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Fazer-se mulher transexual: mediações e contratempos

LOPES, Maycon. Fazer-se mulher transexual: mediações e contratempos. In: COLLING, Leandro; THÜRLER, Djalma. (Orgs.). Estudos e políticas do CUS: Grupo de Pesquisa Cultura e Sexualidade. Salvador: EDUFBA, 2013, p. 287-311.

A partir de suas histórias de vida, exploro neste estudo os itinerários e práticas de transformação corporal adotadas por três mulheres transexuais, bem como os sentidos, expectativas e repercussões deste processo. Para a produção dos “novos” corpos das colaboradoras desta investigação, implicaram suas redes de sociabilidade, sobretudo no que tange aos procedimentos técnicos adotados, seus recursos financeiros, que constrangem ou alargam as possibilidades de escolha entre as “possíveis” intervenções, e as convenções de gênero e desejo à baila. Busco ainda compreender como estas transexuais se posicionam em relação a suas identidades, e também os conflitos e tensões inerentes à aspiração de serem reconhecidas socialmente como mulheres. Neste sentido, é possível perceber ao longo do trabalho, como certas concepções acerca do que é “ser travesti” importam para a definição de mulher transexual, de modo que nas suas narrativas, ainda que inconscientemente, elas lançam mão da estratégia de negar a identidade travesti para, então, constituir-se mulher. Fica também evidente no texto como, em verdade, este recurso integra todo um empenho de inscrever sua subjetividade na norma heterossexual, que pressupõe uma linha coerente entre sexo, gênero, desejo e prática sexual. Circunscrever suas experiências na heteronormatividade acaba por tornar-se pauta-chave na luta cotidiana pelo reconhecimento social almejado por essas mulheres. Finalmente, observo como suas relações afetivo-sexuais ocupam lugar de destaque na recorrente avaliação por elas operada a respeito de alcançarem ou não êxito na urgente demanda de serem identificadas como mulheres. É quando, no mais íntimo (mas também público) projeto de fazer-se mulher, a ausência de reconhecimento pode ganhar contornos particularmente dramáticos. -- Working from life stories, I explore in this study the itinerary and practices of bodily transformation adopted by three transsexual women, as well as the meanings, expectations, and repercussions of this process. The production of “new” bodies for the collaborators in this investigation, implied their social networks, especially in respect of the technical procedures adopted and their financial resources that restricted or broadened the possibilities of choice amongst the “possible” interventions, and the conventions of gender and desire, there present. Further, I seek to understand how these transsexuals position themselves in relation to their identity, and also the conflicts and tensions inherent to the aspiration of being socially recognized as women. In this sense, it is possible to perceive throughout the study, how certain conceptions around what it is to “be transvestite” matter for the definition of transsexual women, in such a way that in their narratives, even if unconsciously, they seek to deny the trasvesti identity, to subsequently construct themselves as women. It also becomes evident in the text how, in truth, this use integrates an effort to inscribe their subjectivity in a heterosexual norm, that presupposes a coherent line between sex, gender, desire, and sexual practice. In circumscribing their experiences within heteronomativity, it ends up becoming the corner-stone in the daily fight for social recognition desired by these women. Finally, I observe how their affective-sexual relations occupy a central position in the recurrent evaluation operated by them in respect of the achievement or not of the urgent need to be identified as women. This is when, in the most intimate (but also in the public) project of making oneself-woman, the absence of recognition can assume particularly dramatic forms.

© 2013 by autores. Direitos para esta edição cedidos à edufba. Feito o depósito legal. coor denação editor ial Flávia Goulart Mota Garcia Rosa r evisão Tatiana de Almeida Santos nor malização Taise Oliveira Santos diagr amação Rodrigo Oyarzabal Schlabitz arte da capa Caio Telles Ficha Catalográfica: Fábio Andrade Gomes - CRB-5/1513 Estudos e política do CUS - Grupo de Pesquida Cultura e Sexualidade/Leandro Colling e Djalma Thürler (organizadores). - Salvador: Eduf ba, 2013. 371 p. - (Coleção CULT; n. 15) ISBN 978-85-232-1107-3 1. Sexualidade. 2. Identidade de Gênero. 3. Homossexuais. 4. Cultura. 5. Estudos queer. I. Colling, Leandro. II. Thürler, Djalma. Cdd: 306.76 editor a filiada à: edufba Rua Barão de Jeremoabo, s/n – Campus de Ondina, Salvador – Bahia cep 40170 115 tel/fax (71) 3283-6164 www.eduf ba.uf ba.br eduf ba@uf ba.br F a zer-se mulher tr anse xual: mediaçõ es e contr atempos Maycon Lopes* A partir de suas histórias de vida, exploro neste estudo os itinerários e práticas de transformação corporal adotadas por três mulheres transexuais, bem como os sentidos, expectativas e repercussões deste processo. Para a produção dos “novos” corpos das colaboradoras desta investigação, implicaram suas redes de sociabilidade, sobretudo no que tange aos procedimentos técnicos adotados, seus recursos financeiros, que constrangem ou alargam as possibilidades de escolha entre as “possíveis” intervenções, e as convenções de gênero e desejo à baila. Busco ainda compreender como estas transexuais se posicionam em relação a suas identida- * Graduado e Mestrando em Ciências Sociais (UFBA). E-mail: [email protected] fa zer- se mu l her t r a nse x ua l 287 des, e também os conf litos e tensões inerentes à aspiração de serem reconhecidas socialmente como mulheres. Neste sentido, é possível perceber, ao longo do trabalho, como certas concepções acerca do que é “ser travesti” importam para a definição de mulher transexual, de modo que, nas suas narrativas, ainda que inconscientemente, elas lançam mão da estratégia de negar a identidade travesti para, então, constituir-se como mulher. Fica também evidente no texto como, em verdade, este recurso integra todo um empenho de inscrever sua subjetividade na norma heterossexual, que pressupõe uma linha coerente entre sexo, gênero, desejo e prática sexual. (BUTLER, 2003) Circunscrever suas experiências na heteronormatividade acaba por tornar-se pauta-chave na luta cotidiana pelo reconhecimento social almejado por essas mulheres. Finalmente, observo como as suas relações afetivo-sexuais ocupam lugar de destaque na recorrente avaliação por elas operada a respeito de alcançarem ou não êxito na urgente demanda de serem identificadas como mulheres. É quando, no mais íntimo (mas também público) projeto de fazer-se mulher, a ausência de reconhecimento pode ganhar contornos particularmente dramáticos. Este trabalho insere-se em um projeto de pesquisa mais amplo, o PopTrans, dos quais participam alguns pesquisadores do CUS, e que é desenvolvido pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISC) e pelo Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC), ambos da Universidade Federal da Bahia. O PopTrans tem por intuito investigar, dentre outros aspectos que concernem à população travesti e transexual de Salvador, as relações entre as transformações corporais e a produção dessas identidades. 288 m aycon lopes Conhecendo as colaboradoras Esta pesquisa – qualitativa, de base etnográfica – privilegiou basicamente as histórias de vida. Nos encontros para a realização das entrevistas em profundidade, fui munido de um roteiro, elaborado previamente com alguns tópicos importantes para cumprir os objetivos do estudo. As entrevistas foram gravadas após a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. Para produzir também uma maior familiaridade com o cotidiano de travestis e transexuais, alguns encontros do movimento social foram acompanhados, com registro em diário de campo. A minha primeira imersão no campo, e as primeiras notas do meu diário, são oriundas do II Encontro Estadual de Travestis e Transexuais da Bahia. Foi nele que vi Camille, 1 a mais jovem das minhas entrevistadas. Ela “mirava” a carteira de identidade, já com o nome social (e então civil), de uma transexual operada. Quando a vi olhando o documento e dizendo “meu sonho!”, pensei de pronto: quero conhecê-la! Meses depois entrei em contato com ela pelo facebook, e em pouco tempo nos encontramos pessoalmente. Camille reside na periferia de Salvador, é estudante universitária e desenvolve estágio em um órgão do Governo do Estado da Bahia. Já Linda, de 40 anos, que trabalha como arquivista em um escritório de contabilidade, conheci no Simpósio Nacional de Políticas para Transexuais da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). Ela é ativista desde a adolescência, quando se considerava gay, e está sempre presente na agenda do movimento. Na ocasião, peguei o seu contato para que ela, dias depois, pudesse me contar sua história de vida, na sede do Grupo Gay da Bahia, no Pelourinho, que fica próxima à sua residência, no Centro Histórico de Salvador. Por fim, Amanda, de 25 anos, conheci através de um rapaz que assistira à minha apresentação sobre os primeiros resultados da 1 Todos os nomes das informantes são fictícios. fa zer- se mu l her t r a nse x ua l 289 pesquisa em um seminário da universidade. Ele havia me falado de uma amiga cujo itinerário de cirurgias plásticas vem acompanhando. Troquei algumas mensagens com ela através do seu endereço eletrônico e agendei uma visita. Fui a Feira de Santana, minha terra natal e cidade onde ela reside, para encontrá-la. Foi em uma lanchonete do centro da cidade, próximo ao local onde ela trabalha, a seu convite e com sua autorização, que ouvi sua história de vida. Depois continuamos a conversar enquanto ela me conduzia no seu veículo até a minha casa. Amanda trabalha na empresa da sua mãe e também é estudante universitária. No entanto, suspendeu temporariamente os estudos por conta do preconceito que sofria na instituição de ensino. ( Tra n s) f o r m a ç õ e s c o r p o ra i s Conforme aponta a literatura (PELÚCIO, 2005; BENEDETTI, 2005), observamos, com o desenrolar da pesquisa, que uma das primeiras etapas no processo de transformação corporal de travestis e transexuais consiste no uso de hormônio feminino. Existem diversos caminhos pelos quais as pessoas iniciam a ingestão dessa substância química. Ela pode ocorrer, por exemplo, através de uma amiga em quem se observa certas mudanças corporais – suscitando então o questionamento sobre como elas estão conseguindo tais (desejáveis) efeitos. É quando elas lhes indicam a fórmula e inicia-se o processo de ingestão do hormônio. Foi esse o caso de Linda, que narrou: De repente eu vi Sarah [sua amiga, considerada por ela como ‘ ídolo’] mudando, mudando, mudando... eu dizia ‘nossa, Sarah está mudando... mas Sarah, me diga como...’ Aí Sarah me disse assim: ‘eu tou tomando hormônio’. Aí ela me deu nome: Androcur, Gestadinona, Microvlar, e eu fiz um coquetel de hormônio e fui tomando. E tomava também em comprimido e tomava também em injeção. 290 m aycon lopes Aos 40 anos atualmente, Linda começou a ingestão de hormônio quando ainda era “metá-metá”, ou, como ela esclarece: metade menino, metade menina. Possivelmente o hormônio participou de modo ativo dessa configuração corporal dualística da perspectiva convencional do gênero, o “metá-metá”. Durante o dia, ocupando a função de servidor público, era Lindoval, um rapaz de cabelo preso, e cujos peitos, que àquela altura já começavam a despontar, eram disfarçados por uma faixa com a qual os enlaçava. Era assim que Lindoval encobria a Lindinete que ganhava vida à noite, como também era conhecida por onde quer que andasse na cidade de Salvador. Pouco mais tarde, quando deixou o emprego e partiu para a Europa, a princípio com a ideia de ser cuidadora de idosos, decidiu prostituir-se, sendo batizada pelo nome de Linda, como até hoje é chamada. Linda era Linda Birchler, sobrenome que adquiriu, enquanto homem, ao forjar união civil com uma suíça – acordo firmado para fins exclusivos de visto. Era como “Linda Birchler, travesti afro-brazilian, grosso busto, grosso pênis” que ela ocupava os anúncios de jornais. Nesse momento, ela, que também tem silicone nos quadris, suspendeu o uso de hormônios e optou pelo silicone industrial nos seios – aplicado na Europa por uma bombadeira brasileira que vivia há anos na Itália. Essa bombadeira – em geral travesti que aplica silicones em outras – “tinha nome”, ou seja, boa reputação entre seus pares, o que oferecia segurança à Linda. Além de o hormônio custar muito mais caro na Europa e atrapalhar o seu alto fluxo de trabalho, uma vez que reduz a libido, não valia a pena o investimento, pois o hormônio é, segundo ela, “expelido na ejaculação”. Já o silicone, não; o máximo que pode acontecer, segundo Linda, é descer um pouco para a perna ou para o pé, como aconteceu com ela. Após a injeção do silicone industrial, eram recomendados 15 dias de resguardo. No entanto, com a necessidade de pagar diá- fa zer- se mu l her t r a nse x ua l 291 ria à cafetina, o dinheiro de Linda acabou e ela precisou retomar o trabalho 10 dias após a aplicação do silicone. Em um episódio em que foi perseguida por marroquinos na Suíça, que acusavam as travestis de serem culpadas da perseguição de que eles eram alvo, ao supostamente atraírem a atenção dos policiais para os arredores, Linda sofreu uma queda que provocou o deslocamento de parte do silicone que havia aplicado nos seios para o pé. Instalado entre a carne e o osso, não foi possível ser removido daquele local. Com esta sequela, o seu pé fica inchado durante o tempo frio. Outra complicação relacionada ao uso do silicone aconteceu na última vez em que Linda aplicou a substância, já no Brasil, aos 30 anos, ela relata que quase morre: Porque eu comecei a sentir falta de ar, porque silicone colocando aqui nos seios, né, tem o perigo de pegar a veia do coração. Aí eu comecei a ficar pálida.[...] Só faltava acho que dois dedos pra colocar, aí eu disse: ‘não, chega, chega, chega’. Mas também eu sofri, eu sofri... Fiquei duas semanas toda amarrada. E não queria cicatrizar, nossa, e era remédio em cima de remédio, remédio, remédio em cima de remédio. E quando tirou isso aqui tava tudo em carne viva. [...] Nossa, é um sofrimento, eu não conseguia dormir,[...] me contorcendo de dor. Retomando o uso de hormônios no Brasil, interrompeu por recomendação médica, pois a substância estava dilatando os seus vasos. No entanto, reiniciou o uso, ainda com acompanhamento médico – que considera necessário para tomar hormônio – com fins à sua redesignação sexual. Linda está inscrita no Tratamento Fora de Domicílio (TFD) do Processo Transexualizador do Sistema Único de Saúde. Linda disse que não colocou silicone nas nádegas porque achou que “não havia necessidade”, uma vez que os homens da Europa gostavam de travestis e transexuais magras, com peito 292 m aycon lopes grande e sem bunda. Por conta disso, preferiu não “se encher de silicone”. Neste sentido, percebemos que um importante vetor que orientou a modificação corporal de Linda foi o padrão de beleza em voga entre os seus clientes. Atraí-los sexualmente é também um modo de se sentir gratificada. Foi também através de uma amiga travesti, que Amanda, de 25 anos, começou a tomar hormônio feminino. Amanda nos conta: ‘Ela falou: ‘tome isso aqui, que vai ser bom pra você’. Aí lá vai eu [risos]. Sem saber nem o que era aquilo, comecei a tomar. Aí, pronto, meu peito começou a crescer, eu comecei a ficar feminina, e gostando daquilo. Eu falei ‘gente, é isso, é isso que eu quero pra mim’”. Mais adiante, Amanda continua: Acho que ela ficou com medo de me assustar. Ela falou assim ‘toma isso aqui, que isso aí vai dar perna. Você, que tá malhando’. Porque a gente malhava juntas. ‘Vai lhe dar perna, vai lhe dar bunda... Então tome, que é bom’. Só que aí vi meu peito crescendo, mas aí, né, nem liguei. Depois de ver seu peito ganhar forma, Amanda perguntou à amiga “o que era aquilo”. Ela respondeu e questionou se Amanda ia parar. Não, a amiga tinha acertado; era isso que ela queria. O interessante é que foi essa mesma amiga que, antes de oferecer-lhe hormônio, lhe denominou de transexual pela primeira vez, sendo, portanto, fundamental nos rumos anatômicos e identitários tomados por Amanda. Finalmente, Camille, de 19 anos, conheceu o hormônio feminino através da internet. Buscou quais os hormônios indicados, os efeitos colaterais, e começou a tomar comprimidos. Se no início foi sem acompanhamento especializado, atualmente quem lhe aplica as injeções e a aconselha é uma amiga fa zer- se mu l her t r a nse x ua l 293 enfermeira. Embora, segundo ela, excesso de hormônio aumente a propensão ao câncer, o que tomava em três meses ela passou a tomar em 15 dias e, assim, agora, em um mês, está tomando o que outrora tomava em seis. Para ela, assim como para os seus pares, o hormônio marca uma espécie de “pontapé inicial” rumo às transformações corporais vindouras. Camille observa que os pelos estão mais finos, que os peitos cresceram, e que: Eu era lisa, lisa. Quando eu comecei a ver os peitinho assim, aquela coisa bem discreta, eu disse “ai, nossa, tá fazendo efeito”, então veio uma esperança, né. Mas, nossa... pra chegar onde eu quero falta muito ainda. Me sinto super incompleta, eu tou uma semi-lisa ainda. No momento em que Camille interrompeu o uso dos comprimidos, sob conselho da amiga, que alegou risco a desenvolver câncer, ela notou que os pelos da perna, após a depilação com cera, passaram a crescer mais rápido, e que ocasionalmente nascem uns pelos na face, que são tirados com uma pinça. Como afirma Silva (2007, p. 155), “a natureza reflui sempre, a exigir um constante combate”. Camille aumentou a dose, retomando a hormonoterapia através de injeção. Além dos efeitos sobre a libido, todas elas conhecem os efeitos dos hormônios sobre o sistema nervoso. Amanda descreve sua repercussão a partir do hábito de “dar patada”, ou seja, de ser ríspida com as pessoas, ou “pavio curto”, intolerante. Para ela, a imagem perfeita desses efeitos é a TPM. Assim – explica – é como se o consumo de hormônios a fizesse viver sempre de TPM, uma vez que este se configura como um período em que a mulher passa por uma alta taxa de hormônios. Camille corrobora, argumentando que, se antes o hormônio lhe provocava náusea, agora ele a deixa “muito estressada, muito sensível”. 294 m aycon lopes Ela associa seus efeitos sobre o “sistema nervoso” com excesso de sentimentalismo e oscilação de humor: Às vezes aqui eu tou rindo, mas daqui a pouco eu posso tá chorando, entendeu? Muito instável, assim... Qualquer coisa me abala, qualquer coisinha que você fala, assim, sabe, que afete assim, eu acho que me abala muito... Remetendo-se ao início da sua trajetória de utilização de hormônio, Linda argumenta que os seus efeitos sobre a psique são tão devastadores, em termos de deixá-la extremamente nervosa e deprimida, que até mesmo “nojo” de homem chegava a sentir. Segundo ela, seu comportamento se alterava radicalmente, e isso se deve ao fato de os hormônios, além de serem muito fortes, são consumidos por conta própria. Hoje, ela acredita que o acompanhamento de um especialista seja fundamental; um médico que recomende o hormônio adequado a ser utilizado. Diferentemente de Linda e Camille, Amanda já se submeteu a diversas cirurgias plásticas; no osso frontal, pomo de Adão, prótese de seios e lipoescultura. Todas com um só médico (particular), que lhe indicou as cirurgias necessárias a fim de “corrigir” seus traços masculinos. Quando a encontrei, ela ainda estava com umas faixas no tórax, por conta da sua última cirurgia – a lipoescultura, que fez com a intenção de afinar a cintura, para que o quadril sobressaísse. Embora, como ela diz, desde nova o seu “bumbum” tenha forma de menina, Amanda não tinha quadril, e rejeitou a ideia de aplicar silicone naquele local. Segundo ela, as travestis colocam silicone industrial, “e aí apodrece”. A cada cirurgia, Amanda relata: Eu ficava naquela expectativa, né, de mudança. De sair da clínica... Ave, Maria, as pessoas não comentarem nada, de ser uma mulher nor- fa zer- se mu l her t r a nse x ua l 295 mal na rua, mas aí, meu filho, quando eu ia pra rua, e... e era a mesma coisa, aquilo era uma decepção. Eu ficava: ‘Meu Deus, gastei dinheiro à toa’. O que vinha na cabeça era isso [pausa]. É decepção total. [pausa] O que “assombra” Amanda é a recorrência em que é identificada como travesti nas ruas. A travesti seria, para ela, a imitação grotesca da mulher e representaria, portanto, o fracasso no seu projeto em assimilar-se à mulher. Como na história de Linda, a mãe de Amanda, sem conhecimento prévio, deparou-se no banheiro com seus seios maiores, por conta do uso do hormônio. A ingestão dessa substância, ao transformar seus corpos, precipitou na família uma discussão acerca da identidade de gênero. Ao surpreender-se com os seios de Amanda em crescimento, ela nos conta: –‘Porque você tá botando peito, ficando assim? Você quer virar travesti?’ Porque ela tinha medo de eu ser travesti, porque ela tem aquela imagem de prostituição, pessoas baixo-astral, porque travesti é assim. Num é? [pausa] É um povo baixo-astral, aquele comportamento de chamar atenção, exagerado. Você já teve contatos com travestis? (Entrevistador) – Tive, sim. – Até porque quando eu comecei amizade com essa travesti eu não conseguia nem sair com ela, eu tinha vergonha de sair com ela. Porque era aquela coisa. Olhava se um homem passasse, abria a blusa e mostrava o peito. Era aquela coisa assim... que eu tinha até vergonha de andar. Eu falei: ‘gente, ainda bem, graças a Deus eu tenho certeza que eu não sou travesti’. Porque... Isso aí não tem nada a ver comigo. Eu sou uma mulher. Só tenho... uma coisinha pra corrigir. Amanda explicou à sua mãe que não era travesti, e sim mulher. O primeiro momento foi de não aceitação. Porém um dia 296 m aycon lopes a mãe a viu nua e, após assustar-se com o corpo da filha, sua suposta incongruência – aqui uma referência ao gênero como uma totalidade em que uma parte deve responder à outra – perguntou como ela ficava para se depilar; se ela ficava nua e se não era constrangedor. Ela respondeu que ficava de calcinha. Foi quando, de repente, sua mãe disse: “é, isso aí você tem que tirar, porque isso aí não tem nada a ver com o seu corpo. Não tem nada a ver. Agora eu tou entendendo porque você quer operar”. Amanda qualifica o “isso”, o pênis, como um “corpo estranho”, e recusa-se a falar em mudança de sexo. Ela prefere, acredita que seja mais honesto, falar em correção de sexo. A cirurgia de redesignação sexual foi planejada por Amanda como seu “último passo”. Antes, priorizou a aparência, porque para ela não compensava ter uma vagina e não ser reconhecida como mulher. Então investiu primeiramente na transformação das suas feições – o que, segundo a própria, “de nada adiantou”. Agora, quando “não tem mais o que fazer”, Amanda acredita que precisa se conformar com essa limitação. Talvez a limitação seja também do bisturi, ou do próprio corpo, que é maleável, mas só até certo ponto. Quanto à expectativa da cirurgia, explicita: Agora assim, o único problema meu é a falta de confiança em mim mesma. Por exemplo, eu me sinto inferior às mulheres. Me sinto. Eu acho que eles vão cair na tentação e pegar uma mulher operada, já que eu não sou operada. [...] Então acho que isso tudo vai mudar com a cirurgia. Auto-confiança. Ao chamar a cismulher – aquela cuja identidade e performatividade de gênero é compatível com o modelo de mulher legitimado pelas normas dominantes (Simakawa, 2012) – de “mulher operada”, Amanda parece “abraçar as possibilidades inerentes à ruptura de distinções límpidas entre organismo e fa zer- se mu l her t r a nse x ua l 297 máquina e distinções similares.” (HARAWAY, 1994, p. 274) E ela só o faz a partir de um caminho viabilizado pela biotecnologia, que, se por um lado parece libertar e abrir horizontes, por outro parece readestrá-los. Ou seja, de um lado a tecnologia permitiu uma maior plasticidade do corpo – o que nos remeteria a certo sentimento de liberdade – do outro, um controle de sua materialidade moldada a partir de concepções dominantes sobre o que é ser homem ou ser mulher. Valho-me da categoria cismulher e rejeito outras como “mulher biológica”, “bio-mulher” ou “mulher uterina”, bastante correntes na literatura sobre gênero e sexualidade, por compreender que estas últimas, ao soarem naturalizantes, podem acabar por reforçar a superioridade do biológico, tão presente nos julgamentos normativos contemporâneos (RABINOW, 1999), um dos principais vetores de marginalização das identidades trans. O uso do prefixo “cis”, que vem do latim e significa “aquém”, tem sido protagonizado por ativistas trans, que dele lançam mão com o intuito de descentrar o grupo dominante, ao entendê-lo como mais uma das diversas possibilidades de vivência do gênero e não mais uma norma contra a qual as trans se definiriam. (KOYAMA, 2002 apud SIMAKAWA, 2012) Don Kulick (2008), na sua etnografia realizada no final década de 90 junto a um grupo de travestis de Salvador, observa que é muito corrente o sentimento de inferioridade delas com relação às cismulheres. Segundo as próprias, os homens, em uma relação pavimentada por transferência material delas para eles, podem até gostar de estar em sua companhia, contudo, “amor de verdade” só são capazes de dispensar às cismulheres. Quanto às noções de artificialidade e naturalidade, Kulick observa que a primeira é admirada entre as travestis com quem ele trabalhou, ao passo em que a segunda é reverenciada. Isso me lembra quando, gentilmente indo me levar em casa no seu automóvel, conversava com Amanda e ela confessava a inveja 298 m aycon lopes que sentia da secretária do seu cirurgião plástico. Transexual, ainda não havia se submetido a nenhuma intervenção cirúrgica, porém, ainda assim, era facilmente confundível com uma cismulher. Finalmente, sentindo-se “super incompleta”, e “já bastando o detalhe”, Camille, que atualmente utiliza enchimento nos seios, anseia por uma prótese ali, mas não tem dinheiro para tal. Ela assume que em “momentos de desespero” chegou a pensar em aplicar silicone industrial, porém diz que não o faria, pois os riscos são muito altos e que são poucas aquelas que se submetem à aplicação e não tem complicações a posteriori. Ainda assim, o implante para ela seria um paliativo, perto do seu desejo de ter uma vagina, que finalmente alinharia anatomia genital e gênero. Questões de reconhecimento social Após combinar com Camille pelo facebook o dia e horário do nosso encontro – havíamos marcado para quarta-feira –, trocamos os nossos números de telefone. Poucos dias depois, recebo uma ligação. Era manhã da segunda-feira quando Camille me telefonou. Abatida, disse-me precisar conversar, desabafar com alguém; se possível ainda naquele dia, pois não teria naquela segunda sua costumeira sessão com o psicólogo da ONG que frequentava. Prontamente atendi o seu pedido, e fui encontrá-la no seu trabalho ao final do expediente. Nos poucos minutos que lá passei percebi que o modo com que os seus colegas lhe tratavam era bastante amistoso, e surpreendi-me quando ela me disse que havia apenas um mês que ali estava. De fato, mais tarde ela me confirmou que não tinha nenhum problema decorrente do preconceito no seu ambiente de trabalho (e também na universidade), e ressaltava, para comprovar seu argumento, que era tratada pelo seu nome social. Ser tratada pelo nome social era, portanto, sintoma de respeito para ela. fa zer- se mu l her t r a nse x ua l 299 Pois bem, a razão pela qual ela estava triste naquele dia não dizia em nada respeito ao trabalho ou sequer a família. Enquanto seguíamos para a minha casa, onde em seguida ela me narraria sua história de vida, Camille, em meio a lágrimas, me contava o seu dilema. O rapaz de quem ela gostava disse que jamais “a assumiria”, que não deixaria sua então namorada, uma cismulher, para ficar com uma trans. Ele, que só ia a casa dela a partir das dez da noite, a fim de que ninguém do bairro pudesse vê-lo entrar, a confessou que sente mais desejo – ou melhor, “tesão”, para usar as palavras de Camille – por ela do que por sua namorada. Camille disse que “a sociedade pensa errado” e que: – Não é fácil. É uma barra. Ainda mais a barra dessa questão amorosa, que é terrível. Porque você não pode tá com a pessoa devido à sociedade, sabe, de dizer que o homem que se relaciona com uma trans não é homem, entendeu? É gay, e tal... Inclusive tem alguns artigos que falam isso. Eu já pesquisei também, entendeu? (Entrevistador) - Falam o que? – Respondem a essa pergunta; se homens que se relaciona ou namora com transexuais são gays? E aí a resposta no final é ‘não’, claro. Uma vez que se define como mulher, como uma “mulher transexual”, Camille reivindica a inscrição dos seus relacionamentos amorosos na rubrica da heterossexualidade, em uma matriz que, conforme já anteriormente explicitado, supõe coerência entre sexo, gênero e desejo. Ser mulher, ainda que não uma cismulher, e relacionar-se com o sexo oposto, supostamente fornecer-lhe-ia uma credencial que autorizaria socialmente, alheia a preconceitos, os seus envolvimentos amorosos. Poderíamos assim dizer que Camille não tem intenção de 300 m aycon lopes questionar a deslegitimidade da homossexualidade? Ou mais adequado seria apontar que, ao negar que seu relacionamento é heterossexual, a sociedade estaria negando o reconhecimento da sua própria identidade (de mulher transexual)? Camille explica: Você se envolve com a pessoa e tal, mas tem que ser aquela coisa escondida, tem que ser aquele negócio, sabe, você se sente insegura, a pessoa te vê mulher, mas não tem o peito pra encarar a sociedade. Eu não cobro dele isso porque eu sei o quanto é difícil encarar uma sociedade, porque eu passei e passo essa realidade. Então eu sei o quanto é difícil, mas é difícil pra mim também, entendeu? Né, é complicado você aceitar uma coisa e você não querer que fosse dessa forma, entendeu [...] Porque as pessoas não me vêem como mulher. Muitas. Amanda afirma sempre ter tido a sorte de que os meninos com quem se relacionou a viam como menina. Ela costuma dizer que eles enxergam sua alma. Ou seja, o que a maioria das pessoas não faz, quando consideram os resquícios de traços convencionalmente atribuídos ao masculino e não reconhecem sua identidade de mulher. Apesar de “a respeitarem”, ela sentia que os namorados tinham “um certo bloqueio”; não andavam com ela de mãos dadas, “não tinha aquele agarramento” em público. Segundo Amanda, eles chegavam a sair juntos, porém, enquanto lanchávamos numa pastelaria, disse-me ela: “era como eu e você aqui”. A existência desse “bloqueio”, que, a despeito da tentativa de encobri-lo a fim de não “machucar” Amanda, transpareceria vergonha, era a principal razão pela qual ela rompia com os relacionamentos. Ela atribui esse “bloqueio”, quer dizer, a ausência de abertura para manifestação de afeto em espaços públicos, ao fato de não passar “despercebida”, como uma cismulher. Segundo Amanda, sua revolta é essa, e o planejamento de todas as cirurgias plásticas antes da fa zer- se mu l her t r a nse x ua l 301 cirurgia de resignação sexual visava justamente fazer com que ela passasse despercebida. Quando menciona uma trans que é “é superfeminina, perfeita” e que ainda “nem operou”, ela revela nunca ter tido “esse prazer de um homem não perceber”. Como já apontei anteriormente, é recorrente confundirem Amanda na rua com uma travesti. Enquanto, diz ela, os namorados sempre a “respeitaram”, nas baladas, em bares, ela recebe “propostas”; perguntam-lhe se ela é ativa. Segundo Amanda, isso só ocorre porque a confundem com uma travesti, uma vez que transexual, na sua concepção, enquanto mulher, não poderia “usar o pênis”. Essa questão é melhor esboçada no trecho que segue – sendo todo ele esclarecedor – quando, coincidentemente, passa um rapaz na rua durante a nossa conversa que a interpela sexualmente. – É um rapaz que tava chamando lá do outro lado, tu acredita? Ele passou aqui. Característica de paquera com travesti. [...] A paquera com travesti é assim: o homem passa, se interessa, aí depois ou ele dá um sinal pra travesti seguir ele, pra ninguém perceber nada, ou então ele fica de longe dando sinal. Não chega “e aí, posso lhe conhecer?”... Sabe? Porque tem vergonha das pessoas verem. Aí fica nessa. Então até nisso você vê a diferença, né? Ninguém me vê como mulher [risos]. É incrível. [...] Mas se eu souber que, por exemplo, eu tou ficando com um rapaz; se eu souber que ele já ficou com travesti, pra mim acaba o tesão na hora. [...] Não gosto. Porque pra mim ele deixa de ser hétero. [...] Eu não vejo travesti como mulher. Eu vejo como... Um gay, vestido de mulher. Não consigo ver ela como mulher. Porque se tem um pênis, e usa. É o que? Um homem. É um homem. Não deixa de ser. Um homossexual. A única diferença é que se veste de mulher. Que é pra atrair os clientes, né, fazer programa. A verdade é essa. Não é mulher. Não é mulher, não se comporta como mulher... [...]Ela se veste de mulher que é pra atrair os clientes, as travestis. Porque não é mais pra nada. 302 m aycon lopes (Entrevistador) – Sua amiga [travesti] fazia programa também? – Não, mas assim... É cabeleleira, mas... É dada. Se um rapaz paquerar ela, ela já saía, não pensava duas vezes. Então não deixa de ser programa [pausa]. Sabe aqueles gays que não pode ver homem, que vai? É a mesma coisa, não tem diferença. É um gay vestido de mulher, uma travesti. [...] É daí que vem a importância de passar despercebida, porque não passa por esses constrangimentos, do namorado ter vergonha de sair, de um rapaz chegar até a você e pergunta se pode conhecer. Em primeiro lugar, pode-se notar que Amanda compreende que identificar alguém previamente é fundamental para a definição da interação social. Deste modo, os subterfúgios que habitam um modo específico de flerte são compreendidos pela experiência de vergonha e estigma provocada no homem que se interessa sexualmente por travestis. Esse tipo de abordagem a constrange, uma vez que aproximar-se deste ou daquele modo corresponde justamente a uma identificação prévia, revelando como Amanda é vista pelas pessoas em geral. Diferentemente do homem que se relaciona sexualmente apenas com mulheres, seja cismulher ou transexual, aquele que deseja travestis é visto por Amanda como homossexual, pois travestis, para ela, são gays que se vestem de mulher. Ou seja, o que definirá o gênero não são apenas a vestimenta e mesmo as modificações corporais que o sujeito acionará, mas o comportamento adotado por este sujeito, certa conduta adequada, além da prática sexual prescrita conforme o gênero. Certamente Amanda não considera mulher uma trans que “faz uso” do pênis. Por fim, para ela, enquanto a transexual “genuinamente” sente-se mulher, a travesti apenas se veste de, lançando mão desta estratégia para conquistar os homens. A vontade de Amanda de passar despercebida na verdade seria, nesse contexto, ser percebida como mulher. E ser percebida fa zer- se mu l her t r a nse x ua l 303 como uma mulher “convencional” seria não chamar atenção por conta de uma possível ambiguidade de gênero – ou seja, não ser estranhada – uma vez que o gênero, aparentemente livre de instabilidades, é o que confere inteligibilidade cultural aos corpos na nossa sociedade. (BUTLER, 2001) A possibilidade de reconhecer em um corpo um determinado gênero é o que o torna este corpo viável, compreensível, o que faz dele sujeito. Caso contrário, este ser cujo gênero não me é possível definir, povoaria o que Butler (2001) chama de zonas inóspitas da vida social, que seria a condição abjeta, a própria negação da humanidade deste ser. O que percebemos nesta relação conflituosa entre Amanda e as travestis, e o rechaço dela às últimas, é que, conforme escreve Souza (2003, p. 25): A nossa identidade, diz [Charles] Taylor, é formada pelas identificações e escolhas providas por este pano de fundo valorativo seja por afinidade, seja por oposição a elas. [...] Identidade é sempre uma matéria que tem a ver com ‘redes de interlocução.’ [...] Assim, no caso de Amanda, identificar-se como transexual é opor-se à travesti e ao gay afeminado, enquanto assimila-se, mira-se na mulher, ou melhor, em um determinado modelo de mulher. Possivelmente relacionar-se com uma travesti envolveu para ela um duplo aprendizado: transformar seu corpo para assemelhar-se a uma mulher (através da hormonoterapia, por exemplo), e aprender justamente o tipo de comportamento que não deveria adotar para ser reconhecida como uma mulher. A importância de um comportamento convencionalmente de mulher também aparece nos relatos de Camille, quando ela afirma que a coordenadora pedagógica do colégio onde estudava a rechaçava por ela ser espalhafatosa, mas que hoje, diz Ca- 304 m aycon lopes mille: “ela super me admira. Ela disse: ‘era isso que eu queria’”. Mais adiante, Camille nos conta: – Mas depois com um tempo... Tipo, se você quer ser vista como mulher, se comporte igual a ela, né? Antes eu acho que... Eu não era baixo-astral, mas eu tinha muita mão, muita gíria, muita coisa assim, sabe? Aquelas coisas assim inventava muita coisa [...]Eu inventava muito apelido, essas coisas. [pausa] Aí eu tou me policiando cada vez mais pra parar de gesticular, que é um problema que eu tenho muito grande. Gesticulo demais, gesticulo demais... Entendeu? [...] Eu acho que me entrega muito. Como nos parece óbvio, não basta, assim, parecer uma mulher, em termos de contornos corporais, indumentárias etc.; mais que isso, é fundamental comportar-se como uma mulher. Para isso, Camille se auto-avalia; examina sua estilística gestual a fim de, conformando-a a determinado padrão de feminilidade, seja projetada uma avaliação alheia que contemple a sua identidade pessoal. Ao mesmo tempo em que ressaltam ter nascido mulher, 2 pensando o gênero como algo inato e, neste discurso, descolado da genitália, reconhecem que há toda uma dimensão de aprendizado para incorporar o lugar de mulher. Caso Amanda adotasse o comportamento que considera típico de uma travesti, ainda que tivesse um corpo que vulgarmente é associado ao corpo de uma mulher, ela jamais seria considerada uma mulher. Porque não basta ser “feminina”; femininos, como ela aponta, muitos gays já são. Mais que isso, é urgente ser identificada como mulher. Para ela, não ter sua identidade reconhecida é como viver sem ser vista. Conforme Charles Taylor (1994 apud Souza, 2003, p. 35): 2 Amanda, por exemplo, rejeita a expressão “mudança de sexo”, e reivindica o termo “correção de sexo”. fa zer- se mu l her t r a nse x ua l 305 Não reconhecimento e falso reconhecimento podem infligir mal, podem ser uma forma de opressão, aprisionando alguém em uma forma de vida redutora, distorcida e falsa [...] Ele [o não reconhecimento] pode infligir feridas graves a alguém, atingindo as suas vítimas com mutiladora auto-imagem depreciativa. É assim que podemos compreender quando Amanda relata que costuma se referir à transexualidade como “a pior sexualidade”. E ela o diz após falar da ausência de reconhecimento social de quem ela é. Quando fala em “pior”, ela traça implicitamente uma comparação com outras sexualidades, sobretudo não hegemônicas. Se o gay e a travesti, por exemplo, ao seu entender, costumam ser reconhecidos como tais, na sua experiência como transexual, tal reconhecimento, essa certeza de existir “autenticamente”, algo que só o olhar do outro poderia conferir, lhe é negada. Linda afirma que no início da sua transformação se considerava travesti, mas como escondia o seu órgão genital e descobriu que quem o faz é transexual, “passou para esse lado”, como ela diz – reconhecendo identidade menos como essência e mais como posição. Travesti para ela é alguém que mostra o sexo, que deseja penetrar. Segundo a mesma, ela o fazia apenas por questão profissional. Tanto Linda quanto as outras duas entrevistadas afirmaram que escondem suas genitálias durante a relação sexual; em geral a cobrem com toalha, calcinha ou lençol. Podemos então perceber elencado um dos aspectos do que Berenice Bento (2006) chama de “dispositivo da transexualidade”; a saber, o rechaço por sua própria genitália. Seria esse o modelo hegemônico de transexualidade, o modelo biomédico, que tem como senão o principal, um dos principais postulados o critério de desgenitalização prévia. (PIÑEROBA, 2008). Como um dispositivo, que, no sentido utilizado por Foucault (1984), compreende um conjunto heterogêneo de enunciados cientí- 306 m aycon lopes ficos, discursos, instituições, ele funciona a fim de estabelecer regularidades, permanências e reiterações, implicando, portanto, em relações de poder; em regimes de inclusão e exclusão. É deste modo que, na definição de uma identidade, supõem-se determinadas práticas, modos de agir e pensar apropriados. Se contrapondo à amiga travesti, que segundo ela gosta de ter pênis, de usá-lo sexualmente, Amanda diz que: Nunca usei [o pênis, sexualmente]. Pra você ter ideia eu não fico nua na frente de ninguém. [...] Pra fazer sexo eu tenho que tá de calcinha no mínimo. Pra ele não ver, não ter contato, [...] nem sonhar que tem. Porque eu quero que ele me veja como mulher. Eu quero que ele, meu parceiro, esqueça que eu tenho isso em mim. Porque pra mim é um corpo estranho. [pausa] É como se não fosse meu, sabe? É como se não viesse de mim. É por isso que, quando rapazes propõem que ela seja “ativa” na relação sexual, ela entende que ele a vê como travesti, e não como mulher. De modo análogo, o rapaz que sente desejo por travestis, é visto por ela como homossexual, pois ele estaria desejando quem supostamente faz uso sexual do pênis, e que, portanto, não é mais que gay. Talvez a importância em que consiste a cirurgia de transgenitalização para Amanda seja mais uma forma possível de afastar-se materialmente da figura da travesti. Também para Camille, que reforça a sinonímia entre genitalização e gênero (PIÑEROBA, 2008), travesti é alguém que deseja mudar apenas os seus documentos, mas não o seu gênero – uma vez que estaria confortável com a sua genitália. Finalmente, Linda argumenta igualmente a favor de uma diferença irremovível entre transexual e travesti, sendo que a última pensaria e agiria como homem. Linda, aliás, relata o caso de uma amiga travesti, que, segundo ela, fez a cirurgia de trans- fa zer- se mu l her t r a nse x ua l 307 genitalização “por vaidade”, apenas para dizer que tem uma vagina. Ou seja, enquanto as transexuais genuinamente desejariam ter uma vagina, a travesti que acede à redesignação sexual o faria por uma ostentação sem consistência. Essa ostentação, por sua vez, só teria lugar quando se compreende a “neovagina” como uma tecnologia genital, que implica numa forma de capital e empoderamento daquelas que a têm. Últ imas considerações Conforme indicamos anteriormente, existem diversos atalhos para se chegar ao corpo que se deseja. É claro que em alguma medida os resultados variam segundo o procedimento adotado, assim como os riscos e os custos, que são maiores ou menores de acordo com a intervenção que é feita. Sentir-se-ia Camille “super incompleta”, como ela diz, caso tivesse renda bastante para financiar um implante de seios? Estaria Amanda planejando a curto prazo uma vaginoplastia na Tailândia se pertencesse a uma classe social menos abastada e caso não contasse com o apoio da mãe – responsável monetariamente pelas suas cirurgias – nesta empreitada? Teria ela se submetido a quatro cirurgias plásticas caso não fosse constantemente vista pelas pessoas como travesti? A “correção da aparência” através da técnica cirúrgica é acionada na esperança de eliminar o hibridismo masculino/feminino do seu corpo (e rosto), na intenção de que de fato aconteça a somatização da sua subjetividade feminina, que o seu corpo a apresente segundo sua identidade de mulher. Nesse sentido, as convenções de como deve ser o corpo de uma mulher, e como é o corpo de uma mulher desejada, são parâmetros importantes nas transformações corporais das transexuais. Isso foi visto, por exemplo, no caso de Linda, que não se interessou em aplicar silicone nos quadris, pois julgou “desnecessário”, relacionando aqui à 308 m aycon lopes “necessidade” ou à falta de desejo do seu “público-alvo”, os homens europeus e potenciais clientes. Por quanto mais tempo, inicialmente, Linda teria consumido hormônio feminino caso os hormônios na Europa não custassem tão caro e caso ela não tivesse se tornado prostituta? Essas perguntas, cujos fins são meramente retóricos, visam apenas elucidar como conhecer cada biografia torna-se componente fundamental para compreender as motivações das transformações corporais. O transformar-se deste ou daquele modo, neste ou naquele período, pode variar bastante (ser constrangido ou não), a depender dos recursos econômicos disponíveis. Seja como for, apenas a ingestão de hormônio é comum entre as três entrevistadas, marcando o início do itinerário de modificações corporais de cada uma delas. Quando tratamos da “barra da questão amorosa” percebe-se que é através dos seus relacionamentos afetivo-sexuais, da forma como os homens com quem se relacionam interagem com elas, que as transexuais com quem trabalhei têm acesso privilegiado à visão geral que é lançada sobre elas pela sociedade. Parece-me que é um dos aspectos da sua vida em que se torna mais expressivo e claro o seu desejo de ser reconhecida como mulher, e os desafios enfrentados, como efeitos das próprias prerrogativas de que desfrutam aqueles e aquelas cujo gênero alinha-se à genitália de nascimento. Em Kulick (2008) observa-se que, quando o “armário”, o típico caráter de privacidade que sustenta a relação travesti/namorado é rompido, elas se sentem mais mulheres (ou, nas palavras de uma delas: “mulheríssima”). Quer dizer, as travestis compreendem que a aparente ausência de vergonha por parte dos namorados de assumi-las diz respeito a uma superada ou menor ambiguidade de gênero; em outros termos, significa maior êxito na transformação. Nota-se com os depoimentos que a afirmação da identidade de mulher transexual está atrelada tanto aos modelos culturais vigentes fa zer- se mu l her t r a nse x ua l 309 de mulher quanto a certas concepções do que é ser travesti – as quais serão fundamentais para a produção performática de mulher transexual. Nesse estudo, a temática da identidade tem se mostrado não apenas grave para essas vidas como necessariamente excludentes, uma vez que repousa em modelos bastante rígidos, como o que é ser transexual e o que é ser travesti. É justamente a partir de restrições e estabelecimento de fronteiras entre essas identidades que as entrevistadas afirmam sua transexualidade. Assim, recorrer à travesti mostrou-se fundamental para, opondo-se a ela, esboçar uma vivência de gênero mais próxima ao que se convencionou entender por mulher. Referências BENEDETTI, Marcos. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. BENTO, Berenice. 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