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Semper Reformanda – O Espirito da Reforma Protestante Hoje

2021, Revista de Teologia e Cultura

"Semper Reformanda" é um dos princípios fundamentais da Reforma Protestante que nos ensina que a igreja deve estar sempre em reforma. Mas, em que sentido a igreja deve estar sempre em reforma? Nesse artigo apresento dois conceitos que representam esse princípio nos ensinos dos reformadores, (1) Ad Fontes e (2) Sola Scriptura, e defendo que a melhor maneira de manter a igreja reformada em constante reforma é volta para as Escrituras em seus idiomas originais.

Revista do Instituto Schaeffer de Teologia e Cultura – Out 2021 – Rascunho Não Revisado Pré-Publicação Semper Reformanda O Espírito da Reforma Protestante Hoje Talvez o mais esquecido (e talvez mais mal-entendido) lema da Reforma Protestante seja o Ecclesia reformata, semper reformanda. Diferente do que pensam alguns, esse lema não tem a pretensão de manter a igreja em um processo de reforma constante, como se precisasse se reinventar a cada geração. Ao contrário, esse lema é um lembrete que a Igreja Reformada tem que manter seus olhos sempre fitos nas Escrituras, pois “a igreja sempre está sendo reformada de acordo com a Palavra de Deus” (Kevin DeYoung, Semper Reformanda, TGC). A prática e a teologia da igreja devem sempre ser avaliadas e reavaliadas a partir das escrituras, afinal, nós cremos na inspiração, autoridade e suficiência das Escrituras. Entretanto, quando falamos sobre a Reforma Protestante, temos o costume de enfatizar os elementos soteriológicos da Reforma, como por exemplo o Sola Gratia, Sola Fides, Solus Christus, que são doutrinas que temos que afirmar e defender. Mas, normalmente fazemos isso sem lembrar que a definição dessas doutrinas foi inevitavelmente derivada do estudo aprofundado da Escritura. E digo mais, essas doutrinas foram assim definidas não apenas a partir do estudo das Escrituras, mas a partir do estudo da Escritura no seu idioma original. É por isso que eu estou pronto para sugerir que o espírito da Reforma Protestante que permitirá que a igreja esteja de fato sempre em reforma pela palavra de Deus, é a constante volta do estudo da Escritura nos idiomas originais. Mais do que lembrar dos princípios derivados da Reforma, nós precisamos relembrar o espírito que os levou até esse lugar, a saber (1) o Ad Fontes e o (2) Sola Scriptura. Ad Fontes O espírito acadêmico dos dias da reforma ficou conhecido pelo lema Ad Fontes, que traduzido livremente do latim seria: ‘de volta às fontes’. Impulsionados pelo projeto humanista de voltar a estudo dos antigos autores, os eruditos do renascentismo abandonaram os comentários e exposições medievais dos autores clássicos para ir direto ao texto original. A proposta era reencontrar um conhecimento que havia sido encoberto por séculos de reflexão histórica. Nesse contexto, um monge agostiniano e sacerdote e teólogo romano por nome Erasmo de Roterdã decide estudar as escrituras no seu idioma original. Erasmo inicia seu estudo do grego aos 32 anos de idade com um empenho e dedicação que o levaram a ser conhecido como o mais preeminente erudito do NTG de sua geração. Para Erasmo o conhecimento do grego do NT era fundamental para o entendimento do correto das Escrituras, de modo que para ele, a tradição latina da igreja tornou-se secundária, afinal, “a erudição latina, por mais ampla que seja, é deficiente e imperfeita sem o grego. No latim nós temos, na melhor das hipóteses, pequenos riachos e piscinas turvas, enquanto o grego tem as fontes mais claras e Revista do Instituto Schaeffer de Teologia e Cultura – Out 2021 – Rascunho Não Revisado Pré-Publicação os rios que fluem com ouro” (Letter 149). Erasmo estava convencido que era o momento de a Igreja Romana voltar às fontes, estudando o NT no seu idioma original para corrigir a teologia da igreja e aproximá-la da verdade. Sua intenção não era criar problemas, mas oferecer um genuíno retorno às escrituras, como ele mesmo explicou posteriormente: “Não era por fama vazia ou prazer infantil que, na minha juventude, aprendi a literatura dos antigos, e que já tarde na vida, ganhei um pouco de domínio do grego e do latim. Foi meu distinto desejo de purificar o templo do Senhor da bárbara ignorância e de adorná-lo com tesouros trazidos de longe, de modo a acender os corações generosos um caloroso amor pelas Escrituras” (Letter 124). A volta ao texto original do NT, para Erasmo era um genuíno retorno à Escritura. Sola Scriptura Muito embora Erasmo tenha encontrado muitos opositores, os seus esforços não foram em vão. Ao que parece, o seu entusiasmo e dedicação acabou por influenciar um outro teólogo muito importante para a história do Cristianismo: Martinho Lutero. A bem da verdade, é bem possível dizer que o grito Ad Fontes de Erasmo tenha ecoado em Lutero como Sola Scriptura. Em outras palavras, enquanto Erasmo buscava pela volta às escrituras, Lutero buscava ficar somente com elas. A influência de Erasmo em Lutero é notável. Erasmo publica a primeira edição do seu NTG com tradução para o Latim em 1516, no mesmo período em que Lutero ensinava Romanos na Universidade de Wittenberg. Nesse período, Lutero adota texto grego de Erasmo em sala de aula e no ano seguinte, mais precisamente no dia 31 de outubro, ele publica suas 95 Teses. Alguém até poderia dizer que essa é apenas uma coincidência história, como uma sucessão de eventos sem eventual causalidade. Contudo, a perspectiva de Lutero a respeito da doutrina da justificação nos anos anteriores a reforma era bem diferente daquela que conhecemos hoje. Até meados de1514, Lutero mantinha que os seres humanos eram capazes de responder a Deus sem ajuda da graça, e que essa resposta humana era uma condição necessária para se iniciar o processo da justificação. Contudo, ao ensinar Romanos a partir do NTG de Erasmo, Lutero muda sua perspectiva e passa a defender que é em Cristo que o pecador sem méritos é declarado justo diante de Deus, e que a justificação acontece pelos méritos de Cristo como a imputação da justiça divina. Essa mudança certamente tem a influência de Erasmo, afinal, ele havia proposto em Romanos 4:3 um pequeno ajuste de tradução da Vulgata, de “Credidit Abraham Deo, et reputatum est illi ad justitiam” (lit. Creu Abraaão em Deus e isso lhe foi considerado como justiça) para “et imputatu est ei ad iusticiam” (lit. e isso lhe foi imputado como justiça). Essa mudança, recebida e posteriormente adotada por Lutero em sua tradução para o alemão, “influenciou de modo tão poderoso a mente de Lutero, que ela se tornou o ponto de partida para a Reforma Protestante” (Preserved Smith, Erasmus: A Study of his life, 168). Em outras palavras, a volta às fontes de Erasmo tinha levado Lutero a redescobrir o evangelho apresentado nas Escrituras, e foi exatamente essa descoberta que o levou a questionar a autoridade final Revista do Instituto Schaeffer de Teologia e Cultura – Out 2021 – Rascunho Não Revisado Pré-Publicação do Papa romano sobre a igreja e a defender a autoridade suprema da escritura sobre a igreja. Por isso, assim que foi excomungado, Lutero realiza sua tradução do NT para o alemão com a intenção de apresentar as Escrituras para o cristão comum. Para Lutero, a Escritura era fundamental para o Cristianismo Contudo, ao mesmo tempo que levava a escritura no idioma comum dos seus conterrâneos, Lutero trabalhava ativamente para fazer com o que o texto NTG fosse lido e ensinado pelos ministros. De acordo com ele, “embora a fé e o Evangelho possam ser proclamados por simples pregadores sem as línguas, tal pregação é monótona e mansa, os homens enfim ficam cansados e enojados e ela cai por terra. Mas quando o pregador é versado nas línguas, seu discurso tem vigor e força, toda a Escritura é tratada e a fé se encontra constantemente renovada por uma variedade contínua de palavras e obras” (Hugh Thomson Kerr, A Compend of Luther’s Theology, 148). Em outras palavras, para Lutero a saúde da igreja depende do bom uso da escritura no seu idioma original feito pelos pastores da reforma. A proposta de Lutero não era apenas romper com a tradição latina da igreja romana e levar o texto das escrituras para o cristão comum, ele queria que os ministros e pregadores da palavra fossem versados nas escrituras no idioma original. Somente assim a igreja poderia estar semper reformanda. Além disso, Lutero acreditava que a pureza doutrinaria da igreja dependia da manutenção do estudo das línguas originais, pois segundo ele a história ensina que quando o Cristianismo abandona as línguas, ele abandona também a fé apostólica: “A experiência já o provou e ainda oferece evidências nos nossos dias. Pois assim que as línguas declinaram até o ponto de desaparecimento, após a era apostólica, o evangelho, a fé e o próprio Cristianismo declinaram mais e mais até que sob o papa eles desapareceram completamente. Após o declínio das línguas, o Cristianismo testemunhou pouco que valesse alguma coisa; em vez disso, muitas abominações terríveis surgiram por causa da ignorância das línguas” (Martin Luther, “To the Councilmen”, 360). Dessa forma, Lutero defende que a o estudo da Escritura no seu idioma original é o melhor modelo para manter a pureza doutrinária da igreja. Mas essa iniciativa não era apenas para fortalecer a comunidade da fé, ou zelar pela pureza doutrinada da igreja, uma forma de defesa do evangelho: “Certifique-se disso: não preservaremos o evangelho sem as línguas originais. As línguas são a bainha na qual que espada do Espírito está contida; a caixa em que essa jóia é consagrada; a garrafa em que esse vinho é mantido; a despensa em que esta comida é armazenada (…) Se, por nossa negligência, abandonarmos as línguas originais (que Deus não permita!), nós iremos perder o evangelho” (Martin Luther, “To the Councilmen”, 360). Em outras palavras, o estudo das línguas originais era o remédio previsto por Lutero para fortalecer a igreja, defender a fé e proteger o evangelho. O Ad Fontes é fundamental para o Sola Scriptura ainda hoje! É assim que vamos experimentar de fato o semper reformanda. Voltemos às Escrituras É por isso que nos dias que celebramos a Reforma Protestante não podemos simplesmente afirmar a teologia da reforma, nós precisamos relembrar que o espírito da Reforma era marcado por um profundo Revista do Instituto Schaeffer de Teologia e Cultura – Out 2021 – Rascunho Não Revisado Pré-Publicação desejo de voltar às escrituras nos idiomas originais para manter a Igreja Reformada sempre em Reforma. Ou seja, se quisermos manter a saúde da igreja, sua pureza doutrinária e defender o evangelho, nós devemos sempre voltar às fontes das escrituras nas línguas originais, pois assim ficaremos alerta com as propostas indevidas que podem nos fazer desviar da verdade de Deus, como já havia nos alertado Calvino: “Ao abandonarmos as línguas bíblicas, fechamos os olhos para a luz e espontaneamente nos desviamos da verdade” (Selected Works of John Calvin, 3:75). Por isso, devemos nos debruçar nas escrituras e aprender a estudá-la no seu idioma original, pois somente assim vamos continuar a defender a verdade, o evangelho e a igreja, como já nos alertou Lutero: “Agora devem existir tais profetas na igreja cristã que possam cavar na Escritura, explicá-la e continuar sua defesa. Uma vida santa e uma doutrina correta não são suficientes. Por isso, as línguas são absoluta e completamente necessárias na igreja cristã.” (Establish and Maintain Christian Schools, 363). Que Deus levante esses profetas nos nossos dias. Voltemos às Escrituras! Marcelo Berti