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RICHARD SERRA E O VALOR DO PESO

2020, REVISTA GALO, Ano 1, No 2

O artigo discute o valor do peso na obra poética do artista Richard Serra, entendida como o esforço em explorar amplamente a utilização da materialidade do aço e da gravidade, juntamente com a valorização do espaço expositivo enquanto componente essencial de suas obras. Para isso, são feitas análises de "Fernando Pessoa" (2008), "Equal Parallel/Guernica-Bengasi" (1986) e "Torqued Ellipse IV" (1998). Busca-se encontrar conexões entre os três trabalhos, por meio do que Rosalind Krauss chamou de "local demarcado". Explorase como cada um deles provoca e desconcerta a noção de experiência física, espacial e temporal através da relação entre materiais, espaços arquitetônicos, formas e técnicas utilizadas pelo artista.

REVISTA GALO, Ano 1, Nº 2 – Parnamirim, jul./dez. 2020 193 RICHARD SERRA E O VALOR DO PESO Gabrieli Simões1 RESUMO: O artigo se propõe a discutir o valor do peso na obra poética do artista Richard Serra, entendida como o esforço em explorar amplamente a utilização da materialidade do aço e da gravidade, juntamente com a valorização do espaço expositivo enquanto componente essencial de suas obras. Para isso, são feitas análises de “Fernando Pessoa” (2008), “Equal Parallel/Guernica-Bengasi” (1986) e “Torqued Ellipse IV” (1998). Busca-se encontrar conexões entre os três trabalhos, por meio do que Rosalind Krauss chamou de “local demarcado”. Explorase como cada um deles provoca e desconcerta a noção de experiência física, espacial e temporal através da relação entre materiais, espaços arquitetônicos, formas e técnicas utilizadas pelo artista. Palavras-chave: Arte contemporânea. Pós-Minimalismo. Escultura. RICHARD SERRA AND THE VALUE OF WEIGHT ABSTRACT: This article aims at discussing the idea of value of weight present in artist Richard Serra’s poetics, which consists in the effort to explore widely the use of iron’s materiality and gravity, along with the appraisal of exhibition spaces as an essencial part of his works of art. In order to do so, formal analyses of three pieces are conducted: “Fernando Pessoa” (2008), “Equal Parallel/Guernica-Bengasi” (1986) and “Torqued Ellipse IV” (1998), seeking to establish parallels between the mentioned sculptures, through what Rosalind Krauss called a "marked site". It is explored how each one of them provokes and defies the notion of physical, spatial and temporary experience, since they put in relation materials, architectural spaces, forms and techniques used by the artist. Keyw rds: Contemporary art. Postminimalism. Sculpture. ― ― Introdução Considerado grande expoente da escultura contemporânea e um dos maiores artistas do pósguerra, Richard Serra escreveu em 1988: “posso registrar a história da arte como uma história da particularização do peso. Tenho mais a dizer sobre Mantegna, Cézanne e Picasso do que sobre Botticelli, Renoir e Matisse, ainda que admire o que me falta”. Ao se referir ao que lhe faltava, Serra falava sobre a “leveza”. O texto em questão é uma confissão de seu apreço pelo peso e da vastidão imponderável deste. Nele, o artista faz um breve retrospecto da cena, que, em sua infância, teria delineado sua relação com o aço: a cerimônia de batismo de um navio. Serra descreve a imensidade do cargueiro e a admiração sentida com a transformação da matéria pesada em estrutura brilhante e livre: Foi um momento de tremenda ansiedade quando o cargueiro chacoalhou, balançou, se inclinou e bateu de encontro ao mar, meio submerso, para então emergir e se levantar e encontrar seu equilíbrio. Não apenas o navio havia recobrado o equilíbrio, mas a multidão de espectadores também2. Essa lembrança do artista nos coloca diante de reflexões importantes sobre sua poética, sobretudo em relação com a materialidade, elemento fundamental para analisar as obras de Serra e delas apreender em que consiste a sua busca pela valorização do peso. Serra iniciou sua trajetória com material industrial – borracha, chumbo e aço –, concentrando-se no processo de criação e enfatizando as propriedades físicas da matéria. O processo de inserção desse Mestranda em História da Arte – Programa de Pós-Graduação em História, IFCH, Unicamp. ID Lattes: 60632917-7571-6703, ORCID: 0000-0002-6679-1672, E-mail: [email protected]. 2 SERRA, R. Escrit s e Entrevistas. Textos de Richard Serra. 1967-2013. org. Heloisa Espada; trad. de Paloma Vidal. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2014, p. 147. 1 194 REVISTA GALO, Ano 1, Nº 2 – Parnamirim, jul./dez. 2020 tipo de material na arte, buscando uma maior aproximação entre a arte e a vida, vinha acontecendo de maneira mais difundida a partir dos anos 1960. Em sintonia com esse cenário, na Itália, Germano Celant cunhava a “arte povera” e, em 1969, publicava seu primeiro livro em língua inglesa sobre esse tipo de arte. Celant incluiu Serra no grupo de artistas que poderiam ser considerados “poveristas”, ou seja, aqueles que se dedicavam a trabalhar com materiais “pobres”, tentando criar uma compreensão subjetiva da matéria e do espaço para uma experiência da “energia primária”3. Em uma publicação notavelmente interessada em projetar a arte povera, até então vista como um movimento italiano, internacionalmente, o crítico e curador genovês incorporou a produção de Serra à sua publicação, que tentava definir os caminhos da arte daqueles anos 1960: The book is entitled “art povera”. This critical definition makes the type of material collected understandable to the public and places itself as work among other works; it does not aspire to be a unique definition of works of art, realizing that it furnishes only a special aspect of the infinite charge that can be found in the same works. There are other critical definitions, the best-known being: conceptual art, earthworks, raw materialist microemotive art, antiform 4. Embora o crítico genovês tenha afirmado que não pretendia fornecer uma única definição das obras, e, por consequência, dos artistas reunidos para aquela publicação5, a associação de Serra com a ideia de “arte pobre”, mesmo que apenas em alguns aspectos, ocorreu no final dos anos 1960. Um pouco depois, outro termo seria utilizado para se referir a Serra. Em 1971, o crítico americano Robert Pincus-Witten cunhou o “pós-minimalismo” para designar artistas que tomavam o minimalismo como um ponto de referência estético ou conceitual, mas utilizavam objetos do cotidiano, materiais simples e às vezes assumiam uma estética formalista “pura”. Para além da nomenclatura, o que se colocava em questão naquele momento era a forma final da arte, ou seja, “os materiais e estágios de manipulação exigidos para executá-la tornavamse explícitos” 6, questão essa que permeou grande parte do trabalho de Richard Serra nas décadas seguintes. Considerando esses aspectos, o presente artigo tem por objetivo analisar três de suas obras de aço com grandes dimensões que desestabilizam a experiência no espaço e, a partir da análise, estabelecer uma relação entre elas e a poética de Serra ligadas ao “valor do peso”, quais sejam: “Fernando Pessoa” (2008) [Fig. 01 e 02], “Equal Parallel/Guernica-Bengasi” (1986) [Fig. 03] e “Torqued Ellipse IV” (1998) [Fig. 04]. O termo “pobre” teria sido inserido no discurso cultural dos anos 1960 pelo dramaturgo polonês Jerzy Grotowiski (Teatro Pobre) e influenciado Germano Celant a empregá-lo no sentido de “reduzido ao que é elementar”. 4 CELANT, G. Arte P vera, Praeger Publishers, Nova York, 1969, p. 6. 5 Os artistas incluídos na publicação foram: Giovanni Anselmo, Alighiero Boetti, Pier Paolo Calzolari, Luciano Fabro, Jannis Kounellis, Mario Merz, Giulio Paolini, Giuseppe Penone, Michelangelo Pistoletto, Emilio Prini et Gilberto Zorio Joseph Beuys, Walter de Maria, Jan Dibbets, Hans Haacke, Eva Hesse, Douglas Huebler, Joseph Kosuth, Richard Long, Bruce Nauman, Reiner Ruthenbeck, Richard Serra, Robert Smithson, Ger Van Elk, Stephen James Kaltenbach, Michael Heizer, Lawrence Weimer, Robert Barry, Dennis Oppenheim, Barry Flanagan, Robert Smithson, Keith Sonnier, Franz Erhard Walter, Robert Morris, Marinus Boezem e Carl Andre. 6 ARCHER, M. Arte C ntemp rânea: uma história c ncisa São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 63. 3 REVISTA GALO, Ano 1, Nº 2 – Parnamirim, jul./dez. 2020 195 Fernando Pessoa Martin Heidegger, ainda em 1950, já chamava a atenção para o caráter “coisal” das obras de arte, uma perspectiva que nos permitiria dizer até mesmo que “o monumento está na pedra. A escultura está na madeira. O quadro está na cor” 7. Partindo dessa premissa, podemos compreender o que se apresenta na obra “Fernando Pessoa”. Ali se encontra a matéria bruta, a negação de uma representação figurativa, pois a experiência fenomenológica se justapõe. Trata-se de uma placa de aço de aproximadamente 9 metros de comprimento por 3 metros de altura, e instalada em uma sala da Gagosian Gallery, em Londres. A escultura foi nomeada pelo artista, inspirada na leitura do “Livro do Desassossego” 8, e divide o espaço de maneira simétrica. Sua monumentalidade cortante desconcerta o observador. O estabelecimento da relação entre corpo, espaço e escultura é revelador da quebra do “sossego” dos espaços arquitetônicos, problematizando o projeto arquitetônico com o qual estamos silenciosa e imperceptivelmente acostumados. Nesse caso, a questão do peso é ser vista como elemento perturbador de quem se põe frente à obra. O grande retângulo escuro de aço ocupa sozinho a sala branca, sem apoios ou suportes que o sustentem, apenas o jogo de equilíbrio matemático e gravitacional. A possibilidade de queda da placa crua e pesada é desconfortante. Alguns instantes são necessários para acostumar-se com aquele grande retângulo ali e, aos poucos, ao se familiarizar com o espaço e com o corte que a escultura provoca nele, recobramos o equilíbrio, como na cena do navio descrita pelo artista português. O incômodo também está presente também no “Livro do Desassossego”, no qual o artista alega ter se inspirado: Senti-me inquieto já. De repente, o silêncio deixara de respirar. Súbito, de aço, um dia infinito estilhaçou-se. Agachei-me, animal, sobre a mesa, com as mãos garras inúteis sobre a tábua lisa. Uma luz sem alma entrara nos recantos e nas almas, e um som de montanha próxima desabara do alto, rasgando num grito sedas do abismo. Meu coração parou. Bateu-me a garganta. A minha consciência viu só um borrão de tinta num papel.9 A associação do trabalho de Serra com as palavras de Pessoa nos ajuda a pensar sobre as impressões e sensações provocadas pelo corte proposto pelo artista. E é isto: provoca, inquieta, chama à frente, desafia o entendimento da obra, do espaço e da arte. HEIDEGGER, M. A rigem da bra de arte. Lisboa: Edições 70, 2017, p. 11. SERRA, R. “Richard Serra: a era das estrelas da arquitetura está em declínio”. Revista Ép ca, 29/05/2014. Disponível em http://epoca.globo.com/ideias/noticia/2014/05/brichard-serrab-era-das-estrelas-da-arquitetura-estaem-declinio.html. Acesso em 16 fev. 2018. 9 PESSOA, F. Livr d desass sseg . São Paulo: Editora Brasiliense, 1989, p. 52. 7 8 196 REVISTA GALO, Ano 1, Nº 2 – Parnamirim, jul./dez. 2020 Figura 01 - Richard Serra, Fernando Pessoa, 2007-2008, aço, 9.04 x 3.0 x 0,203m, Gagosian Gallery. Fonte: Gagosian Gallery. Figura 02 - Richard Serra, Fernando Pessoa, 2007-2008, aço Corten, 9.04 x 3.0 x 0,203m, Gagosi Gallery. Fonte: Gagosian Gallery. REVISTA GALO, Ano 1, Nº 2 – Parnamirim, jul./dez. 2020 197 Em um texto de 1979, Rosalind Krauss dissertou sobre o que chamou de “campo ampliado da escultura”. Àquela altura, nos anos 1970, quando artistas se aventuravam em diferentes manifestações e procedimentos plásticos, obras muito distintas recebiam a alcunha de escultura. A autora se propôs a pensar tal categoria, um tanto quanto esgarçada, fora do paradigma de pensamento historicizante da modernidade, ou seja, fora dos limites impostos pela negação (escultura como tudo aquilo que é não-arquitetura e não-paisagem). Assim, o campo ampliado se definiria a partir de relações tanto com “arquitetura” e “paisagem” como com a negação desses mesmos termos. 10 Krauss ainda destacou a necessidade de recorrer a outros termos para denominar o que chamou de “ruptura histórica”, sugerindo para tal a utilização do conceito de “pós-modernismo”. A partir disso, dois seriam os eixos possíveis e alternativos para evitar a escultura definida como negação: a “não-paisagem” e a “não-arquitetura” seriam substituídas pelas ideias de “local demarcado” e “local de construção”. Na poética de Serra, a obra é também o espaço, seja arquitetônico ou natural – uma espécie de intervenção no espaço real da arquitetura ou da paisagem que a suporta –, aproximando-se, assim, da ideia de Krauss de não definição pela negação. Em “Fernando Pessoa”, é como se a placa de aço desenhasse um grande retângulo de aço – ou linha, dependendo do ângulo em que é vista – escuro, quase preto, na sala branca. Sobre esse aspecto, Serra afirma em 1987: Estou interessado na mecanização do procedimento gráfico, não no gesto alusivopictórico. O preto é uma propriedade, não uma qualidade. No que diz respeito ao peso, o preto é mais pesado, cria um volume maior, se sustenta num campo mais comprimido. Ele é comparável à fundição.11 Nessa ocasião, o artista se referia a pinturas realizadas por ele com uso de tinta preta sobre tela branca, como no caso de “White whim over the lintel”. Mesmo não falando propriamente de suas placas de aço, Richard Serra revela nesse texto a mesma preocupação com o peso relatada acima: o cortante do espaço. Segundo Ana Beatriz Rodrigues de Britto (2018), ao impor uma inquietação, Serra nos leva a descobrir e reviver o espaço a partir do peso da escala e do senso de gravidade. Sendo assim, o caráter dinâmico de envolvimento do espectador nas obras situa a experiência estética em percepção no espaço, aproximando-se da “Arte como experiência”, uma vez que a vivência da obra se torna fundamental para a sua apreensão.12 Equal Parallel/Guernica-Bengasi A questão do envolvimento do espectador e da valorização da vivência da obra também é encontrada em “Equal Parallel/Guernica-Bengasi”. A escultura foi criada em 1986, especificamente para a exposição “Referencias: un encuentro artístico en el tempo”, do mesmo ano, no Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, que abriga também o famoso painel “Guernica”, de Pablo Picasso.13 KRAUSS, Rosalind. “A escultura no campo ampliado” in Arte e Ensai s, Revista do PPAV/EBA/ UFRJ, 2008. SERRA, R. Escrit s e Entrevistas. Textos de Richard Serra. 1967-2013. org. Heloisa Espada; trad. de Paloma Vidal. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2014, p. 139. 12 BRITTO, A. B. R. Richard Serra: Escultura (dissertação de mestrado) Departamento de História – PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2018, p. 15. 13 A escultura original se encontra desaparecida. Em 2009, uma réplica foi reinstalada no Museu, onde se encontra em exibição. 10 11 198 REVISTA GALO, Ano 1, Nº 2 – Parnamirim, jul./dez. 2020 Como o próprio título sugere, a escultura propõe um “paralelo equivalente” entre as duas cidades que foram cenários de tragédias militares: Guernica (Espanha), bombardeada em 1937 pelas forças aliadas ao franquismo durante a guerra civil espanhola, e Bengasi (Líbia), que sofreu um ataque da força aérea americana em abril de 1986. A referência é direta: a primeira foi destruída enquanto Picasso pintava o painel para o pavilhão espanhol à Exposição Universal. A segunda, enquanto Serra fazia a obra para o Museu Reina Sofia. Essa questão seria muito cara a Serra. Segundo Michael Archer, Assim como estava interessado por este tipo de jogo, em que as certezas, revelações e as confianças da arte [e da matéria] eram exibidas como as ilusões potencialmente perigosas que são, Serra, desde o início, preocupavam-se com as qualidades particulares do ambiente em que sua obra era mostrada.14 A escultura pesa 38 toneladas e é composta de quatro blocos sólidos de aço com altura de 1,48 metros, alinhados com a altura das janelas da sala que ocupam. Dois dos quatro blocos são quadrados e os outros dois retangulares, possuindo todos a mesma espessura. Os blocos foram dispostos de maneira alternada, de modo que um longo espaço central de mais de 15 metros de vazio separa as duplas de placas. Figura 03 - Richard Serra, Equal Parallel/Guernica-Bengasi, 1986, aço Corten, Museu Reina Sofia. Fonte: Museu Reina Sofia. A obra do Reina Sofia não é monumental pelas suas dimensões, como outras de Serra. No entanto, a profundidade da sala e a disposição dos blocos em relação ao espaço são também desconcertantes. O espectador, que caminha entre os vãos, percebe a escultura como uma obra de experiência física de espaço e forma 15. ARCHER, M. op. cit., p. 64. técnica de Equal Parallel/Guernica-Bengasi, disponível em http://www.museoreinasofia.es/en/collection/artwork/equal-parallel-guernica-bengasi. Acesso em 16 fev. 2018. 14 15Ficha REVISTA GALO, Ano 1, Nº 2 – Parnamirim, jul./dez. 2020 199 Os blocos rígidos escuros, em paralelos perfeitamente simétricos naquela vastidão branca do espaço entre eles, provocam-nos a reflexão sobre a tensão entre o vazio e a densidade. Serra transforma novamente o espaço expositivo em um lugar de tensão pungente. Assim, materiais, cores e espacialidade se fundem à obra e rompem a passividade contemplativa do observador. Torqued Ellipse IV Em “Torqued Ellipse IV” [Fig. 04] podemos ver mais a fundo a questão da técnica do artista para causar esse rompimento. O “torqued” no aço, ou seja, a torção, ou “aperto”, pelo qual o material passa para ganhar a forma desejada é milimetricamente calculado. A escultura, pertencente ao Museu de Arte Moderna de Nova York, faz parte de uma série de torções em aço que Serra produziu nos anos 1990. Mais uma vez, nenhuma delas possui tipo de suporte, sendo sustentadas pelo equilíbrio precisamente calculado para atingirem estabilidade. Novamente, a questão da gravidade se impõe. É exatamente por isso que o trabalho do artista está em constante diálogo com áreas da engenharia e arquitetura. Serra elabora o conceito, mas conta com uma equipe, e com recursos industriais, para a produção da peça, estratégia que já marcava amplamente a arte conceitual desde os anos 1960. Torqued Ellipse IV está exposta na parte externa do museu, a céu aberto, e em diálogo com a paisagem urbana que a circunda. Faz-se, mais uma vez, presente a ideia de Krauss de redefinir a escultura como não sendo mais o lugar da não-paisagem ou não-arquitetura. Nesse caso, a obra é arquitetura e não-arquitetura, simultaneamente, o que a autora chamou de “local de construção”. Ao caminhar em torno do aço retorcido, não é possível, por conta da curvatura, saber o que vem adiante. A experiência física que desorienta o espectador provoca também uma “sensação de imprevisibilidade”16. Figura 04 - Richard Serra, Torqued Ellipse IV, 1998, aço Corten, MoMA – Nova York. Fonte: MoMA. 16 BRITTO, op. cit., p. 141. 200 REVISTA GALO, Ano 1, Nº 2 – Parnamirim, jul./dez. 2020 Figura 05 - Detalhe do céu visto da parte inferior de Torqued Ellipse IV. Fonte: Vídeo da escultura Torqued Ellipse IV (1998) de Richard Serra em exibição no MoMA como parte da exposição Richard Serra Sculpture: Forty Years. Esse recurso já havia sido utilizado pelo artista em outras obras como “Shift”, de 1970, na qual a ideia era criar uma dialética entre a percepção que se tem do lugar em sua totalidade e a relação que se estabelece com o campo ao percorrê-lo, como se a cada metro percorrido fosse também uma medição do sujeito a si mesmo ante a indeterminação do terreno. 17 De maneira similar, em “Torqued Ellipse IV”, a cada passo os olhos alcançam um pouco mais o que está à frente; a torção do aço faz com que o caminhar seja como a revelação de uma surpresa e do próprio espaço. Segundo Serra: “it’s going to round it seems continuous and never ending”18, ou seja, o trajeto é contínuo e imprevisível, pois não se sabe como vai acabar. A parte côncava da escultura é como uma caverna. Uma torção topológica na qual, ao entrar, o espectador sente-se continuamente deslocado e rodeado pelo aço. A forma interage com o espaço, fazendo ser enxergado apenas um recorte em elipse do céu [Fig. 05], este arranhado por pelos prédios de Nova York. A escultura recorta o espaço de maneira transgressora, limita o que podemos ver e aprofunda a sensação de vertigem diante da imensidão dos edifícios. A distorção do aço distorce também as sensações, causam um desconforto também psicológico, sendo alteradas as percepções da forma à medida em que se desloca no espaço. É interessante notar que a elipse desenhada no chão pelo aço é exatamente a mesma elipse contornada no céu pela extremidade superior da escultura. Segundo entrevista concedida por Serra, essa foi a interpretação pessoal de algo que ele teria visto em Roma, mais especificamente na igreja de San Carlo Alle Quattro Fontane, obra do famoso arquiteto Francesco Borromini. O artista teria percebido que a elipse que se formava no chão era um “espelhamento” da elipse formada no teto [Fig. 06], mas que, em um primeiro momento, entrando pela nave lateral da Igreja, pareciam desalinhadas. Serra se interessou, então, pelas possibilidades de trabalhar com essas formas e, assim, “foram concebidas as elipses em torção unitárias que se desdobraram em duplas e, depois, nas espirais em torção. 19 SERRA, R. Richard Serra: escrit s e entrevistas, 1867-2013. São Paulo: IMS, 2014. Vídeo da escultura “Torqued Ellipse IV” (1998) exibido no Museu de Arte Moderna de Nova York como parte da exposição “Richard Serra Sculpture: Forty Years”, 2007. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ilWo7eWY73M. Acesso em 16 fev. 2018. 19 BRITTO, op. cit., p. 139. 17 18 REVISTA GALO, Ano 1, Nº 2 – Parnamirim, jul./dez. 2020 201 Figura 06 - Detalhe do teto da Igreja de San Carlo Alle Quattro Fontane, Francesco Borromini, 1641, Roma. Autor: Andrea Poda. Como vimos, o trabalho de Richard Serra está intimamente ligado à não figuração. Nesse sentido, o manuseio do material ganha uma dimensão maior enquanto gesto expressivo. Indagado em entrevista, em 1983, sobre a não figuração ter sido o grande marco para a história da escultura, Serra defendeu: “a grande quebra na história da escultura no século XX foi a remoção do pedestal. O conceito histórico de colocar uma escultura no pedestal separava o objeto do espaço a que pertencia o observador”20. Em sintonia com o que já havia escrito Rosalind Krauss, para o artista, abandonar o pedestal foi um gesto importante no sentido de aproximar o público da obra, muito mais do que romper a temática da representação. Mesmo assim, é possível perceber os dois movimentos em sua poética, tanto a extinção da interface entre espectador e escultura, quanto o abandono da figuração. Em relação ao primeiro, sendo obra e espaço indissociáveis, pressupõe-se uma interação do observador – que deixa de ser mero observador – no sentido de que, para ter uma dimensão maior da obra, é necessária também a experiência física de estar diante dela. Em relação ao abandono da figuração, por mais que as obras possuam títulos que possam fazer alusões ao mundo figurado, a obra em si não remete a algo que não seja a sua relação interna e com o espaço. Não vemos a representação do rosto de Fernando Pessoa, tampouco uma cidade estilhaçada após um bombardeio aéreo. O que vemos é a concepção de uma nova noção espacial dada pela disposição e escolha dos materiais e formas. “Trata-se de uma forma que busca demonstrar um princípio construtivo: o uso das chapas metálicas por Serra resulta numa exposição didática do equilíbrio de forças”21. É claro que essa concepção provoca: à medida que interagimos com a obra e com o espaço que se funde a ela, surgem sentimentos, incômodos, FRAJNDLICH, R. U. “Um debate americano: mediação, escultura e arquitetura - sobre a entrevista de Peter Eisenman a Richard Serra em 1983”. ARS (Sã Paul ), São Paulo, v. 7, n. 13, p. 50-63, junho de 2009. 21 Ibid. 20 202 REVISTA GALO, Ano 1, Nº 2 – Parnamirim, jul./dez. 2020 deslocamentos, mostrando-nos que o gesto expressivo do artista ultrapassa a questão da figuração. Krauss afirma que foi no contexto dos anos 1960 que escultores minimalistas começaram com procedimentos para reagir contra um ilusionismo escultural que convertia cada material no significador de outro (a pedra em carne, por exemplo), ilusionismo esse que retira o objeto escultural do espaço literal e o instala em um espaço metafórico. Para a autora, mesmo diante da abstração da escultura minimalista, o tema central dessas esculturas continua sendo o corpo e experiência do corpo, mesmo quando a escultura é formada por placas de toneladas de aço.22 Considerações finais Nas três esculturas analisadas, Richard Serra colocou em evidência as tensões da “matériacoisa” em relação ao espaço. Em “Fernando Pessoa”, a barra única corta o espaço, solitariamente. Assim, a presença do aço também forma um “desenho”, ao dividir a sala. Em “Equal Parallel/Guernica-Bengasi”, as placas não são contorcidas, mas interagem entre si formando um conjunto de linhas na longa sala e desenhando um paralelo entre as estruturas. Já em “Torqued Ellipse IV”, o aço contorcido existe dentro de um jogo de formas dinâmico e muito complexo, demonstrativo do manuseio do artista em utilizar a forma para desenhar o espaço, colocando, assim, o corpo de quem observa em constante e imprevisível confronto com esse espaço. O artista explora o equilíbrio do peso, faz da gravidade e do espaço matérias de suas obras, coloca ao espectador a provocação sobre o estar no espaço e no tempo. Reproduz a sensação de ansiedade do chacoalhar do cargueiro na sua infância, colocando o corpo em uma posição central na busca por recobrar o equilíbrio. Na poética de Serra, é impossível desassociar espaço e tempo. O tempo se torna fundamental para a experiência fenomenológica de estar diante do peso, “tudo muda à medida que o espectador caminha – isso condensa ou expande o tempo”23. Por fim, se o artista, em um tom confessional, teria dito se aproximar de Mantegna, Cézanne e Picasso, podemos entender tal aproximação em um sentido metafórico, de uma arte que, por vezes, tange muito mais o peso do incômodo de se sentir no espaço do que a leveza da contemplação passiva. Referências ARCHER, Michael. Arte C ntemp rânea: uma história c ncisa São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. BRITTO, Ana Beatriz Rodrigues de. Richard Serra: Escultura (dissertação de mestrado) Departamento de História – PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2018. CELANT, Germano. Arte P vera, Praeger Publishers, Nova York, 1969. FRAJNDLICH, Rafael Urano. “Um debate americano: mediação, escultura e arquitetura - sobre a entrevista de Peter Eisenman a Richard Serra em 1983”. ARS (Sã Paul ), São Paulo, v. 7, n. 13, p. 50-63, 06/2009. 22 23 KRAUSS, R. Caminh s da escultura m derna. Martins Fontes, São Paulo, 2007. BRITTO, op. cit., p. 140. REVISTA GALO, Ano 1, Nº 2 – Parnamirim, jul./dez. 2020 203 HEIDEGGER, Martin. A rigem da bra de arte Lisboa: Edições 70, 2017. KRAUSS, Rosalind. “A escultura no campo ampliado” in Arte e Ensai s, Revista do PPAV/EBA/ UFRJ, 2008. KRAUSS, Rosalind. Caminh s da escultura m derna. Martins Fontes, São Paulo, 2007. PESSOA, Fernando. Livr d desass sseg . Editora Brasiliense, São Paulo, 1989. SERRA, Richard. Escrit s e Entrevistas. Textos de Richard Serra. 1967-2013. org. Heloisa Espada; trad. de Paloma Vidal. Instituto Moreira Salles, São Paulo, 2014. SERRA, Richard. “Richard Serra: a era das estrelas da arquitetura está em declínio”. Revista Ép ca, Rio de Janeiro, 29/05/2014. Recebido em 30 set. 2020 Aprovado em 08 out. 2020