alto xingu, então sua primeira experiência de pesquisa em uma sociedade indígena?
É preciso não esquecer que boa parte da Amazônia que
veio a ser estudada nos anos 70 não existia do ponto
de vista geopolítico, tendo sido incorporada à sociedade
nacional a partir do boom desenvolvimentista iniciado
naquela década. Não era a Amazônia, mas o Brasil
Central que estava então na berlinda, graças aos trabalhos
de Curt Nimuendaju das décadas de 30 e 40, que tinham
sido discutidos por Robert Lowie e Claude Lévi-Strauss.
Este último – estava-se no apogeu do estruturalismo,
nas décadas de 60–70 – colocou o Brasil Central na pauta
teórica da antropologia. O grupo que estudou o Brasil
Central, ligado a David Maybury-Lewis, foi o que teve o
maior número de pessoas trabalhando coordenadamente
em uma mesma área da América do Sul; uma área, aliás,
exclusivamente brasileira. Quando eu era estudante,
nos anos 70, a impressão que se tinha era que a única
coisa interessante que restava em etnologia indígena era
o Brasil Central. Eu não tinha nem muita clareza que a
A primeira coisa que me chamou a atenção, no Xingu,
era que aquele sistema social era diferente dos regimes
do Brasil Central. Uma preocupação que me acompanha
desde então tem sido a de como descrever uma forma
social que não tem como esqueleto institucional qualquer
espécie de dispositivo dualista, considerando que minha
imagem básica de sociedade indígena era a de uma
sociedade com metades etc. Aquele era um tempo em que
as oposições binárias eram consideradas a grande chave
de abertura de qualquer sistema de pensamento e ação
indígenas. Ficou claro para mim que o que acontecia no
Xingu não podia ser reduzido à oposição entre o físico e o
moral, o natural e o cultural, o orgânico e o sociológico.
Ao contrário, havia uma espécie de interação entre essas
dimensões muito mais complexa do que os nossos dualismos. O que me chamou a atenção foi o complexo da
reclusão pubertária do Alto Xingu, em que os jovens têm
o corpo literalmente fabricado, imaginado por meio
de remédios, de infusões e de certas técnicas como a
escarificação. Em suma, ficava claro que não havia
entreviSta
eduardO viveirOS de caStrO
192
193
distinção entre o corporal e o social: o corporal era social,
e o social era corporal. Portanto, tratava-se de algo
diferente da oposição entre natureza e cultura, centro e
periferia, interior e exterior, ego e inimigo. Minha
pesquisa com os Yawalapíti foi um tipo de indagação
sobre essas questões, embora eu estivesse fazendo uma
espécie de aquecimento etnológico, muito mais do que
uma pesquisa.
como o tema do corpo surgiu como questão teórica
fundamental nos seus estudos iniciais?
Quando cheguei ao Xingu, vinha de uma tradição (reforçada por minha educação jesuítica) que ensinava que
o corpo era uma coisa insignificante, em todos os sentidos
dessa palavra. No Xingu, a maioria das coisas que
consideramos como mentais, abstratas, lá eram escritas
concretamente no corpo. O antropólogo que primeiro
efetivamente tematizou a questão da corporalidade na
América do Sul foi Lévi-Strauss, nas Mitológicas, uma
obra monumental sobre a “lógica das qualidades sensíveis”, qualidades do mundo apreendidas no corpo ou pelo
corpo: cheiros, cores, propriedades sensoriais e sensíveis.
Ele ali demonstrava como era possível a um pensamento
articular proposições complexas sobre a realidade a partir
de categorias muito próximas da experiência concreta.
Em 1981 você conheceu os Araweté do Pará, com os
quais realizou sua pesquisa de campo mais longa. O que
mais o atraiu em começar uma pesquisa com esse grupo
Tupi-Guarani contemporâneo, parentes (distantes) dos
Tupinambá, famosos pelas suas práticas antropofágicas?
Os Tupi, quando comecei a estudar antropologia, eram
vistos meio como se fossem povos do passado, extintos ou
194
entreviSta
“aculturados”; era como se não houvesse mais o que se
fazer em termos de pesquisa etnológica junto a eles, que
não fosse reconstrução histórica ou sociologia da “transfiguração étnica”. Só que, na década de 70, com a abertura
da Transamazônica, alguns grupos tupi-guarani “isolados” do Pará foram “contatados”: Assurini, Araweté,
Parakanã… Obviamente, o que chamava a atenção no
material tupi-guarani clássico era o famoso canibalismo
guerreiro tupinambá, mas eu não tinha a menor ideia
de que fosse encontrar algo do gênero nos Araweté. Estava
indo para os Araweté porque queria um grupo pequeno,
e não estudado. Por acaso aquele grupo era tupi. A
pesquisa entre os Araweté foi complicada, porque eles
tinham cinco anos de “contato”, e cinco anos é muito
pouco. O grupo ainda está desorientado, ainda está
administrando a revolução social e cosmológica – e mais
que tudo, a catástrofe demográfica – desencadeada pelo
contato. Eles eram “selvagens” para valer, uma gente
dramática e enigmática, ao mesmo tempo gentil e brusca,
sutil e exuberante; eram muito diferentes dos povos do
Alto Xingu, que haviam me impressionado pela etiqueta,
o refinamento, a compostura quase solene.
Então, como foi sua primeira experiência de contato
com os Araweté?
Eles estavam elaborando a experiência deles conosco.
Testavam todos os modos possíveis. Não sabiam ainda
muito bem o que iriam fazer com os brancos. Eu fui
uma das primeiras cobaias deles. Eles tentaram comigo
vários métodos, digamos assim, de administração da
alteridade. Então foi uma pesquisa psicologicamente
complexa, mas me dei muito bem com eles.
eduardO viveirOS de caStrO
195
Eles não tentaram te afogar, como faziam os
Tupinambá com os portugueses no século xvi?
Não, não me afogaram, pelo menos não daquele jeito –
pois acho que vocês estão se referindo a outra coisa, à
anedota de Lévi-Strauss sobre os espanhóis e os índios
das Antilhas. Embora para eles eu sempre tenha sido
uma espécie de enigma, impressão, aliás, recíproca. A
pesquisa toda foi marcada por eles investigando a minha
natureza. Claro que eles já conheciam branco desde
muitos anos antes do contato oficial. Os Araweté são uma
daquelas sociedades que devem ter tido vários encontros
com brancos nos últimos séculos, se é que eles não são
remanescentes de grupos tupi que tiveram contato direto
com missões cristãs ou coisa parecida. Eles esqueceram
muita coisa, mas nem tudo. Você percebe que eles sabem
muito mais sobre a gente do que dão a impressão de saber.
A pesquisa interessava a eles, porque, como eu
não tinha uma grande questão teórica a perseguir desde
o início, segui os interesses dialógicos dos Araweté.
Não tinha questão, então tive de ir acompanhando o
que interessava a eles e o que eu conseguia entender,
quer dizer, flutuei inteiramente ao sabor da corrente de
nossa interação.
de que modo a experiência com os Araweté inspirou a
elaboração da noção de “perspectivismo ameríndio”?
Meu livro sobre os Araweté está cheio de referências a
um perspectivismo, a um processo de pôr-se no lugar do
outro, que me apareceu, inicialmente, no contexto da
visão que os humanos têm dos Maï, os espíritos celestes,
e reciprocamente. Propus, em seguida, que o canibalismo
tupi-guarani poderia ser interpretado como um processo
em que se assume a posição do inimigo. Mas este era um
196
entreviSta
perspectivismo ainda meu, o conceito era principalmente
meu e não dos índios. Está lá, mas sou eu que formulo: o
canibalismo tem a ver com a comutação de perspectivas
etc. Anos depois, Tânia Stolze Lima, (então) minha
orientanda e (sempre) amiga, estava escrevendo sua tese
sobre os Juruna, que concluía com uma discussão sobre o
relativismo juruna, que me vez voltar a pensar na questão do perspectivismo. Trata-se de um trabalho esplêndido, de uma das etnografias mais originais do pensamento indígena até agora produzidas em nossa disciplina.
Eu e Tânia começamos a conversar sistematicamente
sobre o material que ela estava analisando. Foi aí que
começamos a definir esse complexo conceitual do perspectivismo, a concepção indígena segundo a qual o
mundo é povoado de outros sujeitos ou pessoas, além dos
seres humanos, e que veem a realidade diferentemente
dos seres humanos.
como foi possível passar das manifestações particulares
registradas por essas etnografias recentes à construção
de um modelo genérico – o “perspectivismo ameríndio”?
Tal generalização é de minha exclusiva irresponsabilidade: Tânia não tem culpa de nada aqui. A minha
questão era identificar em diversas culturas indígenas
elementos que me permitissem construir um modelo,
ideal em certo sentido, no qual o contraste com o naturalismo característico da modernidade europeia ficasse
mais evidente. Obviamente, esse modelo se afasta mais
ou menos de todas as realidades etnográficas que o
inspiraram. (Por exemplo, os Araweté, tanto quanto eu
saiba, não têm essa ideia em particular de que certas
espécies animais veem o mundo de um jeito diferente do
nosso.) Mas o fenômeno que Tânia encontrou entre os
eduardO viveirOS de caStrO
197
Tenho um exemplo que mostra a atualidade e a pregnância do motivo perspectivista. Há uns três anos, o filho
de Raoni (líder dos Kayapó Txukarramãe) morreu, creio
que na aldeia dos Kamayurá, onde ele estava em tratamento xamanístico. Tinha sido enviado pela família para
ser tratado pelos xamãs de lá. Esse rapaz morreu, segundo
os médicos brancos, de um ataque epilético. Bem, ele havia
matado dois índios (não me recordo se em sua própria
aldeia, onde tinha ido passar um tempo entre as diversas
fases da cura xamanística, ou na aldeia kamayurá
mesmo), e algum tempo depois morreu. A morte desse
rapaz entre os Kamayurá virou notícia na Folha de
S. Paulo, que publicou uma reportagem sobre o clima de
tensão intergrupal que se seguiu, com os Kayapó acusando os Kamayurá de feitiçaria. Parece que se chegou
mesmo a falar em guerra entre os dois grupos. Então
começou aquela paranoia, e a Folha, sabendo disso
(sabe-se lá como), mandou um repórter e fez a matéria.
Poucas semanas depois, Megaron, txukarramãe que é o
Diretor do Parque do Xingu (e sobrinho de Raoni),
resolveu escrever uma carta para a Folha dizendo que não
era nada daquilo que o repórter havia contado e que os
Kamayurá eram feiticeiros mesmo… Acho fascinante
isso de acusações de feitiçaria entre grupos indígenas no
Xingu sendo ventiladas em cartas à redação da Folha.
Eu acho que essa coisa de modernização, depois de
pós-modernização, de globalização, não quer dizer que
os índios estejam virando brancos e que não haja mais
descontinuidades entre os mundos indígenas e o “mundo
global” (que talvez fosse melhor chamar de “mundo dos
Estados Unidos”). As diferenças não acabaram, mas
agora elas se tornam comensuráveis, coabitam no mesmo
espaço: elas na verdade aumentaram seu potencial
diferenciante. Assim, no mesmo jornal, você pode ler as
platitudes político-literárias do Sarney, um empresário
discorrendo sobre as propriedades miraculosas da
privatização, um astrofísico falando sobre o big bang –
e um Kayapó acusando os Kamayurá de feitiçaria! Tudo
no mesmo plano, na mesma “folha”. Bruno Latour, em
entreviSta
eduardO viveirOS de caStrO
Juruna era muito comum na Amazônia, embora a imensa
maioria dos etnógrafos não tenha tirado grandes consequências dele. Eu tinha a impressão de que se podia
divisar uma vasta paisagem, não apenas amazônica mas
pan-americana, onde se associavam o xamanismo e
o perspectivismo. Era possível perceber também que o
tema mitológico da separação entre humanos e não
humanos, isto é, cultura e natureza, não significava a
mesma coisa que em nossa mitologia evolucionista.
A proposição presente nos mitos é: os animais eram
humanos e deixaram de sê-lo, a humanidade é o fundo
comum da humanidade e da animalidade. Em nossa
mitologia é o contrário: nós humanos éramos animais e
“deixamos” de sê-lo, com a emergência da cultura etc.
Para nós, a condição genérica é a animalidade: “todo
mundo” é animal, só que uns são mais animais que
os outros, e nós somos os menos. Nas mitologias indígenas, todo mundo é humano, apenas uns são menos
humanos que os outros. Vários animais são muito mais
distantes dos humanos, mas são todos ou quase todos,
na origem, humanos, o que vai ao encontro da ideia do
animismo, a de que o fundo universal da realidade é
o espírito.
você poderia nos dar um exemplo de como opera
esse pensamento perspectivista na vida cotidiana
dos grupos indígenas?
198
199
seu Jamais fomos modernos (1991), insiste com muita
pertinência nesse fenômeno.
Pois bem. Megaron argumentava, em sua carta: “Esse
rapaz morreu porque foi enfeitiçado pelos Kamayurá.
É verdade que ele matou duas pessoas antes de morrer,
mas isso foi porque ele achou que estava matando animais, pois os pajés kamayurá deram um cigarro para ele
e ele achou que estava matando bicho. Quando voltou a
si, viu que eles eram humanos e ficou muito abalado”.
Essa é uma explicação que recorre ao argumento perspectivista, esse negócio de ver gente como animal.
Acontece que, quando uma pessoa vê os outros seres
humanos como bichos, é porque ela na verdade já não é
mais humana: isso significa que ela está muito doente e
precisa de tratamento xamanístico. Megaron diz, entretanto: foram os xamãs kamayurá que enfeitiçaram o
rapaz e o desumanizaram, fazendo-o ver os humanos
como bichos, isto é, fazendo-o comportar-se ele mesmo
como um bicho feroz. Pois uma das teses do perspectivismo é que os animais não nos veem como humanos, mas
sim como animais (por outro lado, eles não se veem como
animais, mas como nos vemos, isto é, como humanos).
Eis assim que o perspectivismo não só está bem vivo,
como pode entrar em palpitantes argumentos políticos.
Em que medida esse modelo perspectivista pode
ser estendido para todos os grupos ameríndios, mesmo
tendo em vista as profundas diferenças entre eles?
como falar, por exemplo, em perspectivismo entre
populações Jê que não têm no xamanismo uma
prática corrente?
Bem, acabamos de ver um membro do grupo Jê recorrendo a um argumento desse tipo. De qualquer modo,
200
entreviSta
mesmo que os Jê não digam que os animais atuais são
humanos ou que cada animal vê as coisas de um certo
jeito etc., sua mitologia, como a de todos os ameríndios
afirma que, no começo dos tempos, animais e humanos
eram uma coisa só, que os animais são ex-humanos, e
não que os humanos são ex-animais. Tal humanidade
pretérita dos animais nunca é completamente evacuada,
ela está lá como um potencial – justo como, para nós,
nossa animalidade “passada” permanece pulsando sob
as camadas de verniz civilizador. Além disso, não é
preciso ter xamãs para se viver em uma cosmologia
xamanística. (Os Txukarramãe, por exemplo, estavam
usando os xamãs dos Kamayurá.)
A ideia de que os animais são gente, comum a
muitas (mas não todas, nesses termos simplificados)
cosmologias indígenas, não significa que os índios
estejam afirmando que os animais são gente como a
gente. Todo mundo em seu juízo perfeito, e o dos índios é
tão ou mais perfeito que o nosso, “sabe” que bicho é bicho,
gente é gente etc. Mas sob certos pontos de vista, em
determinados momentos, faz todo o sentido, para os
índios, proceder segundo a noção de que alguns animais
são gente. O que significa isso? Quando você encontra
numa etnografia uma afirmação do tipo “os Fulanos
dizem que as onças são gente”, é preciso ter claro que a
proposição “as onças são gente” não é idêntica a uma
proposição trivial do tipo “as piranhas são peixes” (isto é,
“‘piranha’ é o nome de um tipo de peixe”). As onças são
gente mas são também onças, enquanto as piranhas não
são peixes “mas também” piranhas (pois elas são peixes
porque são piranhas). As onças são onças, mas têm um
lado oculto que é humano. Ao contrário, quando você diz
“as piranhas são peixes” não está dizendo que as
eduardO viveirOS de caStrO
201
piranhas têm um lado oculto que é peixe. Quando os
índios dizem que “as onças são gente”, isso nos diz algo
sobre o conceito de onça e também sobre o conceito de
gente. As onças são gente – a humanidade ou “personitude” é uma capacidade das onças – porque, ao mesmo
tempo, a oncidade é uma potencialidade das gentes, e em
particular da gente humana.
E aliás, não devemos estranhar uma ideia como “os
animais são gente”. Afinal, há vários contextos importantes em nossa cultura nos quais a proposição inversa,
“os seres humanos são animais”, é vista como perfeitamente evidente. Não é isto que dizemos, quando falamos
do ponto de vista da biologia, da zoologia etc.? E entretanto, achar que os humanos são animais não te leva
necessariamente a tratar teu vizinho ou colega como
você trataria um boi, um badejo ou um urubu. Do mesmo
modo, achar que as onças são gente não significa que se
um índio encontra uma onça no mato ele vai necessariamente tratá-la como trata seu cunhado humano. Tudo
depende de como a onça o trate…
O que você quer dizer exatamente quando afirma
que o perspectivismo não é um relativismo?
Foi no diálogo com a Tânia que a questão surgiu, de que
esse perspectivismo teria a ver com o relativismo ocidental, que ele seria uma espécie de relativismo. Eu achava
que não era relativismo, e sim outra coisa. O perspectivismo não é uma forma de relativismo. Seria um relativismo, por exemplo, se os índios dissessem que para os
porcos todas as outras espécies são no fundo porcos,
embora pareçam humanos, onças, jacarés etc. Não é isso
que os índios estão dizendo. Eles dizem que os porcos no
fundo são humanos; os porcos não acham que os
202
entreviSta
humanos sejamos no fundo porcos. Quando eu digo que o
ponto de vista humano é sempre o ponto de vista de
referência quero dizer que todo animal, toda espécie, todo
sujeito que estiver ocupando o ponto de vista de referência se verá a si mesmo como humano – nós inclusive.
como bom estruturalista, o que você pensa dos caminhos trilhados pela antropologia pós-Lévi-Strauss?
Sou um estruturalista, como todo bom antropólogo; só
não sei se sou um bom estruturalista… A minha impressão é que o estruturalismo foi o último grande esforço
feito pela antropologia para encontrar, como fizeram
várias outras correntes antes dele, uma mediação entre o
universal e o particular, o estrutural e o histórico. Hoje
você vê uma divergência cada vez maior dessas duas
perspectivas, elas estão se tornando incomunicáveis.
É como se a herança da antropologia clássica tivesse sido
dividida: os universais foram incorporados pela psicologia; os particulares, pela história. Como se a antropologia
fosse hoje apenas uma soma contingente de psicologia
e história, como se ela não tivesse um objeto próprio. Mas
com isso se perde, a meu ver, a dimensão própria de
realidade do objeto antropológico: uma realidade coletiva, isto é, relacional, e que possui uma propensão à
estabilidade transcontextual da forma. E isso me parece
uma coisa que é preciso recuperar. Acredito que a
antropologia deva escapar da divisão para encontrar
o “mundo do meio”, o mundo das relações sociais.
Tendo em vista essa especificidade, como você pensa
a diferença entre a antropologia e a sociologia?
A antropologia é o estudo das relações sociais de um
ponto de vista que não é deliberadamente dominado pela
eduardO viveirOS de caStrO
203
experiência e a doutrina ocidentais das relações sociais.
Ela tenta pensar a vida social sem se apoiar exclusivamente nessa herança cultural. Se vocês quiserem, a
antropologia se distingue na medida em que ela presta
atenção ao que as outras sociedades têm a dizer sobre as
relações sociais, e não, simplesmente, parte do que a
nossa tem a dizer e tenta ver como é que isso funciona lá.
Trata-se de tentar dialogar para valer, tratar as outras
culturas não como objeto da nossa teoria das relações
sociais, mas como possíveis interlocutores de uma teoria
mais geral das relações sociais. Para mim, se há alguma
diferença entre antropologia e sociologia, seria esta: o
objeto do discurso antropológico tende a estar no mesmo
plano epistemológico que o sujeito desse discurso.
como é possível para a antropologia escapar do
objetivismo hegemônico no pensamento ocidental,
esse pensamento domesticado?
A gente sabe, todo mundo que leu Kant sabe, que o ato de
conhecer é constitutivo do objeto de conhecimento.
Ainda assim, nosso ideal de Ciência guia-se precisamente pelo valor da objetividade: deve-se ser capaz de
especificar a parte subjetiva que entra na visão do objeto,
e de não confundir isso com o objeto em si. Conhecer,
para nós, é dessubjetivar tanto quanto possível. Você
conhece algo bem quando é capaz de vê-lo de fora, como
um objeto. Isso inclui o sujeito: a psicanálise é uma
espécie de caso-limite desse ideal ocidental de objetivação, aplicado à própria subjetividade. Nossa ideologia
básica é de que a Ciência será um dia capaz de descrever
todo o real em uma linguagem integralmente objetiva,
sem resto. Ou seja, para nós a boa interpretação do real
é aquela em que se pode reduzir a intencionalidade do
204
entreviSta
objeto a zero. Sabemos que as ciências sociais, na ideologia oficial, são ciências provisórias, precárias, de segunda
classe. Toda ciência deve se mirar no espelho da física…
O que significa isso? Significa guiar-se pela pressuposição de que quanto menos intencionalidade se atribui ao
objeto, mais se o conhece. Quanto mais se é capaz de
interpretar o comportamento humano em termos,
digamos, de estados energéticos de uma rede celular, e
não em termos de crenças, desejos, intenções, mais se
está conhecendo o comportamento. Ou seja, quanto mais
eu desanimizo o mundo, mais eu o conheço. Conhecer é
desanimizar, retirar subjetividade do mundo, e idealmente até de si mesmo. Na verdade, para o materialismo
científico oficial, nós ainda somos animistas, porque
achamos que os seres humanos têm alma. Já não somos
tão animistas quanto os índios, que acham que os animais também têm. Mas se continuarmos progredindo
seremos capazes de chegar a um mundo em que não
precisaremos mais dessa hipótese, sequer para os seres
humanos. Tudo poderá ser descrito sob a linguagem da
atitude física, e não mais da atitude intencional. Essa é a
ideologia corrente, que está na universidade, que está no
cNPq, que está na velha distinção entre ciências humanas e ciências naturais, que está na distribuição diferencial de verbas e de prestígio… Não estou dizendo que este
seja o único modelo vigente em nossa sociedade. É claro
que não é. Mas esse é o modelo dominante.
Em contrapartida ao esquema ocidental, o que move
as epistemologias indígenas?
Eu diria que o que move o pensamento dos xamãs, que
são os cientistas de lá, é o contrário. Conhecer bem
alguma coisa é ser capaz de atribuir o máximo de
eduardO viveirOS de caStrO
205
intencionalidade ao que se está conhecendo. Quanto
mais eu sou capaz de atribuir intencionalidade a um
objeto, mais eu o conheço. O bom conhecimento é aquele
capaz de interpretar todos os eventos do mundo como se
fossem ações, como se fossem resultado de algum tipo de
intencionalidade. Para nós, explicar é reduzir a intencionalidade do conhecido. Para eles, explicar é aprofundar
a intencionalidade do conhecido, isto é, determinar o
objeto de conhecimento como um sujeito.
Até no nosso senso comum esse modelo é dominante…
Exatamente. “Sejamos objetivos.” Sejamos objetivos? –
Não! Sejamos subjetivos, diria um xamã, ou não vamos
entender nada. O pecado epistemológico ali é a falta de
subjetividade. Bem, esses respectivos ideais ou modelos
implicam ganhos e perdas, cada um de seu lado. Há
ganhos em subjetivar, como há perdas. Essas são escolhas culturais básicas.
O pensamento selvagem foi confinado oficialmente ao
domínio da arte; fora dali, ele seria clandestino ou
“alternativo”. Valorizada como seja a experiência artística, ela nada tem a ver com o experimento científico: a
arte é inferior à ciência como produtora de conhecimento. Ela pode ser emocionalmente superior, mas não é
epistemologicamente superior. É essa distinção que não
faz nenhum sentido no que eu estou chamando de
epistemologia xamânica, que parece proceder mais de
acordo com o modelo de nossa arte que de nossa ciência.
O xamanismo, como a arte, procede segundo o princípio
de subjetivação do objeto. Uma escultura talvez seja a
metáfora material mais evidente desse processo de
subjetivação do objeto. O que o xamã faz é um pouco isso:
ele esculpe sujeitos nas pedras, paus e bichos, ele esculpe
conceitualmente uma forma humana.
como você vê os estudos atuais em antropologia urbana?
Você tem uma série de ideais alternativos, é claro, mas
são casos dominados, subalternos, ou então restritos a
certas dimensões do real, que se vê ontologicamente
dualizado: ninguém prega, ou pelo menos ninguém leva
muito a sério se alguma vez alguém o pregou, que a
Verstehen, a compreensão intersubjetiva, deva incluir as
plantas, as pedras, as moléculas ou os quarks… Isso não
seria Ciência. Aquele ideal de subjetividade que penso ser
constitutivo do xamanismo como epistemologia indígena
encontra-se em nossa civilização confinado àquilo que
Lévi-Strauss chamava de parque natural ou reserva
ecológica no interior do pensamento domesticado: a arte.
Não gosto da expressão “antropologia urbana”. Nada
contra estudar em cidades, evidentemente. Mas não gosto
da expressão antropologia urbana, como não gosto de
antropologia suburbana, rural, silvestre, montanhosa,
costeira, submarina. Mas não creio que vocês estejam
pensando em antropologia urbana no sentido de estudo
dos contextos sociais das grandes aglomerações humanas, que é antropologia como outra qualquer. Vocês estão
falando, suponho, da chamada “antropologia das sociedades complexas”, das pesquisas sobre sociedades nacionais de tradição cultural europeia (ou eurasiática). Boa
parte do que se fez em antropologia das sociedades
complexas limitava-se a projetar para o contexto urbano
os conceitos e o tipo de objeto característico da antropologia clássica. Isso não foi muito longe, pois, para fazer uma
entreviSta
eduardO viveirOS de caStrO
Que lugares sobrariam na nossa sociedade para um
conhecimento menos objetivo e mais intencional?
206
207
Para ficarmos apenas nos nomes estrangeiros, evocaria
autores tão diferentes como Louis Dumont, Michel
Foucault, Bruno Latour ou Marilyn Strathern. Eu veria
o trabalho de Foucault como mais representativo de uma
autêntica antropologia das sociedades complexas que,
por exemplo, o estudo de Raymond Firth sobre o parentesco em Londres. A antropologia apenas recentemente
descobriu toda uma nova área de “antropologicidade” das
sociedades complexas que até então era reserva cativa
dos epistemólogos, sociólogos, cientistas políticos, historiadores das ideias. Contentávamo-nos com o marginal, o
não oficial, o privado, o familiar, o doméstico, o alternativo. Fazia-se antropologia do candomblé, mas não havia
antropologia do catolicismo. Antropologia da religião
de sociedades complexas é só estudar culto afro-brasileiro? Por que não a cNbb? É claro que é mais fácil – e foi
absolutamente necessário –, num primeiro momento,
transportarmos o que aprendemos nos estudos de religião africana para os estudos sobre o candomblé. Mas
não estivemos aqui preservando as relações, só os termos.
O segundo momento está sendo perceber que há mais
coisas a fazer do que transportar termos. Você pode
transportar relações, e ao fazer isso está criando conceitos, algo que a antropologia das sociedades complexas
levou algum tempo para fazer. Até bem recentemente, a
antropologia estava muito marcada por aqueles conceitos
produzidos em seu contexto clássico: reciprocidade,
feitiçaria, mana, troca, totem, tabu. Então os antropólogos
das sociedades complexas buscavam o mana aqui, o
totemismo acolá… Tudo bem, mas acho que dá para ir
mais longe, e estamos efetivamente indo mais longe:
estamos começando de fato a fazer antropologia simétrica,
que é antropologizar o “centro” e não apenas a “periferia”
da nossa cultura. O centro da nossa cultura é o estado
constitucional, é a ciência, é o cristianismo. Ser capaz
de estudar estes objetos é uma conquista recente da
antropologia. A antropologia das sociedades complexas
entreviSta
eduardO viveirOS de caStrO
verdadeira projeção, teria que ser uma projeção no
sentido geométrico da palavra: o que se deve preservar
são as relações, não os termos. Então, o “equivalente” do
xamanismo ameríndio não é o neoxamanismo californiano, ou mesmo o candomblé baiano. O equivalente
funcional do xamanismo indígena é a ciência. É o cientista, é o laboratório de física de altas energias, é o acelerador de partículas. O chocalho do xamã é o acelerador
de partículas de lá. Isso não quer dizer que não devamos
estudar candomblé ou neoxamanismo, pois é evidente
que devemos. O que estou dizendo é, simplesmente, que
uma verdadeira tradução da antropologia das sociedades
de tradição não ocidental para a antropologia das sociedades ocidentais deveria preservar certas relações
funcionais internas, e não apenas, ou mesmo principalmente, certas continuidades temáticas e históricas. Não
estou dizendo, insisto, que não se devam estudar parentesco, candomblé, xamanismo urbano, pequenos grupos,
interações face a face… O que estou dizendo é que uma
antropologia urbana que “fizesse a mesma coisa” que faz
a etnologia indígena (supondo que isso seja algo desejável, o que não é óbvio) estaria ou está estudando os
laboratórios de física, as multinacionais do setor farmacêutico, as novas tecnologias reprodutivas, as grandes
correntes de pensamento nas universidades, a produção
do discurso jurídico, político etc.
Então que tipo de produção você qualificaria como digna
do título “antropologia das sociedades complexas”?
208
209
teve o inestimável mérito de mostrar que o “periférico”
e o “marginal” eram parte constitutiva da realidade
sociocultural do mundo urbano-moderno, desmontando
assim a autoimagem do Ocidente como império da razão,
do direito e do mercado. Mas o próximo passo é analisar
essas realidades mais ou menos imaginárias que, de
início, empenhamo-nos em deslegitimar. Não é mais tão
necessário deslegitimar essas coisas; agora o que é
preciso é estudar seu funcionamento.
você acredita que sua obra possa contribuir para uma
antropologia da sociedade brasileira?
Não estou excessivamente familiarizado com a antropologia da sociedade brasileira. Fui fazer etnologia para
fugir da sociedade brasileira, esse objeto compulsório de
todo cientista social no Brasil. Como cidadão, sou brasileiro e não tenho nenhuma objeção a sê-lo. Mas, como
pesquisador, não acho que eu tenha de ter obrigatoriamente como objeto a chamada “realidade brasileira”,
essa curiosa e intraduzível noção. Não se exige isso dos
matemáticos ou dos físicos. Os físicos brasileiros não
estão estudando a realidade brasileira. Estão estudando,
salvo engano (meu ou deles), apenas a realidade. Por
que um cientista social brasileiro não pode fazer a
mesma coisa? O Brasil é uma circunstância para mim,
não é um objeto; e penso, igualmente, que o Brasil é
uma circunstância para os povos que estudo, e não sua
condição fundante.
maneira ignóbil perante as populações indígenas. Escolhi
estudar os índios. Mas o meu compromisso com estes
povos que estudo não é um compromisso político, e sim um
compromisso vital. Eu não faço do meu compromisso com
os índios, nem o objeto da minha pesquisa, nem sua
justificativa. Ele não é nenhuma dessas coisas; ele é a
condição do meu trabalho, que aceito e que nunca me
pesou. Tenho grande desconfiança de justificações políticas da pesquisa. Não acho uma coisa lá muito nobre
justificar-se mediante um apelo, em geral ostentatório, à
importância política do que se está fazendo. Os perigos da
autoilusão e da autocomplacência são enormes. Por fim,
tenho visto tantas vezes esse tal de “compromisso político”
sendo usado como uma espécie de tranquilizante epistemológico… Confesso que não tenho nenhuma simpatia
por isso. Eu nada tenho contra os tranquilizantes, mas,
quando se trata de pensamento, prefiro os inquietantes.
E o compromisso em relação às sociedades indígenas
que você estuda?
Aqui é outra história. Acho que o Brasil, entenda-se, o
Estado e as classes dominantes, sempre se comportou de
210
entreviSta
eduardO viveirOS de caStrO
211
Vento 10 Km/h
Umidade 66%
Temp 10°C
BiBLiOGrAFiA
vErNE, Júlio. “O romance da Lua”.
Originalmente publicado em Da Terra à
Lua. Tradução e adaptação de maria Alice
de A. Sampaio doria. São Paulo: Editora
melhoramentos, 2005, pp. 26–29.
republicação por autorização da editora.
© Editora melhoramentos Ltda.
FLUSSEr, vilém. “A Lua”. Publicado
originalmente em Natural:mente: vários
acessos ao significado de natureza. São
Paulo: Annablume, 2011, pp. 87 a 95.
republicado por autorização da editora e
miguel Flusser © Edith Flusser.
HOrNBAcHEr, Annette. “A medição do
mundo”. Publicado em Depois de mim, o
dilúvio? Natureza – Cultura: Arte, tradução
de Kristina michahelles. Bonn, Alemanha:
Humboldt/Goethe-institut, 2009.
disponível em www.goethe.de/wis/bib/
prj/hmb/the/kli/pt5323246.htm.
consultado em março de 2013. Publicado
originalmente como “die vermessung
der Welt”. in: Kulturaustausch – Zeitschrift
für internationale Perspektiven, ii. Berlin,
2008. republicação por autorização da
autora e dos editores.
2013-05-16
19:27
dE mAriA, Walter. “Sobre a importância
dos desastres naturais”. do original “On
the importance of Natural disasters”
(maio de 1960). in: An Anthology of
Chance Operations, ed. Jackson mac Low
e La monte young. Bronx, Nova york:
edição própria dos editores, 1963;
reimpresso, Nova york: Heiner Friederich,
1970. republicação e tradução por
autorização do autor. Traduzido por
camila Schenkel.
LATOUr, Bruno. “Esperando Gaia. A
composição de um mundo em comum por
meio da arte e da política”. do original
“Waiting for Gaia. composing the common
World through Art and Politics”. Palestra
proferida no French institute por ocasião
do lançamento do SPEAP em Londres,
novembro de 2011. Publicado em www.
bruno-latour.fr/node/446. consultado em
março de 2013. republicação e tradução
por autorização do autor. Traduzido por
daniel Lühmann.
KUHN, Thomas. “As revoluções como
mudanças de concepção de mundo”.
Publicado originalmente em A estrutura
das revoluções científicas. 5ª edição.
São Paulo: Perspectiva, 1997, pp. 145-171.
republicação por autorização da
editora. versão em língua portuguesa
© Editora Perspectiva S.A.
KAc, Eduardo. “O satélite e a obra de arte
na era das telecomunicações”.
Originalmente publicado e distribuído pelo
autor em 1986. reproduzido em: Kac,
Eduardo. Luz & Letra. Ensaios de arte,
literatura e comunicação. rio de Janeiro:
contracapa, 2004. republicação por
autorização do autor.
SArUKKAi, Sundar. “A ciência e a ética da
curiosidade”. Trecho extraído do original
“Science and the Ethics of curiosity”.
in: Current Science, vol. 97, no. 6, 25 de
setembro de 2009. republicado e
traduzido por autorização do autor e da
revista Current Science. Traduzido por
daniel Lühmann.
JOUBErT, Lindy. “ciência e arte: novos
paradigmas na educação e resultados
profissionais”. do original “Science and
Art: New Paradigms in Education and
vocational Outcomes”. Publicado
originalmente em Prospects, International
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dezembro de 2002, vol. 32, no. 4.
© UNEScO 2002. republicação e tradução
por autorização do editor. Traduzido por
camila Schenkel.
crUzviLLEGAS, Abraham. “Artesanatos
recentes”. do original “Artesanías
recientes”. in: Round de sombra. cidade
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e tradução por autorização do autor.
Traduzido por Júlia Ayerbe.
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LiNd, maria. “Por que mediar a arte?”.
do original “Why mediate Art?”, Ten
Fundamental Questions of Curating,
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23 de abril de 2011. republicação e
tradução por autorização da autora.
Traduzido por camila Schenkel.
vivEirOS dE cASTrO, Eduardo.
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alma selvagem – e outros ensaios de
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em Sexta-feira n. 4 [corpo]. São Paulo,
Hedra, 1999. colaboraram carlos machado
dias Jr., clarice cohn, Florencia Ferrari e
valéria macedo. republicação por autorização de Eduardo viveiros de castro.
214
PATrOciNAdOr mASTEr
PATrOciNAdOr dE POrTAiS,
PrEviSõES E ArQUiPéLAGOS
PATrOciNAdOr dE mATiNêS
PATrOciNAdOr dO PrOJETO PEdAGóGicO
PATrOciNAdOr dO PrOGrAmA rEdES dE FOrmAçãO
dA 9ª BiENAL dO mErcOSUL | POrTO ALEGrE
APOiAdOr dO PrOJETO PEdAGóGicO
APOiAdOr PrOGrAmA dE cOmiSSõES
APOiAdOr iNSTiTUciONAL
PrATA
FiNANciAmENTO
216
PATrOciNAdOr SmArTEr
OUrO
PATrOciNAdOr dO TrANSPOrTE EScOLAr
dA 9ª BiENAL dO mErcOSUL | POrTO ALEGrE
“PETrOBrAS LEvA vOcê à BiENAL”
rEALizAçãO
217
FUNdAçãO BiENAL dE ArTES viSUAiS
dO mErcOSUL
Os princípios norteadores da Fundação
Bienal de Artes visuais do mercosul são:
o foco na contribuição social, buscando
reais benefícios para seus públicos, parceiros e apoiadores; a contínua aproximação com a criação artística contemporânea
e seu discurso crítico; a transparência
na gestão e em todas as suas ações; a
prioridade de investimento em educação
e consolidação da exposição como referência nos campos da arte, da educação
e da pesquisa nessas áreas. A instituição
trabalha pela universalização do acesso
à arte e para contribuir de forma efetiva
para o exercício da cidadania garantindo
o acesso à cultura e à arte a milhares de
pessoas, de forma gratuita.
cONSELHO dE AdmiNiSTrAçãO
Presidente
Jorge Gerdau Johannpeter
vice-Presidente
Justo Werlang
conselheiros
Adelino raymundo colombo
Beatriz Bier Johannpeter
Elvaristo Teixeira do Amaral
Evelyn Berg ioschpe
Hélio da conceição Fernandes costa
Horst Ernst volk
ivo Abrahão Nesralla
Jayme Sirotsky
Jorge Polydoro
Julio ricardo Andrighetto mottin
Liliana magalhães
Luiz carlos mandelli
Patricia Fossati druck
Paulo césar Brasil do Amaral
Péricles de Freitas druck
raul Anselmo randon
renato malcon
ricardo vontobel
Sérgio Silveira Saraiva
William Ling
218
conselho Fiscal
Geraldo Toffanello
Jairo coelho da Silva
José Benedicto Ledur
mário Fernando Fettermann Espíndola
ricardo russowsky
Wilson Ling
dirETOriA
Presidente
Patricia Fossati druck
vice-Presidente
renato Nunes vieira rizzo
diretores
André Jobim de Azevedo – Jurídico e
relações institucionais
claudia Helena Plass – Logística
Egon Kroeff – comunicação e marketing
Heron charneski – Sustentabilidade e
Núcleo de documentação e Pesquisa
José Paulo Soares martins – Gestão
de Parcerias
maria cecília medeiros de Farias Kother –
diretora-conselheira
mathias Kisslinger rodrigues
Administrativo-Financeiro e
Governança
Secretaria
mariana vieira vargas – coordenação
Andriele viana
camilla rossatto collao
Tatiana machado madella
Gestão de Parcerias
michele Loreto Alves – coordenação
AdmiNiSTrAçãO
Administrativo-Financeira
volmir Luiz Gilioli - coordenação
cléofas Sates manfio
Jordan de Souza dos Santos
Luisa Schneider
Pedro Paulo da rocha ribeiro
rodrigo Silva Brito
Teresinha Abruzzi Pimentel
imprensa
Ariela dedigo – coordenação
Julia Franz – Estagiária
Núcleo de documentação e Pesquisa
vanessa Silveira Fagundes
viagens de campo
carla Borba – Produção
consultoria Jurídica em Propriedade
intelectual
rodrigo Azevedo - Silveiro Advogados
PrOdUçãO
marketing
Luciana Braun – coordenação
manoela carvalho Guariglia - Estagiária
coordenação de Produção
André Severo
Germana Konrath
9a BiENAL dO mErcOSUL | POrTO ALEGrE
SE O CLIMA FOR FAVORÁVEL
direção Artística e curadoria Geral
Sofía Hernández chong cuy
curadores
raimundas malašauskas – curador
do Tempo
mônica Hoff – curadora de Base
Bernardo de Souza – curador do Espaço
Sarah demeuse – curadora da Nuvem
daniela Pérez – curadora da Nuvem
Júlia rebouças – curadora da Nuvem
dominic Willsdon – curador Pedagógico
da Nuvem
PrOJETO PEdAGóGicO
Ti
diego Poschi vergottini – coordenação
André Henrique Jochims
invenções caseiras
Luciane Bucksdricker – Produção
Francesco Settineri – Assistência
redes de Formação
Potira Preiss – Polinizadora das redes
diana Kolker carneiro da cunha –
Formação mediadores da Terra
Gabriela Bon – Formação mediadores
da Nuvem
Juliana Peppl – Produção
Liege Ferreira – Produção
Andressa duarte – Assistência
cUrAdOriA
conselheiros-Facilitadores
Beatriz Bier Johannpeter
Justo Werlang
renato malcon
Produção Executiva
Gabriela Saenger Silva
coordenação Geral
mônica Hoff
Produção
Adauany zimovski
Gabriela Geier
Jaqueline Beltrame
marco mafra
mariana Bogarín
Natasha Jerusalinsky
Assistência de Produção
carolina Garcia
Gaston Santi Kremer
Juliana Bittencourt
Leandro Engelke
Luiza mendonça
Paola Santi Kremer
Taís cardoso
mUSEOGrAFiA
Eduardo Saorin – coordenação Geral
e Projeto museográfico
michelle Sommer – Planejamento Geral
e Projeto museográfico
Alberto Gomez – Projeto museográfico
Bruna Bailune – Produção Executiva
219
A NUvEm:
UmA ANTOLOGiA PArA PrOFESSOrES,
mEdiAdOrES E AFiciONAdOS dA
9a BiENAL dO mErcOSUL | POrTO ALEGrE
Este livro foi publicado pela Fundação
Bienal de Artes visuais do mercosul,
na ocasião da 9a Bienal do mercosul |
Porto Alegre, de 13 de setembro a
10 de novembro de 2013.
Organização
Sofía Hernández chong cuy
mônica Hoff
coordenação
Luiza Proença
Produção
ricardo romanoff
design
Project Projects, New york
Tradução
camila Schenkel
daniel Lühmann
Júlia Ayerbe
revisão e Preparação
regina Stocklen
Produção Gráfica
Helena cardia
Agradecimentos
Aos autores, familiares e editores que
concederam os direitos para esta publicação; e Gabriel Borba, Hans Ulrich Obrist,
Katharina Pilz, marcela vieira, marcos
Brias, Nilse cristina Nicola, roberto Winter,
Tadeu chiarelli, yasmil raymond.
Tipografia
Porto Alegre, Project Projects, 2012
maison Neue, Timo Gaessner, 2012
Eames century modern,
House industries, 2010
Gráfica
Pallotti, São Leopoldo–RS
Papel
reciclato 75g, duplex 300g
Tiragem
1800
Edição © 2013, Fundação Bienal de Artes visuais
do mercosul
Textos © os autores, exceto quando outra indicação
Seleção e tradução dos textos que compõem esta
antologia autorizadas pelos seus respectivos
autores ou representantes legais; as fontes originais e suas respectivas traduções encontram-se
indicadas no final da antologia.
Todos os direitos reservados. A reprodução não
autorizada desta publicação, no todo ou em parte,
constitui violação de direitos autorais.
Todos os esforços foram feitos para identificar
os detentores dos direitos dos textos aqui reproduzidos. Estamos prontos para corrigir eventuais
falhas ou omissões em futuras edições.
Nesta edição, respeitou-se o Novo Acordo
Ortográfico da Língua Portuguesa.
dados internacionais de catalogação na
Publicação (ciP):
N989
A nuvem : uma antologia para
professores, mediadores e aficionados
da 9ª Bienal do mercosul | Porto
Alegre / Sofía Hernández chong cuy
e mônica Hoff (Org.). – 1. ed. – Porto
Alegre : Fundação Bienal de Artes
visuais do mercosul, 2013.
224 p. ; 13 x 20 cm.
iSBN 978-85-99501-27-6.
Obra publicada em português, inglês
e espanhol, em itens individuais.
1. Literatura. 2. Antologia. i. Bienal
do mercosul (9. : 2013 : Porto Alegre, rS).
ii. cuy, Sofía Hernández chong.
iii. Hoff, mônica.
cdU 82-1
Fundação Bienal de Artes visuais do mercosul
rua Bento martins, 24, sala 1201
90010-080 – Porto Alegre – rS, Brasil
bienalmercosul.art.br
220
organizadas. Os campistas
recém-assentados sentiam as forças estranhas
da Nuvem, dizendo que levitavam como cúmulos;
os moradores locais, por sua vez, sentiam-se
mais e mais atraídos uns pelos outros. Todos
flutuavam alegremente. Uma nova linguagem
foi criada em homenagem à Nuvem, e uma
nova tipografia também; eles a denominaram
Porto Alegre.
Acontece que, muito antes de a Nuvem aparecer no céu, a Fundação Bienal de Artes visuais
do mercosul já havia assegurado os direitos do
ar sobre o Guaíba, em antecipação à 9a Bienal do
mercosul | Porto Alegre. Para sua sorte, isso
significava que a Nuvem poderia ser tecnicamente
inserida em sua próxima exposição. Então, os
organizadores da Bienal reuniram-se na baía,
convidando moradores e campistas para uma
dança da chuva em comemoração a essa inclusão
peculiar. Nenhum dilúvio aconteceu. mas os
organizadores assíduos não pararam por aí: importaram uma máquina de fazer chover inventada
por Juan Baigorri em 1938 – considerada perdida
por anos, assim como o meteorito de mesón
de Fierro, procurado certa vez por ele. Então, a
Nuvem reagiu. desaguou. Este livro, A nuvem,
reúne algumas das pancadas de chuva daquele
dia memorável.
[continuação da capa]
9
BIENAL
DO
MERCOSUL
PORTO
ALEGRE