CANIBALISMO NO BRASIL DESDE 1500...1
CANNIBALISM IN BRAZIL SINCE 1500...
Maria Thereza Alves2
Em uma determinada noite, em Berlim, cheguei em casa muito
feliz: dancei e pulei de alegria. Eu tinha ido para uma conferência sobre
documentários brasileiros onde, pela primeira vez, os brasileiros de raça
mestiça participaram. Deixem-me ser clara: a conferência incluiu pessoas
que não eram os descendentes de europeus. Até aquele momento, eurobrasileiros controlavam o discurso sobre cinema e quase todas as outras
áreas do Brasil. Certamente eles têm controlado as artes visuais, que são
fortemente influenciadas por artistas descendentes de europeus – e a
definição deles do que o discurso da arte poderia ser. Isto é, em um país
que tem a segunda maior população negra do mundo, perdendo apenas
para a Nigéria.
Essa conferência, “Political Documentary Films in Brazil”, foi
realizada em novembro de 2011 na Haus der Kulturen der Welt, em
Berlim, com filmes anteriormente apresentados no Festival Internacional
de Cinema do Rio de Janeiro, selecionados pela organizadora do Festival,
llda Santiago. A mesa da discussão contou com a Sra. Santiago, no centro,
ladeada pelos cineastas: à esquerda dela, quatro jovens brasileiros de
origem mestiça e à direita quatro euro-brasileiros, dois dos quais eram
mulheres (três, se incluirmos a Sra. Santiago). A divisão visível era apenas
uma reafirmação da presença colonial no Brasil.
1 Ensaio originalmente publicado em Berlim, em Berlim, em 7 de novembro 2013. Agradecemos
à autora pela gentileza no intercâmbio de seus trabalhos e pela autorização para publicarmos esta
versão em português, bem como pela mediação com Jimmie Durham e Richard Hill, que também
foram muito gentis em compartilhar seus escritos.
2 Artista plástica, militante ativista das causas indígenas e da defesa da vida no planeta.
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A tensão devido à raça (e, portanto, de classe) e as origens dos dois
grupos cresceu durante a discussão e, finalmente, tornou-se pública, pelo
menos para aqueles que poderiam reconhecer o que estava acontecendo.
Creio que a tensão passou despercebida pelo público alemão. Essa tensão
veio à tona quando Sandra Kogut, sentada ao lado euro-brasileiro da mesa,
agradeceu aos jovens mestiços por seu ponto de vista (não é fantástico
como as elites têm o privilégio da “perspectiva histórica” enquanto o resto
de nós simplesmente tem “pontos de vista?”) Ela disse que deve ser difícil
para eles serem sempre convidados para fazer filmes sobre a mesma coisa
– as favelas, onde vivem. Ela disse que era importante, no cinema, ter um
olhar refrescado – para ser capaz de ver as coisas de novas maneiras. O
que estava implícito era que não seria possível para qualquer um desses
moradores da favela atingir um nível profissional ou interessante no cinema.
Luciano Vidigal, um dos cineastas de raça mestiça, inclinou a cabeça para
olhar para o teto. Reconheci esse gesto como a postura adquirida por
quem lida com as diversas situações no Brasil, estruturadas para garantir
que os descendentes de europeus estejam no poder. Luciano explicou
que, com os olhos deles, aqueles que vivem nas favelas agora estavam
vendo. O que estava implícito era que aqueles que vivem nas favelas agora
estavam olhando para os euro-brasileiros que têm controlado o cinema e,
portanto, para a representação de todos os brasileiros até agora. Somente
nos últimos anos temos nos visto representados no cinema ou em outras
manifestações culturais em trabalhos que são tanto feito por nós quanto
que nos representam. No passado, havia apenas representações feitas por
eles sobre nós.
Tamar Guimarães, artista euro-brasileira, durante uma conversa que
tivemos, explicou que, no Brasil, “não podemos definir um ‘nós’ e um
‘eles’ com clareza.” Uma vez que os sistemas de privilégios raciais nesse
país não reconhecem nenhuma ambiguidade, temo que eu também vou
continuar a escrever sem tais nuances.
Cadu Barcellos, um outro jovem cineasta mestiço, acrescentou:
“Nosso olhar não é melhor nem pior do que o de ninguém… é singular
como qualquer outro… mas o olhar de quem sofre, direta ou indiretamente,
deve ser ouvido”.
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Notei que, quando Sandra começou seu desafio paternalista de
olhar com um “olhar refrescado”, uma mulher jovem brasileira de classe
média alta, na plateia (o tipo europeu com o cabelo longo, que pode ser
reconhecido de imediato), olhou para o outro lado do corredor, para uma
jovem brasileira do mesmo tipo. Ficou claro que ambas simpatizavam
com Sandra contra os homens de raça mestiça e elas caçoaram quase
silenciosamente quando Cadu começou sua resposta.
A atitude condescendente de Sandra Kogut logo desencadeou o
ódio de classe de Eryk Rocha, filho de Glauber Rocha. Ele também é um
cineasta, sentado do lado euro-brasileiro da mesa. Ele começou a falar
naquele tom superior de voz que fez o meu cabelo ficar em pé. Sendo filha
de uma empregada doméstica, eu sou sensível às tentativas daqueles que
são poderosos de explorar as suas dominâncias, e minha reação é sempre
tentar sair da situação o mais rápido possível.
Eryk Rocha fez um grande show de olhares para o lado mestiço
da mesa, tornando óbvio que ele não conhecia nenhum dos nomes dos
cineastas daquele lado. A mensagem era clara, que ele não os achava
interessantes o suficiente para sequer se preocupar em saber seus nomes e,
é óbvio, ele não iria lidar com eles socialmente. Ele finalmente pronunciou
o nome de Cadu, em tom arrogante de incredulidade, dizendo: “Cadu,
Cadu, esse é o seu nome?” – indicando espanto de que se tratava de um
nome real.
Eryk passou a dizer a Cadu que o seu trabalho sobre as favelas era
importante, mas que não estavam ali para discutir política, mas poética. Isso
apesar do título da palestra ser “Political Documentary Films in Brazil”.
Talvez ele também tivesse esquecido que, no início da noite, o grande
Silvio Tendler tinha afirmado que “cinema é política” (devo observar que
Tendler também estava sentado no lado euro-brasileiro da mesa, embora
tivesse tido a gentileza de admitir sua origem de classe média, o que é
óbvio para os brasileiros).
Wagner Novais, do lado mestiço da mesa, afavelmente respondeu:
“Eu acho que a democratização da cultura (dá) novos prismas para
aquela realidade, para o pessoal que vem dessa origem, que trabalha com
cinema… há um processo formal que todo mundo passa: faculdade, curso
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de especialização, não estamos privados de um discurso estético, artístico
e poético. Claro que devo minha especificidade à minha origem, à minha
vivência”.
No final da noite, durante as perguntas, uma jovem mulher afrobrasileira estudando para seu doutorado em Berlim disse: “Eu gostaria
de agradecer a possibilidade de estar aqui conversando com brasileiros
de diferentes cores, de olhares negros, brancos”. Nós duas estávamos tão
contentes com este tão esperado (e, até aquele dia, inimaginável) momento
em que os brasileiros não-brancos eram, de fato, incluídos publicamente
em uma discussão sobre cultura no Brasil.
Em seguida, fui para casa e dancei para comemorar um Brasil de novas
possibilidades. Sandra Kogut e Eryk Rocha pareciam ter nada menos do
que declarado guerra; demonstrando que essas elites vão continuar, como
todas as elites fazem, a não compartilhar o poder. Frente à possibilidade
de serem desafiados, eles declararam de forma surpreendentemente
insensível e sem constrangimento algum, sua intenção de lutar contra os
cineastas de ascendência não-europeia. Mas nós já sabíamos disso. É o que
as elites brasileiras estão fazendo desde o século XVI. Mas agora o teto
começa a cair sobre eles.
Alguns anos atrás fui convidada pela artista Tamar Guimarães para
participar de um debate sobre pós-colonialismo. Conheci Tamar, quando
ela era estudante de arte e me pediu uma crítica sobre seu trabalho. Eu
não gosto de participar de debates sobre o pós-colonial no Brasil porque,
inevitavelmente, sempre acabam mal. No entanto, como Tamar, foi criada
na Europa e aceitei por pensar que talvez as coisas pudessem ser diferentes.
O fato é que, do ponto de vista indígena, não houve um fim à colonização
em nenhum lugar das Américas. Pós-colonização é um fenômeno europeu
– sim, naqueles países que perderam suas colônias devido à luta dos povos
nativos dessas colônias. Nas Américas a população indígena continua a
ser colonizada pelos descendentes dos europeus que permanecem com o
poder econômico e político.
É importante mencionar que, em 1994, havia apenas uma pessoa
indígena no Brasil com diploma universitário. Na rica província de Minas
Gerais (que é abundante em minerais, daí o seu nome obsceno), a primeira
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indígena a receber um diploma universitário, Shirley Djukurna Krenak,
o recebeu apenas em 2006, na cidade de Governador Valadares. Shirley
foi para uma universidade local pelo sistema de cotas raciais que, embora
recente no Brasil, tem permitido a estudantes indígenas se matricularem
em universidades financiados pelo governo federal.
Infelizmente, grande parte desses estudantes vem de famílias
empobrecidas que vivem longe dos centros urbanos e o custo da viagem,
hospedagem, alimentação e material escolar, na maioria das vezes, tornam
impossível suas permanências na universidade para continuar e concluir
os seus estudos. Há uma alta taxa de desistência. Nesse ponto, uma vez
que existem poucas centenas de estudantes indígenas na universidade,
qualquer filantropo poderia facilmente resolver esse problema com a
doação de fundos para estudantes indígenas. Digamos que, em um total
de 600 alunos fosse garantido um subsídio de € 5.000 cada, isso resultaria
num total de € 3.000.000 por ano: uma soma que poderia ser facilmente
conferida por, digamos, trinta filantropos. Mulheres ricas poderiam criar
um fundo extra para as mulheres indígenas na universidade, especialmente
para aquelas que estudam medicina, que é uma educação cara. Imagine
o incrível começo de mudança que teríamos em todos os campos do
discurso no Brasil – onde o europeu não iria mais dominar o padrão
de “normalidade”. Teríamos a oportunidade de começar a pensar em
maneiras diferentes... de ver de maneiras diferentes.
Voltando a Shirley e Minas Gerais: Eike Batista, (o irmão de Helmut
Batista, que comanda residências artísticas, publicação de livros e projetos,
etc.) é de descendência alemã-brasileira e foi, em 2012, o homem mais
rico do Brasil e o sétimo mais rico em todo o mundo. Ele nasceu em
Governador Valadares, em Minas Gerais, onde Shirley e sua família se
estabeleceram depois de serem expulsos de sua reserva (como foram
todos os outros Krenaks), devido à riqueza mineral em suas terras. Eike
iniciou sua carreira de negócios com a compra de ouro na Amazônia e,
em seguida, passou a possuir oito minas de ouro entre muitas, muitas
outras coisas – o pai de Helmut e Eike foi o ministro de Minas e Energia
durante duas administrações presidenciais e ex-presidente da empresa
de mineração Companhia Vale do Rio Doce, originalmente baseada em
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Minas Gerais. Shirley Krenak é dos povos indígenas Krenak em Minas
Gerais e eles têm visto suas terras sistematicamente reduzidas e destruídas
devido à sua riqueza mineral. Shirley explicou que:
Em 1970, mais minerais foram descobertos nas nossas terras e ao mesmo
tempo ainda mais fazendeiros começaram a destruir as nossas terras para criar
gado, entrando em reconhecido território Krenak. Como resultado das ações
desses poderosos grupos políticos, o governo federal declarou em 1970 que,
oficialmente, os Krenak estavam extintos. Mas como estávamos muito bem
vivos, fomos forçados a retirar-nos das nossas terras e transportados para
longínquas reservas com diversos grupos indígenas de linguagens diferentes.
Os Krenak que resistiram foram presos e colocados em prisões recémconstruídas, que funcionavam como colônias penais com trabalhos forçados,
solitárias, violência diária, tortura e assassinatos. Durante esse tempo muitos
de nós viveram clandestinamente com medo de novas migrações forçadas
e prisões. O ocultar e negar a nossa identidade étnica foi talvez uma das
principais e mais eficientes “armas” na dura luta contra o genocídio. Durante
o exílio começamos a nos organizar e alguns anos depois voltamos a caminhar
em direção à Reserva Krenak – alguns andaram durante 96 dias. Em 1988
fomos novamente expulsos das nossas terras, as nossas plantações destruídas
assim como a nossa escola.
Os Krenak lutaram e conseguiram dar a volta ao decreto de extinção
e alguma das suas terras voltarama ser demarcadas em 1997. O juíz disse
que se era terra que os Krenak queriam então era terra que lhes seria dada.
E de acordo com suas palavras, tudo o que não era terra foi destruído,
como árvores de frutos. A reserva hoje tem 4970 hectares de terra infértil
para 300 indígenas.
Em 2005, os Krenaks, incluindo Shirley e seus irmãos, montaram
um bloqueio de cinquenta horas da ferrovia da Companhia Vale do Rio
Doce de (hoje Vale S.A.), que transporta minerais da região. Foi a primeira
vez em quase 100 anos que a ferrovia, que atravessa território Krenak e
causou tantos danos à comunidade Krenak, não enviou trens sobre suas
terras. Foi sob a administração do pai de Helmut e Eike que a Companhia
Vale do Rio Doce (Vale S.A.) tornou-se uma das maiores empresas de
minerais do mundo. A Vale extrai, entre outras coisas, ferro, o que resulta
na contaminação do Rio Doce. Houve desmatamento de terras Krenak,
a fim de fornecer madeira para combustível para a ferrovia e o transporte
de minerais até o porto. Como resultado do protesto dos Krenaks, a Vale
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finalmente sentou para negociar com a comunidade. Isto resultou em uma
compensação de R$ 200,00 (cerca de € 66) por mês para cada Krenak,
por um período de seis anos. Existem cerca de 300 Krenaks em Minas
Gerais que sobreviveram ao genocídio pelos portugueses e, em seguida, o
genocídio pelos euro-brasileiros.
Assim, parece que podemos definitivamente descartar o homem
mais rico do Brasil de contribuir para uma discussão abrangente da vida
nesse país (recentemente, Eike perdeu muito dinheiro.3 Ao mesmo tempo,
o programa de artistas em residência de seu irmão foi suspenso). O pai de
Eike e Helmut também foi responsável por iniciar a mineração a céu aberto
na Serra dos Carajás. Apenas 1% das espécies da área sobreviveram à represa
Tucuruí, que foi construída, em parte, para fornecer energia para a mina.
A ferrovia foi construída (o pai de Eike e Helmut começou sua carreira
como engenheiro ferroviário) nas terras dos Awá Guajá, o que resultou
nessas terras sendo rapidamente invadidas por madeireiros, fazendeiros
e pequenos agricultores. A população Awá Guajá foi drasticamente
reduzida devido às mortes causadas pela defesa de suas terras e também
pela introdução de doenças europeias, às quais os Awá Guajá não têm
imunidade. Em um período de quatro anos, numa só comunidade com
91 Awá Guajás, apenas 25 sobreviveram. Em outras palavras, repetiu-se
exatamente o mesmo tipo de eliminação que aconteceu décadas antes,
com a construção da ferrovia em terras Krenak – o pai de Eike e Helmut
disse que, com a mina de Carajás, eles eram pioneiros no desenvolvimento
sustentável (!).
Agora de volta a Tamar e pós-colonialismo no Brasil. Tamar disse:
Com tamanha circulação de pessoas, é difícil falar de um estrangeiro ou
de um brasileiro “original”... E não me refiro a esta falta de origem com
desapontamento. Penso nela com alívio. A base instável do Brasil, quando
se trata de referências culturais, não é um traço a se lamentar, mas sim uma
característica verdadeiramente positiva – algo que deveria nos permitir ver uma
relação diferente com o pós-colonial, entendido explicitamente como esse
estado fraturado… No entanto, o Brasil sempre teve de lidar com múltiplos
pontos de referência, “impurezas” culturais e inconsistências simbólicas no
seu centro. Tem sido assim, para melhor, creio eu… Realmente, talvez não
3 No início do mês de julho, envolvido em casos de corrupção ativa e esquema de lavagem de
dinheiro, Eike Batista foi condenado pela justiça brasileira a 30 anos de prisão e a pagar multa no
valor aproximado de 50 milhões de reais [N.E.].
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possamos ter como objetivo a descolonização, uma vez que não podemos
definir um “nós” e um “eles” com clareza. Talvez tudo o que possamos fazer
é falar de entrelaçamentos… Essa foi a forma de, no Brasil, já desde a década
de 1920 (com o Manifesto Antropofágico), se propor uma relação diferente e
não subalterna com o Ocidente.
Eu gostaria de adicionar um apêndice aqui, uma observação sucinta
feita pela socióloga Heloisa Buarque de Hollanda sobre o Manifesto
Antropofágico: “(O) auge do modernismo brasileiro, em termos de
definição de uma identidade cultural moderna para o país, foi a proposta
de um modelo ‘antropofágico’, que sugere uma atitude, não de imitação
dos países centrais, mas de uma apropriação antropofágica dos aspectos
‘desejáveis’ de diferentes culturas e valores”. E ela passa a questionar,
apontando: “Na verdade, quem come quem, e o que vale a pena jogar
fora durante o banquete antropofágico?” Eu concordo que essa ideia
modernista, que teve a função de escorar o nacionalismo, não é mais
válida numa época em que a importância de reconhecer as diferenças e
dar agência à alteridade é pertinente na construção de novos modelos para
a possível sobrevivência da sociedade
Minha resposta a Tamar:
Claro que podemos falar de ‘nós’ e ‘eles’ com clareza, partindo do ponto de
vista da colonização. Existem os indígenas e os não-indígenas... Não se pode
começar a superar a colonização, como é o caso do Brasil, se essa condição não
é admitida porque a distinção entre colonizador e colonizado supostamente
não pode ser feita. (Camus, um não-indígena argelino, por exemplo, entendia
que a descolonização da Argélia não seria possível). A descolonização tem
ocorrido em muitas partes do mundo e, talvez, possamos olhar para esses
lugares fornecendo modelos possíveis, enquanto estamos num processo de
inventar os nossos próprios… Em que medida os não-indígenas estariam
confortáveis em concordar que a descolonização? Por exemplo, poderiam os
não-indígenas do México, que são apenas uma maioria moderada, concordar
que a colonização existe? Até agora não. E o que aconteceria em países como
o Brasil, onde os não-indígenas são uma abrangente maioria e os indígenas
estão em clara minoria? Os não-indígenas, como é o caso, sentem-se muito
confortáveis no pressuposto de que a colonização terminou. Sendo este o
caso, o que dizer aos indígenas? Que não existem? Que não contam? Que
devem progredir? Como essa situação colonial poderia ser ultrapassada
através de um decreto unilateral, determinado pelo colonizador? Através da
negação dos indígenas colonizados? Penso que o processo de descolonização
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pode se iniciar através de um processo de observação e, por consequência, da
admissão intelectual de que as Américas vivem uma condição colonial...
Gostaria de acrescentar que, mesmo que o Brasil fosse descolonizado,
os efeitos da colonização permaneceriam para sempre. Um exemplo é o
uso do conceito de canibalismo, desenvolvido no Manifesto Antropofágico
de Oswald de Andrade, um euro-brasileiro de uma família eminente. Esse
conceito legitima a apropriação das culturas indígenas e negras pela elite
europeia. Essa apropriação atua em defesa de uma ideia “brasileira” de
autenticidade da mesma elite europeia que exige na sua lógica e prática
o desaparecimento físico dos povos nativos originais para que esse novo
e especial “Brasil” possa permanecer incontestável e inquestionável. A
premissa é que eles estão canibalizando a arte europeia como “nativos”
e usando os seus impulsos “brasileiros” para canibalizar e, em seguida,
melhorar a arte europeia. Dessa maneira, toda a história da colonização é
perdida já que somos, teoricamente, iguais uns aos outros e, assim, póscoloniais.
O Brasil não é especial. Seu início se deu com um bando de
criminosos racistas correndo por aí, matando, escravizando e estuprando.
Antepassados paternos de Oswald fizeram parte da primeira onda de
colonizadores no início do século XVII, na província de Minas Gerais.
Esses criminosos estavam à procura de ouro. O eufemismo preferido
é “pioneiros de mineração” e, ao longo do caminho, mataram ou
escravizaram os nativos locais Puri. Como os Puri se mostraram difíceis
de exterminar, foram infectados com varíola. Presume-se que, em 1864,
seu extermínio completo foi alcançado com êxito.
Continuando a história de canibalismo no Brasil: no Brasil real (que
consiste de povos indígenas, negros e colonizadores), aos que negam o
uso contemporâneo do termo colonização, sugiro que atentem para o
sentido da existência de um órgão do governo federal brasileiro com o
nome de Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)
e, para aqueles que alegam sua não participação na brutalidade colonial,
por favor, notem que vocês estão ocupando terras indígenas).
Shirley Krenak explicou:
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Durante o massacre (contra nós), lendas de antropofagia e inúmeras outras
histórias similares acerca do nosso povo começaram a circular. Um rei que
chegou às nossas terras, chamado Dom João VI, em 1808, decidiu declarar
guerra ao meu povo, uma guerra chamada “Guerra Justa aos Botocudos”.
Colonos começaram a receber benefícios fiscais em troca das cabeças dos
Krenak. A justificativa para esse nome, “Guerra Justa”, era porque o nosso
povo estava a “obstruir” o desenvolvimento da região. Para ser honesta, o
que o meu povo estava a impedir eram sim os incêndios florestais, a poluição
dos rios, a extração da nossa riqueza natural e a nossa dignidade manchada
com sangue inocente. E porque eles pensavam que essa terra não tinha dono,
decidiram nos exterminar completamente.
Agora, de volta ao tema elites e canibalismo, a fascinação contínua dos
euro-brasileiros com o canibalismo pode, talvez, ser um reconhecimento
subconsciente do genocídio cometido no Brasil contra a população nativa.
Se você considera quem está comendo quem, o nível de canibalização
foi surpreendente. Pensa-se que houve cerca vinte a trinta milhões de
indígenas no Brasil no começo da colonização portuguesa, em 1500.
Em meados do século XX, devido ao genocídio, escravidão e guerras
bacteriológicas, a população foi reduzida a cento e oitenta mil pessoas.
Nesse mesmo período, em decorrência da colinização, 540 línguas (não
dialetos) indígenas foram extintas no Brasil.
Creio que a conversa com Tamar deveria ser re-intitulada: “Mais
uma vez uma conversa que falhou na América Colonial”.
Em uma conferência sobre “Identidade Cultural e Artística nas
Américas”, organizada por Ivo Mesquita, de eminente família eurobrasileira, realizada em São Paulo, em 1991, nenhum povo indígena ou afrobrasileiro foi convidado como representantes de sua cultura. A delegação
brasileira, com cerca de uma dúzia de pessoas, todas euro-brasileirss,
incluiu Heloisa Buarque de Hollanda, da eminente família Hollanda e
também uma feminista com sua publicação no livro da conferência,
intitulada “Feminismo: construção de identidade e a condição cultural”
(Feminism: constructing identity and the cultural condition).
Perguntei aos delegados brasileiros de um painel: “Por que aqui
não há povos indígenas ou afro-brasileiros na condição de delegados?”
Uma mulher da delegação respondeu (eu não sei se foi ou Heloisa ou
Aracy Amaral, Ana Maria Belluzzo ou Stella Teixeira de Barros) que os
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brasileiros não são racistas e não consideram convidar delegados por
“raça” e que eles (os delegados), portanto, representam todos. Nenhum
desses palestrantes, altamente qualificados e privilegiados, questionaram
sua participação exclusiva como euro-brasileiros no processo de definição
do Brasil, que tem a segunda maior população negra do mundo.
Não teria sido um gesto surpreendente de empoderamento se Heloisa
Buarque tivesse, ao invés de aceitar o convite de participação, insistido que
uma mulher indígena tomasse seu lugar? Ou se, ao perceber que não haveria
participação indígena brasileira ou de afro-brasileiros, imediatamente
e publicamente renunciasse sua posição como delegada e abandonasse
a conferência? Heloisa escreve eloquentemente que a “experiência de
mulheres e negros brasileiros continua sendo essencialmente marcada pela
intolerância e pelo preconceito sexual ou racial”. Por essa razão, mais uma
vez, considero interessante notar sua omissão quanto a não presença dos
indígenas na referida conferência.
A elite não desiste de seu poder. Não importa quão feminista é.
A conferência Eco-Sindical (Ecologia e Sindicatos) da Força
Sindical, em São Sebastião, São Paulo, em 1991, foi a primeira vez que os
trabalhadores se reuniram no Brasil para discutir questões ambientais. A
Força Sindical é uma organização sindical e como é de costume a maioria
dos delegados eram homens. Eu iria falar no primeiro dia, logo após a
sessão preliminar. Após o almoço, me perguntaram se eu concordaria
em falar no final do dia, porque estávamos atrasados. Eu concordei.
No final do dia, perguntaram-me se eu poderia ceder o meu direito de
falar. Respondi que não tinha nenhum problema em não falar: sou uma
palestrante relutante e estava muito feliz de não estar no olho público. Mas
como eu não estava representando a mim mesma, esclareci que era a única
palestrante para falar das questões indígenas e insisti que não poderia haver
uma conferência em São Sebastião, um dos primeiros enclaves brutais da
colonização e da escravidão dos povos indígenas, e não ter palestrante
sobre o tema. Acho que, talvez, tenham me pedido para não falar não por
eu ser uma mulher, mas, em vez disso, porque os povos indígenas não são
vistos como importantes para participar de discussões mais “sérias”. Devo
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acrescentar que, embora fosse uma organização da classe trabalhadora, os
líderes dessa união eram descendentes de europeus.
Em 1980, no Rio de Janeiro, um programa de liberalização foi
iniciado pela ditadura militar (forçado pela revolta popular) e pela Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC): foi a celebração de algumas
liberdades possíveis. Eu vim para ouvir as discussões feministas. Um
par de anos atrás, eu estava em São Paulo e tinha tido uma experiência
decepcionante com feministas de lá e esperava que esta vez fosse melhor.
Nessa cidade, entrevistei uma romancista e eminente feminista em sua
casa. Ao chegar, a escritora abriu a porta e me levou para a sala de estar. No
caminho passamos pela cozinha, onde sua empregada estava escutando
transmissões num pequeno rádio, após terminar de lavar os pratos de
almoço. A escritora exigiu que ela desligasse o rádio e voltasse ao trabalho.
Enquanto discutíamos o desenvolvimento do feminismo em São Paulo, a
empregada interrompeu para perguntar se o chá era para ser servido na
louça do dia-a-dia ou na louça de prata. A escritora, em um tom agudo e
indignado, disse-lhe para usar a cabeça.
Em seguida, passei a encontrar um pequeno grupo feminista – devo
acrescentar aqui que minha enunciação do Português (ensinada a mim por
meus pais que receberam pouca educação formal), muito rapidamente,
revela minhas origens de classe –, que tentou me oferecer seus conselhos
de especialistas e, como insisti em um discurso mútuo, fui rudemente
esnobada.
No simpósio da SBPC, uma das palestrantes feministas foi Pia
Matarazzo. Na época, lembro de feministas brasileiras brancas (não havia
nenhum outro tipo visível) me avisando que eu tinha que apoiar Pia
Matarazzo, uma mulher de negócios e altamente competente. Ela herdou
o império de negócios de seu pai sobre as expectativas de seus irmãos.
Meu pai era o motorista de seu pai. Durante o tempo em que meu pai
trabalhava para ele, lembro-me que ele e minha mãe comiam um pouco
de feijão, bastante arroz, alguns vegetais e nenhuma proteína. Minha irmã
e eu dividíamos um iogurte para o jantar. Houve problemas contínuos
sobre como obter o suficiente para comer durante a nossa infância. Eu
não entendia por que deveria apoiar Pia, que era ligada a esses problemas.
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Nesse simpósio não havia delegados indígenas ou negros. Uma jovem afrobrasileira da plateia, estudante na universidade onde o evento da SPBC foi
realizado, falou com uma voz suave e nervosa para as mulheres de classe
média euro-brasileiras, que eram as únicas representantes de mulheres do
Brasil nesse simpósio. A jovem afro-brasileira perguntou quantas delas
tinham sido capazes de vir à reunião porque suas empregadas estavam
cuidando de seus maridos e filhos, cozinhando os seus jantares e pegando
seus filhos na escola? Ela perguntou por que essas mulheres não tinham
sido convidadas. Essas feministas nem sequer se incomodaram em
responder. Nenhuma delas. A jovem afro-brasileira foi deixada lá ignorada
naquele espaço público de fúria silenciosa e de impotência. Se alguém
tiver algum tempo e tiver acesso aos arquivos da SBPC no Rio de Janeiro e
puder encontrar os nomes das mulheres que participaram desse simpósio,
eu agradeceria.
A elite não desiste do seu poder. A “confusão” que surge no Brasil
é que o discurso feminista europeu é a base para o desenvolvimento do
feminismo e as mulheres que têm acesso a esse discurso são mulheres
altamente educadas de origens privilegiadas. Até as coisas mudarem,
muito recentemente, devido à cota racial do governo nas universidades,
as mulheres afro-brasileiras e especialmente as mulheres indígenas não
tinham acesso às universidades. Nada disso é novo. Mas nos esquecemos
de que as Américas são de colonização européia e isso muda a forma
como devemos olhar para as discussões que podemos ter. Por causa da
colonização, em primeiro lugar, devemos apoiar as lutas indígenas nas
Américas e, porque somos feministas, devemos apoiar em primeiro lugar
as mulheres indígenas nas Américas. Durante a 29ª Bienal de São Paulo
(2010), apresentei meu filme, Iracema (de Questembert). O trabalho apresenta
uma personagem principal interpretada por Shirley Krenak, a jovem
guerreira e líder de sua comunidade na Reserva Krenak em Resplendor,
Minas Gerais. Eu perguntei se a Shirley poderia ser convidada para falar
sobre a história do seu povo e suas lutas atuais durante os muitos painéis
sobre diferentes questões realizadas na Bienal. Perguntei a uma jovem que
era uma oficial da Bienal, mas ela não estava interessada e a Shirley não
foi convidada e nunca foi convidada para uma conferência organizada
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pelos brasileiros não-indígenas, embora ela seja líder de seu povo e uma
palestrante eloquente.
Devemos nos perguntar por que não há mulheres indígenas nas artes,
ciências, negócios, etc. (eu tinha pensado em escrever “mulheres indígenas
em posições de poder”, mas o modelo extremamente tortuoso do racismo
não reconhecido assegurou o fato de que, até recentemente, os povos
indígenas não tinham acesso à educação. Então, nós não estamos no nível
de conversa para falar de posições de poder). Cada vez que vamos a um
museu, a uma conferência, a uma exposição em uma galeria, ao consultório
médico, a uma aula universitária, é importante nos perguntarmos se há
mulheres indígenas. Sabemos que as elites feministas euro-brasileiras não
irão se perguntar isso, e pior, elas têm conspirado com o discurso do estado
de exclusão que garante sua exclusividade de representação para fazer com
que não questionemos essas coisas. São elas que têm o “olho refrescado”
e que podem olhar para a cultura “objetivamente”. São elas que não são
“racistas” e não veem quaisquer raças no Brasil.
São elas que estão continuamente canibalizando os indígenas e os
afro-brasileiros enquanto apresentam-se aos brasileiros e ao mundo como
brasileiros autênticos. Nesse tipo de narrativa os povos indígenas do Brasil
são vistos mais como objetos do que como sujeitos. Como uma mulher
euro-brasileira que trabalha com os Ianomâmi disse uma vez: “Nossos
índios não são como os da América do Norte”, implicando suposta
falta de capacidade intelectual (como aos povos indígenas brasileiros,
até pouco tempo atrás, era deliberadamente negado o acesso ao ensino
superior, os euro-brasileiros, agora os comparam de forma desfavorável
a seus primos norte-americanos, que tiveram algumas oportunidades para
ir à universidade. Também é preciso ressalvar que os povos indígenas
da América do Norte, nacional e internacionalmente, estão organizados
desde o início do século XX e essa possibilidade, até recentemente, havia
sido negada aos povos indígenas brasileiros pelos próprios brasileiros).
Esta euro-brasileira que trabalha com os Ianomâmi também é considerada
uma feminista respeitada. As implacáveis negações das elites, seu discurso
sobre complexidade e nuances são os jogos que lhes foram ensinados a
jogar em uma sociedade paternalista e racista que as feministas brancas
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aceitam voluntariamente porque é aí que continua sua possibilidade de
poder.
Na década de 1920, as possibilidades de perspectivas especificamente
nativas ou negras foram subordinadas pela elitizada implantação do
conceito de canibalismo, para que, setenta anos mais tarde, uma intelectual
pudesse descaradamente dizer que “Nós” representamos todos. O real
desse “Nós” é um “NÓS” financeiramente privilegiado pelos eurobrasileiros e a política oficial de inclusão, recentemente implantada pelo
governo do Partido dos Trabalhadores, tem resultado em uma mudança
no discurso de alguns membros da elite que já pensaram ser oportuno
renunciar à sua “whitetude” ou “branquetude”, o que não significa abrir
mão de nenhum dos privilégios que a acompanham.
Repentinamente, algumas pessoas têm se tornado orgulhosamente
mestiças, embora seus cabelos loiros e a pele clara não as impeça de
entrar em imponentes galerias com seguranças afro-brasileiros na porta
de entrada. Uma artista euro-brasileira com um cargo de professora
universitária de artes (nem preciso dizer que não existem pessoas indígenas
que ocupem esse cargo e duvido que exista um intelectual negro que o
faça), recentemente, me disse que não sabe qual é sua “cor”. É muito
fácil. Eu gostaria de ter a graça de uma resposta rápida do tipo “entre em
uma boutique em seu bairro chique, entre em uma galeria no seu bairro
e veja quantos afro-brasileiros você acha que estão fazendo a limpeza ou
manutenção do local? A sua cor de pele não se reflete nos seus colegas da
sua escola de arte? Quando entra em um museu você sente medo que um
guarda te chame em voz alta e diga que você não é permitida, porque você
não pertence a esse lugar?” É assim que você sabe de que “cor” você é.
No Brasil, raça não pode ocupar uma posição secundária no
feminismo, mas deve ser simultânea. Caso contrário, estaremos apoiando
os canibais, os descendentes de europeus que, social e economicamente,
continuam no poder e continuam a comandar o discurso enquanto negam
aos povos indígenas e afro-brasileiros qualquer possibilidade de inclusão
nesse mesmo discurso.
Data de recebimento: 05/04/2018
Data de aceite: 30/05/2018
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