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Memorial Acadêmico
André Antônio Ribeiro
Meu primeiro interesse acadêmico foi a Física. Depois de ter visto a Via Láctea em
todo o seu esplendor durante um acampamento quando era adolescente, decidi que queria
investigar os mistérios do universo e ser astrônomo. Como para ser astrônomo é necessário
ter formação em física (a astronomia era, na época, uma especialização), comecei a fazer a
faculdade de física na UFRGS em 1986.
Durante os estudos, comecei a ficar intrigado com teorias como a física quântica e a
teoria da relatividade geral que postulam a existência de fenômenos que são contra-intuitivos
em relação a nossa experiência vivida. Infelizmente, tive que interromper a faculdade devido
ao falecimento do meu pai. Quando surgiu a oportunidade de voltar a estudar, decidi não
terminar a física mas fazer a graduação em filosofia, justamente para abordar mais
diretamente as perguntas e questões que me intrigavam na época do curso de física: qual a
relação entre teoria e realidade? Qual o status ontológico dos fenômenos inobserváveis
propostos pelas teorias científicas? Qual o motivo do sucesso da ciência em prever o
comportamento dos fenômenos?
Fiz minha graduação em filosofia de 1996 a 1998 na PUCRS. No entanto, devo
confessar que fiquei um pouco decepcionado com a corrente principal da filosofia da ciência
tal como ensinada na faculdade. Como alguém que fez faculdade de física e migrou para a
filosofia interessado em questões filosóficas sobre física quântica, teoria da relatividade e
cosmologia, penso que a linha dominante da filosofia da ciência, que consiste na crítica ao
positivismo lógico, Popper, Kuhn, Feyerabend, os pós-kuhnianos e a sociologia forte, não
tem algo relevante a dizer para quem trabalha na área (é o que pensam físicos prêmio Nobel
como, por exemplo, Stephen Hawking e Steven Weinberg). Essa linha limita-se a criticar a
metodologia científica (crítica ao método indutivo, condicionamento da observação pela
teoria, subdeterminação da teoria pelos dados, etc.) baseada no pressuposto - não analisado que, se o método científico não cumpre o padrão lógico-dedutivo de inferência, então não
passa de um discurso como os outros sobre a realidade.
Buscando me afastar dessa tradição, escrevi meu TCC com o tema “Acaso e
determinismo na ciência contemporânea” (orientador Dr. Sérgio Sardi), no qual pesquisei
sobre as consequências da noção de “caos” (tecnicamente: criticalidade auto-organizada) da
física contemporânea para o conceito de determinismo, usando como referencial teórico a
ideia de complexidade de Edgar Morin. Sendo a complexidade entendida como uma
combinação construtiva de ordem e desordem, também procurei aproximar esse conceito da
dialética hegeliana - a complexidade seria uma síntese ou um estado emergente em relação
aos estados de caos e ordem que a formam (nesse aspecto foi influenciado pelos professores
Dr. Eduardo Luft e Dr. Carlos Cirne-Lima).
Insatisfeito com a filosofia da ciência, fiz pós-graduação em Platão: a dissertação de
mestrado (PUCRS, 2000-2002, bolsista CNPq) sob orientação do Dr. Jayme Paviani,
versava sobre “O problema da opinião falsa no diálogo Teeteto de Platão”. O problema da
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opinião falsa é uma das questões mais recorrentes na obra de Platão, aparecendo em nada
menos do que cinco de seus diálogos: Eutidemo, Crátilo, República, Teeteto e Sofista. O
problema surge a partir da proibição de Parmênides de se falar sobre o não ser: “[a segunda
via de investigação diz] que [o que] não é, é, (…) essa via, digo-te, é imperscrutável, pois não
podes conhecer o que não é, nem expressá-lo em palavra” (fragm. 2). Tudo discurso deve
falar a verdade, ou seja, expressar algo que é. Falar algo falso seria dizer algo que não é, mas
falar sobre o que não é seria o mesmo que falar nada, ficar em silêncio. A partir da conclusão
que é impossível falar sobre o não ser, os sofistas Protágoras e Górgias concluíram que é
impossível falar falso: por definição, falar algo falso é dizer o que não é sobre algo. Mas dizer
o que não é equivale a falar sobre o não-ser; o não ser é nada, e falar sobre nada é nada dizer,
é ficar em silêncio. Por outro lado, em todo ato de fala dizemos algo, algo que é; quem fala
ou diz sempre a verdade ou não diz nada. Na mesma linha de raciocínio, defendiam que é
impossível contradizer (pois para haver contradição entre duas pessoas uma delas deve estar
falando falsamente, mas falar falsamente é impossível); logo, sempre dizemos a verdade. Já
os pensadores da escola megárica (Antístenes) concluíram que apenas juízos de identidade
são possíveis; “homem é homem”, “bom é bom”, etc. e que todas frases negativas são falsas;
uma frase sobre nada não tem sentido. Logo, tudo o que falamos é verdadeiro.
O problema da opinião falsa aparece rapidamente no final do livro V da República.
Nesta passagem o interesse de Platão é diferenciar a opinião (doxa) de conhecimento
(episteme, sophia). Conhecimento é, por definição, conhecimento do que é. A ignorância
(amathia), por outro lado, é definida simplesmente como sendo o oposto do conhecimento
por se referir ao não-ser. A opinião é definida como tendo por objeto a aparência que se situa
entre o ser e o não-ser. O problema da opinião falsa é, então, que, ao contrário da ignorância,
a opinião tem um conteúdo, algo que, portanto, existe. Mas, sendo falsa, ela liga-se a algo que
não é. O problema filosófico em relação à opinião falsa é então, que ela tem uma aparência de
conhecimento (diz algo que é) mas, ao mesmo tempo, não é conhecimento..
O diálogo Teeteto é quase todo dedicado a resolver o problema da opinião falsa. Nada
menos que cinco tentativas de solucioná-lo são feitas. A opinião falsa surgiria quando 1) se
confunde o que se conhece pelo que não se conhece; 2) se toma o que é pelo que não é (se
pensa o que não existe a respeito seja do que for); 3) se toma, no pensamento, uma coisa por
outra, ambas as coisas sendo existentes; 4) se confunde o recordado com o percebido (tomar a
imagem preceptiva de um cachorro pela memória de um cavalo, por exemplo); 5) nossa
mente seria como uma espécie de viveiro e os conhecimentos como pássaros de diversas
espécies. O conhecimento consistiria em uma espécie de dupla caça: a primeira com o
objetivo de capturar e enjaular os pássaros soltos, a segunda em capturar, dentro da gaiola,
entre os pássaros que já estão lá, o pássaro que necessitamos no momento. A opinião falsa
ocorreria então quando alguém capturasse um pássaro errado na gaiola.
Porém, todas essas cinco soluções são rejeitadas basicamente pelo mesmo motivo: a
dicotomia ou a pessoa sabe ou ela não sabe não permite compreender como alguém poderia
confundir algo que sabe com algo que não sabe ou vice-versa, ou confundir algo que sabe
com algo que sabe. A opinião falsa parece se constituir, como vimos, em uma estranha
combinação de elementos que se excluem ou se anulam mutuamente. A opinião deve ter
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algum conteúdo, algo que existe, caso contrário seria ignorância. Mas, por outro lado, por ser
falsa, ela deve se referir a algo que não é em relação ao seu conteúdo expresso. Como o verbo
“ser” (to on, to esti) é concebido no sentido exclusivamente existencial, chega-se ao paradoxo
de que a opinião falsa dá algum tipo de existência a algo que, por definição, não tem
existência. Desta forma, o fracasso em se encontrar uma solução para o problema da opinião
falsa aponta para a necessidade de uma nova concepção do significado do verbo “ser” e da
negação.
Abordei essa nova concepção de “ser” e a solução de Platão para o problema da
opinião falsa na tese de doutorado (2002-2006, bolsista CAPES, orientador: Dr. Jayme
Paviani) intitulado “A filosofia da linguagem em Platão”.
O diálogo Sofista, na busca da resposta sobre a diferença entre o filósofo e o sofista
(que, para Platão, parece mas não é um filósofo) aborda diretamente o status ontológico da
aparência e, para isso, a questão do Não-Ser é atacada e resolvida diretamente. Os sofistas se
parecem, mas não são filósofos. Esta definição leva à pergunta sobre o status ontológico da
imagem, do simulacro, da aparência. A imagem, cópia do original, seria algo intermediário
entre o Ser e Não Ser. Mas falar do não-ser é proibido por Parmênides. A solução do
problema (o famoso parricídio de Platão) consiste em tratar a negação não como contrária,
mas como contraditória ao ser, isto é; o não-amarelo, por exemplo, não é a negação da
existência do amarelo, mas refere-se a tudo o que não é amarelo, isto é, o azul, o cavalo, a
terra, etc. O não-ser não é negação da existência, mas o Outro (heteron), qualquer coisa que
seja diferente de determinada coisa. Desta maneira a forma do Não Ser pode se combinar
com a forma do Ser, pois o Não-Ser é o Outro do Ser. Com isso garante-se existência das
imagens e de graus intermediários entre verdade e falsidade e dos discursos falsos, pois estes
não são discursos que falam sobre o não ser, isto é, não falam nada, mas são discursos que
dizem alguma coisa diferente de coisa em relação ao que realmente deveriam falar. O
filósofo, ao usar a linguagem (escrita ou falada), produz imagens verbais que não são cópias
exatas das coisas. A linguagem imita o ser.
No Timeu a linguagem seria um eikon, uma cópia não idêntica, mas que preserva as
relações ao manter corretamente as proporções entre os termos. A linguagem teria assim uma
função analógica fornecendo uma medida comum entre o mundo das Idéias e o mundo
sensível. Na matemática, a proporção (analogia, em grego) é uma relação entre dois termos A
e C tal que eles são proporcionais entre si se há um terceiro termo B que pode ser colocado
em relação tanto com A quanto com C. B serve, portanto, de “intermediário” (metaxú) ou elo
de ligação entre A e C, e dizemos que A está para B assim como B está para C (A:B::B:C). A
analogia permite fazer uma relação entre dois termos diferentes graças à existência de um
termo intermediário que introduz uma medida comum (simmetria) entre eles. Colocada entre
o ser a cópia, a linguagem pode representar ambos sem, no entanto, confundir-se com ele. Ela
“participa” do que representa de forma analógica e, assim, preserva tanto a sua semelhança
quanto a sua diferença em relação ao “original”.
A linguagem é mimesis, imitação ou criação ativa de uma imagem de acordo com um
modelo. Uma imagem reproduz um modelo, mas não é um retrato ou um espelho deste: ela
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não replica cada aspecto do original, e sim procura simbolizar a sua estrutura isto é, mostrar
as relações entre seus elementos (Crátilo). Mantendo as proporções corretas da estrutura do
original, a linguagem será um análogo a este, e poderá funcionar como um intermediário
ontológico entre o mundo das Idéias e o mundo sensível, relacionando-os através da uma
medida comum: a sua própria estrutura (Timeu). A linguagem apresenta assim uma função
ontológica ordenadora do real, introduzindo proporção e simetria (medida comum) às coisas,
de tal modo que, onde não há linguagem, não há proporção (ordem) e vice-versa. A
introdução dos nomes introduz também a ordem entre os seres. Desta forma, a linguagem é
“naturalmente afim” ao real ou, mais literalmente, é congênita (siggenes), “nascida junto”
com ele. Platão nos oferece no Timeu um esforço deliberado de criar (poiesis), através do
discurso e da imaginação, uma imagem do mundo que exemplifica a estrutura e os princípios
pelos quais o cosmos é organizado. Não se trata de uma invenção arbitrária, mas da tentativa
de sugerir ou evocar, pelo discurso, a combinação harmoniosa de unidade e multiplicidade do
cosmo.
Terminado o doutorado, passei a trabalhar, dando aulas de especialização na PUCRS
(epistemologia sistêmica, problemas de ontologia e teoria do conhecimento e filosofia da
linguagem - 2008-9) e de extensão no IDC (Introdução a Platão- 2008) e fui contratado pela
UCS onde por 9 anos e meio dei aulas de Ética, Filosofia da Educação, Epistemologia,
Filosofia do Direito, Metodologia da Ciência e Filosofia da Ciência, até ser desligado em
2018.
Ao mesmo tempo, paralelamente, continuei meus próprios estudos em filosofia da
ciência, vindo a descobrir várias correntes e autores muito interessantes para as questões que
trouxe do curso de física.
Segue um breve resumo das principais linhas de pesquisa que me interessam
atualmente.
1) As respostas ao problema da indução de Hume. Todo manual de filosofia da
ciência tem, fatalmente, um capítulo sobre o “problema da indução” descoberto por David
Hume1. David Hume demonstrou que a nossa confiança nas conclusões de raciocínios
indutivos não pode ser justificada e, portanto, que não temos nenhum motivo racional para
acreditar que elas sejam verdadeiras. Inferências indutivas não podem ser justificadas nem a
priori (pois suas conclusões podem ser negadas sem contradição) nem pela experiência
(justificação circular, petitio principii). Mas tais manuais raramente se referem às dezenas de
tentativas de refutação do argumento de Hume ou as várias formas de se tentar justificar os
raciocínios indutivos (indutivista, dedutivista, pragmática, senso comum). Para citar apenas
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Na verdade, Hume não discute a indução ou o método indutivo. Seu foco é a noção de causalidade. Há uma
diferença categorial entre um raciocínio indutivo (“os corvos observados até agora são pretos; logo, todos os
corvos são pretos”) e uma inferência causal (“fumar causa câncer”): a indução é um conceito
lógico/epistemológico, enquanto que a relação causal é uma noção metafísica. Seria necessário demonstrar que
indução e relação causa-efeito são conceitos equivalentes – o que tais manuais não se dão ao trabalho de fazer. É
Popper quem aplica o raciocínio de Hume ao método indutivo, que seria, segundo a visão tradicional da
metodologia científica, a espinha dorsal da ciência.
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um exemplo, filósofos (Strawson, Flew, Strove, Edwards) defendem que o argumento de
Hume sofre de um defeito fatal: se perguntarmos o que conta como uma justificação racional
para Hume, uma leitura cuidadosa da sua obra mostra que ele considera única e
exclusivamente raciocínios dedutivos como capazes de fornecer a justificação de um
argumento. Na célebre sessão IV da Investigação sobre o entendimento humano, Hume
critica os raciocínios indutivos por (1) não apresentarem uma conexão necessária entre
premissas e conclusão (IV.16); (2) não serem auto-evidentes ou tautológicos (IV.16); (3)
não apresentarem um termo médio entre as premissas maior e menor – ou seja: não são
silogismos (IV.16) e (4) serem argumentos cuja conclusão pode ser negada sem contradição
com as premissas (IV.18). Todos esses critérios são propriedades que apenas argumentos
dedutivos tem. Hume cairia na falácia de exigir que argumentos indutivos sejam dedutivos. É
um erro categorial julgar a indução usando critérios dedutivos – aqueles devem ser avaliados
segundo os seus próprios critérios. Como diz Max Black, “tentar avaliar argumentos
indutivos como se dedutivos fossem é tão fútil quanto a tentativa da criança de sustentar que
o cavalo é uma vaca sem chifres”.
2) O entendimento das teorias científicas como modelos (concepção semântica de
teorias).
O desenvolvimento da termodinâmica, da teoria eletromagnética e física quântica na
virada do séc. XIX para o XX contribuiu para o descrédito da visão mecânica newtoniana
tradicional por causa da impossibilidade de criar representações mecânicas para os
fenômenos estudados por estas ciências - na física quântica, por exemplo, os elementos
fundamentais da matéria se comportam tanto como partículas quanto ondas.
Para lidar com esse fato, filósofos da ciência e cientistas passam a conceber teorias
físicas de forma mais abstrata, como um conjunto de proposições e modelos, que são
entidades não linguísticas (os objetos ou fenômenos) nas quais a teoria é satisfeita, isto é, que
a torna verdadeira. Um modelo é uma estrutura que consiste em um conjunto de objetos
juntamente com as suas propriedades, relações e funções. O ponto importante é que quando
os objetos e suas propriedades, relações e funções são ligadas com os axiomas da teoria esta
resulta verdadeira relativamente à determinada interpretação semântica dada ao objetos do
domínio da teoria. O modelo fornece uma interpretação aos objetos postulados pela teoria.
O entendimento do uso dos modelos na ciência proporciona uma visão mas clara e
realista da atividade científica. A tarefa do cientista é criar modelos, que são “representações
intencionais e simplificadas de regularidades que governam os processos físicos” (A.
Rosenberg).
O cientista começa abstraindo, de todas as características possíveis de um fenômeno,
um número, geralmente pequeno, de propriedades quantitativas consideradas essenciais para
a explicação do seu comportamento (abstração secundária - Ghins, 2013). Essas propriedades
são organizadas em uma estrutura perceptiva ou modelo de dados - ou seja, em um conjunto
de elementos organizados por meio de determinadas relações. Assim, o fenômeno observado
passa a ser tratado como um objeto abstrato ou sistema (Ghins, 2013). Tal modelo, a seguir,
deve ser subsumido em uma subestrutura empírica e teórica homomórfica a ele e, portanto,
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empiricamente adequada (van Fraassen, 1980). Por fim, essa subestrutura deve ser incluída
em um modelo teórico obtendo-se assim um homomorfismo entre ela e o modelo de dados. O
objetivo do modelo teórico é explicar o modelo de dados (Ghins, 2013). Uma alteração ou
mudança no sistema é explicada pela intervenção de um outro sistema exterior à ele. Há um
sistema agente (obtido pelo mesmo processo de abstração descrito acima) que determina as
alterações no sistema-paciente. Mais concretamente, se é possível estabelecer uma
correspondência entre as mudanças (representadas por vetores de espaço de estados) do
sistema-agente e as alterações nos vetores do espaço de estados correspondentes do sistema
paciente, e sendo essa relação unívoca, “falaremos então de determinação causal e cada vetor
do sistema-agente, que chamamos causa, se aplicará a univocamente a um vetor determinado
do sistema-paciente, que chamamos seu efeito” (Halbwachs, 1977, p. 80).
3) A discussão sobre o status ontológico das entidades não observáveis na ciência
(debate realismo vs antirrealismo)
Para mim, uma das discussões mais interessantes em filosofia da ciência é a que se
refere ao debate entre realismo e antirrealismo ou seja: o debate sobre o status ontológico das
entidades não observáveis postuladas pelas teorias físicas. A ciência postula a existência de
várias entidades, como elétrons e a força da gravidade, que, no entanto, não podem ser
diretamente observadas. Devemos acreditar na existência de tais entidades? Como sabemos
se elas existem? Para os anti-realistas (instrumentalistas, descritivistas, fenomenólogos), a
atitude correta em relação a essas entidades é de ceticismo. Acreditam que o papel da ciência
é apenas descrever da forma mais econômica possível o comportamento dos fenômenos
naturais e não deve se pronunciar sobre a ontologia da realidade, sob pena de estar incidindo
em questões metafísicas e não científicas.
Ainda no início da Revolução Científica, ficou evidente que as causas postuladas
pelos físicos para explicar os fenômenos são inobserváveis – seja porque são concebidas
como partículas tão diminutas que são inacessíveis aos sentidos humanos, mesmo
aprimorados com instrumentos, como as partículas de Descartes, seja porque simplesmente
não se sabe que tipo de entidade é a causa – aqui o exemplo clássico é a força da gravidade e
sua “miraculosa” ação à distância, e a recusa de Newton em formular hipóteses sobre de que
ela é feita (partículas ou outra coisa). Grande parte das famosas críticas de Hume à noção de
causalidade consiste em notar que “não há conexão entre as qualidades percebidas e os
poderes secretos [isto é: as causas não perceptíveis]” de um objeto (HUME, 2009, p. 81).
Descartes, na Carta a Morin de 12/09/1638, frente à tentativa do missivista em identificar as
partículas de matéria com as pequenas partículas de poeira que vemos flutuando no ar,
explica que, em sua concepção, a matéria está para as partículas do ar (invisíveis aos
sentidos) como as partículas do ar estão para as partículas de pó. E, sendo esse o caso, não é
possível determinar exatamente qual é o tamanho, a forma e a velocidade dessas partículas: o
que o cientista pode fazer é assumir como hipótese que a matéria tem certas propriedades e
verificar se esta hipótese é capaz de explicar o que vemos. (DESCARTES, 2006, p. 110, AT
VIII, p. 100-1).
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Para os filósofos da ciência anti-realistas contemporâneos, as teorias científicas não
são nem verdadeiras nem falsas: apenas descrevem o comportamento dos fenômenos de
forma empiricamente adequada.
Os realistas contestam essa visão do objetivo da ciência. Para eles, o objetivo da
ciência é fornecer uma visão verdadeira de como o mundo é. Mais do que descrever de forma
empiricamente adequada os fenômenos, o objetivo da ciência é produzir teorias que sejam
verdadeiras, e para que uma afirmação seja verdadeira é necessário que o seu referente exista.
Assim, o realista científico defende três teses interligadas. 1) O realista acredita que o mundo
investigado pelas ciências empíricas é independente da mente humana. 2) Defende que as
afirmações da ciência são proposições que expressam nosso conhecimento sobre o mundo
(em contraste com o ceticismo ou agnosticismo dos anti-realistas). 3) Portanto, as afirmações
da ciência, sejam sobre objetos observáveis, sejam sobre fatos ou fenômenos inobserváveis,
devem ser consideradas como possuindo um valor de verdade definido: verdadeiro ou falso.
Acredito que o realismo científico, com algumas correções e matizações (realismo
estrutural, realismo interno, realismo especulativo, realismo de teoria e entidades, etc.) que
não discutirei aqui, é a filosofia que melhor explica o sucesso da ciência - como, por
exemplo, a detecção das ondas gravitacionais previstas 100 anos atrás por Einstein em 2019.
4) Os “cientistas filósofos”
Entre 1870 e 1910 a física passou por uma de suas muitas crises com o surgimento de
teorias como a termodinâmica e o eletromagnetismo que não podem ser reduzidas ao
paradigma do mecanicismo newtoniano. Isso levou vários cientistas a reagirem essa crise
refletindo filosoficamente sobre os fundamentos física. Nos escritos desses cientistas,
podemos encontrar a busca de respostas por questões tais como: o que é uma teoria
científica? Qual é o seu objetivo? teorias científicas são explicações ou meras descrições da
realidade? que papel deve ser atribuído às hipóteses? Qual o papel da experimentação na
formação das leis científicas? Qual a diferença entre ciência e não-ciência? A reflexão sobre
o status epistemológico das teorias físicas estava entre as principais preocupações dos
cientistas da época. As respostas vão da fenomenologia radical de Ostwald até o
convencionalismo de Le Roy passando por posições mais moderados como o sensualismo de
Mach, o convencionalismo de Poincaré e o realismo de Boltzmann. Em todos os casos eles
reagiram tanto ao positivismo de Comte quanto ao idealismo que dominava a filosofia da
época. Segundo esses pensadores não é possível oferecer uma fundamentação epistemológica
da ciência sem levar em consideração a prática científica e a história da ciência.
Para dar um exemplo do pensamento de um cientista filósofo, Ludwig Boltzmann,
entre outros, defendeu que as teorias físicas são representações (Darstellung) dos fenômenos
naturais. Darstellung ("imagem" ou "quadro"), ao contrário de Vorstellung, não é uma
representação que é meramente a reprodução de impressões sensoriais na qual os homens são
meros espectadores passivos a quem as "representações" simplesmente acontecem (como as
impressões de Hume). Darstellung é uma representação na qual os esquemas são
conscientemente construídos. Essas representações não são funções passivas do
entendimento, mas construções ativas do cientista que visam explicitar as relações da
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estrutura profunda do real. O que o físico considera como sendo (possivelmente) real é
estabelecido a partir da rede de princípios físicos e de equações matemáticas constituintes da
sua teoria. As relações entre teoria e realidade se constituem não apenas pelos experimentos,
mas por que a representação foi construída intencionalmente para corresponder ao real, e não
induzida passivamente a partir de dados empíricos. Assim, teorias físicas são imagens,
representações ou modelos da realidade construídos por nós, mas não são imagens ou
modelos arbitrários.
Ao contrário do que afirma o slogan “a ciência não pensa”, o fato é que os cientistas
refletem filosoficamente sobre a metodologia, a ontologia e as consequências
epistemológicas das descobertas feitas pelas ciências naturais. Penso que essas reflexões
devem ser levadas em conta pelo filósofo profissional pois elas são feitos pelos próprios
produtores do conhecimento científico e, portanto, fornecem um relato em primeira mão
sobre como a atividade científica realmente ocorre. Boltzman, Hertz, Mach, Heisenberg,
Bohr, Bohm, Born, Duhem, Peirce, Mill, Einstein, Smolin, Feynman, Kepler, Galileu,
Newton, Planck, Descartes, David Deutsch, Pagels, Jaques Merleau-Ponty, Mandelbrot, John
Barrow, Carlo Roveli, entre outros, são uma rica e importante fonte de reflexões e
questionamentos sobre a ciência que não pode ser ignorada pelo filósofo da ciência que
queira fazer um trabalho que seja relevante também para a comunidade científica. Não se
trata, obviamente, de meramente reproduzir e seguir cegamente a autoridade desses cientistas,
mas usá-los como ponto de partida para filosofar e questionar a atividade científica e, assim,
obter uma posição realmente crítica em relação à ciência, pois acredito que essa é a melhor
maneira de se entender seu escopo e limites: fazendo uma análise crítica interna da sua
estrutura metodológica e epistemológica.
5) Realismo e disposições
Dado o meu interesse em filosofia da ciência, pode parecer que ter feito a
pós-graduação em filosofia antiga tenha sido uma perda de tempo. Nada pode estar mais
distante da verdade! Primeiro, porque estudar um filósofo da grandiosidade de Platão
certamente fornece uma base sólida para entender os grandes problemas filosóficos e da
tarefa da filosofia como uma pesquisa em busca de entendimento para as perguntas
fundamentais que o ser humano se faz. Segundo, porque cheguei a um projeto de pesquisa
próprio - a defesa do realismo científico baseado em disposições - graças a definição de
real que Platão apresenta no diálogo Sofista! Platão afirma que algo é real se tem a
capacidade (dynamis, potencialidade, disposição) de causar ou produzir uma alteração em
algo, ou ele próprio ser afetado por alguma coisa exterior a si. “Havíamos estabelecido como
uma espécie satisfatória de definição do ser a presença da potência (dynamis) de produzir
ação ou sofrer ação mesmo que na mais ínfima intensidade”.
Dynamis é um substantivo que corresponde ao verbo “ser capaz de” e compreende
tanto a capacidade de receber uma ação como a capacidade de atuar sobre alguma outra coisa,
enquanto que a maioria das palavras correspondentes – poder, força, etc. – sugerem apenas
uma capacidade ativa. A matéria ou substância é concebida como algo dotado de
propriedades tanto ativas quanto passivas, capacidade de provocar e sofrer modificações. A
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dynamis manifesta as propriedades das substâncias tais como “o frio”, “o quente”, “o
amargo”, “o salgado” . Assim, as coisas só podem ser conhecidas em ação: pelo efeito
determinado que produzem em outro corpo. Graças a dynamis a natureza (physis) das coisas
se revela pelo seus efeitos. Portanto, dynamis é a propriedade ou qualidade que revela a
natureza de uma coisa. Se manifesta como uma atividade ou princípio de ação, movimento,
ou como um estado ou princípio de passividade, de resistência. A natureza é conhecida pelos
efeitos que pode produzir ou sofrer. Aristóteles repete essa concepção de real ao caracterizar
o conceito de realidade dos materialistas como o “poder de atuar ou de receber uma ação”. As
“coisas reais” são essencialmente dynameis – dinâmicas!
Aplicando esse conceito à filosofia da ciência moderna, podemos perguntar: como
sabemos que um elétron, por exemplo, o que é uma entidade a princípio inobservável, existe?
A resposta é que essa entidade foi postulada para explicar a causa de vários fenômenos
observáveis e, mais importante, que ele tem certas propriedades ou disposições para agir de
certa forma e não outras. Por exemplo, o elétron se comporta como algo que tem carga
elétrica positiva, uma determinada massa e determinadas dimensões. Sabemos que o elétron
se comporta dessa maneira determinada porque ele resiste e afeta os instrumentos de medida
dos cientistas, ele resiste e reage às nossas observações e não se comporta de maneira
diferente da postulada pela suas disposições. Por mais que desejemos, nunca observamos um
elétron se comportando de maneira diferente das suas disposições.
Alguns filósofos dispositionalistas, como Brian Ellis, Alexander Bird, ou Mumford e
Anjum, argumentam que as leis da natureza são fundamentadas em propriedades
disposicionais: uma lei da natureza como “objetos com carga elétrica semelhante se repelem”
seria verdadeira por causa da natureza disposicional da carga, natureza que explicaria o
comportamento dos objetos com carga elétrica - esse comportamento é determinado pelas
propriedades disposicionais dos objetos envolvidos. Se um objeto tem a propriedade de ser
eletricamente carregado, isso significa que ele tem a disposição para ser atraído ou repelido
por outros objetos carregados. E se as propriedades naturais dos objetos são disposições para
se comportar de determinada maneira, então isso significa que é sempre verdade que se um
objeto tem uma certa propriedade natural, ela também tem uma disposição que se manifestará
de uma maneira determinada sob as condições apropriadas (o “gatilho” desencadeador da
manifestação da disposição). As leis e teorias científicas referem-se, em última instância,
portanto, às propriedades disposicionais das coisas.
Um elétron é uma entidade que tem a disposição de ser afetado por um campo
magnético de determinada maneira e resistir às correntes elétricas como se tivesse uma
determinada massa e uma determinada carga elétrica. Essa resistência, por um lado, e a
capacidade de afetar, por outro, mostra que ele é uma entidade independente da nossa mente
ou das nossas construções teóricas. O fato do elétron oferecer resistência aos instrumentos de
medida dos cientistas prova que ele existe (é algo, não nada) e o fato dele se comportar de
maneira determinada e previsível (pode ser manipulado de certas maneiras mas não de
outras), demonstra que estamos frente um conceito teórico real (não é uma ilusão).
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Termino com um texto escrito há 3 anos atrás com alguns motivos pelos quais acho
muito importante o ensino de filosofia da ciência nas escolas e universidades e cuja
atualidade me parece ainda mais significativa nos tempos de pandemia em que vivemos.
Considerações sobre a importância do ensino
de Filosofia da Ciência na universidade
Universidades são, por definição, centros produtores de conhecimento, por meio da
pesquisa científica e tecnológica. Sua função-fim é produzir, preservar e transmitir
conhecimento. Por isso a disciplina de Filosofia da Ciência tem um papel central na
formação do aluno universitário, por ser o momento em que se reflete sobre o conceito de
conhecimento e se toma contato crítico com os modos de pesquisa das diversas áreas do
saber.
Ora, o Brasil é um país sem nenhuma tradição em ciência e tecnologia. Pesquisas
mostram que os alunos que saem do ensino médio, além das graves deficiências em
português e matemática, também são “analfabetos científicos” – têm imensas dificuldades de
entender não apenas conceitos científicos sofisticados, mas compreender as prescrições de
uma bula de remédio ou as instruções de um aparelho elétrico. Certamente relacionado a esse
fato, assistimos ao fenômeno da popularização de movimentos pseudocientíficos e de
negação de conhecimentos que são consenso na comunidade científica. O criacionismo,
design inteligente, terra plana, negação do aquecimento global, negação do holocausto,
questionamento eficácia das vacinas ou dos tratamentos da AIDS e do câncer, negação da ida
do homem à Lua, etc., são apenas alguns dos movimentos que se espalham rapidamente com
a ajuda da internet.
Para além do seu caráter anedótico, esses movimentos negacionistas são prejudiciais
em suas implicações práticas, políticas e éticas. Na saúde, por exemplo, as atividades
pseudocientíficas causam danos irrecuperáveis, ao inspirar falsas esperanças em pacientes
terminais que abandonam os tratamentos tradicionais e gastam, bem como o governo, grandes
quantias de dinheiro sem obter a cura para a doença. Exemplos famosos disso são os boatos
sobre vacinas (“vacina tríplice causa autismo”), os “tratamentos naturais” para o câncer ou a
AIDS (ver caso Mathias Rath), o caso da fosfoetanolamina – a “pílula do câncer” brasileira
liberada para consumo humano sem nenhuma evidência científica da sua eficácia, etc.
[Esse texto foi escrito antes da pandemia global causada pelo novo coronavírus. A reação de certos
governos ao surto de Covid-19, negando a eficácia do isolamento social ou pregando o uso de remédios cuja
eficácia no combate ao vírus não foi demonstrado por testes científicos, contrapondo-se assim as normas
estipuladas por entidades científicas como a Organização Mundial da Saúde, ilustra de forma ainda mais
dramática o ponto desenvolvido nesse texto, pois tornou explícito o debate em torno do uso da ciência nas
decisões públicas e sociais e a falta de preparo e conhecimento, inclusive por parte de governantes e dirigentes
de instituições importantes, quanto a importância, o funcionamento e os limites da ciência. Hoje está mais claro
do que nunca a necessidade de uma abordagem crítica e de um ensino bem fundamentado da metodologia
científica para a população em geral. O papel do filósofo da ciência nesse quadro torna-se, portanto, essencial
no debate sobre como a ciência funciona e como devemos usar suas afirmações]
As políticas sobre o aquecimento global também vêm sendo muito prejudicadas pelos
movimentos negacionistas, que criam um falso debate afirmando que não há consenso entre
cientista sobre a existência ou causa do aquecimento global (ver o documentário Mercadores
da Dúvida). Na educação, os defensores do criacionismo tentam sistematicamente retirar o
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ensino da teoria da evolução do currículo do ensino médio e/ou introduzir o ensino do Design
Inteligente (uma pseudociência) nas aulas de ciência. O negacionismo do Holocausto está
associado a atuação de partidos de extrema direita e movimentos neonazistas. As motivações
do negacionismo não são científicas, mas religiosas, políticas, econômicas, financeiras, etc. E
todos esses movimentos têm as suas versões atuantes politicamente no Brasil.
A ciência é um conhecimento construído historicamente, também sujeito a pressões
ideológicas e, por isso, deve ser avaliado criticamente. O conhecimento científico não é
definitivo e acabado, mas, ao contrário, é falível, revisável e, portanto, sempre provisório.
Mas enfatizar apenas as limitações da ciência, como faz a corrente dominante que é ensinada
nas universidades (crítica ao positivismo lógico, problema da indução, Popper, Kuhn,
Lakatos e Feyarabend), frequentemente por professores que não têm vivência nas ciências
naturais, abre as portas para que as ideias de fundamentalistas religiosos, negacionistas e
pseudocientistas ganhem cada vez mais espaço como uma alternativa pretensamente legítima
à ciência. A ciência é a nossa fonte de conhecimento mais confiável, e colocar em cheque
suas virtudes epistêmicas ( “é só uma teoria”; “é um discurso entre outros”, etc.) é levar água
ao moinho negacionista e fundamentalista que, obviamente, baseiam suas críticas à ciência
estabelecida justamente nestes slogans. Por exemplo, no documentário Is Genesis History
cientistas tentam provar que a Terra foi formada em poucos dias (como diz o livro do
Gênesis) e, quando confrontados com o fato de que isso contradiz a ciência, eles recorrem à
noção de paradigma de Thomas Kuhn: a ciência oficial tem seu paradigma (usar o passado
para explicar o presente), nós temos o nosso (usar o presente para explicar o passado).
Nesse quadro, a disciplina de Filosofia da Ciência tem um papel central na formação
de estudantes capazes de distinguir entre ciência e pseudociência e avaliar criticamente as
alegações negacionistas, pois isso é importante para a orientação nas decisões tanto na vida
privada quanto na pública.
Porto Alegre, 05 de maio de 2020
André Antônio Ribeiro