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DETERMINISMO MORAL EM HUME: A APOSTA NA REGULARIDADE
DETERMINISMO MORAL EM
HUME: A APOSTA NA REGULARIDADE
Andrea Cachel (USP)
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Resumo: Hume, no segundo livro do Tratado e na Investigação acerca
do Entendimento Humano, sustenta a posição de que a vontade atua segundo a necessidade e não conforme a liberdade. A filosofia humeana é
defensora da existência de uma causa necessária para as ações voluntárias, causa essa que não seria a vontade, como iniciadora da cadeia causal, mas sim algo anterior que a determina na geração de efeitos necessários. Este artigo pretende expor seus argumentos, mostrando como
essa temática evidencia a importância que passa a ter a busca por regularidades, o que pretende nos permitir breves reflexões sobre o estatuto
conferido por Hume a certas áreas do conhecimento, bem como a respeito do estatuto da própria filosofia humeana.
Palavras-chaves: ação humana; determinismo; regularidade; vontade.
Para Hume, discutir se há liberdade ou necessidade no
campo das ações humanas implica uma análise da origem dos
atos gerados pela vontade. Essa seria “a impressão interna que
sentimos e de que temos consciência quando deliberadamente
geramos um novo movimento em nosso corpo ou uma nova
percepção em nossa mente” (2000, p. 257) e, nesse sentido,
uma investigação concernente à sua liberdade ou determina-
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ção representa um debate em relação ao fundamento que a
move em direção à origem de novos atos. Ou seja, trata-se de
pensar se a vontade é sempre determinada por uma causa que
lhe é anterior ou se ela age segundo a liberdade e, portanto, se
ela pode ser a causa inicial de uma cadeia de relações, cujos efeitos serão seus efeitos diretos.
A resposta humeana a essas questões, exposta nos livros
Tratado da Natureza Humana e Investigação acerca do Entendimento Humano1, qualifica as ações humanas como necessárias. Em outras palavras, tendo-se em vista o que está em jogo
nesse problema, afirma ser a vontade determinada por causas
necessárias que condicionam necessariamente os atos por ela
gerados. Hume faz uma distinção entre liberdade de espontaneidade e liberdade de indiferença, ou, como ele sintetiza, entre a liberdade compreendida como oposta à violência e coação, e ela entendida como oposta ao acaso ou enquanto ausência de necessidade e das causas:
Poucos são capazes de distinguir entre liberdade de espontaneidade, como é chamada pelos escolásticos, e liberdade de
indiferença, ou seja, entre aquilo que se opõe à violência e o
que significa uma negação da necessidade e das causas. (HUME 2000, p. 262)
Assim, a filosofia humeana reconhece a liberdade humana
para realizar aquilo que é deliberado pela vontade, afirmando
a hipótese de se falar em liberdade nas ações humanas, enquanto possibilidade de não ser coagido a agir contrariamente
às deliberações da vontade. Porém, se, por um lado, afirma
que a vontade deve ser qualificada como aquilo que origina as
ações, por outro lado, estabelece o dever de se compreender
que ela não o faz a partir de si mesma, mas sim partindo de
causas possuidoras de efeitos necessários, portanto, efeitos que
não podem ser alterados pela própria vontade2. A filosofia
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humeana, em síntese, argumenta que não é a partir de si mesma que a vontade atua, embora a ação por ela originada possa
ser concretizada, tendo em vista que, na perspectiva da possibilidade de realizar essa ação, o homem seja livre.
Segundo Hume, a ação humana é necessariamente condicionada por certos motivos, circunstâncias e, sobretudo, pelo
caráter ou temperamento do agente. Isso significa afirmar que,
embora a vontade seja aquilo que origina uma ação, não é a
partir de si mesma que ela o faz, mas sim com base em causas
que, do ponto de vista da cadeia causal a ser estabelecida, sãolhe anteriores. A ação da vontade, para Hume, seria sempre
efeito dessas causas. Assim, ainda que não exclua a vontade do
processo, tendo em vista a afirmação de que o homem é livre
para realizar as deliberações da mesma, essa análise, em última
instância, desloca da vontade o papel de iniciadora, em si
mesma, das ações humanas e, por isso, sustenta textualmente a
posição de que a vontade é necessariamente determinada.
Para a filosofia humeana, seria essa determinação causal
das ações humanas o fundamento da religião, da moral e, podemos incluir, da imputabilidade jurídica. Isso porque, segundo Hume, para que a ação seja condenável moralmente e possa ser punida, deve-se pressupor que a sua causa seja algo no
sujeito, caso contrário a ação seria condenável e o homem não.
Conforme analisa, a imputação de uma pena diria respeito à
causa da ação e não à ação propriamente dita, posto que sem
essa determinação causal não haveria por que distinguir a
mesma ação segundo critérios como a premeditação ou não
premeditação, a idade do agente, entre outros aspectos. Em
contrapartida, toda a idéia de recuperação através de uma pena
não faria o menor sentido caso não se supusesse que a pena visasse a corrigir o elemento que é a causa das ações (sobretudo
o caráter):
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Vou além e afirmo que essa necessidade é tão essencial à religião e à moral que sem ela seríamos obrigados a contrariar totalmente ambas e que qualquer outra suposição destruiria totalmente todas as leis, divinas e humanas. De fato, todas as leis
humanas são fundadas em recompensas e punições, e admite-se
como um princípio fundamental que esses motivos têm uma
influência na mente e que produzem as boas ações e previnem
as más. (HUME 2000, p. 263)
Os homens não são culpados por aquelas ações que eles realizam sem conhecimento e sem intenção, independente das conseqüências. Por qual razão, senão porque os princípios dessas
ações são apenas momentâneos e acabam apenas nelas? Os
homens são menos culpados por aquelas ações que praticam
apressadamente e sem premeditação, do que por aquelas que
são deliberadas. Por que razão, senão porque um temperamento precipitado, ainda que tendo uma causa ou princípio constante na mente, atua apenas em intervalos e não afeta todo o
caráter? (HUME 1999, p. 161)
Não se trata, portanto, de afirmar a existência de uma
vontade boa ou má em si mesma (assim como, evidentemente,
ações boas ou más em si mesmas), mas sim de postular como
condenáveis certos elementos externos a essa vontade. E, no
fundo, o que o determinismo humeano preconiza é uma externalidade (não necessariamente algo derivado do mundo exterior, é preciso perceber) da origem do ato em relação à vontade. Em realidade, segundo esse determinismo, embora devamos qualificar os atos como voluntários, porquanto a vontade esteja implicada na ação, devemos reconhecer que não é ela
a causa original da ação, havendo causas anteriores que condicionam as suas deliberações. A religião, a moral e o direito não
se dirigiriam à vontade, mas sim a esses elementos que a condicionam, os quais, no caso específico do direito, por exemplo,
qualificam ou atenuam uma ação. Em síntese, para a filosofia
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humeana, a vontade delibera seus atos de forma necessária,
como efeitos de uma causa necessária, que não é a própria
vontade.
Entretanto, é preciso perceber que o estabelecido pela investigação humeana é um sentido muito específico de necessidade e, em contrapartida, de liberdade. Como Lebrun observa3, também na questão da necessidade nas ações humanas um
dos aspectos decisivos é a tentativa de Hume de abordar a
questão da causa e efeito, rompendo com a idéia de que percebemos poderes nos objetos. E, podemos acrescentar, torna-se
central compreender o modo como a filosofia humeana conceitua, em contrapartida, a idéia de conexão necessária, vinculando-a a dois elementos que passam a ser fundamentais também para a discussão no campo das ações humanas: a observação de conjunções constantes e a inferência procedente dessa
observação e da intermediação do hábito e da imaginação.
Dessa forma, o deslocamento da idéia de necessidade de
possíveis poderes e forças postulados no objeto para a conjunção constante e a inferência, a rejeição do acaso, bem como o
sentido da mesma, são pressupostos sem os quais não se pode
entender o determinismo sugerido por Hume. É o sentido
preciso que possui tal determinismo, em contrapartida, que
lança as pistas acerca de quais devem ser os pressupostos sustentados a fim de que se refute que a vontade seja (necessariamente e, portanto, sem qualquer possibilidade de uma opinião
oposta) determinada causalmente por aspectos alheios a ela
própria.
Para Hume, o vínculo necessário que estabelecemos entre
a existência de dois objetos não tem fundamento na razão, mas
é uma impressão da mente que nos determina a passar de um
objeto a outro (2000, p. 113; 1999, p.145). Hume argumenta
que observamos uma conjunção constante entre objetos e reaPHILÓSOPHOS 12 (1): 39-56, jan./jun. 2007
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lizamos uma inferência futura que fosse baseada nessa conjunção, porém supondo uma conexão necessária entre os objetos.
Assim, o filósofo mostra que a idéia de necessidade envolvida
na causa e efeito não é decorrente da percepção de poderes
nos objetos ou em suas qualidades, mas sim da própria mente.
Não se trata de negar, conforme observa Hume, a possibilidade de que os objetos possuam estes poderes, mas sim de rejeitar que postulemos ter uma idéia de necessidade derivada de
poderes ininteligíveis. Se o que está em jogo é a idéia de necessidade que possuímos, na relação causal, tem-se como requisito
a necessidade de que a mesma seja originada por algo inteligível. É por isso que Hume, mostrando não haver princípios racionais demonstrativos ou prováveis que possam sustentar a
conclusão de um vínculo necessário entre dois objetos, precisa
fundamentar a idéia de necessidade na mente humana. A
mente toma como ponto de partida a conjunção constante e,
como é retomado nas seções pertinentes ao tema da liberdade
e necessidade, infere a existência de um objeto a partir da presença da idéia do seu acompanhante usual:
Necessidade pode ser definida de duas formas, de acordo com
as duas definições de causa, da qual ela é uma parte essencial.
Ela consiste tanto na conjunção constante de objetos semelhantes como na inferência do entendimento de um objeto a outro.
(HUME 2000, p. 160)
Na filosofia humeana, o elemento central da configuração
da nossa idéia de necessidade é a conjunção constante, a verificação de uma uniformidade entre seqüências causais. Conforme observamos, toda a discussão acerca da idéia de conexão
necessária entre os objetos do mundo físico parte da rejeição
da opinião de que percebemos poderes nos objetos, ou seja, de
que temos percepção da força que permitiria um objeto causar
outro. Segundo Hume, ainda que não percebamos poderes
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causais nos objetos, é fato que pressupomos uma conexão necessária entre causa e efeito, a qual fundamenta a idéia de que
haja um vínculo necessário entre os objetos. Para ele, essa conexão presumida seria uma impressão de reflexão, que decorreria da inferência realizada, a partir da observação de uma
conjunção constante e da intervenção, nesse processo, do hábito. Hume argumenta que se, no caso das ações humanas, os
homens inicialmente pensam que há liberdade de indiferença,
ou seja, que a vontade não é determinada por nada a originar
as ações, é porque esperam perceber os poderes daquilo que
determina a vontade atuando. Haveria a experiência de uma
insensibilidade em relação à determinação exercida pelos motivos e pelo temperamento em relação à vontade, da qual surgiria erroneamente a opinião de que a vontade não é determinada causalmente. Mas, se também nos objetos não é a percepção dos poderes que origina a idéia de um vínculo necessário entre dois objetos, a opinião de que nossa vontade não é
determinada considera erroneamente o próprio sentido de necessidade. Postular uma causa necessária para a deliberação de
certos atos da vontade significa, para Hume, apenas pretender
que haja a observação de conjunções constantes, a qual, respaldada pelo hábito e pela imaginação, possa nos permitir inferir causas ou efeitos futuros.
E é justamente a existência de uma uniformidade nas ações humanas que Hume defende, tanto no Tratado, como na
Investigação:
Quer consideremos os homens segundo suas diferenças de sexo, idade, governo, condição ou método de educação, podemos
discernir a mesma uniformidade e regularidade na operação
dos princípios naturais [...]. Serão as transformações de nosso
corpo da infância à velhice mais regulares e certas que as da
nossa mente e conduta? E alguém que esperasse que uma crian-
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ça de quatro anos de idade levantasse um peso de trezentas libras seria por acaso mais ridículo que alguém que esperasse de
uma criança da mesma idade um raciocínio filosófico ou uma
ação prudente e bem planejada. (HUME 2000, p. 258)
Todos admitem que haja uma grande uniformidade nas ações
dos homens, em todas as nações e épocas, e que a natureza
humana continua a mesma, em seus princípios e operações [...].
Quer conhecer os sentimentos, as inclinações e o curso da vida
dos gregos e romanos? Estude bem o temperamento e ações dos
franceses e ingleses: você não cometerá um erro se transferir para
os primeiros as observações que pode fazer dos segundos.
(HUME 1999, p. 150)
Os exemplos da história seriam suficientes nesse sentido,
mostrando como alguns elementos – tais como a idade, a região em que a pessoa habita e o sexo – determinam as ações
humanas. Dessa forma, a constatação de que há uma conjunção constante entre as ações humanas e esses condicionantes e
uma inferência realizada a partir dela tornam-se argumentos
suficientes para que se conclua ser a vontade determinada e
não livre. Ao afirmar que a ação humana é determinada causalmente, Hume procura excluir o acaso ou negar que exista
nas ações humanas o que ele chama de liberdade de indiferença. Se no mundo físico da conjunção constante se conclui haver uma conexão necessária, de forma a se entender que a existência de um objeto é necessariamente determinada pela existência daquele que o antecedeu, da conjunção constante entre
a ação e os motivos, o temperamento e determinadas circunstâncias, também deve ser concluída a conexão necessária entre
esses elementos.
É nesse horizonte que Hume (2000, p.261-2) afirma ser
preciso, para rejeitar sua teoria, ou bem refutar a sua compreensão de necessidade, ou bem supor a existência de poderes nos
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seres humanos, os quais, contudo, não seriam percebidos (o
que indicaria a sua não existência, posto devermos estar conscientes dos poderes existentes em nós). No contexto daquilo
que esse autor pretende ter provado a respeito da idéia de necessidade, porém, embora o agente não sinta os poderes atuando em si mesmo e por isso pressuponha uma liberdade de
indiferença, uma relação causal é sempre inferida do ponto de
vista do observador, o que sustenta a idéia de ser a vontade determinada causalmente na origem das ações humanas.
Conforme a filosofia humeana argumenta, todo o modo
de nos comportarmos pressuporia a determinação da ação do
outro (e da nossa, portanto). Assim, o exemplo clássico de
Hume (1999, p.156) – caso deixemos uma bolsa cheia de ouro
na calçada de Charing-Cross, tanto vamos inferir necessariamente que ela não vai sair voando como que ao retornarmos
ela não estará lá – mostra o estabelecimento de uma relação
causal entre as ações do ser humano e o seu caráter (entre a
tendência do ser humano de prezar mais o dinheiro a respeitar
outro ser humano e a sua ação de pegar a bolsa). Desse ponto
de vista, pressupomos que não há liberdade e que a sua vontade será determinada pelo caráter do ser humano, em relação a
essa circunstância específica. A condição de espectador inicial
e, no decurso, de agente que carrega consigo a experiência de
ser espectador, não deixa dúvidas quanto ao determinismo da
vontade humana.
E, nesse sentido, uma das conseqüências principais da reformulação humeana da noção de necessidade é a ampliação
da idéia de cientificidade para as áreas concernentes ao campo
da ação humana. A defesa do determinismo moral humeano
torna claras as conseqüências da ruptura com a idéia tradicional de necessidade para a postulação de cientificidade em áreas
como a história, a política, a estética, e até a psicologia, além
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dos métodos a serem empregados pelas mesmas4. Dessa forma,
mais do que enfraquecer as ciências pertinentes aos objetos físicos, a reformulação da idéia de necessidade confere legitimidade a áreas que, em alguns contextos, tais como o relacionado exclusivamente ao exercício do raciocínio abstrato e metafísico, ou o peculiar a uma inviável tentativa de observar supostos poderes inobserváveis da vontade, jamais poderiam cogitar
possuírem objeto e método que nos permitissem qualificá-las
de ciência. Como a regularidade é o novo centro da idéia de
necessidade nos objetos, a mesma necessidade para os conhecimentos pode ser auferida do estudo das ações humanas.
Como Hume observa na Investigação, seria a regularidade do
comportamento que sustentaria tais áreas, regularidade essa
que nos permitiria uma observação capaz de regular a conduta
futura, além de ser aquilo que propriamente dá algum sentido
ao estudo do comportamento, como algo apto a revelar os motivos das ações:
O que seria da história se não tivéssemos confiança na veracidade do historiador, de acordo com a experiência que temos adquirido da humanidade? Como a política poderia ser uma ciência, se leis e formas de governo não tivessem uma influência uniforme na sociedade? Onde estaria o fundamento da moral se
certos caracteres particulares não tivessem o poder de produzir
certos sentimentos particulares, e se esses sentimentos não tivessem uma operação constante nas ações? (HUME 1999, p.
155)
Hume mostra que aquilo que chamamos de raciocínio
experimental no campo dos objetos físicos pressupõe apenas a
conjunção constante e, pela intervenção do hábito e da imaginação, a inferência que repete no futuro a conjunção observada no passado. Da mesma forma, o que chamaremos de raciocínio experimental no campo da ação humana não exigirá
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mais que esses requisitos. O exemplo da calçada de CharingCross e a afirmação humeana de que há uniformidade nas ações humanas, expressa na passagem anteriormente citada,
permitem a afirmação de que no agir humano há necessidade
e não liberdade e, em contrapartida, que nas áreas referentes a
esse agir as conclusões a serem tiradas a partir da experiência
terão o mesmo grau de universalidade que aquele postulado
nas áreas concernentes aos objetos físicos. Para Hume, a utilidade da ciência é aplicar a relação causal aos eventos, inferindo o não observável a partir da observação de uma conjunção
passada e assim controlar os eventos futuros5. No caso da ação
humana, a observação do passado e do presente permitirá a inferência de que alguns eventos se seguirão necessariamente no
futuro, tendo em vista que por necessidade já não mais se entende poderes no objeto e tampouco uso do raciocínio abstrato. Dessa forma, ainda que as áreas pertinentes à ação humana
estejam envolvidas com experiências que comportam uma
maior complexidade, a elas é dada a possibilidade de tentar
observar e controlar adequadamente essa complexidade, extraindo conclusões com grau de certeza semelhante ao das áreas
dedicadas aos objetos físicos. Assim, em síntese, nessa perspectiva, já podemos falar em uma aposta na regularidade, enquanto elemento que emerge em substituição àqueles implicados na
noção tradicional de necessidade, e destacar como uma de suas
conseqüências principais a abertura da qualificação de ciência
para todo um novo conjunto de saberes.
E essa perspectiva torna-se ainda mais expressiva se compreendemos o próprio estatuto da idéia de regularidade na filosofia humeana. As discussões sobre liberdade e necessidade
nas ações humanas, além de outros vários assuntos que suscitam, revelam-nos em que sentido devemos compreender que a
regularidade, para Hume, é mais que mero objeto de percepPHILÓSOPHOS 12 (1): 39-56, jan./jun. 2007
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ção, constituindo-se como um princípio de observação, e quais
as implicações dessa diferença. Por meio dela é possível vislumbrar com maior exatidão a profundidade do deslocamento
humeano da relação de causa e efeito, da percepção e da razão,
para o hábito e a imaginação. Isso porque, nesse contexto,
Hume afirma que a pressuposição de que haja uma necessidade nas ações humanas valeria mesmo quando ocorresse uma
exceção. Se em alguns assuntos a ação humana não pareceria
apresentar regularidade, isso não significaria que devêssemos
excluir a aplicação da relação causal, mas implica sim a necessidade de que persistamos a procurar as causas, ou seja, continuemos buscando a regularidade, em detrimento da hipótese
do acaso:
Filósofos, observando que na maior parte da natureza há uma
grande variedade de fontes e princípios ocultos, em virtude de
sua pequenez e de seu afastamento, acham que é ao menos possível que a contrariedade de eventos não decorra da contingência da causa, mas da operação secreta de causas contrárias [...].
Os filósofos, caso sejam consistentes, devem aplicar o mesmo
raciocínio para as ações e volições dos agentes inteligentes
(HUME 1999, p. 153)
No bojo da análise da idéia de causa e efeito, Hume mostrou que nossa inferência da existência de um objeto para a existência do outro não se baseia na percepção da necessidade
atuando nos mesmos, conforme já expusemos. E, ao excluir a
percepção de poderes nos objetos e mostrar que é a tendência
da mente ou da imaginação de ser influenciada pelo hábito
que a determina a passar de um objeto a outro, realizando
uma inferência futura apoiada na experiência passada, o que a
filosofia humeana indica é ser um princípio da natureza humana o de organizar a experiência segundo o que chamaremos
de relação de causa e efeito. Isso determina, em contrapartida,
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que a atuação do hábito e de alguns princípios da imaginação
deva ser compreendida, em certo sentido, como produtora da
regularidade. Hume sugere isso ao mostrar a necessidade de se
postular a existência de princípios, como o hábito e as qualidades associativas da imaginação, partindo do fato de que a
experiência, ou o dado, não faz sozinha a distinção entre uma
experiência singular e uma experiência repetida (2000, p. 62).
A atuação do hábito e da imaginação não dispensa a experiência, o dado, vale ressaltar, à medida, por exemplo, que regras
gerais do juízo têm como uma das suas funções centrais corrigir as inferências, revisando a experiência na qual elas se apóiam (idem, p. 116-118). Mas, em determinada perspectiva, essa
atuação subverte o dado, o qual é por natureza atômico, traduzindo-o como uma conjunção constante (por meio da constituição de relações, tais como a de semelhança, entre as experiências passada e presente), e a partir daí, transformando-o em regularidade, pela inferência que repete no futuro a conjunção
observada no passado. Julgar os objetos por meio da relação de
causa e efeito significa unificar experiências e constituir uma
regularidade que não está totalmente dada, mas suposta no
próprio ato de se julgar a experiência.
A análise da idéia de liberdade e necessidade aplicada à
ação humana torna ainda mais evidente essa noção, segundo a
qual a regularidade é um princípio constituidor de uma experiência. Hume mostra que também no campo da ação humana
a inferência causal depende da observação de uma conjunção
constante entre as ações e certos elementos que as determinam. Mas o próprio Hume, na passagem acima citada, esclarece que a não observação direta de uma conjunção constante
não autoriza a suposição do acaso, exigindo apenas a continuidade da investigação para a descoberta de regularidades. Ainda
que a necessidade deva ser compreendida como derivada da
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conjunção constante, a ausência da sua percepção não significa
que tenhamos que afirmar que há indiferença nesse campo.
Para nos reportarmos novamente à discussão humeana sobre a
causa e efeito, um dos princípios que são excluídos do campo
da razão em Hume é a idéia de que há uma regularidade na
natureza. Segundo esse autor, não podemos afirmar, seja pelo
raciocínio demonstrativo, seja pelo raciocínio provável, que o
futuro será igual ao passado (2000, p.63; 1999, p.113). O que
podemos dizer é apenas que constatamos uma conjunção
constante no passado. Isso, por si só, não bastaria para excluir
a possibilidade do acaso e fundamentar, de todo, a noção de
causa e efeito. Contudo, por outro lado, o que se revela na seção viii, do livro Investigação acerca do Entendimento Humano, é
que a exclusão da hipótese do acaso significa a tentativa veemente de eliminar as irregularidades, por meio da reiteração
da aplicação da causalidade. Assim, Hume afirma que a atitude própria do pensamento filosófico, em contraposição ao
pensamento vulgar, é, na constatação de uma aparente irregularidade, estabelecer as causas contrárias atuantes nos casos. E
isso parece reforçar o fato de a regularidade se constituir mais
como um princípio norteador da investigação do que propriamente como um mero dado a ser percebido.
Segundo expusemos anteriormente, julgar causalmente é
já supor uma continuidade entre passado e futuro, simulando
a regularidade. Não percebermos a regularidade não exclui o
ato de julgarmos causalmente, o qual não tem como fundamento o dado imediato, mas sim o hábito e a imaginação, que
unificam a experiência e fazem do passado modelo para o futuro. Trata-se de um princípio da natureza humana a ser ativado pela experiência, mas que não se confunde com ela, chegando mesmo a antecipá-la. Por isso, a não percepção da conjunção constante não exclui a aplicação da relação causal, mas
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tão somente exige que seja buscada uma experiência de regularidade, ainda que como objeto a ser determinado. Aquilo que
é causa de um objeto é ainda algo que deve atuar de forma regular. Mas a não percepção da regularidade significaria apenas
que a efetiva causa de um efeito deverá ainda ser determinada
corretamente. Afirma-se a necessidade de aplicação da relação
de causa e efeito. E, nesse sentido, considerando-se que essa
aplicação supõe a regularidade (passada, mas que pela inferência se torna, ao menos de forma pressuposta, também uma regularidade entre passado e futuro), a busca desta última passa a
ser um princípio. Dessa forma, toda vez que se percebe uma irregularidade, isso não passa a ser motivo para que refutemos a
nossa organização do mundo segundo a relação causal, mas
sim que busquemos a regularidade não percebida (seja por
uma percepção mais apurada, seja pela realização de inúmeras
experiências, por exemplo). E isso é bastante esclarecedor da
real extensão da análise humeana concernente à causa e efeito.
O deslocamento do seu fundamento, do objeto para princípios
da natureza humana, afinal, mostra em que sentido a regularidade é uma aposta, sem a qual não conseguiríamos aplicar o
nosso raciocínio sobre aquilo que chamaremos de experiência.
E vale destacar, para finalizarmos, que o fato de falarmos
na regularidade como uma aposta, a qual ultrapassa o mero
dado, é também um dos aspectos fundamentais para se compreender melhor a abertura conferida pela filosofia humeana
para a postulação de cientificidade pelas áreas de conhecimento envolvidas com o agir humano. A regularidade passa a valer
como um princípio de pesquisa e observação da ação humana
(e, igualmente, dos eventos no mundo físico). Assim, se Hume
argumenta haver certa regularidade na ação cuja análise realizam áreas como a história, a estética, a moral, entre outras,
podemos ir além e entender que o fato de termos apontado
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em que sentido a regularidade é uma aposta na filosofia humeana mostra uma preconização dessa filosofia em relação ao
próprio modo como tais áreas devem se organizar e sobretudo
da forma como a ação humana deve ser considerada, a saber,
enquanto uma regularidade sempre a ser especificada. Uma
análise sobre a racionalidade e seus fundamentos implica não
apenas uma exclusão ou inclusão de saberes na idéia de exercício dessa racionalidade, mas também determina como o saber
deve se orientar. Dessa forma, uma nova fundamentação da
causa e efeito – relação que estaria na base de todo raciocínio
experimental, segundo Hume – modifica o próprio modo como orientamos nossa percepção do mundo. Se realizamos inferências pressupondo uma regularidade, tal princípio da natureza humana (o qual exclui a hipótese do acaso) passa a ser
também um princípio que traduz o mundo e o conhecimento
a respeito do mesmo.
Abstract: In the second book of the Treatise of Human Nature and also
in the book An Enquiry concerning Human Understanding, Hume
sustain his position that the will act according to necessity, not according to freedom. Humean philosophy defends the existence of a necessary cause to the voluntary human actions and that this cause is not the
will´s own movement, but something prior to it, that establishes the
generation of necessary effects. This paper aims to show his arguments
and intents to indicate the importance of the search for regularities.
Through such examination, we want to develop brief ideas about
Hume´s meaning for certain areas of knowledge, as well as for the very
meaning of humean philosophy.
Keywords: determinism, human action, regularity, will.
NOTAS
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Como Garrett (1997, p. 62) observa, Hume afirma, na
Investigação, estar apenas retomando as idéias expostas
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no Tratado. Segundo Garrett, porém, a Investigação parece ter um conteúdo mais conciliatório, em relação à
doutrina humeana do determinismo da vontade e à questão religiosa da responsabilidade da ação. Podemos acrescentar, além disso, o fato de que a ordem de análise dos
argumentos é bastante distinta na Investigação. Contudo,
entendemos que esses elementos não criam incompatibilidades entre os dois textos humeanos, de forma que, neste artigo, utilizaremos indistintamente ambos, nos assuntos em que não há grande divergência entre eles.
Nesse sentido, segundo Mounce (1999, p. 66), a posição
humeana é normalmente qualificada como compatibilismo, tendo em vista que não rejeita a existência da livre
escolha. Para esse autor, esse aspecto impediria que se
pudesse afirmar que em Hume a causalidade física e moral são iguais (p. 67).
Lebrun (1978). Esse autor destaca, especialmente, a dissolução humeana da oposição entre necessidade e contingência e suas conseqüências.
Nesse sentido, é destacável o excelente artigo de Prado
Jr., o qual, no contexto de uma análise da relação entre
Hume e Skinner, afirma: “Nem se diga que a relação de
Hume a Skinner é em si mesma insignificante, na medida
em que, no tempo que os separa, a nova noção de relação
causal foi de algum modo banalizada. Essa banalização é
em si mesma, inegável, mas o importante é que, de um
para o outro, ela é instrumento de um uso muito particular em psicologia. Pois, tanto para Skinner, como para
Hume, o ceticismo quanto à causalidade como ação real,
em todo universo natural, é condição de um otimismo epistemológico quanto à possibilidade de uma ciência da
natureza humana ou do comportamento. Tudo se passa
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como se a velha e forte noção tradicional do determinismo tivesse que ser destruída para dar lugar à idéia de regularidade (e previsibilidade) do comportamento humano, a uma nova forma de determinismo sem o qual a psicologia não seria possível como ciência” (1985, p. 45).
Também Lebrun (idem, p. 74) destaca o fato de que a reformulação humeana da noção de necessidade, ao invés
de retirar a cientificidade das áreas dedicadas ao estudo
dos objetos físicos, insere as áreas pertinentes à ação humana nessa perspectiva.
Hume defende essa posição textualmente, na Investigação: “A única utilidade imediata de todas as ciências é
nos ensinar como controlar e regular os eventos futuros
pelas suas causas”. (1999, p. 145)
REFERÊNCIAS
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HUME, D. An Enquiry concerning Human Understanding. Ed.
Tom Beauchamp. Oxford University Press, 1999.
____. A Treatise of Human Nature. Ed. Norton/Norton. Oxford University Press, 2000.
LEBRUN, G. La Boutade de Charing-Cross. Revista Manuscrito, Campinas, v.1, n.2, p. 65-84, abril, 1978.
MOUNCE, H.O. Hume's Naturalism. Londres e Nova York:
Routledge, 1999.
PRADO Jr., B. Hume, Freud, Skinner (Em torno de um parágrafo de G. Deleuze). In: ____. Alguns Ensaios. São Paulo:
Max Limonad, 1985. p. 30-55.
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