Revista Historiador Número 9. Ano 9. Fevereiro 2017.
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A REGIÃO DO VALONGO: MEMÓRIA DE QUEM?
Ismael Wolf1
Resumo:
O presente artigo2 pretende discutir as tentativas de construção da região do Valongo como
lugar de memória, apresentandoum panorama histórico da região.Uma atenção especial é
dada ao cais, construído, reconstruído e silenciado através das reformas e perspectivas dos
sujeitos envolvidos. A Pedra do Sal e o Cemitério dos Pretos Novos que, dentre outros
lugares, fazem parte do Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança
Africana também são contemplados, assim como a relação da Igreja de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito com a comunidade negra e com os movimentos de abolição da
escravidão.
Palavras-chave: Valongo; lugar de memória; silenciamento; esquecimento; resistência.
Introdução
Os lugares de memória pertencem a dois domínios, que a tornam
interessante, mas também complexa: simples e ambíguos, naturais e
artificiais, imediatamente oferecidos à mais sensível experiência e, ao mesmo
tempo, sobressaindo da mais abstrata elaboração.
São lugares, com efeito nos três sentidos da palavra, material, simbólico e
funcional, simultaneamente, somente em graus diversos, mesmo um lugar de
aparência puramente material, como um depósito de arquivos, só é lugar de
memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica (NORA, 1993, p.
21).
A região do Valongo, onde está localizado o Circuito Histórico e Arqueológico da
Celebração da Herança Africana3, tem ganhado maior repercussão nos últimos anos, desde
as descobertas arqueológicas do antigo piso do cais de mesmo nome e também do antigo
cais da Imperatriz. Tais descobertas, ocorridas no ano de 2011, teriam acontecido durante
as escavações para a obra de drenagem do Projeto Porto Maravilha (DAFLON, 2011).
Através dessas descobertas arqueológicas do cais e também do antigo Cemitério dos
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro - PUC-Rio; Especialista em Saberes e Práticas na Educação Básica (Ênfase em Ensino de História) pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro - UFRJ; Graduado em História (Licenciatura Plena) pela Faculdade Porto-Alegrense - FAPA.
2
Alguns fragmentos deste artigo foram apresentados originalmente como parte do Trabalho de Conclusão do Curso de
Especialização Saberes e Práticas na Educação Básica (Ênfase em Ensino de História), realizado na UFRJ, no período de
2014 a 2016. O trabalho foi originalmente orientado pela Profa. Dra. Giovana Xavier da Conceição Nascimento. A versão
publicada neste artigo contém algumas alterações em relação à versão original.
3
Disponível em: <http://www.portomaravilha.com.br/circuito>. Acesso em: 22 abr. 2016.
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Pretos Novos4reascendeu o debate público sobre a importância da herança africana na
região, algo que já era evidenciado através de disputas pelo espaço da Pedra do Sal e seus
arredores5, espaço de constante disputa entre a comunidade remanescente de quilombolas
e a Igreja Católica. Todavia, essas disputas pelo espaço e pela memória, já estavam
presentes na região desde meados do século XIX.
No ano de 1843, o então governo brasileiro realizou uma grande reforma na região
do Valongo. O antigo cais, que havia sido palco da chegada de tantos africanos ao Brasil na
condição de escravos, dava lugar a um novo, que veio a ser conhecido como Cais da
Imperatriz. Nessa reforma, o antigo cais do Valongo foi aterrado e totalmente coberto pelo
sucessor. Essa medida certamente visava esconder a vergonha da escravidão que havia
assolado aquele lugar durante anos. É o que nos diz FLORENCIO:
[...] Construído em 1843, por Grandjean de Montigny, famoso arquiteto da
Missão Artística Francesa. O Cais foi inaugurado para recepcionar a
Imperatriz Teresa Cristina em seu casamento com D. Pedro II. Essa
memória oficial se encontra até hoje preservada no nome e no monumento,
um obelisco que contém gravado em sua base o marco histórico da
chegada da Imperatriz. Este é um exemplo significativo de como a
construção de determinado lugar de memória, através de um monumento
público, pode servir para ocultar e apagar outras memórias locais. Em 1843,
quando concluída a obra para a chegada da Imperatriz, funcionava nos
arredores desta localidade um dos mais ativos mercados de escravos do
mundo. A política da memória imperial, quando opta por construir um
obelisco exaltando a presença europeia nas paragens tropicais, afirma seu
desejo de obliterar, de tirar da memória, uma presença muito mais
significativa nesta região: a presença dos africanos escravizados que
chegavam massivamente ao Cais do Valongo (FLORENCIO, 2015, pp. 513514).
Após essa tentativa de apagamento da memória do antigo cais do Valongo, uma
nova reforma foi realizada já no período republicano. Na primeira década do século XX, o
então prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Francisco Pereira Passos, empreendeu uma
reforma urbanística em alguns pontos da cidade. Nessa reforma, que incluiu parte da região
do Valongo, o então cais da Imperatriz também acabou sendo coberto por uma nova
camada de construções. Conhecida como Reforma Pereira Passos, esta tentou aplicar uma
arquitetura que lembraria a de Paris.
Juntamente com outros lugares como a Pedra do Sal, o Cemitério dos Pretos Novos
e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito6, o cais do Valongo caracteriza-se
como lugar de memória7 africana e da escravidão. Sobre o conceito de lugares de memória,
Pierre Nora nos explica que o sentimento de aceleração cresce cada vez mais em algumas
sociedades fazendo com que percamos nossa “ancoragem”. Então, são criados lugares de
4
O Cemitério dos Pretos Novos foi encontrado no ano de 1996. Atualmente o local abriga o Instituto dos Pretos Novos – IPN.
A Pedra do Sal foi tombada como patrimônio material do Estado do Rio de Janeiro no ano de 1987.
6
Localizada na Rua Uruguaiana, 77 - Centro, Rio de Janeiro - RJ.
7
Conceito criado por Pierre Nora.
5
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memória para sabermos de onde viemos e para onde vamos (NORA, 1993, pp. 7-28). De
acordo com NORA:
Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não existe
memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter os
aniversários, organizar as celebrações, pronunciar as honras fúnebres,
estabelecer contratos, porque estas operações não são naturais. É por isso
a defesa pelas minorias, de uma memória refugiada sobre focos
privilegiados e enciumadamente guardados nada mais do que levar à
incandescência a verdade de todos os lugares de memórias. Sem vigilância
comemorativa, a história depressa os varreria. Se vivêssemos
verdadeiramente as lembranças que eles envolvem, eles seriam inúteis. E
se em compensação, a história não se apoderasse deles para deformá-los,
transformá-los, sová-los e petrificá-los eles não se tornariam lugares de
memória. É este vai-e-vem que os constitui: momentos de história
arrancados do movimento de história, mas que lhe são devolvidos. Não
mais inteiramente a vida, nem mais inteiramente a morte, como as conchas
na praia quando o mar se retira da memória viva (NORA, 1993, p. 13).
O conceito é também bem exemplificado por Michael Pollak:
Existem lugares de memória, lugares particularmente ligados a uma
lembrança, que pode ser uma lembrança pessoal, mas também pode não
ter apoio no tempo cronológico. Pode ser, por exemplo, um lugar de férias
na infância, que permaneceu muito forte na memória da pessoa, muito
marcante, independentemente da data real em que a vivência se deu. Na
memória mais pública, nos aspectos mais públicos da pessoa, pode haver
lugares de apoio da memória, que são os lugares de comemoração. Os
monumentos aos mortos, por exemplo, podem servir de base a uma
relembrança de um período que a pessoa viveu por ela mesma, ou de um
período vivido por tabela (POLLAK, 1992, p. 202).
As constantes disputas pela memória coletiva e os diferentes processos de
construção de uma memória oficial da região do Valongo têm se caracterizado pelas ações
do Estado que quase sempre têm relegado a memória e a cultura africana a uma condição
de esquecimento e não de protagonismo.
Embora na maioria das vezes esteja ligada a fenômenos de dominação, a
clivagem entre memória oficial e dominante e memórias subterrâneas,
assim como a significação do silêncio sobre o passado, não remete
forçosamente à oposição entre Estado dominador e sociedade civil.
Encontramos com mais frequência esse problema nas relações entre
grupos minoritários e sociedade englobante (POLLAK, 1989, p.4).
São esses grupos minoritários, nesse caso específico, os de ascendência africana,
que resistem para manter as suas memórias vivas. Essas memórias subterrâneas, que
clamam por serem trazidas para a superfície, necessitam de alguém que as escute. O
processo de silenciamento pelo qual estas tiveram que se submeter, colocou-as em uma
condição subalterna dentro da chamada memória pública oficial. É importante notarmos que
a memória e o esquecimento andam juntos. O processo de lembrar está diretamente
relacionado ao de esquecer. Todavia, conforme Michael Pollak nos lembra:
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O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a
resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de
discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as
lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a
hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e
ideológicas(POLLAK, 1989, p.5).
Mesmo silenciadas pela sociedade englobante e pelo discurso oficial, essas
comunidades negras da região do Valongo mantiveram suas raízes e sua cultura através
das tradições familiares e de lugares como a Pedra do Sal, que sempre possibilitaram que
esses descendentes de africanos dessem continuidade, mesmo que clandestinamente, a
expressões culturais e religiosas trazidas da África. Assim como a criação de novas formas
de expressões culturais genuinamente brasileiras. “Uma vez rompido o tabu, uma vez que
as memórias subterrâneas conseguem invadir o espaço público, reivindicações múltiplas e
dificilmente previsíveis se acoplam a essa disputa de memória” (POLLAK, 1989, p. 5).
No caso das memórias da região Valongo, devemos lembrar que elas existem
através de personagens, arquitetura, movimentos e fatos históricos, mas também são
significativas quando tratamos da dor e violência que fizeram parte dessa história (LIMA,
2016). De acordo com Mônica Lima:
Essa dor que atravessa a memória sensível dos descendentes faz do
trauma da escravidão um processo cultural de base na formação de
identidades no pós-abolição. Sem nenhum exagero, e com todo o drama,
não há como encarar o Cais do Valongo e permitir que essa dimensão da
história se dissolva no tempo. Até porque, como a tradição oral africana, ela
está viva, e esbarramos com ela nas nossas ruas e quebradas hoje. O
trauma coletivo não foi superado, ainda que em alguns casos se consiga
aprender de alguma forma a lidar com ele (LIMA, 2016).
Através do histórico da região do Valongo, podemos observar claramente a disputa
pelo estabelecimento de uma memória oficial na região. As sucessivas tentativas de
apagamento de uma memória anterior e de estabelecimento de um novo lugar de memória
oficial mostram como isso foi feito durante o Império e depois em momentos diferentes da
República. Os achados arqueológicos trazem à tona essas memórias subterrâneas8, quase
que “materializando” esse conceito, já que as descobertas arqueológicas, outrora
escondidas sob a terra, foram expostas trazendo consigo uma quantidade enorme e variada
de elementos da cultura material africana e também elementos que evidenciavam a
vergonha e as desgraças em consequência da escravidão.
Essas memórias subterrâneas que prosseguem seu trabalho de subversão
no silêncio e de maneira quase imperceptível afloram em momentos de
crise em sobressaltos bruscos e exacerbados. A memória entra em disputa.
Os objetos de pesquisa são escolhidos de preferência onde existe conflito e
competição entre memórias concorrentes (POLLAK, 1989, p.4).
8
Conceito criado por Michael Pollak.
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Figura 1- Cais do Valongo
Fonte: Cais do Valongo pode se tornar Patrimônio da Humanidade (Autor desconhecido)9
O fato é que durante todos esses períodos que se sucederam às reformas, essas
tentativas de reorganização do espaço negligenciaram completamente o lugar como palco
da chegada dos africanos escravizados ao Brasil. O antigo cais do Valongo, que estava
enterrado e esquecido pela maioria da população, estava nessas condições devido às
diversas tentativas dessa formação de uma memória coletiva e oficial por parte dos
governos que se sucederam. Sobre essas tentativas de construção de uma memória
nacional, Michael Pollak nos diz:
A memória organizadíssima, que é a memória nacional, constitui um objeto
de disputa importante, e são comuns os conflitos para determinar que datas
e que acontecimentos vão ser gravados na memória de um povo. Esse
último elemento da memória – a sua organização em função das
preocupações pessoais e políticas do momento – mostra que a memória é
um fenômeno construído (POLLAK, 1992, p. 203).
É clara a opção feita na região. Privilegiou-se a memória de determinadas camadas
e setores da sociedade, enquanto grupos minoritários10 e presentes na região, também
conhecida por ser parte da chamada “Pequena África”11, tiveram suas memórias
parcialmente negligenciadas. Mesmo assim, essas memórias de raiz africana, memórias
subterrâneas, desses grupos minoritários, resistiram e resistem bravamente através de
elementos de sua cultura e de sua presença forte e marcante na região. Essas memórias
9
Disponível em: <http://creci-rj.gov.br/cais-do-valongo-pode-se-tornar-patrimonio-da-humanidade/>. Acesso em: 22 abr. 2016.
No sentido de não serem representativas nas classes dirigentes.
11
Nome criado por Heitor dos Prazeres para designar a área da zona portuária do Rio de Janeiro, onde estão a Pedra do Sal,
Santo Cristo, Gamboa e Saúde.
10
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subterrâneas, que estavam silenciadas, ganharam fôlego e força através do tombamento do
Quilombo Pedra do Sal e da exposição dos achados arqueológicos do cais do Valongo e do
Cemitério dos Pretos Novos.
Partindo desta perspectiva, discutirei as tentativas de construção da região do
Valongo como lugar de memória. Dando atenção especial ao cais, construído, reconstruído
e silenciado através das reformas e perspectivas dos sujeitos envolvidos. Também darei
atenção à Pedra do Sal e ao Cemitério dos Pretos Novos, que dentre outros lugares, fazem
parte do Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana. Abordarei
ainda a relação da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito com a comunidade
negra e com os movimentos de abolição da escravidão. A Igreja compõe este trabalho pelo
fato de estar nos arredores da região e também ser considerada como um lugar de memória
da cultura africana e afro-brasileira. Investi em apresentar um panorama histórico da região,
considerando que este trabalho pode se tornar um material importante para professoras e
professores em seu fazer docente.
O Valongo e o Cemitério dos Pretos Novos
A historiografia sobre o tráfico de escravos no mundo Atlântico e sobre a chegada
desses na América portuguesa têm contribuído de forma significativa para a compreensão
deste processo.12 Em meados do século XVIII, enquanto a cidade do Rio de Janeiro crescia
espacial e economicamente, o tráfico e a chegada de africanos escravizados era prática
comum na região. De acordo com Honorato:
O comércio de escravos era feito na rua Direita, próximo a alfândega onde
os escravos desembarcavam. Era a área mais movimentada da cidade, que
abrigava a Mesa do Bem Comum (depois Junta do Comércio), o Palácio
dos Governadores, as repartições públicas mais importantes e os armazéns
e moradias dos revendedores de escravos novos (HONORATO, 2008, p.
67).
Com o crescimento populacional, as difíceis condições sanitárias e a falta de
estrutura da cidade, com o tempo passou-se a sugerir que este comércio de escravos fosse
realizado fora da região central. Honorato lembra que “conflitos entre os diversos agentes do
tráfico e comércio negreiro na cidade tiveram relação direta com a decisão do Senado da
Câmara de transferir o comércio de escravos novos13 para a periferia da cidade”
(HONORATO, 2008, p. 67). Ainda no século XVIII, foi deliberado que o então comércio de
escravos deixasse a região central da cidadee fosse transferido para a região do Valongo, o
que seria também um facilitador, já que a região também era contemplada com acesso pelo
12
Alguns trabalhos importantes sobre o tráfico negreiro têm sido realizados pela historiografia brasileira. Destaco aqui as
pesquisas de Jaime Rodrigues e Mary Karasch.
13
Escravos novos: Recém-chegados da África.
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mar. Algo importante, já que, como falamos antes, esses africanos escravizados chegavam
pelo oceano Atlântico. Deslocar o comércio de escravos para a periferia significava também
afastar essa nova população negra do centro administrativo da cidade. Não seria mais
necessário para a elite ter contato com escravizados novos, que muitas vezes chegavam
doentes e alguns já mortos. Essa era uma das justificativas da administração da cidade, que
acreditava que isso poderia reduzir os índices de epidemias da população local
(HONORATO, 2008, p. 70).14 Sobre essa medida:
A partir de então, uma vez desembarcados, e cumpridas as formalidades
legais da alfândega, os escravos novos deveriam ser reembarcados e
conduzidos ao Valongo, onde se chegava através do cais do Valongo
situado numa enseada a noroeste da cidade, na Freguesia de Santa Rita. O
Valongo localizado entre o outeiro da Saúde e o morro do Livramento podia
também ser atingido pelo chamado caminho do Valongo que ia em direção
mar passando por entre os morros da Conceição e Livramento. O chamado
“mercado” não era uma grande construção ou espaço coletivo usado para
negociar como muitos acreditam, mas casas comerciais separadas,
situadas dos dois lados de algumas ruas (HONORATO, 2008, p. 74).
Figura 2 – Jean-Baptiste Debret. Mercado da Rua do Valongo. In: Voyage pittoresque et historique au Brésil.15 1831.
A pintura acima, feita pelo francês Jean-Baptiste Debret, que viveu no Brasil no início
do século XIX, mostra-nos uma casa comercial onde era realizado o comércio de escravos.
A pintura, chamada de Mercado da Rua do Valongo, fornece uma ideia de como eram essas
14
Ver também o livro A Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro, de Júlio César Medeiros da Silva
Pereira.
15
Publicado no Brasil como Viagem pitoresca e histórica ao Brasil.
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casas de comércio de escravos que faziam parte do “mercado” que ficava na região do
Valongo. Debret retratou algumas cenas da escravidão no Brasil, incluindo cenas da própria
região do Valongo. Assim como Debret, outros viajantes que estiveram no Brasil também
fizeram registros sobre a escravidão e seus mercados.
Figura 3 - Johann Moritz Rugendas. Negros no porão de um Navio Negreiro. In: Voyage pittoresquedansleBrésil.16 1835.
A imagem acima é uma representação de um porão de um navio negreiro, onde os
africanos escravizados eram normalmente transportados. Esses escravos novos, ou pretos
novos, como eram chamados os africanos que chegavam ao território brasileiro, quando
faleciam, eram levados para uma área que era conhecida como Cemitério dos Pretos
Novos. Essa área, não muito distante do cais do Valongo, servia como espaço para serem
enterrados seus restos mortais. É importante frisar que não havia qualquer cuidado nesses
enterros, que não obedeciam a qualquer tipo de disposição e não eram acompanhados de
ritual fúnebre, considerado adequado, tanto para a religiosidade daqueles africanos quanto
para a dos portugueses. Os cadáveres, que eram todos jogados em valas comuns, muitas
vezes tinham seus ossos quebrados e também eram incinerados.
Próximo à rua do Valongo está o cemitério dos que escapam para sempre
da escravidão [...] na entrada daquele espaço cercado por um muro de 50
braças em quadra, estava assentado um velho, em vestes de padre, lendo
um livro de rezas pelas almas dos infelizes que tinham sido arrancados de
sua pátria por homens desalmados, e a uns dez passos dele, alguns pretos
estavam ocupados em cobrir de terra os seus patrícios mortos, e, sem se
darem ao trabalho de fazer uma cova, jogam apenas um pouco de terra
16
Publicado no Brasil como Viagem pitoresca através do Brasil.
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sobre o cadáver, passando em seguida a sepultar outro [...] (FREIREYSS,
1982. p. 134).
Essa prática fúnebre de morrer e não ter um tratamento adequado chocava-se com
os códigos culturais da maioria dos africanos. Tal choque foi um dos motivos que culminou
na criação de irmandades religiosas de homens pretos dentro da religião oficial de então, o
catolicismo romano. É o caso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e de São
Benedito dos Homens Pretos, por exemplo, que se tornou diretamente engajada na luta pela
abolição da escravatura.
A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito esteve
diretamente ligada ao movimento abolicionista. Na segunda metade do
século XIX, a Irmandade participou ativamente do processo de libertação de
escravos. Uma carta do Bispo D. Pedro Maria de Lacerda, da diocese de
São Sebastião do Rio de Janeiro, escrita e endereçada à Irmandade em 24
de agosto de 1871, louva a conduta “piedosa” da mesma de libertar
escravos e faz também uma doação em dinheiro para a missão (WOLF,
2016, p. 66).
A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos
alcançou grande importância entre africanos e descendentes, tendo congregado nomes
importantes do movimento abolicionista e da história do Brasil, como Mestre Valentim17. Esta
Irmandade, que durante o século XVII reunia-se na igreja que se localizava no Morro do
Castelo, desde o início do século XVIII está sediada na Igreja de Nossa Senhora do Rosário
e de São Benedito dos Homens Pretos18, localizada na rua Uruguaiana, no Centro da cidade
do Rio de Janeiro. O local abriga também o Museu do Negro, que atualmente funciona no 2º
andar do prédio da Igreja, sendo um espaço dedicado à representação histórica do negro no
Brasil (WOLF, 2016, p. 74).
17
Valentim da Fonseca e Silva (1745-1813): Afrodescendente, escultor, entalhador e urbanista encarregado das obras da
cidade do Rio de Janeiro entre 1779 e 1790.
18
Ver figura 4.
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Figura 4 – Igreja de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos. Fonte: Arquivo pessoal
Voltando ao Cemitério dos Pretos Novos, o historiador José Murilo de Carvalho
destaca:
O cemitério destinava-se ao sepultamento dos pretos novos, isto é, dos
escravos que morriam após a entrada dos navios na Baía de Guanabara ou
imediatamente depois do desembarque, antes de serem vendidos. Ele
funcionou de 1772 a 1830 no Valongo, faixa do litoral carioca que ia da
Prainha à Gamboa. Funcionara antes no Largo de Santa Rita, em plena
cidade, próximo de onde também se localizava o mercado de escravos
recém-chegados. O vice-rei, marquês do Lavradio, diante dos enormes
inconvenientes da localização inicial, ordenou que mercado e cemitério
fossem transferidos para o Valongo, área então localizada fora dos limites
da cidade. O Valongo entrou, então, para a história da cidade como um
local de horrores. Nele, os escravos que sobreviviam à viagem
transatlântica recebiam o passaporte para a senzala. Os que não
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sobreviviam tinham seus corpos submetidos a enterro degradante. Para
todos, era o cenário tétrico do comércio de carne humana.
O cemitério foi fechado em 1830 em decorrência de inúmeras reclamações
dos moradores que aos poucos tinham povoado o local e do tratado de
extinção do tráfico imposto pela Inglaterra, ratificado em 1827 para entrar
em vigor três anos depois. Em tese, se não havia mais tráfico, não podia
haver pretos novos e sem esses não podia haver cemitério de pretos novos.
A história do tráfico foi outra, mas o cemitério foi de fato fechado. Após
1830, mercado e cemitério saíram do Valongo. O tráfico e a prática do
sepultamento à flor da terra deslocaram-se para outros locais. Nos seis
anos antes do fechamento, mais de seis mil escravos foram enterrados no
Valongo, se se pode assim descrever o tratamento dado aos cadáveres
(CARVALHO, 2004, p. 9).
A Pedra do Sal
Nos arredores da região do Valongo, encontramos a chamada Pedra do Sal,
anteriormente conhecida como Pedra da Prainha. Ela está diretamente relacionada com a
história do Valongo. Segundo as historiadoras Martha Abreu e Hebe Mattos:
Até meados do século XVIII, a famosa Pedra do Sal, inicialmente
denominada Pedra da Prainha, e a região em torno, conhecida
genericamente por Prainha, eram pouco habitadas e bem próximas ao mar.
Os pescadores e alguns trapiches do sal (nome que acabou marcando a
Pedra da Prainha) compunham a paisagem, ao lado da Fortaleza, do
Palácio do Bispo, da Igreja de São Francisco e da Cadeia do Aljube, para
onde iam presos os escravos, que cometiam crimes, e os quilombolas.
Chácaras pontuavam os morros próximos, como o da Conceição e
Providência. Escravos e afrodescendentes libertos já marcavam a vida da
região, com o trabalho nos trapiches do sal, e deixaram registrada a sua
presença nas áreas rurais dos morros que circundavam a cidade de então.
A partir de meados do século XVIII, com a presença de trapiches e casas
comerciais, a região passou a se articular mais à cidade [...]. Entretanto,
manteve um certo isolamento provocado pela proteção que os morros da
Conceição e Providência ofereciam. Foi exatamente esse relativo
isolamento da área em torno da Pedra do Sal que motivou a sua escolha
para o funcionamento do crescente comércio de africanos escravizados.
Entre as décadas de 1760 e 1830, o território passou a ser conhecido e
identificado como o local de depósito e venda da “carne humana” trazida da
África. Era o Valongo (Vale longo) (ABREU; MATTOS, 2012, p. 13).
Através dessa ocupação sistemática do Valongo, a Pedra do Sal passou então a
receber um grande número de africanos e com isso a sua paisagem passou a ser
predominantemente negra (ABREU; MATTOS, 2012, p. 14). A Pedra do Sal, juntamente
com toda a região portuária do Valongo, era um espaço onde viviam os escravos novos,
mas também alguns que já se encontravam em território brasileiro a mais tempo.
No início do século XIX, com a chegada da Família Real e a organização do
mercado de escravos no Valongo, o povoamento da região, com
comerciantes e trabalhadores escravos dos trapiches, dos ancoradouros,
estaleiros e das firmas comerciais, que apoiavam o comércio africano, não
demorou a aumentar. O rico negócio com a “mercadoria negra” atraiu para o
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local uma série de atividades de benefícios: criou-se um sistema de
transporte marítimo entre o Valongo e outros bairros e vários
melhoramentos urbanos foram realizados no local. Mas a região não
perderia a marca da presença africana. Mesmo proibidos e perseguidos, é
impressionante constatar que numa região com tamanha procura e
movimento pudesse persistir a presença de feiticeiros, como as autoridades
imperiais chamavam as lideranças religiosas negras (ABREU; MATTOS,
2012, p. 16).
Mesmo com a proibição do comércio de escravos no Valongo, no ano de 1831, essa
atividade continuou acontecendo clandestinamente. Africanos e descendentes de
escravizados e libertos continuavam maciçamente presentes no território, alguns envolvidos
com o comércio e outros com o transporte de café. Essa grande movimentação econômica
possibilitou que a região continuasse se expandindo e adquirindo importância dentro da
cidade do Rio de Janeiro (ABREU; MATTOS, 2012, p. 18).
Na segunda metade do século XIX a região do Valongo apresentava uma série de
mudanças na sua “malha urbana. A Pedra do Sal, que à época mantinha contato com o mar,
estava mais afastada devido a um aterramento feito na área. Boa parte da área também
havia sido loteada e povoada.
O território da Pedra do Sal, por oferecer boas oportunidades de trabalho no
porto, nas casas comerciais de café, trapiches e estaleiros, atraiu novos
contingentes de moradores e trabalhadores. Dentre eles, imigrantes pobres
e contingentes significativos de afrodescendentes, oriundos de áreas
economicamente decadentes, como a Bahia, e do velho Vale do Paraíba
escravista, logo após a Abolição. Também fizeram parte destes novos
habitantes da região, grandes contingentes de soldados negros e suas
famílias, desmobilizados depois do término da Guerra do Paraguai, no final
dos anos de 1860 (ABREU; MATTOS, 2012, p. 23).
Mesmo que sua presença na área sempre fosse precária e transitória, posto
que ali estavam como inquilinos, moradores de barracos, ou trabalhadores
temporários, os afrodescendentes impingiram ao local, neste momento
histórico, entre as últimas três décadas do século XIX e as primeiras do
século XX, um reduto cultural reconhecidamente negro (ABREU; MATTOS,
2012, p. 24).
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Figura 5 – Heitor dos Prazeres. Roda de Samba. Óleo sobre tela, 50x60 cm. 1957.19
A pintura acima, retratada por Heitor dos Prazeres, apresenta uma cena de roda de
samba. A Pedra do Sal foi e tem sido importante para a manutenção de expressões culturais
africanas, tendo sido local de desenvolvimento de atividades religiosas e do surgimento de
manifestações artísticas como o samba, que veio a se tornar um ritmo nacional. No local,
surgiram nomes importantes da música nacional, sambistas como João da Baiana, Donga,
Heitor dos Prazeres, Paulo da Portela, Pixinguinha, Gilberto Alves, Bide e Marçal. Sendo
também espaço frequentado pela famosa baiana Tia Ciata, que teve papel fundamental para
a consolidação das rodas de samba, que aconteciam em sua casa, e que também foi figura
importante da religiosidade afro-brasileira.20 Por esses e outros motivos, a Pedra do Sal
constitui parte importante da história da cidade do Rio de Janeiro e do Brasil.
19
Disponível em:
<http://www.catalogodasartes.com.br/Upload/@Obras/Thiago%20Ferreira%20Melo/exptntheitordosprazeresB.jpg>. Acesso em:
01 nov. 2016.
20
Uma obra importante sobre o tema é Tia Ciata e a Pequena África no Rio, de Roberto Moura.
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Considerações finais
Como vimos acima, a região do Valongo foi e ainda é espaço de disputa de memória.
O local onde está o Cais, candidato a patrimônio mundial da humanidade21, revela em si as
marcas das constantes tentativas de apagamento, silenciamento e construção de uma nova
memória social e coletiva. Também a Pedra do Sal, mesmo depois de seu tombamento,
segue como centro de disputas entre Igreja Católica e a comunidade que vive nos arredores
e que frequenta a região. Estas constantes disputas estão diretamente ligadas com as
políticas de patrimonialização, quer seja na esfera federal, estadual ou municipal. Quando
órgãos como IPHAN e INEPAC definem o que é patrimônio, esse momento já é resultado de
uma disputa travada anteriormente.
Desde a criação do SPHAN, em 1937, percebe-se que há uma preferência em se
tombar bens de natureza material ligados à elite brasileira e com matriz predominantemente
portuguesa. O número de igrejas católicas tombadas como patrimônio histórico e artístico
nacional é bem elevado. São poucos os casos de igrejas tombadas que têm alguma relação
mais forte com grupos minoritários. Uma dessas exceções é justamente a Igreja de Nossa
Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos, citada nesse trabalho e que
dentre outras coisas também abriga o Museu do Negro. Essas discrepâncias ao definir o
que é patrimônio nacional brasileiro nos mostram como as escolhas são feitas em benefício
de determinados grupos, relegando outros grupos à marginalidade numa dita história oficial
do Brasil. Parece que claro que ao preterir elementos da cultura e da história afro-brasileira
e indígena estas políticas patrimoniais, mesmo que inconscientemente, ainda eram fruto de
um pensamento racista, muitas vezes velado.
No ano de 1988, a nova Constituição Federal, através de seu artigo 216, Seção II,
estabelecia o que poderia ser considerado patrimônio cultural brasileiro:
Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência
à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e
tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais
espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos
urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
paleontológico, ecológico e científico (BRASIL, 1988).
Essa nova concepção de patrimônio cultural, acabou abrindo precedente para que
fossem consideradas novas formas de patrimônio nacional brasileiro, não mais apenas
aquelas voltadas para a materialidade, mas também envolvendo outras manifestações
21
Maiores informações sobre a candidatura podem ser encontradas no Dossiê da candidatura do Cais do Valongo a Patrimônio
Mundial.
Disponível
em:
<http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossie_Cais_do_Valongo_versao_Portugues.pdf>. Acesso em: 01 mai.
2016.
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Revista Historiador Número 9. Ano 9. Fevereiro 2017.
Disponível em http://www.historialivre.com/revistahistoriador
culturais como “expressões” e “modos de fazer”. No ano 2000, através do Decreto 3551, que
criava o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, foi instituído o Registro de Bens
Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro. Esse decreto
estabelecia que os bens de natureza imaterial seriam registrados em algum dos livros: dos
Saberes, das Celebrações, das Formas de Expressão, e dos Lugares. Desta forma, o
Decreto acabou contribuindo para que um maior número de bens culturais de matriz afrobrasileira fosse considerado como patrimônio cultural nacional. Um dos casos mais
importantes foi o registro do Ofício das Baianas do Acarajé. Muitos historiadores, sociólogos
e antropólogos têm se dedicado a pesquisar e discutir sobre termos como cultura popular.
Contudo, nos últimos anos esse conceito tem ganhado significados diferentes,
principalmente em relação ao significado cunhado pelos antigos folcloristas. Segundo a
definição de Nestor Canclini, não haveria nenhuma cultura pura e todas seriam híbridas, ou
seja, todas seriam formadas através da alteridade e do contato com o outro, estando
sempre em constante processo de transformação e adaptação. No que se refere à cultura
popular, a historiadora Martha Abreu lembra que:
Há, certamente, uma posição clara, teórica e política – nada ingênua, digase de passagem – ao se defender a utilização da expressão cultura popular.
O objetivo é colocar no centro da investigação as pessoas de baixa renda,
geralmente identificadas e discriminadas socialmente pela cor de pele, pelo
local de moradia, pelo modo de ser e se vestir e pela pretensa
criminalidade. No sentido político, seriam os desprovidos de poder. Se
podem ser tratados genericamente por populares (sem a obrigação de
suprimirmos as possíveis e grandes diferenças entre eles, como as
distinções de gênero, raça, idade, região e religião), isto deve-se ao fato de
compartilharem certos aspectos, que devem ser demonstrados, tais como
condições de vida, significados de festas e danças, gostos, e, de modo
geral, assim serem considerados por autoridades policiais, professores,
intelectuais e, muitas vezes, por eles próprios (ABREU, 2009, pp. 94-95).
Segundo essa definição de cultura popular, é possível identificarmos também como
tais uma porção de elementos culturais afro-brasileiros como a capoeira e o samba. Ambos
foram durante certo tempo criminalizados, mas hoje estão contemplados através de políticas
de patrimonialização. O samba através de sua relação com o Quilombo da Pedra do Sal e a
capoeira registrada como patrimônio imaterial. Segundo Abreu a identificação de uma
cultura popular pode contribuir para se enfrentar a globalização, “reforçando a perspectiva
de existência de diferentes significados sociais em torno das manifestações culturais
coletivas”, assim como “pode também estimular a criação de identidades sociais/culturais e
vínculos duradouros entre grupos de reconhecida expressão cultural ou religiosa” (ABREU,
2009, p. 95). Função que parece se enquadrar também ao patrimônio cultural, que pode
contribuir para reforçar identidades comunitárias, como no caso do Quilombo da Pedra do
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Sal. Todavia, é necessário que se tenha um cuidado em não transformar elementos culturais
como algo meramente legitimador de um discurso nacionalista.
Embora tenha havido um avanço no número de bens de matriz afro-brasileira
registrados como patrimônio imaterial, ainda engatinhamos quando o assunto envolve os
bens de cultura material. A discrepância em relação ao número de bens tombados de matriz
predominantemente portuguesa ainda é muito grande.
Sabemos que a patrimonialização está associada à criação dos lugares de memória.
Como são poucos esses monumentos, prédios e sítios tombados de matriz afro-brasileira,
os locais de rememoração acabam conferindo visibilidade na maioria das vezes apenas aos
mesmos grupos. Os monumentos, que têm a função de nos fazer lembrar de algo que
vivemos diretamente ou por tabela, acabam fazendo lembrar majoritariamente de “notórias”
figuras políticas nacionais, de determinados grupos religiosos associados às elites que
governaram o Brasil desde o seu princípio, etc. Esse é um dos motivos pelos quais lugares
como o Quilombo da Pedra do Sal são importantes para a rememoração de grupos
historicamente esquecidos e silenciados. Por ser um lugar diretamente relacionado à cultura
afro-brasileira, o Quilombo da Pedra do Sal nos faz lembrar da importância dessa cultura
para a construção identitária de parte do povo brasileiro. Mesmo o Cais do Valongo, sendo
ainda candidato a patrimônio da humanidade, já atende à função de lugar de memória.
Entende-lo como lugar de “descomemoração” implica lembrar algo que a sociedade tentou
esquecer através das reformas que cobriram o antigo cais. Conferir protagonismo aos
diferentes grupos que formam o Brasil contribui para que não incorramos no risco de uma
história única22.
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22
Conceito apresentado por ChimamandaNgozieAdichie na palestra intituladaThe Dangerof Single Story.
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