© 2013 by autores.
Direitos para esta edição cedidos à edufba.
Feito o depósito legal.
coor denação editor ial Flávia Goulart Mota Garcia Rosa
r evisão Tatiana de Almeida Santos
nor malização Taise Oliveira Santos
diagr amação Rodrigo Oyarzabal Schlabitz
arte da capa Caio Telles
Ficha Catalográfica: Fábio Andrade Gomes - CRB-5/1513
Estudos e política do CUS - Grupo de Pesquida Cultura e Sexualidade/Leandro Colling
e Djalma Thürler (organizadores). - Salvador: Eduf ba, 2013.
371 p. - (Coleção CULT; n. 15)
ISBN 978-85-232-1107-3
1. Sexualidade. 2. Identidade de Gênero. 3. Homossexuais. 4. Cultura. 5. Estudos
queer. I. Colling, Leandro. II. Thürler, Djalma.
Cdd: 306.76
editor a filiada à:
edufba Rua Barão de Jeremoabo, s/n – Campus de Ondina,
Salvador – Bahia cep 40170 115 tel/fax (71) 3283-6164
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F a zer-se mulher tr anse xual:
mediaçõ es e contr atempos
Maycon Lopes*
A partir de suas histórias de vida, exploro neste
estudo os itinerários e práticas de transformação
corporal adotadas por três mulheres transexuais,
bem como os sentidos, expectativas e repercussões deste processo. Para a produção dos “novos”
corpos das colaboradoras desta investigação, implicaram suas redes de sociabilidade, sobretudo
no que tange aos procedimentos técnicos adotados, seus recursos financeiros, que constrangem
ou alargam as possibilidades de escolha entre as
“possíveis” intervenções, e as convenções de gênero e desejo à baila.
Busco ainda compreender como estas transexuais se posicionam em relação a suas identida-
*
Graduado e Mestrando em Ciências
Sociais (UFBA). E-mail:
[email protected]
fa zer- se mu l her t r a nse x ua l
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des, e também os conf litos e tensões inerentes à aspiração de
serem reconhecidas socialmente como mulheres. Neste sentido, é possível perceber, ao longo do trabalho, como certas
concepções acerca do que é “ser travesti” importam para a definição de mulher transexual, de modo que, nas suas narrativas, ainda que inconscientemente, elas lançam mão da estratégia de negar a identidade travesti para, então, constituir-se
como mulher.
Fica também evidente no texto como, em verdade, este recurso integra todo um empenho de inscrever sua subjetividade na norma heterossexual, que pressupõe uma linha coerente
entre sexo, gênero, desejo e prática sexual. (BUTLER, 2003)
Circunscrever suas experiências na heteronormatividade acaba por tornar-se pauta-chave na luta cotidiana pelo reconhecimento social almejado por essas mulheres.
Finalmente, observo como as suas relações afetivo-sexuais
ocupam lugar de destaque na recorrente avaliação por elas operada a respeito de alcançarem ou não êxito na urgente demanda
de serem identificadas como mulheres. É quando, no mais íntimo (mas também público) projeto de fazer-se mulher, a ausência de reconhecimento pode ganhar contornos particularmente dramáticos.
Este trabalho insere-se em um projeto de pesquisa mais amplo, o PopTrans, dos quais participam alguns pesquisadores
do CUS, e que é desenvolvido pelo Instituto de Saúde Coletiva
(ISC) e pelo Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC), ambos da Universidade Federal
da Bahia. O PopTrans tem por intuito investigar, dentre outros
aspectos que concernem à população travesti e transexual de
Salvador, as relações entre as transformações corporais e a produção dessas identidades.
288
m aycon lopes
Conhecendo as colaboradoras
Esta pesquisa – qualitativa, de base etnográfica – privilegiou
basicamente as histórias de vida. Nos encontros para a realização das entrevistas em profundidade, fui munido de um
roteiro, elaborado previamente com alguns tópicos importantes para cumprir os objetivos do estudo. As entrevistas foram
gravadas após a assinatura do termo de consentimento livre e
esclarecido. Para produzir também uma maior familiaridade
com o cotidiano de travestis e transexuais, alguns encontros
do movimento social foram acompanhados, com registro em
diário de campo.
A minha primeira imersão no campo, e as primeiras notas
do meu diário, são oriundas do II Encontro Estadual de Travestis e Transexuais da Bahia. Foi nele que vi Camille, 1 a mais jovem das minhas entrevistadas. Ela “mirava” a carteira de identidade, já com o nome social (e então civil), de uma transexual
operada. Quando a vi olhando o documento e dizendo “meu
sonho!”, pensei de pronto: quero conhecê-la! Meses depois entrei em contato com ela pelo facebook, e em pouco tempo nos
encontramos pessoalmente. Camille reside na periferia de Salvador, é estudante universitária e desenvolve estágio em um
órgão do Governo do Estado da Bahia.
Já Linda, de 40 anos, que trabalha como arquivista em um
escritório de contabilidade, conheci no Simpósio Nacional de
Políticas para Transexuais da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). Ela é ativista desde a adolescência,
quando se considerava gay, e está sempre presente na agenda
do movimento. Na ocasião, peguei o seu contato para que ela,
dias depois, pudesse me contar sua história de vida, na sede do
Grupo Gay da Bahia, no Pelourinho, que fica próxima à sua residência, no Centro Histórico de Salvador.
Por fim, Amanda, de 25 anos, conheci através de um rapaz que
assistira à minha apresentação sobre os primeiros resultados da
1
Todos os nomes das
informantes são
fictícios.
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pesquisa em um seminário da universidade. Ele havia me falado
de uma amiga cujo itinerário de cirurgias plásticas vem acompanhando. Troquei algumas mensagens com ela através do seu
endereço eletrônico e agendei uma visita. Fui a Feira de Santana,
minha terra natal e cidade onde ela reside, para encontrá-la. Foi
em uma lanchonete do centro da cidade, próximo ao local onde
ela trabalha, a seu convite e com sua autorização, que ouvi sua
história de vida. Depois continuamos a conversar enquanto ela
me conduzia no seu veículo até a minha casa. Amanda trabalha
na empresa da sua mãe e também é estudante universitária. No
entanto, suspendeu temporariamente os estudos por conta do
preconceito que sofria na instituição de ensino.
( Tra n s) f o r m a ç õ e s c o r p o ra i s
Conforme aponta a literatura (PELÚCIO, 2005; BENEDETTI,
2005), observamos, com o desenrolar da pesquisa, que uma
das primeiras etapas no processo de transformação corporal de
travestis e transexuais consiste no uso de hormônio feminino.
Existem diversos caminhos pelos quais as pessoas iniciam a
ingestão dessa substância química. Ela pode ocorrer, por exemplo, através de uma amiga em quem se observa certas mudanças corporais – suscitando então o questionamento sobre como
elas estão conseguindo tais (desejáveis) efeitos. É quando elas
lhes indicam a fórmula e inicia-se o processo de ingestão do
hormônio. Foi esse o caso de Linda, que narrou:
De repente eu vi Sarah [sua amiga, considerada por ela como ‘ ídolo’]
mudando, mudando, mudando... eu dizia ‘nossa, Sarah está mudando...
mas Sarah, me diga como...’ Aí Sarah me disse assim: ‘eu tou tomando
hormônio’. Aí ela me deu nome: Androcur, Gestadinona, Microvlar, e eu
fiz um coquetel de hormônio e fui tomando. E tomava também em
comprimido e tomava também em injeção.
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m aycon lopes
Aos 40 anos atualmente, Linda começou a ingestão de hormônio quando ainda era “metá-metá”, ou, como ela esclarece:
metade menino, metade menina. Possivelmente o hormônio
participou de modo ativo dessa configuração corporal dualística da perspectiva convencional do gênero, o “metá-metá”. Durante o dia, ocupando a função de servidor público, era Lindoval, um rapaz de cabelo preso, e cujos peitos, que àquela altura
já começavam a despontar, eram disfarçados por uma faixa com
a qual os enlaçava. Era assim que Lindoval encobria a Lindinete que ganhava vida à noite, como também era conhecida por
onde quer que andasse na cidade de Salvador. Pouco mais tarde,
quando deixou o emprego e partiu para a Europa, a princípio
com a ideia de ser cuidadora de idosos, decidiu prostituir-se,
sendo batizada pelo nome de Linda, como até hoje é chamada.
Linda era Linda Birchler, sobrenome que adquiriu, enquanto
homem, ao forjar união civil com uma suíça – acordo firmado
para fins exclusivos de visto. Era como “Linda Birchler, travesti afro-brazilian, grosso busto, grosso pênis” que ela ocupava
os anúncios de jornais. Nesse momento, ela, que também tem
silicone nos quadris, suspendeu o uso de hormônios e optou
pelo silicone industrial nos seios – aplicado na Europa por uma
bombadeira brasileira que vivia há anos na Itália. Essa bombadeira – em geral travesti que aplica silicones em outras – “tinha
nome”, ou seja, boa reputação entre seus pares, o que oferecia
segurança à Linda. Além de o hormônio custar muito mais caro
na Europa e atrapalhar o seu alto fluxo de trabalho, uma vez
que reduz a libido, não valia a pena o investimento, pois o hormônio é, segundo ela, “expelido na ejaculação”. Já o silicone,
não; o máximo que pode acontecer, segundo Linda, é descer
um pouco para a perna ou para o pé, como aconteceu com ela.
Após a injeção do silicone industrial, eram recomendados 15
dias de resguardo. No entanto, com a necessidade de pagar diá-
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ria à cafetina, o dinheiro de Linda acabou e ela precisou retomar
o trabalho 10 dias após a aplicação do silicone.
Em um episódio em que foi perseguida por marroquinos na
Suíça, que acusavam as travestis de serem culpadas da perseguição de que eles eram alvo, ao supostamente atraírem a atenção dos policiais para os arredores, Linda sofreu uma queda
que provocou o deslocamento de parte do silicone que havia
aplicado nos seios para o pé. Instalado entre a carne e o osso,
não foi possível ser removido daquele local. Com esta sequela,
o seu pé fica inchado durante o tempo frio. Outra complicação
relacionada ao uso do silicone aconteceu na última vez em que
Linda aplicou a substância, já no Brasil, aos 30 anos, ela relata
que quase morre:
Porque eu comecei a sentir falta de ar, porque silicone colocando aqui
nos seios, né, tem o perigo de pegar a veia do coração. Aí eu comecei a
ficar pálida.[...] Só faltava acho que dois dedos pra colocar, aí eu disse:
‘não, chega, chega, chega’. Mas também eu sofri, eu sofri... Fiquei duas
semanas toda amarrada. E não queria cicatrizar, nossa, e era remédio
em cima de remédio, remédio, remédio em cima de remédio. E quando
tirou isso aqui tava tudo em carne viva. [...] Nossa, é um sofrimento, eu
não conseguia dormir,[...] me contorcendo de dor.
Retomando o uso de hormônios no Brasil, interrompeu por
recomendação médica, pois a substância estava dilatando os
seus vasos. No entanto, reiniciou o uso, ainda com acompanhamento médico – que considera necessário para tomar hormônio – com fins à sua redesignação sexual. Linda está inscrita
no Tratamento Fora de Domicílio (TFD) do Processo Transexualizador do Sistema Único de Saúde.
Linda disse que não colocou silicone nas nádegas porque
achou que “não havia necessidade”, uma vez que os homens da
Europa gostavam de travestis e transexuais magras, com peito
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grande e sem bunda. Por conta disso, preferiu não “se encher de
silicone”. Neste sentido, percebemos que um importante vetor
que orientou a modificação corporal de Linda foi o padrão de
beleza em voga entre os seus clientes. Atraí-los sexualmente é
também um modo de se sentir gratificada.
Foi também através de uma amiga travesti, que Amanda, de
25 anos, começou a tomar hormônio feminino. Amanda nos
conta:
‘Ela falou: ‘tome isso aqui, que vai ser bom pra você’. Aí lá vai eu [risos].
Sem saber nem o que era aquilo, comecei a tomar. Aí, pronto, meu peito
começou a crescer, eu comecei a ficar feminina, e gostando daquilo. Eu
falei ‘gente, é isso, é isso que eu quero pra mim’”.
Mais adiante, Amanda continua:
Acho que ela ficou com medo de me assustar. Ela falou assim ‘toma isso
aqui, que isso aí vai dar perna. Você, que tá malhando’. Porque a gente
malhava juntas. ‘Vai lhe dar perna, vai lhe dar bunda... Então tome, que
é bom’. Só que aí vi meu peito crescendo, mas aí, né, nem liguei.
Depois de ver seu peito ganhar forma, Amanda perguntou à
amiga “o que era aquilo”. Ela respondeu e questionou se Amanda ia parar. Não, a amiga tinha acertado; era isso que ela queria.
O interessante é que foi essa mesma amiga que, antes de oferecer-lhe hormônio, lhe denominou de transexual pela primeira
vez, sendo, portanto, fundamental nos rumos anatômicos e
identitários tomados por Amanda.
Finalmente, Camille, de 19 anos, conheceu o hormônio feminino através da internet. Buscou quais os hormônios indicados, os efeitos colaterais, e começou a tomar comprimidos.
Se no início foi sem acompanhamento especializado, atualmente quem lhe aplica as injeções e a aconselha é uma amiga
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enfermeira. Embora, segundo ela, excesso de hormônio aumente a propensão ao câncer, o que tomava em três meses ela
passou a tomar em 15 dias e, assim, agora, em um mês, está
tomando o que outrora tomava em seis. Para ela, assim como
para os seus pares, o hormônio marca uma espécie de “pontapé inicial” rumo às transformações corporais vindouras.
Camille observa que os pelos estão mais finos, que os peitos
cresceram, e que:
Eu era lisa, lisa. Quando eu comecei a ver os peitinho assim, aquela coisa bem discreta, eu disse “ai, nossa, tá fazendo efeito”, então veio uma
esperança, né. Mas, nossa... pra chegar onde eu quero falta muito ainda.
Me sinto super incompleta, eu tou uma semi-lisa ainda.
No momento em que Camille interrompeu o uso dos comprimidos, sob conselho da amiga, que alegou risco a desenvolver câncer, ela notou que os pelos da perna, após a depilação
com cera, passaram a crescer mais rápido, e que ocasionalmente nascem uns pelos na face, que são tirados com uma pinça.
Como afirma Silva (2007, p. 155), “a natureza reflui sempre, a
exigir um constante combate”. Camille aumentou a dose, retomando a hormonoterapia através de injeção.
Além dos efeitos sobre a libido, todas elas conhecem os efeitos dos hormônios sobre o sistema nervoso. Amanda descreve
sua repercussão a partir do hábito de “dar patada”, ou seja, de
ser ríspida com as pessoas, ou “pavio curto”, intolerante. Para
ela, a imagem perfeita desses efeitos é a TPM. Assim – explica
– é como se o consumo de hormônios a fizesse viver sempre de
TPM, uma vez que este se configura como um período em que
a mulher passa por uma alta taxa de hormônios. Camille corrobora, argumentando que, se antes o hormônio lhe provocava
náusea, agora ele a deixa “muito estressada, muito sensível”.
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Ela associa seus efeitos sobre o “sistema nervoso” com excesso
de sentimentalismo e oscilação de humor:
Às vezes aqui eu tou rindo, mas daqui a pouco eu posso tá chorando,
entendeu? Muito instável, assim... Qualquer coisa me abala, qualquer
coisinha que você fala, assim, sabe, que afete assim, eu acho que me
abala muito...
Remetendo-se ao início da sua trajetória de utilização de
hormônio, Linda argumenta que os seus efeitos sobre a psique
são tão devastadores, em termos de deixá-la extremamente
nervosa e deprimida, que até mesmo “nojo” de homem chegava a sentir. Segundo ela, seu comportamento se alterava radicalmente, e isso se deve ao fato de os hormônios, além de serem muito fortes, são consumidos por conta própria. Hoje, ela
acredita que o acompanhamento de um especialista seja fundamental; um médico que recomende o hormônio adequado a
ser utilizado.
Diferentemente de Linda e Camille, Amanda já se submeteu
a diversas cirurgias plásticas; no osso frontal, pomo de Adão,
prótese de seios e lipoescultura. Todas com um só médico (particular), que lhe indicou as cirurgias necessárias a fim de “corrigir” seus traços masculinos. Quando a encontrei, ela ainda
estava com umas faixas no tórax, por conta da sua última cirurgia – a lipoescultura, que fez com a intenção de afinar a cintura,
para que o quadril sobressaísse. Embora, como ela diz, desde
nova o seu “bumbum” tenha forma de menina, Amanda não
tinha quadril, e rejeitou a ideia de aplicar silicone naquele local.
Segundo ela, as travestis colocam silicone industrial, “e aí apodrece”. A cada cirurgia, Amanda relata:
Eu ficava naquela expectativa, né, de mudança. De sair da clínica...
Ave, Maria, as pessoas não comentarem nada, de ser uma mulher nor-
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mal na rua, mas aí, meu filho, quando eu ia pra rua, e... e era a mesma
coisa, aquilo era uma decepção. Eu ficava: ‘Meu Deus, gastei dinheiro à
toa’. O que vinha na cabeça era isso [pausa]. É decepção total. [pausa]
O que “assombra” Amanda é a recorrência em que é identificada como travesti nas ruas. A travesti seria, para ela, a imitação
grotesca da mulher e representaria, portanto, o fracasso no seu
projeto em assimilar-se à mulher. Como na história de Linda, a
mãe de Amanda, sem conhecimento prévio, deparou-se no banheiro com seus seios maiores, por conta do uso do hormônio.
A ingestão dessa substância, ao transformar seus corpos, precipitou na família uma discussão acerca da identidade de gênero.
Ao surpreender-se com os seios de Amanda em crescimento,
ela nos conta:
–‘Porque você tá botando peito, ficando assim? Você quer virar travesti?’ Porque ela tinha medo de eu ser travesti, porque ela tem aquela
imagem de prostituição, pessoas baixo-astral, porque travesti é assim.
Num é? [pausa] É um povo baixo-astral, aquele comportamento de
chamar atenção, exagerado. Você já teve contatos com travestis?
(Entrevistador) – Tive, sim.
– Até porque quando eu comecei amizade com essa travesti eu não conseguia nem sair com ela, eu tinha vergonha de sair com ela. Porque era
aquela coisa. Olhava se um homem passasse, abria a blusa e mostrava
o peito. Era aquela coisa assim... que eu tinha até vergonha de andar. Eu
falei: ‘gente, ainda bem, graças a Deus eu tenho certeza que eu não sou
travesti’. Porque... Isso aí não tem nada a ver comigo. Eu sou uma mulher. Só tenho... uma coisinha pra corrigir.
Amanda explicou à sua mãe que não era travesti, e sim mulher. O primeiro momento foi de não aceitação. Porém um dia
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a mãe a viu nua e, após assustar-se com o corpo da filha, sua
suposta incongruência – aqui uma referência ao gênero como
uma totalidade em que uma parte deve responder à outra – perguntou como ela ficava para se depilar; se ela ficava nua e se
não era constrangedor. Ela respondeu que ficava de calcinha.
Foi quando, de repente, sua mãe disse: “é, isso aí você tem que
tirar, porque isso aí não tem nada a ver com o seu corpo. Não
tem nada a ver. Agora eu tou entendendo porque você quer
operar”. Amanda qualifica o “isso”, o pênis, como um “corpo
estranho”, e recusa-se a falar em mudança de sexo. Ela prefere, acredita que seja mais honesto, falar em correção de sexo.
A cirurgia de redesignação sexual foi planejada por Amanda
como seu “último passo”. Antes, priorizou a aparência, porque
para ela não compensava ter uma vagina e não ser reconhecida
como mulher. Então investiu primeiramente na transformação
das suas feições – o que, segundo a própria, “de nada adiantou”.
Agora, quando “não tem mais o que fazer”, Amanda acredita
que precisa se conformar com essa limitação. Talvez a limitação
seja também do bisturi, ou do próprio corpo, que é maleável,
mas só até certo ponto. Quanto à expectativa da cirurgia, explicita:
Agora assim, o único problema meu é a falta de confiança em mim mesma. Por exemplo, eu me sinto inferior às mulheres. Me sinto. Eu acho
que eles vão cair na tentação e pegar uma mulher operada, já que eu
não sou operada. [...] Então acho que isso tudo vai mudar com a cirurgia. Auto-confiança.
Ao chamar a cismulher – aquela cuja identidade e performatividade de gênero é compatível com o modelo de mulher
legitimado pelas normas dominantes (Simakawa, 2012) – de
“mulher operada”, Amanda parece “abraçar as possibilidades
inerentes à ruptura de distinções límpidas entre organismo e
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máquina e distinções similares.” (HARAWAY, 1994, p. 274)
E ela só o faz a partir de um caminho viabilizado pela biotecnologia, que, se por um lado parece libertar e abrir horizontes,
por outro parece readestrá-los. Ou seja, de um lado a tecnologia
permitiu uma maior plasticidade do corpo – o que nos remeteria a certo sentimento de liberdade – do outro, um controle de
sua materialidade moldada a partir de concepções dominantes
sobre o que é ser homem ou ser mulher.
Valho-me da categoria cismulher e rejeito outras como “mulher biológica”, “bio-mulher” ou “mulher uterina”, bastante
correntes na literatura sobre gênero e sexualidade, por compreender que estas últimas, ao soarem naturalizantes, podem
acabar por reforçar a superioridade do biológico, tão presente
nos julgamentos normativos contemporâneos (RABINOW,
1999), um dos principais vetores de marginalização das identidades trans. O uso do prefixo “cis”, que vem do latim e significa
“aquém”, tem sido protagonizado por ativistas trans, que dele
lançam mão com o intuito de descentrar o grupo dominante,
ao entendê-lo como mais uma das diversas possibilidades de
vivência do gênero e não mais uma norma contra a qual as trans
se definiriam. (KOYAMA, 2002 apud SIMAKAWA, 2012)
Don Kulick (2008), na sua etnografia realizada no final década de 90 junto a um grupo de travestis de Salvador, observa
que é muito corrente o sentimento de inferioridade delas com
relação às cismulheres. Segundo as próprias, os homens, em
uma relação pavimentada por transferência material delas para
eles, podem até gostar de estar em sua companhia, contudo,
“amor de verdade” só são capazes de dispensar às cismulheres.
Quanto às noções de artificialidade e naturalidade, Kulick observa que a primeira é admirada entre as travestis com quem
ele trabalhou, ao passo em que a segunda é reverenciada. Isso
me lembra quando, gentilmente indo me levar em casa no seu
automóvel, conversava com Amanda e ela confessava a inveja
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que sentia da secretária do seu cirurgião plástico. Transexual, ainda não havia se submetido a nenhuma intervenção cirúrgica, porém, ainda assim, era facilmente confundível com
uma cismulher. Finalmente, sentindo-se “super incompleta”,
e “já bastando o detalhe”, Camille, que atualmente utiliza enchimento nos seios, anseia por uma prótese ali, mas não tem
dinheiro para tal. Ela assume que em “momentos de desespero” chegou a pensar em aplicar silicone industrial, porém diz
que não o faria, pois os riscos são muito altos e que são poucas
aquelas que se submetem à aplicação e não tem complicações a
posteriori. Ainda assim, o implante para ela seria um paliativo,
perto do seu desejo de ter uma vagina, que finalmente alinharia anatomia genital e gênero.
Questões de reconhecimento social
Após combinar com Camille pelo facebook o dia e horário do
nosso encontro – havíamos marcado para quarta-feira –, trocamos os nossos números de telefone. Poucos dias depois, recebo
uma ligação. Era manhã da segunda-feira quando Camille me
telefonou. Abatida, disse-me precisar conversar, desabafar com
alguém; se possível ainda naquele dia, pois não teria naquela
segunda sua costumeira sessão com o psicólogo da ONG que
frequentava. Prontamente atendi o seu pedido, e fui encontrá-la no seu trabalho ao final do expediente. Nos poucos minutos que lá passei percebi que o modo com que os seus colegas
lhe tratavam era bastante amistoso, e surpreendi-me quando
ela me disse que havia apenas um mês que ali estava. De fato,
mais tarde ela me confirmou que não tinha nenhum problema
decorrente do preconceito no seu ambiente de trabalho (e também na universidade), e ressaltava, para comprovar seu argumento, que era tratada pelo seu nome social. Ser tratada pelo
nome social era, portanto, sintoma de respeito para ela.
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Pois bem, a razão pela qual ela estava triste naquele dia não
dizia em nada respeito ao trabalho ou sequer a família. Enquanto seguíamos para a minha casa, onde em seguida ela me
narraria sua história de vida, Camille, em meio a lágrimas, me
contava o seu dilema. O rapaz de quem ela gostava disse que jamais “a assumiria”, que não deixaria sua então namorada, uma
cismulher, para ficar com uma trans. Ele, que só ia a casa dela a
partir das dez da noite, a fim de que ninguém do bairro pudesse vê-lo entrar, a confessou que sente mais desejo – ou melhor,
“tesão”, para usar as palavras de Camille – por ela do que por
sua namorada.
Camille disse que “a sociedade pensa errado” e que:
– Não é fácil. É uma barra. Ainda mais a barra dessa questão amorosa,
que é terrível. Porque você não pode tá com a pessoa devido à sociedade,
sabe, de dizer que o homem que se relaciona com uma trans não é homem, entendeu? É gay, e tal... Inclusive tem alguns artigos que falam
isso. Eu já pesquisei também, entendeu?
(Entrevistador) - Falam o que?
– Respondem a essa pergunta; se homens que se relaciona ou namora
com transexuais são gays? E aí a resposta no final é ‘não’, claro.
Uma vez que se define como mulher, como uma “mulher
transexual”, Camille reivindica a inscrição dos seus relacionamentos amorosos na rubrica da heterossexualidade, em uma
matriz que, conforme já anteriormente explicitado, supõe coerência entre sexo, gênero e desejo. Ser mulher, ainda que não
uma cismulher, e relacionar-se com o sexo oposto, supostamente fornecer-lhe-ia uma credencial que autorizaria socialmente, alheia a preconceitos, os seus envolvimentos amorosos. Poderíamos assim dizer que Camille não tem intenção de
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m aycon lopes
questionar a deslegitimidade da homossexualidade? Ou mais
adequado seria apontar que, ao negar que seu relacionamento é
heterossexual, a sociedade estaria negando o reconhecimento
da sua própria identidade (de mulher transexual)?
Camille explica:
Você se envolve com a pessoa e tal, mas tem que ser aquela coisa escondida, tem que ser aquele negócio, sabe, você se sente insegura, a pessoa
te vê mulher, mas não tem o peito pra encarar a sociedade. Eu não cobro
dele isso porque eu sei o quanto é difícil encarar uma sociedade, porque
eu passei e passo essa realidade. Então eu sei o quanto é difícil, mas é
difícil pra mim também, entendeu? Né, é complicado você aceitar uma
coisa e você não querer que fosse dessa forma, entendeu [...] Porque as
pessoas não me vêem como mulher. Muitas.
Amanda afirma sempre ter tido a sorte de que os meninos
com quem se relacionou a viam como menina. Ela costuma dizer que eles enxergam sua alma. Ou seja, o que a maioria das
pessoas não faz, quando consideram os resquícios de traços
convencionalmente atribuídos ao masculino e não reconhecem sua identidade de mulher. Apesar de “a respeitarem”, ela
sentia que os namorados tinham “um certo bloqueio”; não andavam com ela de mãos dadas, “não tinha aquele agarramento” em público. Segundo Amanda, eles chegavam a sair juntos,
porém, enquanto lanchávamos numa pastelaria, disse-me ela:
“era como eu e você aqui”. A existência desse “bloqueio”, que,
a despeito da tentativa de encobri-lo a fim de não “machucar”
Amanda, transpareceria vergonha, era a principal razão pela
qual ela rompia com os relacionamentos. Ela atribui esse “bloqueio”, quer dizer, a ausência de abertura para manifestação
de afeto em espaços públicos, ao fato de não passar “despercebida”, como uma cismulher. Segundo Amanda, sua revolta é
essa, e o planejamento de todas as cirurgias plásticas antes da
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cirurgia de resignação sexual visava justamente fazer com que
ela passasse despercebida. Quando menciona uma trans que é
“é superfeminina, perfeita” e que ainda “nem operou”, ela revela nunca ter tido “esse prazer de um homem não perceber”.
Como já apontei anteriormente, é recorrente confundirem
Amanda na rua com uma travesti. Enquanto, diz ela, os namorados sempre a “respeitaram”, nas baladas, em bares, ela recebe
“propostas”; perguntam-lhe se ela é ativa. Segundo Amanda,
isso só ocorre porque a confundem com uma travesti, uma vez
que transexual, na sua concepção, enquanto mulher, não poderia “usar o pênis”. Essa questão é melhor esboçada no trecho
que segue – sendo todo ele esclarecedor – quando, coincidentemente, passa um rapaz na rua durante a nossa conversa que a
interpela sexualmente.
– É um rapaz que tava chamando lá do outro lado, tu acredita? Ele passou aqui. Característica de paquera com travesti. [...] A paquera com
travesti é assim: o homem passa, se interessa, aí depois ou ele dá um sinal pra travesti seguir ele, pra ninguém perceber nada, ou então ele fica
de longe dando sinal. Não chega “e aí, posso lhe conhecer?”... Sabe? Porque tem vergonha das pessoas verem. Aí fica nessa. Então até nisso você
vê a diferença, né? Ninguém me vê como mulher [risos]. É incrível. [...]
Mas se eu souber que, por exemplo, eu tou ficando com um rapaz; se eu
souber que ele já ficou com travesti, pra mim acaba o tesão na hora. [...]
Não gosto. Porque pra mim ele deixa de ser hétero. [...] Eu não vejo travesti como mulher. Eu vejo como... Um gay, vestido de mulher. Não consigo ver ela como mulher. Porque se tem um pênis, e usa. É o que? Um
homem. É um homem. Não deixa de ser. Um homossexual. A única diferença é que se veste de mulher. Que é pra atrair os clientes, né, fazer programa. A verdade é essa. Não é mulher. Não é mulher, não se comporta
como mulher... [...]Ela se veste de mulher que é pra atrair os clientes, as
travestis. Porque não é mais pra nada.
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(Entrevistador) – Sua amiga [travesti] fazia programa também?
– Não, mas assim... É cabeleleira, mas... É dada. Se um rapaz paquerar
ela, ela já saía, não pensava duas vezes. Então não deixa de ser programa [pausa]. Sabe aqueles gays que não pode ver homem, que vai? É a
mesma coisa, não tem diferença. É um gay vestido de mulher, uma travesti. [...] É daí que vem a importância de passar despercebida, porque
não passa por esses constrangimentos, do namorado ter vergonha de
sair, de um rapaz chegar até a você e pergunta se pode conhecer.
Em primeiro lugar, pode-se notar que Amanda compreende que identificar alguém previamente é fundamental para a
definição da interação social. Deste modo, os subterfúgios que
habitam um modo específico de flerte são compreendidos pela
experiência de vergonha e estigma provocada no homem que se
interessa sexualmente por travestis. Esse tipo de abordagem a
constrange, uma vez que aproximar-se deste ou daquele modo
corresponde justamente a uma identificação prévia, revelando
como Amanda é vista pelas pessoas em geral.
Diferentemente do homem que se relaciona sexualmente
apenas com mulheres, seja cismulher ou transexual, aquele que
deseja travestis é visto por Amanda como homossexual, pois
travestis, para ela, são gays que se vestem de mulher. Ou seja,
o que definirá o gênero não são apenas a vestimenta e mesmo
as modificações corporais que o sujeito acionará, mas o comportamento adotado por este sujeito, certa conduta adequada,
além da prática sexual prescrita conforme o gênero. Certamente Amanda não considera mulher uma trans que “faz uso” do
pênis. Por fim, para ela, enquanto a transexual “genuinamente” sente-se mulher, a travesti apenas se veste de, lançando
mão desta estratégia para conquistar os homens.
A vontade de Amanda de passar despercebida na verdade seria, nesse contexto, ser percebida como mulher. E ser percebida
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como uma mulher “convencional” seria não chamar atenção
por conta de uma possível ambiguidade de gênero – ou seja,
não ser estranhada – uma vez que o gênero, aparentemente livre de instabilidades, é o que confere inteligibilidade cultural
aos corpos na nossa sociedade. (BUTLER, 2001) A possibilidade de reconhecer em um corpo um determinado gênero é o que
o torna este corpo viável, compreensível, o que faz dele sujeito.
Caso contrário, este ser cujo gênero não me é possível definir,
povoaria o que Butler (2001) chama de zonas inóspitas da vida
social, que seria a condição abjeta, a própria negação da humanidade deste ser.
O que percebemos nesta relação conflituosa entre Amanda e
as travestis, e o rechaço dela às últimas, é que, conforme escreve Souza (2003, p. 25):
A nossa identidade, diz [Charles] Taylor, é formada pelas identificações e
escolhas providas por este pano de fundo valorativo seja por afinidade,
seja por oposição a elas. [...] Identidade é sempre uma matéria que tem a
ver com ‘redes de interlocução.’ [...]
Assim, no caso de Amanda, identificar-se como transexual
é opor-se à travesti e ao gay afeminado, enquanto assimila-se,
mira-se na mulher, ou melhor, em um determinado modelo de
mulher. Possivelmente relacionar-se com uma travesti envolveu para ela um duplo aprendizado: transformar seu corpo para
assemelhar-se a uma mulher (através da hormonoterapia, por
exemplo), e aprender justamente o tipo de comportamento que
não deveria adotar para ser reconhecida como uma mulher.
A importância de um comportamento convencionalmente
de mulher também aparece nos relatos de Camille, quando ela
afirma que a coordenadora pedagógica do colégio onde estudava a rechaçava por ela ser espalhafatosa, mas que hoje, diz Ca-
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mille: “ela super me admira. Ela disse: ‘era isso que eu queria’”.
Mais adiante, Camille nos conta:
– Mas depois com um tempo... Tipo, se você quer ser vista como mulher,
se comporte igual a ela, né? Antes eu acho que... Eu não era baixo-astral, mas eu tinha muita mão, muita gíria, muita coisa assim, sabe?
Aquelas coisas assim inventava muita coisa [...]Eu inventava muito
apelido, essas coisas. [pausa] Aí eu tou me policiando cada vez mais pra
parar de gesticular, que é um problema que eu tenho muito grande. Gesticulo demais, gesticulo demais... Entendeu? [...] Eu acho que me entrega muito.
Como nos parece óbvio, não basta, assim, parecer uma mulher, em termos de contornos corporais, indumentárias etc.;
mais que isso, é fundamental comportar-se como uma mulher.
Para isso, Camille se auto-avalia; examina sua estilística gestual a fim de, conformando-a a determinado padrão de feminilidade, seja projetada uma avaliação alheia que contemple a sua
identidade pessoal.
Ao mesmo tempo em que ressaltam ter nascido mulher, 2
pensando o gênero como algo inato e, neste discurso, descolado da genitália, reconhecem que há toda uma dimensão de
aprendizado para incorporar o lugar de mulher. Caso Amanda
adotasse o comportamento que considera típico de uma travesti, ainda que tivesse um corpo que vulgarmente é associado ao corpo de uma mulher, ela jamais seria considerada uma
mulher. Porque não basta ser “feminina”; femininos, como ela
aponta, muitos gays já são. Mais que isso, é urgente ser identificada como mulher. Para ela, não ter sua identidade reconhecida é como viver sem ser vista. Conforme Charles Taylor (1994
apud Souza, 2003, p. 35):
2
Amanda, por exemplo,
rejeita a expressão
“mudança de sexo”, e
reivindica o termo
“correção de sexo”.
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Não reconhecimento e falso reconhecimento podem infligir mal, podem
ser uma forma de opressão, aprisionando alguém em uma forma de vida
redutora, distorcida e falsa [...] Ele [o não reconhecimento] pode infligir
feridas graves a alguém, atingindo as suas vítimas com mutiladora auto-imagem depreciativa.
É assim que podemos compreender quando Amanda relata
que costuma se referir à transexualidade como “a pior sexualidade”. E ela o diz após falar da ausência de reconhecimento
social de quem ela é. Quando fala em “pior”, ela traça implicitamente uma comparação com outras sexualidades, sobretudo não hegemônicas. Se o gay e a travesti, por exemplo, ao seu
entender, costumam ser reconhecidos como tais, na sua experiência como transexual, tal reconhecimento, essa certeza de
existir “autenticamente”, algo que só o olhar do outro poderia
conferir, lhe é negada.
Linda afirma que no início da sua transformação se considerava travesti, mas como escondia o seu órgão genital e descobriu que quem o faz é transexual, “passou para esse lado”, como
ela diz – reconhecendo identidade menos como essência e mais
como posição. Travesti para ela é alguém que mostra o sexo, que
deseja penetrar. Segundo a mesma, ela o fazia apenas por questão profissional. Tanto Linda quanto as outras duas entrevistadas afirmaram que escondem suas genitálias durante a relação
sexual; em geral a cobrem com toalha, calcinha ou lençol. Podemos então perceber elencado um dos aspectos do que Berenice Bento (2006) chama de “dispositivo da transexualidade”;
a saber, o rechaço por sua própria genitália. Seria esse o modelo hegemônico de transexualidade, o modelo biomédico, que
tem como senão o principal, um dos principais postulados o
critério de desgenitalização prévia. (PIÑEROBA, 2008). Como
um dispositivo, que, no sentido utilizado por Foucault (1984),
compreende um conjunto heterogêneo de enunciados cientí-
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ficos, discursos, instituições, ele funciona a fim de estabelecer
regularidades, permanências e reiterações, implicando, portanto, em relações de poder; em regimes de inclusão e exclusão.
É deste modo que, na definição de uma identidade, supõem-se
determinadas práticas, modos de agir e pensar apropriados.
Se contrapondo à amiga travesti, que segundo ela gosta de
ter pênis, de usá-lo sexualmente, Amanda diz que:
Nunca usei [o pênis, sexualmente]. Pra você ter ideia eu não fico nua na
frente de ninguém. [...] Pra fazer sexo eu tenho que tá de calcinha no
mínimo. Pra ele não ver, não ter contato, [...] nem sonhar que tem. Porque eu quero que ele me veja como mulher. Eu quero que ele, meu parceiro, esqueça que eu tenho isso em mim. Porque pra mim é um corpo
estranho. [pausa] É como se não fosse meu, sabe? É como se não viesse
de mim.
É por isso que, quando rapazes propõem que ela seja “ativa” na relação sexual, ela entende que ele a vê como travesti,
e não como mulher. De modo análogo, o rapaz que sente desejo por travestis, é visto por ela como homossexual, pois ele
estaria desejando quem supostamente faz uso sexual do pênis,
e que, portanto, não é mais que gay. Talvez a importância em
que consiste a cirurgia de transgenitalização para Amanda seja
mais uma forma possível de afastar-se materialmente da figura
da travesti.
Também para Camille, que reforça a sinonímia entre genitalização e gênero (PIÑEROBA, 2008), travesti é alguém que
deseja mudar apenas os seus documentos, mas não o seu gênero – uma vez que estaria confortável com a sua genitália. Finalmente, Linda argumenta igualmente a favor de uma diferença
irremovível entre transexual e travesti, sendo que a última
pensaria e agiria como homem. Linda, aliás, relata o caso de
uma amiga travesti, que, segundo ela, fez a cirurgia de trans-
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genitalização “por vaidade”, apenas para dizer que tem uma vagina. Ou seja, enquanto as transexuais genuinamente desejariam ter uma vagina, a travesti que acede à redesignação sexual
o faria por uma ostentação sem consistência. Essa ostentação,
por sua vez, só teria lugar quando se compreende a “neovagina”
como uma tecnologia genital, que implica numa forma de capital e empoderamento daquelas que a têm.
Últ imas considerações
Conforme indicamos anteriormente, existem diversos atalhos
para se chegar ao corpo que se deseja. É claro que em alguma
medida os resultados variam segundo o procedimento adotado, assim como os riscos e os custos, que são maiores ou menores de acordo com a intervenção que é feita.
Sentir-se-ia Camille “super incompleta”, como ela diz, caso
tivesse renda bastante para financiar um implante de seios?
Estaria Amanda planejando a curto prazo uma vaginoplastia
na Tailândia se pertencesse a uma classe social menos abastada
e caso não contasse com o apoio da mãe – responsável monetariamente pelas suas cirurgias – nesta empreitada? Teria ela
se submetido a quatro cirurgias plásticas caso não fosse constantemente vista pelas pessoas como travesti? A “correção da
aparência” através da técnica cirúrgica é acionada na esperança
de eliminar o hibridismo masculino/feminino do seu corpo
(e rosto), na intenção de que de fato aconteça a somatização da
sua subjetividade feminina, que o seu corpo a apresente segundo sua identidade de mulher. Nesse sentido, as convenções
de como deve ser o corpo de uma mulher, e como é o corpo de
uma mulher desejada, são parâmetros importantes nas transformações corporais das transexuais. Isso foi visto, por exemplo, no caso de Linda, que não se interessou em aplicar silicone
nos quadris, pois julgou “desnecessário”, relacionando aqui à
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“necessidade” ou à falta de desejo do seu “público-alvo”, os homens europeus e potenciais clientes.
Por quanto mais tempo, inicialmente, Linda teria consumido hormônio feminino caso os hormônios na Europa não
custassem tão caro e caso ela não tivesse se tornado prostituta? Essas perguntas, cujos fins são meramente retóricos, visam
apenas elucidar como conhecer cada biografia torna-se componente fundamental para compreender as motivações das transformações corporais. O transformar-se deste ou daquele modo,
neste ou naquele período, pode variar bastante (ser constrangido ou não), a depender dos recursos econômicos disponíveis.
Seja como for, apenas a ingestão de hormônio é comum entre
as três entrevistadas, marcando o início do itinerário de modificações corporais de cada uma delas.
Quando tratamos da “barra da questão amorosa” percebe-se
que é através dos seus relacionamentos afetivo-sexuais, da forma como os homens com quem se relacionam interagem com
elas, que as transexuais com quem trabalhei têm acesso privilegiado à visão geral que é lançada sobre elas pela sociedade.
Parece-me que é um dos aspectos da sua vida em que se torna
mais expressivo e claro o seu desejo de ser reconhecida como
mulher, e os desafios enfrentados, como efeitos das próprias
prerrogativas de que desfrutam aqueles e aquelas cujo gênero
alinha-se à genitália de nascimento. Em Kulick (2008) observa-se que, quando o “armário”, o típico caráter de privacidade que
sustenta a relação travesti/namorado é rompido, elas se sentem
mais mulheres (ou, nas palavras de uma delas: “mulheríssima”). Quer dizer, as travestis compreendem que a aparente ausência de vergonha por parte dos namorados de assumi-las diz
respeito a uma superada ou menor ambiguidade de gênero; em
outros termos, significa maior êxito na transformação. Nota-se
com os depoimentos que a afirmação da identidade de mulher
transexual está atrelada tanto aos modelos culturais vigentes
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de mulher quanto a certas concepções do que é ser travesti – as
quais serão fundamentais para a produção performática de mulher transexual. Nesse estudo, a temática da identidade tem se
mostrado não apenas grave para essas vidas como necessariamente excludentes, uma vez que repousa em modelos bastante
rígidos, como o que é ser transexual e o que é ser travesti. É justamente a partir de restrições e estabelecimento de fronteiras
entre essas identidades que as entrevistadas afirmam sua transexualidade. Assim, recorrer à travesti mostrou-se fundamental para, opondo-se a ela, esboçar uma vivência de gênero mais
próxima ao que se convencionou entender por mulher.
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