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A região do Valongo: memória de quem?

2017, Revista Historiador

O presente artigo pretende discutir as tentativas de construção da região do Valongo como lugar de memória, apresentandoum panorama histórico da região.Uma atenção especial é dada ao cais, construído, reconstruído e silenciado através das reformas e perspectivas dos sujeitos envolvidos. A Pedra do Sal e o Cemitério dos Pretos Novos que, dentre outros lugares, fazem parte do Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana também são contemplados, assim como a relação da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito com a comunidade negra e com os movimentos de abolição da escravidão. Palavras-chave: Valongo; lugar de memória; silenciamento; esquecimento; resistência.

Revista Historiador Número 9. Ano 9. Fevereiro 2017. Disponível em http://www.historialivre.com/revistahistoriador 103 A REGIÃO DO VALONGO: MEMÓRIA DE QUEM? Ismael Wolf1 Resumo: O presente artigo2 pretende discutir as tentativas de construção da região do Valongo como lugar de memória, apresentandoum panorama histórico da região.Uma atenção especial é dada ao cais, construído, reconstruído e silenciado através das reformas e perspectivas dos sujeitos envolvidos. A Pedra do Sal e o Cemitério dos Pretos Novos que, dentre outros lugares, fazem parte do Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana também são contemplados, assim como a relação da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito com a comunidade negra e com os movimentos de abolição da escravidão. Palavras-chave: Valongo; lugar de memória; silenciamento; esquecimento; resistência. Introdução Os lugares de memória pertencem a dois domínios, que a tornam interessante, mas também complexa: simples e ambíguos, naturais e artificiais, imediatamente oferecidos à mais sensível experiência e, ao mesmo tempo, sobressaindo da mais abstrata elaboração. São lugares, com efeito nos três sentidos da palavra, material, simbólico e funcional, simultaneamente, somente em graus diversos, mesmo um lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivos, só é lugar de memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica (NORA, 1993, p. 21). A região do Valongo, onde está localizado o Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana3, tem ganhado maior repercussão nos últimos anos, desde as descobertas arqueológicas do antigo piso do cais de mesmo nome e também do antigo cais da Imperatriz. Tais descobertas, ocorridas no ano de 2011, teriam acontecido durante as escavações para a obra de drenagem do Projeto Porto Maravilha (DAFLON, 2011). Através dessas descobertas arqueológicas do cais e também do antigo Cemitério dos 1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio; Especialista em Saberes e Práticas na Educação Básica (Ênfase em Ensino de História) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ; Graduado em História (Licenciatura Plena) pela Faculdade Porto-Alegrense - FAPA. 2 Alguns fragmentos deste artigo foram apresentados originalmente como parte do Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização Saberes e Práticas na Educação Básica (Ênfase em Ensino de História), realizado na UFRJ, no período de 2014 a 2016. O trabalho foi originalmente orientado pela Profa. Dra. Giovana Xavier da Conceição Nascimento. A versão publicada neste artigo contém algumas alterações em relação à versão original. 3 Disponível em: <http://www.portomaravilha.com.br/circuito>. Acesso em: 22 abr. 2016. Revista Historiador Número 9. Ano 9. Fevereiro 2017. Disponível em http://www.historialivre.com/revistahistoriador Pretos Novos4reascendeu o debate público sobre a importância da herança africana na região, algo que já era evidenciado através de disputas pelo espaço da Pedra do Sal e seus arredores5, espaço de constante disputa entre a comunidade remanescente de quilombolas e a Igreja Católica. Todavia, essas disputas pelo espaço e pela memória, já estavam presentes na região desde meados do século XIX. No ano de 1843, o então governo brasileiro realizou uma grande reforma na região do Valongo. O antigo cais, que havia sido palco da chegada de tantos africanos ao Brasil na condição de escravos, dava lugar a um novo, que veio a ser conhecido como Cais da Imperatriz. Nessa reforma, o antigo cais do Valongo foi aterrado e totalmente coberto pelo sucessor. Essa medida certamente visava esconder a vergonha da escravidão que havia assolado aquele lugar durante anos. É o que nos diz FLORENCIO: [...] Construído em 1843, por Grandjean de Montigny, famoso arquiteto da Missão Artística Francesa. O Cais foi inaugurado para recepcionar a Imperatriz Teresa Cristina em seu casamento com D. Pedro II. Essa memória oficial se encontra até hoje preservada no nome e no monumento, um obelisco que contém gravado em sua base o marco histórico da chegada da Imperatriz. Este é um exemplo significativo de como a construção de determinado lugar de memória, através de um monumento público, pode servir para ocultar e apagar outras memórias locais. Em 1843, quando concluída a obra para a chegada da Imperatriz, funcionava nos arredores desta localidade um dos mais ativos mercados de escravos do mundo. A política da memória imperial, quando opta por construir um obelisco exaltando a presença europeia nas paragens tropicais, afirma seu desejo de obliterar, de tirar da memória, uma presença muito mais significativa nesta região: a presença dos africanos escravizados que chegavam massivamente ao Cais do Valongo (FLORENCIO, 2015, pp. 513514). Após essa tentativa de apagamento da memória do antigo cais do Valongo, uma nova reforma foi realizada já no período republicano. Na primeira década do século XX, o então prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Francisco Pereira Passos, empreendeu uma reforma urbanística em alguns pontos da cidade. Nessa reforma, que incluiu parte da região do Valongo, o então cais da Imperatriz também acabou sendo coberto por uma nova camada de construções. Conhecida como Reforma Pereira Passos, esta tentou aplicar uma arquitetura que lembraria a de Paris. Juntamente com outros lugares como a Pedra do Sal, o Cemitério dos Pretos Novos e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito6, o cais do Valongo caracteriza-se como lugar de memória7 africana e da escravidão. Sobre o conceito de lugares de memória, Pierre Nora nos explica que o sentimento de aceleração cresce cada vez mais em algumas sociedades fazendo com que percamos nossa “ancoragem”. Então, são criados lugares de 4 O Cemitério dos Pretos Novos foi encontrado no ano de 1996. Atualmente o local abriga o Instituto dos Pretos Novos – IPN. A Pedra do Sal foi tombada como patrimônio material do Estado do Rio de Janeiro no ano de 1987. 6 Localizada na Rua Uruguaiana, 77 - Centro, Rio de Janeiro - RJ. 7 Conceito criado por Pierre Nora. 5 104 Revista Historiador Número 9. Ano 9. Fevereiro 2017. Disponível em http://www.historialivre.com/revistahistoriador memória para sabermos de onde viemos e para onde vamos (NORA, 1993, pp. 7-28). De acordo com NORA: Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não existe memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter os aniversários, organizar as celebrações, pronunciar as honras fúnebres, estabelecer contratos, porque estas operações não são naturais. É por isso a defesa pelas minorias, de uma memória refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente guardados nada mais do que levar à incandescência a verdade de todos os lugares de memórias. Sem vigilância comemorativa, a história depressa os varreria. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que eles envolvem, eles seriam inúteis. E se em compensação, a história não se apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, sová-los e petrificá-los eles não se tornariam lugares de memória. É este vai-e-vem que os constitui: momentos de história arrancados do movimento de história, mas que lhe são devolvidos. Não mais inteiramente a vida, nem mais inteiramente a morte, como as conchas na praia quando o mar se retira da memória viva (NORA, 1993, p. 13). O conceito é também bem exemplificado por Michael Pollak: Existem lugares de memória, lugares particularmente ligados a uma lembrança, que pode ser uma lembrança pessoal, mas também pode não ter apoio no tempo cronológico. Pode ser, por exemplo, um lugar de férias na infância, que permaneceu muito forte na memória da pessoa, muito marcante, independentemente da data real em que a vivência se deu. Na memória mais pública, nos aspectos mais públicos da pessoa, pode haver lugares de apoio da memória, que são os lugares de comemoração. Os monumentos aos mortos, por exemplo, podem servir de base a uma relembrança de um período que a pessoa viveu por ela mesma, ou de um período vivido por tabela (POLLAK, 1992, p. 202). As constantes disputas pela memória coletiva e os diferentes processos de construção de uma memória oficial da região do Valongo têm se caracterizado pelas ações do Estado que quase sempre têm relegado a memória e a cultura africana a uma condição de esquecimento e não de protagonismo. Embora na maioria das vezes esteja ligada a fenômenos de dominação, a clivagem entre memória oficial e dominante e memórias subterrâneas, assim como a significação do silêncio sobre o passado, não remete forçosamente à oposição entre Estado dominador e sociedade civil. Encontramos com mais frequência esse problema nas relações entre grupos minoritários e sociedade englobante (POLLAK, 1989, p.4). São esses grupos minoritários, nesse caso específico, os de ascendência africana, que resistem para manter as suas memórias vivas. Essas memórias subterrâneas, que clamam por serem trazidas para a superfície, necessitam de alguém que as escute. O processo de silenciamento pelo qual estas tiveram que se submeter, colocou-as em uma condição subalterna dentro da chamada memória pública oficial. É importante notarmos que a memória e o esquecimento andam juntos. O processo de lembrar está diretamente relacionado ao de esquecer. Todavia, conforme Michael Pollak nos lembra: 105 Revista Historiador Número 9. Ano 9. Fevereiro 2017. Disponível em http://www.historialivre.com/revistahistoriador O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas(POLLAK, 1989, p.5). Mesmo silenciadas pela sociedade englobante e pelo discurso oficial, essas comunidades negras da região do Valongo mantiveram suas raízes e sua cultura através das tradições familiares e de lugares como a Pedra do Sal, que sempre possibilitaram que esses descendentes de africanos dessem continuidade, mesmo que clandestinamente, a expressões culturais e religiosas trazidas da África. Assim como a criação de novas formas de expressões culturais genuinamente brasileiras. “Uma vez rompido o tabu, uma vez que as memórias subterrâneas conseguem invadir o espaço público, reivindicações múltiplas e dificilmente previsíveis se acoplam a essa disputa de memória” (POLLAK, 1989, p. 5). No caso das memórias da região Valongo, devemos lembrar que elas existem através de personagens, arquitetura, movimentos e fatos históricos, mas também são significativas quando tratamos da dor e violência que fizeram parte dessa história (LIMA, 2016). De acordo com Mônica Lima: Essa dor que atravessa a memória sensível dos descendentes faz do trauma da escravidão um processo cultural de base na formação de identidades no pós-abolição. Sem nenhum exagero, e com todo o drama, não há como encarar o Cais do Valongo e permitir que essa dimensão da história se dissolva no tempo. Até porque, como a tradição oral africana, ela está viva, e esbarramos com ela nas nossas ruas e quebradas hoje. O trauma coletivo não foi superado, ainda que em alguns casos se consiga aprender de alguma forma a lidar com ele (LIMA, 2016). Através do histórico da região do Valongo, podemos observar claramente a disputa pelo estabelecimento de uma memória oficial na região. As sucessivas tentativas de apagamento de uma memória anterior e de estabelecimento de um novo lugar de memória oficial mostram como isso foi feito durante o Império e depois em momentos diferentes da República. Os achados arqueológicos trazem à tona essas memórias subterrâneas8, quase que “materializando” esse conceito, já que as descobertas arqueológicas, outrora escondidas sob a terra, foram expostas trazendo consigo uma quantidade enorme e variada de elementos da cultura material africana e também elementos que evidenciavam a vergonha e as desgraças em consequência da escravidão. Essas memórias subterrâneas que prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados. A memória entra em disputa. Os objetos de pesquisa são escolhidos de preferência onde existe conflito e competição entre memórias concorrentes (POLLAK, 1989, p.4). 8 Conceito criado por Michael Pollak. 106 Revista Historiador Número 9. Ano 9. Fevereiro 2017. Disponível em http://www.historialivre.com/revistahistoriador Figura 1- Cais do Valongo Fonte: Cais do Valongo pode se tornar Patrimônio da Humanidade (Autor desconhecido)9 O fato é que durante todos esses períodos que se sucederam às reformas, essas tentativas de reorganização do espaço negligenciaram completamente o lugar como palco da chegada dos africanos escravizados ao Brasil. O antigo cais do Valongo, que estava enterrado e esquecido pela maioria da população, estava nessas condições devido às diversas tentativas dessa formação de uma memória coletiva e oficial por parte dos governos que se sucederam. Sobre essas tentativas de construção de uma memória nacional, Michael Pollak nos diz: A memória organizadíssima, que é a memória nacional, constitui um objeto de disputa importante, e são comuns os conflitos para determinar que datas e que acontecimentos vão ser gravados na memória de um povo. Esse último elemento da memória – a sua organização em função das preocupações pessoais e políticas do momento – mostra que a memória é um fenômeno construído (POLLAK, 1992, p. 203). É clara a opção feita na região. Privilegiou-se a memória de determinadas camadas e setores da sociedade, enquanto grupos minoritários10 e presentes na região, também conhecida por ser parte da chamada “Pequena África”11, tiveram suas memórias parcialmente negligenciadas. Mesmo assim, essas memórias de raiz africana, memórias subterrâneas, desses grupos minoritários, resistiram e resistem bravamente através de elementos de sua cultura e de sua presença forte e marcante na região. Essas memórias 9 Disponível em: <http://creci-rj.gov.br/cais-do-valongo-pode-se-tornar-patrimonio-da-humanidade/>. Acesso em: 22 abr. 2016. No sentido de não serem representativas nas classes dirigentes. 11 Nome criado por Heitor dos Prazeres para designar a área da zona portuária do Rio de Janeiro, onde estão a Pedra do Sal, Santo Cristo, Gamboa e Saúde. 10 107 Revista Historiador Número 9. Ano 9. Fevereiro 2017. Disponível em http://www.historialivre.com/revistahistoriador subterrâneas, que estavam silenciadas, ganharam fôlego e força através do tombamento do Quilombo Pedra do Sal e da exposição dos achados arqueológicos do cais do Valongo e do Cemitério dos Pretos Novos. Partindo desta perspectiva, discutirei as tentativas de construção da região do Valongo como lugar de memória. Dando atenção especial ao cais, construído, reconstruído e silenciado através das reformas e perspectivas dos sujeitos envolvidos. Também darei atenção à Pedra do Sal e ao Cemitério dos Pretos Novos, que dentre outros lugares, fazem parte do Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana. Abordarei ainda a relação da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito com a comunidade negra e com os movimentos de abolição da escravidão. A Igreja compõe este trabalho pelo fato de estar nos arredores da região e também ser considerada como um lugar de memória da cultura africana e afro-brasileira. Investi em apresentar um panorama histórico da região, considerando que este trabalho pode se tornar um material importante para professoras e professores em seu fazer docente. O Valongo e o Cemitério dos Pretos Novos A historiografia sobre o tráfico de escravos no mundo Atlântico e sobre a chegada desses na América portuguesa têm contribuído de forma significativa para a compreensão deste processo.12 Em meados do século XVIII, enquanto a cidade do Rio de Janeiro crescia espacial e economicamente, o tráfico e a chegada de africanos escravizados era prática comum na região. De acordo com Honorato: O comércio de escravos era feito na rua Direita, próximo a alfândega onde os escravos desembarcavam. Era a área mais movimentada da cidade, que abrigava a Mesa do Bem Comum (depois Junta do Comércio), o Palácio dos Governadores, as repartições públicas mais importantes e os armazéns e moradias dos revendedores de escravos novos (HONORATO, 2008, p. 67). Com o crescimento populacional, as difíceis condições sanitárias e a falta de estrutura da cidade, com o tempo passou-se a sugerir que este comércio de escravos fosse realizado fora da região central. Honorato lembra que “conflitos entre os diversos agentes do tráfico e comércio negreiro na cidade tiveram relação direta com a decisão do Senado da Câmara de transferir o comércio de escravos novos13 para a periferia da cidade” (HONORATO, 2008, p. 67). Ainda no século XVIII, foi deliberado que o então comércio de escravos deixasse a região central da cidadee fosse transferido para a região do Valongo, o que seria também um facilitador, já que a região também era contemplada com acesso pelo 12 Alguns trabalhos importantes sobre o tráfico negreiro têm sido realizados pela historiografia brasileira. Destaco aqui as pesquisas de Jaime Rodrigues e Mary Karasch. 13 Escravos novos: Recém-chegados da África. 108 Revista Historiador Número 9. Ano 9. Fevereiro 2017. Disponível em http://www.historialivre.com/revistahistoriador mar. Algo importante, já que, como falamos antes, esses africanos escravizados chegavam pelo oceano Atlântico. Deslocar o comércio de escravos para a periferia significava também afastar essa nova população negra do centro administrativo da cidade. Não seria mais necessário para a elite ter contato com escravizados novos, que muitas vezes chegavam doentes e alguns já mortos. Essa era uma das justificativas da administração da cidade, que acreditava que isso poderia reduzir os índices de epidemias da população local (HONORATO, 2008, p. 70).14 Sobre essa medida: A partir de então, uma vez desembarcados, e cumpridas as formalidades legais da alfândega, os escravos novos deveriam ser reembarcados e conduzidos ao Valongo, onde se chegava através do cais do Valongo situado numa enseada a noroeste da cidade, na Freguesia de Santa Rita. O Valongo localizado entre o outeiro da Saúde e o morro do Livramento podia também ser atingido pelo chamado caminho do Valongo que ia em direção mar passando por entre os morros da Conceição e Livramento. O chamado “mercado” não era uma grande construção ou espaço coletivo usado para negociar como muitos acreditam, mas casas comerciais separadas, situadas dos dois lados de algumas ruas (HONORATO, 2008, p. 74). Figura 2 – Jean-Baptiste Debret. Mercado da Rua do Valongo. In: Voyage pittoresque et historique au Brésil.15 1831. A pintura acima, feita pelo francês Jean-Baptiste Debret, que viveu no Brasil no início do século XIX, mostra-nos uma casa comercial onde era realizado o comércio de escravos. A pintura, chamada de Mercado da Rua do Valongo, fornece uma ideia de como eram essas 14 Ver também o livro A Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro, de Júlio César Medeiros da Silva Pereira. 15 Publicado no Brasil como Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. 109 Revista Historiador Número 9. Ano 9. Fevereiro 2017. Disponível em http://www.historialivre.com/revistahistoriador casas de comércio de escravos que faziam parte do “mercado” que ficava na região do Valongo. Debret retratou algumas cenas da escravidão no Brasil, incluindo cenas da própria região do Valongo. Assim como Debret, outros viajantes que estiveram no Brasil também fizeram registros sobre a escravidão e seus mercados. Figura 3 - Johann Moritz Rugendas. Negros no porão de um Navio Negreiro. In: Voyage pittoresquedansleBrésil.16 1835. A imagem acima é uma representação de um porão de um navio negreiro, onde os africanos escravizados eram normalmente transportados. Esses escravos novos, ou pretos novos, como eram chamados os africanos que chegavam ao território brasileiro, quando faleciam, eram levados para uma área que era conhecida como Cemitério dos Pretos Novos. Essa área, não muito distante do cais do Valongo, servia como espaço para serem enterrados seus restos mortais. É importante frisar que não havia qualquer cuidado nesses enterros, que não obedeciam a qualquer tipo de disposição e não eram acompanhados de ritual fúnebre, considerado adequado, tanto para a religiosidade daqueles africanos quanto para a dos portugueses. Os cadáveres, que eram todos jogados em valas comuns, muitas vezes tinham seus ossos quebrados e também eram incinerados. Próximo à rua do Valongo está o cemitério dos que escapam para sempre da escravidão [...] na entrada daquele espaço cercado por um muro de 50 braças em quadra, estava assentado um velho, em vestes de padre, lendo um livro de rezas pelas almas dos infelizes que tinham sido arrancados de sua pátria por homens desalmados, e a uns dez passos dele, alguns pretos estavam ocupados em cobrir de terra os seus patrícios mortos, e, sem se darem ao trabalho de fazer uma cova, jogam apenas um pouco de terra 16 Publicado no Brasil como Viagem pitoresca através do Brasil. 110 Revista Historiador Número 9. Ano 9. Fevereiro 2017. Disponível em http://www.historialivre.com/revistahistoriador sobre o cadáver, passando em seguida a sepultar outro [...] (FREIREYSS, 1982. p. 134). Essa prática fúnebre de morrer e não ter um tratamento adequado chocava-se com os códigos culturais da maioria dos africanos. Tal choque foi um dos motivos que culminou na criação de irmandades religiosas de homens pretos dentro da religião oficial de então, o catolicismo romano. É o caso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos, por exemplo, que se tornou diretamente engajada na luta pela abolição da escravatura. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito esteve diretamente ligada ao movimento abolicionista. Na segunda metade do século XIX, a Irmandade participou ativamente do processo de libertação de escravos. Uma carta do Bispo D. Pedro Maria de Lacerda, da diocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, escrita e endereçada à Irmandade em 24 de agosto de 1871, louva a conduta “piedosa” da mesma de libertar escravos e faz também uma doação em dinheiro para a missão (WOLF, 2016, p. 66). A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos alcançou grande importância entre africanos e descendentes, tendo congregado nomes importantes do movimento abolicionista e da história do Brasil, como Mestre Valentim17. Esta Irmandade, que durante o século XVII reunia-se na igreja que se localizava no Morro do Castelo, desde o início do século XVIII está sediada na Igreja de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos18, localizada na rua Uruguaiana, no Centro da cidade do Rio de Janeiro. O local abriga também o Museu do Negro, que atualmente funciona no 2º andar do prédio da Igreja, sendo um espaço dedicado à representação histórica do negro no Brasil (WOLF, 2016, p. 74). 17 Valentim da Fonseca e Silva (1745-1813): Afrodescendente, escultor, entalhador e urbanista encarregado das obras da cidade do Rio de Janeiro entre 1779 e 1790. 18 Ver figura 4. 111 Revista Historiador Número 9. Ano 9. Fevereiro 2017. Disponível em http://www.historialivre.com/revistahistoriador Figura 4 – Igreja de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos. Fonte: Arquivo pessoal Voltando ao Cemitério dos Pretos Novos, o historiador José Murilo de Carvalho destaca: O cemitério destinava-se ao sepultamento dos pretos novos, isto é, dos escravos que morriam após a entrada dos navios na Baía de Guanabara ou imediatamente depois do desembarque, antes de serem vendidos. Ele funcionou de 1772 a 1830 no Valongo, faixa do litoral carioca que ia da Prainha à Gamboa. Funcionara antes no Largo de Santa Rita, em plena cidade, próximo de onde também se localizava o mercado de escravos recém-chegados. O vice-rei, marquês do Lavradio, diante dos enormes inconvenientes da localização inicial, ordenou que mercado e cemitério fossem transferidos para o Valongo, área então localizada fora dos limites da cidade. O Valongo entrou, então, para a história da cidade como um local de horrores. Nele, os escravos que sobreviviam à viagem transatlântica recebiam o passaporte para a senzala. Os que não 112 Revista Historiador Número 9. Ano 9. Fevereiro 2017. Disponível em http://www.historialivre.com/revistahistoriador sobreviviam tinham seus corpos submetidos a enterro degradante. Para todos, era o cenário tétrico do comércio de carne humana. O cemitério foi fechado em 1830 em decorrência de inúmeras reclamações dos moradores que aos poucos tinham povoado o local e do tratado de extinção do tráfico imposto pela Inglaterra, ratificado em 1827 para entrar em vigor três anos depois. Em tese, se não havia mais tráfico, não podia haver pretos novos e sem esses não podia haver cemitério de pretos novos. A história do tráfico foi outra, mas o cemitério foi de fato fechado. Após 1830, mercado e cemitério saíram do Valongo. O tráfico e a prática do sepultamento à flor da terra deslocaram-se para outros locais. Nos seis anos antes do fechamento, mais de seis mil escravos foram enterrados no Valongo, se se pode assim descrever o tratamento dado aos cadáveres (CARVALHO, 2004, p. 9). A Pedra do Sal Nos arredores da região do Valongo, encontramos a chamada Pedra do Sal, anteriormente conhecida como Pedra da Prainha. Ela está diretamente relacionada com a história do Valongo. Segundo as historiadoras Martha Abreu e Hebe Mattos: Até meados do século XVIII, a famosa Pedra do Sal, inicialmente denominada Pedra da Prainha, e a região em torno, conhecida genericamente por Prainha, eram pouco habitadas e bem próximas ao mar. Os pescadores e alguns trapiches do sal (nome que acabou marcando a Pedra da Prainha) compunham a paisagem, ao lado da Fortaleza, do Palácio do Bispo, da Igreja de São Francisco e da Cadeia do Aljube, para onde iam presos os escravos, que cometiam crimes, e os quilombolas. Chácaras pontuavam os morros próximos, como o da Conceição e Providência. Escravos e afrodescendentes libertos já marcavam a vida da região, com o trabalho nos trapiches do sal, e deixaram registrada a sua presença nas áreas rurais dos morros que circundavam a cidade de então. A partir de meados do século XVIII, com a presença de trapiches e casas comerciais, a região passou a se articular mais à cidade [...]. Entretanto, manteve um certo isolamento provocado pela proteção que os morros da Conceição e Providência ofereciam. Foi exatamente esse relativo isolamento da área em torno da Pedra do Sal que motivou a sua escolha para o funcionamento do crescente comércio de africanos escravizados. Entre as décadas de 1760 e 1830, o território passou a ser conhecido e identificado como o local de depósito e venda da “carne humana” trazida da África. Era o Valongo (Vale longo) (ABREU; MATTOS, 2012, p. 13). Através dessa ocupação sistemática do Valongo, a Pedra do Sal passou então a receber um grande número de africanos e com isso a sua paisagem passou a ser predominantemente negra (ABREU; MATTOS, 2012, p. 14). A Pedra do Sal, juntamente com toda a região portuária do Valongo, era um espaço onde viviam os escravos novos, mas também alguns que já se encontravam em território brasileiro a mais tempo. No início do século XIX, com a chegada da Família Real e a organização do mercado de escravos no Valongo, o povoamento da região, com comerciantes e trabalhadores escravos dos trapiches, dos ancoradouros, estaleiros e das firmas comerciais, que apoiavam o comércio africano, não demorou a aumentar. O rico negócio com a “mercadoria negra” atraiu para o 113 Revista Historiador Número 9. Ano 9. Fevereiro 2017. Disponível em http://www.historialivre.com/revistahistoriador local uma série de atividades de benefícios: criou-se um sistema de transporte marítimo entre o Valongo e outros bairros e vários melhoramentos urbanos foram realizados no local. Mas a região não perderia a marca da presença africana. Mesmo proibidos e perseguidos, é impressionante constatar que numa região com tamanha procura e movimento pudesse persistir a presença de feiticeiros, como as autoridades imperiais chamavam as lideranças religiosas negras (ABREU; MATTOS, 2012, p. 16). Mesmo com a proibição do comércio de escravos no Valongo, no ano de 1831, essa atividade continuou acontecendo clandestinamente. Africanos e descendentes de escravizados e libertos continuavam maciçamente presentes no território, alguns envolvidos com o comércio e outros com o transporte de café. Essa grande movimentação econômica possibilitou que a região continuasse se expandindo e adquirindo importância dentro da cidade do Rio de Janeiro (ABREU; MATTOS, 2012, p. 18). Na segunda metade do século XIX a região do Valongo apresentava uma série de mudanças na sua “malha urbana. A Pedra do Sal, que à época mantinha contato com o mar, estava mais afastada devido a um aterramento feito na área. Boa parte da área também havia sido loteada e povoada. O território da Pedra do Sal, por oferecer boas oportunidades de trabalho no porto, nas casas comerciais de café, trapiches e estaleiros, atraiu novos contingentes de moradores e trabalhadores. Dentre eles, imigrantes pobres e contingentes significativos de afrodescendentes, oriundos de áreas economicamente decadentes, como a Bahia, e do velho Vale do Paraíba escravista, logo após a Abolição. Também fizeram parte destes novos habitantes da região, grandes contingentes de soldados negros e suas famílias, desmobilizados depois do término da Guerra do Paraguai, no final dos anos de 1860 (ABREU; MATTOS, 2012, p. 23). Mesmo que sua presença na área sempre fosse precária e transitória, posto que ali estavam como inquilinos, moradores de barracos, ou trabalhadores temporários, os afrodescendentes impingiram ao local, neste momento histórico, entre as últimas três décadas do século XIX e as primeiras do século XX, um reduto cultural reconhecidamente negro (ABREU; MATTOS, 2012, p. 24). 114 Revista Historiador Número 9. Ano 9. Fevereiro 2017. Disponível em http://www.historialivre.com/revistahistoriador Figura 5 – Heitor dos Prazeres. Roda de Samba. Óleo sobre tela, 50x60 cm. 1957.19 A pintura acima, retratada por Heitor dos Prazeres, apresenta uma cena de roda de samba. A Pedra do Sal foi e tem sido importante para a manutenção de expressões culturais africanas, tendo sido local de desenvolvimento de atividades religiosas e do surgimento de manifestações artísticas como o samba, que veio a se tornar um ritmo nacional. No local, surgiram nomes importantes da música nacional, sambistas como João da Baiana, Donga, Heitor dos Prazeres, Paulo da Portela, Pixinguinha, Gilberto Alves, Bide e Marçal. Sendo também espaço frequentado pela famosa baiana Tia Ciata, que teve papel fundamental para a consolidação das rodas de samba, que aconteciam em sua casa, e que também foi figura importante da religiosidade afro-brasileira.20 Por esses e outros motivos, a Pedra do Sal constitui parte importante da história da cidade do Rio de Janeiro e do Brasil. 19 Disponível em: <http://www.catalogodasartes.com.br/Upload/@Obras/Thiago%20Ferreira%20Melo/exptntheitordosprazeresB.jpg>. Acesso em: 01 nov. 2016. 20 Uma obra importante sobre o tema é Tia Ciata e a Pequena África no Rio, de Roberto Moura. 115 Revista Historiador Número 9. Ano 9. Fevereiro 2017. Disponível em http://www.historialivre.com/revistahistoriador Considerações finais Como vimos acima, a região do Valongo foi e ainda é espaço de disputa de memória. O local onde está o Cais, candidato a patrimônio mundial da humanidade21, revela em si as marcas das constantes tentativas de apagamento, silenciamento e construção de uma nova memória social e coletiva. Também a Pedra do Sal, mesmo depois de seu tombamento, segue como centro de disputas entre Igreja Católica e a comunidade que vive nos arredores e que frequenta a região. Estas constantes disputas estão diretamente ligadas com as políticas de patrimonialização, quer seja na esfera federal, estadual ou municipal. Quando órgãos como IPHAN e INEPAC definem o que é patrimônio, esse momento já é resultado de uma disputa travada anteriormente. Desde a criação do SPHAN, em 1937, percebe-se que há uma preferência em se tombar bens de natureza material ligados à elite brasileira e com matriz predominantemente portuguesa. O número de igrejas católicas tombadas como patrimônio histórico e artístico nacional é bem elevado. São poucos os casos de igrejas tombadas que têm alguma relação mais forte com grupos minoritários. Uma dessas exceções é justamente a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos, citada nesse trabalho e que dentre outras coisas também abriga o Museu do Negro. Essas discrepâncias ao definir o que é patrimônio nacional brasileiro nos mostram como as escolhas são feitas em benefício de determinados grupos, relegando outros grupos à marginalidade numa dita história oficial do Brasil. Parece que claro que ao preterir elementos da cultura e da história afro-brasileira e indígena estas políticas patrimoniais, mesmo que inconscientemente, ainda eram fruto de um pensamento racista, muitas vezes velado. No ano de 1988, a nova Constituição Federal, através de seu artigo 216, Seção II, estabelecia o que poderia ser considerado patrimônio cultural brasileiro: Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (BRASIL, 1988). Essa nova concepção de patrimônio cultural, acabou abrindo precedente para que fossem consideradas novas formas de patrimônio nacional brasileiro, não mais apenas aquelas voltadas para a materialidade, mas também envolvendo outras manifestações 21 Maiores informações sobre a candidatura podem ser encontradas no Dossiê da candidatura do Cais do Valongo a Patrimônio Mundial. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossie_Cais_do_Valongo_versao_Portugues.pdf>. Acesso em: 01 mai. 2016. 116 Revista Historiador Número 9. Ano 9. Fevereiro 2017. Disponível em http://www.historialivre.com/revistahistoriador culturais como “expressões” e “modos de fazer”. No ano 2000, através do Decreto 3551, que criava o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, foi instituído o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro. Esse decreto estabelecia que os bens de natureza imaterial seriam registrados em algum dos livros: dos Saberes, das Celebrações, das Formas de Expressão, e dos Lugares. Desta forma, o Decreto acabou contribuindo para que um maior número de bens culturais de matriz afrobrasileira fosse considerado como patrimônio cultural nacional. Um dos casos mais importantes foi o registro do Ofício das Baianas do Acarajé. Muitos historiadores, sociólogos e antropólogos têm se dedicado a pesquisar e discutir sobre termos como cultura popular. Contudo, nos últimos anos esse conceito tem ganhado significados diferentes, principalmente em relação ao significado cunhado pelos antigos folcloristas. Segundo a definição de Nestor Canclini, não haveria nenhuma cultura pura e todas seriam híbridas, ou seja, todas seriam formadas através da alteridade e do contato com o outro, estando sempre em constante processo de transformação e adaptação. No que se refere à cultura popular, a historiadora Martha Abreu lembra que: Há, certamente, uma posição clara, teórica e política – nada ingênua, digase de passagem – ao se defender a utilização da expressão cultura popular. O objetivo é colocar no centro da investigação as pessoas de baixa renda, geralmente identificadas e discriminadas socialmente pela cor de pele, pelo local de moradia, pelo modo de ser e se vestir e pela pretensa criminalidade. No sentido político, seriam os desprovidos de poder. Se podem ser tratados genericamente por populares (sem a obrigação de suprimirmos as possíveis e grandes diferenças entre eles, como as distinções de gênero, raça, idade, região e religião), isto deve-se ao fato de compartilharem certos aspectos, que devem ser demonstrados, tais como condições de vida, significados de festas e danças, gostos, e, de modo geral, assim serem considerados por autoridades policiais, professores, intelectuais e, muitas vezes, por eles próprios (ABREU, 2009, pp. 94-95). Segundo essa definição de cultura popular, é possível identificarmos também como tais uma porção de elementos culturais afro-brasileiros como a capoeira e o samba. Ambos foram durante certo tempo criminalizados, mas hoje estão contemplados através de políticas de patrimonialização. O samba através de sua relação com o Quilombo da Pedra do Sal e a capoeira registrada como patrimônio imaterial. Segundo Abreu a identificação de uma cultura popular pode contribuir para se enfrentar a globalização, “reforçando a perspectiva de existência de diferentes significados sociais em torno das manifestações culturais coletivas”, assim como “pode também estimular a criação de identidades sociais/culturais e vínculos duradouros entre grupos de reconhecida expressão cultural ou religiosa” (ABREU, 2009, p. 95). Função que parece se enquadrar também ao patrimônio cultural, que pode contribuir para reforçar identidades comunitárias, como no caso do Quilombo da Pedra do 117 Revista Historiador Número 9. Ano 9. Fevereiro 2017. Disponível em http://www.historialivre.com/revistahistoriador Sal. Todavia, é necessário que se tenha um cuidado em não transformar elementos culturais como algo meramente legitimador de um discurso nacionalista. Embora tenha havido um avanço no número de bens de matriz afro-brasileira registrados como patrimônio imaterial, ainda engatinhamos quando o assunto envolve os bens de cultura material. A discrepância em relação ao número de bens tombados de matriz predominantemente portuguesa ainda é muito grande. Sabemos que a patrimonialização está associada à criação dos lugares de memória. Como são poucos esses monumentos, prédios e sítios tombados de matriz afro-brasileira, os locais de rememoração acabam conferindo visibilidade na maioria das vezes apenas aos mesmos grupos. Os monumentos, que têm a função de nos fazer lembrar de algo que vivemos diretamente ou por tabela, acabam fazendo lembrar majoritariamente de “notórias” figuras políticas nacionais, de determinados grupos religiosos associados às elites que governaram o Brasil desde o seu princípio, etc. Esse é um dos motivos pelos quais lugares como o Quilombo da Pedra do Sal são importantes para a rememoração de grupos historicamente esquecidos e silenciados. Por ser um lugar diretamente relacionado à cultura afro-brasileira, o Quilombo da Pedra do Sal nos faz lembrar da importância dessa cultura para a construção identitária de parte do povo brasileiro. Mesmo o Cais do Valongo, sendo ainda candidato a patrimônio da humanidade, já atende à função de lugar de memória. Entende-lo como lugar de “descomemoração” implica lembrar algo que a sociedade tentou esquecer através das reformas que cobriram o antigo cais. Conferir protagonismo aos diferentes grupos que formam o Brasil contribui para que não incorramos no risco de uma história única22. Referências ADICHIE, C.N. The Danger of Single Story. Oxford: TEDGLOBAL, jul. 2009. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=D9Ihs241zeg>. Acesso em: 22 abr. 2016. ABREU, M; MATTOS, H. Relatório Histórico-Antropológico sobre o Quilombo da Pedra do Sal. Em torno do samba, do santo e do porto. 2012. Disponível em: <https://www.dropbox.com/s/vkl4x6x9syj7z3c/quilombo%20da%20pedra%20do%20sal.pd f>. Acesso em: 07 mar. 2016. BRASIL. Lei 10639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura AfroBrasileira", e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm>. Acesso em: 08 abr. 2016. ______. 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