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Memorial Acadêmico

2024

Memorial Acadêmico apresentado como requisito parcial à promoção para Professor Titular do Departamento de História da UFRGS, em 21 de outubro de 2024.

MEMORIAL ACADÊMICO Fernando Nicolazzi Fernando Nicolazzi MEMORIAL ACADÊMICO Porto Alegre, 2024 Memorial Acadêmico apresentado como requisito parcial para a promoção à classe E, Professor Titular, do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Para Luci e Armando e Francisca e Arnaldo, pelo tempo que foi Para Valentina, pelo tempo que vem Para Sônia e Norton, pelo tempo que sou Para Caroline, pelo tempo que é sempre “Pois o importante, para o autor que lembra, não é aquilo que ele viveu, mas o tecido de seu lembrar, o trabalho de rememoração de Penélope. Não seria melhor falar da obra de esquecimento de Penélope?”. Walter Benjamin SUMÁRIO Palavras iniciais...................................................................................................... 7 De quantos passados somos feitos?................................................................. Dos futuros que ainda há por se fazer............................................................... 8 13 I. Sob o signo da desmemória: o Memorial como espaço de recordação.................. 17 O esquecimento e suas sombras...................................................................... A desmemória: espaço de recordação............................................................. A carreira como obra........................................................................................ O gênero memorial.......................................................................................... O Memorial como estória................................................................................ Professor Titular, uma persona acadêmica...................................................... 18 24 29 37 45 49 II. Tempos da formação acadêmica (1997-2008)...................................................... 54 A escolha pela história..................................................................................... 55 O 6º andar do prédio D. Pedro I........................................................................ 60 A vida estudantil.............................................................................................. 73 Os caminhos da pós-graduação....................................................................... 85 Os anos do mestrado....................................................................................... 91 A experiência do doutorado............................................................................. 102 III. Tempos da docência e da gestão acadêmica (2004-2024).................................... 114 O professor hesitante....................................................................................... Os tempos do Seminário de Mariana................................................................ O retorno ao sul................................................................................................ As transformações no campo........................................................................... A docência na UFRGS........................................................................................ Orientações e bancas....................................................................................... As tarefas administrativas................................................................................ 115 123 129 135 141 149 154 IV. A produção intelectual e seus tempos (2000-2024)............................................. 161 A leitura e a escrita: primeiros tempos............................................................. Os anos de aprendizado................................................................................... Outros caminhos de pesquisa.......................................................................... Tempo presente, usos do passado e públicos da história................................. Para além da universidade: extensão e públicos não acadêmicos.................... Viagens e eventos............................................................................................ As formas ocultas da produção intelectual....................................................... 162 166 171 174 180 184 188 Palavras finais........................................................................................................ 191 As identidades do historiador........................................................................... 192 O mergulho...................................................................................................... 195 Palavras iniciais “Vida, minha vida Olha o que é que eu fiz”. Chico Buarque, Vida, 1980. De quantos passados somos feitos? Em agosto de 2004, quando estava no doutorado e assumia vaga de professor subs@tuto em uma universidade federal, iniciando a vida docente e cada vez mais mo@vado no anseio por seguir a carreira acadêmica, minha filha Valen@na nasceu. Eu @nha 26 anos de idade, o país parecia viver um momento de esperanças renovadas e um horizonte de possibilidades se abria tanto para mim como para muitos colegas de minha geração, formada por aqueles e aquelas que ingressaram no ensino superior em meados dos anos 1990. Geração da qual fizeram parte muitas pessoas que ao longo da década seguinte frequentaram uma já consolidada pós-graduação e decidiram enfrentar seus primeiros concursos no intuito de garan@r um posto permanente como docente universitário. Tudo isso, em larga medida, graças a uma polí@ca de expansão e reestruturação do ensino superior público no Brasil. Experiência razoavelmente dis@nta da vivida pela geração anterior, em pleno processo de abertura para a democracia, formada por colegas que muitas vezes fizeram parte das primeiras turmas de cursos recém-criados de pós-graduação e @veram a oportunidade de assumir vagas efe@vas num contexto em que apenas a graduação era suficiente para aprovação em concurso. Aproveitaram um momento em que a concorrência entre pares assumia proporções muito menos intensas do que uma década ou duas depois. Naqueles anos, vida pessoal e vida acadêmica estavam de tal forma embaralhadas que certa vez, ao ver dependurada atrás da porta a bolsa que eu sempre usava para carregar meus livros e papeis quando saía para o trabalho, minha filha indagou se aquela era a famosa “bolsa de doutorado do papai”. Pois o assunto “onde está a bolsa de doutorado?” era constante a cada começo de mês em minha casa. Mais recentemente, ela chegou a me confidenciar que quando pequena achava que bastava colocar uma baguete dentro para que então se transformasse na não menos famosa “bolsa-sanduíche”. Além de achar curiosa e engraçada a percepção da filha, que não @nha ainda nem meia década de vida, mas já notava a intromissão do trabalho do pai dentro do espaço domés@co, pude me inquietar com algo sobre o quê nunca mais deixei de me perguntar: quais as fronteiras entre o trabalho e a vida para quem segue uma carreira intelectual no ensino superior? Como delimitar com precisão as linhas que separam o ín@mo do social, ou seja, aquilo que é da ordem do pessoal daquilo que deve 8 ficar restrito ao plano da profissão? Se muitos dos processos da burocracia ins@tucional permitem tornar ní@das as separações entre um e outro mundo, por vezes algumas a@vidades que cons@tuem o o]cio de professor mostram a porosidade que caracteriza tais separações. E uma criança consegue perceber isso em detalhes mais evidentes do que muitos de nós poderíamos suspeitar. A bolsa de doutorado que a filha atribuiu ao pai. Cerca de uma década depois, em setembro de 2013, quando estava em um estágio de pesquisa em Buenos Aires, e naquele momento minha vida pessoal mudava profunda e irreversivelmente, recebi a no_cia do falecimento de minha avó paterna, Luci. Daquele dia e ao longo da década seguinte, todos meus outros avós, Arnaldo, Francisca e Armando, par@ram desta existência na mesma ordem cronológica com que escrevo esta sequência de nomes. Tive a imensa felicidade de ter convivido com eles por mais de três décadas, e todos, cada qual a sua maneira, interessavam-se pela trajetória profissional que resolvi seguir e que hoje passo a relatar. O fato de, a par@r de um determinado momento, a convivência ]sica com cada um e logo com todos eles não ser 9 mais possível, restando apenas as formas precárias com as quais consigo hoje me relacionar com tais ausências, também me colocou perguntas que, embora atravessadas pelo mundo dos afetos ín@mos, são de alguma forma norteadoras das reflexões teóricas que busco fazer enquanto historiador. Pois essa modalidade de passagem e de transição entre os que ficam e os que partem, essa dis@nção sabida e sempre inesperada entre os planos da ausência e da presença, se denotam um dado indelével da natureza e do caráter biológico da vida, são também dimensões sociais de nossa existência que transformam a vida humana em algo mais do que um conjunto complexo de processos fisiológicos. A par@da de meus avós, com os quais convivi num tempo que se pode considerar como o da contemporaneidade, impregnou minha vida pessoal com algo que se transformou defini@vamente em passado, ins@tuindo no agora uma cesura perene entre o antes e o depois; um corte entre o que fisicamente é contemporâneo a mim e aquilo que se encontra no tempo da anterioridade. As indagações que eles me deixaram ao par@r, ainda que involuntariamente, dizem respeito a saber de quantos passados somos cons@tuídos, todos e cada um de nós? Quantos passados foram necessários para que nossa existência pudesse ganhar forma, de quantos temos necessidade para viver no presente? Com quais passados precisamos constantemente nos relacionar e quais podemos abandonar ao esquecimento, seja este provisório ou permanente? Quem sabe estas sejam perguntas próprias de alguém que escolheu o caminho da história para seguir, mas são também, mesmo quando não formuladas nestes termos, interrogações que acometem tantas outras pessoas que, de formas variadas e com intenções dis@ntas, procuram inventar sen@dos e fornecer explicações para processos que muitas vezes prescindem de uma resposta sobre os porquês da vida. Se resolvi fazer concessões à in@midade nas palavras iniciais destas páginas, cuja pretensão é de alguma forma dar sen@do à dimensão profissional (e pública) de minha existência, é porque essas duas condições que me cons@tuem como pessoa, vislumbrando o porvir com minha filha e recordando o que passei com meus avós, permitem situar, talvez com mais precisão do que qualquer outra discussão teórica permi@ria, o sen@do profundo da trajetória que aqui buscarei relatar: a inquietação pelo tempo. Ter feito a escolha pela história e ter me tornado historiador profissional e professor universitário, foi, no fundo, a maneira mais adequada para tornar pensável os 10 significados de nossa experiência temporal enquanto indivíduos e, sobretudo, enquanto sociedade. Desprovido do apego a formas religiosas de produção de sen@do existencial, penso que foi na história que encontrei o lugar ideal para fundar e pra@car minhas crenças, menos com o caráter dogmá@co de um exercício de fé do que com a perspec@va sempre crí@ca da realização de uma prá@ca social ou, antes, de um trabalho. Essa é, naturalmente, a forma que encontro hoje para dar sen@do a acontecimentos que, quando ocorreram, não assumiam claramente tais significados. Entendo bem os riscos de se projetar retrospec@vamente o agora no que passou, buscando conferir um sen@do ar@ficial a posteriori para eventos cujo nexo dentro da trajetória de uma vida são em grande medida de sucessão, porém nem sempre de causalidade. Se a esses riscos se pode chamar de “ilusão biográfica”, as páginas que seguem serão uma incursão consciente e voluntária no que há de ilusório na escrita de uma vida, pelo menos de uma vida entendida a par@r de suas determinações profissionais e pensada a par@r do trabalho; o relato de uma obra, enfim. Guardadas todas as devidas proporções, diria que essa constatação de estar justamente no lapso que separa temporalmente minha existência entre os tempos que foram (aqueles com meus avós) e os tempos que ainda virão (com minha filha) demarca aquilo que Hannah Arendt chamou de “quebra entre passado e futuro”. Contudo, há uma importante e significa@va diferença em relação às experiências sobre as quais a filósofa escreveu em meados do século passado. Como se sabe, ela encontrou no famoso aforismo de René Char seu modo privilegiado de expressão: “nossa herança não é precedida de nenhum testamento”.1 No meu caso, minha herança veio sim definida por alguns testamentos. Como sugeriu Arendt, “o testamento, dizendo ao herdeiro o que será seu de direito, lega posses do passado para um futuro”. Ao que complementa: “sem testamento ou, resolvendo a metáfora, sem tradição – que selecione e nomeie, que transmita e preserve, que indique onde se encontram os tesouros e qual o seu valor – parece não haver nenhuma con@nuidade consciente no tempo, e portanto, humanamente falando, nem passado nem futuro, mas tão-somente a sempiterna mudança do mundo e o ciclo biológico das criaturas que nele vivem”.2 1 ARENDT, Hannah. “A quebra entre passado e futuro”. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Editora PerspecCva, 1972, p. 28. 2 Ibid., p. 31. 11 Ora, o que será aqui narrado não é senão minha forma par@cular de prestação de contas, obviamente parcial e incompleta, deste testamento, ou seja, daquilo que me foi transmi@do, a mim e aos de minha geração, no âmbito tanto da universidade pública brasileira, como no da história disciplinada e, mais par@cularmente, no campo da teoria e da história da historiografia no primeiro quarto do século XXI. Cabe ressaltar que nem sempre um testamento concede apenas um crédito desejado, por vezes ele também deixa algumas inesperadas pendências. O herdeiro nunca é apenas aquele a quem o passado oferece seu patrimônio; é também aquele a quem são legadas suas ruínas. Portanto, é com o espólio do passado, qualquer que seja ele, que todo herdeiro deve lidar, e os testamentos são a forma contratual, mesmo que não formalmente firmada entre as partes, em que as obrigações permanecem estabelecidas. E como dito, trata-se de uma forma pessoal de lidar com a herança. Se em alguns momentos falo em termos de uma geração a qual julgo pertencer, é menos na condição de seu porta-voz do que como integrante de algo que, ao mesmo tempo em que me é di]cil descrever, possibilita uma forma de iden@ficação por pertencimento que é definida sobretudo a par@r da comunhão de uma determinada experiência de tempo. Naturalmente, dentro desse espaço de tempo geracional, cada um assume da forma que acha melhor e com os instrumentos que lhe estão disponíveis os créditos e débitos informados pelo testamenteiro.3 Sem a intenção de ser repe@@vo, preciso, no entanto, deixar claro que de forma alguma pretendo fazer dessas páginas algo como o retrato de uma geração, muito menos o relato de uma confrontação geracional (um acerto de contas, no lugar de uma prestação de contas); nada mais distante dos anseios que me animam a escrever um memorial encarado como algo além da simples exigência protocolar para o cumprimento de requisitos ins@tucionais. Quando busco situar minha trajetória em uma dimensão ampliada que dialoga com tudo aquilo que foi legado àqueles e àquelas com quem compar@lho um sen@do geracional, não é porque me arrogo o direito não concedido de falar pelos outros ou, pior, em nome dos outros, mas tão somente porque considero que minha trajetória não pode de forma alguma ser encarada como um 3 Mantenho aqui um diálogo com considerações que a amiga Karina Anhezini vem elaborando há alguns anos a respeito do tema da herança na historiografia brasileira, ela própria arCculando-o com sua própria trajetória e com sua carreira acadêmica. 12 percurso isolado. Se em minha carreira o caminho que percorri foi em larga medida aquele que pude priorizar entre outros, tanto as escolhas quanto a própria direção seguida me foram dadas a par@r de um campo de possibilidades que ao mesmo tempo permi@u alguns passou e interditou outros. Por mais banal que seja isso, no momento em que nos encontramos diante da tarefa de pra@car o que pode ser chamado de escrita de si, os riscos de se ensimesmar é grande e espero que ao final ele tenha sido ao menos em parte evitado. Assim, se a vida pessoal me traz a dimensão prá@ca daquilo que, no âmbito das discussões sobre teoria da história, chamamos de tensão entre espaço de experiência e horizonte de expecta@va, os momentos dedicados a pensar e a escrever sobre minha trajetória profissional abrem outras perspec@vas para a discussão. A metáfora do testamento serve de pretexto para se falar sobre isso, mas ela não consegue explicar tudo. Talvez toda e qualquer tenta@va de explicação permaneça lacunar e insuficiente, pois a escrita de um memorial impõe, desde o momento em que o desejo pessoal ou a obrigação ins@tucional levam alguém a escrevê-lo, a pergunta que gênero algum conseguiria explicar a contento: de quantos passados somos feitos? Dos futuros que ainda há por se fazer Mas além de experiência há expecta@va, e a pergunta sobre os passados não pode de forma alguma prescindir da indagação sobre os futuros. Escrever um memorial, pelo menos para mim e diante das condições que me são colocadas hoje, não significa tão somente uma espécie de diálogo ou mesmo de confronto com tempos que passaram; implica igualmente defrontar-se com aquilo que está por vir, seja em algum momento próximo e de fácil percepção, seja algo cuja distância torna di]cil de ser sequer vislumbrado. Pois se em muitos casos um memorial é escrito quando uma vida já foi em sua maior parte vivida, ou, considerando um memorial propriamente acadêmico, quando uma carreira já se encontra em um momento avançado de seu percurso, para mim ele está situado em uma posição mediana, nem tanto para lá, nem tanto para cá. Valendo-me ainda do que Hannah Arendt oferece para pensarmos a temporalidade, diria que se trata da brecha (gap) entre o antes e o depois. Mais uma vez, não é possível desvencilhar plenamente a dimensão ín@ma da cole@va. 13 Do ponto de vista pessoal, e considerando-a tão somente pelo seu caráter quan@ta@vo, a tensão entre experiência e expecta@va encontra-se num ponto de equilíbrio. Se a demografia no Brasil indica que já ultrapassei em uma década a metade da expecta@va de vida que os índices populacionais me garantem, o que me situaria a jusante do ciclo biológico da vida, a história familiar, um pouco mais alentadora, sugereme que estou hoje posicionado justamente neste meio termo (ou meio tempo) entre a vida que se cons@tuiu e aquela que se esvai. Ainda há meia vida para ser vivida, embora provavelmente o seja de forma bastante dis@nta da maneira como foi feito até agora. Nunca é demais lembrar que em qualquer a@vidade intelectual há sempre um condicionante ]sico e material que a possibilita e a delimita. O corpo acaba aparecendo, assim, como instância definidora da trajetória e, a par@r de um determinado momento, sua presença se torna cada vez mais percep_vel. Apenas a _tulo de menção, o fato ordinário de ter surgido recentemente a necessidade de mudança dos óculos para um modelo mul@focal já implicou toda uma alteração na forma como me relaciono fisicamente com livros, com o computador, com a turma em uma sala de aula, com as pessoas e o mundo a minha volta. Para mim, e segundo o que a oqalmologista me assegurou, isso foi efeito da idade que, embora não a considere elevada, manifesta já sua força impetuosa. E esse é apenas um exemplo pequeno e banal de outros efeitos que já indicam a força das determinações ]sicas do corpo no trabalho acadêmico. Retomando o pensamento de Arendt, “a mortalidade do homem repousa no fato de que a vida individual, uma bíos com uma história de vida iden@ficável do nascimento à morte, emerge da vida biológica, dzoé”.4 Nesse meio-termo/meio-tempo em que me encontro, por um lado não há como evitar um sen@mento de angús@a de que tudo passou rápido e que agora, mantendo-se o ritmo, essa velocidade trará efeitos um tanto mais di]ceis e possivelmente temerosos; por outro existe a perspec@va, a par@r de tudo o que já foi feito, de que ainda sobra tempo mais que suficiente para o tanto de coisa que há por se fazer. Diante do que já foi e do que ainda está por vir, é sempre di]cil decidir como lidamos com essas sobras de tempo que recolhemos da vida. Porém, essas são questões com as quais pretendo lidar na esfera ín@ma e não caberia que fossem compar@lhadas neste espaço cuja natureza 4 ARENDT, Hannah. “A quebra entre passado e futuro”, op. cit., p. 71. 14 pública demanda outra forma de decoro. Se as trago aqui é porque, quando o pessoal e o social são colocados um diante do outro a par@r das demandas que um memorial acadêmico impõe, tudo ganha uma complexidade antes despercebida. Afinal, estar tão somente na metade da vida e chegar naquilo que supostamente seria o fim da carreira (a úl@ma promoção funcional que hoje me é permi@da) provoca um sen@mento de ver@gem e de descompasso no tempo. Como chegar ao fim estando ainda no meio? Quando o fim chega com demasiada antecedência, é propriamente o futuro que emerge como tema incontornável de reflexão. E agora, Fernando? A festa ainda está pela metade e a luz con@nua resplandescente, e agora? Mariana de Barros afirma que “nos memoriais, o sujeito do narrado olha sua vida de maneira prospec@va, em direção ao futuro, ao que é inacabado, aberto”.5 Mas logo em seguida complementa: “entretanto, se o sujeito do vivido tem um olhar prospec@vo, não é esse o caso do narrador. O narrador observa a própria vida de maneira retrospec@va, podendo assim lançar ‘previsões’ no texto, que não são mais do que antecipações”.6 Escrever um memorial é colocar-se a todo momento na posição incômoda e inescapável de quem se encontra cindido entre o sujeito que narra e o sujeito que é narrado. Se um tem os olhos voltados ao futuro, para o inacabamento que ins@ga a ação, o outro não consegue senão enxergar no passado o roteiro de um percurso sobre o qual não há nada mais a fazer. A grande questão que é preciso de alguma forma resolver é saber em que medida aqueles muitos passados de que somos feitos possibilitam ainda criar futuros possíveis de serem vividos. Se a carreira encontrou o seu fim funcional, o que há por vir depois daqui? Poderia ser até uma forma de alento encontrar-se numa posição em que as avaliações ins@tucionais para fins de progressão ou promoção a cada biênio se tornam desnecessárias. Mas o dilema situa-se noutros planos. Obviamente, considerando a posição aqui almejada não como um sinal de dis@nção social, mas sobretudo como um fator que propicia ganhos pecuniários e o cumprimento de um direito trabalhista, ela não implica nenhuma grande alteração de ro@na, muito menos da forma como me dedico a cumprir minhas atribuições enquanto docente. O fim não é uma concessão ao 5 BARROS, Mariana Luz Pessoa de. O discurso da memória. Entre o sensível e o inteligível. São Paulo: FFLCHUSP, 2012, p. 141. 6 Ibid., p. 142. 15 comodismo e à apa@a profissional. Assim, em princípio, o futuro não será nada diferente do que o presente já está sendo, talvez com algumas limitações que transcendem a minha vontade (o corpo mostrando-se co@dianamente). Mas o fato de estar há alguns meses pensando sobre e escrevendo um memorial que me coloca a todo momento diante dos muitos tempos que configuram minha vida profissional, o fato de ter me defrontado, da forma como me é possível fazê-lo, com recordações e passados que estavam como que adormecidos em algum recôndito canto de minha memória (ou de meus arquivos), eis o que será definidor para os tempos que hão de vir. E isso não tem absolutamente nada a ver com alguma ideia de trauma ou de evento fundador; é tão somente o processo de tomada de consciência, sempre limitado e lacunar, de minha própria experiência de tempo, o que acaba proporcionando o sen@do diferencial dos futuros que poderão ocorrer. Se o cronograma ins@tucional estabelece um prazo para finalizar a escrita deste Memorial, a cronologia própria para que o ponto final seja colocado, será de fato possível que em algum momento ele esteja finalizado? Mais do que isso, depois de começada, essa forma de escrita em algum momento poderá ser terminada? A sensação que me acomete hoje é a de que o futuro será uma longa e corriqueira escrita do passado, no esforço permanente de buscar ou inventar algum sen@do para o que já foi feito, como essa espécie de prestação de contas não apenas comigo mesmo, mas com familiares, amigos, colegas, ins@tuições, agências, memórias, com tudo e com todos que criaram as condições de possibilidade para eu con@nuar sendo aquilo que dia seguinte após dia seguinte vou me tornando: um professor de história. O que apresento nas páginas a seguir é o resultado de um par de anos de reflexão dispersa que, nos úl@mos meses, encontrou a forma de organização em um processo de escrita constante e razoavelmente disciplinado, apesar de ter sido atravessado por catástrofes sem precedentes. Este Memorial é, portanto, o efeito da ar@culação entre os tempos do indivíduo, das ins@tuições, da sociedade e da própria natureza. Sobretudo, é o fruto de momentos de prazer com o gesto da escrita e com o ato da recordação. 16 I. Sob o signo da desmemória: o Memorial como espaço de recordação “Mas é o esquecimento o que suscita a memória e permite voltar-se ao esquecido.” Paolo Rossi, Il passato, la memoria, l’oblio, 1991. “É, com efeito, a esse tesouro do esquecimento que recorro quando me toma o prazer de me recordar do que uma vez vi, ouvi, experimentei, aprendi, adquiri.” Paul Ricoeur, La mémoire, l’histoire, l’oubli, 2000. O esquecimento e suas sombras Isto que passo a escrever, que ainda não tem uma forma plenamente concebida e assume o nome que a instituição lhe coloca, nasce de um paradoxo ou pelo menos de um certo imbróglio de natureza teórica e mesmo existencial. Pois isto recebe o nome de Memorial, embora se trate, e creio ser importante desde logo deixar evidenciado, do memorial de alguém que se reconhece como um desmemoriado. Para além de qualquer jogo de palavra, floreio lírico ou falsa ironia, a desmemória colocada como signo deste Memorial é para mim uma condição latente, persistente, por vezes cômica, às vezes desastrosa. De qualquer forma, um incômodo constante que ora me parece engraçado, ora me provoca inevitáveis constrangimentos. Talvez decorrência de disfunções neurológicas, quem sabe consequência de dilemas psíquicos ou mesmo efeitos culturais de uma sociedade acelerada que favorece os lapsos mentais, o fato é que não disponho de um diagnóstico preciso, sobretudo porque nunca o busquei. Mas reconheço que tenho uma memória falha e me reconheço aqui, por questões de honestidade com quem lê este assim chamado Memorial, como um desmemoriado.1 Falar em desmemória é contornar o peso e as dificuldades que o termo esquecimento sugere. O esquecimento normalmente é encarado a partir da percepção da perda irrecuperável, da ausência indelével, daquilo que não pode mais ser retomado. Em razão disso, Paul Ricoeur já afirmou que ele “é deplorado da mesma forma que o envelhecimento ou a morte: é uma das faces do inelutável e do irremediável”. 2 Não por acaso, o termo por vezes é avizinhado ao da morte, mas também carrega os traços da desavença. Como Harald Weinrich nos indica, em seu erudito ensaio literário que percorre as tramas do esquecimento desde os antigos até a contemporaneidade, se nas origens da cultura ocidental Lete é o rio do submundo que concede olvido à alma dos mortos, Letes é a divindade feminina oriunda da linhagem da noite, filha da discórdia, e faz par contrastante com Mnemosyne, a eterna deusa da memória.3 Lete, Letes: esquecimento e discórdia. Para os gregos antigos, seu lugar é antagônico ao da verdade 1 Em certa medida, mas sob aspecto diverso, assumo conscientemente aquilo que Mariana Luz Pessoa de Barros chamou de “o drama do desmemoriado”. BARROS, Mariana Luz Pessoa de. O discurso da memória. Entre o sensível e o inteligível, op. cit. p. 123. 2 RICOEUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Éditions du Seuil, 2000, p. 553 3 WEINRICH, Harald. Lete. Arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 24. 18 [aletheia], que significa a própria negação do esquecimento. Segundo Platão, o ser é em si dotado de ciência, mas o esquecimento reside na origem de cada pessoa desde seu nascimento e deve ser superado pelo conhecimento, que equivale a recordar aquilo que antes era sabido e que toca à própria natureza humana.4 Já na perspectiva aristotélica, esquecimento remete à perda de ideias, de imagens ou sensações que uma vez estiveram presentes na consciência.5 Alguns séculos antes, a poesia épica também ofereceu elementos importantes para a reflexão sobre o esquecimento. Ficando apenas naquele que talvez seja o exemplo mais evidente, cabe indicar que Ulisses em seu périplo tentou a todo custo evitar a desventura de esquecer-se de si e do próprio retorno.6 São, portanto, predominantemente negativas as formulações antigas criadas para o esquecimento. Dele nada de saber ou de verdadeiro poderia emergir e a própria identidade estaria em risco diante de seus perigos. Inclusive, sua produção consciente é colocada no plano das punições [damnationes memoriae] tornando-o, neste caso, nada mais que um castigo.7 Mesmo no plano espiritual, duas das principais religiões do Ocidente, o judaísmo e o cristianismo, colocam na memória e sua força contra o esquecimento um dos fundamentos principais.8 E nos começos da historiografia como investigação, nunca é demais lembrar que o primeiro historiador colocou sua historíe como resguardo contra o apagamento dos acontecimentos, para que os grandes feitos de gregos e bárbaros não se tornassem sem fama, ou seja, para que não fosse esquecidos.9 No entanto, Weinrich nos recorda que durante o século XVI um novo estatuto passa a ser conferido ao esquecimento. Se com Montaigne, a memória e o conhecimento 4 Yosef Yerushalmi aponta que na tradição talmúdica há situação semelhante: “é dito ali que o feto conhece a Torá e pode ver o mundo de uma extremidade a outra. Mas, apenas no momento do nascimento, um anjo vem e lhe bate de leve na boca [...], e a criança imediatamente se esquece de tudo”. YERUSHALMI, Yosef Hayim. “Reflexões sobre o esquecimento”. In. YERUSHALMI, Yosef Hayim et al. Usos do esquecimento. Campinas, Editora da Unicamp, 2017, p. 14. 5 WEINRICH, Harald. Lete. Arte e crítica do esquecimento, op. cit., p. 43. ROSSI, Paolo. “Recordar y olvidar”. In: El pasado, la memoria, el olvido. Buenos Aires: Nueva Visión, 2003, p. 23. 6 WEINRICH, Harald. Lete. Arte e crítica do esquecimento, op. cit., p. 35. HARTOG, François. Memória de Ulisses. Narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2004. 7 “Conhecemos na Antiguidade intentos de executar damnationes memoriae, de apagar depois da sua morte até a última lembrança de um personagem odiado”. POMIAN, Krzysztof. “De la historia, parte de la memoria, a la memoria, objeto de historia”. In: Sobre la historia. Madrid: Ediciones Cátedra, 2007, p. 185. 8 Além de Weinrich, e especificamente em relação ao judaísmo, remeto ao importante livro de YERUSHALMI, Yosef Hayim. Zakhor. Histoire juive et mémoire juive. Paris: Gallimard, 2008. Zakhor em hebraico, como indica Yerushalmi, significa “lembra-te”. 9 HARTOG, François. A história de Homero a Santo Agostinho. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001. 19 por memorização começaram a ser vistos como distintos do saber racional, ao mesmo tempo passou a ter lugar, naquele contexto, “uma percepção pública longo tempo reprimida do esquecimento como uma força cultural não inteiramente insignificante”.10 Por volta das mesmas décadas, o médico espanhol Juan Huarte, de quem Miguel de Cervantes provavelmente tinha notícia ao criar seu cavaleiro de triste figura (esquecido de si mesmo), estabelecia distância semelhante entre as obras do engenho, ou da razão, e aquelas provenientes puramente da memória. Para Weinrich, “começa aqui uma era da história da cultura europeia em que a memória perde seu papel brilhante, até ali indiscutível na opinião pública, e desce incessantemente pela escada do prestígio cultural, ou escorrega por ela, o que significa que ao mesmo tempo cresce o prestígio do esquecimento”.11 A partir de então, longe de algo a ser totalmente evitado, o esquecimento começa a ser incorporado nos procedimentos do racionalismo moderno e pode, então, ser metodicamente conduzido. Descartes, que insere em sua dúvida metódica uma boa dose de esquecimento, aparece como um dos seus mais célebres praticantes.12 Aleida Assmann nos aponta que no século XVIII o médico e teólogo Thomas Browne sugeria, inclusive, que o “conhecimento se obtém pelo esquecimento, e se quisermos um corpo de verdades claro e confiável, devemos abrir mão do muito que sabemos”. 13 É bem verdade que, desde os antigos até os contemporâneos, certas modalidades de esquecimento ocuparam uma posição importante na vida das comunidades políticas, sendo induzidas e mesmo determinadas legalmente como forma de apaziguar os efeitos de conflitos anteriores e abrir possibilidade de futuro para os indivíduos que delas faziam parte. Assumindo os contornos daquilo que Paul Ricoeur chamou oubli commandé, seja na Atenas do século V a.C., na França no contexto das guerras religiosas do século XVI, ou mesmo após regimes ditatoriais em diversos países no século XX, a anistia, em suas diferentes formas, dota de uma dimensão propriamente 10 WEINRICH, Harald. Lete. Arte e crítica do esquecimento, op. cit., p. 76. Ibid., p. 85. 12 Em sua segunda meditação filosófica: “suponho, portanto, falsas todas as coisas que vejo: creio que nunca existiu nada do que a memória mendaz representa; não tenho nenhum dos sentidos todos; corpo, figura, extensão, movimento e lugar são quimeras. Que será, então, verdadeiro? Talvez isto somente: nada é certo” (II, 3). DESCARTES, René. Meditações sobre filosofia primeira. Campinas: Editora da Unicamp, 2004, p. 43. 13 Apud., ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Formas e transformações da memória cultural. Campinas, Editora da Unicamp, 2011, p. 16. 11 20 política a ação de esquecer, colocando-se avizinhada ao próprio perdão. Nas palavras de Ricoeur, no entanto, “a anistia, enquanto esquecimento institucional, toca nas raízes mesmas do político e, por meio deste, nas relações mais profundas e mais dissimuladas com um passado considerado interdito. A proximidade mais que fonética, mesmo semântica, entre anistia [amnistie] e amnésia [amnésie] indica a existência de um pacto secreto com a negação da memória que [...] na verdade a afasta do perdão após ter proposto sua simulação”.14 No campo dos estudos históricos, é razoavelmente famosa a segunda consideração intempestiva de Nietzsche, do início da década de 1870, em sua crítica ao historicismo que marchava apressado naquele século, representando o homem como um ser invejoso que observa o rebanho pastando tranquilamente diante de si, ostentando uma forma de felicidade reservada aos seres desprovidos da capacidade plena da recordação. A alegria de esquecer é contraposta ao abuso da lembrança, que se transforma em um tipo de consciência tomada por uma forma particular de agitação, chamada pelo filósofo de “febre historicista”, que torna o indivíduo moderno inepto ao aprendizado do esquecimento e o condena a se manter sempre preso ao passado: “por mais longe que ele vá, por mais rápido que ele corra, os seus grilhões vão sempre com ele”.15 Daí o inconveniente do excesso de história para a vida, afinal, é “possível viver, e mesmo viver feliz, quase sem qualquer lembrança, como demonstra o animal; mas é absolutamente impossível viver sem esquecimento”.16 Profunda reviravolta no pensamento histórico ocidental, essa que colocou a capacidade de esquecer como condição propícia não apenas para a vida, mas para uma vida feliz! Há, porém, algo que não se pode desconsiderar neste percurso do esquecimento: apesar da provocação nietzcheniana, o fato é que o esquecimento, ou pelo menos algumas de suas formas, nunca deixou de carregar em si uma carga negativa, sendo anexado à lista das condições clínicas que despertava a atenção tanto da psicanálise freudiana como da neuropsicologia de Alexander Luria. Em sua Psicopatologia da vida cotidiana, por exemplo, Freud analisou casos variados de esquecimento, como o de 14 RICOEUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oubli, op. cit., p. 586. NIETZSCHE, Friedrich. “II Consideração intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da história para a vida”. In: Escritos sobre a história. Rio de Janeiro: Editora PUC/RJ; Edições Loyola, 2005, p. 70. 16 Ibid., p. 73. 15 21 nomes próprios, de palavras estrangeiras, lapsos verbais entre outros.17 Para além de um simples desvio da atenção, o esquecimento adentra as zonas sombrias do inconsciente. Segundo Weinrich, “com Freud o esquecimento perdeu sua inocência. A partir de então, aquele que esqueceu ou quer esquecer alguma coisa tem de justificarse e estar preparado para uma pergunta – possivelmente penosa – sobre o motivo por que esqueceu, tanto mais quanto mais intensamente ele estiver convencido de que seu esquecimento não precisa de nenhuma justificativa, pois ele simplesmente esqueceu algo”.18 Algumas décadas depois, Luria ofereceu seu impressionante relato (permeado pelas palavras do próprio protagonista) sobre um ex-combatente soviético, ferido na cabeça por estilhaços de um projétil durante a Segunda Guerra, e as consequências da lesão cerebral causada pela bala que atravessou seu crânio. Oliver Sacks, seguindo na trilha aberta por Luria, escreveu desde a década de 1970 textos profundamente marcantes sobre a condição psico-neurológica de seus pacientes e as muitas expressões do esquecimento, tanto aquele de si, como o esquecimento dos outros e das coisas.19 No âmbito mais amplo das relações entre memória coletiva e esquecimento, parece ser inegável que os eventos traumáticos que atravessaram o século XX, dando impulso àquilo que na sua segunda metade passou a ser considerado como um “dever de memória”, fizeram do esquecimento, se não uma infração ética ou uma forma de patologia social, ao menos um problema político de vasta complexidade. São conhecidos os casos em que figuras políticas indesejadas em alguns regimes tiveram suas imagens literalmente apagadas de fotografias oficiais. Milan Kundera nos lembra, diante de situações como essa, que “a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”.20 Voltamos aqui, em certa medida, ao mesmo combate que Heródoto travou quando se inventou como historiador, agora, contudo, sob o abrigo da memória, não da história. Mas talvez tenha sido a história do Holocausto aquela que estabeleceu de forma mais estruturante a necessidade imperiosa de evitar a todo custo o esquecimento. A 17 FREUD, Sigmund. Psicopatologia da vida cotidiana e sobre os sonhos. Obras completas, vol. 5. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. 18 WEINRICH, Harald. Lete. Arte e crítica do esquecimento, op. cit., p. 188. 19 LURIA, Alexander Románovich. El hombre con su mundo destrozado. Historia de una lesión cerebral. Ciudad de México: Paidós, 2018. SACKS, Oliver. O homem que confundiu sua mulher com um chapéu e outras história clínicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 20 KUNDERA, Milan. O livro do riso e do esquecimento. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 10. 22 fórmula “Nunca Mais!”, recorrente desde o fim da Segunda Guerra, quando se conheceu mais amplamente o universo concentracionário nazista, retomada após o fim de ditaduras na América Latina nos anos 1980, é expressão contundente do caráter politicamente nefasto que o esquecimento assume hoje na cultura ocidental contemporânea. Nas primeiras páginas do relato sobre sua existência em Auschwitz, Primo Levi deixa ao leitor uma imprecação para que não esqueça aquelas palavras, “ou se desmorone a vossa casa / ou a doença vos paralise / e vossos filhos desviem o rosto de vós”.21 O esquecimento, a palavra e a experiência que se prende a ela, deixa, portanto, muitas dificuldades para um historiador que desde há algum tempo passou a se interessar pelas questões da memória, dos usos do passado, dos abusos da história, e que hoje é levado a redigir isto a que se dá o nome de Memorial. Afinal, se não consigo me desvencilhar das dimensões políticas que definem a escolha pela ocupação que agora busco recordar, e considerando todas as discussões que envolvem a relação da história com o esquecimento nas últimas décadas, a pergunta colocada por Yosef Yerushalmi em 1987 ainda persiste com toda sua força: “é possível que o antônimo de ‘esquecimento’ não seja ‘memória’, mas justiça?”.22 Não seria, então, uma espécie de afronta situar este texto sob as sombras daquilo que se converteu, não apenas em um problema teórico no campo dos estudos historiográficos, mas em indagação política e em postura ética incontornáveis a um historiador? Poderia ser de alguma forma justa a escrita de um memorial feita a partir do esquecimento que condiciona aquele que o escreve? Não bastaria aqui, para fazer o elogio do esquecimento e recobrar suas virtudes existenciais, recorrer ao famoso conto de Borges, argumentando que esquecer é condição necessária do pensar, que “pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair”.23 Seria talvez inadequado simplesmente entregar ao leitor ou à leitora o relato de alguém que esquece coisas, pois no meu caso essa condição de modo geral não equivale a um aumento da capacidade de produzir conhecimento; muito pelo contrário, 21 LEVI, Primo. Se questo è un uomo. Torino: Einaudi, 2005, p. 7. Em seu ensaio, o capítulo que trata desta experiência foi intitulado por Weinrich de “Auschwitz e o esquecimento impossível”. 22 YERUSHALMI, Yosef Hayim. “Reflexões sobre o esquecimento”, op. cit., p. 28. 23 BORGES, Jorge Luis. “Funes, el memorioso”. In: Obras completas, 1923-1972. Buenos Aires: Emecé Editores, 1984, p. 490. 23 coloca-me desafios importantes em sua produção. Portanto, há que se delimitar com um pouco mais de precisão quais as características do esquecimento de que se fala e como ele opera na escrita disto que aqui toma forma. Assim, é sob o abrigo da desmemória que este Memorial é escrito, daquilo que não é da ordem do irrecuperável, mas do recordável em um espaço próprio que é o da experiência de um historiador. Será aqui a desmemória o caminho para o retorno ao esquecido. Será a partir dela que pretendo abrir meu espaço próprio da recordação. A desmemória: espaço de recordação Seriam histórias próximas ou semelhantes as do esquecimento e da desmemória? A primeira, como vimos, já teve em Harald Weinrich seu crítico exímio, mas desconheço alguém que tenha levado a sério a segunda, pelo menos a ponto de traçar sua história.24 Embora os dicionários acabem por situá-los como termos sinônimos, gostaria de propor para os fins pretendidos neste Memorial uma distinção sutil. Se o esquecimento, mesmo aquele que passou a ser valorizado desde o século XVI, é da ordem da perda e do apagamento parcial ou definitivo, o que permite regular as próprias instâncias do conhecimento, como mostram Nietzsche, Luria, Borges e Sacks, a desmemória é da ordem do deslocamento, do que se encontra fora de lugar e pode ser de alguma forma e segundo determinadas intenções reposicionado; ela trata daquilo que desfalece, mas pode ser despertado. O esquecimento impõe uma lógica bélica do confronto: precisamos lutar contra ele; a desmemória nos convida ao encontro e à busca, não propriamente de um tempo perdido, mas de lembranças esmaecidas. O termo desmemória, portanto, me serve mais que o de esquecimento, pois nele o prefixo des marca o contraste com aquilo que para mim é da ordem da falha e do erro. Des carrega em si os traços da oposição, da negação, da falta, da separação, do afastamento; sinaliza de forma mais intensa aquilo que se esvanece, que se mostra frágil, que se me aparece como lacunar. Ao mesmo tempo, o termo contém na própria palavra que busca negá-la o objeto da negação, como que para recordar constantemente que 24 Marie-Anne Paveau, seguindo os caminhos abertos por Régine Robin, aborda o tema da desmemória discursiva e suas relações com o que chama de amemória. PAVEAU, Marie-Anne. “Memória e virtude”. In: Linguagem e moral. Uma ética das virtudes discursivas. Campinas: Editora da Unicamp, 2015, p. 229-274. 24 ela está ali, de tal ou qual forma sempre latente: a memória ela mesma. A desmemória é, portanto, encarada como uma lembrança da memória, por mais paradoxal ou redundante que seja a expressão. Afinal, se a memória estivesse, de fato, operante, por que razão haveria necessidade de lembrá-la? Se ela funcionasse como deveria funcionar regularmente, existiria algum sentido em fazer dela objeto de recordação? Dizer que este Memorial se abriga sob o signo da desmemória é deixar manifesto que é a memória, ou ao menos uma certa memória, aquilo que se busca recordar nestas páginas. A memória não é a origem ou a fonte a partir da qual o relato se realiza; é o horizonte ao qual se vislumbra, o lugar a que se almeja chegar. Escrever um memorial é, para mim, menos a prática segura de pôr em escrito uma lembrança prévia, do que o intento arriscado de produzir alguma coisa cujo resultado não conheço de antemão, já que neste caso conhecer equivaleria a recordar. Além disso, significa reconhecer que no âmbito da memória o jogo se dá justamente entre o lembrar e o esquecer, ou seja, que não há memória (e, portanto, não haveria memorial) sem que certo esquecimento irrompa como algo que lhe é constitutivo. Neste caso, um esquecimento que aparece menos como algo a ser evitado (o inimigo contra o qual se luta), do que como algo que coloca o próprio desafio do recordar e estabelece os limites que definem a cartografia de um espaço de recordação. A essa forma particular de esquecimento, chamo de desmemória. Embora não seja minha intenção dar um tom psicanalítico ao Memorial, não é possível desconsiderar as proximidades que este esforço em lidar com memórias que se situam na fronteira entre o individual (o pessoal) e o coletivo (o profissional) mantém com a certa prática clínica. Como sugere Weinrich, na doutrina freudiana se estabelece um caminho que vai, mediante análise, do “esquecimento não apaziguado”, de caráter patológico, ao “esquecimento apaziguado”, aquele que garante uma vida razoavelmente saudável. Nesse sentido, “não há como evitar o desvio pela consciência, e há um certo paradoxo na arte de esquecer freudiana, de que esse desvio, para ser bem realizado, tem que ser confiado à arte da memória, de modo que esta se afirme como auxiliar da arte do esquecimento”.25 Assim, embora reconheça alguma similitude, não é a psicanálise que me serve de guia, mas sim uma forma de filosofia que coloca as relações entre 25 WEINRICH, Harald. Lete. Arte e crítica do esquecimento, op. cit., p. 191. 25 memória e esquecimento como tema de reflexão e cujo objeto privilegiado é a própria condição histórica. Seu principal intérprete sem dúvida foi Paul Ricoeur. Em Memória, história, esquecimento, Ricoeur sinalizou que, “de fato, o esquecimento continua a ser a inquietante ameaça que se delineia no plano de fundo da fenomenologia da memória e da epistemologia da história. Sob esse aspecto, ele é o termo emblemático da condição histórica [...], o emblema da vulnerabilidade dessa condição”.26 Ecoando os dilemas que o século XX colocou para o esquecimento, uma vez que toda sua reflexão é feita a partir da experiência da Shoah, o filósofo salienta de início a figura negativa do esquecimento: ele é o que coloca em risco o princípio da fidelidade da memória. O esquecimento traz em seu bojo “dano, fraqueza, lacuna”.27 Porém, seu intuito filosófico é também encontrar os meios para encarar o gesto de esquecer como algo sadio e salutar, buscando os meios para o que chamou de “esquecimento feliz” [oubli heureux]. Daí sua estratégia em tratar do esquecimento não pela chave da escolha entre esquecer e não esquecer, mas considerando-o segundo graus de profundidade. Nesse sentido, pensando suas formas mais profundas, Ricoeur oferece uma útil distinção entre “esquecimento por apagamento de rastros” [oubli par effacement des traces] e “esquecimento de reserva” [oubli de reserve].28 Se o primeiro, ocasionado de forma intencional ou não (e considerando rastros documentais, psíquicos ou neurológicos), torna perdido e irrecuperável o objeto esquecido, o segundo faz deste uma forma de latência que permanece algo passível de ser reabilitado ou acessado novamente. Quanto a isso, o filósofo se permite falar em termos de um “inconsciente da lembrança”. E é justamente a esta forma latente ou reservada de esquecimento que Ricoeur se refere quando escreve o trecho colocado como epígrafe deste capítulo: “é, com efeito, a esse tesouro do esquecimento que recorro quando me toma o prazer de me recordar do que uma vez vi, ouvi, experimentei, aprendi, adquiri”.29 A recordação, portanto, pode ser uma forma de busca daquilo que, uma vez esquecido, permanece latente, seja do ponto de vista psicanalítico, seja segundo as possibilidades dadas pelo 26 RICOEUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oubli, op. cit., p. 536. Ibid., p. 537. 28 Ibid., p. 539. 29 Ibid., p. 541. 27 26 arquivamento dos vestígios documentais. Recordar, assim, é a busca pela memória no “tesouro do esquecimento”. No âmbito dessa discussão ampla, situada na esteira das reflexões de Henri Bergson, Ricoeur oferece ainda outras duas categorias que importa retomar. Uma vez que essa atividade da recordação está condicionada à exigência de fidelidade com aquilo que é recordado, entra em cena a figura própria do reconhecimento. Afinal, a memória fiel é aquela que é reconhecida como tal. 30 O reconhecimento é, nesse sentido, aquilo que distingue a “memória-hábito”, “que é simplesmente agida e sem reconhecimento explícito”, da “memória-rememoração”, “que não prescinde de reconhecimento declarado”.31 Trazendo para o tema aqui proposto, podemos considerar que, longe de um simples ato mecânico, um memorial pressupõe tanto a busca pela memória como a exigência de que esta memória seja considerada como fiel, ou seja, que aquilo que é rememorado não apenas esteja em consonância com o que foi vivido, mas também com as intenções daquele que rememora. As condições disso neste Memorial serão retomadas ao final deste capítulo. Proponho, a partir de todas essas considerações que a fenomenologia da memória ricoeuriana oferece, situar a desmemória no plano do esquecimento de reserva de que trata Paul Ricoeur. Mais do que irremediavelmente perdida, ela designa a condição latente de algo cuja procura leva em conta “o caráter despercebido da perseverança da lembrança, sua subtração à vigilância da consciência”. 32 O Memorial, diferente do registro da memória, é, desse modo, o relato da procura pela memória, um mergulho no “inconsciente da lembrança”. Resta indicar a forma como essa procura pode acontecer e é neste ponto que uma articulação da fenomenologia ricoeuriana com a teoria da memória cultural de Aleida Assmann se torna pertinente. De início, parto das diferenças propostas por Assmann entre a memória como ars e a memória como vis. A primeira, ligada predominantemente à mnemotécnica antiga, 30 Este ponto da reflexão de Ricoeur remete à toda extensão dos problemas levantados por ele em sua obra sobre a condição histórica e que atravessa tanto o estatuto ético da testemunha (aquela cuja lembrança precisa ser acreditada), quando o estatuto epistemológico da historiografia (aquela cuja conhecimento precisa ser atestado). Em outras palavras, cumpridas as exigências éticas e epistemológicas, podemos reconhecer como legítimos tanto a lembrança da testemunha, quando o conhecimento da historiografia. Por questões de espaço, não pretendo explorar essas dimensões ampliadas que a obra oferece. 31 RICOEUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oubli, op. cit., p. 558. 32 Ibid., p. 570. 27 não é situada diante do tempo, mas sim do espaço. A espacialização dos temas a serem lembrados pelo orador teve em Cícero um dos principais proponentes, sendo ecoado até os começos da época moderna nas diferentes modalidades de teatros da memória, estudados tanto por Frances Yates como por Paolo Rossi.33 A essa forma técnica de memória, dependente da criação de lugares e imagens dentro de um espaço circunscrito, Assmann chama de armazenamento, ligado ao “procedimento mecânico que objetiva a identidade entre o depósito e a recuperação de informações”.34 O jogo feito pelo orador entre a criação de lugares (normalmente um edifício e seus cômodos) onde deve posicionar os temas ou imagens que precisarão ser recuperados durante sua prática oratória é, para a autora, o paradigma desse procedimento técnico [ars] de armazenamento. Por outro lado, a modernidade, particularmente no século XIX com Nietzsche, trouxe para a memória uma outra dimensão, definida como potência [vis]. Neste caso, mais do que a identidade espacial entre depósito e informação, o que importa é a diferença temporal entre o lembrar e a coisa lembrada, ou seja, entre os tempos que constituem propriamente a memória. Se a ars remetia ao “procedimento de armazenamento”, a vis se refere ao “processo de recordação”. Nesse sentido, temos uma diferença significativa de postura. Por um lado, “o ato do armazenamento acontece contra o tempo e o esquecimento, cujos efeitos são superados com a ajuda de certas técnicas”, por outro, “o ato de recordação [...] acontece dentro do tempo, que participa ativamente do processo”. Como consequência disso, tem-se que “o esquecimento é oponente do armazenamento, mas cúmplice da recordação”.35 O tempo, portanto, se favorece a ação do esquecimento ou, nos termos aqui colocados, condiciona a desmemória, também organiza a própria tarefa da recordação. Enquanto procura da memória, o Memorial é igualmente uma forma de dispor as temporalidades que definem aquilo que precisa ser rememorado, sempre na tensão constituinte entre lembrar e esquecer. E é justamente neste ponto que a experiência íntima do tempo se articula com os múltiplos tempos que conformam a experiência coletiva. 33 YATES, Frances A. The art of memory. Chicago: The University of Chicago Press, 1966; ROSSI, Paolo. A chave universal. Artes da memorização e lógica desde Lúlio até Leibniz. Bauru: EDUSC, 2004. 34 ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação, op. cit., p. 33. 35 Ibid., op. cit., p. 34. 28 Assmann possibilita, assim, situar o esforço pessoal de rememoração dentro de um ambiente ampliado que pode assim ser chamado de espaço de recordação. Em primeiro lugar, significa não perder de vista que a trajetória acadêmica memorializada é algo mais que o caminho singular e individualmente percorrido pelo ator do memorial. Com isso, todas as peculiaridades da memória própria devem ser assim colocadas em perspectiva coletiva. Em segundo, implica considerar que são os múltiplos tempos que atravessam e determinam a trajetória o que estrutura a dimensão narrativa do Memorial. Abrigado sob o signo da desmemória, que resguarda a dimensão latente que o esquecimento de reserva possibilita recuperar, ele é também a reconstituição de um percurso social que articula o tempo próprio do indivíduo com os tempos variados da profissão. E se esse percurso define uma carreira, essa carreira pode ser encarada enquanto obra. A carreira como obra Logo no início de seu romance intitulado A mais recôndita memória dos homens, publicado originalmente em 2021, o escritor senegalês Mohamed Mbougar Sarr sugeriu que “de um escritor e sua obra, pode-se saber ao menos uma coisa: os dois caminham juntos pelo labirinto mais perfeito que se possa imaginar, uma rota longa e circular cujo destino se confunde com a origem: a solidão”.36 Sem qualquer pretensão de assumir que o que está aqui em jogo é a relação de um escritor e sua obra, o trecho lido ao acaso durante a feitura deste Memorial impôs a mim uma reflexão inesperada: se é certo que a profissão de um docente pode e deve ser considerada como trabalho (em seus sentidos sociais, jurídicos e morais), pode a carreira de um professor universitário ser pensada enquanto obra? Obviamente não me refiro somente à noção de obra como objeto resultante de uma ação ou como o resultado de uma produção específica, essa categoria cara à certa abordagem textual: um livro ou o conjunto de textos de um autor considerados como obra. Tampouco pretendo atribuir ao termo os sentidos puramente estéticos que a teoria e a história da arte normalmente assumem ao considerar este ou aquele objeto como obra (de arte). A noção aqui assume outros significados. 36 SARR, Mohamed Mbougar. A mais recôndita memória dos homens. São Paulo: Fósforo, 2023, p. 15. 29 Penso antes na obra [work] como o efeito prático de uma atividade particular, consequência da ação de obrar ou de fabricação realizada pelo Homo faber de que fala Hannah Arendt, em A condição humana, diferenciando-o do Animal laborans, mais restrito à dimensão biológica que a filósofa situa no plano do trabalho [labor].37 Nesse sentido, o significado dicionarizado do termo ajuda a concentrar no mesmo termo seja “aquilo que resulta de um trabalho, de uma ação”, seja o “objeto resultante do trabalho” (de um operário, de um artista ou de um artesão, mas seria possível acrescentar ainda de um professor), seja o “conjunto das ações realizadas por alguém [...] em vista de um certo resultado”, seja ainda “a produção total de um artista, de um cientista”.38 Assim, cabe (desd)obrar a pergunta: o conjunto amplo de ações, atividades, condutas, procedimentos, práticas, produtos, todo o trabalho, enfim, que define o exercício deste ofício singular conforma, ao fim e ao cabo, uma obra? Se sim, quais os contornos ou características por ela assumidos? De que obra mais especificamente estamos falando aqui? O Memorial seria, de alguma forma, o registro narrativo dos momentos que constituem e dão sentido a essa obra? Considerar a carreira universitária como obra a ser narrada implica necessariamente situar o tempo como seu eixo estruturante, seja na perspectiva da simples cronologia, seja na noção mais complexa de temporalidade, encarada como experiência de tempo. Michel Fabre oferece alguns elementos importantes para o desenvolvimento desta perspectiva quando problematiza a ideia, recorrente em diversas ocasiões, de “fazer da sua vida uma obra”.39 O filósofo recorre à tradição aristotélica para diferenciar o campo da práxis do campo da poiese; o primeiro, normalmente colocado no plano da ação, aquele em que a distinção entre sujeito e objeto se torna difícil (como separar, por exemplo, a vida do vivente?), enquanto que no segundo, mais próximo da dimensão artística, tal distinção emerge como condicionante (o escultor não pode ser confundido com sua escultura). Assim, quando pensamos que alguém fez de sua vida 37 ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. Não é despropositado lembrar que o livro, publicado originalmente em inglês, faz uma diferenciação entre labor e work. A tradução consultada, feita por Roberto Raposo, com revisão técnica de Adriano Correia, ao contrário de traduzir os termos respectivamente por labor e trabalho, optou por transpor labor ao português como trabalho e work, como obra. 38 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 2042-2043. 39 FABRE, Michel. “Faire de sa vie une oeuvre”. L'orientation scolaire et professionnelle, vol. 33, n. 4, 2004. 2004. 30 uma obra, como situar qual o sujeito e qual o objeto desse obrar? No caso de uma vida acadêmica, quando o que emerge como fato principal é a formação, o indivíduo é o sujeito de sua própria formação institucional ou, por outro lado, é o objeto formado no espaço da instituição?40 Para tentar sair do dilema que Aristóteles colocou, Fabre se volta à filosofia contemporânea e, particularmente, às considerações já mencionadas de Hannah Arendt. Para o comentador, a filósofa buscou situar a obra [work] entre o âmbito do trabalho [labor] e o da vida ou ação [action]; portanto, sem se confundir ou se justapor à própria vida. Nesse sentido, a obra emerge não como o corolário da vida, mas como o produto da fabricação do Homo faber; um produto que toma a forma de um tempo que não equivale ao tempo dos ciclos biológico e natural. Como indica Arendt, “a obra proporciona um mundo ‘artificial’ de coisas nitidamente diferente de qualquer ambiente natural”.41 A proposta aqui colocada, então, é tentar pensar em que medida a carreira acadêmica pode ser encarada como uma forma de obra, ou seja, algo que não equivale tão somente à dimensão material do trabalho, tampouco corresponde ao dado amplo da vida em seu sentido social e biográfico. A carreira pensada como obra é a expressão que articula o trabalho acadêmico com a vida acadêmica, sem perder de vista a carga temporal que essa reflexão impõe. Afinal, se a obra, junto com “seu produto, o artefato humano, conferem uma medida de permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano”,42 não há como desvencilhar a questão da carreira da questão do tempo. Se o tempo aparece como elemento estruturante para um memorial sobre a carreira acadêmica, ele obviamente traz a reboque a condição narrativa que a tarefa compele. Como afirma Fabre, dessa vez seguindo os passos de Paul Ricoeur, “o que sou não me é diretamente acessível, eu não me descubro senão em uma história e refletindo posteriormente [aprés coup] sobre meus atos”.43 Tal constatação, no entanto, não vem desprovida de dúvidas: “o eu que narra [raconte] e o eu narrado [raconté] são um 40 Nesses termos, Fabre indaga: “o aluno é um produto que a escola deve fabricar ou, ao contrário, deve ser considerado como um ator livre da sua própria vida?”. FABRE, Michel. “Faire de sa vie une oeuvre”, op. cit., parágrafo 6. 41 ARENDT, Hannah. A condição humana, op. cit., p. 8. 42 Ibid., p. 10. 43 FABRE, Michel. “Faire de sa vie une oeuvre”, parágrafo 15. 31 mesmo eu?”.44 Colocando tal indagação com os termos que aqui interessam, caberia perguntar se o eu-historiador que assume o posto de narrador deste memorial e o euhistoriador que deve ser nele narrado podem ser de alguma forma intercambiados no gesto de historicizar a si mesmo a partir da chave da memória? Minha resposta será positiva, desde que se considere a particularidade desta narrativa: ela não equivale ao enredo de uma vida, no sentido do registro autobiográfico, mas sim do relato de uma carreira, considerada como obra. Cabe então explicitar melhor os termos que embasam este entendimento e as relações entre narrativa e temporalidade que nortearão a feitura deste texto. A narrativa da obra que aqui toma forma não é feita apenas a partir do anseio individual de prestar contas comigo mesmo, como se em algum momento tivesse me arrebatado o pendor para a autobiografia; trata-se antes de uma determinação institucional que delimita o gênero memorial como uma das modalidades possíveis e aceitáveis de apresentação de si para a promoção na carreira (a outra sendo a tese acadêmica). Na definição que a instituição oferece, a promoção equivale à passagem do servidor de uma classe para outra subsequente, lembrando que as classes, salvo a de titular, são atualmente compostas por níveis cuja passagem de um para outro equivale a uma progressão. Além disso, é condição para a progressão e para a promoção o cumprimento de um interstício de 24 meses, dentro do qual uma série de atividades e metas precisam ser cumpridos. Ou seja, tanto a terminologia (promoção, progressão, interstício) como a regra usada para definir as etapas que estruturam a vida institucional do docente de uma universidade federal (o intervalo de dois anos) estão fundadas em uma compreensão ao mesmo tempo cronologizada como temporalizada da carreira. Portanto, se é possível pensá-la usando a ideia de obra, trata-se de uma obra que se constitui tanto no quanto pelo tempo. A natureza deste tempo da obra, como sugerido, se desdobra em duas dimensões principais. Por um lado, há a simples cronologia que fundamenta suas etapas. O interstício de dois anos faz da obra um percurso que é predominantemente teleológico: caminha-se nele como quem sobe os degraus previamente estabelecidos de uma escada, já conhecendo qual o seu possível andar final. Isso não significa que 44 Ibid. 32 necessariamente se chega a ele, pois tudo depende da ação feita pelo docente de pleitear ou não a progressão ou promoção desejadas, assim como tudo depende do cumprimento dos requisitos estabelecidos para tanto (são muitos os que param em determinado andar, por opção ou condição, ou os que definem um ritmo mais lento para a subida). Mas o que importa reconhecer é o fato de que fora do percurso que nos encaminha até a posição de professor titular, fora dessa escada, não há desvio possível. Pode-se, obviamente, por decisão deliberada ou por contingências da vida, não cumprir todo o percurso, mas sair dele é algo inviável. Auxiliar, assistente, adjunto, associado, titular, todas essas são as categorias (com alguma ramificação conforme cada caso ou regra vigente) que definem a posição do docente, o que significa também, de um modo ou de outro, situá-lo no tempo próprio da carreira (que, obviamente, não equivale ao tempo da vida acadêmica). A obra, então, possui sua cronologia específica e institucionalmente bem delimitada. A promoção para titular é normalmente encarada como o “topo” da carreira (daí a metáfora ascendente da escada), o ponto culminante da obra, seu fim que já está indicado deste o princípio. É, contudo, a outra dimensão da temporalidade que coloca os desafios mais importantes para esta reflexão, aquela que aproxima a obra não apenas da dimensão institucional da carreira, mas da própria vida acadêmica do docente, que nem sempre obedece à linearidade de eventos separados por interstícios previamente definidos. Afinal, se por um lado a carreira impõe, pela cronologia, um sentido eminentemente teleológico para a obra, ao narrá-la, criando uma espécie de sincronia entre percurso institucional e trajetória de vida, não estaríamos sujeitos aos riscos de cairmos na chamada “ilusão biográfica”, de fazer da própria vida a sucessão de etapas cronologicamente quantificáveis e ordenáveis? Ou seja, o sentido “etapista” e cronológico da instituição não acaba por condicionar de alguma forma essa narrativa à teleologia, a ponto de nela aceitarmos irrefletidamente “o postulado do sentido da existência [sens de l’existence]” de que advertiu Pierre Bourdieu em sua conhecida crítica à projeção da filosofia da história para as histórias de vida e, pior, subsumi-la à mera ordem da cronologia?45 O historiador que assim o fizesse não estaria cedendo muito fácil 45 BOURDIEU, Pierre. “L’illusion biographique”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, vol. 62-63, 1986, p. 69 33 à propensão inconsciente de “introduzir na curva de sua existência uma coerência emprestada”, como sugeriu René Rémond em seu ensaio de ego-história?46 Como se sabe, o sociólogo francês desconfiou da ideia de que a noção de vida constituiria “um todo, um conjunto coerente e orientado, que pode e deve ser apreendido como expressão unitária de uma ‘intenção’ subjetiva e objetiva, de um projeto”.47 Ora, tratar a carreira como obra e fazer do memorial sua narrativa não guarda semelhanças com o anseio de se biografar ou autobiografar uma vida, trazendo os perigos de que falou Bourdieu quando sugeriu que “produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, quer dizer, como o relato coerente de uma sequência significante e orientada de eventos, é talvez sacrificar-se a uma ilusão retórica, a uma representação comum da existência, que toda uma tradição literária não cessou e não cessa de reforçar”?48 Para ele, haveria um problema de fundo no gesto de se justapor à ideia de vida a noção de um Eu constante e irredutível, conformador e determinante dos traços de uma identidade da qual a vida seria apenas uma expressão exterior e o nome próprio sua insígnia definidora: “tentar compreender uma vida como uma série única e em si suficiente de eventos sucessivos sem outro elo que não a associação a um ‘sujeito’, cuja constância não é sem dúvida se não aquela do nome próprio, é quase tão absurdo quanto tentar explicar [rendre raison] o trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da rede, ou seja, a matriz das relações objetivas entre as diferentes estações”.49 Se normalmente as discussões em torno da prática biográfica mobilizam as considerações de Bourdieu para sinalizar que se está evitando ou tentado evitar a tal “ilusão retórica”, cumpre indicar desde logo que o gesto aqui assumido para a escrita deste Memorial que não equivale propriamente a uma autobiografia é o de caminhar em direção aos possíveis sentidos ilusórios que a narrativa da obra impõe. Em outras palavras, o pressuposto inicial que mobiliza estas palavras é o de que há sim um sentido intrínseco à obra aqui relatada, que ela pode e deve ser encarada, num primeiro momento, como um conjunto “coerente e orientado”, subjacente ao qual existe desde 46 RÉMOND, René. “O contemporâneo do contemporâneo”. In: NORA, Pierre. Ensaio de ego-história. Lisboa: Edições 70, 1989, p. 288. 47 BOURDIEU, Pierre. “L’illusion biographique”, op. cit., p. 69. 48 Ibid., p. 70. 49 Ibid., p. 71. 34 logo uma intencionalidade subjetiva e objetiva que definem um certo projeto.50 Isso não significa, por outro lado, considerar que em sua essência preexista, seja lá qual for sua natureza, um sujeito solar sob o abrigo do qual já estaria prefigurado aquele sentido. Na preciosa formulação feita por Angela de Castro Gomes, em diálogo direto com as considerações de Bourdieu, “é exatamente porque o ‘eu’ do indivíduo moderno não é contínuo e harmônico que as práticas culturais de produção de si se tornam possíveis e desejadas, pois são elas que atendem à demanda de uma certa estabilidade e permanência através do tempo”.51 Assim, aquela “intenção subjetiva e objetiva” mencionada por Bourdieu é historicamente definida e se modifica com o tempo, modificando por sua vez os contornos próprios daquele projeto indicado pelo sociólogo, tornando historicizáveis tanto o sujeito quanto a obra. Ainda seguindo as palavras de Castro Gomes, é próprio das tensões constitutivas do individualismo moderno o jogo sempre impreciso e constante entre o anseio pela linearidade e pela coerência e a constatação de uma experiência incompleta e fragmentada. Trata-se, portanto, de “um indivíduo simultaneamente uno e múltiplo, e que, por sua fragmentação, experimenta temporalidades diversas em sentido diacrônico e sincrônico”. 52 E como Paul Ricoeur já advertiu há algumas décadas, diante da heterogeneidade do tempo que conforma a experiência, a narrativa oferece as condições propícias para a síntese dessas temporalidades.53 Quem sabe, então, essas considerações não têm algo a ver com o labirinto de que fala Mbougar Sarr, tornando viável considerar que na origem e no destino dessa “rota longa e circular”, onde os acasos discordantes do tempo tensionam os significados concordantes do relato, persiste a ação voluntária do vir a ser professor, tema por excelência da narrativa. Como se percebe, isso significa não perder de vista em nenhum momento durante a escrita deste Memorial as múltiplas imbricações entre o tempo- 50 A filósofa Scarlet Marton, em seu Memorial Acadêmico para tornar-se professora titular na USP, em 2003, recordou as palavras com que iniciou outro memorial escrito por ela alguns anos antes para o concurso de livre-docência: “para o outro, [o memorial] cria a ilusão da identidade; para o eu, a da coerência”. MARTON Scarlett Zerbetto. Memorial. São Paulo: FAFICH-USP, 2003, p. 16. 51 GOMES, Angela de Castro. “Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo”. In: GOMES, Angela de Castro (org.). Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2004, p. 13. 52 GOMES, Angela de Castro. “Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo”, op. cit., p. 13. 53 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tomo I. Campinas: Papirus, 1994, p. 102. 35 cronológico da instituição e o tempo-experiência da ação. Da mesma forma, isso implica enfrentar a questão que o gênero, enquanto uma forma de escrita de si, desde logo impõe a quem se aventura por ele: pensar as múltiplas temporalidades que constituem este si e que caracterizam a obra. Novamente aqui vale mencionar as palavras de Castro Gomes: “as práticas de escrita de si podem evidenciar, assim, com muita clareza, como uma trajetória individual tem um percurso que se altera ao longo do tempo, que decorre por sucessão. Também podem mostrar como o mesmo período da vida de uma pessoa pode ser ‘decomposto’ em tempos com ritmos diversos: um tempo da casa, um tempo do trabalho etc.”.54 Se, contudo, não é da natureza do gênero fazer seu leitor ou leitora adentrar no espaço íntimo da casa, é o tempo próprio do trabalho ou, nos termos emprestados de Hannah Arent, da obra [work] que é preciso decompor e multiplicar. Para finalizar esta reflexão, retorno uma vez mais ao trecho citado de Mbougar Sarr. Gosto da imagem que se abre para refletir sobre a trajetória que o Memorial pretende apresentar, quando me imagino, naquilo que fiz, faço e provavelmente seguirei fazendo por um bom tempo enquanto professor universitário, caminhando por um perfeito labirinto, nessa rota longínqua e redundante em que o destino sempre me leva de retorno à origem. Tanto na origem como no destino, persiste essa dimensão mais essencial do trabalho historiográfico: a solidão. Mas não se trata de uma solidão totalmente desprovida dos aspectos coletivos e das formas de socialização que o trabalho em uma instituição pública fatalmente define; tampouco se trata da ausência do diálogo crítico, da conversa amigável, do amparo afetivo. É uma solidão sempre acompanhada, povoada de gente, atravessada por muitos e variados vínculos. Aquele tipo de solidão que Durval Muniz de Albuquerque Júnior colocou no centro da prática da história, pensada por ele a partir da amizade como método historiográfico.55 Assim, se na origem e no destino o estar só pode ser considerado como condição insuperável do ofício, entre um e outro é o povoamento de pessoas o que realmente interessa. Com 54 Ibid., p. 13. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. “Íntimas histórias: amizade como método historiográfico”. In: História: a arte de inventar o passado. São Paulo: Edusc, 2007, p. 213. Essa imagem da solidão povoada de amigos, e da qual Temístocles Cezar se apropriou quando escreveu o seu Memorial, em 2018, passou a ocupar minhas indagações sobre meu próprio Memorial desde o momento em que fui convidado para participar de uma mesa, acompanhado justamente por Durval, em homenagem ao Temístocles, ocorrida em novembro de 2022, no XI Seminário Brasileiro de Teoria e História da Historiografia, em Guarulho/SP, na UNIFESP. Essa mesa é prova cabal de como a historiografia é feita em grande medida a partir de afetos que fazem da solidão uma experiência coletiva e compartilhada. 55 36 isso não quero dizer que a obra que se narra é o produto de uma ação coletiva, mas sim reconhecer que sem muitas dessas pessoas não haveria obra, tampouco memória da obra. Por isso, este Memorial não pode também abdicar de ser aquilo que ele é: o manifesto da gratidão. O gênero memorial Tão institucional quanto pessoal, o Memorial cumpre duas funções bastante distintas, ainda que complementares. Por um lado, busca respeitar os requisitos que a burocracia acadêmica estabelece para a promoção na carreira de professor universitário. É a condição para me tornar um assim chamado professor titular, docente enquadrado na classe “E” da estrutura institucional; posição que hoje, à diferença do que seria para uma ou duas gerações anteriores, assume menos o caráter de um título nobiliárquico no pequeno reino da academia do que o ponto final (pelo menos até que uma nova reforma administrativa venha a mudar isso) na configuração funcional de um servidor público docente de universidade federal. Um ponto final a que se pode chegar, pelo menos para os da minha geração, muito cedo e talvez cedo demais. Pois depois disso, e considerando especificamente a minha situação pessoal, haverá ainda mais da metade da estrada profissional para ser percorrida, pelo menos se nada de inesperado ocorrer até lá. Ou seja, a maior parte do tempo institucional que regula minha atividade docente será vivida nesta condição. Mais que um sinal de distinção simbólica, será o traço permanente de uma condição comum. No momento em que escrevo este Memorial, ainda que tenha quase três décadas de relação direta com a universidade pública desde meu ingresso na graduação, menos de vinte anos deste período foram dedicados à atuação formal como docente, seja na condição de professor substituto, seja na de professor efetivo. As regras e leis vigentes hoje ainda impõem pelo menos outras duas décadas até que as condições propícias da aposentadoria (este outro ponto final da carreira) sejam cumpridas. Quer dizer, caso o intento dessa promoção pretendida seja bem sucedido, passarei mais tempo de minha atuação universitária como professor titular do que como qualquer outra categoria acadêmica até então assumida, o que envolve ter sido estudante de graduação, aluno de mestrado e de doutorado, professor substituto, professor adjunto, professor 37 associado, professor visitante, chefe de departamento, coordenador de pós-graduação, de laboratório de pesquisa, membro de colegiado, de comissão disso e daquilo etc. Quais os significados e os efeitos da permanência tão longa neste espaço que, provisoriamente e sem ironia, pode ser chamado de fim da carreira (no duplo sentido que a palavra fim carrega), eis algo sobre o que, de uma maneira ou de outra, este texto busca refletir. Há, portanto, uma segunda função cumprida pelo Memorial. Ela diz respeito à tarefa, tão difícil quanto proveitosa, de voltar contra minha própria trajetória acadêmica aquilo que Nietzsche chamou de “ferrão” dos historiadores.56 Ou seja, trata-se de, junto com o esforço de rememorar meu percurso, historicizar minha vida acadêmica, ainda que de um modo bastante particular, já que um memorial pode ser muitas coisas, mas talvez não seja precisamente a história de uma vida profissional. E isso devido ao fato, ao mesmo tempo banal e carregado de complexidade, de que aquele que o escreve é também aquele sobre o que se escreve. Ainda que se pudesse denominar isto de uma história de si, ela não teria outra chave possível senão a da memória ou, neste caso específico, a desmemória. Pois se podemos juntar uma documentação considerável para escrever um texto dessa natureza, projetando sobre cada material um olhar metodicamente conduzido, analisando seus pormenores e buscando uma explicação para o que de fato aconteceu (em suma, fazer história), a preponderância será sempre não daquilo que eu analiso escrupulosamente, mas sim daquilo que procuro como recordação pessoal, nesse processo mnemônico que diferentes autores e autoras já definiram, segundo outras intenções, como trabalho de memória.57 Este trabalho de memória, por sua vez, ganha concretude apenas a partir de um gênero discursivo particular que demanda algumas precisões. De início, seguimos seus significados dicionarizados: 1. “relato de memórias”; 2. “obra, relato concernente a fatos ou indivíduos memoráveis; memórias”; 3. “caderneta para apontar aquilo que se deseja lembrar”; 4. “monumento comemorativo”; 5. “digno de se lembrado; memorável”; 6. 56 “A própria história deve resolver o problema da história, o saber deve voltar seu ferrão contra si próprio”. NIETZSCHE, Friedrich. “II Consideração intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da história para a vida”, op. cit., p. 142. Alterei levemente a tradução desta edição, que está baseada nas edições francesas da obra de Nietzsche. Assim, o termo original Stachel, normalmente traduzido literalmente por “ferrão”, aparece na edição consultada como “dardo” (dard em francês, que também significa ferrão). 57 Entre eles, RICOEUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oubli, op. cit; e JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Lima: Instituto de Estudos Peruanos, 2012. 38 “aquilo que faz lembrar”. Todas essas são definições que encontramos no Houaiss. 58 O termo se refere, então, a um tipo de relato; a um suporte específico para lembranças; a um objeto arquitetônico; a uma condição cultural. Trata-se, como se vê, de palavra polivalente cujos sentidos cobrem um extenso campo de possibilidades. Desde logo, portanto, é preciso delimitar do que se está falando quando se fala de memorial. Seguirei, para isso, por dois caminhos: pensá-lo em sua historicidade e considerá-lo de acordo com suas funções próprias. E, antes de mais nada, colar ao termo um qualificativo que já estabelece alguns limites próprios: trata-se aqui de um memorial acadêmico. O memorial acadêmico é um gênero de escrita institucional que, no Brasil, possui peculiaridades definidas pela sua natureza formal e pelo escopo de seu conteúdo. Se suas origens distantes remontam, supõe-se, à tradição francesa dos Exposés des titres et travaux scientifiques, sua emergência local é contemporânea ao próprio surgimento das universidades, na década de 1930.59 Distinto do chamado memorial de formação, que normalmente é feito por estudantes durante o processo formativo, de modo supervisionado e como requisito para o cumprimento de créditos, o memorial acadêmico está predominantemente ligado ao processo avaliativo e auto avaliativo de docentes do ensino superior, tanto para o ingresso na carreira como para progressão ou promoção funcional.60 Definido por critérios institucionais estabelecidos por normas, resoluções ou editais específicos, que determinam exigências mínimas para sua aprovação por parte de uma banca constituída especialmente para este fim, o gênero passou por transformações importantes ao longo de sua história. Sem ter condições para desenvolver com mais vagar as características gerais de sua historicidade, basta por agora indicar um traço distintivo assumido sobretudo a partir das duas últimas décadas 58 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, op. cit., p. 1890-1891. Sigo aqui especialmente os trabalhos de: CÂMARA, Sandra Cristinne Xavier da. O memorial autobiográfico. Uma tradição acadêmica no ensino superior no Brasil. Tese de doutorado em Educação. Natal: UFRN, 2012; CÂMARA, Sandra Cristinne Xavier da; PASSEGGI, Maria da Conceição. “Memorial autobiográfico: uma tradição acadêmica no Brasil”. In: PASSEGGI, Maria da Conceição; VICENTINI, Paula Perin; SOUZA, Elizeu Clementino de (orgs.). Pesquisa (auto)biográfica. Narrativas de si e formação. Curitiba: Editora CRV, 2013, p. 29-48; SILVA, Wilton Carlos Lima da. “A vida, a obra, o que falta, o que sobra: memorial acadêmico, direitos e obrigações da escrita”. Tempo & Argumento, vol. 7, n. 15, 2015, p. 103136; SILVA, Wilton Carlos Lima da. “Saber se inventar: o memorial acadêmico na encruzilhada da autobiografia e do egodocumento”. Métis: História & Cultura, vol. 15, n. 30, 2016, p. 44-67. Agradeço ao amigo Alexandre Avelar pela indicação dos preciosos trabalhos de Wilton Carlos Lima da Silva. 60 A distinção é proposta por Maria da Conceição Passeggi e retomada em diversos textos seus e de outros estudiosos. Ver CÂMARA, Sandra Cristinne Xavier da; PASSEGGI, Maria da Conceição. “Memorial autobiográfico: uma tradição acadêmica no Brasil”, op. cit. 59 39 do século XX, a saber, sua ênfase subjetiva e seu pendor literário, o que se vincula a paradigmas distintos, mas interrelacionados, que são definidos por expressões como giro subjetivo, giro linguístico, giro afetivo, giro performativo e outras variantes. Distanciando-se do modelo mais próximo ao do relatório de atividades científicas e acadêmicas que, quando muito, envolvia uma simples organização discursiva do curriculum vitae, perceptível em memoriais produzidos entre as décadas de 1950 e 1970, as pesquisas mais recentes sobre o gênero indicam que a subjetividade narrativa passa a ser estruturante a partir dos anos 1980, articulando o chamado “retorno do sujeito” com o pendor “autobiográfico” que habita o contexto literário contemporâneo.61 Nesse sentido, situando-se em uma zona fronteiriça com outros gêneros que também investem na dimensão propriamente subjetiva do relato (as confissões, a autobiografia, os diários íntimos, a ego-história), o memorial pode ser enquadrado de forma mais ampla como uma das muitas modalidades daquilo que Michel Foucault chamou, a respeito das formas de estetização da vida entre os antigos, de escrita de si, e que hoje se constituiu em verdadeiro campo de pesquisa.62 Para Wilton Carlos Lima da Silva, “o memorial acadêmico remete o acadêmico-autor-narrador a uma situação bastante particular ao situá-lo em uma escrita de si, mas que não é o gênero autobiográfico, nem o gênero diarístico, pois embora apresente o objetivo de dar forma a uma história do autor entre um fundo histórico-cultural e uma subjetividade específica, sua proposta estabelece um recorte no qual a dimensão pública e profissional ocupa uma centralidade”.63 Se a diferença em relação ao gênero diário parece mais evidente, tornando dispensável um desenvolvimento mais apurado, em relação à autobiografia as coisas mudam de figura e as fronteiras se tornam mais porosas. Afinal, o que distingue um tipo de escrita do outro? Embora a fortuna crítica a respeito da autobiografia seja imensa e inalcançável para mim, restrinjo-me a uma das definições disponíveis. É Philippe Lejeune 61 Jaume Aurell, em seu estudo sobre escritas autobiográficas de historiadores e historiadoras, identifica algo similar. Para ele, “as coisas mudaram radicalmente na maneira de conceber e de escrever autobiografias de historiadores depois dos anos 1970”. Tais mudanças abriram duas veredas diferentes: “primeiro, a narrativa autobiográfica poética e finalmente [...] as autobiografias de intervenção [interventional autobiographies]”. AURELL, Jaume. Theoretical perspectives on historian’s autobiography. From documentation to intervention. New York: Routledge, 2016, p. 24. 62 FOUCAULT, Michel. “L’écriture de soi”. In: Dits et écrits II, 1976-1988. Paris: Gallimard, 2001, p. 12341249; GOMES, Angela de Castro (org.). Escrita de si, escrita da História, op. cit. 63 SILVA, Wilton Carlos Lima da. “Para além da ego-história: memoriais acadêmicos como fontes de pesquisa autobiográfica”. Patrimônio e Memória, vol. 11, n. 1, p. 2015, p. 81. 40 quem a oferece: “narrativa [récit] retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, na medida em que enfatiza [met l’accent sur] sua vida individual, em particular sobre a história de sua personalidade”.64 Narrativa retrospectiva em prosa e realidade existencial da pessoa que narra são elementos intercambiáveis entre memorial e autobiografia. A questão se torna menos evidente quando o foco na vida individual é colocado e, sobretudo, quando a personalidade se torna objeto. Abordando especificamente as formas de escrita autobiográfica feita por acadêmicos, Jeremy Popkin inseriu algumas especificidades na definição: “por autobiografia acadêmica, refiro-me a um texto publicado apresentado como um relato verídico da própria vida do autor, escrito por alguém que passou uma parte significativa dessa vida como membro profissional de uma disciplina acadêmica, e no qual o papel dessa disciplina acadêmica na vida do autor é evidente, seja no conteúdo, seja na construção da narrativa, ou em ambos”.65 Para Popkin, as múltiplas interações entre vida do autor e disciplina acadêmica acabam por estabelecer restrições para este tipo de autobiografia que talvez não existam nas autobiografias literárias ou naquelas cujo objeto não é alguém inserido no contexto acadêmico. Considerando ambas as definições propostas e mantendo sempre certa distância em relação ao gênero autobiográfico, para as pretensões assumidas neste Memorial o individual não será considerado senão a partir das condições sociais que o definem, neste caso a dimensão disciplinar do campo intelectual e institucional da profissão serão determinantes para isso, e o autoexame da personalidade será completamente desconsiderado em proveito da análise crítica da trajetória, que é muito menos pessoal do que normalmente se considera. Se, então, a autobiografia pode ser encarada a partir de algo próximo à “tentação biográfica”, o intuito aqui será buscar evitar essa forma própria de biografismo centrada no gênio individual e numa espécie de heroicização de si.66 64 LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: Éditions du Seuil, 1996, p. 14. POPKIN, Jeremy. “Coordinated lives: between autobiography and scholarship”. Biography, vol. 24, n. 4, 2001, p. 801. 66 “O registro fugaz da existência, esse decorrer cotidiano sujeito às vicissitudes do tempo e do acontecer, essa sensação de que tudo foi rápido demais – ou não nos detivemos a pensar –, anima o que poderíamos chamar de a tentação biográfica, o desejo de deixar pegadas, além das obras ou da lembrança dos que estão próximos, numa narrativa que perdure e que nos sobreviva”. ARFUCH, Leonor. A vida narrada. Memória, subjetividade e política. Rio de Janeiro: Editora UFRS, 2023, p. 35. 65 41 De qualquer forma, não é minha pretensão recusar que o gênero memorial, de um modo bastante singular, possa ser localizado no que Leonor Arfuch chamou de “espaço biográfico”.67 Neste caso, a dimensão biográfica ou autobiográfica vincula-se a uma necessidade institucional (a apresentação do memorial à banca como requisito de promoção) e a uma restrição muito bem delimitada (não é a totalidade de uma vida o que se deve narrar, mas sim os eventos próprios uma trajetória profissional). Além disso, há uma função inerente ao gênero que não equivale ao simples anseio pessoal de contar sua história: sua motivação não nasce necessariamente do sujeito que escreve, como se fosse tão somente a expressão do desejo, mas sim da instituição à qual é submetido, que determina e regulamenta um processo avaliativo para isso. Portanto, se o sujeito que narra é sobretudo um indivíduo que ocupa uma posição definida na hierarquia funcional da instituição, o sujeito narrado é sempre um sujeito avaliado, seja como avaliação pessoal da trajetória, pelo narrador em seu intento de autocrítica, seja como avaliação por parte de outrem, feita pela banca constituída para esse fim. Dessa forma, voltando à contribuição de Lejeune para a discussão, o significativo para o gênero memorial acadêmico talvez seja menos os elementos formais que o definem do que essa relação estabelecida entre aquele que escreve e quem o lê, ou seja, o “contrato de leitura” ou o “pacto” que se mantém pelo memorial. Seria viável, inspirado pelo crítico francês, considerar aqui uma espécie de pacto memorialístico? Para Lejeune, “um gênero literário é um conjunto variável, complexo, de um certo número de traços distintivos que devem, de início, ser apreendidos sincronicamente dentro do sistema geral de leitura de uma época, e analiticamente pela dissociação de fatores múltiplos cuja hierarquização é variável”.68 Não seria forçoso reconhecer que este sistema geral de leitura se aproxima do que Mikhail Bakhtin chamou de “campo da comunicação” em sua própria definição de gênero discursivo. 69 Com isso quero reforçar a ênfase de que um gênero não existe por si mesmo, de forma isolada, mas sim em um espaço social e discursivo que envolve tanto o seu produtor como o seu receptor, além, 67 “O ‘espaço biográfico’ operou então não como uma simples acumulação fortuita de gêneros discursivos, mas como uma trama simbólica, epocal, um horizonte de inteligibilidade para a análise da subjetividade contemporânea”. ARFUCH, Leonor. A vida narrada. Memória, subjetividade e política, op. cit., p. 22. 68 LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique, op. cit., p. 8. 69 BAKHTIN, Mikhail. “Os gêneros do discurso”. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 262. 42 obviamente, do meio em que circula. Por conseguinte, para a compreensão plena do memorial como gênero, não há como desconsiderar o contexto privilegiado de sua emergência pública, ou seja, o próprio momento de apresentação e diálogo com a banca. Se, então, trata-se de um pacto implícito, de um contrato não enunciado entre as partes (o professor que tenta a promoção, a banca que o avalia em sua tentativa e a instituição que estabelece as regras e legitima a avaliação), o que está em jogo neste pacto, quais as condições para que o contrato seja mantido? Considerando essa proposta de definição do gênero, pode-se sugerir que a função de um memorial adjetivado como acadêmico não é a preservação da memória no presente ou sua projeção futura. Sem se confundir com a autobiografia, ele tampouco é o relato para que os fatos narrados não caiam no esquecimento, ou mesmo uma espécie de monumento de si para a posteridade. Quanto a este Memorial em particular, se ele preserva ou projeta algo, pode-se dizer que este algo é a persona acadêmica do historiador que o escreve. As condições do contrato de leitura estão estipuladas pela natureza dessa persona, restando avaliar se ela cumpre os protocolos institucionais para o lugar pretendido. O pacto, portanto, é esse: na feitura do memorial que funciona como documento administrativo e requisito parcial para promoção na carreira, o avaliado deve demonstrar aos avaliadores e à instituição: “reconhecimento e liderança acadêmica; geração de conhecimento; formação de recursos humanos; atividades administrativas e outros”.70 Mas o pacto precisa ainda respeitar uma espécie de regra não escrita e que parece ter se imposto de forma incontornável em razão da própria historicidade do gênero: o caráter narrativo e subjetivo do memorial. Embora a norma não explicite o que efetivamente é entendido como memorial, seria talvez uma quebra de contrato ou ruptura do pacto se aquela demonstração dos requisitos demandados fosse feita hoje tal como o era em meados do século passado, mediante a frieza de um documento que contivesse tão somente a cópia do Currículo Lattes e seu material comprobatório. Como sugere Wilton Carlos Lima da Silva, “o memorial acadêmico apresenta uma dimensão subjetiva que transcende a linguagem dos documentos burocráticos e seus discursos formalizados, de maneira asséptica, cientificamente ponderada e tecnicamente equilibrada que caracterizam a escrita de 70 UFRGS. Decisão n. 232 de 2014 do Conselho Universitário, p. 7. 43 viés administrativo, ao incorporar uma dimensão narrativa na qual a subjetivação tem maior centralidade”.71 Afinal, se o gênero se situa em um “sistema geral de leitura” ou em um “campo de comunicação”, as expectativas voltadas a ele, sobretudo em um contexto marcado por aqueles variados giros anteriormente indicados, são as de que o sujeito, atravessado pelos afetos íntimos e sociais, revele-se enquanto performance, e tanto melhor se essa revelação trouxer algo de literário em sua expressão. Na medida em que dificilmente alguém tentaria a sorte no processo de promoção sem atender minimamente às exigências protocolares (título de doutor, interstício de dois anos desde a classe de professor associado 4) e sem contabilizar os pontos necessários definidos pela planilha quantificável de sua produção intelectual, toda a eficácia da performance acaba por estar em larga medida dependente da natureza e da qualidade da narrativa que é apresentada enquanto memorial. Mariana Luz Pessoa de Barros destaca que “prevalece nos memoriais acadêmicos a narração, pois eles concretizam atores, tempos e espaços figurativamente e relatam transformações de estado, sendo marcados pela noção de progresso temporal”.72 Em outras palavras, é possível considerar que a narrativa está ali porque, no fundo, aquilo de que se trata é a própria temporalidade da trajetória narrada. Nas palavras da autora, “o sujeito que se recorda de seu passado não quer colocar ‘data em sua existência’, prefere antes ‘encher o tempo’”.73 Não basta, nesse sentido, o ordenamento cronológico (datar a existência), mas sim a organização temporal (encher o tempo). Ora, sabemos depois de Ricoeur e de muitos outros que isso apenas pode ocorrer satisfatoriamente quando a narrativa entra em cena. Sendo assim, o que há para ser narrado em um memorial? Comentei mais acima que a carreira será aqui pensada como obra, então é da obra que se trata nessa narrativa. Mas, para finalizar esse preâmbulo teórico que já se arrasta em demasia, retardando aquilo que de fato importa, uma última precisão se faz necessária, pois foi mencionada um pouco antes uma ideia que precisa agora ser explorada: a persona acadêmica que este Memorial pretende botar em cena. 71 SILVA, Wilton Carlos Lima da. “Quando a experiência acadêmica se transforma em experiência de escrita: memoriais acadêmicos como autobiografias”. Cadernos de História, vol. 9, n. 1, 2014, p. 108. 72 BARROS, Mariana Luz Pessoa de. O discurso da memória. Entre o sensível e o inteligível, op. cit., p. 151. 73 Ibid., p. 8. 44 O Memorial como estória Primeiro o “botar em cena”. A narrativa de caráter subjetivo de um historiador sobre si mesmo não é nenhuma novidade ou aparição recente, mesmo que para muitos seja considerada como algo raro e visto com reticências por praticantes do ofício.74 Não há dúvida, porém, de que desde o último quarto do século XX tal modalidade de escrita passou a ocupar um lugar distinto do que assumia anteriormente. Se os variados giros antes mencionados ajudam a situar contextualmente a questão, ela certamente possui razões um tanto mais complexas e difíceis de serem aqui mapeadas integralmente. Quando, em meados da década de 1980, propôs ao campo historiográfico a criação de um novo gênero, batizado como “ego-história”, Pierre Nora advertiu que se tratava de uma resposta para um novo tempo, “uma nova idade da consciência histórica, que nasce do cruzamento de dois grandes movimentos: por um lado, o abalo das referências clássicas da objetividade histórica, por outro, a investigação do presente pelo olhar do historiador”.75 Para o historiador e editor francês, as profundas mudanças na consciência histórica, portanto, criavam condições propícias para a emergência de uma outra forma de escrita por parte dos praticantes da história. A subjetividade que reemergiu após a anunciada morte do sujeito nos anos 19601970 veio concomitante com o privilégio concedido ao tempo presente, cuja datação também normalmente é situada no último quarto do século passado. É possível ainda perceber que subjetividade e tempo presente convergem com outro fenômeno importante que vem caracterizando a historiografia nas últimas cinco décadas: o boom memorial ou a chamada voga memorialista.76 Recentemente, Enzo Traverso se debruçou sobre o tema do lugar ocupado pelo Eu na escrita contemporânea da história, expressando certa perplexidade e se questionando a respeito do impacto, positivo ou 74 Para dois trabalhos que pensaram extensamente o tema da escrita autobiográfica por parte de historiadores e historiadoras, remeto a POPKIN, Jeremy. History, historians & autobiography. Chicago: The University of Chicago Press, 2005; AURELL, Jaume. Theoretical perspectives on historian’s autobiography. From documentation to intervention, op. cit. 75 NORA, Pierre. “Apresentação”. In: NORA, Pierre. Ensaios de ego-história, op. cit., p. 9. 76 Entre tantos outros, HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Acroplano, 2000; BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (org.), Memória e (res)sentimento: indagações sonre uma questão sensível. Campinas: Editora da Unicamp, 2001; HARTOG, François. Régimes d’historicité. Présentisme et expérience du temps. Paris: Éditions du Seuil, 2003; ROBIN Régine. A memória saturada. Campinas: Editora da Unicamp, 2016. 45 negativo, que a cultura do selfie teria na produção historiográfica. Cabe destacar que Traverso, ao contrário de Jeremy Popkin e Jaume Aurell, não limita sua indagação ao estudo de ensaios autobiográficos, mas investiga de forma mais geral o papel da subjetividade e da ênfase na personalidade individual de historiadores enquanto tais, ou seja, enquanto praticantes do ofício. 77 Para ele, essa forma de escrita subjetivista que manifesta os traços de um individualismo exacerbado, vincula-se não apenas à situação presentista, mas encontra-se ligada igualmente ao neoliberalismo que caracteriza boa parte das sociedades contemporâneas. Como se percebe, investigar com profundidade as causas e os efeitos do problema aqui levantado demandaria mais tempo e espaço do que tenho disponível. Para meus propósitos mais limitados, a simples constatação é suficiente: o pendor autobiográfico entre historiadores e historiadoras ocupou um espaço considerável ao longo do século XX, transformando-se significativamente nas duas ou três últimas décadas daquele século.78 Mas, indo um pouco além do diagnóstico, algumas caracterizações conceituais ajudam a encaminhar a ideia de memorial aqui esboçada. Para tanto, o preâmbulo teórico oferecido por Aurell em seu livro parece ser um caminho propício, requerendo, por sua vez, algumas adaptações ao gênero por mim vislumbrado que, como ressaltado anteriormente, embora mantenha certa relação de vizinhança, não se justapõe plenamente à autobiografia. De início, tomo emprestado uma categoria que parece interessante não apenas pelo que indica, mas também pelo que ecoa: penso o memorial enquanto um artefato acadêmico. Nas palavras do historiador catalão, autobiografias “podem também ser considerados artefatos acadêmicos porque nos permitem negociar tendências historiográficas e intelectuais com mais profundidade e abordar a questão do potencial dessas autobiografias para compreender a evolução teórica da disciplina da história, a maneira como a história tem sido interpretada pelos historiadores e as correntes de pensamento e ideologias que influenciaram seu desenvolvimento nos séculos XX e 77 TRAVERSO, Enzo. Pasados singulares. El ‘yo’ en la escritura de la historia. Madrid: Alianza Editorial, 2022. Em seu alentado estudo, Jaume Aurell contabilizou cerca de 450 escritos autobiográficos que lhe serviram de material empírico para sua pesquisa, debruçando-se particularmente sobre o século XX e início do XXI. AURELL, Jaume. Theoretical perspectives on historian’s autobiography. From documentation to intervention, op. cit. 78 46 XXI”.79 No caso da definição de memorial aqui esboçada, é o jogo entre a memória individual e a história do campo disciplinar o que me parece relevante de ser mencionado: se a disciplina de modo geral e, mais especificamente, o campo da teoria da história e da história da historiografia no Brasil servem de estrutura contextual onde situar minha trajetória, a dimensão de autocrítica implicada no gesto de narrar esta trajetória me permite compreender sob outras perspectivas o próprio desenvolvimento do campo ao qual sou contemporâneo. Isso não significa me arrogar o lugar de alguém significativamente representativo ou cuja atuação teve algum impacto decisivo sobre ele, mas possibilita um deslocamento do olhar ao percebê-lo desde dentro e não como se fosse um objeto à parte de meu próprio exercício historiográfico. Por outro lado, o termo escolhido pelo historiador catalão não foi ao acaso, pois remete explicitamente ao ensaio publicado em 1974 por Hayden White, intitulado provocativamente de “O texto histórico como artefato literário”.80 Com isso, Aurell busca enfatizar que as relações entre forma e conteúdo para o gênero não podem ser encaradas de maneira isolada ou com o predomínio de um dos elementos. No caso dos memoriais, ou pelo menos deste Memorial, implica reconhecer que a trajetória profissional narrada não é simplesmente encontrada fora do texto que a pretende organizar narrativamente, mas também em alguma medida inventada na própria narrativa. White dialoga mais diretamente com as questões aqui envolvidas, quando coloca a si mesmo a pergunta: “a minha vida é uma estória [story]?”.81 Para ele, é a estória, ou seja, a colocação em enredo [emplotment] da experiência pessoal o que possibilita dotar tal experiência de coerência e, sobretudo, de inteligibilidade. Do contrário, o que restaria seria tão somente o amontoado de fatos marcados pelos fios desconectados do acaso ou da sorte, por vezes com algum vínculo frágil costurado pelas intenções e projetos que buscam conjurar o caráter furtuito das contingências. Enfim, os traços próprios que caracterizam as vidas comuns das pessoas. Em sua lapidar 79 Ibid., p. 4. WHITE, Hayden. “The historical text as literary artifact”. In: Tropics of discourse. Essays in cultural criticism. Baltimore: John Hopkins University Press, 1978, p. 81-100. 81 WHITE, Hayden. “Is my life a story?”. In: The ethics of narrative, volume 2. Essays on history, literature, and theory, 2007-2017. Ithaca: Cornell University Press, 2023 (utilizo a versão digital, em epub, da obra). Para marcar a diferença que a língua inglesa acentua entre story e history, vou manter anacronicamente a mesma distinção em português entre estória e história. 80 47 construção, “estórias são um modo de destilar sentido do fato [stories are a way of distilling meaning out of fact]”.82 Contudo, é justamente neste ponto, entre o dado (da vida) e o inventado (do relato), que se colocam os problemas a respeito da legitimidade daquilo que é narrado. Afinal, pergunta-se White, “ao moldar uma vida na forma de uma estória, não estou ficcionalizando-a?”.83 E quando o ficcional ou a autoficção tomam lugar, como distinguir, na narrativa que depende em grande medida da memória, aquilo que é efetivamente lembrado daquilo que se imagina (ou se ficcionaliza) ao recordar?84 Quando o simples encadeamento de documentos comprobatórios que dão lastro empírico ao currículo não é suficiente, uma vez que, como já sugerido, isso rompe o pacto de leitura que hoje um memorial impõe a seu autor, onde fundar a legitimidade deste gênero fronteiriço entre a história e a memória? Para o autor, “estórias existem na consciência ou na linguagem, mas não nas coisas. Se aplicadas a coisas reais como instrumentos de representação, estórias precisam ser inventadas; elas não são encontradas. Sua eficácia – como verdades supostas sobre coisas reais, ou como instrumentos de autoidentificação (de indivíduos ou coletividades) – depende da habilidade do narrador [storyteller] em adaptar o tipo de enredo [plot-type] culturalmente fornecido aos materiais brutos (caóticos) do curso de vida de um determinado sujeito”.85 Chegamos assim ao próprio dilema que caracteriza as relações entre memória e história segundo a reflexão de Ricoeur: o problema da fidelidade da memória e da veracidade da história. 86 Pois bem, colocada a dificuldade teórica que a compreensão de memorial aqui buscada cria a quem se aventura pelo gênero, resta explicitar a forma como se tentará contorná-la. Um primeiro movimento é o de retornar à ideia de memorial como artefato acadêmico oferecida por Jaume Aurell e reter dela um elemento fundamental: o fato de que, enquanto produto de práticas culturais, tal artefato carrega uma dimensão performativa intrínseca a ele. Nesse sentido, a escrita de um memorial deve ser pensada 82 Ibid., loc. 384. A formulação, que remonta à própria obra do historiador estadunidense desde os anos 1970, guarda proximidade também com a ideia de narrativa que Paul Ricoeur oferece quando fala em termos de uma “síntese do heterogêneo”. Cf. nota 53 supra. 83 Ibid., loc. 382. 84 Cf. KLINGER, Diana. “Escrita de si como performance”. Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 12, 2008, p. 11-30; AZEVEDO, Luciene Almeida de. “Autoficção e literatura contemporânea”. Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 12, 2008, p. 31-49.. 85 WHITE, Hayden. “Is my life a story?”, op. cit., loc. 390. 86 RICOEUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oubli, op. cit. 48 como a expressão de um gesto mais amplo que, além de uma escrita de si, pode ser encarado como uma forma de performance. Desse postulado, resulta uma pergunta que lhe é correlata: sendo performativo o gesto, o que, afinal, está sendo efetivamente performado? Respondo: uma identidade acadêmica. A essa identidade a instituição dá o nome que, algumas vezes encarado como sinal de prestígio, noutras como mera nomenclatura funcional, é representado pela expressão professor titular. O jogo que se desenrola no memorial, portanto, é aquele em que quem escreve pretende convencer quem está lendo de que é possível, segundo as regras vigentes, estabelecer o vínculo entre, de um lado, o nome próprio que ocupa o lugar de autor-narrador e, de outro, o nome institucional vinculado a uma classe na carreira, definida administrativamente como classe E ou, justamente, professor titular. O jogo será bem-sucedido se ao final for permitido inserir, após o nome próprio, o nome institucional: Fulano, professor titular. Para isso, é preciso que o memorial seja exitoso em revelar que tanto aquele que narra como aquele que é narrado, afinal são figuras que se justapõem no gênero, assumem plenamente os traços disso que será aqui considerado uma persona acadêmica. Professor titular, uma persona acadêmica Depois da cena, a persona. Resta, por fim, considerar que a ideia de persona a ser desdobrada não é encarada tão somente como o produto discursivo que resulta da escrita deste Memorial: ela não é tão somente sua consequência lógica. O próprio ato de vislumbrá-lo anterior à escrita já assume em si mesmo as feições performativas que caracterizam a ação-atuação dessa persona. Caberá defini-la e, para tanto, algumas perguntas servem como norteadoras. De que persona se trata, afinal? E considerando o lugar onde ela se manifesta, um memorial, que relações podem ser estabelecidas entre memória e persona? Ou melhor, como o relato memorial funciona como manifestação/constituição dessa persona? A persona é aquela que recorda ou é a própria coisa recordada? Para realmente finalizar este preâmbulo, seguirei por essa via que considera o memorial, pensado enquanto espaço de recordação, como gênero estabelecido na tensão entre memória e persona. 49 Gadi Algazi sugere que o termo persona vem sendo mobilizado a partir de três usos distintos. Primeiro, como o equivalente à imagem que alguém constrói sobre si mesmo [“an individual person’s crafted image”]. Segundo, como “o conjunto de ideais reguladores encarnados [made flesh], de um compromisso com valores morais e cognitivos compartilhados”. Como exemplo, o autor sugere que esse uso diz respeito ao que precisa ser feito para ser um verdadeiro historiador. Terceiro, persona entendida “como um modelo cultural para um papel social codificado – o homem de letras, o cientista e assim por diante – emergindo na interseção de forças sociais contraditórias: não uma corporificação clara dos valores compartilhados de um grupo de praticantes, mas antes um compromisso histórico instável”.87 Embora de alguma forma as três modalidades de uso dialoguem entre si, são sobretudo as duas últimas que interessam mais de perto, na medida em que indicam o compromisso com determinados requisitos institucionais, disciplinares e profissionais (o segundo uso), mas também as formas de reconhecimento público necessárias para uma determinada prática conferir legitimidade social aos seus praticantes (o terceiro uso). O recurso à noção de persona ecoa debates que, iniciados a partir da filosofia da ciência, encontraram recentemente ressonância no campo historiográfico, fora do país com nomes como o de Herman Paul, dentro dele com as contribuições de João Ohara, entre outros.88 Para Paul, reconhecendo o impacto que o giro performativo teve nas humanidades, a noção de persona é uma categoria propícia para deslocar o olhar que a teoria da história (ou, no caso do autor, a filosofia da história) projeta sobre a historiografia e sobre a atuação dos historiadores, retirando a ênfase quase exclusiva dada aos seus produtos [“historians output”] e focando no processo de produção. Para ele, a “historiografia [historical scholarship] é uma prática de leitura, de reflexão, de 87 ALGAZI, Gadi. “Exemplum and Wundertier. Three concepts of the scholarly persona”. Low Countries Historical Review, vol. 131, n. 4, 2016, p. 8. 88 PAUL, Herman. “Performing history: how historical scholarship is shaped by epistemic virtues”. History and Theory, n. 50, 2011, p. 1-19; PAUL, Herman. “What is a scholarly persona? Ten theses on virtues, skills, and desires”. History and Theory, n. 53, 2014, p. 348-371; PAUL, Herman. “What defines a professional historian? A historicizing model”. Journal of the Philosophy of History, n. 11, 2017, p. 229-245; OHARA, João Rodolfo Munhoz. “The disciplined historian: ‘epistemic virtue’, ‘scholarly persona’, and the practices of subjectivation. A proposal for the study of brazilian professional historiography”. Práticas da História, vol. 1, n. 2, 2016, p. 39-56; OHARA, João Rodolfo Munhoz. Virtudes epistêmicas na historiografia brasileira (1980-1990). Tese em história. Unesp: PPG-História, 2017; OHARA, João Rodolfo Munhoz. “Ética, escrita e leitura da história: os problemas da expectativa e da confiança”. Revista de História, n. 178, 2019, p. 1-28. 50 discussão, de escrita, na qual performances bem-sucedidas requerem o cultivo ativo de certas habilidades [skills], atitudes e virtudes”.89 Em outras palavras, trata-se de, sem desconsiderar completamente os escritos [writings], atentar de forma mais cuidadosa aos fazeres [doings] dos historiadores. São estes fazeres que definem os aspectos característicos de uma persona acadêmica que, para Paul, é definida segundo a incorporação e o exercício de algumas virtudes e disposições epistêmicas reconhecidas como requisitos para a boa prática historiográfica. Além disso, algo particularmente importante para as considerações aqui expostas, a persona é situada no espaço entre a dimensão biográfica do indivíduo e a dimensão social da instituição.90 Para Herman Paul as personas acadêmicas são igualmente formas de moldagem do Eu [self] ou, nas palavras foucaultianas de João Ohara, modos de subjetivação. 91 Constituir-se como um historiador significa cultivar certos valores, assumir certas disposições, desempenhar certas funções, professar certos compromissos, praticar certas habilidades que, ao final, conformam o historiador enquanto um certo sujeito reconhecido profissional e socialmente. Nesse sentido, envolve toda uma tecnologia de si que, este será meu argumento, pode encontrar expressão ou ser manifestada a partir de determinadas formas de escrita de si. Se o diário íntimo, as confissões, os relatos autobiográficos, os ensaios de ego-história podem ser lidos como expressões da persona que ocupa o lugar de autor, o mesmo pode ser dito dos memoriais acadêmicos. Neste caso, o gênero memorial é também a colocação em enredo (o gesto de emplotment de que fala Hayden White) da trajetória constitutiva de uma determinada persona que, diferente daquela manifestada em autobiografias ou ego-histórias, assume certas particularidades. Se a persona é uma construção talhada a partir de protocolos que variam entre pendor individual e injunções sociais, qual o papel preciso da memória nessa construção? Em outras palavras, que persona é essa que escreve e é escrita num memorial? Obviamente, o protocolo obriga que seja uma dedicada aos afazeres 89 PAUL, Herman. “Performing history: how historical scholarship is shaped by epistemic virtues”, op. cit., p. 1. 90 PAUL, Herman. “What is a scholarly persona? Ten theses on virtues, skills, and desires”, op. cit., p. 354. 91 OHARA, João Rodolfo Munhoz. “The disciplined historian: ‘epistemic virtue’, ‘scholarly persona’, and the practices of subjectivation. A proposal for the study of brazilian professional historiography”, op. cit. 51 intelectuais da pesquisa, às atividades didáticas da docência e da orientação, às tarefas administrativas da instituição, que eles, da forma como são realizados, sejam suficientes para cumprir os requisitos para a promoção na carreira e, com isso, garantir mais uma camada que possibilita considerar essa nova dimensão da persona acadêmica, a de professor titular. A função do memorial, portanto, é oferecer às partes que mantêm o contrato de leitura os elementos específicos dessa dimensão própria. A persona acadêmica manifestada num memorial é, ao mesmo tempo, aquela do docente, do pesquisador, do orientador, do extensionista, do administrador e, não menos importante e talvez mais relevante aos propósitos do gênero, a do servidor público comprometido com a instituição. Escrever um memorial como requisito à promoção funcional é, em certa medida, e parafraseando a famosa indadagação de Michel de Certeau, responder às perguntas: o que fabrica o historiador quando se torna servidor público? O que fabrica o servidor público quando faz história? Os capítulos a seguir serão minhas respostas a elas. Mas uma última consideração precisa ser feita antes de finalizarmos esta parte introdutória. Se a persona acadêmica está ligada a determinadas virtudes e disposições, é fundamental precisar de que elas tratam no caso deste Memorial. Indo direto ao ponto, diria que, embora estejam contempladas de alguma forma, o norteador aqui não são apenas as virtudes éticas (que conformam um sujeito moral) e as disposições epistêmicas (que delimitam um sujeito disciplinado), mas igualmente o compromisso e o engajamento institucional a partir dos requisitos definidos pela norma que prevê a avaliação. Como já indicado anteriormente, num memorial como este, o sujeito narrado é também um sujeito avaliado. Obviamente, os critérios da avaliação medem tanto integridade moral do autor quanto a integridade epistemológica de sua obra, mas verificam ainda sua integridade funcional. Junto com o scholarly self, portanto, o institutional self que é produzido no processo de subjetivação que caracteriza a obra. Por fim, situado entre o pessoal e o institucional, o Memorial articula também os discursos da memória (o ato mnemônico de seu autor) e da história (a investigação que complementa o referido ato) na forma de uma escrita de si, quando os limites entre o narrador e aquele que é narrado se tornam menos precisos. Dessa forma, há ainda outra característica do pacto que carece ser mencionada, uma vez que é igualmente fundante dos traços da persona aqui exposta. Uma vez que o Memorial deve ser subsidiado por 52 um material comprobatório, ele se situa ao mesmo tempo no plano da veracidade (a documentação anexa) e da sinceridade (a memória relatada).92 Dito de outra forma, trata-se de um discurso que é tanto comprovado (verdadeiro) quanto verossímil (sincero). Como aponta Mariana de Barros, os memoriais acadêmicos se baseiam em um contrato de veridicção em que os efeitos de verossimilhança e de realidade se somam para garantir que o que é narrado é verdadeiro e que a narrativa é sincera: se a verdade se assenta na documentação subsidiária, a sinceridade reside na forma como a narrativa é organizada e, portanto, no modo pelo qual os tempos da obra são ordenados.93 As páginas a seguir são a forma, verdadeira e sincera, como me foi possível organizar estes tempos. 92 93 GOMES, Angela de Castro (org.). Escrita de si, escrita da História, op. cit., p. 17. BARROS, Mariana Luz Pessoa de. O discurso da memória. Entre o sensível e o inteligível, op. cit., p. 147. 53 II. Tempos da formação acadêmica (1997-2008) “Existe uma história? Se a inefável instância da experiência tão logo se dilui em nada, turva lágrima e densa névoa, antes mesmo de se deixar perceber, compreender, concatenar a outros domínios igualmente evanescentes. [...] Existe uma história, se toda metáfora e toda memória são insatisfatórias?” Julián Fuks, Procura do romance, 2011. A escolha pela história É um tanto difícil para mim dizer com alguma exatidão qual foi o momento exato em que a escolha pela história foi definida em minha vida. Poderia colocar na conta das imprecisões da memória, mas neste caso creio tratar-se de dificuldade que vai além da capacidade de formular alguma lembrança. Significa, antes, reconhecer que tal escolha dificilmente poderia ser localizada em um evento particular, como se tivesse havido alguma espécie de tomada de decisão única, plenamente consciente e decisiva. Nessa visada retrospectiva, parece-me antes ser um processo, ao mesmo tempo hesitante e dúbio, em que uma ideia de vida começou a tomar forma, desde um ponto puramente embrionário e incerto, até as primeiras resoluções mais definitivas (ainda que não imutáveis). Além disso, não saberia dizer com precisão em que contexto mais específico a escolha pela história foi se convertendo em decisão pela historiografia. Afinal, como imagino acontecer com praticamente todas as pessoas que se aventuram por essas veredas, nem sempre temos noção das diferenças entre uma coisa e outra. E se hoje resta claro para mim que história, considerada no sentido amplo que beira o senso comum (aquele que definiu a escolha inicial), e historiografia, assumida a partir de uma prática disciplinada e de uma distinção profissional, não são termos totalmente justapostos, antes de meus vinte anos isso certamente sequer era colocado como tema de reflexão. De todo modo, a ideia de vida que começou a ser formulada precisou passar por este processo de compreensão de que a escolha pela história seria em algum momento a escolha pela formação historiográfica e pela profissão de historiador, muito antes que as diferenças entre essas duas expressões fizessem algum sentido para mim. Falo em ideia de vida na ausência de termo melhor. Não quero com isso dar um sentido puramente existencial ou, pior, quase esotérico à escolha. Porém, não há como negar que decidir por uma determinada formação acadêmica implica, de uma forma ou de outra, estipular os rumos de uma vida na fronteira sempre tênue e mal delimitada entre o íntimo (a dimensão pessoal da vida) e o social (a dimensão profissional da vida). O ingresso em uma universidade cumpre esse rito de passagem em que os desenhos de uma profissão começam a ser mais bem esboçados, ao mesmo tempo em que os efeitos disso no plano da pessoalidade passam a ser mais intensos. Trata-se, no limite, daquilo 55 que de modo geral criará as condições para o que já foi considerado como primeiro gesto histórico dos indivíduos: a reprodução material da sua existência. Neste caso, contudo, a reprodução vai muito além das condições de subsistência e incide na forma como um indivíduo atua na sociedade. Ou seja, a inclinação pela história nunca é apenas uma resolução pessoal ou a decisão por uma profissão: nela está impregnada, mesmo que de forma não totalmente consciente, uma ideia de vida. A escolha por uma formação acadêmica está obviamente vinculada à definição de um percurso profissional que, de um lado, estabelece as possibilidades de um emprego e, de outro, determina as condições de um trabalho. Juntos, emprego e trabalho conformam as duas faces disso que este Memorial está buscando relatar: os caminhos de uma carreira acadêmica que podem conformar uma obra a ser narrada. Não tenho dúvida de que ali pelos idos de 1996, quando finalmente chegou o momento de marcar no formulário o curso pretendido no vestibular, nada disso era para mim um dilema. Assinalar com um X em um dos tantos quadradinhos impressos no papel parecia algo mais banal e menos definidor do que hoje dou a entender. Mas nesse esforço memorialístico que decididamente resolveu escolher a via da “ilusão biográfica”, não posso deixar de considerar que aquela marcação foi decisiva para o fato de eu estar hoje, neste momento preciso, fazendo um exercício de memória na condição de um servidor público que em algum momento escolheu a história e seguiu a formação de historiador. No entanto, infelizmente não posso apenas recorrer ao arquivo das lembranças guardadas para saber com segurança quando a história se tornou uma opção concreta. Tal arquivo encontra-se bastante bagunçado, ainda que seja possível buscar nele uma ou outra coisa de significativo. Lembro que, quando criança, e talvez motivado pela influência de um pai que desenhava os próprios móveis que eram encomendados para mobiliar nossa casa, em algum momento cogitei também seguir pelos caminhos que me levariam aos desenhos naquelas grandes folhas de papel milimetrado. A arquitetura era algo que despertava meu interesse, a ponto de gostar de brincar de desenhar plantas de casas que, embora satisfizessem meus anseios imaginários, certamente desafiavam as leis da física e as normas técnicas da engenharia. Ainda hoje tenho certo gosto em olhar plantas de casas e apartamentos que são anunciados em jornais ou pela internet. 56 O papel milimetrado que permanecerá vazio. Porém, talvez tenha sido a experiência de um intercâmbio escolar durante o então chamado Segundo Grau (hoje Ensino Médio) o que me desvirtuou do percurso das linhas técnicas para seguir no mundo das letras. Tive a grata oportunidade de passar o período de um ano estudando numa High School estadunidense, em uma pequena cidade chamada Tilton, localizada no estado de New Hampshire, nos Estados Unidos. Trago boas recordações daquela experiência, sobretudo porque naquele típico lugarejo da América do Norte, eu acabei me tornando uma espécie de craque do time de futebol da escola. O país havia sediado a copa do mundo alguns anos antes, quando o Brasil se consagrou campeão. Ainda que discretamente, o esporte estava no gosto dos nativos e, naturalmente, enquanto brasileiro, eu era a encarnação viva do boleiro que já começa a fazer embaixadas no próprio berço. Mas este é apenas um breve desvio para fazer constar neste Memorial que a história não apenas me desvirtuou da arquitetura, como me desencaminhou de uma talvez promissora carreira internacional no esporte bretão. Como a neve permitia que o futebol fosse praticado em apenas alguns poucos meses do ano, acabei me dedicando a outras coisas, e a leitura foi uma delas. Já tinha um certo gosto por romances, que nasceu de uma forma um tanto quanto inesperada. Lembro de que em algum momento de minha vida estudantil a escola nos havia obrigado a ler Lucíola, do José de Alencar. Meu avô tinha a coleção completa das obras do autor cearense, publicadas pelas Edições Melhoramento (não sei dizer o ano, pois as informações catalográficas da obra não o indicam), e passei a ler aquele livro para poder fazer a prova de literatura. A recordação que tenho (provavelmente exagerada se 57 pudesse hoje cotejar com os fatos tal como efetivamente ocorreram) é que devorei o livro em poucos dias, capturado por aquela forma de elaborar uma estória cujo principal interesse para mim não era tanto a construção de personagens (Alencar nunca foi Machado!), mas sim o encadeamento de fatos formando um todo narrativo. Gostei, sobretudo, de como a trama toda era contada, o modo como um enredo ganhava forma, revelando o trabalho próprio de um narrador. Capa de Lucíola, de José de Alencar, herdado de meu avô Armando e publicado pelas Edições Melhoramento, s/d. Nos Estados Unidos, a leitura era também a prática que me ajudava a enfrentar certa solidão vivenciada naquela experiência. Pois a casa da família onde eu morava era bastante distante da cidade em que se localizava a escola (na verdade, era em outro município), e não havia transporte público que me permitisse o deslocamento de forma autônoma. Então, eram muitos os dias em que o contato com os amigos se dava apenas quando estava na escola, durante toda a manhã e uma parte da tarde, além dos dias em que havia treino da equipe de futebol. Na outra parte do tempo, minha sociabilidade se restringia ao círculo familiar, que me agradava bastante, mas para alguém entre os 16 e 17 anos não era suficiente. Usando livre e conscientemente de um clichê, diria que os 58 romances eram aquilo que me permitiam ir além do espaço doméstico, abrindo portas para outros lugares que podiam ser frequentados ao menos pela imaginação. Contribuiu muito para isso o fato de que cursei uma disciplina de literatura em língua inglesa, quando pude ler alguns clássicos como Shakespeare e, sobretudo, Allan Poe, cujo conto Tell tale heart (O coração delator) foi uma descoberta das mais incríveis que fiz naquele período. Desconfio que meu apreço por literatura policial começou ali e foi sedimentado pouco tempo depois com a leitura de A grande arte, do Rubem Fonseca.1 E como nem sempre controlamos o fluxo de lembranças quando começamos a nos recordar, gostaria também de deixar o registro aleatório do momento em que Miss Blinn, professora encarregada daquela disciplina, interrompeu a aula para ligar o rádio e podermos acompanhar ao vivo o veredicto do julgamento de O. J. Simpson, um acontecimento que, de forma literal, parou os Estados Unidos naquela manhã. Poderia até inventar algo a respeito da importância de acontecimentos ditos “históricos” como aquele para minha escolha, mas não estou certo de que ter ouvido pelo rádio e acompanhado a cara de desprezo e profundo pesar da professora com o resultado dado pelo júri tenha tido algum impacto na minha decisão pela história. De qualquer forma, como nem sempre minha memória me brinda com lembranças, quando elas aparecem assim ao acaso é bom aproveitar para arquivá-las no papel. Voltando ao ponto, o gosto pela leitura, que foi consolidado quando tive a oportunidade de intensificá-lo com a fluência para outras línguas, foi sem dúvida definidor para a escolha pela história. Da mesma forma o gosto pela escrita, que ia igualmente se formando por aqueles anos. Como não havia ainda a possibilidade de comunicação por email e as ligações de telefone eram extremamente caras, boa parte das conversas que mantinha com minha família e com amigos durante minha estadia fora do Brasil era feita por meio de cartas. E mais do que uma forma protocolar de comunicação, eu encarava aqueles momentos de redação epistolar como verdadeiros instantes de dedicação e empenho, não apenas para transmitir notícias e afetos, mas 1 Revisando estas páginas, uma fagulha de lembrança acendeu para mim (dada a raridade com que isso acontece, resolvi trazê-la nesta nota para não perturbar o texto que já estava pronto). Entre os 15 e os 16 anos, ganhei de uma amiga o livro Bala na agulha, do Marcelo Rubens Paiva, livro publicado em 1992. Lembro de ter lido com muito prazer aquela narrativa que se passava num momento contemporâneo ao que vivíamos à época. Se o historiador deve evitar o ídolo das origens, o memorialista quem sabe pode ceder aos seus fetiches: portanto, antes de Poe e de Rubem Fonseca, a literatura policial tem para mim a origem naqueles idos da adolescência, com Rubens Paiva. 59 para envolvê-los com as melhores palavras, traduzi-los da forma mais adequada para a linguagem. Creio que era inclusive uma forma de me manter vinculado à língua portuguesa, já que praticamente tudo o que falava, escrevia e lia era em inglês. No retorno ao Brasil, quando a definição do que prestar no vestibular deveria ser feita (uma escolha que, tanto naquele contexto como agora, nem sempre poderia ser evitada por qualquer jovem de classe média neste país), o curso de letras começou a aparecer como um caminho propício para seguir. Porém, fui me dando conta de que seria algo muito além do que apenas a literatura, e as dúvidas com relação à vida profissional também foram se juntando em minhas hesitações. Some-se a isso tanto um interesse maior pela vida política e social brasileira, alimentado pela leitura diária e quase compulsiva do jornal que meus pais então assinavam (Folha de São Paulo), quanto a quase correlata vontade juvenil de “fazer algo para mudar o status quo”, o fato é que, de forma bastante equivocada, admito, acreditava que o curso de história teria uma vocação mais politizada que o de Letras. Essa compreensão também se formava em mim em função de meu irmão mais velho já estar cursando história da UFPR, o que me permitia ter um contato um pouco mais direto com essa graduação e, em certa medida, com a bibliografia que era utilizada. Assim, com a duvidosa convicção de todo jovem que se inscreve para um concurso de vestibular, assinalei o X no quadradinho antes de história e aguardei o dia para realizar as provas. Cabe, portanto, destacar que a escolha não me parece ter sido especificamente por algum gosto pelo passado ou por alguma predileção por temas históricos. A impressão que tenho é que foi primeiramente a vontade política no presente, junto com o anseio pela leitura e pela escrita o que me encaminhou para o curso de história. Nese sentido, é curioso para mim ouvir as diferentes motivações que estudantes recém ingressados no curso apresentam para suas escolhas: muitas vezes, é o passado ou os diferentes passados o que aparece como motivador (em alguns casos, sob a ideia de ancestralidade), ao passo que as práticas de leitura e escrita são quase inexistentes. O 6º andar do prédio Pedro I Ingressei no curso de história da Universidade Federal do Paraná após ter sido aprovado no concurso vestibular para a turma de 1997. O resultado, além das famosas 60 listas que eram publicadas no jornal e ficavam à disposição no pátio da Reitoria para quem se interessasse em conhecê-lo, também chegava em casa enviado pelos correios. Ainda hoje guardo o documento que informava meu desempenho na disputa pela vaga. Eu, o candidato nº 26.531, tornei-me, então, estudante de história; naquele momento, a entrada na UFPR implicava a formação simultânea tanto na licenciatura como no bacharelado. Correspondência com o resultado do vestibular da UFPR de 1997. O curso de história da UFPR havia sido criado em 1938, na década em que as universidades começaram a existir no país, e estava sediado na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. A partir de 1961, passou a ser abrigado no recém-criado Departamento de História.2 Justamente no ano em que ingressei na universidade, o Programa de Pós-Graduação em História celebrava seus 25 anos. Obviamente, nada dessa história era de meu conhecimento quando comecei a frequentar como aluno regular o 6º andar do Edifício Dom Pedro I, localizado junto ao prédio da Reitoria, que no ano seguinte seria ocupada pelo reitor Carlos Roberto Antunes dos Santos, professor do Departamento e aluno da primeira turma do PPG. Nos corredores e no pátio da Reitoria circulavam as histórias do Antunes quando fez parte do elenco juvenil do Atlético Paranaense, clube cujo time principal foi treinado pelo seu pai, conhecido como Motorzinho, na década de 1940. Para essas informações, tive que recorrer aos arquivos (matérias em jornais), uma vez que minhas lembranças 2 Sobre sua data de criação, por vezes considerada como sendo 1959, remeto a FAGUNDES, Bruno Flávio Lontra. “Um curso de história nos caminhos de uma herança: o mestrado em história da UFPR, de 1971”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes (org.). Universidade e ensino da história. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2020, p. 119, n. 8. 61 me enganavam. A impressão que havia ficado era a de que o apelido se referia ao filho, e julgava que tinha algo a ver com seu jeito de andar que, se não me foge a memória (e ela sempre está em fuga), cambaleava em uma das pernas. Nas ficções de minhas recordações, Motorzinho se devia à sua agilidade como jogador e por alguma razão inventei que o cambalear era devido à lesão sofrida em uma partida, talvez resultado de falta cometida por algum adversário mais aguerrido. Ainda pairam dúvidas sobre todas essas informações, mas as deixo aqui como traço das fragilidades do trabalho de memória aqui realizado. Para mim, recém-ingressado no curso, aquela figura de estatura mediana, que volta e meia circulava com paletós pesados pelo 6º andar, guardava algo de solene mesmo antes de ocupar o posto principal da administração central. Diziam que ele estudava a história da alimentação, e foi mais ou menos por aí que descobri que a alimentação, assim como tantas outras coisas até então desistoricizadas em minha vida, tinha uma história. Nunca fui aluno do Antunes. Creio que seu mandato, que coincidiu com o período de minha graduação, o dispensou das aulas na graduação. Não sei direito por que razão essa memória me veio à mente. Talvez o fato de um historiador ter ocupado o posto de reitor da Universidade mostrasse a mim naquele momento algo de importante sobre o curso que havia escolhido para me formar, algo que eu ainda não tinha muita clareza enquanto era estudante. Embora não me fosse possível definir isso com precisão na época, o Departamento de História possuía certo prestígio na Universidade e na pequena vida paranaense. Muito antes de eu fazer parte dele, chegou a ter em seus quadros alguém com larga carreira na política regional e nacional, que ocupou inclusive o posto de interventor federal no Paraná pouco após o fim do Estado Novo, mais ou menos na mesma época em que o Motorzinho (o pai) treinava a esquete atleticana. Brasil Pinheiro Machado era para mim apenas o nome de autor de um modelo de história que precisava ser superado. Lembro-me de ter lido seu Esboço de uma sinopse da história regional do Paraná (1951) em uma das cadeiras que cursei (creio que o nome era justamente História do Paraná), e seu projeto historiográfico era o alvo ao qual deveriam ser dirigidas as críticas: aquela, com sua perspectiva teleológica e seus vários capítulos, era a história da qual precisávamos a todo custo nos desvencilhar para escrever uma “nova” história. A cadeira não era das que mais me agradava, seu docente havia sido Chefe do Departamento num momento conturbado durante o curso: fomos 62 flagrados no Centro Acadêmico fazendo uso de substância que era malvista pela sociedade e proibida por lei, e ele havia convocado um de nossos colegas de curso, que era policial militar, para tentar nos constranger com ameaças. O episódio gerou um pequeno processo administrativo que restou sem culpas e sem culpados, mas serviu apenas para criar uma resistência contra aquele professor. De qualquer forma, reconheço que o aprendizado de crítica historiográfica contra a obra do interventor pode ter repercutido em minha formação no campo da história da historiografia. Constatava na prática que a escrita da história é sempre uma reescrita, como mais tarde pude formular com um pouco mais de convicção a partir das leituras de Paul Ricoeur. Mas além daquele, o Departamento ecoava ainda outros nomes de importância local e nacional, não apenas para a Universidade, mas para a historiografia brasileira. Altiva Pilatti Balhana e Cecília Maria Westphalen, mesmo sem terem sido minhas professoras, faziam parte do panteão da memória historiográfica paranaense. Havia algo de imponente naqueles nomes, que eram desprovidos para mim de maiores informações ou mesmo de uma representação física: não era leitor de seus trabalhos e tampouco conhecia sequer uma fotografia delas. Mas sabia, pois isso todos sabiam, da importância das duas professoras que estiveram à frente inclusive da criação da PósGraduação em História na UFPR. Com o decorrer de minha formação e meus estudos sobre a historiografia brasileira, eram os nomes delas, sobretudo o de Westphalen mais que o de Pinheiro Machado, que ressoavam como as grandes referências do passado historiográfico paranaense.3 Um passado que, de qualquer forma, permanecia à distância para mim, sem muitos efeitos naquele presente de então ou neste de hoje. O 6º andar é para mim ainda a imagem de suas pastilhas verdes cobrindo uma parte das paredes, o relógio parado que ficava suspenso no corredor que dava acesso à secretaria e aos gabinetes dos professores. As salas de aula, verdadeiros anfiteatros com cadeiras de madeira nobre e extremamente confortáveis, onde acompanhei aulas, reuniões e eventos memoráveis. Ainda que a tradição do curso e suas linhas de pesquisa fossem conhecidas pelo campo da história econômica e pela demografia histórica, áreas 3 Sobre o papel de Cecília Westphalen na criação do PPG, remeto aos trabalhos de MACHADO, Daiane Vaz. Por uma “ciência histórica”: o percurso intelectual de Cecília Westphalen, 1950-1998. Tese em História. Assis: UNESP, 2016; e FAGUNDES, Bruno Flávio Lontra. “Um curso de história nos caminhos de uma herança: o mestrado em história da UFPR, de 1971”, op. cit. 63 do conhecimento que eram pensadas a partir do enfoque regional, com o uso precursor, nos anos 1970, de computadores pela professora Altiva Balhana, o final da década de 1990 já marcava uma mudança significativa no perfil do curso. As condições da carreira docente nos anos 1990 e os ataques aos direitos trabalhistas ocasionaram um número considerável de aposentadorias. Como afirmou em 1997 a professora Márcia Dalledone Siqueira, “no desfecho dos anos oitenta um grande número de professores-pesquisadores titulados inicia o processo de saída. Movimento que continuará na década seguinte, deixando um vazio no DEHIS que está sendo preenchido por novos profissionais habilitados, não menos qualificados”.4 O momento em que ingressei, portanto, era o de uma transição não apenas geracional, motivada pela degradação das condições da carreira docente, mas também de uma mudança teórica importante, que certamente foi ocasionada com os novos professores que começaram a fazer parte do quadro funcional do Departamento. O 6º andar do Prédio Pedro I da UFPR, em foto por mim tirada 2022. No balanço publicado em 1995, que avaliou as três décadas de produção intelectual do Departamento, entre os planos para sua criação em 1959 e o ano de 1989, 4 SIQUEIRA, Márcia Dalledone. “Fazendo História, PPGHIS: 25 anos”. História: Questões & Debates, vol. 14, n. 26/27, 1997, p. 38. 64 foi constatada essa situação. Segundo seus autores, a década de 80 foi marcante no sentido da abertura teórica e temática das pesquisas realizadas na instituição. Além disso, a multiplicidade de enfoques possibilitou igualmente uma variedade de abordagens investigativas. “Seguindo as propostas teórico-metodológicas do marxismo, aderindo aos encaminhamentos da ‘Escolas dos Annales’ e sofrendo o impacto das reflexões de autores como Foucault, Thompson e Hobsbawn, entre outros, vários professores abandonaram seus enfoques demográficos e passaram a trabalhar com outros quadros conceituais”.5 A maior parte dos professores e professoras com os quais tive aulas durante a graduação passaram a compor o Departamento justamente na década de 1990 e seus doutorados também datam daquela década ou da seguinte. Era, portanto, um curso bastante renovado aquele que eu pude frequentar, momento em que a história social e a história cultural ocupavam um lugar destacado na historiografia ali produzida. Se a demografia histórica ainda tinha um peso importante, com seus estudos quantitativos a partir de registros paroquiais e outras fontes seriais, referências teóricas diversas se faziam presentes. O Centro de Documentação e Pesquisa em História (CEDOPE), criado em 1997 e do qual fui bolsista durante cerca de dois anos, é manifestação clara dessas transformações, inclusive a partir do enfoque que passava a considerar a história paranaense anterior ao século XIX vinculada não apenas ao recorte regional ou mesmo nacional, mas sobretudo às tramas do império português.6 Mas interessa aqui me deter no lugar que a reflexão sobre a teoria da história e a história da historiografia ocupava no curso a partir do final da década de 1990. Sem dúvidas, a formação teórica naquele momento foi bastante sólida e consistente. No currículo constavam quatro disciplinas obrigatórias de Teoria da História (de I a IV), além da possibilidade de cursarmos um elenco constante de disciplinas optativas. Em minha formação no campo, dois docentes que faziam parte da geração intermediária entre aquela de Pinheiro Machado, Altiva Balhana e Cecília Westphalen tiveram papel fundamental. Ambos eram egressos da primeira turma do curso de mestrado em 5 MARCHI, Euclides; BONI, Maria Ignês M. de; SIQUEIRA, Márcia D.; NADALIN, Sérgio. “Trinta anos de historiografia: um exercício de avaliação”. Revista Brasileira de História, vol. 13, n. 25/26, 1992-1993, p. 134 [o volume foi publicado apenas em 1995]. 6 Sobre o CEDOPE, remeto ao site do Centro: http://www.humanas.ufpr.br/portal/cedope/apresentacao/. 65 história, de 1972, e formados a partir da tradição da demografia histórica daquele PPG: Sérgio Odilon Nadalin e Ana Maria de Oliveira Burmester. Nadalin foi o docente que ministrou a disciplina Teoria da História I, logo no início do curso. Graduado em história em 1966 pela própria UFPR, finalizou seu mestrado em 1975 com um estudo sobre famílias luteranas em Curitiba entre 1870 e 1969. Seu doutorado, um aprofundamento sobre o mesmo tema, foi cursado logo em seguida na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris. Mantendo aquelas que eram as principais referências teóricas do Departamento, oriundas sobretudo da historiografia francesa, Nadalin foi o primeiro responsável pelos meus caminhos e descaminhos no terreno da teoria da história. Minha memória, como se sabe, é falha e a consulta a colegas não ajudou a precisar melhor. Mas recordo-me (ou penso recordar-me) de uma das aulas, no anfiteatro 113 do 6º andar, em que aquela figura de porte elevado e voz ressoante comentava aspectos do conhecimento histórico, a partir de um texto que discutia as diferenças entre as noções de historicidade e historicismo. Nunca mais encontrei o texto, de cujo conteúdo não tinha entendido absolutamente nada, e há a suspeita de que se tratasse na verdade das famosas “apostilas do Nadalin”, das quais, inclusive, eu não lembraria da existência se não fosse a menção a elas feitas recentemente pelos amigos Rafael Benthien e Rodrigo Turin. De qualquer forma, nas minhas memórias mais ou menos inventadas, tenho para mim aquela como uma espécie de cena primordial em minha formação: o encanto pelo incompreensível dos conceitos, momento crucial e definidor de futuro em minha ilusão biográfica. “O tempo não existe”, recordaram os amigos do frequente bordão dito em aula. E da inexistência teórica daquilo que era até então uma evidência, um certo gosto pela teoria da história foi tomando forma e ganhando força ao longo do curso, reverberando ainda hoje em meu interesse de estudo sobre temporalidades. Porém, foi certamente na disciplina de Teoria da História II que tudo ficou mais claro para mim. Obviamente, não se tratava de clareza sobre os aspectos teóricos da historiografia, mas sim sobre o que de fato me dava prazer na formação como historiador. Quem a ministrou foi a professora Ana Maria de Oliveira Burmester, a Aninha. Na linha daquele que era o campo privilegiado do Departamento nos anos 1970, seu doutorado foi em estudos de demografia histórica na Université de Montreal. À diferença de Nadalin, de quem fui bolsista e que durante minha graduação permanecia 66 vinculado às pesquisas sobre história da família e da imigração, além do desenvolvimento metodológico da demografia histórica,7 Ana Maria mudou profundamente sua linha de atuação. Professora do Departamento desde 1971, duas décadas depois, em 1992, defendeu sua tese de titularidade com uma pesquisa a respeito da história da historiografia brasileira, particularmente aquela produzida nos anos 70 em teses de doutorado e algumas dissertações de mestrado defendidas na USP. Tendo como recorte temático a ideia de revolução, seu trabalho carregava também o caráter testemunhal da geração que lutou politicamente a partir de uma compreensão revolucionária de mundo e viu esmorecer esse mesmo ideal ao longo de sua trajetória. O trabalho foi publicado pela primeira vez exatamente quando ingressei no curso, e já indicava o lugar que Ana ocupava naquele momento: a reflexão teórica e historiográfica sobre o fazer dos historiadores.8 O programa de sua disciplina era todo construído a partir de textos cujos autores refletiram sobre a história: de Kant, e sua ideia de história sob o ponto de vista cosmopolita, passando por Hegel, Marx, Nietzsche, Benjamin, Cassirer, Foucault, Chartier, Ginzburg e alguns outros de que não guardo lembrança. Um arco que atravessava os campos da história e da filosofia entre os séculos XVIII e XX. Recordo-me de uma aula em particular e da Ana dizendo essas exatas palavras (pelo menos no grau de exatidão que minha desmemória permite): “... aí veio Foucault e mudou tudo”. Não sei agora o que Foucault tinha efetivamente mudado no contexto da aula, mas sei que aquela cena mudou tudo em minha formação. Na época, como comentarei a seguir, eu era bolsista e investia uma boa parte das bolsas que recebia mensalmente em livros. Logo depois da aula, por conta daquelas palavras fui até a livraria do Chaim, que ficava justo em frente ao prédio, e comprei, mais pela capa e pelo título do que por conhecimento a respeito do tema, o As palavras e as coisas. A edição é aquela azul e branca da Martins Fontes, de 1995, com tradução da Salma Tannus Muchail, em cuja capa havia mais palavras do que coisas. Quanto a essa 7 Lembro de ter lido seu pequeno manual de metodologia durante minha formação: NADALIN, Sérgio Odilon. A Demografia numa perspectiva histórica. Belo Horizonte: Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 1994. 8 BURMESTER, Ana Maria de Oliveira. A (des)construção do discurso histórico: a historiografia brasileira dos anos 70. 2a. Edição. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998. 67 lembrança eu posso assegurar que a leitura do prefácio foi arrebatadora. Então veio toda aquela fabulosa análise do quadro de Velázquez, que redobrou meu encanto pelo autor e por sua escrita, mas quando, no capítulo “A prosa do mundo”, começou a tratar da episteme clássica, confesso que tudo começou a me escapar. Desconfiava que eu ficaria ainda um bom tempo sem saber como Foucault havia mudado tudo, apenas sabia que ele o tinha feito. De qualquer forma, o dano estava concretizado e virei, logo no início do curso, um foucaultiano sob inspiração da Ana Maria. Meu trabalho de conclusão foi escrito sob sua orientação. Tratava-se de um conjunto de textos que intitulei muito pretensiosamente de A experiência historiográfica: estudos sobre Michel Foucault. Sem um plano pré-estabelecido ou um projeto bem delineado, o que apresentei naquele momento eram capítulos (quase ensaios) que abordavam alguma faceta da obra do pensador francês ou algum tema mais abrangente que era estudado a partir da chave foucaultiana. Assim, discutia as relações entre escrita e transgressão, história e literatura, filosofia e amizade, a estilização da história, além do conceito que posteriormente seria objeto de minha pesquisa de mestrado: a experiência histórica. Talvez este tenha sido menos um aprendizado em termos do desenvolvimento da metodologia da história do que um exercício de pensamento e, sobretudo, de escrita, com a liberdade de me arriscar pelo gênero do ensaísmo. Havia algo de pretensioso e mesmo de pedante na forma como elaborei aquele trabalho. Da mesma forma, e é sempre fácil escorregar por esse caminho quando lemos autores como Foucault, havia um inegável impressionismo teórico na forma como me apropriava do filósofo, quando as frases feitas, com toda sua potência sonora, acabam por prevalecer sobre a reflexão ponderada e sobre a análise meticulosa que, naquele momento da graduação, ainda seria impraticável de ser feita. Tornava-me antes um pernóstico citador de Foucault do que propriamente um cuidadoso intérprete de sua obra. O primeiro daqueles “estudos” que inseri no trabalho, cuja pretensão geral era servir como uma espécie de introdução ao trabalho e cujo objetivo particular era discorrer sobre as condições para uma escrita sobre o filósofo (seu título pomposo era “O riso maldito: para escrever Michel Foucault”), trazia nas suas primeiras linhas, logo após uma epígrafe do próprio autor, a seguinte passagem: “Michel Foucault abre um campo do possível: o pensamento, a possibilidade de pensar. Ele também permite uma 68 forma do impensado: o delírio, o devaneio”.9 Aí já fica evidenciada certa soberba de alguém que havia apenas começado sua aventura pelos terrenos da reflexão teórica sobre a história. Se hoje a autocrítica me faz perceber como um gesto de afetação acadêmica, por outro lado, e considerando minha atuação como docente que já se deparou com muitas outras cenas como essa entre estudantes de graduação, não posso deixar de projetar sobre isso uma atitude de autocomplacência. Por mais limitado que fosse o alcance de minha análise (se assim se pode chamar aquilo que foi feito), havia uma dedicação completa ao trabalho: eu realmente li e tentei estudar os muitos textos e livros que consegui acessar, e o fazia com muito empenho e alguma qualidade. Sou grato ao espaço de liberdade que encontrei no curso e, sobretudo, na relação com minha orientadora. É mais ou mesmo isso que busco seguir hoje, já na condição de professor que por vezes orienta trabalhos de graduação: tento, na medida de minhas condições, deixar o maior espaço possível de liberdade para que neste momento de maturação das ideias o pecado seja antes o do excesso que o da carência. Tempo haverá para que os alunos e alunas encontrem uma justa-medida entre o demasiado e o pouco, entre a presunção imatura e o excessivo acanhamento. Afinal, o restante do percurso formativo, quando é complementado pela pós-graduação e talvez em razão da própria estrutura institucional de nosso ambiente acadêmico, é um momento mais de cerceamento e contenção do que de concessões à liberdade. A Ana Maria sempre foi muito sensível a isso e talvez fosse possível, nestes termos, defini-la como uma orientadora libertária. 9 NICOLAZZI, Fernando. A experiência historiográfica: estudos sobre Michel Foucault. TCC em História. Curitiba: UFPR, 2001, p. 1. 69 Primeira obra de Foucault adquirida. Com ela ainda cursei uma cadeira sobre história e literatura (uma de suas contagiantes paixões) e outra sobre historiografia brasileira. Éramos assim apresentados ao campo da história cultural, da crítica literária, da filosofia da linguagem, do ensaio social, em aulas que carregavam a força da oralidade e da desenvoltura retórica de uma grande professora. Ela que sempre escreveu pouco, fez do espaço da sala de aula o lugar propício para sua atuação como historiadora e pensadora da história. Na disciplina Historiografia Brasileira, li pela primeira vez aquela que seria a obra com a qual ficaria ocupado durante os quatro anos de meu doutorado, Casa-grande & senzala. Na ocasião, fiz um trabalho final sobre as relações entre o livro de Gilberto Freyre e os romances do chamado ciclo da cana de José Lins do Rego. Ou seja, além de Foucault, Ana Maria foi a responsável direta por essa outra referência determinante em minha formação. É bastante difícil mensurar o impacto ou o “efeito Ana” em mim e em colegas de minha geração. Mas o fato é que estou seguro, neste mergulho consciente pela busca da memória, de que sem a Ana nada do que viria depois seria a mesma coisa. 70 A cena clássica: Ana Maria no anfiteatro do Departamento de História, com seu cigarro em punho, a bolsa sobre a mesa junto com a pasta onde guardava as anotações das aulas. Desconheço a autoria da foto, que é, suponho, de 1992. Retirei de postagens que circularam pelas redes sociais quando da notícia de seu falecimento, em 01/01/2024. Ainda no âmbito da formação ampla em teoria da história que a UFPR propiciava, dois outros docentes foram importantes nos rumos de minha trajetória. A disciplina Teoria da História IV foi ministrada por Marcos Napolitano, alguns anos antes de sua saída para ocupar o posto de docente na Universidade de São Paulo. O programa era voltado para a historiografia da segunda metade do século XX. Foi o momento em que li pela primeira vez o Tempo e Narrativa, de Paul Ricoeur, sobretudo o tomo I e trechos do III, obra que permanece fundamental em minha forma de encarar a escrita da história. Na disciplina intitulada Filosofia do Método Científico, José Antonio Vasconcelos, à época professor substituto da UFPR e hoje também docente da USP, nos apresentou autores que faziam parte de sua pesquisa de doutorado, voltada para a análise do debate em torno do pós-modernismo nas páginas da American Historical Review. Hayden White era um dos autores centrais das discussões em aula e data dali minha primeira leitura do historiador estadunidense. Outros tantos professores do Departamento de História da UFPR foram sem dúvida nenhuma relevantes em minha formação: José Roberto Braga Portella, que trazia o Quentin Skinner do As fundações do pensamento político moderno para a discussão em História Moderna e que me apresentou a obra de Edward Palmer Thompson; Carlos Alberto Medeiros Lima, em suas aulas de História da América conhecemos outras formas de pensar a história do continente americano e em cujo período em que fui seu bolsista monitor pude me aventurar pela história da leitura; Helenice Rodrigues da Silva, recém 71 retornada ao Brasil depois de três décadas na França, que, embora aparentasse não estar muito confortável com a rotina universitária brasileira, trazia autores pouco comuns no âmbito da história intelectual; os professores vinculados ao CEDOPE, Antonio César de Almeida Santos e Maria Luiza Andreazza, cujas orientações durante meu período como bolsista do Centro foram extremamente relevantes para que eu pudesse situar minhas inquietações teóricas em relação à história feita com documentos envelhecidos do século XVIII. Por fim, cabe ressaltar aquela ausência extremamente presente ao longo de meus cinco anos de aluno de graduação, a do professor Francisco Moraes Paz, o tal do “Chico” de que todos falavam. Ele havia falecido dois anos antes de minha entrada no curso e era um dos grandes amigos da Ana Maria, uma de suas referências intelectuais, mesmo tendo sido ela a sua orientadora no doutorado.10 Chico Paz era aquele nome que sempre aparecia nas conversas em torno das novidades intelectuais no campo da teoria. Os alunos mais velhos falavam da qualidade e do brilho de suas aulas e da importância de sua reflexão. Em 1996, a Editora da UFPR havia publicado sua tese de doutorado, um estudo sobre o pensamento histórico no século XIX intitulado significativamente Na poética da história. A realização da utopia nacional oitocentista. 11 Para mim, que não tive a oportunidade de conhecê-lo, ele era o leitor dos livros que haviam sido doados para a biblioteca e que volta e meia eu retirava ao acaso, podendo acompanhar os vestígios de suas leituras nas margens das páginas. Era também o autor da letra corrida que marcava com seu apelido a primeira página de cada um de seus livros: Chico era um nome e uma assinatura que antecediam minhas leituras. 10 BURMESTER, Ana Maria; MARCHETTE, Tatiana Dantas; PORTELLA, José Roberto Braga; ZUCON, Otavio. “Os sentidos da viagem: Ana Burmester fala sobre Francisco Paz”. In: VASCONCELOS, José Antonio; SCHNEIDER, Alberto Luiz (orgs.). Paz & pensamento. O legado de Francisco Moraes Paz. Jundiaí: Paco Editorial, 2019, p. 19-36. 11 PAZ, Francisco Moraes. Na poética da história. A realização da utopia nacional oitocentista. Curitiba: Editora da UFPR, 1996. 72 Assinatura de Chico Paz na folha de rosto do livro Entre o passado e o futuro, de Hannah Arendt, obra que Ana Maria herdou do amigo e uma das que me deu de presente quando se aposentou em 2000. Lendo agora alguns dos capítulos da obra lançada em sua homenagem, em 2019, pude me dar conta de que, mesmo na ausência da sua presença (esse duplo que caracteriza a condição histórica e o trabalho historiográfico), uma certa forma de pensar a história permanecia viva e habitava, talvez na forma espectral que traz bons agouros, aquele corredor do 6º andar do Prédio Pedro I. 12 A vida estudantil O curso de história era vespertino, o que possibilitou que, já no primeiro semestre, eu trabalhasse no turno da manhã no Escritório de Relações Internacionais da Universidade, vaga que me foi indicada pelo meu avô Armando, que sempre trazia notícias recortadas do jornal para os netos, e para a qual consegui ser selecionado muito por conta da fluência que tinha naquele momento na língua inglesa. A sede do escritório era próxima ao Campus, pagava uma bolsa de R$ 150,00, acrescentada pelo valetransporte e pelo vale-alimentação. Meu pai trabalhava em um escritório próximo e como sempre tivemos o costume do almoço em família, o casal e seus três filhos, conseguia dar outra utilidade aos benefícios da bolsa. Graças à complacência dos donos dos botecos que frequentávamos à época, usava o vale-alimentação para as tardes e noites de bebedeira acadêmica, salvando integralmente o valor da bolsa para gastos de utilidade mais duradoura: conseguia investir um montante razoável em livros. Minha 12 VASCONCELOS, José Antonio; SCHNEIDER, Alberto Luiz (orgs.). Paz & pensamento. O legado de Francisco Moraes Paz, op. cit. 73 biblioteca começou a nascer naquele momento. Mantinha assim a rotina de vida acadêmica de um jovem de classe média quando as universidades públicas eram ainda redutos de jovens da classe média. Nos primeiros seis meses da graduação consegui dividir, ainda que mal, o tempo entre a bolsa pela manhã, as aulas na parte da tarde e, nas noites, o curso de gravura na Escola de Música e Belas Artes do Paraná, para o qual também tive aprovação após o vestibular. Fui em partes favorecido nas provas práticas graças ao gosto pela leitura que já tinha desenvolvido na adolescência. Se na prova de desenho à olho nu fomos testados diante de um galão de água, cuja imagem deveríamos reproduzir fielmente com grafite no papel, em outra prova, na qual deveríamos representar pictoricamente a cena descrita em um texto, tive a sorte de ser contemplado com um trecho de livro que havia pouco tinha terminado de ler e que fazia parte da biblioteca de meus pais: o Quarup, de Antonio Callado. Conhecendo bem o livro, todo o contexto da cena ficou mais fácil de ser representado no papel. Sempre gostei de desenhar e sempre fui incentivado pela minha família nesse delírio que foi passageiro, mas me trazia uma enorme satisfação. Nos momentos em que passava desenhando e pintando telas em casa, conheci com mais vagar e atenção o pequeno, mas considerável acervo de vinis que meus pais possuíam. Foi neste contexto a descoberta mais atenta da MPB, sobretudo, das músicas de Chico Buarque, que me acompanhava nos momentos em que dava vazão à verve artística que não durou muito em minha vida. Seus vestígios, por outro lado, permanecem. Ainda hoje persistem pendurados na casa de meus pais, assim como persistiam nas paredes das casas de meus avós, e mesmo na casa de meus irmãos e amigos, os quadros que em algum momento da vida cheguei a cometer. Depois de alguns meses, foi ficando cada vez mais difícil conciliar a bolsa, os cursos vespertinos e noturnos, e ainda ter tempo para as formas de sociabilidade que se abrem a todo universitário recém ingressado em uma universidade pública. Uma boa parte dessa sociabilidade, diga-se de passagem, foi vivenciada com amigos queridos: Luís Henrique (o Pulga), Silvia, Maria Bethânia, Adriano, André, Flavio, Daniel, Daniele, Katiucia, Valesca, Vinicius, Gustavo, André, Mauricio, meu irmão Norton, a turma do ogrobol, da Vernáculo, do Roxinho, do bar do Zé, a turma que dançava ao som do Zirigdum Pfóim, que jogava bocha improvisada no DCE, que fazia festivais de cinema, 74 exposições de quadros em festas intermináveis, acampava em Superagüi... foram anos intensos. Eis que decidi abrir mão do curso de gravura e me mantive na escolha pela história, seja por considerar que o futuro profissional como professor ou historiador seria menos inseguro que o de “artista”, seja porque estava cada vez mais envolvido com a vida acadêmica da UFPR e com a formação historiográfica. A vivência num curso de humanas, com o trânsito por diversas áreas, parecia-me favorecer o desenvolvimento daquela consciência crítica que buscava quando decidi pelo vestibular em história. Além disso, achava que a possível qualidade do que eu produziria ganharia melhor expressão na forma escrita do que na pictórica. Então, olhando retrospectivamente, diria que a escolha pela história foi também uma escolha pela escrita da história, por um tipo de profissão que tem no gesto de escrever uma de suas atividades principais. Minha vida estudantil foi tomada pelo exercício constante da escrita. Foi este exercício que me fez fazer parte de um projeto coletivo que considero fundamental em minha trajetória e que me sinto feliz, e em certa medida vaidoso, em constatar que ele permaneceu para além do grupo inicial que o concebeu, ganhou vida própria e hoje continua sua existência por outros caminhos. Trata-se da publicação, em 2000, de um periódico destinado à publicação de textos de graduandos e graduandas na área das ciências humanas. Seu título é Revista Vernáculo. Dez anos após o lançamento do primeiro número, quando eu já era docente concursado na Universidade Federal de Ouro Preto e estava há muito desvinculado do comitê editorial, recebi o convite de um dos editores, meu amigo e colega de graduação e de pós-graduação Hilton Costa, para escrever um pequeno relato sobre o surgimento da revista. Tomo a liberdade de reproduzir abaixo o texto que escrevi à época, pois creio que explicita bem o que estava em jogo naquele momento, ainda que, caso fosse escrever sobre isso hoje, o tom e as coisas escritas seriam bastante distintos. Era o tempo do Paulo Renato Souza, ocupante do Ministério da Educação durante longos – demasiado longos – sete anos. A universidade pública no Brasil vivia tempos sombrios, uma espécie de tenebrae aetas perpetrada, curiosamente, por parte dos seus filhos mais diletos. Um processo deliberado de precarização do ensino e das condições da educação brasileira como um todo (e não somente do ensino superior) visava tornar mais rápido o desmantelo da sua dimensão pública, obedecendo a uma cartilha que previa, por razões obtusas, incompreensíveis e inaceitáveis para grande parcela dos 75 envolvidos, a privatização da educação como única saída plausível para a crise universitária. Era o tempo da “privataria tucana”, como posteriormente se batizou o movimento. De forma mais geral, se em outros contextos alguns intelectuais discutiam se o horror era econômico ou político, cá nos trópicos horrorizávamos ainda com a falência de um processo de modernização que, desde há muitas décadas, mostrava-se antes reprodutor do que redutor das desigualdades sociais. Parte da historiografia (se correta em sua avaliação ou não, deixo para os historiadores decidirem) tentava oferecer, com o uso de suas ferramentas eruditas, a resposta que pudesse dar conta de uma explicação possível para tal situação: falava-se, nesse sentido, que nossa modernidade não era lacunar ou deficiente, mas sim que nossa sociedade foi assentada em bases arcaicas, permanecendo ainda sobre este mesmo solo. O arcaísmo, dizia-se, antes que uma consequência da inépcia nacional, era o impulso propulsor das nossas relações sociais; o arcaísmo era um projeto, o qual remetia às estruturas mais profundas da sociedade lusobrasileira. Pairava no ar, com uma consistência densa e por vezes insuportável, certo malestar na universidade brasileira. No caso mais específico das humanidades, o dilema que se colocava, o qual de uma forma ou de outra ainda se mantém em tempos de ciências sem fronteiras, era criar os mecanismos da sua própria legitimidade, a ponto de Marilena Chauí sugerir à época, criticamente cabe mencionar, a “inessencialidade” das ciências humanas em uma sociedade tecnocrata e neoliberal. O mais triste desta situação é que a própria universidade não encontrava forças diante de um mecanismo tão opressor e, por vezes, violento – não apenas física, mas, sobretudo, moralmente violento. Enquanto estudante, minha atenção se voltava para aquilo que estava mais próximo, isto é, o assim chamado “movimento estudantil”. E era justamente enquanto estudante que considerava o quão insuficiente era este “movimento” para aqueles que não enxergavam no burocratismo militante as formas adequadas de se portar diante de tal realidade. O Centro Acadêmico da História lançava, de tempos em tempos, seu fanzine, a voz oficial e oficiosa dos aspirantes à história: O Grito. Alguns alunos com posições heterodoxas e práticas, digamos, libertárias, resolveram fazer frente àquele grupo que, entre outras coisas deveras importante para o “movimento”, preocupava-se com o fato de que a classe operária não frequentava a Ilha do Mel (de minha parte, eu sempre suspeitei que ela deixava de frequentar a Ilha, não porque esta fosse elitizada ou burguesa, mas sim porque enjoava na travessia marítima). Por um excesso de criatividade, resolvemos batizar o nosso jornalzinho de... O Berro. E divertíamo-nos implicando com colegas, polemizando com professores, escrevendo poesias, ensaiando análises acadêmicas e, de quando em vez, escrevendo alguma coisa que era lida pelos demais estudantes. Um professor chegou ao ponto de nos definir como “a esquerda festiva” do curso, desconsiderando o fato de que a alusão rodrigueana antes massageava nosso precário ego do que causava qualquer tipo de desconforto. 76 Edições d’O Berro, fanzine da “esquerda festiva” do Curso de História da UFPR (19981999). Eu me ocupava com gosto de todo o trabalho de colagem e de montagem das edições para a posterior reprodução em xerox: desenhava suas capas, diagramava os textos, escrevia editoriais, cooptava novos autores, barganhava financiamento. Traços de uma experiência anterior ao predomínio dos textos digitais, dos blogs e das redes sociais. Daquele anseio por escrever (no fundo, creio que era esta demanda imperiosa pela escrita o que me fazia atuar neste tipo de cousa), alguns começaram a se perguntar se tudo não poderia assumir um tom menos jocoso e, assim, tentar tirar proveito daquelas horas passadas na biblioteca, quando o tempo não estava bom ou não havia ninguém para nos desviar do caminho da retidão acadêmica, empurrando-nos ora para o boteco (este singular-coletivo), ora para a cancha do ogrobol. Eis, então, que apareceu, entre a pretensão de seriedade d’O grito e o escracho consciente d’O Berro, outro meio de propagação de ideias, nem tão radical como o primeiro, nem tão avacalhado quanto o segundo; era o jornal Cezariana. De imediato me impressionei com aquilo que me caía sobre as mãos. Daí, em uma conversa de bar, a primeira centelha encontrou o graveto seco: surgiu a proposta de juntarmos esforços e ideias para lançarmos uma revista voltada para a publicação de textos acadêmicos elaborados pelos próprios alunos da graduação, concedendo pequeno espaço (permissivos que éramos!) a um artigo de pósgraduando que porventura se dispusesse a descer do altar. Como tudo que nasce no bar gera bons frutos, a Vernáculo veio à luz, motivada pelo prazer da escrita que movia todos os seus organizadores, com o auxílio financeiro da Universidade e também com a solidariedade, infelizmente rara, de um livreiro daqueles que não se fazem mais: o Eleoterio Burrego. Para o lançamento, fomos presenteados com uma fala da Ana Maria Burmester... pois era também o tempo da professora Ana Burmester, mestre e amiga de todos nós. Meus caminhos e descaminhos pela historiografia são plenamente devedores daquelas aulas maravilhosas, onde aprendíamos não tanto sobre o que estava nos livros, mas sim sobre o que fazer com aquela miríade de leituras e vivências sem as quais nos sentíamos órfãos; e não falo aqui apenas dos grandes tratados teóricos sobre a epistemologia da 77 história, mas, sobretudo, daquilo sem o qual um bom historiador é tão somente um bom historiador: a literatura e o cinema, paixões inegáveis de Ana. O convite feito pelo Hilton Costa para escrever este relato, sinal antes de amizade do que de qualquer importância que estas palavras possam assumir, desde o primeiro momento me deixou em crise existencial, causada pelo medo de talvez esquecer algum episódio, situação ou pessoa importante nessa história toda. Enfim, acabei esquecendo muitos episódios, situações e pessoas, mas tive a oportunidade de me lembrar também de muita coisa e, mais do que tudo, lembrar-me da amizade que motivou tudo isso. Acabei também por remexer alguns arquivos e encontrar lá as palavras que proferi no discurso de formatura, escritas há pelos menos uma década atrás. Dizia então naquela época: “há uma beleza particular neste curso: a paixão que nele move as pessoas, que cria uma verdadeira resistência ao fluxo da degradação, quase uma desobediência ao status quo, que apesar da falta de condições morais e materiais, faz a universidade respirar, faz prosseguir o ensino e a pesquisa e que, enfim, faz a história continuar”. Certamente, caso eu tentasse reescrevê-las hoje, os termos seriam distintos (já não é mais o tempo do Paulo Renato!). De qualquer forma, penso que o essencial se mantém e desejo à nova geração que retoma corajosamente esta empreitada grandes momentos, como aqueles que tive a oportunidade de vivenciar entre o gosto pelo trabalho e o prazer das amizades, vivenciados na dimensão pública de uma universidade federal. Sinceramente, não sei se tudo se passou da maneira como aqui foi relatado (depois que me disseram que a história não é memória, acabei por esquecer muitas coisas... embora desconfie também que aquelas “práticas libertárias” tenham porção de culpa neste involuntário esquecimento), mas, até o ponto em que um historiador está autorizado a emitir um juízo sobre fatos passados, creio que, se não “tal como efetivamente se passou”, essas memórias mais ou menos (re)inventadas estão próximas do que este personagem-autor pensava naqueles tempos, sombrios e instigantes tempos.13 13 NICOLAZZI, Fernando. “Memórias verdadeiras sobre a Vernáculo”. Revista Vernáculo, n. 25, 2010, p. 712. 78 Boneco feito à mão para o primeiro número da Revista Vernáculo, de 2000. Éramos sete os amigos envolvidos com a revista: Allan de Paula Oliveira, professor do Curso de Música Popular da UNESPAR; Maurício Ouyama, professor da rede estadual do Paraná; Rafael Benthien, professor do Departamento de História da UFPR; Rodrigo Turin, professor da Escola de História da UNIRIO; Victor Augustus Graciotto Silva, gestor cultural e editor na Editora Máquina de Escrever; e Lais Helena Teles, de quem perdi o contato logo após a graduação, e que hoje é escritora e atua no campo da astrologia. Foram muitas as reuniões preparativas para o lançamento da Vernáculo e conforme os números foram sendo produzidos tentávamos dar um ar menos amador para toda a tarefa. O Victor chegou a comprar um livro-ata para o registro de nossas reuniões, que invariavelmente eram feitas nos bares do entorno da Reitoria da UFPR. Essa experiência com a Vernáculo assume neste Memorial, portanto, também uma função específica e significativa: ela representa uma parte do que as relações de amizade fomentadas à época me trouxeram e continuam me trazendo. É o povoamento daquela solidão de que falava momentos antes. Assim, seja com o fanzine, seja com a revista, estas foram algumas das formas de vivência acadêmica que encontravam na escrita um modo privilegiado de expressão. 79 Foram certamente aprendizados importantes, pois era uma maneira de tornar públicos nossos textos e assim ficarmos expostos ao pendor da crítica. Mas era também um aprendizado de leitura, uma vez que nós estudantes nos convertíamos em leitores de nós mesmos, em um tempo em que a inexistência das redes sociais e o caráter ainda incipiente da internet fazia da matéria impressa (mesmo que xerocada) a forma de circulação de nossas ideias e reflexões. Foi, então, este anseio por dizer algo o que me fez me candidatar a orador da turma que se formava em 2002. A implicação principal disso foi a de ter me responsabilizado pela escrita do discurso que, em tese, representaria as perspectivas intelectuais e os anseios políticos daquela geração. Não estou certo de que tenha conseguido algo próximo disso, mas relendo hoje aquelas palavras ditas na solenidade realizada no teatro da Reitoria, em maio daquele ano, não posso deixar de considerar essa uma forma de recordação significativa para este Memorial. Assim, reproduzo abaixo o texto em sua íntegra. Hoje, neste momento singular, em solene cerimônia, a Universidade Federal do Paraná apresenta à sociedade, por meio de seu Departamento de História, seus mais recentes formandos, bacharéis e licenciados – historiadores e professores de história. A sociedade, na figura do público presente, agradece emocionada parabenizando a universidade, congratulando o Departamento e recebendo em seu seio os formandos. A turma presta as devidas homenagens aos mestres, o merecido tributo amoroso aos familiares e, aos amigos, expõe como dívida todo respeito e gratidão. Poderia, de fato, ser assim resumido o evento de colação de grau acadêmico. A pompa das vestimentas, a hierarquia dos lugares, a ordem protocolar, toda a disciplina moral que prescreve as condutas e os discursos dão um tom teatral à cena. Das palavras proferidas, são esperados zelo e polidez rigorosos; mais ainda, delas espera-se uma certa comodidade: discursos simples, efêmeros, um tanto conformados em simplesmente dar sequência ao roteiro sem aborrecer os convidados; em uma palavra, pertinentes ao espetáculo. Certas ocasiões, no entanto, permitem algumas impertinências. Afinal, o que realmente significa para uma sociedade tal como a que vivemos formar profissionais de história? Qual a importância moral e qual a necessidade prática que levam a isto? Uma pergunta, enfim, que sempre constrangeu os historiadores, fosse ela feita por um rival acadêmico, fosse pelo próprio filho: para que serve a história? Questão que pode muito bem ser colocada em outros termos. Pois, há muito foi abandonada a ideia por demais otimista de história como mestra da vida, a qual, fazendo-nos compreender nossos próprios erros do passado, nos ensinaria a não cometêlos num futuro de plenitude e perfeição. A história hoje não é mais o lugar por excelência de nosso destino que, da origem dos tempos, nos guiaria rumo ao triunfo da razão e do espírito. Se a história, então, perdeu seu sentido redentor, faz realmente sentido estudar história, formar-se historiador? Questão que permite deixar às claras o sentido da decisão tomada por nós e celebrada nesta oportunidade. 80 A formatura como que induz a outra pergunta fundamental: em que implica a formação de um historiador, o que define tal atividade? E, sobretudo, estamos realmente formados? Seria demasiada ingenuidade supor ou mesmo acreditar piamente nisso. Tal como seu objeto, a historiografia é construída enquanto uma experiência histórica: é sempre no tempo do fazer a si mesma que ela se constitui, jamais atingindo um ponto derradeiro e conclusivo: a história nunca acaba, apenas continua, diria o historiador. Assim sendo, nós, historiadores hoje graduados em uma universidade pública brasileira, trazemos o testemunho de nossa formação, marcada, como é evidente, tanto pela responsabilidade de ter realizado um curso cujos custos são, de uma forma ou de outra, compartilhados com a sociedade, quanto pela sufocante situação na qual se encontra o ensino público no Brasil, com suas tristes consequências para a sociedade como um todo. E é sobre tal experiência que esta oportunidade leva à reflexão. Seria previsível agora expor longamente as mazelas de nossa formação, realizar a crítica politicamente correta de um sistema social que muito pouco preza pela dignidade humana; o julgamento moral de uma forma de governo marcada pela absoluta injustiça, pelo desrespeito, pela violência e pela mentira; a condenação de uma política educacional inadequada, descabida e, por vezes, autoritária; a censura de práticas acadêmicas centradas em um narcisismo impróprio, pautadas por interesses corporativos e muitas vezes alheios ao contexto da Universidade; o exame minucioso do curso hoje findado, caracterizado por uma certa displicência departamental, um departamento negligente em definir e pôr em prática com a mínima precisão e boa vontade um projeto de graduação, uma concepção do historiador que pretende graduar, mas também marcado pela inaptidão daqueles que nele se formam de transformar sua própria situação. Porém, é preferível o desvio deste atalho, de cansativa caminhada e um tanto quanto óbvia. Além do mais, tais generalizações não dão conta da realidade, tampouco dos detalhes, que são certamente mais significativos. Há uma beleza particular neste curso: a paixão que nele move as pessoas, que cria uma verdadeira resistência ao fluxo da degradação, quase uma desobediência ao status quo, que apesar da falta de condições morais e materiais, faz a Universidade respirar, faz prosseguir o ensino e a pesquisa e que, enfim, faz a história continuar. Afinal, é de causar lástima o fato de que, em uma greve nacional das instituições públicas de ensino superior, a discussão mais propagandeada pela imprensa, a que sempre causou maior comoção na sociedade, diz respeito apenas ao vestibular. É como se toda reivindicação, não de privilégios, nem de regalias, mas de dignidade e respeito fosse ilegítima e não merecesse a devida consideração. Reduzir a preocupação social com a universidade pública ao seu ingresso, à manutenção da data do vestibular, é literalmente limpar os pés no capacho, mas não ultrapassar os limites da porta: é somente a entrada, a estética da fachada, o que importa. Logo, a cerimônia de hoje é o lugar propício para se fazer o resguardo da universidade pública. Não se trata de defender certas práticas obtusas comuns no meio acadêmico, desde algumas organizações estudantis marcadas pela burocratização da militância política, até os mais altos escalões da organização universitária, que não raro confundem vaidade pessoal com o proveito público; mas é o caso sim de louvar uma instituição que garante o que ainda nos resta de autonomia de conhecimento, de independência tecnológica e de liberdade de crítica: instituição que, enfim, permite-nos proferir nossas palavras em vernáculo quando toda a missa é rezada em latim. 81 Pois bem, é a partir deste resguardo da universidade que convém responder àquelas impertinentes e pueris indagações: para que serve a história?, por que se formar historiador?, questões que, em última instância, podem ser resumidas em uma única pergunta: o que estamos fazendo de nós mesmos? A história deixou de ser a dona de nosso destino, espécie de manto protetor que asseguraria a inevitável redenção humana. O futuro que ela anunciava não é mais o depositário de nossas nobres esperanças; ele não mais nos pertence. Um poeta, Drummond, definiu com a autoridade da palavra poética: toda a história é remorso. A história não é o curso inexorável do destino, mas sim lugar de todos os acasos. Isso não significa negar a ação dos homens e mulheres, como se fossem simplesmente submetidos aos caprichos do tempo, das estruturas e dos sistemas; muito pelo contrário, isso significa justamente considerar a experiência humana como constituinte da história, alterando as estruturas e subvertendo os sistemas. Pois, como nos fazem crer, pregadores de todas as crenças, a vontade divina é perfeita, as leis da razão são indefectíveis, e as regras do mercado, infalíveis. Ora, não fosse o acaso humano, não haveria história; se o homem não perturbasse tamanha perfeição do mundo, os acontecimentos, enquanto diferença, simplesmente deixariam de acontecer, tudo seria apenas reprodução perpétua da perfeição do destino. Tal é a substância histórica, feita não apenas da obediência monástica, não só do progresso racional, nem simplesmente do acatamento passivo de um sistema instituído, mas também feita dos pecados que afrontam a ordem de Deus, feita do desvario da razão e da transgressão da lógica social. A história como remorso ocasiona um vazio fundamental. No mal-estar de nossa época, onde parece esgotado todo o campo do possível, não é despropositada a exacerbação do fervor religioso em grandes missas-espetáculo, a defesa irredutível de padrões técnicos onde o racional se confunde com o economicamente eficiente, o retorno mitológico de certas tradições sociais enraizadas em princípios de um nacionalismo messiânico e, obviamente, populista. A lacuna dos acasos deve ser preenchida, custe o que custar, e é sempre muito caro; é necessário inventar um passado redimido que liberte de vez nosso futuro e que, ao acaso da história, contraponha a memória de um velho destino, o de nação predestinada por Deus, construída sobre a mistura democrática das raças e a partir da cordialidade de um povo simples, alegre e receptivo; destino que parece mais perto de sua realização em tempos de copa do mundo. O trabalho da memória sobre ela mesma, ou seja, a rememoração, tem por motivação principal uma espécie de retorno a si mesmo. É como se na repetição dos fatos reencontrássemos nossa identidade perdida e fizéssemos as pazes com o nosso ser profundo. Nunca é demais lembrar que a festa dos 500 anos foi a notável tentativa, tanto trágica como cômica, de repetição da história: foi refeito o caminho de Cabral, rezou-se novamente a primeira missa, mesmo a violência contra os bárbaros gentios teve outra vez seu lugar: redescobrindo o Brasil, conquistando-o novamente, desta vez não com espelhinhos e bugigangas mas com balas de borracha e gás lacrimogêneo, devolvemonos a segurança de uma identidade esquecida, de um país que se reencontrou com sua própria memória. Por que, então, estudar história? Simplesmente para recusar esse destino caduco e resgatar o lugar do acaso na existência humana, para mostrar que toda a moral se funda na definição de seus pecados, que toda razão cria sua loucura e que toda a lei contém em si sua própria violação; ou seja, para mostrar que a memória de uns não é a 82 história de outros. Recuperando-se o acaso, renova-se também a capacidade do entendimento histórico, permitindo aos indivíduos construir sua própria história e vivenciá-la enquanto uma experiência da diferença, e não simplesmente como repetição memorialista do passado. Da mesma maneira, uma nova compreensão histórica propicia a elaboração de outras formas de crítica num mundo onde apenas o terrorismo parece surtir algum efeito contestatório. Estudar o passado não significa apenas conhecer quem somos, no sentido de preservação da memória, mas significa igualmente saber quem deixamos de ser, saber qual memória não faz parte de nossa experiência. Estuda-se história justamente porque se acredita na mudança, na diferença, em outras realidades possíveis, e também porque se desconfia profundamente da memória vendida em novela e imposta como forma de legitimar e dar continuidade à ordem das coisas. A prática historiográfica ainda guarda em si uma certa dose de inocência: estuda-se história para transformar o mundo, o que implica, por sua vez, na transformação de nós mesmos. Por isso, talvez, é sempre sob o pano de fundo da defesa da liberdade que tal transformação deve se dar, liberdade não entendida como ausência de restrições, mas como a possibilidade de transformar os limites que nos são fixados, limites estes que tentam impedir a construção de um país menos injusto, de uma pátria menos promíscua. E este, talvez, tenha sido o grande mérito deste curso que hoje findamos. Mérito tal que procuramos representá-lo aqui pelo nosso próprio nome, o nome de turma. Por trás deste nome, encontra-se a pessoa que nos ensinou os caminhos da história, que nos mostrou o lado apaixonante desta atividade e que nos manifestou toda a dignidade desta profissão; por trás desta pessoa, enxergamos uma vida que é realmente uma experiência histórica, que procura sempre pensar de forma diferente do que se pensa e que, não contente em se limitar ao que é provável, busca sempre a abertura dos possíveis: uma outra história possível de ser vivida, a possibilidade de se contar outra história. A professora Ana Maria não é uma lecionadora, ela não aplica lições, deixemos isto para a pedagogia cristã; ela é uma professora no sentido nobre da palavra: aquela que nos ensina a aprender sobre a história. A escolha do nome é o reconhecimento e um modo de agradecimento pela inspiração que guiou a todos nós durante o curso, é o tributo a uma forma de pensamento que não se aposenta, mas permanece sempre nas histórias que cabe agora a nós escrevermos, e é também a prova mais contundente de que a história não acaba, apenas continua... Retomando suas aulas, lembro que certa vez um filósofo pensou a aventura do homem moderno como aquela na qual os navegantes, ao partirem em viagem pelos mares, queimaram todos os portos de onde partiram, sem ter mais lugar para atracar, ficando para sempre condenados à própria viagem. De certa forma, é possível pensar a embarcação moderna como uma anacrônica nau dos loucos medieval, que, há cerca de seis séculos, levava indefinidamente os insanos de uma cidade à outra, transformandoos em eternos viajantes da fronteira que é o mar. Em certa medida, e num jogo de palavras um tanto perigoso entre historiadores, o homem moderno se parece com o louco medieval. E em tempos excessivamente racionais, mas de uma razão pragmática, instrumental e demasiadamente técnica, talvez seja, de fato, necessário resgatar aquilo que o homem ainda guarda de desatino: um pouco do devaneio impetuoso que fez Dom Quixote lutar contra seus moinhos e procurar na realidade o mundo de sonhos que lia nos livros de história. 83 Se nessa aventura moderna ainda existem capitães sempre predispostos a inibir a ação dos ventos, a prescrever rotas “seguras” e cômodas por partes já antes navegadas, tudo em nome da lógica da navegação, da segurança de uma viagem pelo que já é conhecido, ou seja, contentando-se simplesmente com o pensável, como se o mar não fosse, desde sempre, o lugar por excelência do impensado, do desconhecido, do tenebroso, mas também da curiosidade pelo improvável, pelo maravilhoso, lugar da razão aventureira e da desrazão misteriosa; se em nossa aventura marítima tais capitães permanecem ainda com essa disposição duvidosa, é sempre bom lembrar os poetas: aqui nesse barco ninguém quer a sua orientação / não temos perspectiva, mas o vento nos dá a direção / a vida que vai a deriva é a nossa condução / mas nós não seguimos à toa... nunca seguiremos à toa. A sensação de reler essas palavras hoje, mais de duas décadas depois e considerando todas as camadas de experiência (o teórico da história diria estratos de tempo!) que me afastam daquele recém-graduado de 24 anos de idade, é ambígua. Por um lado, essa escrita afetada, o caráter prescritivo fingindo uma grandiloquência que não se sustenta ao menor sopro de crítica, causa em mim certo desconforto; um incômodo mesmo pelo fato desse Eu anterior ter se submetido a essa performance precária e submeter o Eu atual a essa prestação de contas com sua memória. Por outro lado, confesso a surpresa pelo fato de que, ao fim e ao cabo, a ordem das coisas não se modificou tanto assim, seja pelo contexto político e social que inspirou aquelas palavras, seja pela ideia de história e de formação historiográfica que as motivou. De qualquer forma, decidi mantê-las neste espaço, sobretudo porque esta seção se prestou a manifestar um pouco do que foi minha vivência estudantil nos anos de graduação. Uma parte importante dela está ali: o tom foucaultiano do discurso, as referências à poesia, a homenagem à Ana Maria, as amizades. Para o muito que não está ali, talvez nem hoje eu conseguisse encontrar as palavras adequadas que pudesse representá-lo. Mas tais palavras servem também para uma constatação relevante para este Memorial. Além do gosto pela escrita e do interesse pela reflexão teórica sobre a história, minha maturidade acadêmica naquele momento ainda não me habilitava à uma compreensão mais ampliada sobre o próprio campo em que eu estava me inserindo de forma bastante voluntária, mas um tanto inconsciente. Foi a experiência na pósgraduação e o deslocamento para outra cidade, para outra casa, para outro lugar de produção historiográfica, o que me permitiu começar a entender melhor a situação. 84 Os caminhos da pós-graduação Considerando o contexto político e econômico brasileiro da virada do século XX para o XXI, o projeto encampado pelo governo FHC de favorecer instituições privadas de ensino superior às custas da precarização das universidades públicas, e a pouca oferta de vagas de trabalho para quem se formava em um curso de humanas, a continuidade pela pós-graduação, mesmo com a perspectiva diminuta de conseguir uma bolsa de estudos, era um percurso ainda atraente para complementar a formação e tentar garantir alguma renda pós-formatura. No meu caso, cujo gosto e interesse pela área da teoria da história colocavam no horizonte de expectativa o desejo de ingresso como docente e pesquisador no ensino superior, era o único caminho a ser percorrido. Lembro-me como as notícias sobre concursos para professores de universidades públicas eram escassas naquele momento. Lembro-me também como eu ficava ansioso quando vagas para a área da teoria eram abertas, acompanhando com curiosidade e receio os requisitos demandados para ocupar o posto de professor universitário, e com a sensação de que seriam todas ocupadas antes que eu tivesse alguma oportunidade Cheguei mesmo a me inscrever e a enfrentar um concurso público para a Universidade Estadual de Ponta Grossa, que colocava como condição para os candidatos apenas a graduação em História. Obviamente, não passei da primeira fase. Infelizmente, em algumas das andanças de meus registros acadêmicos por disquetes, pendrives, discos externos ou pelas nuvens de dados, perdi os arquivos que tinha com meus materiais do mestrado, sobretudo com o projeto de pesquisa que elaborei em 2001 para tentar as seleções de alguns PPGs. Não tenho como precisar com mais detalhes, portanto, como elaborei o tema proposto, que culminou na dissertação que defendi em março de 2004. Tampouco tenho como checar se o resultado final guardava alguma proximidade com o projeto inicial. Não obstante, estou seguro de que, em linhas gerais, a proposta que apresentei ressoava meus anos de graduação e tinha por pretensão analisar o conceito de experiência histórica nas obras de Edward Palmer Thompson e de Michel Foucault, à luz das considerações de Paul Ricoeur a respeito da narrativa historiográfica. Tratava-se dos efeitos das leituras que fiz nas disciplinas de Teoria da História. Era uma pesquisa eminentemente teórica e para além da ideia mais geral que tentava formular, carecia ainda de uma sustentação conceitual adequada. 85 A Ana Maria me ajudou na sua formulação e me sugeriu possíveis caminhos para seguir dali em diante. Creio que foi dela a recomendação de tentar a seleção do PPG em História da Unicamp, pois o tema era sem dúvida propício àquele espaço acadêmico, responsável pela inserção da obra do historiador inglês no Brasil e em cujo quadro docente havia uma reconhecida pesquisadora da obra do filósofo francês. Alguns textos eram incontornáveis naquele momento: todo o volume 12 da revista Projeto História, publicado em 1995, cujo dossiê propunha “Diálogos com E. P. Thompson”, e que trazia textos norteadores do debate escritos por dois professores daquela universidade: Silvia Lara e Edgar de Decca.14 Mas aquele PPG era também a casa de Margareth Rago, cujo Do cabaré ao lar foi leitura central durante a graduação e no qual a autora propunha justamente uma relação teórica entre Thompson e Foucault, misturando de forma pouco ortodoxa conceitos importantes nos dois autores, como o do fazer-se da classe operária de Thompson e o de disciplina, em Foucault.15 Era dela também um famoso texto, de título provocativo, sobre o lugar de Foucault na historiografia brasileira.16 Assim, a Unicamp parecia ser o lugar natural para onde eu devia enviar meu projeto. Já conhecia a cidade e a instituição em razão de um evento sobre Foucault que ocorreu por lá, se bem me lembro, em 2000. Foi uma ocasião memorável, sob muitos aspectos. Havia ido com meu colega de curso e amigo da Vernáculo, Maurício Ouyama, que se interessava à época pelo estudo de práticas manicomiais. É sempre difícil descrever o que é a alegria e o espanto para um estudante de graduação poder estar diante da sua bibliografia. Estavam lá a Salma Muchail, tradutora do As palavras e as coisas, o Peter Pal Pelbart, e seus jogos deleuzianos com Foucault, o Francisco Ortega, cujos trabalhos sobre a amizade eram particularmente relevantes para mim naquele contexto, além da Ana Maria e da Margareth Rago. E foi quando pude ver e, sobretudo, ouvir pela primeira vez o Durval Muniz de Albuquerque Jr. Durval apresentou um texto que recorria ao Infância, de Graciliano Ramos, para falar sobre o nome e o não do pai, lido com a verve lírica que é conhecida, e que me 14 LARA, Silvia Hunold. “Blowin’ in the wind: E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil”; DECCA, Edgar Salvadori de. “E. P. Thompson: um personagem dissidente e libertário”. Projeto História, vol. 12, 1995, p. 43-56 e 109-118, respectivamente. 15 RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar. A utopia da cidade disciplinar e a resistência anarquista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. 16 RAGO, Margareth. “As marcas da pantera: Michel Foucault na historiografia contemporânea”. Revista Anos 90, vol. 1, n. 1, 1993, p. 121-143. 86 deixou gravado na lembrança o retumbante silêncio no auditório enquanto acompanhávamos atônitos toda aquela reflexão construída por jogos insuspeitos de palavras, pela recorrência incessante das metáforas, pela capacidade sem igual de construir imagens. E tudo foi seguido pelas palmas vigorosas da plateia que se colocou em pé para saudar aquele verdadeiro espetáculo de escrita. Neste percurso em que de bom grado resolvi ceder às armadilhas ilusórias dos sentidos biográficos da minha existência acadêmica, diria que foi aquele o momento em que redobrei a aposta em seguir pelos caminhos da escrita (ou da escritura, como costumávamos falar depois das leituras de Barthes) a partir da historiografia, ou pelo menos de um certo tipo de historiografia que, pelas palavras do Durval, parecia ser também o caminho que eu buscava. O resto é decorrência daquele silêncio inaugural. Naquele contexto eram poucos os programas de pós-graduação que possuíam em sua organização linhas de pesquisa voltadas predominantemente para a área da teoria da história. O PPG da Unicamp, cuja implementação foi logo nos anos 1970, justamente na implementação da pós-graduação em história no Brasil, era um deles. No início da década de 1990, havia ocorrido ali uma reestruturação de suas áreas de atuação e foi criada uma linha de pesquisa intitulada História, Memória e Historiografia.17 Um sinal dos tempos, pois aquela foi justamente uma década em que as reflexões sobre a teoria da história e o interesse sobre a história da historiografia passaram a se converter em temas de pesquisas mais sistemáticas e generalizadas. Contribuiu para isso, sem dúvida, a consolidação da área da história no ambiente acadêmico nacional a partir da proliferação dos cursos de pós-graduação nas universidades.18 No artigo de avaliação crítica a respeito da produção historiográfica brasileira entre os anos 1970 e 1990, resultado das pesquisas feitas no âmbito do então recém criado Centro Nacional de Referência Historiográfica (1993), Carlos Fico e Ronaldo Polito comentavam brevemente ao final do texto que “cabe chamar a atenção para os últimos cinco anos, com a publicação de muitos trabalhos de caráter teórico e metodológico vinculados à ‘nova história’ francesa, bem como de um grande número de textos teóricos 17 Remeto ao histórico no site do Programa: https://www.ifch.unicamp.br/ifch/pos/historia/programa. é FICO, Carlos; POLITO, Ronald. A história no Brasil (1980-1989). Elementos para uma avaliação historiográfica. Vol. 1. Ouro Preto: Editora da UFOP, 1992. 18 O melhor levantamento disponível a respeito da situação ainda 87 de historiadores da cultura de língua inglesa”. Logo em seguida, completavam o diagnóstico: “e mais ainda, com a introdução do debate sobre as relações entre narrativa e história, por exemplo. A publicação dos trabalhos de Hayden White e Dominick Lacapra, dentre outros, já começa a gerar pesquisas que exploram a dimensão narrativa dos eventos”.19 O parecer contrastava com os dados obtidos por eles para a década anterior, que os levaram a afirmar que “não foi muito intensa a preocupação dos historiadores brasileiros [...] com a reflexão teórica sistematizada”.20 De fato, os anos 1990 assistiram a uma verdadeira multiplicação de trabalhos que manifestavam o interesse de historiadores e historiadoras em repensar, a partir da teoria e da sua própria historicidade, as condições do fazer historiográfico. Como já indiquei, minha graduação foi relativamente propícia para isso. Lembro aqui apenas algumas datas de obras que foram publicadas naquele momento por docentes que eram nossas referências locais no campo: em 1996, o Na poética da história, do Chico Paz; no ano seguinte, Ana Maria publica o A (des)construção do discurso histórico; e dois anos depois, sai a coletânea de inéditos do Chico Paz, escritos entre 1990 e 1991, História como arte: ensaios sobre historiografia contemporânea.21 Cabe lembrar também as duas coletâneas que marcaram a época: os Domínios da História. Ensaios de teoria e metodologia, organizada por Ciro Flamarion Cardoso e pelo Ronaldo Vainfas, obra que trazia certo tom de polêmica pois logo na introdução um de seus organizadores optou por disparar seus ataques contra o que chamou de paradigmas rivais da história.22 E talvez por considerarem que aqueles tais domínios traziam muito forte o sotaque carioca das universidades do Rio de Janeiro, o pessoal de São Paulo julgou pertinente trazer a público suas próprias ideias no Historiografia brasileira em 19 FICO, Carlos; POLITO, Ronald. “A historiografia brasileira nos últimos 20 anos: tentativa de avaliação crítica”. Varia História, n. 13, 1994, p. 162. 20 FICO, Carlos; POLITO, Ronald. A história no Brasil (1980-1989). Elementos para uma avaliação historiográfica, op. cit., p. 157. 21 PAZ, Francisco Moraes. Na poética da história. A realização da utopia nacional oitocentista, op. cit., BURMESTER, Ana Maria de Oliveira. A (des)construção do discurso histórico: a historiografia brasileira dos anos 70, op. cit., PAZ, Francisco Moraes. História como arte: ensaios sobre historiografia contemporânea. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999. 22 CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História. Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro; Editora Campus, 1997. 88 perspectiva, cuja introdução também vinha com tom de manifesto, intitulada “Para uma história da historiografia brasileira”.23 A década de 1990, portanto, consolidava um movimento que era sentido desde os anos anteriores.24 Basta aqui recordar o volume já clássico, e definidor de uma época, que inaugurou em 1988 os trabalhos da revista Estudos Históricos, cujo título era “Caminhos da historiografia”. Em 1992, outro dossiê do mesmo periódico trazia por tema “Teoria e história” e no volume comemorativo aos 20 anos do CPDOC, instituição responsável pela revista, eram publicados textos de polêmica sobre os rumos da historiografia de autores como Hayden White e Roger Chartier.25 Naquilo que mais diretamente impactava a minha forma de encarar a situação nesses primeiros anos formativos, ou seja, a reflexão sobre a escrita da história, era também o momento de apropriação brasileira dos dilemas e desafios colocados pela chamada virada linguística. Em 1987, o colóquio ocorrido no Rio de Janeiro “Narrativa: ficção e história” foi em grande medida precursor na discussão de obras seminais para o tema, como as de Hayden White e de Paul Ricoeur, e isso antes mesmo das suas respectivas traduções brasileiras, que só viriam a ocorrer na década seguinte.26 Sem a pretensão de traçar um panorama exaustivo sobre o contexto em que realizei minha graduação e busquei seguir os caminhos da pós-graduação, parece-me ainda significativo do lugar que a reflexão teórica ocupava naquele ambiente historiográfico mencionar que tais discussões chegavam, inclusive, a ocupar as páginas dos grandes jornais de circulação nacional. Em 1995, O Estado de São Paulo, publicou em seu caderno Cultura, em dois sábados seguidos, resenhas de obras cuja principal 23 FREITAS, Marcos Cezar de (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. 3a. Edição São Paulo: Contexto, 2000. 24 Para um esforço de crítica sobre aquele contexto que, no entanto, permanece ainda excessivamente rápido e superficial, ver MALERBA, Jurandir. “Notas à margem: a crítica historiográfica no Brasil dos anos 1990”. Textos de História, vol. 10, n. 1/2, 2002, p. 181-210. 25 Sobre este último número em particular, ver a análise crítica de SANTOS, Wagner Geminiano dos. “A crítica historiográfica no Brasil nos anos 1990 e o espectro do linguistic turn: embates entre ‘modernos’ e pós-modernos’. História da Historiografia, vol. 12, n. 30, 2019, p. 312-343. 26 Sobre os debates brasileiros a respeito do linguistic turn, ver CEZAR, Temístocles. “Hamlet brasileiro: ensaio sobre giro linguístico e indeterminação historiográfica (1970-1980)”. História da Historiografia, n. 17, 2015, p. 440-461. Sobre as recepções dos dois autores, White e Ricoeur, no Brasil, ver FRANZINI, Fábio. “Mr. White chega aos trópicos: notas sobre Meta-história e a recepção de Hayden White no Brasil”. In: BENTIVOGLIO, Julio; TOZZI, Verónica (orgs.). Do passado histórico ao passado prático: 40 anos de Metahistória. Serra: Milfontes, 2017; GAGNEBIN, Jeanne-Marie. “Sobre a recepção da filosofia de Paul Ricoeur no Brasil”. In: MARCELO, Gonçalo et al. (coords.). A atualidade de Paul Ricoeur numa perspectiva iberoamericana. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017, p. 229-236. 89 característica era discutir teórica e historiograficamente a produção do conhecimento histórico. Com um título de gosto duvidoso, “Clio, a musa da história, entrou no cio”, trazia no subtítulo da primeira matéria a informação de que se tratava “das principais obras sobre o tema que vêm invadindo as prateleiras das livrarias”.27 Então, nos dias 1º e 8 de abril daquele ano, podia-se ler num jornal de circulação nacional autores (obviamente que majoritariamente oriundos das universidades paulistas), apresentando obras de teoria da história e história da historiografia. Ali estavam, entre outros, Fernando Novais, comentando o número duplo da Revista Brasileira de História que trazia o dossiê “Memória, história, historiografia”, além das traduções dos relatos autobiográficos de Philippe Ariés (Um historiador diletante) e Georges Duby (A história continua); Hilário Franco Jr., resenhando o livro de Nilo Odalia sobre Duby (O saber e a história. Georges Duby e o pensamento historiográfico contemporâneo), o de José Carlos Reis sobre os Annales (Nouvelle Histoire e tempo histórico. A contribuição de Febvre, Bloch e Braudel); Fernanda Peixoto, em resenha da tradução de Michelet e a Renascença, de Lucien Febvre. Como se percebe, o predomínio uspiano e sua francofilia predominavam. Mas, talvez curiosamente, também compareceu às páginas do jornal Luiz Costa Lima, discutindo as traduções dos livros de Hayden White (Trópicos do discurso) e de Stephen Bann (As invenções da história). Por fim, a resenha do A invenção da história, de Arno Wehling, escrita por Newton Duarte Molon, também fez parte da edição de 8 de abril.28 Toda essa discussão é aqui feita não no sentido de oferecer uma interpretação aprofundada sobre a situação da teoria da história no contexto historiográfico brasileiro da década de 1990, mas apenas para indicar um certo clima de época que, de uma forma que ainda precisa ser estudada com mais vagar e com documentação mais alentada, criou as condições para o vigoroso movimento que no século XXI consolidou a historiografia brasileira como um ambiente de reconhecida projeção internacional no campo da teoria da história e da história da historiografia. Por uma felicidade do destino, 27 O ESTADO DE S. PAULO. “Clio, a musa da História, entrou no cio”. Cultura, sábado, 1º de abril de 1995. Aproveito para indicar uma dissertação de mestrado que abordou a presença de historiadores e historiadoras nas páginas daquele jornal na década anterior, entre 1980 e 1991, orientada pelo Rogério Rosa Rodrigues na UDESC, e da qual tive a oportunidade de participar como banca de arguição: SIMAS, Alicy de Oliveira. ‘Praça pública do pensamento’: historiadoras e historiadores no suplemento Cultura do jornal O Estado de S. Paulo (1980-1991). Florianópolis: UDESC, 2020. 28 90 minha trajetória foi contemporânea a esse momento de pujança bibliográfica e de intensos e sempre inspiradores debates acadêmicos, alguns deles inclusive voltados para se questionar se existia, de fato, um tal campo e quais seriam suas condições de autonomia diante de áreas correlatas, como história intelectual, história das ideias e da cultura, como a sociologia do conhecimento etc. E foi nesse contexto que optei, mesmo sem conhecer tudo isso, por seguir nos caminhos que me levaram à pós-graduação. Os anos do mestrado O projeto sobre a análise das relações entre o conceito de experiência histórica e a narrativa esboçado para tentar alguma vaga de mestrado havia sido inscrito no processo seletivo da Unicamp. Mas eu também o havia enviado para a seleção em outro programa que à época possuía uma linha de pesquisa no campo da teoria da história: o da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mais do que as fragilidades teóricometodológicas já mencionadas, a proposta tinha ainda algo que, imagino, acabou pesando como um fator negativo. Sob os aspectos formais, ela não seguia o protocolo costumeiros em que cada seção indicaria uma das partes fundamentais de um projeto de pesquisa: delimitação temática, definição do problema, indicação dos objetivos, revisão bibliográfica, comentário sobre as fontes etc. Embora eu considerasse que tais elementos estivessem contemplados ao logo do texto, suas diferentes partes tinham, no lugar daqueles subtítulos, numeração em algarismos romanos, dando um caráter talvez mais fragmentado que coerente ao projeto. De modo um tanto quanto imprudente, eu ainda mantinha uma perspectiva, que hoje considero ingênua, de irrestrita liberdade para escrever, sobretudo no que poderia ser considerado como dimensão formal do texto. E aquela famosa passagem com que Foucault havia finalizado sua introdução ao A arqueologia do saber era por mim repetida como um mantra: “... é uma moral de estado civil; ela rege nossos papeis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever”.29 Recusado na Unicamp, sem nem sequer me habilitar para as fases da entrevista e da análise do currículo, restava a possibilidade de ser aceito no Programa da UFRGS. Não consigo formular uma recordação mais precisa sobre todo aquele processo, da 29 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p. 20. 91 viagem a Porto Alegre ou das diferentes etapas do processo. Mas um fragmento de lembrança permaneceu guardado. Membro da banca de seleção, o professor José Rivair Macedo, lá pelas tantas me indagou a respeito de como eu encarava a compreensão dos conceitos a partir da teoria de Reinhart Koselleck (ou algo próximo disso). Naquele momento, eu apenas tinha notícia do texto do historiador alemão que havia sido publicado no número dedicado ao tema “Teoria e história” da Estudos Históricos, de 1992, além das referências na obra de Paul Ricoeur.30 Não conseguiria dizer se já o havia lido realmente, mas sei que o autor era conhecido, embora provavelmente não fizesse parte do projeto apresentado, nem tivesse em minha formação alguma importância até aquele momento. Desconheço o teor da resposta que dei, mas aparentemente ela não foi tão prejudicial, uma vez que consegui ser convincente na entrevista e aprovado no processo. Quando comentei sobre minha intenção de também concorrer na universidade gaúcha, Ana Maria havia mencionado dois nomes que ela conhecia e que talvez poderiam ser referências para orientação: as professoras Sílvia Petersen e Sandra Pesavento. De resto, eu não conhecia mais nada a respeito deste Programa que os acasos da vida me fizeram hoje ocupar o posto de coordenador. Naquele momento, as seleções de mestrado do PPG ainda contavam, entre suas etapas, com uma prova escrita, que era pensada a partir de uma bibliografia prévia indicada em edital. Se minha memória não me trai (e sabemos que ela nem sempre se caracteriza pela fidelidade), aquelas duas coletâneas já mencionadas, Domínios da história e Historiografia brasileira em perspectiva faziam parte dos livros indicados. Tenho a impressão de que uma terceira, ainda não mencionada, também estava na lista. Pelo menos, a julgar pela data de aquisição que consta na primeira folha do volume (janeiro de 2002), os indícios me fazem crer que a impressão está correta. Trata-se do volume intitulado Questões de teoria e metodologia da história, organizado por professores do PPG e publicado pela própria Editora da UFRGS.31 30 KOSELLECK, Reinhart. “Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos”. Estudos Históricos, vol. 5, n. 10, 1992, p. 134-146. 31 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos et al. (orgs.). Questões de teoria e metodologia da história. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2000. 92 O PPG em História da UFRGS nasceu, não sem algum esforço frente aos gestores da universidade, com o curso de mestrado, em 1986. Suas origens remontam aos cursos de especialização que foram oferecidos entre 1977 e 1984, notadamente sobre a história do Rio Grande do Sul e da América Latina.32 No final daquela década, era formado por três linhas de pesquisa: História da Região Platina, História do Rio Grande do Sul, Teoria e Metodologia da História. Carlos Fico e Ronald Polito, que, como vimos, constataram o “desapego à reflexão teórica” na pós-graduação brasileira dos anos 1980, chegaram a destacar o papel da UFRGS na reversão desse quadro. 33 Embora tenha havido uma reestruturação de suas linhas de pesquisa em 1995, com a implementação do doutorado e a exigência da Capes para definição de uma assim chamada “área de concentração”, que ainda hoje é definida como História Social, a linha de pesquisa em Teoria da História permanece em atuação, embora com uma sutil mas importante alteração em seu nome: Teorias da história e historiografias. Além dela, era reconhecida a existência de um Setor de Teoria e Metodologia da História vinculado ao Departamento de História. Foi, então, a partir deste Setor, e com o apoio da referida linha de pesquisa do PPG, que em 1999 o simpósio do qual resultou o livro foi realizado. Se comparada com as duas outras coletâneas, esta sem dúvida guarda uma especificidade própria e que me parece significativa do estado da arte naquele momento, cujos traços são indicados logo na primeira página: “as discussões teórico-metodológicas e historiográficas têm frutificado em nosso País no ensino e pesquisa, em simpósios e congressos, teses e dissertações, obras coletivas e individuais”.34 Mais do que algo tangencial, como as outras duas, a teoria da história ocupa nesta obra um lugar central e estruturante de todas as seis partes que a constituem. 35 32 PICCOLO, Helga Iracema Landgraf. “Docência e orientação no Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul: uma trajetória”. Anos 90, vol. 13, n. 23/23, 2006; PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. “A Pós-graduação em história: novas e velhas questões”. Anos 90, vol. 13, n. 23/23, 2006, p. 23-27. 33 FICO, Carlos; POLITO, Ronald. A história no Brasil (1980-1989). Elementos para uma avaliação historiográfica, op. cit., p. 158. 34 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos et al. (orgs.). Questões de teoria e metodologia da história, op. cit., p. 9. 35 São elas: 1. A reflexão teórico-metodológica dos historiadores brasileiros: contribuições para pensar a nossa história; 2. O ensino de Teoria e Metodologia nos cursos de história; 3. A biografia histórica: espaço de confluência de questões teóricas, metodológicas e técnicas do trabalho historiográfico contemporâneo; 4. Da “história total” à “história em migalhas”: o que se perde, o que se ganha; 5. O livro didático de história, outras experiências de ensino e as referências teórico-metodológicas que comparecem em seus conteúdos; 6. História no fim do milênio: para quê? 93 Em outras palavras, distante de um mero recorte temático, de um simples elenco de conceitos ou apenas como forma de abordagem, a teoria era ali realmente pensada enquanto um campo ou mesmo uma área no quadro geral do conhecimento histórico. Sem cair em uma especialização avessa ao diálogo com outros espaços de saber, era enxergada a partir de sua relativa autonomia, devendo ser colocada em prática, inclusive, como um percurso de formação, e não apenas como o terreno em que historiadores ou historiadoras mais experientes poderiam caminhar. A título de exemplo desta última posição, lembro-me de ainda na graduação ter lido um texto de Evaldo Cabral de Mello, publicado no caderno Mais! da Folha de São Paulo, a respeito da bibliografia teórica na história, no qual ele recomendava “ser preferível ao aprendiz de historiador evitar cuidadosamente este tipo de literatura, pelo menos até que a experiência concreta permita-lhe adentrar-se em tais elocubrações e criar gosto por elas. Só então a reflexão epistemológica tornar-se-á realmente útil; antes disto, será francamente inibidora ou estimulará o pedantismo”.36 Hoje tenho consciência de que toda minha trajetória foi exatamente no caminho oposto ao prescrito pelo historiador e diplomata. O livro revelavam, enfim, o lugar ocupado pela teoria da história no PPG da UFRGS. Era, portanto, neste espaço institucional que eu adentrava em março de 2002, fato com profundas repercussões em minha vida acadêmica e pessoal. Pois foi o momento em que, de forma definitiva, deixei a casa de meus pais para começar uma nova experiência em uma cidade desconhecida. Mais do que inquietação, contudo, era um sentimento de boas expectativas o que me animava. Afinal, eu tinha todo o apoio familiar para seguir nesta jornada que, de alguma forma e sem ter sido premeditada, repetia os passos que meu pai percorreu quase trinta anos antes. Pois foi aqui na UFRGS, em uma Porto Alegre profundamente distinta daquela em que eu chegava quase três décadas depois, que ele se formou em Engenharia, em 1974. Encarando isso neste exercício de rememoração, não posso deixar de ver com alguma emoção essas coincidências que a vida proporciona. Sair de casa, para além de todas as características de rito que isso por vezes carrega, foi também o gesto de adentrar decididamente em 36 O texto foi republicado posteriormente em MELLO, Evaldo Cabral de. “Collingwood e o ofício do historiador”. In: Um imenso Portugal. História e historiografia. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 284. 94 um ambiente que cada vez mais me trazia a certeza do que queria para minha vida: a carreira acadêmica em uma universidade pública. Após a aprovação no mestrado, no início do semestre veio a boa notícia de que eu seria contemplado com uma bolsa de estudos. Essa renda, somada à ajuda familiar, permitiu uma dedicação integral à pesquisa. Antes disso, na incerteza da fonte de renda, cheguei a fazer uma entrevista surpresa para vaga de emprego cujo anúncio solicitava pessoas interessadas em livros: o trabalho, fui descobrir posteriormente, era para vender enciclopédias e livros de natureza semelhante. Fico hoje imaginando os caminhos que teria seguido se porventura tivesse ocupado essa função. A bolsa foi um alento que chegou em tempo propício. Faltava, contudo, definir quem poderia me orientar e, seguindo a recomendação da Ana Maria, eu havia indicado o nome da professora Sílvia Petersen. O papel da Sílvia no fomento e na defesa do campo da teoria da história no Brasil é reconhecido por não poucos comentadores. 37 No entanto, não cheguei a ser orientado por ela, pelo menos não formalmente. Em determinado momento, ela me chamou para uma conversa pessoal, que mantivemos na sala 206 do PPG, e me informou que não poderia me orientar naquele momento. As razões não foram colocadas exatamente dessa forma, mas algum tempo depois entendi que parte da motivação dizia respeito a divergências teóricas em relação ao meu projeto, o que me parece bastante razoável e compreensível e não posso deixar de ser grato a ela pela forma respeitosa e sincera com que encaminhou o assunto. Em seguida, já tratando dos trâmites da bolsa, a secretária do Programa à época, Sandra Ledesma, me comunicou que eu seria orientado pelo “Cesar”. Fui até a secretaria para assinar os papeis e solicitei a ela o contato do professor Guazzelli, para que eu pudesse procurá-lo e me apresentar. Ela logo me corrigiu, dizendo que não seria o Cesar Guazzelli meu orientador, mas sim o outro “Cezar”, o Temístocles Cezar, cujo nome não constava ainda no quadro docente do Programa pois ele havia recém retornado de seu doutorado na França. Creio que naqueles primeiros meses eu fiquei vinculado com 37 Por exemplo, FICO, Carlos. “O campo da teoria da história e da historiografia no Brasil. Homenagem a Sílvia Petersen”. In: SCHMIDT, Benito Bisso (org.). Novas questoões de teoria e metodologia da história e historiografia. São Leopoldo: Oikos, 2011, p. 37-47. Aliás, todo o volume é uma homenagem à historiadora e os relatos ali contidos indicam bem sua relevância para o campo no Brasil. Cabe mencionar ainda o livro com caráter de manual publicado por ela em coautoria com Bárbara Lovato: PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz; LOVATO, Bárbara Hartung. Introdução ao estudo da história. Temas e textos. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2013. 95 alguma outra pessoa enquanto aguardávamos o credenciamento do meu futuro orientador. Confesso ter achado curioso, mas alguém com um nome como esse não poderia ser mal historiador! Pedi, então, o contato desse outro Cezar e ela me disse que ele ainda estava indisponível, pois se recuperava de um acidente. Lamentei o fato e perguntei, talvez de forma pouco oportuna e um tanto invasiva, de que se tratava, ao que ela respondeu: “ele caiu do tobogã com a filha”. Esse era, portanto, meu futuro naquele passado não muito remoto: sairia de casa, seria bolsista, ingressaria num curso em que poderia me dedicar integralmente à pesquisa na área da teoria e seria orientado por alguém chamado Temístocles que, nas horas vagas, gostava de se aventurar perigosamente em brinquedos infantis. Hoje eu consigo ter uma noção um pouco mais precisa do quão importante foi essa experiência para minha trajetória justamente naquele momento. Em primeiro lugar, porque Porto Alegre no início do século XXI ainda era uma cidade politicamente intensa e atrativa para alguém que havia passado duas décadas inteiras de sua vida em uma conservadora Curitiba. Claro que os aspectos urbanos destoavam bastante da capital paranaense, sempre orgulhosa de suas novidades urbanísticas, e lembro de ter comentado com o amigo Hilton Costa, que também fez o mesmo caminho da UFPR à UFRGS e hoje é docente da Universidade Estadual de Maringá (UEM), como me impressionava aquele centro da cidade, um certo ar de abandono e de desordem, seus apartamentos gradeados até o segundo andar, seus odores e seus barulhos, o sotaque que se ouvia nas ruas e que ainda hoje chega a me incomodar. Mas era também uma cidade governada por um partido de esquerda, em um estado governado por um partido de esquerda, que em breve faria parte de um país governado pela esquerda. E ainda sediava o Fórum Social Mundial. O fervor político da população daqui era bastante distinto do comedimento bemcomportado dos cidadãos morigerados de Curitiba, cidade que sempre considerei “bonitinha, mas ordinária”. E 2002 foi ainda o ano da eleição presidencial que garantiu a Luiz Inácio Lula da Silva e ao Partido dos Trabalhadores o seu primeiro mandato. Bandeiras vermelhas por todos os lados, comícios empolgantes, um sentimento de mudança generalizado. Além disso, nos primeiros anos eu morava na Rua da República 592, no bairro Cidade Baixa, conhecido pela sua boemia. E foram muitas as noites em que eu, o Hilton e o Marcio Both, que também veio de fora, tendo feito sua graduação 96 em Ijuí, no interior do estado, e hoje também integra o Departamento de História da UEM, compartilhamos juntos. Posteriormente, vieram o Rodrigo, o Helder, o Marcelo e outros amigos cujo contato é mantido até hoje. Mas a importância daquela experiência foi marcante também em razão do meu contato com o Temístocles, primeiro um orientador, logo um amigo, de cuja amizade eu teria dificuldades para expressar seus significados. Tendo retornado da França havia pouco, onde realizou seu doutorado com uma tese em história da historiografia brasileira orientada por François Hartog, abriu para minha pesquisa e para minha formação inúmeras portas intelectuais e institucionais. No primeiro curso oferecido por ele, ainda no primeiro ano do mestrado, um amplo panorama que compreendia a história da historiografia antiga e a contemporânea, com uma bibliografia vigorosa que chegava junto com suas bagagens da estadia francesa. Dois autores passaram a ocupar cada vez mais o espaço de minhas reflexões pessoais e das discussões coletivas que fazíamos, os colegas da linha de teoria e o grupo que passou a se formar no entorno do Temístocles. Um deles, naturalmente, era o Hartog. Seu livro principal sobre Heródoto e a coletânea de fragmentos de historiadores antigos organizada e apresentada por ele haviam sido traduzidos pelo Jacyntho Lins Brandão alguns anos antes e foram abordados no curso.38 Recordo-me que, ainda usando uma proteção cervical, Temístocles movimentava-se na mesa da sala de aula com a desenvoltura de um robô enferrujado. Foi um curso inesquecível! Além das traduções, conseguíamos ter acesso a versões originais de textos preciosos para a definição do campo em que nos aventurávamos, um campo que ainda buscava sua consolidação em nosso cenário. De particular importância, o artigo publicado originalmente no Le Debat, em 2000, posteriormente incorporado ao Évidence de l’histoire, a respeito da tentação da epistemologia na historiografia e sua proposta de uma historiografia epistemológica como uma prática “atenta aos conceitos e aos contextos, às noções e aos meios e sempre mais cuidadosa de suas articulações, preocupada com a cognição e a historicização, mas vigilante diante das sereias dos 38 HARTOG, François. O espelho de Heródoto. Ensaio sobre a representação do outro. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999; HARTOG, François. A história de Homero a Santo Agostinho. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000. 97 reducionismos”.39 Foram muitas as citações e as menções a este trecho para tentarmos afirmar uma forma de história da historiografia que não fosse mais um ordenamento de autores e escolas, e que incorporasse em sua problemática uma dimensão propriamente teórica e conceitual. Mas era também, e sobretudo, o Hartog dos regimes de historicidade e da noção de presentismo. A revista do PPG havia publicado, em 1997, o texto que teve ampla repercussão por aqui, ao introduzir tais categorias.40 Ainda durante o mestrado, o livro sobre o presentismo havia sido lançado e logo incorporado em nossas discussões.41 O segundo autor era Reinhart Koselleck, aquele mesmo que havia me deixado em maus lençóis durante a entrevista da seleção. E eis que começamos a ler a coletânea francesa cujo título era central para minha pesquisa: L’expérience de l’histoire.42 Para a outra obra seminal do historiador alemão, Futuro passado (Vergangene Zukunft. Zur Semantik geschichtlicher Zeiten), o acesso era pela tradução espanhola, que já circulava pelo Programa há algum tempo, graças aos esforços da professora Helga Piccolo. 43 Nele também encontrávamos formas de pensar a teoria da história e evitar o que ele próprio chamava de “indigência teórica” da historiografia; nele, aquele intento de conciliar epistemologia e história da historiografia parecia encontrar seu exemplo de realização plena, especialmente no verbete sobre o conceito de história, que líamos também em espanhol e que foi posteriormente traduzido para o português pelo René Gertz com o intermédio do Temístocles.44 E foi em Koselleck que encontrei as categorias centrais para minha dissertação, espaço de experiência e horizonte de expectativa. 39 HARTOG, François. “L’histoire tentée par l’épistémologie?”. In: Évidence de l’histoire. Ce que voient les historiens. Paris: Éditions EHESS, 2005, p. 232. 40 HARTOG, François. “O tempo desorientado. Tempo e história: ‘como escrever a história da França?”. Anos 90, vol. 5, n. 7, 1997, p. 7-28. Sobre a construção e o uso de tais categorias por Hartog, permito-me remeter a NICOLAZZI, Fernando. “A história entre tempos: François Hartog e a conjuntura historiográfica contemporânea”. História. Questões e Debates, n. 53, 2010, p. 229-257; NICOLAZZI, Fernando. “François Hartog e o espelho da história: o outro e o tempo”. In: BENTIVOGLIO, Julio Bentivoglio; AVELAR, Alexandre de Sá (Org.). O futuro da história: da crise à reconstrução de teorias e abordagens. Vitória: Milfontes, 2019, p. 121-154. 41 HARTOG, François. Régimes d’historicité. Présentisme et expériences du temps. Paris: Seuil, 2003. 42 KOSELLECK, Reinhart. L’expérience de l’histoire. Paris: Gallimard, Le Seuil, 1997. 43 KOSELLECK, Reinhart. Futuro pasado: para una semantica de los tiempos historicos. Barcelona: Paidos Iberica, 1993; PICCOLO, Helga Iracema Landgraf. “Docência e orientação no Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul: uma trajetória”, op. cit., p. 27. 44 KOSELLECK, Reinhart et al. O conceito de história. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. 98 Havia ainda tantos outros autores que nos chegavam nas edições francesas que xerocávamos incessantemente: Arnaldo Momigliano, Chantal Grell, Blandine Kriegel, são alguns que consigo agora recordar sem precisar recorrer às anotações, e que mostravam o papel que a erudição histórica tinha para a escrita da história da historiografia, algo que posteriormente repercutiria mais decisivamente em minha produção intelectual. Mas também os nacionais, referências no campo da história da historiografia brasileira, particularmente aquelas que tinham por tema de estudo o século XIX, embora não só. Lúcia Maria Paschoal Guimarães e seus trabalhos sobre o IHGB, Angela Maria de Castro Gomes, e seu estudo sobre o contexto na primeira metade do século XX. E ainda Manoel Salgado, grande amigo do Temístocles que, em determinada ocasião, em uma conferência do Carlo Ginzburg que foi realizada no teatro da Reitoria da UFRGS (creio em em 2002), ele fez questão de me apresentar. O Manoel nos oferecia as ideias de cultura histórica como espaço de produção da história, e de uma forma de história da historiografia que não fosse mera memória disciplinar ou, antes, que fosse justamente a crítica às construções das memórias disciplinares.45 Enfim, todas essas foram portas abertas pelo contato com o Temístocles. As reuniões de orientação eram sempre baseadas nos textos, capítulos ou pedaços de capítulos que eu ia produzindo ao longo dos meses. Nunca consegui trabalhar apenas no plano da oralidade e ainda hoje mantenho esse combinado com meus orientandos e orientandas: o texto, sempre ele. Na primeira reunião, discutimos meu projeto. Acho que ele gostou de saber que eu tinha um lado foucaultiano em minha forma de entender a história. Outra reunião, já com partes dos capítulos escritas, foi marcada para uma tarde no bar e restaurante Chalé da Praça XV, em frente ao Mercado Público. Durante a discussão do texto, os apontamentos iam sendo feitos, as correções indicadas, os desenvolvimentos sugeridos. Encerrados os trabalhos, as primeiras luzes da cidade começando a iluminar as ruas, resolvemos permanecer para continuar a conversa, e os cafés deram lugar aos chopes. O fim da reunião foi junto com o fechamento do bar, e saímos os dois um pouco trôpegos caminhando pelo centro de Porto Alegre. Confesso 45 GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. “A cultura histórica oitocentista: a constituição de uma memória disciplinar. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.). História cultural: experiências de pesquisa. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2003, p. 9-24; GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. “Historiografia e cultura histórica: notas para um debate”. Ágora, vol. 11, n. 1, 2005, p. 31-47. 99 que apreciei bastante aquela sistemática de trabalho adotada pelo meu orientador de nome esquisito e hábitos perigosos. Creio que foi ali também o momento em que a relação de orientação começava a dar lugar à amizade que hoje tenho como uma das mais importantes para mim. A dissertação então ganhou forma, foi defendida em março de 2004, tendo na banca os professores Manoel Salgado, Claudio Pereira Elmir e Benito Bisso Schmidt. Aquelas carências teóricas do projeto inicial puderam ser minimizadas por todo o novo aporte bibliográfico que passei a conhecer durante o curso de mestrado. Se Paul Ricoeur permaneceu como a referência principal para o entendimento da forma como a narrativa historiográfica é construída, particularmente em sua capacidade de organizar a experiência vivida em um todo coerente, operando aquilo que o filósofo chamou de síntese do heterogêneo, pareceu-me naquele momento que Koselleck ofereceria categorias pertinentes para o intuito então proposto: analisar os conceitos de experiência em Thompson e Foucault e sua relação com a narrativa. A análise permanecia, como se nota, centrada a partir do problema mais geral da escrita da história, algo sobre o que mencionarei algumas palavras mais adiante. A primeira das duas partes que compunham a dissertação foi totalmente dedicada ao que chamei de “problemática do texto”. E Ricoeur me forneceu, a partir de sua abordagem hermenêutica, toda uma estrutura teórica que me orientou a discutir o discurso historiográfico. Era o Ricouer de Tempo e narrativa, mas era também o Ricoeur da Teoria da interpretação, da Metáfora viva e, sobretudo, da coletânea Do texto à ação.46 Na segunda parte busquei enfrentar mais diretamente o problema colocado. De Foucault, embora o conjunto amplo de sua obra fosse abordado, já que o conceito de experiência aparecia desde os primeiros até seus últimos escritos, foi sobretudo o segundo volume da História da sexualidade, em que ele tratava da história antiga, sobre o que me detive.47 De Thompson, como não poderia deixar de ser, sua obra canônica sobre a formação da classe operária inglesa era o foco da análise, sem, obviamente, perder de vista outros texto, particularmente seu volume teórico escrito contra 46 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tomo I, II e III. Campinas: Papirus, 1994, 1995 1997; RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2000; RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação. O discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições 70, s/d; RICOEUR, Paul. Do texto à acção. Ensaios de hermenêutica II. Lisboa: Rés Editora, s/d. 47 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984. 100 Althusser, A miséria da teoria.48 O pano de fundo da análise versava sobre os modos de construção das subjetividades, individual em Foucault, social em Thompson, a partir da relação entre experiência temporal e narratividade. Resumindo esquematicamente minha ideia, se Foucault apontava para o horizonte de expectativa do sujeito moral antigo, Thompson enfatizava o espaço de experiência do formar-se da classe operária inglesa na época moderna. Foi justamente neste momento que Koselleck, com sua abrangente teoria dos tempos históricos, entrou na discussão, e pude me desviar do excesso de esquematismo formulando da seguinte maneira a hipótese que perpassava aquela pesquisa: A hipótese que perpassa todo este trabalho, amparada pelas concepções de tempo histórico de Reinhardt Koselleck e de narratividade de Paul Ricoeur, pode ser esboçada com a utilização da terminologia fornecida por ambos. Assim, [...] é possível agora inferir com mais segurança que, na narrativa da experiência histórica, espaço de experiência e horizonte de expectativa não existem como articuladores temporais senão por intermédio de atos configurantes específicos, os quais têm por função inserir os tempos passado e futuro em um conjunto significante cuja centralidade temporal se localiza no presente do sujeito da experiência. Este conjunto significante pode ser considerado no âmbito da tessitura da intriga que orienta o sentido da história narrada. O ato configurante, dessa maneira, é compreendido como o modo discursivo de configuração temporal da experiência, isto é, a dinâmica da ação relativamente ao presente do sujeito que age. Em relação a este presente, a ação é devedora de elementos que persistem do passado ou, por outro lado, impulsiona elementos em direção a um futuro. Passado, presente e futuro, assim, passam a fazer sentido quando inseridos na trama narrativa. É, por conseguinte, a relação entre experiência e linguagem ou entre história e narrativa que se tematiza. Para além de um certo esoterismo teórico dos termos utilizados, penso ainda hoje que havia algo de interessante e de relevante para ser pensado a partir dali a respeito das condições que definem a produção do discurso histórico. Aquela imersão em questões puramente teóricas voltadas para a escrita da história, além de um sinal de época, me ajudou a construir com bases um pouco mais sólidas uma compreensão de história que ainda hoje ampara minhas pesquisas e condutas. Em todas as minhas aulas de Introdução à História, deixo explícito desde o início do curso que o fato central que diz respeito ao conhecimento histórico reside nas relações entre experiência e linguagem. Essa formulação ganhou consistência neste período, entre 2002 e 2004, quando de minha inserção no “grupo da teoria” do PPG da UFRGS. 48 THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa. 3 vol. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, 1988; THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. 101 A experiência do doutorado O mestrado foi inteiramente devedor daquele momento em que o campo da teoria da história se encontrava na primeira década dos anos 2000. O tema geral da escrita da história, com todas as suas variantes, era central nas nossas reflexões, pelo menos segundo minhas impressões hoje, mas também como podíamos notar não apenas nas discussões do grupo da UFRGS como em eventos acadêmicos nacionais,49 em dossiês temáticos de periódicos50 e em coletâneas publicadas naquele contexto.51 Efeito direto dos debates sobre a virada linguística e da incorporação de referências teóricas que colocavam a linguagem no centro do fazer historiográfico, a preocupação com o como se escreve a história norteava boa parte de nossas pesquisas e de formas muito diversas.52 Cabe salientar ainda a importância do livro de Michel de Certeau, L’écriture de l’histoire (1975) para as discussões feitas então, particularmente o famoso capítulo sobre a “operação historiográfica”, cuja estrutura (um lugar, uma prática, uma escrita) era repetida por nós em nossas próprias formas de organizarmos a reflexão e nossos objetos de pesquisa.53 Além disso, a incorporação da semântica histórica de Reinhart Koselleck, e seu jogo sempre dinâmico entre experiência e linguagem, também foi de central importância para os rumos tomados pelo campo naquele momento. Tamanha era a ênfase na questão da escrita da história e a centralidade da linguagem no seu jogo com a experiência que me lembro de como Mara Cristina de 49 Os anais do XXII Simpósio Nacional da ANPUH, ocorrido em 2003 na cidade de João Pessoa, mostram uma recorrência do termo narrativa entre os títulos de seus simpósios temáticos. Dos 80 STs, 13 (ou seja, cerca de 16%) tinham no título tal termo. Se considerarmos três exemplos mais diretamente vinculados ao campo da reflexão teórica, notamos como, mesmo considerando a variedade de enfoque que cada um dos coordenadores assumia, a escrita da história era norteadora: ST 02, Narrativa, tempo e estrutura, coordenado pelo Michel Zaidan Filho; ST 03, Cultura histórica e narrativa, coordenado pelo Estevão de Rezende Martins; ST 04 Historiografia e escrita da história, coordenado por Manoel Luiz Salgado Guimarães e Durval Muniz de Albuquerque Jr. 50 Como o dossiê “Historiografia e escrita da história” da revista Ágora, organizado por Temístocles Cezar, com textos de François Hartog, Manoel Salgado Guimarães, Astor Diehl, Renato Amado Peixoto, Mara de Matos Rodrigues, entre outros. Ágora, vol. 11, n. 1, 2005, p. 07-186. 51 GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado (org.). Estudos sobre a escrita da história. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2006. Esta coletânea foi resultado do Encontro de Historiografia e História Política, realizado na UFRJ no ano anterior. 52 Duas análises sobre a incorporação dos debates em torno da virada linguística no Brasil podem ser lidas em: CEZAR, Temístocles. “Hamlet brasileiro: ensaio sobre giro linguístico e indeterminação historiográfica (1970-1980)”, op. cit; SANTOS, Wagner Geminiano dos. “A crítica historiográfica no Brasil nos anos 1990 e o espectro do linguistic turn: embates entre ‘modernos’ e ‘pós-modernos’”, op. cit. 53 CERTEAU, Michel de. “L’operation historiographique”. In: L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 1975, p. 63-120. 102 Matos Rodrigues, amiga que à época se dedicava ao mestrado (2002) e ao doutorado (2006) antes de ingressar nos quadros do Departamento de História da UFRGS, comentava-nos que ficava hesitante ao abordar o seu tema de pesquisa (a institucionalização de cursos de Geografia e História no Rio Grande do Sul na década de 1940 e a historiografia gaúcha de meados do século XX) a partir de um problema que não situava a escrita como seu foco primordial, mas sim as relações sociais e institucionais da historiografia. Não considero essa hesitação como algo menor, pois olhando agora, parecia haver mesmo uma espécie de consenso forçado sobre o que significava praticar a tal historiografia epistemológica de que tanto falávamos. Por vezes poderia ficar a impressão de que outras formas de abordagem que não fossem sobre a dimensão propriamente textual da história eram “menores”, soavam como destoantes ou não eram atualizadas o suficiente para o que se esperava. Nada mais equivocado, obviamente, já que reduzia a própria complexidade do tema da escrita da história com que se procurava trabalhar. Além disso, o campo era, obviamente, muito maior do que poderíamos supor naquele contexto em que começava a se estruturar institucionalmente no país. As formas de abordagem mais ligadas à história política, à história social ou à história intelectual e à das ideias (independente das minúcias teóricas envolvidas na precisão de cada uma dessas abordagens), que caracterizaram parte dos trabalhos dos anos 1980 e 1990, permaneciam sendo praticadas por muitos colegas da nova geração, como o exemplo da Mara sugere. Cabe indicar ainda o papel importante de Estevão de Rezende Martins, cujo trabalho de tradução e de divulgação da Historik de Jörn Rüsen, entre 2001 e 2007, foi sem dúvida indispensável para a ampliação do leque de referências disponíveis para quem se dispusesse a iniciar suas pesquisas em teoria da história e história da historiografia na primeira década do século XXI.54 Ainda durante o mestrado, uma iniciativa acadêmica foi bastante significativa para o campo da teoria da história e da história da historiografia no Brasil e, por consequência, para meu próprio percurso. Em 2003, a partir da articulação entre 54 RÜSEN, Jörn. Razão histórica. Teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora da UNB, 2001; RÜSEN, Jörn. Reconstrução do passado. Teoria da história II: os princípios da pesquisa histórica. Brasília: Editora da UNB, 2007; RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Editora da UNB, 2001. Estevão Martins foi o responsável pela tradução dos dois primeiros e pela revisão técnica da tradução do terceiro. 103 historiadores e historiadoras de diferentes instituições, tendo à frente nomes como Manoel Salgado Guimarães, Durval Muniz de Albuquerque Jr., Estevão de Rezende Martins e Temístocles Cezar, foi criado o GT de Teoria da História e História da Historiografia, vinculado à ANPUH, que começou naquele mesmo ano a organizar simpósios temáticos nos encontros nacionais e regionais da Associação. Era já um processo de institucionalização daquele movimento mais amplo que se fazia sentir desde a década de 1990 em diversas universidades. Aqui no Rio Grande do Sul foi criada uma seção local do GT, com intensa atuação naquela primeira década e meia do século XXI. Uma das iniciativas que ainda me parecem das mais interessantes realizada pelo GT gaúcho foram as Jornadas de Teoria da História e História da Historiografia, que ocorriam duas vezes por ano, entre 2012 e 2015. Além disso, era um GT que funcionava a partir de um espírito de coletividade e coleguismo que definitivamente marcou uma época. Obviamente, sua amplitude era bastante mais vasta em termos institucionais, mas gostaria de mencionar uma de suas frações que se localizava especificamente na UFRGS. Formou-se naquele contexto um grupo de estudantes, em sua maioria orientandos e orientandas do Temístocles. Foram diversas as reuniões ou aulas em que um verdadeiro espaço de construção coletiva se constituía, caracterizado pelas trocas constantes, pela verdadeira colaboração intelectual e pelos vínculos de amizade que perduram até hoje. Sem ser possível mencionar todas as pessoas envolvidas, gostaria de citar alguns nomes, sobretudo daqueles que naquele momento do mestrado e do doutorado participavam do grupo: Taíse Quadros da Silva (hoje professora do IF-RS), Maria da Glória de Oliveira (hoje professora da UFRRJ), Rodrigo Turin (hoje professor da UNIRIO), Arthur Lima de Avila (hoje professor da UFRGS), Evandro dos Santos (hoje professor da UFRN), Carla Renata Gomes (hoje diretora do Museu de Arte Religiosa e Tradicional de Cabo Frio/RJ), Marina Corrêa de Araújo (hoje professora nos EUA), Rodrigo Bonaldo (hoje professor na UFSC), Luciana Boeira (hoje professora e diretora de escola na rede básica), Elieta Tiburski (hoje professora na rede básica), Renata Dal Sasso Freitas (hoje professora na UFFS), além da própria Mara Rodrigues que já mencionei e das gerações seguintes que passaram a se dedicar ao campo. 104 A imagem não é das melhores, mas foi a única que consegui encontrar em meus registros de um tempo em que os celulares ainda eram utilizados preponderantemente para fazer e receber ligações. Da esquerda para a direita, Mara Cristina de Matos Rodrigues, Maria da Glória de Oliveira, Ailana Amorim, Temístocles Cezar, Ana Maria Rhodes da Silveira, Rodrigo Turin. Desconheço a autoria da foto. Eram pessoas que, em diferentes estágios de suas formações, faziam parte do grupo, com projetos que abordavam temas variados no campo da teoria e da história da historiografia, com especial atenção ao século XIX. Aliás, este é um ponto importante de ser mencionado: o papel que os estudos oitocentistas tiveram nessa primeira renovação da história da historiografia brasileira, desde a década de 1980. Lembremos que no famoso número 1 da revista Estudos Históricos, de 1988, dois dos mais importantes textos já escritos no campo abordavam a instituição do IHGB e uma parte da obra de Capistrano de Abreu.55 Além desses dois artigos seminais, cabe apontar que em 1994, Lucia Maria Paschoal Guimarães, já com larga experiência na docência da teoria da história, defendeu sua tese sobre o IHGB e meia década depois Arno Wehling, então presidente daquela agremiação e que havia atuado como professor de teoria e metodologia da história na UFRJ, publicava seu estudo sobre Varnhagen.56 Obviamente, outros trabalhos 55 GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. “Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional”. Estudos Históricos, vol. 1, n. 1, 1988, p. 5-27; ARAUJO, Ricardo Benzaquen de. “Ronda noturna: narrativa, crítica e verdade em Capistrano de Abreu”. Estudos Históricos, vol. 1, n. 1, 1988, p. 28-54. 56 GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Debaixo da proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). Tese em história. São Paulo: USP, 1994; WEHLING, Arno. Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 105 abordavam a historiografia brasileira em períodos distintos, como o estudo de Angela de Castro Gomes, sobre história e historiadores no Estado Novo, 57 mas o predomínio das pesquisas sobre o século XIX, momento fundador não apenas da historiografia brasileira, mas também da própria da história da historiografia brasileira, parece-me inegável.58 No início dos anos 2000, Temístocles Cezar defendeu seu doutorado na EHESS, em Paris, e no ano seguinte Valdei Lopes de Araújo apresentou sua tese na PUC-RJ.59 Nestes dois últimos casos, ambos especialistas no século XIX, cabe o destaque de que foram orientados por nomes relevantes no campo, como François Hartog e Luiz Costa Lima, o que já indica um processo de reprodução intelectual importante e, sobretudo, um sinal de sua consolidação. Alguns anos após a criação do GT de Teoria da História e História da Historiografia, que tinha nos eventos regionais e nacionais da ANPUH seu principal ponto de encontro, o fato que contribuiu para a amplitude da “geografia disciplinar” do campo,60 foi a primeira edição, em 2007, do que hoje é o Seminário Brasileiro de Teoria e História da Historiografia, antigo Seminário Nacional de História da Historiografia (SNHH). O Departamento de História da UFOP, sede do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM) e que nos anos 1990 sediou, sob a coordenação de Carlos Fico e Ronald Polito, o Centro Nacional de Referência Histórica, converteu-se em um dos principais organizadores do campo, sendo responsável, junto com colegas da UNIRIO, pela criação da revista História da Historiografia, em 2008 e, no ano seguinte, o lugar de fundação da Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia, cujo primeiro presidente foi Estevão Martins. Cabe ainda destacar que em 2009 foi lançado o primeiro número da Revista de Teoria da História, sediada na 57 GOMES, Angela Maria de Castro. História e historiadores: a política cultural do Estado Novo. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1996. 58 Ver sobre isso ARAUJO, Valdei Lopes de. “O século XIX no contexto da redemocratização brasileira: a escrita da história oitocentista, balanço e desafios”. In: ARAUJO, Valdei Lopes de; OLIVEIRA, Maria da Glória de (orgs.). Disputas pelo passado: história e historiadores no Império do Brasil. Ouro Preto: Edufop, 2012, edição digital. 59 CEZAR, Temístocles. L’écriture de l’histoire au Brésil au XIXe siècle. Essai sur une rhétorique de la nationalité: le cas Varnhagen. Tese em história. Paris: EHESS, 2002; ARAUJO, Valdei Lopes de. A Experiência do Tempo: modernidade e historicização no Império do Brasil (1823-1845). Tese em história. Rio de Janeiro: PUC-RJ, 2003. 60 Tomo de empréstimo a expressão de SANTOS, Wagner Geminiano dos. A invenção da historiografia brasileira profissional. Vitória: Milfontes, 2020. 106 Faculdade de História e no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás (UFG), hoje um dos mais relevantes periódicos no campo. Todos esses dados permitem situar com um pouco mais de precisão o momento em que desenvolvi minhas pesquisas de doutorado, entre 2004 e 2008, no PPG da UFRGS. A finalização do mestrado e a empolgação com a atuação naquele grupo que crescia junto e sempre coletivamente não deixaram dúvidas de que o doutorado era o caminho mais lógico a ser percorrido logo após a apresentação da dissertação, sobretudo pelo fato de que o título de doutor, ao contrário do que ocorreu para a geração anterior, já havia se tornado requisito obrigatório para se prestar um concurso para docente em universidade pública. Faltava, no entanto, elaborar um projeto convincente e a primeira versão que esbocei, embora achasse a ideia muito promissora, esteve longe da possibilidade de convencer uma banca. Eu ainda estava sob o impacto da leitura dos ensaios que Carlo Ginzburg havia publicado originalmente em 2000, sendo traduzidos para o português dois anos depois pela Companhia das Letras, no livro intitulado Relações de força.61 De especial importância era o texto “Sobre Aristóteles e a história, mais uma vez”, em que o historiador italiano sugeria que o tratado mais relevante do filósofo grego para os historiadores não era Poética, cujo capítulo IX era recorrentemente citado por nós, sobretudo após os estudos sobre narrativa de Paul Ricoeur, mas sim Retórica. Ginzburg persistia em seu confronto contra o que considerava como tendências céticas da historiografia e cujo evento mais notório talvez tenha sido o debate contra Hayden White ocorrido na Universidade da Califórnia, em 1990. 62 No caso da leitura de Aristóteles, sua ênfase na retórica, encarada por ele como algo predominantemente ligado à dimensão de prova do discurso, era o que havia me inspirado naquele primeiro momento à escrita de um projeto. Minha intenção, tão presunçosa quanto frágil epistemologicamente, era elaborar uma reflexão teórica em que se colocasse em diálogo as perspectivas que assumiam a 61 GINZBURG, Carlo. Relações de força. História, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Alguns anos depois, chegava a tradução para o português de outra coletânea importante do historiador italiano, publicada originalmente em 2006: GINZBURG, Carlo. O fio e o rastro. Verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 62 O debate faz parte da famosa coletânea organizada por FRIEDLANDER, Saul (ed.). Probing the limits of representation. Nazism and the ‘final solution’. Cambridge: Harvard University Press, 1992. 107 escrita da história a partir de sua dimensão poética, valendo-me do respectivo tratado aristotélico, com aquelas que enfatizavam o pressuposto retórico da prova, seguindo pelos fios e pelos rastros abertos pelo filósofo grego neste seu tratado que, para Ginzburg, era o mais relevante. O título era algo como Poética e retórica na construção do discurso historiográfico e confesso que cheguei a gostar bastante da versão de projeto que havia elaborado. Mostrei uma primeira versão ao Temístocles e me lembro que em nossa conversa ele me recomendou evitar aquela proposta: não apenas estava excessivamente precária do ponto de vista teórico, como o próprio formato (escrito da mesma forma como havia feito para o mestrado, mais como um ensaio do que como um projeto de pesquisa estruturado) possivelmente não seria bem aceito em uma seleção de doutorado. Até hoje sou muito grato pela franqueza com que ele me disse tais palavras, pois caso minha teimosia insistisse naquela ideia, muito provavelmente não conseguiria ser aprovado na seleção e certamente aquela vaga de vendedor de enciclopédia que solenemente desprezei anos antes não estaria mais a minha disposição. Desisti da proposta inicial, embora seus traços mais distintivos tenham permanecido na essência do novo projeto que, escrito agora com uma estrutura mais adequada, acabou sendo aprovado pela banca de seleção. Se no início o tema seria enfrentado de uma forma eminentemente teórica, agora ele passou a ganhar um corpo empírico mais evidente, ou seja, como demanda a boa prática, teria “fontes documentais” muito bem definidas. Mantendo a perspectiva de estudar a administração da prova na escrita historiográfica, havia decidido estudar um debate acadêmico relevante no campo historiográfico, cujas diferenças de posições e cuja força do embate pudesse fazer aflorar as estratégias de persuasão de cada autor ou autora envolvido. Com isso, pensava naquele momento, poderia articular as dimensões propriamente poéticas do discurso historiográfico (consideradas, via Ricoeur, como a forma de encadeamento dos fatos num todo narrativo, seguindo as ideias da tessitura do enredo e da síntese do heterogêneo expostas em Tempo e narrativa), com seus pressupostos retóricos (ligados ao campo das provas, de acordo com o que Ginzburg defendia, mas 108 também visando o convencimento do auditório, cuja referência primordial para mim se tornou posteriormente Chaim Perelman e sua Nova retórica63). Eis então que selecionei como objeto principal o debate em torno da historiografia da escravidão no Brasil, tema que possuía uma larga tradição de trabalhos, atravessava variadas referências teóricas e metodológicas, e no final dos anos 1980 foi assunto para um virulento debate entre historiadores e historiadoras que ocupou as páginas de jornal de repercussão nacional. O projeto estava pronto, tinha certa consistência teórica, alguma relevância para o campo e, sobretudo, abriu-me as portas para complementar meu interesse específico pela teoria da história a partir de uma abordagem que se poderia situar mais propriamente no âmbito de uma história da historiografia. Finalmente eu poderia colocar em prática, agora de forma efetiva, aquela historiografia epistemológica que tanto defendia, mas pouco praticava de fato. Consegui ser aprovado em uma boa colocação, o que me garantiu bolsa de estudos para permanecer com dedicação exclusiva à pesquisa. Por mais quatro anos eu teria certo respaldo financeiro e a intenção inicial de prestar um concurso e me tornar professor de uma universidade federal ganhava mais uma camada de possibilidade. O doutorado seria defendido quatro anos depois, em abril de 2008, mas não sem ter passado por uma reformulação quase que completa da ideia inicial. E aqui, como ocorreria em outra oportunidade, foi um passeio pelas estantes da biblioteca o que mudou tudo. Enquanto definia o conjunto de textos e obras que formariam o corpus documental da pesquisa, que no projeto estava apenas sumariamente indicado, decidi reler o Casa-grande & senzala, afinal foi um livro transformador da forma como a escravidão era entendida no chamado pensamento social brasileiro. Embora eu tivesse uma edição mais recente, resolvi fazer um levantamento das edições com que poderia trabalhar. Encontrei as referências no sistema da biblioteca do IFCH da UFRGS e fui até a estante dar uma olhada. Então, escondida e meio jogada por detrás dos outros volumes, com uma capa de papelão azul improvisada, eis que me deparei com a primeira edição do livro, um tanto castigada, mas passível de ser lida. Para quem havia desde a graduação pesquisado temas eminentemente teóricos, quando a fronteira entre referência bibliográfica e fonte documental é por demais imprecisa, aquela primeira edição me 63 PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação. A nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005; PERELMAN, Chaïm. Retóricas. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 109 dava a sensação de estar efetivamente fazendo “trabalho de historiador”, uma pesquisa com as tais “fontes de primeiro grau”. E passei então a reler e a fichar cuidadosamente o livro, desta vez naquela ortografia própria da década de 1930. 64 Caderno com o fichamento da primeira edição do Casa-Grande & Senzala. O conjunto de notas, citações, comentários, feitos em tinta azul e marcados com lápis e caneta vermelha, somam 101 páginas manuscritas. Ter encontrado essa edição e ter podido me dedicar a ela nos primeiros meses do doutorado foi determinante para os novos direcionamentos da pesquisa. Passei a me dar conta de que tudo aquilo que eu buscava fazer, ou seja, refletir sobre as formas pelas quais, no discurso historiográfico, é possível articular uma dimensão poética mais voltada para as condições narrativas do texto, com uma dimensão retórica, cujo objetivo é possibilitar, a partir do recurso comprobatório, o convencimento de quem o lê, tudo 64 Mais recentemente descobri com um pesar inenarrável que aquela edição entrou em processo de desfazimento, o que, no linguajar das ciências da informação, não tem absolutamente nada a ver com as condições materiais do livro (pensei que o livro se desfazia em razão da sua má conservação): foi uma decisão de se desfazer daquele volume, considerado muito velho e, no entendimento de alguém, inútil diante das edições mais novas e mais bem conservadas. E eis que a primeira edição de Casa-grande & senzala foi voluntariamente jogada na lata de lixo da UFRGS. 110 isso poderia ser feito tendo como objeto apenas aquele livro escrito por Gilberto Freyre havia sete décadas. Neste ponto a memória é bastante turva e não me recordo como foi a conversa com o Temístocles, nem me lembro de sua reação, mas já na qualificação, quando pude contar com os comentários da professora Sandra Pesavento e do professor Ruben Oliven, imagino que no primeiro semestre de 2006, o texto apesentado indicava a completa mudança nos rumos. Rumos esses que seriam novamente transformados durante a experiência no exterior proporcionada pela bolsa-sanduíche, quando pude passar um ano em Paris, sob supervisão de François Hartog, cursando algumas disciplinas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e, sobretudo, frequentando diariamente a Bibliothèque National de France, em sua sede François Miterrand. Cartão estudantil fornecido pela EHESS durante minha estada como estudante de doutorado entre 2006 e 2007. Embora eu pudesse dizer que já havia tido uma experiência internacional ao concluir o segundo grau em um intercâmbio estudantil nos Estados Unidos, dez anos antes, o período passado na França foi um divisor de águas. Não apenas porque eu tive contato com outra realidade acadêmica, mas porque as condições de trabalho que o ambiente parisiense oferecia são para mim, até hoje, sem comparação. Não seria um exagero considerar que foi neste ano que a tese ganhou sua forma final e a consistência teórica que no projeto ainda era incerta. Por mais curioso que possa parecer o fato de fazer uma pesquisa sobre historiografia brasileira em uma cidade francesa, o fato é que na BNF eu conseguia encontrar praticamente tudo que precisava, desde as referências conceituais que embasaram minha interpretação, até uma coleção brasiliana a que 111 dificilmente teria acesso permanecendo apenas em Porto Alegre. É bem verdade que a biblioteca da UFRGS dispõe de um catálogo considerável, inclusive de obras raras, e que seria muito mais perto frequentar outros acervos no Brasil. Mas nada superaria aquela experiência cotidiana que tive a oportunidade de aproveitar em Paris, acomodado nas cadeiras de estrutura de madeira e metal, com encosto alto, uma curva na região lombar e um surpreendente conforto. De início, a surpresa. A BNF se divide em duas: uma na superfície, aberta ao público e outra não tão evidente, disponível apenas para pesquisadores. Descobri isso na prática: ao solicitar ao funcionário uma referência que aparecia no catálogo on-line, mas não conseguia encontrar nas estantes das salas na superfície, ele me informou que para consultar aquela obra seria preciso ir ao rez-de-jardin. Meu francês naquele momento não alcançava certas minúcias linguísticas e perguntei o que era isso. La bibliothèque de recherche au rez-de-jardin, respondeu-me. Gentilmente ele me instruiu o que eu deveria fazer para acessar aquele lugar ainda desconhecido. Realizados todos os trâmites, segui o percurso que se tornaria minha rotina naquele ano: deixei minha mochila no balcão do vestuário logo ao lado das grossas portas de metal, coloquei meus papeis e canetas na pasta transparente que era fornecida e atravessei aquelas portas que mais pareciam protões fronteiriços entre duas realidades paralelas. Dois lances de escada rolante em um ambiente suntuoso, preenchido por um solene silêncio que era interrompido apenas pelo som mecânico dos degraus sumindo pela esteira. Mais um conjunto de portas e pronto, eis o tal do rez-de-jardin. Foi nas pesquisas feitas na BNF que Euclides da Cunha começou a ganhar mais lugar na tese, fazendo certa sombra à obra que era meu objeto principal. O escritor fluminense, fui me dando conta aos poucos, era no fundo aquele contra quem Freyre tentava rivalizar, ele que tinha a pretensão de deixar seu Casa-grande & senzala como a mais relevante para o entendimento da formação histórica da sociedade brasileira. A tese, por fim, ficou estruturada em três partes: na primeira, analisei a recepção do livro de Freyre no Brasil, desde sua primeira edição até o falecimento do autor na década de 1980, além de estudar os muitos prefácios que o sábio de Apipucos escreveu para a sua obra-prima; na segunda, toda minha atenção se voltou a Euclides e seu Os sertões: ambos eram os antípodas para Freyre e seu livro; por fim, na terceira parte, minha interpretação ficou concentrada nas formas pelas quais Freyre representava o passado, 112 valendo-se da experiência do viajante, estabelecendo um processo de difícil demarcação entre história e memória, e se apropriando do gênero ensaístico que também caracterizava outros “intérpretes do Brasil” da primeira metade do século XX. Tudo isso resultou em um texto de 411 páginas, divididas em dois volumes. A defesa ocorreu em 14 de abril de 2008 e tive a oportunidade de ter na banca de arguição a professora Fernanda Arêas Peixoto, do PPG-Antropologia da USP, que conheci em Paris nos seminários de Hartog, a professora Ruth Gauer, do PPG-História da PUC/RS, além de dois docentes do PPG-História da UFRGS, Mara de Matos Rodrigues e Fábio Kuhn. Embora eu estivesse dentro do prazo regulamentar normalmente previsto para um doutorado (os 48 meses que alguém, em algum momento e sabe-se lá a partir de qual métrica, decidiu que seria o tempo ideal para uma pesquisa doutoral), certamente poderia ainda usar um tempo maior para aprimorar o texto, ler uma ou outra bibliografia que ainda ficou faltando e quem sabe ajustar melhor os conceitos. Mas a tese precisava ser defendida naquele momento, pois eu estava prestes a dar o terceiro passo principal para que aquele projeto de me tornar professor universitário pudesse ganhar realidade. Por uma dessas felizes coincidências, que muitas vezes chamamos de acasos, a UFOP havia aberto concurso para um vaga que naquele momento parecia ser algo realmente surpreendente: historiografia brasileira. Era o tema de minha tese, meu primeiro concurso em que a chance de ser bem-sucedido não seria pura quimera. Faltava ainda ter a ata de defesa para pelo menos poder participar das provas. Daí a corrida para fazer a banca naquela data precisa, já que no dia seguinte precisaria enviar a documentação necessária para poder homologar minha inscrição. A atuação como docente universitário abria então um outro tempo da obra cujos traços principais este Memorial busca dar algum sentido. 113 III. Tempos da docência e da gestão acadêmica (2004-2024) “Não sei o que teria feito se não tivesse sido um professor. Se eu não tivesse ensinado, eu poderia...”. John Williams, Stoner, 1965. O professor hesitante O início do doutorado, em 2004, foi também o início de minhas atividades como professor substituto do Departamento de História da UFRGS. O período do contrato era de dois anos (um ano, renovável por outro), encerrando-se pouco antes de minha estadia em Paris, no segundo semestre de 2006. Nunca tive uma atuação efetiva na educação básica, salvo nos breves momentos de estágio durante a graduação, o que certamente me privou de um tipo de experiência que poderia me trazer algum ganho como professor universitário. Minha trajetória, portanto, foi exclusivamente vinculada ao ambiente do ensino superior. Ou seja, a dimensão da docência que caracteriza uma das facetas da persona historiográfica aqui esboçada possui ao mesmo tempo suas limitações (em termos de alcance) e suas particularidades (a ênfase em apenas uma das muitas modalidades do ser professor). A vaga de substituto, se bem me lembro, foi aberta em função do falecimento do professor Luís Roberto Lopes, em julho de 2004, e fui incentivado a tentá-la pelo Temístocles, que me ligou para comentar sobre a oportunidade e para que eu avaliasse a possibilidade de concorrer a ela. Naquele momento, como eu dispunha de bolsa, não me passava pela cabeça buscar outras formas de renda, mas a perspectiva de atuar como docente em uma universidade era algo que não poderia desconsiderar, fosse do ponto de vista financeiro, pois seria viável conciliar a bolsa com a remuneração, fosse da experiência que se poderia adquirir, embora hesitasse diante da possibilidade de encarar uma turma de estudantes, vários deles com idade muito próxima a da minha. Creio que, como muitos discentes da graduação e mesmo da pós-graduação, eu não me sentia efetivamente preparado para a tarefa. Minha prática com as disciplinas da licenciatura não foi das mais relevantes. Independente disso, o exercício efetivo da docência talvez seja a forma mais adequada de preparação para essa atividade: seria preciso aprender a dar aula dando aula. Então, resolvi enfrentar a seleção. Como se tratava de um processo simplificado, consistindo em análise de currículo e entrevista com uma banca formada por professores do Departamento, sem prova didática, talvez eu conseguisse disfarçar as lacunas pedagógicas de minha formação. Na entrevista, as professoras Carla Brandalise, Carla Rodeghero e o professor Luiz Dario Ribeiro formavam a Comissão de Seleção. O Dario tinha inúmeras reservas quanto 115 àquela forma de compreensão da história com que muitos orientandos do Temístocles operavam, e ele não se constrangia em manifestá-las sempre que possível (o que não significava que mantinha alguma relação de disputa com Temístocles ou qualquer um de seus próximos, muito pelo contrário). A turma da teoria, que lia Michel Foucault, Hayden White, Paul Ricoeur, era para ele formada apenas por quem achava que entre escrita da história e escrita literária não haveria nenhuma diferença teórica mais importante. Éramos, na forma provocativa que ele assumia, sempre entre o jocoso e o sério, os “pósmodernos” da UFRGS, aqueles que, menos do que história, fazíamos algo próximo da literatura (quem dera isso fosse verdade!). Anos depois, após o doutorado e desconfio que pelo fato de eu ter me tornado seu colega de instituição, creio que as provocações do Dario passaram a vir acompanhadas por algo de respeito pelo que fazia. Obviamente, naquele momento da banca, ele não deixaria passar a oportunidade que a situação lhe proporcionava. Não me recordo de absolutamente nada da entrevista, apenas de uma pergunta que ele me fez, falando de forma pausada e em um tom carregado de cerimônia: qual relação seria possível estabelecer entre o Ceará e o Rio Grande do Sul no contexto da história colonial brasileira? E eu, que não tinha ideia do que se tratava, simplesmente confessei minha ignorância. Eis que o “pós-moderno”, que gastava tempo preocupado com os floreios literários da escrita da história, não parecia ser competente o suficiente nos rudimentos próprios do conhecimento histórico! Naquele mesmo dia voltei para casa e fui pesquisar a resposta para aquela pergunta que me desestabilizou no momento da entrevista, tendo encontrado a referência à economia sulina do charque e à seca cearense no século XVIII em um texto do João Fragoso. Passei muito tempo tentando me convencer de que o fato de não ter feito a graduação no Rio Grande do Sul me isentava de conhecer aquele tipo de informação. Mas, no fundo, era apenas um mecanismo compensatório por ter caído na pegadinha do professor marxista que zombava do grupo da teoria. De qualquer forma, assim como o desconhecimento de Koselleck não evitou que eu entrasse no mestrado, minha ignorância com relação à história do charque no Brasil setecentista não impediu que eu fosse aprovado no processo seletivo. Talvez o restante da entrevista tenha mostrado à banca alguma qualidade que pudesse ser positiva para o preenchimento da vaga, não me lembro bem. O fato é que o doutorando recém-saído do mestrado tornavase, então, ainda que de forma provisória, um professor universitário. 116 No primeiro semestre em que comecei a lecionar, fiquei encarregado da disciplina que “era do Lopes”, Cultura Brasileira, além de Introdução à História do Brasil, voltada sobretudo para os estudantes das ciências sociais. Nessa minha memória que funciona na forma de um mosaico de fragmentos dispersos, guardei também a sensação da primeira aula ministrada. Aquela hesitação do início ganhava uma camada psicológica que se convertia em algo próximo ao pavor. O nervosismo em falar em público que trazia desde os tempos da graduação assumia novas e até então desconhecidas proporções. Era toda uma outra forma de decoro que se impunha para mim, acostumado sempre a ocupar o assento da escuta silenciosa em uma sala de aula, nunca o lugar de quem detém a obrigatoriedade da fala. Vesti trajes eruditos para o primeiro encontro: um paletó de veludo meio bege, com recortes de couro costurados no cotovelo, que havia comprado por aqueles idos em um brechó de Porto Alegre. Que o disfarce na vestimenta pudesse disfarçar a insegurança daquilo que, seis anos após minha entrada na universidade, eu não estava de forma alguma preparado para enfrentar! Mimetizando consciente ou inconscientemente os professores e professoras que mais admirava, ministrei a aula a partir de anotações manuscritas, tendo passado todo o período sentado diante da mesa reservada ao professor. Mais do que a transmissão de conteúdos, gostava de pensar a aula como um espaço para o desenvolvimento de uma argumentação (ainda hoje tento seguir por esse caminho). Uma aula com começo, meio e fim; em outras palavras, a aula pensada como texto, valendo-me livremente da feliz expressão de Ilmar de Mattos.1 E a disciplina de Cultura Brasileira foi toda elaborada tendo por chave analítica a questão da nação e da identidade nacional. A proposta era pensar como um conjunto discursivo produzido desde o século XIX nos campos da história, mas também da literatura, das artes, do cinema e da música concorriam para definir o que se chamava ainda naquela época, embora já em tom crítico, de “caráter brasileiro”. Conseguiria, assim, aproveitar uma parte importante das discussões a respeito da história da historiografia brasileira e um pouco da tese que estava escrevendo, mas também uma série de materiais que me interessavam pessoalmente, para além dos objetos da pesquisa. E fomos, então, os estudantes e aquele jovem professor que tentava a todo custo camuflar sua insegurança, percorrendo um caminho 1 MATTOS, Ilmar Rohloff de. “’Mas não somente assim!’ Leitores, autores, aulas como texto e o ensinoaprendizagem de História”. Tempo, vol. 11, n. 21, 2006, p. 5-16. 117 que ia das saudosas palmeiras de Gonçalves de Magalhães até as batidas impetuosas do maracatu de Chico Science & Nação Zumbi. A experiência de tentar amarrar temas dispersos e conectar contextos distintos a partir de um eixo argumentativo específico, e tudo convertido em um plano de aula que poderia facilmente se converter em texto, foi marcante e certamente me ajudou a melhorar minha própria maneira de escrever. Para a disciplina voltada aos estudantes das ciências sociais, Introdução à História do Brasil, o programa percorria uma série de autores e autoras que discutiam temas da história cultural, política e econômica brasileira, desde seus primórdios canônicos do século XVI, até as primeiras décadas do século XX. Unindo o útil ao praticável, muitas das aulas para uma disciplina eram adaptadas para a outra. Mas também aproveitava uma série de leituras que havia feito dos tempos em que era bolsista do CEDOPE, na UFPR, e tratava de temas ligados à história da família e do cotidiano, inclusive propondo discussões a partir de cópias de registros paroquiais que tinha guardado em meus arquivos pessoais. Também aproveitei muito das discussões propostas pelo prof. Carlos Lima, cujo doutorado havia sido feito no Rio de Janeiro, e dialogava com a obra de Manolo Florentino e João Fragoso. Gostava ainda de trabalhar a partir do Trato dos viventes, do Luiz Felipe de Alencastro, obra cuja densidade documental, conciliada com um estilo de escrita muito particular, sempre me cativou. Estavam lá também as bruxas e os pecados de Laura de Mello e Souza e Ronaldo Vainfas, leituras que trazia dos tempos da graduação. Tal disciplina contribuía igualmente para a experiência prática de montar um curso cujo tema não era vinculado aos meus interesses de pesquisa. Forçou-me a estudar muito e o fiz com certo prazer e muito interesse. Foi no ano seguinte, porém, já em 2005, que as coisas realmente se concretizaram para mim enquanto docente, pois fiquei encarregado de ministrar tanto a disciplina de Introdução à História, para estudantes do primeiro semestre, como a disciplina de Teoria e Metodologia da História I, voltada para graduandos da terceira etapa do curso. Poderia a partir dali tentar colocar em prática aquilo para o que eu vinha me preparando desde o fim de minha graduação. No caso de Introdução, as aulas eram nas segundas pela manhã, fazendo de mim a primeira pessoa com que os alunos e as alunas ingressantes teriam contato naquele semestre. O programa da disciplina refletia bem as discussões que travávamos naquele momento, assim como explicitava sua precariedade autorreflexiva e os vieses cujo questionamento parece hoje ser norteador 118 dos debates. Na ementa, constavam vinte textos, todos de autores homens brancos, sendo apenas seis de brasileiros. Ali estavam Hartog, Certeau, Koselleck, Bloch, Rüsen, Darnton, Febvre, Le Goff, Foucault, entre outros. Estavam também o Manoel e o Temístocles, além de Fico e Polito. Lendo aquele programa com os olhos de hoje, não há como desconsiderar seu caráter eminentemente conservador. Sobretudo porque uma série de debates importantes para a transformação política do campo, como os estudos de gênero, das relações étnico-raciais, da decolonialidade e a crítica ao eurocentrismo já estavam disponíveis há bastante tempo, embora tardassem ainda a serem incorporados plenamente na agenda de discussão da história da historiografia produzida por aqui. De qualquer forma, se eu ainda apenas tangenciava aqueles debates e formas de abordagem que tensionavam o fazer histórico, bem como colocavam sob o viés crítico o caráter predominantemente etnocêntrico da teoria da história que meu programa revelava, por outro lado havia na proposta, com todas as suas limitações, um convite para que estudantes recém ingressados no curso suspendessem por um momento as familiaridades mantidas com a história aprendida no ensino médio e questionassem eles próprios os significados do que, naquele momento, era para eles sua própria escolha pela história. Ainda que em grande medida de forma inconsciente, estava prestando uma forma de tributo à Ana Maria, em cujas aulas aprendi a suspeitar das evidências e buscar um caminho próprio para formular meu entendimento sobre os significados do conhecimento histórico. E nessa proposta, eu tive a imensa sorte de me deparar com uma turma de estudantes que, de fato, definiu minha trajetória docente. De um lado, eram estudantes que estavam iniciando sua formação na historiografia, de outro, era eu que principiava a docência como uma etapa importante em minha vida acadêmica. Com aqueles alunos e alunas tive a liberdade e a abertura para, entre acertos e erros, começar a tatear efetivamente na profissão e no modo de vida que escolhi para seguir. Dois deles posteriormente se tornaram orientandos de pósgraduação e hoje me privilegiam com a relação da amizade: Eduardo Wright Cardoso, agora professor do Departamento de História da PUC/RJ, e Pedro Telles da Silveira, que por um breve período se tornou meu colega de instituição antes de assumir o posto de professor no Departamento de História da USP. Ambos atuam no campo da teoria da história e da história da historiografia. 119 Se por um lado a atuação como professor substituto na UFRGS, durante os primeiros anos do doutorado, reduziu o tempo que pude dedicar à pesquisa – ainda mais considerando que justamente naquele momento, por razões familiares, eu residia em Caxias do Sul, fazendo o trajeto de 130 km entre duas e três vezes por semana para as aulas (saindo cedinho e retornando tarde da noite), e dividia o tempo entre pesquisa, preparação de aulas e os cuidados com a Valentina –, por outro me possibilitou uma experiência fundamental nas tarefas de planejar um curso, montar seu programa, selecionar a bibliografia, elaborar os planos de aula, corrigir trabalhos, avaliar estudantes e todas as demais tarefas institucionais que definem a rotina da docência. Sobretudo, permitiu criar desenvoltura didática para os momentos de sala de aula, proporcionando melhores condições para que eu pudesse prestar concursos para postos efetivos, reduzindo a hesitação e diminuindo os efeitos da insegurança. Isso foi para mim decisivo nos concursos que prestei ao final de meu doutorado. Um deles foi para uma vaga de História Cultural (ou algo próximo disso, não me recordo bem o título), aberta pela Universidade Estadual do Paraná, no campus de Marechal Cândido Rondon. Fui bemsucedido e aprovado em primeiro lugar, mas a situação política do estado naquele momento talvez tenha sido um fator complicador para que eu assumisse a vaga, pois a nomeação demorou muitos meses para ser publicada, o que fez com que eu direcionasse meus esforços para outra possibilidade mais diretamente ligada aos meus interesses acadêmicos. Como mencionei ao final do capítulo anterior, no primeiro semestre de 2008 o Departamento de História da UFOP, abriu uma vaga para professor de Historiografia Brasileira e enxerguei ali uma boa oportunidade para tentar me inserir num cargo permanente, já que a incerteza quanto à nomeação no Paraná permanecia. Tratava-se de uma escolha com inúmeras repercussões pessoais, mas que não poderia deixar passar, considerando a área para a qual o concurso fora aberto e levando em conta que o período de minha bolsa de estudos já havia terminado. Assim, questões práticas e acadêmicas pesaram para minha decisão e dediquei um tempo considerável na preparação do concurso. O período de inscrições se encerrava no dia 15 de abril e defendi minha tese um dia antes. O grande problema era que a documentação precisaria ser entregue fisicamente na universidade. Na impossibilidade de ir presencialmente à cidade de Mariana, resolvi pedir, não me recordo para quem, indicações de pessoas que 120 poderiam me representar na condição de procuradores. Foi neste momento que conheci a Isis Pimentel de Castro, que havia feito seu mestrado na UFRJ, sob orientação do Manoel Salgado, e era professora substituta do Departamento de História da UFOP. Os caminhos e as pessoas que me levaram até ela eu não conseguiria reconstituir nem recordar, mas gentilmente aceitou a incumbência e protocolou minha inscrição. 2 A parte administrativa estava feita, restava enfrentar as três etapas da avaliação: prova escrita, prova de aptidão didática e julgamento de títulos. Estava razoavelmente bem-preparado, os pontos para as provas eram de meu alcance teórico e a formação na UFRGS, junto com o grupo de teoria, proporcionou-me uma base sólida. Meu currículo trazia já alguns artigos publicados durante a graduação e outros resultados de pesquisas e trabalhos do mestrado, e tinha a experiência docente para a preparação de uma aula minimamente adequada. Dificilmente a história do charque no Brasil colonial seria cobrada e ninguém da banca me conhecia. A sorte estava lançada. Durante a realização do concurso, fiquei hospedado em um hostel próximo ao Instituto de Ciências Humanas e Sociais da UFOP. Foi ali que me preparei e ensaiei a aula para a prova didática. Lembro-me que nas caminhadas pela cidade, entre uma prova e outra, comprei o Silêncio na chuva, do Luiz Alfredo Garcia-Roza, romance policial que me ajudou a tranquilizar a cabeça durante os momentos de maior ansiedade. Além disso, o clima entre candidatos e candidatas era bastante amistoso e foram bons momentos de confraternização. Em uma mesa de bar com alunos e professores, pude conhecer pessoalmente a Isis e agradecê-la pela sua generosidade, conheci também um dos meus “concorrentes” que se tornou um querido amigo, Mateus Henrique de Faria Pereira, que hoje integra o quadro docente daquele Departamento. 2 Durante o XII Teoria e de História da Historiografia, ocorrido na UFOP entre 26 e 30 de agosto último, encontrei Isis e pudemos conversar brevemente sobre o assunto. Ela me informou que a intermediária havia sido a Taíse Quadros da Silva, que à época fazia doutorado no Rio de Janeiro também sob orientação do Manoel. Além disso, recordou-se a forma hoje inusitada pela qual enviei a procuração: por um fax. 121 Folha de rosto do livro O silêncio da chuva, de Luiz Alfredo Garcia-Roza, adquirido em maio de 2008, em Mariana, durante o concurso para a UFOP. Na prova escrita, embora não me recorde exatamente o título do ponto, lembrome de ter discorrido a respeito dos autores que faziam parte daquele contexto em que “um bando de ideias novas” adentrava nas rodas literárias do Brasil nas últimas décadas do século XIX. Ter sido colega e ter lido os trabalhos do Hilton Costa, do Rodrigo Turin e da Maria da Glória de Oliveira na pós-graduação ajudou muito na minha preparação. Após a escrita, todos os candidatos liam publicamente suas provas, o que já possibilitou termos uma noção do que estava em jogo e pude sentir que estava no páreo. Na prova didática, o tema versava sobre alguma coisa a respeito de métodos na historiografia, e em minha aula, talvez de forma imprudente, cheguei até a citar o Methodus que Jean Bodin publicou em 1566 e que eu havia descoberto durante minha estada em Paris. Fui aprovado em primeiro lugar e a angústia da falta de renda após o término da bolsa duraria apenas alguns poucos meses mais, pois fui informado que a nomeação seria rápida. 122 Os tempos do Seminário de Mariana Em julho de 2008 fui nomeado docente na UFOP e ingressei na carreira federal do magistério superior, dessa vez como professor efetivo. Minha incumbência era ministrar a disciplina de Historiografia Brasileira e outras mais ligadas ao campo da teoria da história. Aquele gosto pela reflexão teórica que as aulas do professor Sergio Nadalin me despertaram pouco mais de uma década antes e que o contato com a Ana Maria ajudou a consolidar, sendo posteriormente aprimorado no diálogo com o Temístocles e o grupo da UFRGS, agora se tornava algo mais do que uma simples predileção intelectual e se convertia em profissão. Eu adentrava no mundo do trabalho acadêmico na condição de servidor público e, mais importante de tudo, seria remunerado para fazer o que tinha prazer: pesquisar e lecionar sobre história da historiografia. Trecho do Diário Oficial da União, de 17 de julho de 2008, com minha nomeação para o cargo de professor do Departamento de História da UFOP. Nestes variados tempos da obra, os tempos do Seminário de Mariana (Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte), construção datada do século XVIII que hoje abriga o ICHS da UFOP, trazem-me lembranças muito prazerosas. Já em 22 de agosto, ou seja, pouco mais de quatro meses após a defesa do doutorado, iniciei minhas atividades docentes com Historiografia Brasileira, disciplina que ministraria com enorme satisfação outras cinco vezes até o primeiro semestre de 2011. Cheguei mesmo a dar título para o curso: “O Brasil não é longe daqui”: discursos de fundação e historiografia, 1730-1930, e elaborei uma ementa que ainda hoje me parece interessante: 123 O curso tem por intenção apresentar uma reflexão sobre a historiografia brasileira nos momentos decisivos de constituição de uma certa ideia de história e de nacionalidade, bem como de uma historiografia propriamente nacional. As balizas temporais recortam, grosso modo, o período que segue desde a historiografia luso-americana setecentista, passando pela fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1838, até a década de 1930, época de consolidação de uma tradição ensaística de interpretação dos “problemas brasileiros”, a qual antecede o contexto da instituição das universidades no Brasil e a consequente profissionalização da prática historiográfica. Nesse sentido, a temática norteadora incide tanto em uma reflexão epistemológica sobre os princípios definidores do conhecimento histórico e da escrita da história no Brasil, como sobre o papel do saber histórico na produção de discursos de fundação da nacionalidade, isto é, na relação entre historiografia e identidade nacional, e também no papel do historiador enquanto “inventor” de tradições culturais. De início, uma discussão teórica sobre as noções de historiografia e de operação historiográfica. Em seguida, um recorrido por dicionários e dissertações acadêmicas do século XVIII (os Esquecidos e os Renascidos), alguns comentários sobre Rocha Pitta antes de chegarmos ao século XIX e o contexto da independência. O tema da nação, em contrapartida com aquele do império que amparava a escrita da história setecentista, começava a ganhar forma. Os variados “discursos do método” que apareciam na Revista do IHGB e na obra monarquista de Varnhagen precediam as discussões sobre o republicanismo da chamada “geração de 1870”. Silvio Romero e sua História da literatura emergia como expoente daquela tradição de polígrafos, junto com Capistrano de Abreu e Euclides da Cunha. Manoel Bomfim, Oliveira Vianna e Paulo Prado também contribuíam para as discussões do contexto. Dali eu começava a me aproximar do tema de minha tese e a virada para o século XX, marcada por um contexto de crise política e de descompasso na ordem do tempo, preparava as discussões sobre os ditos ensaístas das décadas de 1930 e 40. O curso terminava com a tríade clássica: Caio Prado, Freyre e Sergio Buarque. Havia, e isso é inegável, um sentido linear no percurso, embora eu fizesse o possível para evitar qualquer princípio teleológico na abordagem. Mas qualquer proposta que se pretenda um panorama não consegue evitar de todo certo apego à sucessão cronológica. O que me parecia bastante positivo era o trabalho que eu tentava realizar, sempre conciliando discussões conceituais (império, nação, história, povo, identidade, ciência, raça, ensaio etc) com um contato direto com as “fontes” do curso. Assim, líamos verbetes e trechos de dissertações do século XVIII, discursos, artigos, memoriais do século XIX, prefácios, capítulos entre outros gêneros próprios ao século XX. E isso acompanhado por referências bibliográficas que ajudavam a dar amplitude ao 124 curso. Estavam lá na primeira versão do curso a Iris Kantor, o Valdei Lopes de Araujo, a Lúcia Bastos Neves, o Manoel Salgado, o Temístocles Cezar, o Rodrigo Turin, a Maria da Glória, o Luiz Costa Lima, o Hugo Hruby. Conforme os semestres passavam outros autores e autoras passavam a ocupar espaço no programa da disciplina: Rebeca Gontijo, Karina Anhezini, Thiago Nicodemo, Antonio Celso Ferreira, Fábio Franzini entre outros. Com o passar do tempo, fui aventando a ideia de escrever um pequeno livrinho, de caráter introdutório, sobre a história da historiografia brasileira, com muitas citações de fontes e quadros explicativos de conceitos. Quem sabe se tivesse permanecido mais tempo na UFOP a ideia ganhasse concretude. Creio que essa é ainda hoje uma lacuna em nosso mercado editorial. Como docente efetivo, tive também a oportunidade de ministrar outras disciplinas obrigatórias do currículo, como História da Historiografia e Teoria da História, além de disciplinas eletivas que permitiam uma liberdade ainda maior para a definição dos recortes e dos objetivos. Em uma delas, propus a discussão sobre os conceitos na história e a história dos conceitos (este era o título que havia dado) e em outra sugeri algo paralelo ao que trabalhava em Historiografia Brasileira e intitulei Estudos sobre a escrita da história no Brasil, que permitia tratar de forma mais verticalizada outros autores e textos que não conseguia encaixar na disciplina obrigatória. Mas além da atividade de docência em sala de aula, começava aquela que talvez seja uma das atividades mais difíceis do trabalho acadêmico: a orientação. Seja na iniciação científica, seja em trabalho de conclusão, tanto entre graduandos como pós-graduandos, tive a sorte de trabalhar com estudantes muito dedicados e competentes. Na graduação, Tatiana Mol Gonçalves, Dalton Sanches, Piero Di Cristo Detoni, Clayton José Ferreira, trabalhando com temas relacionados à historiografia brasileira, e Mayra de Souza Marques, atuando como bolsista no campo da história da historiografia moderna, todos eles de modo geral, e cada um deles segundo suas particularidades, mostraram-me facetas distintas do ser orientador, essa figura que permanece entre o docente e o pesquisador, puxando coisas de cada um deles, mas sem se confundir plenamente com nenhum dos dois. Talvez resida aí a complexidade dessa tarefa, além do fato de que ela acaba criando vínculos que são difíceis de precisar. Se alguns orientandos acabam se tornando amigos e ganham certa intimidade, outros, mesmo que um pouco mais distantes, ainda assim mantêm uma proximidade muito maior do 125 que as centenas de estudantes com que já me relacionei nas dezenas de disciplinas que ofereci. O trabalho de orientação nos coloca outros desafios e dilemas sobre os quais comentarei mais adiante. Mas um ponto que para mim sempre foi imprescindível, embora nem sempre tenha conseguido praticar da forma como gostaria, é o trabalho coletivo, a discussão conjunta, a atuação a partir de um grupo. Trago isso dos tempos da Vernáculo, desenvolvi melhor com a turma da teoria na UFRGS e meus anos de UFOP foram essenciais para consolidar essa prática em minha forma de trabalhar. Tanto no Departamento quanto no Programa de Pós-Graduação, ao qual me vinculei já em 2009, essa forma coletiva de trabalho foi sempre algo que caracterizou os anos em que estive em Mariana. Antes de mais nada, porque o Núcleo de Estudos sobre Historiografia e Modernidade (NEHM), criado em 2007, foi o grupo que me abrigou desde a minha chegada na UFOP. Naquele momento, juntei-me aos colegas e amigos Helena Mollo, Sérgio da Mata e Valdei Araujo, grupo que contaria ainda com a participação no ano seguinte de Mateus Pereira, que assumiria vaga aberta em ensino da história após uma curta passagem pela Universidade de Uberlândia. Já em agosto de 2008, momento de minha instalação em Minas Gerais, foi realizada a segunda edição do Seminário Nacional de História da Historiografia e tive a oportunidade de ter uma dimensão mais ampliada do que era o campo da história da historiografia no Brasil naquele momento e a consciência mais precisa de que a turma da UFRGS era tão somente uma fração de algo muito maior, que caminhava a passos largos para a consolidação. Quando ingressei no PPG, havia apenas duas linhas em funcionamento: linha 1, com o título “Estado, identidade e região”, e linha 2, “Sociedade, poder e região”. Em 2010 me tornei coordenador da linha 2, justamente no momento em que começaram as discussões sobre a reformulação das linhas de pesquisa do Programa de modo a atender as mudanças no perfil do corpo docente e incorporar novos eixos de atuação a partir das pesquisas, eventos e atividades que eram ali realizados. A linha de que fazia parte assumiu outro nome, “Cultura, ideias e historiografia”, que foi em partes o embrião para a atual configuração daquele PPG, que desde então cresceu quantitativa e qualitativamente, sendo hoje estruturado em três linhas distintas. O que gostaria de salientar é o fato de que todo esse desenvolvimento das ideias que subsidiaram a reorganização teórica, metodológica e prática das linhas de pesquisa foi feito dentro de 126 um espírito coletivo, em que as diferenças de posição certamente estavam bemmarcadas, mas também se mantinha a compreensão de que, mais do que um aglutinado fragmentado de individualidades, o ambiente acadêmico é um todo coeso que funciona dentro de um esforço comum. E tanto melhor se tal esforço for feito tendo por base o princípio do coleguismo e da amizade, mesmo que diferenças teóricas e posições políticas destoantes tensionem os debates. A atuação na pós-graduação abria, assim, condições para uma outra forma de inserção nos processos acadêmicos e administrativos da universidade, possibilitando tomar corpo a reflexão mais ampla sobre os sentidos e os significados do fazer historiográfico enquanto um docente de instituição federal. Ainda na UFOP, entre setembro de 2009 e outubro de 2011, atuei primeiro como membro e em seguida presidi o Comitê de Pesquisa da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, que naquele momento estavam integradas, cuja incumbência era avaliar e dar parecer para os projetos de pesquisa encaminhados por docentes das duas áreas, sobretudo para a distribuição de bolsas de iniciação à pesquisa. Foi também um período de muito aprendizado, conhecendo melhor as formas de atuação de colegas de áreas mais próximas, mas também tendo a oportunidade de conhecer procedimentos de pesquisa de áreas com as quais não tinha muita afinidade ou familiaridade. Certamente este tipo de experiência possibilita a qualquer pesquisador colocar em perspectiva seu próprio trabalho de investigação, da mesma forma como permite uma compreensão mais vasta das diversas formas de inserção acadêmica em determinados espaços da sociedade. Para alguém que desde sempre se embrenhou pelas discussões muitas vezes herméticas do campo da teoria da história, esse olhar para outros lados é de fundamental relevância para que o campo não se torne uma bolha que nos separa do que está fora dela. Além das questões propriamente acadêmicas, o contato mais cotidiano com outras instâncias da administração universitária propicia igualmente perceber as dimensões institucionais de uma universidade pública. Voltando ao tema de minha atuação junto ao PPG, da mesma forma como na graduação, o trabalho de orientação de dissertações de mestrado me colocou outros desafios. Mas também tive a grata felicidade de poder trabalhar com estudantes que facilitaram muito esse trabalho, dado seu comprometimento com a pesquisa. Pude orientar a pesquisa de Valdemir Ferreira Lopes sobre o Sobrados & mucambos, de 127 Gilberto Freyre; a dissertação de Eduardo Wright Cardoso sobre cor local na escrita historiográfica do século XIX, publicada em 2019;3 os trabalhos de Dalton Sanches e Piero Detoni, que já haviam sido bolsistas de iniciação científica, sobre o ensaísmo em Sergio Buarque e sobre a síntese historiográfica na Primeira República, respectivamente;4 e o estudo que Pedro Telles da Silveira realizou sobre a historiografia feita no Brasil durante o século XVIII, posteriormente publicado em livro que tive a honra de prefaciar.5 Aliás, relendo agora aquele curto prefácio, no qual comento brevemente a forma como conheci o Pedro (e o Eduardo e outros colegas daquela turma), percebo o quanto uma boa parte de minha vida acadêmica foi feita a partir desse esforço memorialístico que aqui toma forma institucional. Escrito quando já havia retornado para a UFRGS, o primeiro parágrafo daquele prefácio antecipava o conteúdo de um livro que era resultado de pesquisa realizada na UFOP quando comecei a aprender a ser orientador; nele eu remetia aos primeiros momentos de docência como professor substituto. Essas idas e vindas dão espessura ao tempo. Eram nas segundas-feiras pela manhã, durante o primeiro semestre de 2005. Um estudante de doutorado, tornado professor substituto na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, assumia pela primeira vez a responsabilidade de ministrar a disciplina de Introdução à História para estudantes ingressados no curso, ainda pouco afeiçoados à nova realidade estudantil. A inquietação, portanto, era recíproca: para o professor, aqueles seriam seus primeiros interlocutores na área de estudo para a qual vinha, há algum tempo, tentando dedicar seus esforços de formação intelectual; para os alunos e alunas, aquela figura sentada à mesa diante do quadro, que não conseguia esconder o nervosismo que a situação lhe impunha, era a primeira com a qual manteriam um contato semanal naquele ainda estranho ambiente de ensino. A disciplina teve seu começo e seu fim, transcorreu conforme os modos institucionais requeriam e todos sobrevivemos.6 A experiência na UFOP, atuando naquele Departamento localizado no sempre encantador Seminário de Mariana, cercado pelas “duras penhas” que constituem a paisagem das Minas Gerais, fazendo parte daquele PPG num momento em que ele se repensava e transformava a si mesmo, consolidando sua posição como referência 3 CARDOSO, Eduardo Wright. A cor local e a escrita da história no século XIX: o uso da retórica pictórica na historiografia nacional. Porto Alegre: Editora Fi, 2019. 4 Ver, entre outros, SANCHES, Dalton. “Sérgio Buarque de Holanda e o mal-estar da profissionalização: entre o ensaio e a diferença (1948-1959)”. Revista de História, n. 181, 2022, p. 1-30; DETONI, Piero Di Cristo. É a história uma ciência? Conversações entre Rocha Pombo, Pedro Lessa e Oliveira Vianna sobre a síntese histórica, c. 1878-1938. Curitiba: Editora CRV, 2021. 5 SILVEIRA, Pedro Telles da. O cego e o coxo. Historiografia, erudição e retórica no Brasil do século XVIII. São Paulo: Editora Fap-Unifesp, 2016. 6 NICOLAZZI, Fernando. “Prefácio”. In: SILVEIRA, Pedro Telles da. O cego e o coxo, op. cit., p. 11. 128 nacional, e me juntando ao NEHM, grupo que há quase duas décadas se tornou o protagonista na renovação e na consolidação do campo da teoria da história e da história da historiografia no Brasil, tal experiência deveria ocupar neste Memorial muitas outras páginas. Nelas caberiam ainda as conversas com outros tantos colegas daquele tempo: Fábio, Virgínia, Marco Antônio, Andrea, Claudia, Francisco, Álvaro e outros que foram chegando enquanto eu saía. Meu débito com aquela instituição, com aquela gente de sotaque agradável (ainda hoje forço minha dicção para incorporar um mineirês que sempre soa falso e irreconhecível) é enorme e impagável. Se de fato eu tivesse essa imagem emoldurada e fixada aqui em minha casa, poderia até dizer poeticamente que Mariana é apenas uma fotografia na parede. Mas a referência a Drummond seria equivocada, pois o poeta termina seu poema com a confissão da dor. Minha saudade de lá é de outra ordem, traz a alegria das boas lembranças e das grandes amizades. O retorno ao sul Os tempos do Seminário de Mariana foram de intenso aprendizado, mas eram também tempos em que, por razões pessoais, sempre me vi dividido entre o lá e o cá. Minha vida naquele momento era marcada por uma lacuna e pela impermanência. Talvez durante alguns poucos anos pudesse ser possível manejar com certo equilíbrio a situação; a longo prazo, porém, ela se tornaria insustentável. O retorno ao sul se colocava como uma condição para que pelo menos a lacuna fosse preenchida, embora a impermanência teria que ser contornada de outras formas. Isso me fez tentar, logo em 2009, a vaga em um concurso aberto na Universidade Federal de Pelotas, para a área de Teoria da História e Acervos. Creio que havia sido a primeira vez em que pisei naquela cidade, um tanto maior que Mariana, com alguns interesses locais, mas nem de longe com os mesmos atrativos da cidade mineira. Pelotas para mim tinha a grande vantagem de estar mais perto de Porto Alegre e era isso o que importava. Prestei o concurso, fiz uma prova escrita que considerei muito boa, sobretudo em comparação com as demais que também foram lidas publicamente, e dei uma aula sobre o tema “História e ciências sociais” que ficou bem estruturada, embora com uma ênfase na historiografia francesa que hoje provavelmente me incomodaria bastante. 129 Após terminadas todas as fases, retornei a Porto Alegre para passar um ou dois dias e em seguida seguir viagem para Minas Gerais. Levei uma caixa de doces e a certeza de que tinha chances de ocupar o primeiro lugar na classificação geral. O balde de água fria veio em seguida, quando descobri que sequer havia sido classificado. O sentimento de injustiça normalmente acaba habitando o íntimo de quem é reprovado num concurso público. Nem sempre ele é legítimo, mas naquele caso eu ainda considero que é procedente. Se não por outras razões, ao menos pelo fato de que, algum tempo depois, num encontro fortuito de aeroporto (voltando de algum simpósio nacional da ANPUH), encontrei um dos membros da banca. Eu não o conhecia pessoalmente, mas nos reconhecemos e nos cumprimentamos. Ele comentou que se lembrava de mim pelo concurso e, sem maiores razões para tanto, fez questão de esclarecer que o edital tinha algumas particularidades que favorecia um currículo mais abastado, criando uma desproporção no peso entre as provas. De fato, a pessoa que passou em primeiro lugar (e que permaneceu na UFPEL pouquíssimo tempo), possuía um currículo quantitativamente longo. Tomei aquela conversa casual como um indício de que realmente havia feito boas provas e que o problema foram os detalhes das regras. Mas confesso que fiquei com o sentimento de que havia algo de injusto naquilo tudo. Não recorri do resultado, porque estava de acordo com o edital, tampouco fiz daquela situação algo maior do que deveria ser. De qualquer forma, o retorno ao sul tardaria algum tempo mais. Se trago para este relato aquela situação pontual, não é de modo algum a partir de um desejo de denúncia ou em razão de alguma forma de ressentimento mal resolvido. Não havia nada a questionar à banca pelo resultado final, que estava de acordo com as regras que, de resto, eu conhecia de antemão. Mas a situação é importante porque, neste esforço para dar sentido à trajetória que me trouxe até aqui, o fato de ter sido malsucedido em Pelotas colocou o retorno num tempo de espera que reconheço ter sido fundamental para o que viria em seguida. O ano em que terminei meu doutorado e ingressei na UFOP foi também o primeiro ano em que o Reuni, o grande projeto de reestruturação e expansão das universidades públicas liderado pelo Ministério da Educação durante a gestão de Fernando Haddad, esteve em pleno funcionamento. Era um momento de grandes esperanças e de abertura para um horizonte de expectativa que nos parecia bastante promissor. O investimento nas 130 universidades federais criava um campo de possibilidade que dificilmente será repetido. A condição de recém doutor e de professor efetivo em uma instituição que, pelo menos no que diz respeito à área do conhecimento em que me insiro, colocava-se numa posição de vanguarda permitiu uma verdadeira inserção no campo, algo que muito provavelmente seria distinto caso eu me tornasse docente na UFPEL em 2009. Permanecer por três anos na UFOP acabou sendo providencial para que eu tivesse maiores condições não apenas de retornar ao sul, mas de ocupar a vaga que hoje ocupo. Ela surgiu cerca de dois anos depois do concurso em Pelotas, quando em janeiro foi publicado o Edital de Concursos Públicos nº. 01, de 31 de janeiro de 2011. O Departamento de História da UFRGS, em razão da aposentadoria da professora Silvia Petersen, abriu uma vaga (de número 274269) para a área de Teoria da História e Historiografia. A oportunidade era imperdível e naquele momento me sentia ainda melhor preparado e mais seguro do que quando prestei o concurso para o posto na universidade mineira. As normas previstas no edital e o currículo que apresentava então me colocavam em uma situação em que tinha boas chances de concorrer. A inscrição foi feita e nos meses seguintes, conciliando com as atividades na UFOP, passei a preparar cada um dos doze pontos que compunham o programa do concurso para aquela vaga. Conteúdo programático para o concurso na UFRGS, em 2011. 131 Olhando em retrospecto aquele programa, não há como desconsiderar seu caráter bastante conservador quando comparamos com as características assumidas pelo campo hoje. Temas clássicos, muitos dos quais eram objeto de discussões entre o grupo da teoria durante o mestrado e o doutorado, mas que evidenciavam um inegável sentido teleológico, que seguia desde “as primeiras escolhas gregas”, valendo-me de uma expressão cara a François Hartog, até os dilemas colocados para a história diante da chamada “crise do paradigma da ciência”, ou a velha crise da razão histórica. Entre uma coisa e outra, a longa passagem pela historiografia moderna que iniciava com o humanismo renascentista, atravessava os séculos fundamentais da constituição da disciplina, entre XVIII e XIX, e abordava o senso comum das escolas históricas, sobretudo os Annales e o marxismo britânico. De qualquer forma, ele é também revelador do que era feito naquela década. A banca era composta por especialistas na área: Benito Bisso Schmidt, Durval Muniz de Albuquerque Junior e Carlos Fico. Tratava-se de um concurso efetivamente do campo. Para a prova escrita, o edital tinha uma excentricidade que não parecia fazer o menor sentido: embora permitisse que após o sorteio do ponto da prova escrita os candidatos e candidatas consultassem um material que poderiam levar até a sala (a antiga sala de multimeios do IFCH), era vedado examinar anotações ou textos de preparação elaborados por quem concorria à vaga. Ou seja, podíamos levar a bibliografia, mas não nossas anotações sobre a bibliografia. Isso nos obrigava a entrar na sala com malas enormes onde coubessem os livros e artigos que ajudariam a desenvolver o ponto sorteado, entre os doze do programa. Ainda que eu tivesse condições para escrever textos minimamente adequados para cada um dos pontos, obviamente teria mais facilidade com uns do que com outros. E foi neste momento que a sorte se fez amiga, colaborando para que o tema que caberia a nós discorrermos fosse o último do programa, justamente aquele sobre o qual havia ministrado cursos semestrais nos últimos três anos. A memória é turva para que eu possa me lembrar com mais detalhes, mas imagino que quando a banca enunciou as palavras “historiografia brasileira” um misto de alegria e alívio tenha tomado conta de mim. Este era o único ponto para o qual eu não havia levado nenhum material para consultar, pois bastava colocar por escrito os 132 cursos que ministrava na UFOP. Mais do que lembrar do que precisava ser dito, estava tão acostumado com o tema que bastava vertê-lo ao papel. Foi o que fiz: após pedir autorização à banca, ao invés de aproveitar o tempo disponível para consulta do material que, de todo modo, eu não tinha levado, passei desde o primeiro momento à escrita do texto. E lá se foram 19 páginas, todas manuscritas, em uma caligrafia que tem dimensões pequenas, letra corrida e difícil de ser decifrada. Meu texto discorreu sobre as condições de possibilidade para o surgimento de uma historiografia propriamente universitária (ou profissional, como pensava naquele momento), seguindo um percurso mais ou menos cronológico de duzentos anos e razoavelmente rico em referências, desde o século XVIII, tendo como marco a obra de Rocha Pita em 1730, até os ensaístas da década de 1930 do século XX. Essa primeira etapa havia sido cumprida e me colocava entre os concorrentes. Faltavam as outras duas; uma delas, a prova didática. O ponto que me coube tinha por título “Singularidade e história no Romantismo”. Nunca é fácil dar aula em uma situação de concurso, pois não se trata de uma exposição marcada pelo diálogo e pela alta dose de improviso que normalmente ocorre em aulas regulares. Além, obviamente, do fato de que uma parte importante da plateia não está ali para ser avaliada ao final da disciplina, mas sim para avaliar e atribuir uma nota que poderá ou não o habilitar a se tornar professor efetivo daquela instituição. Preparei uma aula a partir da bibliografia que tinha disponível e que havia adquirido quando realizava minhas pesquisas em Paris. O percurso situava o contexto historiográfico do final do século XVIII e início do XIX, mencionando o ambiente alemão (Herder), mas situando o eixo do argumento com autores franceses, fazendo tudo girar em torno de Michelet, que havia lido com certa constância durante meu doutorado. A prova didática havia sido a última, pois antes dela enfrentamos a chamada defesa da produção intelectual, onde precisávamos expor o percurso seguido até ali e responder as perguntas a respeito do projeto de pesquisa que apresentamos como parte dos requisitos para a inscrição no concurso. Ainda tenho os arquivos daquele processo e olhando o currículo que apresentei à época percebo como minha trajetória foi bastante favorecida pelo fato de eu ter me formado, seja na graduação, seja na pós-graduação, com professores vinculados diretamente à área da teoria da história e da história da historiografia. Além disso, os anos na UFOP, como já indiquei, foram determinantes. Meu currículo em 2011 133 apresentava quinze artigos publicados: três durante a graduação, seis como resultado dos estudos do mestrado, três que resultaram de capítulos da tese, outros três que eram anotações de aulas e de trabalhos realizados durante os anos de docência na UFOP. Além disso, havia outro artigo que constava como aceito para publicação e dois capítulos de livros. Considerando que eu havia ingressado no curso de história 14 anos antes, que havia concluído meu doutorado havia apenas três anos, creio que tais números mostram um contexto institucional bastante singular, em que não apenas o doutorado se colocava como condição sine qua non para se tornar professor efetivo, mas também uma produção intelectual que apresentasse números quantitativamente consistentes e pudesse me colocar na disputa com as demais pessoas que concorriam à vaga, a grande maioria com produção altíssima e atuações variadas. Acompanhando a situação hoje, não há dúvidas de como ela ficou ainda mais acirrada e competitiva. Mas se o currículo preenchia alguns dos requisitos básicos que eram demandados e me garantia alguns pontos importantes na tabela de pontuação do concurso, era preciso “defender” minha produção diante de uma banca de especialistas. O projeto de pesquisa que apresentei, e que posteriormente, em forma mais elaborada, possibilitou que eu ocupasse um posto de pesquisador de produtividade do CNPq, tinha por título Erudição e crítica no alvorecer da época moderna. Tratava-se de leituras que fiz simultâneas aos estudos sobre Freyre durante minha estada de pesquisas na BNF, em Paris. Comentarei com mais vagar sobre isso no capítulo seguinte, mas por ora cabe indicar que em minha trajetória isso significou um recuo temporal até os séculos XV e XVI, pois meu objeto principal de estudo era a obra Método para a fácil compreensão da História, publicada em 1566 pelo filósofo e jurista francês Jean Bodin. Defender tal projeto não foi das tarefas mais fáceis e a banca, como não poderia ser diferente, foi bastante intensa nas críticas e nos questionamentos. Em alguns momentos, tomei a liberdade de discordar do que me era colocado, pois as questões não davam conta do tema que eu apresentava. Embora fosse uma banca da área, não era composta por especialistas sobre o período. Ao que tudo indica, o debate foi positivo e tanto minha produção intelectual como o projeto proposto foram considerados pertinentes para o preenchimento daquela vaga. No dia 17 de junho de 2011, então, no Panthéon do IFCH, o concurso que havia começado no dia 13 chegava ao fim. No meio daquela tarde era realizado o “ato de 134 abertura dos envelopes, cálculo das notas finais, das médias finais e proclamação dos resultados do Concurso”, como constava no cronograma publicado. O resultado foi positivo, obtive notas aceitáveis que me colocaram na primeira posição. A partir de setembro daquele ano passaria a ocupar a vaga que fora aberta pela aposentadoria da professora Silvia Petersen, uma referência na área. O retorno ao sul seria, enfim, uma realidade e, do ponto de vista pessoal, não estaria mais dividido entre dois mundos apartados por centenas de quilômetros. A lacuna seria preenchida e nas ilusões autobiográficas que um relato como esse nos provoca, posso dizer que minha vida ganhava mais sentido. As transformações no campo Quando assumi definitivamente o posto que hoje mantenho na UFRGS, o país ainda vivia um contexto de amplas expectativas políticas e sociais. Era o primeiro governo de Dilma Rousseff após os dois anteriores que o ex-presidente Luiz Inácio deixou com 83% de aprovação, o Reuni já dava sinais dos profundos efeitos que teria na sociedade, pouco depois a lei de cotas para o ingresso nas universidades federais era aprovada, e ainda estávamos longe de toda a turbulência que marcou o período iniciado em 2013. Tal distância, obviamente, não pode ser medida em tempo cronológico, mas sobretudo em experiência de tempo: afinal, se entre uma coisa e outra havia tão somente dois anos, o acontecimento 2013 era sobretudo algo da ordem do imprevisível em 2011. Hoje temos melhores condições para fornecer explicações consistentes para todo aquele processo histórico, perpassando suas razões mais duradouras e que remontam a questões estruturais de nossa sociedade, mas tenho a impressão de que nada daquilo poderia sequer ser imaginado na década que iniciava com a primeira mulher ocupando o posto de Presidenta da República e com as perspectivas esperançosas que nos alimentavam. Para mim, do ponto de vista pessoal, com o retorno ao sul o futuro abria seus horizontes como algo benfazejo e promissor. O campo intelectual em que atuava e ainda atuo estava plenamente consolidado: havia um número crescente de pesquisadores e pesquisadoras, nos diferentes níveis universitários, que davam consistência e massa crítica para a área da teoria da história e da história da historiografia no Brasil. Linhas de pesquisa, eventos acadêmicos, revistas 135 especializadas, uma entidade que aglutinava as pessoas interessadas, tudo isso estava em pleno funcionamento naquele momento. Embora me seja impossível aqui tentar esboçar um quadro geral da historiografia que era então praticada, alguns sinais são relevantes de serem mencionados neste Memorial, pois tiveram inegável impacto em minha trajetória. Elas dizem respeito a certos deslocamentos nos eixos de discussões que eram até então realizadas e que, a meu ver, transformaram profundamente as formas de se pensar o lugar da reflexão teórica na historiografia. Sobretudo quando se leva em conta nosso contexto acadêmico, que não poucos colegas estrangeiros consideram ser bastante específico em razão justamente dessa organização institucional do campo na área ampliada da história e mesmo das ciências humanas. Quando, por exemplo, foi estabelecida a International Network for Theory of History, em 2012, criada a partir da percepção de uma fragmentação do campo e do isolamento de seus pesquisadores, sobretudo aqueles da Europa e dos Estados Unidos, no Brasil era justamente o contrário o que ocorria e todos nós deixávamos reservado nas agendas, sempre em agosto, o espaço para a viagem à Mariana.7 Uma das principais mudanças que percebo nos rumos do campo atualmente diz respeito a transformações temáticas, mas com profundos impactos nos modos de se fazer a pesquisa em teoria e história da historiografia e, além disso, com efeitos políticos evidentes, inclusive na forma como pesquisadores e pesquisadoras se identificam intelectual e socialmente. Apenas a título de exemplo ou como mero exercício argumentativo, basta atentarmos aos sumários da revista História da Historiografia ao longo do tempo. Seu primeiro número, de 2008 e publicado efetivamente em maio do ano seguinte, trazia entre os artigos questões, digamos, “clássicas” do campo: um texto sobre história e estruturalismo colocado sob a ótica da velha disputa entre Braudel e Lévi-Strauss; um estudo sobre sentido histórico em Jörn Rüsen; noções de passado e futuro a partir da noção de cultura historiográfica (com farta bibliografia europeia e algumas poucas concessões a nomes brasileiros, entre os quais, o próprio autor do 7 O Seminário Nacional de História da Historiografia (SNHH), hoje Seminário Brasileiro de Teoria e História da Historiografia, iniciado em 2007, ocorreu anualmente até 2012, sempre em Mariana e sediado pela UFOP. Em seguida, passou a ser bianual e, embora tenha sido sediado em outras cidades e instituições (como em Vitória, na UFES, e em Guarulhos, na UNIFESP), a UFOP tem permanecido seu lócus privilegiado. Algumas das páginas que escrevo neste Memorial foram apresentadas em Ouro Preto, na décima segunda edição evento que ocorreu este ano, entre os dias 27 e 30 de agosto. 136 artigo); uma análise sobre os conceitos de retórica, tempo e verdade em Tácito; por fim, o tema da transição de épocas na obra de Droysen.8 No número seguinte, um dossiê que tive a oportunidade de coordenar tratava da história da historiografia brasileira, entre fins do século XIX e começo do XX, a partir da chave da escrita da história. 9 Já sua edição de número 17, publicada em junho deste ano, inicia com um artigo que coloca Reinhart Koselleck em diálogo direto com Ailton Krenak, tensionando as categorias já canônicas de espaço de experiência e horizonte de expectativas com a ideia temporalizada de ancestralidade.10 No ano anterior, o dossiê intitulado “Corpos, tempos, lugares da historiografia”, organizado por Patrícia Hansen e Maria da Glória de Oliveira, trazia para o primeiro plano as discussões em torno das políticas de reconhecimento e seus efeitos na reflexão teórica sobre a história. Assim, se em 2008 Rüsen era mobilizado para tratar de racionalidades e sentido histórico, agora Durval Muniz de Albuquerque Júnior mobilizava “as carnes” para situar no âmago da prática historiográfica a dimensão dos desejos e dos afetos. O mesmo dossiê ainda trazia um artigo sobre a historiadora e escritora Saidya Hartman, autora do impressionante Perder a mãe; textos que analisavam historiadoras importantes da historiografia brasileira, como Alice Canabrava e Beatriz Nascimento; uma análise elaborada a partir das premissas epistemológicas do ecofeminismo; um estudo sobre as noções de tempo e história entre os Mbyá-Guarani do sul do Brasil; além de reflexões feitas a partir das epistemologias andina e africana. 11 Creio não ser necessário muito esforço para se constatar as significativas diferenças entre um contexto e outro, separados por cerca de uma década e meia. E quando recorremos às páginas de outro importante periódico do campo, a Revista de Teoria da História, o diagnóstico não é muito diferente. Se o tema mais amplo da escrita da história permanece como algo central nas pesquisas feitas no campo, parece-me também que ele ganhou algumas camadas teóricas que, concordando ou não com elas, hoje são incontornáveis para a atuação de quem procura nele se inserir. Talvez um dos indícios mais significativos disso seja o debate publicado na revista Esboços, do PPGHistória da UFSC, em 2023, tendo por título “Temporalidade, colonialidade, 8 História da Historiografia, vol. 1, n. 1, 2008. História da Historiografia, vol. 2, n. 2, 2009. 10 História da Historiografia, vol. 17, n. 44, 2024. 11 História da Historiografia, vol. 16, n. 41, 2023. 9 137 racialidade”.12 Nele, a provocação escrita pela Maria da Glória de Oliveira, que sem dúvida se tornou uma das principais protagonistas nessa mudança de rumos aqui traçada, sobre os “Espectros da colonialidade-racialidade e os tempos plurais do mesmo”, serviu de ensejo para intervenções que sinalizam os muitos e variados caminhos que colegas têm seguido na área. Ali estão presentes alguns dos problemas e dos dilemas da teoria da história e da história da historiografia produzidas no Brasil atualmente. Permanecendo no âmbito destas transformações que ocorreram no período entre o momento da posse na vaga aberta na UFRGS e o da escrita deste Memorial, e ainda percorrendo as páginas da História da Historiografia, um momento relevante é o caderno especial publicado em 2015, organizado por Marcelo Rangel e Valdei Araujo, cujo título indica já uma transformação que cabe destacar: “do giro linguístico ao giro ético-político”.13 Os textos que compõem o caderno haviam sido apresentados no 6º SNHH, ocorrido em 2012 em Mariana, e buscam cada qual a sua maneira, problematizar o chamado linguistic turn e suas consequências para a escrita da história. Duas coisas são dignas de nota: em primeiro lugar, o fato do giro linguístico, que em certa medida definiu as condições para a centralidade do problema da escrita nos debates do campo da teoria da história na década anterior, ser agora colocado na posição de objeto de análise já indica um ponto de inflexão significativo; em segundo, a proposta dos organizadores de situarem isto num contexto de passagem de um giro a outro, da questão sobre a escrita à problematização ético-política, indica também um deslocamento epistemológico expressivo e um processo em pleno desenvolvimento. Claro que todas essas considerações aqui apenas esboçadas demandariam um esforço analítico mais cuidadoso, mas não há como desvencilhar este diagnóstico apresentado em 2015 de todas aquelas aberturas sinalizadas nos parágrafos precedentes. Podemos considerar, por exemplo, o dossiê publicado em 2016 e organizado por Fábio Franzini que, junto com a velha pergunta “como se escreve a história?”, inseriu provocativamente um “quem” antes da indagação. Assim, entre os 12 Esboços. História em contextos globais, vol. 30, n. 55, 2023. RANGEL, Marcelo de Mello; ARAUJO, Valdei Lopes. “Apresentação ao dossiê Teoria e história da historiografia: do giro linguístico ao giro ético-político”. História da Historiografia, vol. 8, n. 17, 2015, p. 318-332. 13 138 textos publicados, a atenção à prática de três historiadoras brasileiras é significativa da importância do quem na pergunta: Alice Canabrava, Maria Yeda Linhares e Cecília Westphalen foram as autoras estudadas.14 E se hoje parece ser algo razoavelmente usual a atenção aos recortes de gênero na produção historiográfica, cabe ressaltar que, no próprio periódico que serve aqui de ponto de observação, até 2018 quase 70% dos textos eram de autorias masculinas e praticamente a totalidade das pessoas estudadas nos artigos (95%) eram do sexo masculino, conforme demonstrou Flávia Florentino Varella.15 Não é despropositado, portanto, lembrar que o artigo de Flávia faz parte do mesmo número em que Maria da Glória publicou o seu “Os sons do silêncio: interpelações feministas decoloniais à história da historiografia”, que pode ser colocado como um dos principais textos que contribuíram, nas páginas daquele periódico, para os deslocamentos anteriormente mencionados.16 No ano seguinte, ainda no espírito de abertura que hoje parece ser mais evidente, Thamara de Oliveira Rodrigues publicou o seu chamado para a produção de “histórias não-convencionais”, defendendo justamente “aberturas possíveis das disciplinas para esferas que tensionam com seus protocolos sedimentados e, também, a relação destas aberturas com a emergência de uma temporalidade que tem transformado as humanidades e suas prioridades epistemológicas”.17 Em 2021 o dossiê “História como (in)disciplina”, organizado por Lidiane Rodrigues, María Inés Mudrovcic e Alexandre Avelar contribuiu para os esforços de situar sobre outros fundamentos os requisitos disciplinares da historiografia, e dali retornamos ao já citado número de 2023, pois junto com o dossiê “Corpos, tempos, lugares da historiografia” ele trouxe outro dossiê indicando um dos temas centrais nas discussões contemporâneas: “Temporalização do tempo e regimes historiográficos”, mostrando definitivamente que o parecer dado por Michel de Certeau, em 1975, ao afirmar que o tempo era o 14 FRANZINI, Fábio. “Apresentação ao dossiê Historiadores e historiadoras, esses desconhecidos: quem e como se escreve a história”. História da Historiografia, vol. 9, n. 22, 2016, p. 11-14. Os artigos sobre as três historiadoras são de autoria, respectivamente de Otávio Erbereli Júnior, Carmem Silvia Liblik e Daiane Vaz Machado. 15 VARELLA, Flávia Florentino. “Limites, desafios e perspectivas: a primeira década da revista História da Historiografia (2008-2018)”. História da Historiografia, vol. 11, n. 28, 2018, p. 219-265. 16 OLIVEIRA, Maria da Glória de. “Os sons do silêncio: interpelações feministas decoloniais à história da historiografia”. História da Historiografia, vol. 11, n. 28, 2018, p. 104-140. 17 RODRIGUES, Thamara de Oliveira. “Teoria da história e história da historiografia: aberturas para ‘histórias não-convencionais’”. História da Historiografia, vol. 12, n. 29, 2019, p. 96. 139 “impensado” da disciplina historiográfica, não parece fazer mais sentido nos dias de hoje. Se a escrita da história, tendo o texto como seu paradigma de análise, aparecia como questão central no início do século, atualmente a situação se mostra outra e em certa medida passamos da preocupação com o texto para a atenção aos corpos e, sobretudo, aos tempos.18 Mas caberia ainda indicar uma outra dimensão das transformações no campo que impactaram decisivamente em minha trajetória a partir de meu retorno ao sul. Em 2016, a História da Historiografia publicou o dossiê “A história e seus públicos. A circulação do conhecimento histórico: espaços, leitores e linguagens”, que colocava, entre outras, a seguinte pergunta: “que relação existiu e existe entre o conhecimento do passado e as diversas formas, espaços, meios e linguagens através dos quais circula na sociedade”.19 A indagação sobre os públicos e os meios de circulação do passado assumia um significado particular, uma vez que havia sido justamente naquele momento em que os debates em torno da história pública ganhavam fôlego no contexto brasileiro. Cabe lembrar que em 2011, a partir da iniciativa do Núcleo de Estudos em História da Cultura Intelectual da Universidade de São Paulo, foi organizado o curso de Introdução à História Pública, que no mesmo ano produziu uma das primeiras coletâneas mais diretamente dedicadas ao tema no Brasil.20 No ano seguinte foi criada a Rede Brasileira de História Pública e uma série de coletâneas, dossiês e eventos acadêmicos rapidamente deram consistência não apenas às discussões teóricas sobre o tema, mas propiciaram que historiadores, historiadoras e demais interessados pudessem encontrar um espaço de reflexão e de produção da história pensada para variados públicos. Creio que aquele contexto de abertura no campo da teoria da história e o interesse cada vez mais relevante e disseminado pelo tema da história pública e dos públicos da história foram decisivos para definir minha inserção como historiador hoje, atuando particularmente em pesquisas e discussões que dizem respeito aos usos do 18 Sobre temporalidades e novas experiências de tempo, ver, entre outros, SALOMON, Marlon (org.). Heterocronias. Estudos sobre a multiplicidade dos tempos históricos. Goiânia: Edições Ricochete, 2018; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria; ARAUJO, Valdei Lopes de. Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI. Vitória: Editora Milfontes/ Mariana: Editora da SBTHH, 2019. 19 MASTROGREGORI, Massimo; EUJANIAN, Alejandro. “Apresentação ao dossiê A história e seus públicos. A circulação do conhecimento histórico: espaços, leitores e linguagens”. História da Historiografia, vol. 9, n. 20, 2016, p. 10. 20 ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (org.). Introdução à história pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011. 140 passado e aos usos da história nas sociedades contemporâneas. Obviamente, trata-se de um processo lento que este esforço de reminiscência, feito em conjunto com uma breve análise do material disponível sobre o período, permite mapear. E se todo esse retrospecto sobre o campo pode, à primeira vista, parecer deslocado no Memorial, ele passa a fazer sentido e ajuda a situar melhor minha trajetória na UFRGS desde que o retorno ao sul se tornou uma realidade concreta. A docência na UFRGS Minha atuação como docente efetivo da UFRGS se iniciou no segundo semestre de 2011, quando fiquei encarregado de duas turmas da disciplina Teoria e Metodologia da História II, oferecida para a graduação. Os programas carregavam o peso e os vieses de uma formação que tinha propensão à crítica de seus fundamentos teóricos, mas pouca disponibilidade ainda para pensá-los a partir dos marcadores sociais que definem o gesto historiográfico. Isso mostra como era limitada ainda minha apreensão da ideia de lugar social oferecida por Michel de Certeau, demasiadamente restrita às determinações institucionais e sociais, mas pouco interessada nas injunções de gênero, raciais, geográficas etc. Na lista de leitura que compunha o programa da disciplina, história dos conceitos, contextualismo linguístico, história das ideias, micro-história, hermenêutica e discurso historiográfico, história digital, entre outros temas. Koselleck, Skinner, Pocock, Ginzburg, Ricoeur habitavam aquelas aulas. Quatro anos depois, em 2015, meu programa ainda trazia essas linhas gerais, com alguns complementos que abriam um pouco as perspectivas: Walter Benjamin e Gayatri Spivak eram incorporados ao cronograma de leituras e de discussões em aula. Se em partes aquelas escolhas eram devidas à ementa da disciplina que, de uma forma ou de outra, éramos obrigados a seguir e que ainda manifestava uma ideia de sequência de escolas históricas, hoje posso considerá-las como limitações epistemológicas e, sobretudo, ético-políticas de minha abordagem. De modo geral, essa foi também a compreensão geral do Departamento de História, o que motivou uma mudança curricular implementada a partir de 2019, mas fruto de muitas e acirradas discussões ao longo de todo o processo para sua elaboração e implementação, iniciado em 2014. Em certa medida, ficou para mim evidente naquele momento as disputas em 141 torno das noções e significados dados à disciplina da história, bem como as diferentes e divergentes formas de praticá-la, seja no âmbito da pesquisa, seja no da docência. De todo modo, caso houvesse documentação disponível, seria um ótimo objeto de pesquisa para se investigar como, na prática, aquelas transformações que se podiam notar no plano das discussões teóricas reveladas nas páginas da História da Historiografia eram encaradas e colocadas em funcionamento por historiadores e historiadoras de variadas formações, sobretudo aqueles ocupados com o ensino de disciplinas do campo. No que diz respeito à forma como lidei com tais transformações, um bom ponto de observação para isso são os programas da disciplina Introdução à história, que ministro com regularidade desde que assumi o posto e que foi uma das disciplinas que permaneceram, ainda que com alguma modificação em sua ementa, após a reforma curricular. Entre 2011 e 2024, pude atuar como docente encarregado de turmas dessa disciplina em dez oportunidades. Acompanhando os programas que elaborei para cada uma delas, pude perceber como, mesmo que não completamente consciente de tudo isso, aquele processo de abertura disciplinar foi sendo incorporado em minha forma de praticar a docência. A título de exemplo, copio abaixo o conteúdo programático e a bibliografia do curso ministrado em 2011/2. Conteúdo programático da disciplina Introdução à História, ministrada em 2011/2. 142 O primeiro eixo do curso já indicava um percurso que talvez hoje possa ser considerado como bastante convencional, abordando questões canônicas da história disciplinada. O segundo eixo mantém essa mesma perspectiva, tentando se ocupar a seu modo da velha questão sobre a função social da história. As leituras indicadas pretendiam dar conta de tudo isso a partir de um viés que salta aos olhos no primeiro golpe de vista: quase todos homens, todos brancos! E dos vinte textos indicados, quinze de autores europeus, um estadunidense. Bibliografia da disciplina Introdução à História, ministrada em 2012/1. Quando comparado ou, diria mesmo, confrontado com o curso pensado em 2022/2, as diferenças me parecem enormes e significativas. A ideia de uma tensão entre a história, enquanto modelo disciplinar de relação com o passado, e outras modalidades de produção de saber sobre experiências pretéritas é colocada como linha de 143 atravessamento dos eixos teóricos. Se em 2011 eu me situava plenamente dentro das fronteiras da disciplina, agora são essas mesmas fronteiras que se apresentam como problema a ser desenvolvido ao longo das aulas. De qualquer forma, algo que se mantém ao longo da década que separa um e outro programa: a preocupação com questões do tempo presente, ainda que a própria ideia de tempo presente entre um e outro tenha se modificado. A conjuntura de final de século de que falava François Hartog, no programa de 2011, é profundamente diferente dos tempos da catástrofe sobre os quais escreve Rodrigo Turin atualmente, inserido no programa de 2022. Conteúdo programático e bibliografia da disciplina Introdução à História, ministrada em 2022/2. O cuidado com a bibliografia, se sempre foi algo com que me ocupei com particular atenção, passou a estar amparado por preocupações de outra ordem que não apenas aquelas de caráter propriamente epistemológico. Talvez não seja exagerado supor que tais mudanças indicam a forma como o chamado giro ético-político foi sendo 144 incorporado em minha docência. Indicam também aqueles sentidos da abertura anteriormente mencionados. Mas outras disciplinas ministradas também mostram como todo aquele contexto descrito na seção precedente se manifestou nestes anos como professor do Departamento de História. Destacaria, por exemplo, os quatro semestres em que ministrei, entre 2020/1 e 2021/2, em um momento particularmente sensível sobre o qual comentarei logo adiante, a disciplina Ensino da história e história pública. A própria disciplina é resultado do currículo repensado que passou a ser colocado em prática a partir de 2019. Seu programa foi formulado com o intuito de refletir a respeito do espaço público brasileiro e do lugar ocupado tanto pelo conhecimento histórico como pelos seus praticantes disciplinados, historiadores e historiadoras de formação. E a proposta, que foi razoavelmente bem recebida pelos estudantes, era realizar pesquisas, mesmo que de forma virtual, buscando mapear as percepções públicas a respeito da história. Tais ocasiões serviram sobretudo para poder organizar leituras a respeito de um tema sobre o qual tenho especial curiosidade, ainda que não me considere como um praticante efetivo de história pública (seja lá qual for a definição escolhida para a expressão). Além dessas, gostaria de mencionar as duas oportunidades em que ministrei outra das disciplinas criadas recentemente, com um sugestivo título de Teorias contemporâneas da história. Neste caso, trata-se de disciplina eletiva, o que permite uma margem de manobra consideravelmente maior. A primeira oportunidade foi em 2022/2 e o curso foi pensado como uma forma de lidar com uma obsessão que me acompanhava desde o ano anterior, quando li pela primeira vez o romance da historiadora e escritora Micheliny Verunschk, O som do rugido da onça.21 Sempre em torno do romance, propus na primeira aula uma espécie de contrato com a turma, que não passava de cerca de uma dúzia de estudantes regulares. Eu não entregaria nenhum programa prévio, reservaria quinze dias para que pudessem ler o romance e em seguida apontaríamos as discussões e problemas que aquela obra colocava para o campo da teoria da história. Obviamente, eu já tinha em mente alguns temas e caminhos que me pareciam significativos, mas resolvi não prefigurar a leitura dos alunos e alunas e deixarlhes espaço para se apropriarem com liberdade do que o livro trazia. O resultado foi um 21 VERUNSCHK, Micheliny. O som do rugido da onça. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. 145 curso que girou em torno da (in)disciplina da história, das relações entre temporalidade e vingança, entre história, justiça e reparação e do papel dos anacronismos na produção do conhecimento histórico. Foram aulas em que os sentidos próprios da ideia de liberdade de cátedra se mostraram plenamente para mim, e tive a sorte de contar com a participação de estudantes abertos a tal experimentalismo docente, quando o curso não é simplesmente a exposição de algo previsto anteriormente, mas se constrói de forma coletiva no próprio momento em que acontece em sala de aula. A segunda oportunidade, em 2023/2, foi igualmente uma aposta que por sorte contou novamente com a complacência das duas turmas em que ofereci a disciplina. Se o título era o mesmo, a sugestão foi totalmente diversa: propus que ao longo do semestre lêssemos todas as aulas do curso que Michel Foucault ofereceu em 1978 no Collège de France, a respeito do nascimento da biopolítica. Era, portanto, um curso sobre um curso, e em cada aula discutiríamos uma das doze aulas de Foucault. A ideia se inseria no plano de discussões mais gerais que estávamos fazendo no Laboratório de Estudos sobre os Usos Políticos do Passado (LUPPA) a respeito das memórias do capitalismo, tema que foi objeto de outro curso, este ministrado no semestre anterior no âmbito do PPG, junto com a professora Caroline Bauer. Ao final, fazendo a avaliação com a turma, penso que o resultado foi positivo para todos os envolvidos. Um dos relatos que mais me chamaram a atenção, compartilhado por vários estudantes, foi o de que aquela experiência de leitura aprofundada de um autor e, sobretudo, de uma obra, era algo pouco usual e que havia sido uma experiência até certo ponto inusitada. Isso revela, para o bem ou para o mal, o caráter eminentemente generalista de nosso curso e faz pensar também nas feições de historiadores e historiadoras que estamos formando. Faço questão de trazer esses exemplos mais recentes como significativos de minha trajetória porque eles dizem respeito a uma característica importante da minha atuação: o fato de que sempre preferi ministrar disciplinas para a graduação ao invés de para a pós-graduação. E penso ser isso significativo pois destoa, em partes, de algo que notávamos em gerações anteriores, em que o compromisso com a pós-graduação por vezes se sobrepunha ao que deveria ser mantido e por regras teria precedência, ou seja, o compromisso com a graduação. Para mim, o momento de testar ou de ousar alguma coisa fora do comum, de articular com os temas de minha pesquisa ou mesmo de meus interesses conjunturais, sempre foi com estudantes da graduação. Foi entre eles que 146 percebi prontidão para a curiosidade e receptividade para alguns ensaios. Minha experiência, tanto no PPG da UFOP, quanto no PPG da UFRGS, no qual ingressei logo em 2012, é a de que os estudantes de mestrado e doutorado, por razões que não me cabem aqui avaliar ou julgar, estão por vezes tão imersos nas demandas intelectuais e institucionais colocadas para suas próprias pesquisas que a disponibilidade para alguns desvios do percurso acaba se tornando mais limitada, em alguns casos pouco produtiva e, em outros, fastidiosa. E digo isso a partir da experiência, talvez ainda muito limitada, de ter ministrado sete disciplinas no PPG-História da UFRGS ao longo desses treze anos de credenciamento junto ao Programa, o que garante uma média de quase uma disciplina a cada dois anos, possibilitando lidar com um fluxo considerável e diversificado de turmas. Isso sem contar as duas disciplinas ministradas na UFOP durante os três anos em que lá estive. No PPG, ministrei curso sobre a história e seus públicos, sobre erudição e ceticismo na historiografia moderna, sobre tempo presente e culturas de passado, sobre memórias do capitalismo, além de duas ocasiões em que a proposta era discutir os projetos dos alunos e alunas ingressantes ou em estágio inicial da pesquisa. À exceção destas, todos as outras oportunidades foram feitas em íntima relação com os projetos de pesquisa ou com discussões coletivas mais amplas que estava fazendo no momento. Se não foram de todo um fracasso, ao final de cada semestre e observando os trabalhos que eram entregues pelos estudantes, eu normalmente saía com a impressão de aqueles momentos foram, para a ampla maioria da turma, tão somente horas de créditos cumpridos, o que não deixa de ser um tanto quanto frustrante. Mas isso traz igualmente para o primeiro plano as condições e os limites para que a pós-graduação possa ser repensada, tanto na questão mais prática dos regimes didáticos dos cursos de mestrado e doutorado, quanto na ideia mais ampla e ainda pouco discutida entre nós do que significa, de fato, uma dissertação de mestrado e uma tese de doutorado. Quando observamos que nem os documentos orientadores que a Capes elabora, em consonância com a área, trazem um detalhamento mais substantivo sobre isso, o problema ganha em complexidade. No momento, e para ser completamente honesto neste meu relato sobre a atuação na pós-graduação, preciso ainda considerar o curto período em que estive credenciado ao ProfHistória, o Mestrado Profissional em Ensino da História, entre 2014 147 e 2020. Trata-se de uma proposta extremamente relevante e, creio, muito bemsucedida, em que pese alguns problemas que ainda julgo importantes (sobretudo o regime didático e o prazo de titulação). De qualquer forma, reconheço que nas duas ocasiões em que ministrei cursos para as turmas específicas do ProfHistória, aquela sensação de frustração que tinha no PPG dito “acadêmico” dava espaço para momentos de troca intelectual cuja intensidade era para mim algo novo. Como se sabe, o corpo discente do Prof é formado por professores e professoras da rede básica de ensino. As aulas eram verdadeiros encontros entre experiências diversas, não apenas para os estudantes, mas sobretudo para mim, que nunca atuei na educação básica. E havia entre eles uma honrosa disposição para o debate, para a troca intelectual, para o compartilhamento de angústias diante de uma profissão que em muitos momentos, e em um país como o nosso, acaba por se tornar um dilema existencial. E tudo isso era feito por eles conciliando com cargas de 40h em sala de aula durante a semana. Sou muito grato aos colegas e às colegas que fizeram parte das turmas por aqueles momentos tão memoráveis. Como comentarei a seguir, foi sobretudo a atividade de orientação e o sentimento de estar enganando meus orientandos o que me levou a me descredenciar daquele programa. Um último comentário a respeito da minha atuação docente na UFRGS precisa ser colocado, pelo menos no que diz respeito mais especificamente ao estar em sala de aula, uma vez que se trata justamente do momento em que a sala de aula não era uma possibilidade por conta das medidas de restrição impostas pela pandemia. O ano de 2020 foi um definidor para novas experiências enquanto docente. Com as dificuldades adicionais impostas por uma administração central marcada pela inanição e pelo descompromisso com a comunidade universitária, todo o processo de definição das condições para a implementação de formas remotas de ensino foi bastante mais tortuoso e demorado na UFRGS. Ainda que não pelas melhores razões, foi também uma oportunidade para estudar brevemente outras modalidades e fazer um uso muito mais extensivo dos recursos digitais e audiovisuais disponíveis. A experiência de gravação e edição de aulas para disponibilização para as turmas serviu para aprender a manejar alguns equipamentos que possibilitam outras formas de expressão e de divulgação do conhecimento, o que sem dúvida é um ganho num contexto em que tais questões ocupam um lugar privilegiado na agenda das 148 preocupações políticas da historiografia brasileira. Mas serviu igualmente para colocar em perspectiva minha própria prática docente, uma vez que tive a oportunidade de me ver e me ouvir dando aula, embora fosse nas condições particulares que a reclusão demandava. Com isso, pude aprimorar aspectos que até então eram um tanto quanto negligenciados por mim, sobretudo porque não me dava conta disso. Alguns vícios de linguagem, cacoetes de fala, formas de me posicionar fisicamente diante da turma se tornavam evidentes quando assistia minhas aulas e creio que em parte consegui trabalhar alguns dos problemas de modo a melhorar minha capacidade comunicativa. Assistir ou ouvir nossas próprias aulas é tomar consciência de que, antes de tudo, é nosso corpo o que se coloca diante da turma, um corpo que emite uma voz, que se movimenta e gesticula, que pensa, que cansa e por vezes falha. De qualquer forma, esses breves comentário que tentam colocar um tom positivo naquilo tudo apenas escamoteiam o fato que para mim é inegável: enquanto prática docente, foi algo próximo do desastroso. Acompanhando cotidianamente a destruição social levada a cabo por um governo genocida e negacionista, seguindo diariamente os números sempre crescentes e inaceitáveis da catástrofe sanitária no país, era humanamente impossível encontrar condições mentais e físicas propícias para dar uma boa aula e seguir com um mínimo de normalidade as atividades acadêmicas. Entre os muitos tempos que busco aqui de alguma forma narrar, aquele foi um tempo sobre o qual não consigo encontrar uma linguagem adequada e suficiente para dar conta de representar. As dimensões traumáticas daquilo ainda permanecem como sintomas que volta e meia reaparecem, disparados por gatilhos variados e diversos, como a recente catástrofe ambiental mostra. Ainda que sejam experiências profundamente distintas, o fato de estar no exato momento em que escrevo estes parágrafos em regime de ensino remoto trazem na memória o tema irrecusável disso tudo: a importância da vivência acadêmica nos espaços físicos da universidade e, sobretudo, naquele que é o mais importante, a sala de aula. Orientações e bancas Das tarefas mais desafiantes da carreira docente, a orientação certamente está entre elas. Eis algo para o que a formação não nos prepara e todo o ganho de experiência 149 oriundo no processo segue um pouco na base da tentativa e erro. Sobretudo porque se trata de algo que nem sempre é uma tarefa formalizada (no sentido de um registro oficial de orientação) e que, dependendo da situação, quase nunca encaramos como de fato um processo em que o “orientar” está em primeiro plano. Uma conversa de corredor após uma aula a respeito de um tema de interesse de um aluno ou uma aluna que nos procura solicitando sugestões de leitura sobre determinado objeto, tudo isso deve ser colocado na conta da atividade de orientação? Em certa medida sim e em certa medida não, afinal são situações que fazem parte da prática docente, mas dificilmente é possível alguma forma de registro delas. Por isso, aquilo de que cabe aqui tratar são as orientações formais e formalizadas, que estabelecem um vínculo que acaba por se naturalizar em nosso ofício, aquele entre orientador e orientando ou orientanda. Se essa delimitação torna um pouco mais nítido o tema a ser tratado, de forma alguma retira dele sua complexidade inerente. O caráter individual de uma pesquisa a ser orientada, as diferentes trajetórias e formações dos estudantes, as diversas condições sociais da quais são oriundos, as variadas perspectivas que cada um mantém diante do trabalho acadêmico, seja no nível da graduação, seja no da pós-graduação: tudo isso dota essa atividade de particularidades que, embora possam ser contornadas pela definição de critérios mais ou menos gerais, sempre colocam o imprevisto e o imponderável como uma de suas características preponderantes. A orientação requer uma disponibilidade que nem sempre é possível, um tempo que nem sempre é viável, um cuidado que nem sempre somos capazes de realizar. Além disso, trata-se de um caminho de mão dupla, em que não apenas orientandos esperam algo da orientação, mas a própria atividade do orientador é carregada de expectativas em relação aos orientandos. Neste caso, entre as principais e imprescindíveis eu diria que autonomia discente, dedicação à pesquisa e respeito à dimensão pública da instituição estão entre elas. O restante é algo que ao longo do processo pode ser ajustado. De todo modo, esta é uma das atividades em que reconheço minhas maiores limitações. Iniciei atividades formais de orientação em 2009, quando estava integrado ao Departamento de História da UFOP. São particularmente quatro as modalidades em que atuei desde então: trabalho de conclusão de curso e iniciação científica no âmbito da graduação e, na pós-graduação, orientações de projetos de pesquisa de mestrado e de 150 doutorado. Ao longo dos dezesseis anos em que sou professor efetivo, orientei 19 trabalhos de conclusão de curso e, entre bolsas remuneradas e atuações voluntárias de durações variadas, 28 pesquisas de iniciação científica (nem todas concluídas). Algumas dessas orientações de graduação seguiram pelos caminhos da pós-graduação, tanto sob minha orientação como de outros colegas, na minha ou em outras instituições. Orientei TCCs na área da história da historiografia brasileira, trabalhos sobre a obra ou que partiam da obra de Michel Foucault, estudos sobre o uso da história em quadrinhos, sobre literatura gaúcha, sobre messianismo no século XVI, sobre ensino da história, sobre temporalidades indígenas, sobre memorialismo e usos do passado entre outros temas. Se todos eles de uma forma ou de outra dialogavam com a teoria da história, ainda que de forma um tanto tangencial, obviamente minha capacidade de orientação ficava bastante limitada em temas sobre os quais tenho pouco ou nenhum conhecimento. Nestes casos, a tarefa consistia em pensar conjuntamente com o aluno ou com a aluna a própria estrutura da pesquisa, sua forma de delimitação temática e de construção dos problemas. Mas reconheço que nem sempre tive competência para fazer algo mais do que isso. Já comentei os casos de Piero Detoni, Tatiana Moll e Dalton Sanches, todos durante os anos em Mariana. Aqui na UFRGS, pude dialogar com Luiz Guilherme Lopes sobre a histórias dos sistemas de pensamento de Foucault; com Gabriel Fleck de Abreu sobre a apropriação foucaultina de Margareth Rago, que, embora não estivesse na banca, chegou inclusive a ler o trabalho e a me escrever posteriormente; com Gabriela Jaquet, hoje seguindo carreira na França, também sobre os diagnósticos do presente em Foucault. O André Reinke, estudando os quadrinhos Os 300 de Esparta, e o Arthur Maia Gomes, que analisou os livros que a originaram a série Game of Thrones, trouxeram-me um mundo em que ainda sou nada mais do que um turista aprendiz. A Gisele Gonçalves e a Julia Helena Dias discutiram produções literárias femininas, o Guilherme Cardoso abordou os discursos sobre a aids em Caio Fernando Abreu e o João Camilo Portal, ele próprio escritor de romances, pôs-se a estudar as relações entre tempo e história n’A náusea, de Jean-Paul Sartre. Ainda na fronteira com a literatura, o Leonardo Morandi investigou o discurso memorialista de Pedro Nava. O Cristian Macedo, com suas curiosas fichas sobre seus personagens, fez um trabalho a respeito da “guerra pelo cérebro” nas primeiras décadas de funcionamento 151 do Institut Historique da França. A Karen Pereira teve dois trabalhos de graduação orientados por mim, um da licenciatura, sobre os triângulos rosa dos campos de extermínio nazistas, outro do bacharelado, sobre o negacionismo histórico contemporâneo. O Pedro Batistella estudou as comemorações do centenário da abolição e dos 500 anos do Brasil. Já o Carlos Eugênio Negreiros pesquisou o tema da profecia e do messianismo em um personagem português do início da época moderna, enquanto o Iury Fontes dos Passos, mais recentemente, abordou as questões da temporalidade indígena entre os kaingang de Canela, no Rio Grande do Sul. No caso da iniciação científica, como na maior parte das vezes se tratava de algo diretamente relacionado aos meus projetos de pesquisa, as coisas mudam um pouco de perspectiva. As bolsas remuneradas, sempre vinculadas aos meus projetos cadastrados na instituição, mesmo que nem sempre justapostas a eles, permitiam uma forma de atuação mais coerente, complementando de algum modo a formação dos estudantes e fomentando caminhos para minha própria pesquisa. Quando se tratava de atuações voluntárias, procurei sempre acompanhar da melhor forma que podia os caminhos de cada estudante que me procurava para se iniciar na pesquisa, embora muitas vezes sem o conhecimento necessário sobre o tema escolhido ou sem o tempo adequado para poder me familiarizar com ele. Alguns desse alunos, conforme o andamento de suas pesquisas, seguiram do voluntariado à bolsa remunerada enquanto outros interrompiam suas atividades, seja porque encontraram alguma outra forma de remuneração, seja porque escolheram algum outro caminho para seguir em sua formação. Creio ser esse um percurso natural na graduação em história, quando muitas vezes a escolha por um objeto de pesquisa é feito às custas de muitas tentativas e abandonos prévios. Na pós-graduação, foram 23 dissertações (6 delas na UFOP, uma como coorientador) concluídas e 5 teses finalizadas. Na UFRGS, pude orientar pesquisas de mestrado que resultaram de trabalhos feitos durante a graduação, seja para o TCC, seja na iniciação científica. Os temas também são bastante variados, desde aqueles mais ligados às pesquisas que eu mesmo fazia, seja sobre história da historiografia em diversos contextos, seja sobre questões conceituais da teoria da história, até assuntos em que minhas competências ficavam muito aquém do necessário, como novelas históricas, obras literárias que pouco conhecia, plataformas digitais, entre outros. Assim 152 foi que pude acompanhar, no mestrado, as pesquisas do Cesar Saad sobre José Honório Rodrigues, da Gabriela Jaquet, que desde a graduação investia na obra de Foucault, da Franciele Machado sobre Roger Chartier e a história cultural, do Pedro Henrique Alvez sobre Vasari e a história da arte renascentista, do Mateus Melo sobre parte dos escritos de Jorge Luís Borges, do Gabriel Fleck de Abreu sobre produções televisivas de caráter histórico, da Julia Helena Dias sobre Virginia Woolf, do Vicente Detoni sobre José Oiticia, do Filipe do Canto sobre Javier Cercas, do João Camilo Pontal sobre Svetlana Aleksiévitch, do Miguel Castro sobre a Wikipedia, do Pedro Batistella sobre comemorações e usos do passado, do Guilherme Cardoso sobre Hervé Guibert, do Lucas Tubino Piantá sobre projetos envolvendo a plataforma Wikimedia. Enquanto estava credenciado no ProfHistória, orientei os trabalhos de Said Salómon sobre ensino de história na América Latina e cultura digital, de Ricardo Valentini, sobre temática indígena na sala de aula, de Luciano Paltian, sobre formas de se cartografar o tempo para ensinar história na educação básica. Quanto às pesquisas de doutorado, tive a oportunidade de ser um leitor de primeira hora da tese do Pedro Telles da Silveira, sobre técnica e novas mídias na produção do conhecimento histórico, do Jaime Fernando dos Santos Jr., sobre o conceito de revolução na Inglaterra moderna, do Diego José Fernandes Freire, a respeito da historiografia brasileira dos anos 1970, do Jacson Schwengber, sobre os escritos céticos de Pierre Bayle, além de ter mantido um diálogo em boa parte do doutorado de Eliete Tiburski sobre Euclides da Cunha. Durante algum tempo, quando não estava mais diretamente envolvido em outras atividades administrativas e as condições extra-acadêmicas permitiam (por exemplo, antes da pandemia e da rotina remota de atividades), sempre fiz questão de, além do contato mais individualizado com orientandos e orientadas da pós-graduação, manter encontros coletivos regulares, quando havia a oportunidade para que colegas lessem e comentassem os trabalhos dos próprios colegas, contribuindo para o andamento de cada pesquisa. Além da convicção de que o trabalho acadêmico é e deve ser um trabalho de construção coletiva, era também uma forma de contornar os vícios que minha leitura ou forma de apropriação desse ou daquele trabalho acabavam produzindo. Por vezes, o diálogo apenas entre duas pessoas acaba por restringir demasiadamente as possibilidades de uma prática e, assim, as leituras dos outros colegas muitas vezes indicavam pontos que nem eu nem o orientando estávamos conseguindo enxergar. 153 Infelizmente, tal rotina foi interrompida desde a pandemia e em razão do cargo administrativo que ocupo atualmente. Por fim, em certa medida correlata à atuação como orientador, as participações em bancas de avaliação de TCC e de arguição de dissertações e teses possibilitam também não apenas um conhecimento mais atualizado dos desdobramentos do campo, acompanhando as produções mais recentes, mas também uma forma de circulação por diferentes espaços e instituições, algo facilitado, para o bem ou para o mal, pela incorporação definitiva dos procedimentos de realização de bancas remotas. Não há dúvidas de que a presencialidade proporciona uma outra forma de contato com as pessoas, mas é também indubitável o fato de que as conexões online possibilitam “estar” em lugares, mesmo que de forma mediada, que de outra forma seria inviável, seja pelo alto custo envolvido, seja pela disponibilidade de tempo para longos deslocamentos. Sem contar qualificações e trabalhos de graduação, meu currículo indica a participação em 13 bancas de teses de doutorado e 13 de dissertações de mestrado. É possível que tal número possa não estar de todo correto, em razão de algum lapso ou esquecimento de preenchimento do Lattes. De qualquer forma, se a maior parte foram bancas realizadas em PPGs da UFRGS, pelo menos em 11 ocasiões participei em outras instituições, algumas presenciais, outras remotas. Da mesma forma como a atividade de orientar uma pesquisa, a arguição em uma banca não é daquelas tarefas que a formação acadêmica regular nos ensina. Trata-se antes de um aprendizado feito por experiência, seja como espectador, seja como um dos arguidores. Há um certo decoro a ser seguido que define a escolha do tom da fala e a justa medida entre o questionamento crítico e o elogio encorajador. Afinal, bancas funcionam como o momento por excelência do processo de legitimação do conhecimento histórico, daí a disponibilidade que penso ser necessária para assumir o compromisso: é como se nesse evento particular (a banca) estivesse contida toda a legitimidade que estrutura nosso campo de saber. As tarefas administrativas Tenho a impressão de que quando Michel de Certeau afirmou que o tempo é o impensado no terreno dos historiadores, ele não estava considerando as tarefas administrativas assumidas pelos seus colegas de ofício. Minha experiência é que, 154 enquanto ocupamos algum cargo de gestão institucional, o pensamento sobre o tempo se torna algo preponderante: o tempo que falta, o tempo que resta, o tempo que é adiado, aquele que chega adiantado, o contratempo. A sensação de ações que são perda de tempo, a angústia de ter perdido o tempo para alguma ação, os prazos, os cronogramas, os processos. Tudo no âmbito administrativo em uma universidade pública parece tornar incontornável o pensar sobre o tempo, pois a permanência no cargo possui um tempo próprio assim como o cotidiano das atividades burocráticas. Neste caso, talvez mais do que em outras instâncias da vida acadêmica, aqui estamos sim diante de uma multiplicidade de ritmos temporais, de durações que variam desde o tempo do imediato das decisões urgentes até o tempo longo da morosidade do “sistema”. Durante minha atuação na UFOP, fui membro e posteriormente presidente do Comitê de Pesquisa na área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Além das atividades propriamente acadêmicas que envolviam avaliação de projetos, tratava-se de uma posição que me colocava diretamente em contato com processos administrativos de suma importância em uma universidade, como a distribuição de bolsas para estudantes de graduação. Naquele período, fui também coordenador de linha de pesquisa no PPG, fazendo a mediação entre a coordenação do Programa e os colegas que faziam parte da linha. São atividades que dotam a função administrativa de uma dimensão propriamente política fazendo-nos perceber como a política universitária é feita tanto nos processos realizados em escalas muito abrangentes, e quase inacessíveis, como nessas pequenas situações mais cotidianas. Por isso, julgo que as tarefas administrativas têm a imensa vantagem, que também pode ser um profundo inconveniente, de colocar o docente em contato mais direto com a instituição, com seus modos e tempos de funcionamento. Na UFRGS, atuei igualmente como membro da Comissão de Pesquisa do IFCH, cuja atribuição é avaliar projetos de pesquisa de docentes do Instituto, tendo sido seu coordenador por pouco mais de um semestre. Tal posição possibilitou conhecer um pouco mais de perto a produção e a atuação de colegas de unidade. Entre outubro de 2015 e outubro de 2017, fui chefe do Departamento de História. Na estrutura institucional da universidade, as chefias dos departamentos normalmente são cargos mais voltados ao espaço docente, particularmente para a distribuição dos encargos 155 didáticos de cada semestre. Todas as demais funções que envolvem questões do funcionamento curricular e do âmbito discente competem às comissões de graduação. Nesse sentido, por vezes o posto equivale a uma função de gestão de pessoas, em um universo de cerca de 30 colegas com interesses, visões acadêmicas e posturas institucionais bastante variadas. Esta é mais uma das muitas tarefas que desempenhamos em grande medida na base do improviso e da tentativa e erro: não há uma formação prévia que nos instrua para tanto. Foi durante meu mandato que, em razão de demandas legais, mas também motivado por um anseio em atualizar o projeto político-pedagógico e o currículo do curso, o Departamento enfrentou o já mencionado longo e difícil processo de reforma curricular implementada a partir de 2019. Em tal contexto afloraram muitas das dimensões da política acadêmica, desde as mais nobres até as menos elevadas. Sem entrar no mérito das disputas internas, um ponto merece ser mencionado, pois, como não poderia deixar de ser, uma reforma curricular coloca sobre a mesa, acima de tudo, compreensões do que seja a disciplina da história, seu processo formativo e suas condições de produção de conhecimento. Reforço a ideia de que seria interessante e curioso se fosse possível realizar uma análise dos debates e disputas que marcaram toda a reforma, pois são bastante significativas de um determinado contexto da historiografia e da universidade brasileiras. Os temas e pressupostos que estavam em jogo indicavam caminhos por vezes antagônicos a serem percorridos, mostrando uma forma particular pela qual os famosos “combates pela história” acabam ocorrendo. Outra posição administrativa ocupada a partir de um processo eleitoral que envolve o conjunto amplo da universidade, foi atuar como conselheiro titular da Comissão Permanente de Pessoal Docente da UFRGS, cuja função mais rotineira é avaliar processos de estágio probatório, progressão e promoção funcionais, mas que também, dado o seu caráter assessor em relação à Reitoria, deve atuar como instância em que a carreira é pensada a partir do fomento a políticas de pessoal para a instituição. Com uma composição bastante variada em termos das unidades de origem dos conselheiros e conselheiras, tal Comissão possibilitou uma compreensão mais ampla da carreira docente tanto nos processos acadêmicos quanto em questões trabalhistas. Além disso, em virtude do contexto político em que tal posição foi ocupada, quando a universidade, contra sua vontade, estava sendo administrada por uma gestão interventora, dentro dos 156 seus limites regimentais e de acordo com suas competências, a CPPD atuou sempre no resguardo dos interesses da categoria, sem se confundir com a posição de um sindicato. Outra função administrativa cabe ser mencionada, esta cujo mandato ainda estou desempenhando: a coordenação do PPG. Quando estive na chefia, por conta de uma tradição tácita, fiz parte da Comissão de Pós-Graduação, cargo eletivo dentro do Conselho do Programa, mas que normalmente é definido como parte dos acordos internos mantidos entre colegas. Eram outros tempos: embora o Programa já estivesse entre aqueles considerados como de excelência, com nota 6 na avaliação da Capes, o contexto avaliativo era consideravelmente distinto do que o atual. Mesmo que sempre negado ou escamoteado pelos responsáveis por colocar a engrenagem avaliadora em funcionamento, pairava um clima de competitivismo alimentado por uma lógica produtivista que logo se mostrou insustentável. Lembro-me como, após os processos avaliativos do ciclo 2010-2012 e 2013-1016, o Programa se reunia com o intuito de avaliar seu desempenho na avaliação, mas ao final a reunião acabava por se resumir à projeção da quantidade de pontos necessários no ciclo seguinte para se manter em posição favorável na concorrência com os demais programas. Mais recentemente, em virtude do imbróglio jurídico que suspendeu momentaneamente a avaliação do quadriênio 2017-2020, o filósofo e ex-ministro da educação Renato Janine Ribeiro ilustrou de forma lapidar o entendimento que motivava aquela lógica avaliadora, ao compará-la com uma corrida de fórmula 1. Sem, portanto, negar o caráter eminentemente competitivo que alimenta um processo que, em tese, deveria antes servir de embasamento para políticas públicas, a metáfora usada por Ribeiro deixava no ar a imagem de um processo que, iniciado com muitos participantes na linha de largada, terminava com apenas alguns poucos com direito à pódio, champagne e fotografia oficial. Quando assumi a função de coordenador, em junho de 2023, o impasse jurídico estava minimamente resolvido, o Programa havia feito com diligência sua lição de casa e não apenas se manteve entre aqueles chamados de excelência, como havia aumentado sua nota, atingindo o valor máximo possível, com direito a figurinha elaborada especialmente para a autocongratulação em rede social. De todos os cargos administrativos que aparecem no horizonte de alguém que não tem nem vontade nem talento para investir na política universitária, tais como chefia de departamento, 157 coordenação de comissão de graduação e coordenação de pós-graduação, confesso que esta última era a que eu mais temia. Em primeiro lugar, pelo fato de que, independentemente de minhas posições pessoais a respeito do processo avaliativo, o cargo impõe um compromisso eminentemente institucional. Em outras palavras, ainda que crítico ao jogo, é preciso jogá-lo dentro das regras que são em parte impostas e em parte definidas pelos próprios jogadores. No entanto, por vezes me acomete um sentimento estranho, como se estivesse perdido no campo. Dou um exemplo que para mim ilustra essa sensação. No contexto da catástrofe climática que ocorreu no Rio Grande do Sul no final de abril deste ano, as atividades na universidade tiveram que ser suspensas e um longo e tortuoso debate sobre como e quando retomá-las tomou conta de inúmeras instâncias da instituição. Fazendo parte do Fórum de Coordenadores da Pós-Graduação da UFRGS, acompanhei de perto a movimentação de coordenadores e coordenadoras de diferentes áreas expondo suas situações e os complexos problemas decorrentes direta ou indiretamente das enchentes. Foi neste momento, quando nem toda a água que tomou conta de regiões inteiras da cidade havia baixado, quando ainda tentávamos mapear a situação entre nossos discentes, muitos que perderam tudo com a inundação, e quando ainda buscávamos algum tipo de força para colocar a cabeça no lugar e enfrentar os desafios de curto e médio prazo que emergiam diante de nós, ouvia atônito e indignado a defesa de alguns colegas para o imediato retorno às atividades, argumentando que isso era fundamental por estarmos no final do quadriênio avaliativo e, pior, porque a suspensão de aulas e pesquisas teria por consequência ruim a “desaceleração” (termo dito publicamente no Fórum) dos estudantes. A máquina precisava voltara funcionar, não importava a custo de quê ou de quem. Essa lógica que pensa a pós-graduação predominantemente em termos de “performance” (no caso, o termo é mobilizado não tanto como linguagem pertinente ao giro performativo, mas sim como parte do acervo linguístico do neoliberalismo, trazendo como sinônimo a ideia de rendimento), inserida numa ordem eminentemente concorrencial, era um dos fatores que me afastavam do anseio por ocupar o posto que atualmente ocupo. Um segundo fator, que ainda me mantém em estado permanente de tensão, diz respeito ao gerenciamento de um montante não desprezível de recursos financeiros que, embora funcionando por canais institucionais, acabam ganhando um 158 grau de pessoalidade muito grande, uma vez que tais recursos ficam vinculados ao próprio CPF do coordenador. Mesmo que possa contar com a ajuda valiosa do Núcleo Acadêmico Administrativo de Pós-Graduação, formado pelos servidores técnicos da universidade, ainda assim todos os trâmites da burocracia federal, particularmente no que diz respeito à gestão de vastos recursos públicos, têm para mim um efeito ansiogênico considerável. Obviamente, não se trata de um problema em relação à responsabilidade envolvida, mas sim à falta de preparo para uma tarefa que, neste caso, não pode se dar ao luxo de funcionar por improviso ou tentativa e erro. O erro, nestas situações, tem consequências jurídicas e econômicas muito sérias. E isso me traz ao terceiro fator que colocava reticências a ocupar o cargo, que é um dos traços distintivos do Programa ao qual pertenço: a pouca propensão a um funcionamento realmente coletivo e a inexistência de uma organicidade efetiva entre as partes que o compõem. Persiste a lógica do “ônus do cargo”, ou seja, de que o lugar da coordenação impõe apenas àquele ou àquela que o ocupa o papel centralizador dos processos, mesmo que suas decisões devam ser sempre debatidas e deliberadas na instância colegiada do Conselho. E para mim fica nítido como há nisso um claro recorte geracional, opondo de um lado o apego à atual ordem de coisas (ao “sempre foi assim”) e, de outro, o anseio por mudanças mais substantivas. Obviamente, trata-se de uma generalização que desconsidera as exceções, mas minha experiência ao longo de pouco mais de uma década tem sido essa. O fato positivo é que o Programa, desde o meu ingresso, teve mais da metade de seu quadro docente renovado com o credenciamento de colegas cuja formação e experiência institucional já foram feitas em uma universidade também transformada em seus aspectos políticos, sociais e culturais pela conjuntura aberta nas primeiras décadas desse século. Enfim, o fato é que, apesar das reservas, estou no cargo muito em função do entendimento de que as atividades de gestão, mesmo que muitos decidam voluntariamente por não as assumir segundo diferentes justificativas, fazem parte das atribuições de qualquer docente de uma universidade que tem entre seus fundamentos constitucionais a noção de autonomia, o que naturalmente incide sobre seus processos administrativos. Penso que se trata de algo que não apenas é necessário defender, mas de fato praticar, sob o risco de submeter questões própria do funcionamento interno da universidade (mais do que já ocorre atualmente) a formas de ingerência que lhe são 159 exteriores. Assim, os muitos tempos da gestão administrativa conformam também as múltiplas temporalidades da carreira docente. Finalmente, o último posto de gestão que cabe mencionar é aquele que mais me alegra e tem me animado nos últimos anos, o de coordenador do LUPPA. Assumi logo após ter retornado do estágio de pós-doutorado na Espanha e já estou finalizando meu segundo mandato, pronto para deixar a função a outro colega. As atividades rotineiras do Laboratório, o grupo de estudantes que dele fazem parte, as perspectivas que se abrem a longo prazo, quando vemos alunos e alunas que iniciaram suas atividades de pesquisa ali e que hoje já seguem em outras instituições, realizando seus mestrados ou doutorados, tudo isso traz um sentido revigorado em minha trajetória. O LUPPA tem me servido como aquele porto seguro diante das intempéries que a desilusão com a universidade onde trabalho tem me causado. Serve como motivador e traz a segurança de que algo de bom tem surgido desse recorrente esforço coletivo, muitas vezes contra a própria força de inércia da instituição. O LUPPA é aquilo que abre outras temporalidades possíveis nos tempos da vida acadêmica. Ainda que não estejam todas as pessoas na foto, com ela deixo aqui uma homenagem e o agradecimento sincero a todos os colegas, estudantes e professores que atuam efetivamente no LUPPA pelos bons tempos dessa convivência. 160 IV. A produção intelectual e seus tempos (2000-2024) “O papel suporta qualquer coisa que se deseje”. Micheliny Verunschk, O som do rugido da onça, 2020. A leitura e a escrita: primeiros tempos A leitura é aquilo que precede, prepara e ao mesmo tempo posterga a escrita. Durante a leitura, não é o seu fim (o fim da leitura como o fim do texto que está sendo lido) o que se apresenta como horizonte de expectativa, uma espécie de telos privilegiado: chegar à última página, ao derradeiro parágrafo, à palavra final. O fim da leitura é, sobretudo, o começo da escrita. A leitura para mim sempre prefigura a escrita ou pelo menos alguma escrita. De certo modo, a leitura já é a escrita em movimento, pois não saberia escrever nada que já não estivesse contido na leitura ou em alguma leitura, assim como não saberia ler nada sem que, concomitante ao ler, o escrever encontrasse seu lugar. Ou seja, a leitura já vai estabelecendo desde o princípio os contornos da escrita, que acaba por completar e transformar tudo o que foi lido. Por isso a originalidade nunca foi uma questão a me incomodar, pois tenho clareza das ressonâncias e ecos que habitam as palavras que ponho no papel; as muitas escritas (de outrem) que constituem e estão contidas na escrita (a minha). Penso meus textos como uma polifonia em que muitas vezes as vozes se tornam, mesmo para mim, indiscerníveis. Daí o recurso constante às citações, a essa forma tão própria do fazer acadêmico de prestar contas do que fabricamos quando escrevemos história; essa forma de tornar “folheado” o texto, ou seja, habitá-lo com essa pluralidade de outras vozes.1 Nem mesmo a criação de um estilo próprio foi algo a ocupar minhas preocupações em minha formação; fui bebendo daqui, surrupiando dali, me apropriando um pouco de acolá. Sei bem quem são minhas vítimas privilegiadas, aqueles e aquelas cuja escrita me inspira, de quem tento roubar, quase sempre sem o sucesso esperado, o caráter vibrante das frases, o desdobrar das ideias que a pontuação heterodoxa favorece, a elegância da reflexão na construção do argumento. Mais do que uma impostura, que poderia soar como concessão à cópia ou ao plágio, penso o uso do estilo alheio como uma forma de honrar esses autores e autoras pelo que lhes é devido, sem, contudo, abrir mão daquilo 1 “Coloca-se como historiografia o discurso que ‘compreende’ seu outro – a crônica, o arquivo, o documento –, quer dizer, aquele que se organiza em texto folheado (feuilleté) do qual uma metade, contínua, se apoia sobre a outra, disseminada, e se dá assim o poder de dizer o que a outra significa sem o saber”. CERTEAU, Michel de. L’écriture de l’histoire, op. cit., p. 111. 162 que pertence apenas a mim, que é de minha inteira responsabilidade e pelo quê apenas eu devo responder. Olhando sob outra perspectiva, vejo como a leitura é sempre da ordem da falta, do que é lacunar: sempre faltarão mais e mais leituras para que a escrita possa começar, para que o texto que escrevo ganhe forma; sempre existirão lacunas a serem preenchidas com mais e mais textos a serem lidos. Por outro lado, a escrita é invariavelmente da ordem do excesso, do que sobra e precisa ser contido, aplainado. Quando passo a elaborar um texto, sempre escrevo mais do que o necessário. Não no sentido do tempo usado para a escrita, que normalmente me parece pouco, mas no sentido das palavras sobressalentes, dos adjetivos desnecessários, das imagens supérfluas, das hipérboles descomedidas. Minha escrita ocorre não raro em demasia e é comum ultrapassar limites de palavras e de caracteres definidos por normas editoriais ou pelos acordos tácitos que envolvem a escrita acadêmica (o exagero por vezes é um traço de falta de decoro, um sinal de pedantismo, um descontrole escriturário, uma imperícia no ato da escrita). É comum também romper a justa medida da clareza, o equilíbrio entre a nitidez do argumento e a opacidade dos floreios retóricos. Por isso, para mim escrever é ceifar, uma atividade de corte, de poda. Agora mesmo me dou conta da redundância e da superfluidade de muitas das palavras gastas para dizer tão pouco sobre leitura e escrita. Fica-me sempre a impressão de que escrevo muito para ideias por vezes minguadas e que a recorrência de anáforas é uma espécie de disfarce. Mas é que o prazer da escrita em muitas ocasiões anula a sensatez do escrever. A sensatez acaba cedendo aos arroubos do desejo. Por isso, deixo sempre para o final da escrita e para a última leitura a decisão a respeito do que sobrará dos excessos e do que restará da atividade de corte. Mas nunca há a derradeira leitura, já que as releituras se multiplicam no tempo, impossibilitando o fim verdadeiro da escrita (é sempre o prazo final que o estabelece, não o término propriamente dito do ato). Ao fim e ao cabo, a leitura é uma espécie de controle sempre incompleto para minha escrita. Se durante minha formação a leitura estava ali desde o primeiro momento (sempre é preciso ler algo em um curso de história), o gesto de escrever foi ganhando lugar aos poucos. Obviamente, não me refiro às formas de escrita mais protocolares (como o trabalho para uma disciplina), cujos efeitos esperados normalmente já estão antecipados (ser aprovado na disciplina para a qual se escreveu o texto e tendo como 163 leitor prefigurado aquele ou aquela que avaliará a escrita). Refiro-me sim ao gesto de escrever que ainda está em busca de um leitor que é desde o início desconhecido; refirome à escrita de textos destinados à publicação, ainda que dentro dos limites bastante precisos que o espaço público universitário possibilita: textos que serão dados quase que exclusivamente à leitura pelos pares. E foi ainda na graduação que meu primeiro texto enquanto historiador foi publicado em uma das formas privilegiadas que esse espaço público assume, ou seja, o periódico acadêmico. Era uma revista feita por estudantes, para estudantes. Não me recordo muito bem a origem, mas creio que eram alunos do curso de história da Universidade de São Paulo os encarregados do trabalho editorial da Klepsidra. Revista virtual de história. Ela era inicialmente bimestral e seu primeiro número foi editado em 2000. No número 3, possivelmente do segundo semestre daquele ano, publiquei o artigo A fabricação do sorriso. Ortodontia social em Curitiba na virada dos séculos XIX e XX. Tratava-se de uma análise sobre os processos disciplinadores colocados em funcionamento na capital paranaense, sempre ciosa de seu epíteto de Cidade Sorriso, mas cujo ordenamento dental precisou passar por um rigoroso e violento processo de ortodontia social. A marca foucaultiana estava toda ali, desde seu parágrafo inicial até o ponto final: Esta é a história de um desejo, de uma enorme vontade de ser nós mesmos sem sê-lo. Em outras palavras, esta é a história (ou uma delas) de um irreprimível anseio de ser nem americano do norte nem europeu, apenas curitibano... mas da forma como um europeu ou norte-americano o seria. O modelo da identidade aqui está na diferença. [...] Portanto, a partir de uma imensa vontade de ser, foi-se moldando a nãoidentidade do curitibano. Não se trata de um projeto iniciado em tal ou tal momento, por esta ou aquela pessoa ou camada social, mas de um arranjo das forças participantes nas relações de poder que permitiu a construção de uma ordem social favorável à fabricação do sorriso. Obviamente, não se pode descartar o importante papel desempenhado pela administração local através do uso de seu instrumento principal, a lei. Mas tampouco pode-se ignorar a conivência de grande parte dos indivíduos que aceitaram a lei a ponto de naturalizá-la em seu cotidiano. Não eram apenas as autoridades que não apreciavam as meretrizes, os mendigos, os ébrios ou os cavaleiros que por aqui passavam e não eram elas as únicas cujo olhar vigilante incidia sobre tais indivíduos. Em suma, a ordem se constituiu por inúmeras forças, inclusive de resistência, e a dinâmica do processo ortodôntico se dá segundo a constante tensão entre elas, pois o poder não estava centrado num único foco, mas disperso na sociedade. 164 Embora a maquiagem hoje seja outra, a boca ainda é a mesma. E nela o mesmo sorriso de cem anos atrás continua estampado, ocultando as inúmeras deformações e irregularidades, amarelo como sempre.2 Lendo hoje esses trechos de mais de duas décadas atrás não deixo de me divertir com o tom, mas também devo reconhecer que ele não mudou tanto assim. Nestes primeiros tempos do que se poderia efetivamente considerar como produção intelectual acadêmica, ainda na graduação, publiquei dois outros artigos. Um deles no primeiro número da Vernáculo, fruto de um trabalho entregue em uma disciplina ministrada pela Ana Maria (aqui a memória pode estar falhando, mas essa é a impressão que tenho), sobre as relações entre história das mentalidades e história cultural. Em nota de rodapé inserida logo na primeira página, o aviso ao leitor a respeito da ênfase colocada na história cultural e nos poucos comentários sobre o tema das mentalidades. 3 Sinal dos tempos e da influência das aulas. O outro texto foi publicado novamente na Klepsidra, no mesmo ano em que ingressei no mestrado, mas com data de junho de 2001. Era parte do resultado de meu trabalho de conclusão do curso na graduação a respeito das histórias de Michel Foucault. Nele eu percorria, com as condições que tem para isso um estudante da graduação, os diferentes momentos em que o pensador francês praticou determinadas formas de história, desde a arqueologia até a chamada história das problematizações, passando, é claro, pelo período genealógico. 4 Esses primeiros tempos certamente trouxeram algo de importante, além de satisfazer meu gosto pela escrita. Foram também momentos de uma primeira exposição, ou seja, de tornar públicos alguns textos que manifestavam certas formas de leitura, algumas interpretações e modos de refletir, sempre tendo como objeto de investigação a própria história. Tal exposição, por sua vez, implicava a disponibilidade para o diálogo, para o debate, para a crítica, pois se a leitura é aquilo que adia a escrita, a escrita é o gesto sempre em busca da leitura. Havia, talvez, algo de vaidade, mas creio que o principal sempre foi, sem dúvida, começar de fato o exercício da prática historiográfica. Era uma forma, ainda incipiente, de inserção no que apenas muito 2 NICOLAZZI, Fernando. “A fabricação do sorriso. Ortodontia social em Curitiba na virada dos séculos XIX e XX”. Klepsidra. Revista virtual de História, n. 3, 2000, p. 1-16. 3 NICOLAZZI, Fernando. “História das mentalidades e história cultural”. Vernáculo, n. 1, 2000, p. 52-64. 4 NICOLAZZI, Fernando. “As histórias de Michel Foucault”. Klepsidra. Revista virtual de História, n. 12, 2002, p. 1-15. 165 tempo depois passei a considerar, como tenho feito ao longo destas páginas, o campo da teoria da história. Os anos de aprendizado Durante a graduação, motivado pelas leituras que fazia naquele período e pela liberdade e autonomia que a Ana Maria sempre propiciou a seus estudantes, alimentei uma percepção que hoje considero um tanto quanto pueril, mas que penso ser justificável para quem se inicia nas lides com a linguagem. Tal percepção me levava a assumir uma forma de escrita que era, digamos, agressiva quanto aos protocolos formais que estruturam o texto acadêmico. Formas de citação, uso das referências, uso do impessoal (ou da voz coletiva, a primeira do plural), disposição ordenada das seções, todos estes aspectos propriamente formais eram então encarados por mim como modos inaceitáveis de coerção de uma atividade que deveria ser regida pelo princípio da liberdade irrestrita. Em grande parte, essa atitude reativa também foi uma resposta à trágica experiência vivida nos últimos semestres do curso, quando éramos submetidos a uma disciplina obrigatória cujo objetivo era tão somente apresentar as regras da ABNT. Um longo e penoso semestre aquele, quando tudo o que eu queria fazer era escrever meu trabalho de conclusão e não simplesmente adaptá-lo aos requisitos formais de regras que não pareciam fazer muito sentido e mudavam ano a ano. Mas é próprio do processo formativo o aprendizado às concessões. O ingresso no mestrado possibilitou o exercício de outras modalidades de pesquisa e de escrita, mais ligados aos parâmetros formais estabelecidos pelo ambiente acadêmico. Já tive a oportunidade de mencionar o tema da pesquisa no segundo capítulo e agora me furto a alguns comentários a respeito dos artigos publicados naquele momento ou que foram resultados diretos dos estudos que culminaram em minha dissertação. O primeiro deles, publicado na História em Revista, buscava oferecer uma compreensão sobre os significados da teoria da história a partir de leitura de algumas obras de Paul Ricoeur, autor que ofereceu para mim, a partir de sua formulação hermenêutica, os elementos principais para se pensar o texto, sua escrita e sua recepção pela leitura. Meu esforço, nesse sentido, foi explorar tal teoria voltando-a decisivamente para o discurso 166 historiográfico.5 No mesmo ano, na revista História & Perspectiva, busquei elaborar algumas considerações a respeito dos conceitos e do trabalho de conceituação que determina, em partes, as condições de legitimidade científica da historiografia.6 Tais artigos apresentavam a estrutura teórica que sustentava minhas análises sobre o texto historiográfico e que subsidiaram minha leitura das narrativas de Thompson e Foucault. A eles complementaram dois outros artigos: em 2004, na Anos 90, expus considerações sobre a narrativa da experiência a partir da leitura da obra do historiador inglês e do filósofo francês.7 Na Ágora, no ano seguinte, estabeleci um diálogo entre Ricoeur e Koselleck a partir da tensão que ainda hoje me parece constitutiva do fazer historiográfico, ou seja, o jogo entre experiência e linguagem.8 Como se percebe, consoante com o momento das discussões que eram feitas, pelo menos em parte do campo de teoria da história naquele contexto, nesta primeira meia década de produção em que saí da graduação e concluí o mestrado o foco preponderante de minha atenção estava justamente voltado às condições de possibilidade para a escrita da história, situando o texto historiográfico como paradigma de análise. Mas aproveitei também trabalhos realizados em disciplinas para estruturá-los na forma de ensaios. Destaco, neste caso, o artigo em que realizei uma reflexão sobre memória e contramemória a partir do filme Uma cidade sem passado.9 Um último texto ainda faz parte deste momento, escrito a convite para comentar outras três intervenções que foram publicadas no formato “mesa-redonda” e que versavam sobre pensamento histórico no Brasil e na América do Sul no século XIX.10 Durante os quatro anos do doutorado, embora tenham sido anos de intensa pesquisa e atuação, tanto para a realização da tese quanto para a preparação das aulas quando atuei como professor substituto, publiquei apenas um único texto, apresentado em um evento na UFRJ e posteriormente inserido em coletânea organizada por Manoel 5 NICOLAZZI, Fernando. “Uma teoria da história: Paul Ricoeur e a hermenêutica do discurso historiográfico”. História em Revista, n. 9, 2003, p. 45-76. 6 NICOLAZZI, Fernando. “A conceituação na escrita da história”. História & Perspectiva, n. 27-28, 2003, p. 175-197. 7 NICOLAZZI, Fernando. “A narrativa da experiência em Foucault e Thompson”. Anos 90, vol. 11, n. 19-20, 2004, p. 101-138. 8 NICOLAZZI, Fernando. “Experiência histórica e narrativa historiográfica”. Ágora, vol. 11, n. 1, 2005, p. 139-159. 9 NICOLAZZI, Fernando. “História: memória e contramemória”. Métis, vol. 2, n. 3, 2003, p. 217-234. 10 NICOLAZZI, Fernando. “História, nação e identidade: alguns comentários”. Diálogos, vol. 8, n. 1, 2004, p. 67-76. 167 Salgado Guimarães. Era uma análise prévia da experiência da viagem em Gilberto Freyre, percebida sobretudo a partir de Casa-grande & senzala.11 Foi o primeiro texto em um livro. Os anos logo após a defesa e a posse na UFOP foram sobretudo de publicações de capítulos e artigos oriundos da tese, o que possibilitou fazer circular minimamente o produto de um trabalho realizado em uma universidade pública e com financiamento público.12 Inclusive, mesmo passada mais de uma década do momento em que o doutorado foi finalizado, ainda tive a oportunidade de divulgar em contextos não nacionais os resultados de minhas pesquisas, seja em textos de autoria própria, seja em textos escritos com outros colegas que também atuam no campo.13 Contribuiu para essa divulgação também um fato que muito me honra em minha trajetória: ter sido contemplado com o Prêmio Manoel Luiz Salgado Guimarães, oferecido pela ANPUH à melhor tese de história defendida em 2008. Em razão do prêmio, tive a oportunidade de ver minha pesquisa publicada como livro, em 2011, pela editora da Unesp. Mais do que isso, ainda que tal nome esteja ligado ao prêmio em razão do seu falecimento precoce, não posso deixar de reconhecer que me sinto privilegiado em ter minha tese ligada de 11 NICOLAZZI, Fernando. “Gilberto Freyre viajante: olhos seus, olhares alheios”. In: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado (org.). Estudos sobre a escrita da história. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007, p. 240-265. 12 Foram sobretudo seis artigos e dois capítulos de livro, publicados entre 2009 e 2018. Os artigos: NICOLAZZI, Fernando. “O narrador e o viajante: notas sobre a retórica do olhar em Os sertões”. História da Historiografia, n. 2, 2009, p. 67-85; NICOLAZZI, Fernando. “O tempo do sertão, o sertão no tempo: antigos, modernos, selvagens. Leitura de Os sertões”. Anos 90, n. 17, 2010, p. 261-285; NICOLAZZI, Fernando. “À sombra de um mestre. Gilberto Freyre leitor de Euclides da Cunha”. História, n. 29, 2010, p. 254-277; NICOLAZZI, Fernando. “As virtudes do herege: ensaio, modernismo e escrita da história em Casa-grande e senzala”. Remate de Males, n. 31, 2011, p. 255-282; NICOLAZZI, Fernando. “Orden del tiempo y escritura de la historia: consideraciones sobre el ensayo histórico en el Brasil, 1870-1940”. Prismas, n. 19, 2015, p. 47-66; NICOLAZZI, Fernando. “Raízes do Brasil e o ensaio histórico brasileiro: da história filosófica à síntese sociológica, 1836-1936”. Revista Brasileira de História, n. 36, 2016, p. 1-22. Os capítulos: NICOLAZZI, Fernando. “Tempo histórico, memória e identidade: reflexões sobre a representação do passado em Casagrande & senzala”. In: RAMOS, Francisco Régis Lopes; SILVA FILHO, Antonio Luiz Macêdo e (orgs.). Cultura e memória: os usos do passado na escrita da história. Fortaleza: Núcleo de Documentação Cultural/UFC; Instituto Frei Tito de Alencar, 2011, p. 235-255; NICOLAZZI, Fernando. “Representação e distância: naturalismo, linguagem e alteridade na escrita de Os sertões”. In: NICOLAZZI, Fernando; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria; SILVA, Ana Rosa Cloclet da. (orgs.). Contribuições à história da historiografia lusobrasileira. São Paulo: Hucitec, 2014, p. 241-283. 13 NICOLAZZI, Fernando; TURIN, Rodrigo; MOLLO, Helena. “The thickness of time: the writing of history and appropriation of the past in Brazil, 1830-1930”. Historein, n. 17, 2018, p. 1-20; NICOLAZZI, Fernando. “Disoriented time and social knowledge. The historical essay in Brazil, c. 1870-1940”. The American Sociologist, v. 51, n. 3, 2020, p. 1-14; NICOLAZZI, Fernando. “Gilberto Freyre”. In: Bloomsbury History Theory and Method. Bloomsbury Publishing, 2021 (apesar da data, que se refere ao projeto geral, o texto foi publicado em 2024). 168 alguma forma ao Manoel, cuja importância para os desenvolvimentos do campo da história da historiografia no Brasil é inquestionável. 14 Neste momento de minha trajetória, as discussões mais impregnadas por certo esoterismo teórico que caracterizavam as preocupações durante o mestrado cederam definitivamente espaço para uma inserção mais decisiva no campo da história da historiografia brasileira. Como dito anteriormente, era minha forma de colocar em prática a ideia hartogiana de uma historiografia epistemológica. Os cursos de historiografia brasileira ministrados na graduação na UFOP me levaram a pesquisar alguns temas que eu havia apenas tocado durante o doutorado e que passaram a ganhar relevância a partir da atuação docente. Se minha pesquisa de fato se concentrava na virada do século XIX para o XX e eu lia com certo interesse a produção sobre o século XIX, cabe ressaltar que até então o século XVIII era algo distante. No entanto, durante o doutorado havia encontrado na biblioteca da UFRGS as edições de José Aderaldo Castello das dissertações elaboradas pelos acadêmicos das duas academias criadas na Bahia durante o setecentos, a Academia Brasílica dos Esquecidos (1724) e a Academia Brasília dos Renascidos (1759). O tema não era de todo desconhecido, sobretudo em função da leitura do livro de Iris Kantor.15 Assim, por um breve período cheguei a me aventurar no período, conciliando pesquisa e docência, o que resultou em artigo publicado em 2010.16 Além disso, a atuação mais diretamente ligada à historiografia brasileira me possibilitou organizar obras que considero relevantes para o campo. Embora tenham sido publicadas quando eu já não mais fazia parte do quadro docente da UFOP, todo seu trabalho foi realizado enquanto eu ainda atuava naquele Departamento de História. Uma delas, coorganizada com Mateus Pereira e Ana Rosa Cloclet Silva, reunia pesquisadores e pesquisadoras de diferentes tradições e especialidades e oferecia um apanhado de textos que cobriam um amplo leque cronológico que ia desde o século XIV 14 NICOLAZZI, Fernando. Um estilo de história. A viagem, a memória, o ensaio: sobre Casa-grande & senzala e a representação do passado. São Paulo: Editora da Unesp, 2011. 15 KANTOR, Iris. Esquecidos e Renascidos. Historiografia acadêmica luso-americana (1724-1759). São Paulo: Hucitec, 2004. 16 NICOLAZZI, Fernando. “Entre ‘letras & armas’, a história como disputa: considerações sobre a historiografia luso-brasileira no século XVIII”. Almanack Braziliense, n. 11, 2010, p. 40-51. 169 até o século XX.17 Lembro-me que o título, inspirado em Arnaldo Momigliano, foi definido em um almoço em que eu e Mateus, além de discutir o projeto, aproveitamos o caprichado feijão tropeiro do Sinhá Olimpia, em Passagem de Mariana. A outra obra, uma coletânea de textos programáticos sobre a história escritos entre o final do Império e as primeiras décadas da República, cada um apresentado por um especialista no tema.18 E o fato de ter residido em Mariana me levou também a me interessar por temas ligados à historiografia mineira, que foram desenvolvidos tanto a partir de convites, como a partir de pesquisas de iniciação científica e posteriormente publicados em coautoria com a então bolsista e hoje doutoranda da UFOP, Tatiana Mol Gonçalves.19 A finalização do doutorado e o início da docência na UFOP, fazendo parte do NEHM, já me permitiam uma inserção mais definitiva no campo da teoria e da história da historiografia no Brasil. Além disso, creio que posso dizer que meu processo de pesquisa e, sobretudo, de escrita, foram se aperfeiçoando neste momento: eu já tinha passado pela escrutínio de duas bancas de pós-graduação, tinha enfrentado alguns concursos públicos, havia submetido artigos para revistas acadêmicas, recebendo as críticas, recusas e aceites que fazem parte dessa rotina. Do ponto de vista do amadurecimento de minha formação acadêmica, esses anos transcorridos na segunda metade da década de 2000 foram de fato anos de aprendizado que propiciaram um importante ganho de experiência. Cabe ressaltar ainda que, embora tenha havido oportunidades anteriores, foi sobretudo a partir deste momento que passei a circular com mais constância em eventos acadêmicos, particularmente nos eventos regionais e nacionais da ANPUH e nas edições do SNHH. O exercício de elaboração de comunicações (normalmente com limite de tempo bastante reduzido) e sua apresentação em 17 NICOLAZZI, Fernando; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria; SILVA, Ana Rosa Cloclet (orgs.). Contribuições à história da historiografia luso-brasileira. São Paulo: Hucitec, 2014. 18 NICOLAZZI, Fernando (org.). História e historiadores no Brasil: do fim do império ao alvorecer da República, c. 1870-1940. Porto Alegre: Editora da PUC-RS, 2015. 19 A convite do diretor do Arquivo Público Mineiro à época e meu colega na UFOP, Renato Pinto Venâncio, escrevi o artigo NICOLAZZI, Fernando. “O olhar francês sobre Minas”. Revista do Arquivo Público Mineiro, vol. XVL, 2009, p. 150-158. Publiquei também, junto com a Tatiana, um artigo sobre o Instituto Histórico e Geográfico de Minhas Gerais, primeiro na forma de artigo e posteriormente inserido em uma coletânea sobre institutos históricos no Brasil: NICOLAZZI, Fernando; Tatiana Mol Gonçalves. “Inventando a historiografia mineira: o Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais em sua 'primeira fase', 19071927”. Revista de Teoria da História, n. 6, 2014, p. 93-109; NICOLAZZI, Fernando; Tatiana Mol Gonçalves. “O Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais: fundação e 'primeira' fase, 1907-1927”. In: FERREIRA, Antonio Celso; MAHL, Marcelo Lapuente (orgs.). Os Institutos Históricos e Geográficos: nação e região na historiografia brasileira. Campinas: Pontos Editores, 2017, p. 175-192. 170 instâncias coletivas de debate certamente oferecem condições para melhorar a desenvoltura retórica e aprimorar a capacidade argumentativa. Outros caminhos de pesquisa Ainda durante o doutorado, quando realizava meu estágio de pesquisa em Paris e com as condições de trabalho que a BNF oferece aos pesquisadores, outros caminhos de pesquisa passaram a surgir em meu horizonte. Certo dia, vagando por entre as prateleiras do rez de jardin, justamente entre os livros que fazem parte do número de catálogo reservado para a história da historiografia, deparei-me com um pequeno volume com um título curioso: La manière de lire l’histoire (A maneira de ler a história), escrito em 1601 pelo diplomata francês René de Lucinge. Se até então o tema da escrita da história aparecia como uma evidência praticamente inquestionável, curiosamente a indagação pela leitura da história quase nunca era colocada nas discussões do campo. A descoberta daquela obra colocou para mim a percepção tão óbvia quanto banal de que, se alguma história é escrita, ela necessariamente também é lida. Nascia naquele momento meu interesse pelo tema da leitura da história, cujos desdobramentos ainda hoje ocupam um lugar privilegiado em minhas preocupações. O pequeno tratado de Lucinge me abriu as portas para um gênero com o qual passei a me ocupar particularmente no período entre 2009 e 2015. Conhecido como ars historica, tal gênero teve certa relevância no contexto da Europa humanista, entre os séculos XV e XVII e sua particularidade era justamente a atenção voltada não apenas às formas de produção da história, mas sobretudo às modalidades de sua recepção. Entre os autores que se destacaram no gênero, o jurista Jean Bodin estava entre eles. Se o autor acabou ficando mais conhecido pela sua reflexão política divulgada no De republica libri sex (Seis livros sobre a República), de 1576, dez anos antes ele havia publicado o Methodus ad facilem historiarum cognitionem (Método para a fácil compreensão da história). Assim, após concluída a pesquisa sobre Freyre que garantiu meu título de doutor e a posterior efetivação como docente universitário, dei uma guinada em meus interesses intelectuais e elaborei o projeto Erudição crítica e leitura da história: Jean Bodin e o pensamento histórico francês no século XVI. Tratava-se de algo não apenas ambicioso, mas demasiadamente pretensioso, uma vez que boa parte das obras que 171 compunham o acervo das artes historicae eram escritos e acessíveis apenas em latim, língua da qual conheço apenas os chavões clássicos: historia magistra vitae, res gestae, rerum gestarum e por aí vai. Havia, certamente, traduções que possibilitavam seu estudo (como as do próprio tratado de Bodin, que eu consultava nas traduções para o francês e para o inglês), mas obviamente isso já limitava enormemente o alcance da pesquisa. Some-se a isso o fato de que muitas das análises imprescindíveis sobre a matéria eram encontradas apenas em alemão, língua que não leio. De qualquer forma, resolvi apostar na ideia, o que acabou rendendo bons frutos. O projeto, elaborado ainda quando estava em Minas Gerais, foi aprovado em edital universal do CNPq, o que permitiu um aporte de recursos para a compra de material bibliográfico que precisava ser importado, além de uma estadia de quase um mês de pesquisa em Paris, em fevereiro de 2015. Alguns artigos e capítulos foram produzidos neste contexto.20 Entre eles, gostaria de destacar um que me propiciou momentos de muito prazer tanto na pesquisa quanto na escrita. Ele foi praticamente todo escrito ao longo de quinze dias de trabalho na BNF, e ainda hoje considero como um dos textos mais importantes que já elaborei. Talvez não tanto pelo seu conteúdo, embora ele trouxesse alguma contribuição ao nosso ambiente historiográfico, à época ainda pouco atento aos estudos historiográficos sobre o que se convencionou chamar de early modern Europe. Mas sobretudo pela estratégia narrativa que consegui botar em prática, articulando a história de três personagens que viveram na França do século XVI e cujas trajetórias passavam pelo tema dos livros, das bibliotecas e da leitura da história.21 Foi para mim um exercício narrativo interessante, que apenas a possibilidade de trabalhar num acervo como aquele da BNF permite. Em 2013, tive aprovada minha primeira proposta para bolsa de produtividade do CNPq. O projeto ainda se situava nos estudos sobre a ars historica, e agora eu ampliava o escopo da análise contemplando as obras de Bodin, La Popelinière e Montaigne, 20 NICOLAZZI, Fernando. “Como se deve ler a história? Leitura e legitimação na historiografia moderna”. Varia História, n. 26, 2010, p. 523-545; NICOLAZZI, Fernando. “Como se deve ler a história: Jean Bodin e a ars historica do século XVI”. In: NICOLAZZI, Fernando; Mollo, Helena Miranda; ARAUJO, Valdei Lopes de (orgs.). Aprender com a história? O passado e o futuro de uma questão. Rio de Janeiro: FGV, 2011, p. 207234; NICOLAZZI, Fernando. “O historiador enquanto leitor: história da historiografia e leitura da história”. História da Historiografia, vol. 6, n. 13, 2013, p. 63-77. 21 NICOLAZZI, Fernando. “O capelão do rei, o livreiro da Sorbonne, o advogado da corte: livros, bibliotecas e leitura da história na França do século XVI”. Topoi, vol. 18, n. 36, 2017, p. 584-607. 172 buscando estabelecer uma relação entre erudição, ceticismo e historiografia no século XVI francês. Embora eu tenha conseguido juntar um bom material de pesquisa e guardo em meu arquivo pessoal notas e fichamentos que possibilitariam a elaboração de um ou dois artigos novos, o fato é que deste projeto os resultados acabaram não vindo a público na forma de textos, pelo menos por enquanto. É bem verdade que tive a oportunidade de discutir em eventos alguns dos seus desdobramentos e, inclusive, ofereci uma disciplina eletiva na pós-graduação (que contou com menos de cinco alunos regulares). Porém, o referido ano foi um daqueles momentos históricos em que a famosa formulação de René Chateaubriand, quando escreveu que estava estudando a história antiga enquanto a história contemporânea lhe batia à porta, fez todo sentido para mim. Pois o contexto de manifestações populares que eclodiram país afora, desde abril de 2013, e fizeram emergir forças subterrâneas cujos efeitos, de uma forma ou de outra, ainda hoje podem ser sentidos, provocou em mim um questionamento que acabou tornando a pesquisa sobre o humanismo quase que irrelevante diante daquilo que a contemporaneidade impunha como podendo e mesmo devendo ser pensado. O tempo presente forçava sua entrada em cena, quando eu estava entretido com humanistas europeus do século XVI. Se o contexto político e social do país acarretou um deslocamento considerável em minhas pesquisas, isso não significou um completo abandono de temas que já ocupavam minhas preocupações há algum tempo. Entre eles, o interesse no estudo da obra de Paul Ricoeur e de François Hartog. Com relação ao filósofo, tive a oportunidade de voltar a ele a partir do convite para escrever o capítulo que lhe foi reservado em uma coletânea sobre “os historiadores clássicos da história”.22 Sobre o historiador, escrevi dois textos de apresentação das linhas gerais de sua obra, com particular atenção aos seus conceitos de regimes de historicidade e de presentismo. O primeiro foi quando ainda estava atuando em Mariana, submetido a uma revista a partir de um conjunto de anotações de aulas que ministrei na UFOP. Recordo-me que nesta ocasião uma das pessoas que elaborou o parecer ofereceu contribuições fundamentais para aprimorar o argumento (fato que nem sempre ocorre com os pareceres que lemos, ora 22 NICOLAZZI, Fernando. “Paul Ricoeur (1913-2005)”. In: PARADA, Maurício (Org.). Os historiadores clássicos da história, vol. 3. Campinas: Vozes, 2014, p. 15-45. 173 excessivamente protocolares, ora demasiadamente assertivos nas críticas).23 O segundo texto também foi sob encomenda, escrito quase uma década após o anterior, no qual pude incorporar novas perspectivas que livros então mais recentes do autor ofereciam.24 Creio que artigos e capítulos como esses, tanto sob encomenda como de sistematização da obra de um autor ou autora, trazem ganhos significativos também para o exercício da escrita acadêmica. Por um lado, a encomenda em certa medida nos tira da zona confortável em que nos colocamos quando escrevemos apenas quando e sobre o que desejamos. Além disso, os requisitos formais e as linhas de argumentação que precisam ser seguidas para dar coerência a obras de divulgação impõem limites e uma certa disciplina para a escrita. Por outro lado, o processo de sistematizar as leituras feitas a respeito de uma determinada obra de autor, ou pelo menos de um recorte sobre essa obra, acabam por colocar na prática questões que por vezes ficam restritas às elocubrações teóricas: o que é um autor?, o que é uma obra?, qual a relação entre a vida do autor e a obra do autor? etc. No meu caso, o fato de eu atuar como docente justamente no campo em que tais “objetos” são estudados facilitou a tarefa, pois nos casos dos dois autores ocorreu sempre uma via de mão-dupla: se as aulas ministradas sobre eles ajudaram a organizar melhor os textos, os textos possibilitaram estabelecer linhas argumentativas que eram estabelecidas para as aulas. Tempo presente, usos do passado e públicos da história A partir de meados da década de 2010, sobretudo depois de 2013, minha atenção passou a estar mais diretamente voltada para temas da contemporaneidade, contexto em que as linhas gerais de minha atuação hoje foram traçadas. Dois momentos foram de particular importância para isso, além, como já ressaltado, dos imperativos que a situação política do país impunha. Em 2015, junto com Rodrigo Turin e Arthur Ávila, iniciamos algumas conversas para propor um evento acadêmico que tinha, em seu formato e em seu conteúdo, algumas particularidades. No formato, pois a ideia, mais do 23 NICOLAZZI, Fernando. “A história entre tempos: François Hartog e a conjuntura historiográfica contemporânea”. História. Questões e Debates, n. 53, 2010, p. 229-257. 24 NICOLAZZI, Fernando. “François Hartog e o espelho da história: o outro e o tempo”. In: BENTIVOGLIO, Bentivoglio; AVELAR, Alexandre de Sá (org.). O futuro da história: da crise à reconstrução de teorias e abordagens. Vitória: Milfontes, 2019, p. 121-154. 174 que um encontro pontual, era propor encontros anuais em que as mesmas pessoas envolvidas pudessem ter o tempo necessário para amadurecer suas reflexões ao longo de três anos a partir dos debates e da discussão coletiva. No conteúdo, pois a proposta era colocar a própria condição disciplinar da história como objeto a ser questionado e analisado segundo diferentes olhares e distintas perspectivas. Foi assim que surgiu a proposta que culminou com a publicação, em 2019, do livro A história (in)disciplinada. Teoria, ensino e difusão do conhecimento histórico.25 Neste mesmo contexto, em 2016 iniciamos discussões entre colegas do Departamento de História da UFRGS para propor um projeto coletivo para um edital universal do CNPq. Sob a coordenação de Temístocles Cezar, nascia ali o embrião do Laboratório de Estudos sobre os Usos Políticos do Passado (LUPPA), que iniciou suas atividades em 2017, permaneceu por algum tempo ainda em busca de uma identidade própria e que hoje já possui um campo de atuação mais ou menos bem definido. Situado no âmbito da teoria da história e da história da historiografia, o LUPPA destaca-se por propor discussões que avançam sobre o tema da memória e das modalidades pelas quais tanto a história como os diferentes passados sociais são mobilizados, instrumentalizados, performados em situações variadas e por diferentes grupos sociais. Foi, então, em grande medida a partir destes dois trabalhos coletivos que minhas preocupações passaram a se voltar para as linhas temáticas que definem hoje a minha produção intelectual, ou seja, a pesquisa sobre a história no espaço público e sobre os públicos da história, de um lado, e, de outro, o estudo sobre as variedades de usos do passado, sejam eles feitos pela via da historiografia ou não. Creio que três textos em especial delineiam o conteúdo programático de minhas pesquisas atuais, que são estruturadas a partir de duas categorias chave: regimes historiográficos e culturas de passado. Por regimes historiográficos entendo, em linhas gerais e seguindo a via aberta e não de todo explorada por François Hartog e Gérard Lenclud, os diferentes modos de legitimação pelos quais o conhecimento histórico é reconhecido como tal em nossa sociedade. Tais modos, por sua vez, estão diretamente vinculados às condições que definem a interação entre um produtor (o historiador), seu produto (a escrita da história), e aqueles que recebem este produto (leitores). Ou seja, 25 AVILA, Arthur Lima de; NICOLAZZI, Fernando; TURIN, Rodrigo (orgs.). A história (in)disciplinada. Teoria, ensino e difusão do conhecimento histórico. Vitória: Milfontes, 2019. 175 a legitimidade do conhecimento histórico é constituída no espaço dinâmico entre produção e recepção da história, conferindo aos seus distintos públicos um papel ativo em todo o processo. Busquei lapidar com mais vagar essas ideias tanto no capítulo “A história e seus passados: regimes historiográficos e escrita da história”, de 2017, como no artigo “Os historiadores e seus públicos: regimes historiográficos, recepção da história e história pública”, publicado em 2019.26 Com relação à noção de culturas de passado, desenvolvida ao longo dos encontros A história (in)disciplinada, ela me oferece a possibilidade de deslocar a própria ideia de história, encarada na condição de uma disciplina, como forma mais privilegiada de relação com os passados. Para tanto, vali-me do curioso caso do monolito de Tláloc, talhado por sociedades pré-hispânicas supostamente no século VI, encontrado em um pequeno vilarejo mexicano a cerca de 60 Km da Cidade do México e que, na década de 1960, foi trasladado para o Museu Nacional de Antropologia, em vias de ser inaugurado. Todos os embates e disputas, que não eram apenas em torno do objeto, mas também sobre os diferentes passados da sociedade mexicana contemporânea, manifestos no périplo de Tláloc de San Miguel de Coatlinchán até a entrada do Museu serviram para esboçar a noção que possui uma evidente conotação antropológica e dialoga diretamente com os estudos chamados de etnografias da historicidade.27 Essas duas categorias serviram de tema para dois projetos de pesquisa que foram submetidos para renovação da bolsa de produtividade do CNPq. O projeto Os historiadores e seus públicos. Regimes historiográficos e leitura da história, apresentado para o período entre 2016 e 2019, efetivou a transição temática e cronológica de minhas pesquisas. Dando continuidade às reflexões realizadas no projeto anterior, Erudição, ceticismo, historiografia: a cultura histórica francesa no século XVI (Bodin, Montaigne, La Popelinière) (2013-2016), tinha por objetivo investigar teoricamente o papel que a prática da leitura desempenha no processo de legitimação do conhecimento histórico. 26 NICOLAZZI, Fernando. “A história e seus passados: regimes historiográficos e escrita da história”. In: BENTIVOGLIO, Julio; NASCIMENTO, Bruno César (orgs.). Escrever história. Historiadores e historiografia brasileira nos séculos XIX e XX. Vitória: Milfontes, 2017, p. 7-38; NICOLAZZI, Fernando. “Os historiadores e seus públicos: regimes historiográficos, recepção da história e história pública”. Revista História Hoje, vol. 8, n. 15, 2019, p. 203-222. 27 NICOLAZZI, Fernando. “Culturas de passado e eurocentrismo: o périplo de Tláloc: In: AVILA, Arthur Lima de; NICOLAZZI, Fernando; TURIN, Rodrigo (orgs.). A história (in)disciplinada, op. cit., p. 211-244. 176 Para o triênio seguinte, entre 2019 e 2022, submeti o projeto Culturas de passado e experiências de tempo: usos públicos da história na contemporaneidade. O objetivo desta proposta de pesquisa era propor um foco específico para se pensar algumas transformações ocorridas no regime de historicidade moderno e na experiência contemporânea de tempo, situando como tema de análise a noção de culturas de passado. Com isso, pretendia criar condições teóricas para mapear diferentes formas de usos públicos ou políticos do passado e da história, a partir das três últimas décadas do século XX, em variados contextos sociais, com particular atenção à sociedade brasileira do século XXI, indagando sobre o estatuto social e epistemológico do passado e da historiografia na sociedade ocidental. Alguns estudos de caso que articulavam essas duas linhas de investigação, mesmo antes delas estarem plenamente definidas, puderam ser publicados. Um desses artigo, escrito em parceria com Caroline Bauer, acabou tendo considerável ressonância, sobretudo por termos estabelecido relações entre o curioso caso de um falsário espanhol com as formas de revisionismo histórico assumidas por um historiador midiático brasileiro.28 Em outro, analisei algumas intervenções públicas de um conhecido historiador com ampla inserção no espaço público nacional, buscando compreender as formas de engajamento com seus diferentes públicos que eram por ele realizadas, situando isso no plano das indagações sobre o lugar da ética na prática historiográfica.29 No contexto das comemorações do bicentenário da independência, propusemos no âmbito do LUPPA um projeto coletivo para se mapear as percepções públicas em relação ao fato, buscando estudar os caminhos da memória social e as modalidades de uso público da independência na contemporaneidade. Desse projeto, ainda há um farto material produzido a partir de pesquisas quantitativas feitas nas ruas de Porto Alegre que está em fase de sistematização, embora alguns primeiros resultados já tenham sido publicados.30 Por fim, seguindo uma análise de todos os projetos de lei que propunham 28 BAUER, Caroline Silveira; NICOLAZZI, Fernando. “O historiador e o falsário: usos públicos do passado e alguns marcos da cultura histórica contemporânea”. Varia Historia, (UFMG. Impresso), vol. 32, n. 60, 2016, p. 807-835. 29 NICOLAZZI, Fernando. “Muito além das virtudes epistêmicas: o historiador público em um mundo não linear”. Revista Maracanan, n. 18, 2018, p. 18-34. 30 NICOLAZZI, Fernando. “Maria Leopoldina between history and memory”. E-Journal of Portuguese History, n. 21, 2023, p. 391-404. 177 regulamentar a profissão de historiador, desde 1968 até a efetiva aprovação da lei em 2020, após o veto presidencial de Jair Bolsonaro, busquei compreender as relações entre disciplina e profissão tanto no ambiente acadêmico quanto em suas consequências sociais mais amplas.31 Meu entendimento é que o processo de regulamentação legal manifestou uma disjunção entre o que são os postulados da disciplina e o que são definidos como atribuições do profissional. Se atentarmos aos vários documentos legais que fazem parte desse dossiê, desde o ano de 1968, quando foi protocolado o primeiro projeto para regulamentar a profissão, isso me pareceu perceptível. Essas linhas investigativas estão plenamente inseridas em meu atual projeto de pesquisa, que está vinculado à bolsa de produtividade do CNPq, intitulado Entre a disciplina e a profissão: percepções públicas acerca da história e dos historiadores (Brasil, século XXI). Sua motivação inicial parte de uma constatação razoavelmente evidente: historiadores acadêmicos, conhecemos pouco a pluralidade dos públicos que se interessam pela história e que mantêm alguma forma de engajamento com o conhecimento histórico, seja ele produzido nas universidades ou não. Complementar a isso, faltam-nos elementos para compreender como a disciplina da história e seus praticantes disciplinados são percebidos hoje no espaço público brasileiro. Minha aposta é que repensar o lugar da história e de historiadores e historiadoras em nossa sociedade é condição para propor encaminhamentos teóricos e práticos no sentido de conciliar (ou reconciliar) profissão e disciplina a partir das demandas populares e das expectativas sociais diante da prática e de seus praticantes, sem perder de vista o grau de autonomia política e epistemológica que a disciplina deve sempre manter. Analisar formas de percepção pública acerca da profissão e de seus profissionais é o objetivo da pesquisa, a qual se debruça sobre diferentes materiais (textos teóricos sobre a historiografia, projetos legislativos relacionados à disciplina e à profissão, editais de provimento para o cargo de historiador, projetos político-pedagógicos de cursos de graduação em história, sondagens quantitativas etc). A hipótese que norteia a investigação é a de que a atenção aos públicos da história é condição fundamental para enfrentar muitos dos impasses e dilemas tanto da profissão como da disciplina da 31 NICOLAZZI, Fernando. “Between discipline and profession: historical studies and their public relevance in Brazil”. In: BEVERNAGE, Berber; RAPHAEL, Lutz (Org.). Professional Historians in Public: Old and New Roles Revisited. Berlim: De Gruyter, 2023, p. 163-184. 178 história no mundo contemporâneo, deslocando e fortalecendo os elementos definidores da sua legitimidade social, justamente num contexto de constantes ataques e de questionamento do lugar ocupado pela história disciplinada e da historiografia acadêmica no espaço público. Mais recentemente, em virtude justamente do que o contexto social impõe a partir da disseminação de formas de negacionismo histórico e científico, e da ascensão de ideais de extrema-direita (muitos deles com clara tendência fascista), as atenções coletivas no LUPPA se voltaram a essa situação, repercutindo em minha própria produção intelectual. Desde 2017, emergiu o interesse e a necessidade política de acompanhar mais de perto os produtos históricos comercializados pela empresa Brasil Paralelo. Se no início, embora com inúmeras discordâncias em relação à ideia de história que era ali veiculada, cheguei a considerar aquele como um mero exemplo de história pública que era disponibilizado para os variados públicos que têm um genuíno interesse pelos passados nacionais, com o passar do tempo e com o crescimento exponencial da empresa as coisas ganharam complexidade política e passaram a ser vistas pelo que de fato são: uma ameaça à democracia. Em alguns estudos e apresentações, busquei analisar teoricamente aquelas produções e intervir politicamente no debate, podendo inclusive divulgar essas pesquisas em outros idiomas.32 Finalmente, não poderia deixar de fazer alguns comentários a respeito da oportunidade que tive de passar um ano, entre outubro de 2018 e outubro de 2019, realizando estágio de pós-doutorado junto à Universitat de Barcelona. Tanto a Catalunha, a partir de suas particularidades, como a Espanha como um todo, mantêm no espaço público discussões constantes e altamente politizadas a respeito do tema para eles central da memoria histórica. Atravessando uma pluralidade de enfoques temáticos, mas tendo por eixo estruturante a experiência do regime fascista de Franco, o tema organiza os debates a respeito das formas de uso do passado e o papel do 32 NICOLAZZI, Fernando. “Un passé national pour le bolsonarismo: les usages politiques de l'indépendance dans le Brésil contemporain”. Ideas, n. 20, 2022, p. 1-8; NICOLAZZI, Fernando. “Negacionismo e usos afetivos do passado no Brasil contemporâneo”. Passés futurs, n. 13, 2023 (texto digital); NICOLAZZI, Fernando. “Brasil Paralelo: restaurando a pátria, resgatando a história. A Independência entre memórias públicas e usos do passado”. In: CRAVO, Télio Anísio; COSTA, Wilma Peres (Org.). Independência: Memória e Historiografia. São Paulo: Edições Sesc, 2023, p. 73-93; NICOLAZZI, Fernando. “El negacionismo como negocio. Usos del pasado y comercio de la historia en el bolsonarismo”. In: WASSERMAN, Fabio (org.). Pasado presente. Historia, memoria y política en América latina (siglo XXI). Madrid: Sílex, 2024, 195-221. 179 conhecimento histórico junto à ciudadanía. Sob supervisão do prof. Ricard Vinyes, que naquele momento estava afastado dos afazeres na universidade porque ocupava o Comisionado de Programas de Memoria da cidade de Barcelona, o estágio trouxe a possibilidade de acompanhar com proximidade debates no calor da hora, que envolviam o intento separatista catalão e suas consequências jurídicas, o traslado dos restos mortais de Franco do Valle de los Caídos, o fim das atividades do ETA e a as disputas em torno da memória do terrorismo. Tal experiência in loco, além de mostrar os potenciais e limites de políticas de memória histórica que, inclusive, assumem fundamentos legais, tornou presente em minhas preocupações investigativas assuntos sobre os quais de modo algum investiria meu tempo não estando naquele lugar. O resultado foram textos planejados para uma circulação mais ampla, publicados no portal Café História, a partir do LUPPA e em parceria com Caroline Silveira Bauer, numa série especial intitulada “Os passados presentes da Espanha”. Coube a mim escrever particularmente sobre dois temas: as relações entre violência, democracia e trauma, a partir dos discursos de memória na literatura e na história após o fim das atividades do grupo terrorista basco; mas também sobre a curiosa história do bairro gótico de Barcelona, exemplo bem-sucedido de uma forma de invenção de passado e uso da memória na confluência entre a produção de identidades sociais e o comércio de história a partir do turismo.33 Para além da universidade: extensão e públicos não acadêmicos Embora a parte que considero mais significativa de minha produção intelectual tenha se dado na forma de textos acadêmicos, publicados em artigos de revistas científicas e como capítulos de livro, creio que uma noção mais ampla e pertinente do que seja a produção de um historiador deva considerar outras formas de atuação, com resultados que não se manifestam apenas na forma escrita. A extensão universitária, esse outro pilar da universidade pública junto com a docência e a pesquisa (deixarei o 33 NICOLAZZI, Fernando; BAUER, Caroline Silveira. Os passados presentes da Espanha: série especial. Café História, Rio de Janeiro, 03/06/2019; NICOLAZZI, Fernando. Democracia, violência e sociedade: o ETA e os usos do seu passado na Espanha. Café História, 15/07/2019; NICOLAZZI, Fernando. Violência, memória e trauma: o terrorismo do ETA em discursos da literatura e da história. Café História, 05/08/2019; NICOLAZZI, Fernando. Um mosaico de passados: o Bairro Gótico de Barcelona. Café História, 16/09/2019. 180 empreendedorismo que vem tomando conta da linguagem administrativa atual de lado), é uma das formas de atuação que possibilitam formas de abertura importantes para a historiografia. E isso tem pouco a ver com a questionável ideia de uma suposta separação entre universidade e sociedade, mas diz respeito às diferentes modalidades com que nos relacionamos com os públicos. Se a ideia de divulgação científica muitas vezes é encarada como uma possibilidade para que o conhecimento produzido na academia ganhe ressonância, de minha parte prefiro falar em termos de comunicação pública da ciência. A diferença é sutil e pode mesmo parecer despropositada, mas ela carrega um significado relevante: se muitas vezes a divulgação assume a ideia de um divulgar para, deixando a impressão de um processo em via de mão única, da universidade para a sociedade, a comunicação permite pensar em termos de diálogo com, de um caminho de mão dupla, envolvendo obviamente tanto a enunciação para determinados públicos como a necessidade de escuta daquilo que estes públicos oferecem em contrapartida, suas demandas e expectativas. A dimensão da troca e do intercâmbio me parece mais evidente na comunicação do que na divulgação. As práticas extensionista, nesse sentido, dada a própria estrutura institucional como são constituídas na universidade, oferecem possibilidades interessantes. Essas considerações, entretanto, não podem esconder um fato facilmente identificável: minha atuação na extensão acadêmica é bastante limitada. Para tratar do tema, parto da definição institucional disponível: “a extensão, como atividade fim da Universidade, é o processo educativo, cultural e científico que articula, amplia, desenvolve e realimenta o ensino e a pesquisa, propiciando a interdisciplinaridade e viabilizando a relação transformadora entre Universidade e sociedade. Este contato, que visa ao desenvolvimento mútuo e estabelece a troca de saberes, tem como consequências a produção do conhecimento resultante do confronto com as realidades nacional e regional, a democratização do conhecimento acadêmico e a participação efetiva de comunidades na atuação da Universidade”.34 Como se percebe, seria possível e mesmo aceitável que muitas de nossas atividades corriqueiras fossem tratadas como extensionistas. Creio, no entanto, que o elemento distintivo se encontra nas últimas 34 UFRGS. Resolução n. 75 de 2019 do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão, p. 1. 181 palavras definidas pela resolução, “participação efetiva de comunidades na atuação da Universidade”. Sem entrar no mérito do que se entende por “comunidades”, a extensão universitária é o espaço propício para aquela ideia de comunicação pública do conhecimento. É justamente neste ponto que minha atuação persiste como bastante limitada. Contudo, ainda que não formalizadas pelos processos burocráticos estabelecidos, gostaria de indicar duas atividades que considero como formas de atuação extensionista que pude realizar.35 A primeira delas foi realizada a partir da concessão de uma bolsa remunerada no âmbito do Programa Ciência na Sociedade Ciência na Escola, da Pró-Reitoria de Pesquisa da UFRGS. Tratava-se mais especificamente de um Bolsa de Iniciação à Popularização da Ciência, que foi atribuída em 2018 à estudante Eduarda Ferrari Soletti, mas que envolveu também vários outros estudantes que atuavam no âmbito do LUPPA. Seu resultado foi a realização do chamado Pedal pela Memória, circuitos ciclísticos por alguns lugares da região central de Porto Alegre que guardavam interesse para determinadas formas de memória. Foram realizadas duas edições: uma voltada para a memória LGBTQIA+, em 2018, outra voltada para a memória da democracia, em 2019. Infelizmente o projeto teve que ser interrompido em razão da pandemia em 2020, mas resultou na escrita de um capítulo publicado em uma coletânea voltada para história pública, onde discutimos as bases teóricas da proposta bem como seu processo de realização. 36 A segunda atividade tem um caráter mais rotineiro, pois ocorre anualmente no âmbito da universidade. Trata-se do UFRGS Portas Abertas, uma espécie de feira dos cursos e práticas realizadas na e pela universidade voltada ao público que tem interesse em ingressar como discente. Desde 2018, a partir do LUPPA, venho participando com outros colegas e bolsistas desta atividade, apresentando não tanto os aspectos gerais do curso de história, mas algumas das modalidades de atuação de graduandos em história. Um público formado basicamente por estudantes do ensino médio, mas bastante 35 Não formalizadas pois os caminhos da burocracia acadêmica para instituir projetos, eventos ou atividades de extensão sempre me pareceram demasiadamente complicados e pouco intuitivos em seu sistema de registro. Daí minha opção por realizar as atividades, mas sempre a partir dos vínculos institucionais mantidos com a docência e a pesquisa. 36 NICOLAZZI, Fernando. “Pedal pela memória”. In: SCHMIDT, Benito Bisso; MALERBA, Jurandir (orgs.). Fazendo história pública. Vitória: Milfontes, 2021. 182 heterogêneo em termos de origens sociais e de expectativas em relação ao ensino superior e, quando é o caso, em relação à graduação em história. São momentos muito interessantes em que, mais do que “vender o peixe”, no fundo discutimos como preparar o pescado. E a alegria costuma também vir junto, quando no ano seguinte algum aluno ou aluna nos procura para dizer que a decisão pelo curso de história foi também motivada de alguma maneira pelas atividades que realizamos no Laboratório. Essas duas atividades possibilitaram me colocar diante de uma pluralidade de públicos e situar em outras bases meu entendimento a respeito daquilo que faço enquanto um professor universitário e historiador acadêmico. Do mesmo modo, a partir de determinados engajamentos políticos, forma de intervenção pública também favoreceram um contato ampliado com diferentes espaços de recepção. Há quase uma década venho publicando textos com certa constância, mas nenhuma periodicidade (foram 28 textos entre 2016 e 2023), no jornal portoalegrense Sul21, que produz uma forma de jornalismo distinto daquele da mídia hegemônica. Em sua quase totalidade, são manifestações muito pessoais a partir da situação social e política da cidade, do estado ou do país, quase uma espécie de desafogo para colocar por escrito sentimentos por vezes bastante intensos e difíceis de serem guardados. Dois temas concentraram a maior parte das intervenções, dois combates pela história: o primeiro, contra a ideologia chamada Escola sem Partido; o segundo, contra os negacionismos da empresa Brasil Paralelo. Além de ter resultado em algumas ameaças pessoais, medidas extrajudiciais e pelo menos um processo jurídico nas instâncias cível e criminal, creio que este tipo de exposição, ainda que muito restrita a determinados nichos, vem me ensinando uma espécie de decoro discursivo, situando estes textos entre a densidade analítica de um artigo acadêmico e a verborragia non sense das redes sociais. Além disso, acompanhar as reações públicas a eles também oferece um precioso aprendizado do lugar social ocupado pelos historiadores e historiadoras hoje. Entre o deboche (“historiador que não sabe nada”) e a indignação (“historiador esquerdista”), por vezes algumas respostas indicam que há sim um caminho a ser percorrido na disputa pelo espaço público, um dos nossos principais e mais urgentes dilemas contemporâneos. 183 Viagens e eventos Boa parte da produção intelectual de um docente universitário se dá na forma de participação em eventos, apresentando comunicações, participando em mesasredondas, proferindo palestras e conferências. Os eventos permitem uma circulação não apenas do texto (mesmo que marcado pela oralidade), mas, digamos, do próprio corpo do docente, colocando-o diante de outros públicos, plateias, lugares. Muitas vezes a participação em eventos traz a possibilidade daquela experiência que é constituinte do saber histórico desde os antigos: a viagem. Creio que o deslocamento para outros e variados espaços funciona também como uma forma de aprendizado, um ganho de experiência que é fundamental para o exercício profissional. Primeiro, porque proporciona que o diálogo com outras pessoas ocorra de modo mais direto; segundo, porque possibilita que conhecemos presencialmente outras realidades acadêmicas. Ainda mantenho um gosto pela viagem à trabalho, pela mobilidade que, por vezes, sobretudo em um país de proporções continentais, torna-se extremamente cansativa. Sem mencionar trajetos para fora do país, que no meu caso são muito mais esporádicos e limitados, a viagem nacional acaba por se tornar uma rotina: embora nunca tenha feito este cálculo, e com exceção dos anos de confinamento pandêmico, creio que desde que me tornei docente pelo menos uma viagem por ano, a convite ou me inscrevendo em algum simpósio ou congresso, cheguei a realizar. Foram raras as recusas de convites e os que sempre faço questão de aceitar, inclusive modificando a agenda previamente estabelecida, são aqueles para participar de eventos organizados por estudantes, que normalmente têm o nome de semana de história. Atuando em uma instituição em que o corpo discente, de graduação e pósgraduação, é bastante tímido na organização de atividades acadêmicas, sempre me impressiona a disposição de alunos e alunas, seja de grandes universidades e com acesso mais amplo a recursos, seja de instituições menores e sem muitas facilidades, em se propor a realizar eventos e fomentar o debate intelectual Para alguém cuja trajetória foi sendo realizada contemporaneamente a um projeto de reestruturação do ensino superior como foi o REUNI, a viagem torna viável ao mesmo tempo conhecer instituições bastante tradicionais, com uma história consolidade e cuja historicidade acaba por impregnar nos seus próprios espaços 184 arquitetônicos (no meu ranking dos campi mais interessantes, a UFMG está praticamente ao lado da UNB, com uma leve mas significativa vantagem: no seu entorno há Belo Horizonte, não Brasília), mas também universidades recém criadas, cujos espaços foram construídos do zero ou adaptados de construções já existentes, mas ressignificadas a partir das necessidades universitárias. E estes deslocamentos não raro ensejam o olhar comparativo, ou seja, permitem colocar em perspectiva o próprio espaço físico de minha instituição e constatar, não sem um profundo lamento, sua evidente decadência, embora a vaidade motivada pelos rankings e pelas métricas acabem por vezes funcionando como fachada reconfortante. Comecei a participar de eventos regionais e nacionais desde o mestrado, quando apresentei o andamento de minhas pesquisas no Simpósio Nacional da ANPUH, na cidade de João Pessoa, em 2003. Embora de forma não tão assídua como talvez deveria, o SNH tem sido um dos eventos periódicos que mais frequentei, junto com, obviamente, o SNHH, onde de fato encontro o espaço mais intenso de interlocução. Ainda que as dimensões de um encontro como aqueles promovidos pela ANPUH e mesmo pela SBTHH tornem inviável um acompanhamento mais abrangente das muitas atividades que ocorrem, na maior parte do tempo de forma simultânea, creio que é justamente esta vastidão que traz algo de particular nestas modalidades, permitindo um contato ampliado com colegas e públicos bastante variados. Claro que isso acaba ocorrendo às custas de um maior tempo para que o debate e a reflexão de fato ganhem consistência, mas penso ser um preço adequado a pagar quando buscamos sair dos circuitos fechados dos nossos próprios grupos ou redes de pesquisa. É difícil para mim recordar de todas as viagens e eventos que realizei profissionalmente, pois nem sempre acabam sendo registrados no currículo Lattes, esse arquivo virtual da nossa vida acadêmica. Além disso, durante a pandemia e mesmo após o fim do confinamento, a rotina de atividades remotas se naturalizou, possibilitando a participação à distância e o contato com públicos que de outra forma seriam inviáveis. Se por um lado as vantagens da viagem são perdidas, o ganho com o acesso a outros lugares e pessoas, ainda que mediado pela tela, é algo que não pode ser desconsiderado. Mas além de frequentados, os eventos precisam ser realizados. A organização de eventos acadêmicos é algo que acaba sendo incorporado em nosso fazer cotidiano, pelo menos para aqueles e aquelas que se dispõe a oferecer parte importante de seu tempo 185 para isso. Meus anos no Seminário de Mariana e a atuação junto ao NEHM me colocaram diante da realidade da organização de um evento que crescia ano a ano e que acabou por assumir proporções consideráveis. A estrutura organizativa, o montante de recursos, o planejamento logístico, a relação com a comissão encarregada, a recepção de convidados e dos públicos, tudo envolve um grau de planejamento e de dedicação que implica decididamente um comprometimento institucional, e não apenas por parte de docentes, mas também, e de forma imprescindível, de discentes. Escrevendo estas linhas após ter retornado da última edição do SNHH me dá a exata noção disso. Após ter assumido a vaga de docente na UFRGS, descobri uma modalidade de financiamento oferecida pela Pró-Reitoria de Pesquisa que, naquele momento (2012), possibilitava que cada docente, a partir de alguns requisitos que podiam ser facilmente cumpridos, trouxesse até três convidados externos para atividades acadêmicas em Porto Alegre. Surpreendentemente, praticamente ninguém do Departamento encaminhavam essas solicitações. Como passei a me envolver mais diretamente com o GT Teoria da História e Historiografia, vinculado à ANPUH regional, encarei aqueles editais como uma oportunidade ímpar para movimentar um pouco as coisas. Foi a partir daí que comecei a organizar as Jornadas de História da Historiografia, encontros de um dia, com uma mesa com dois participantes na parte da manhã e outra na parte da tarde, com muito tempo para o debate e para a discussão coletiva. As jornadas ocorriam duas vezes ao ano, em junho e em novembro, e consegui, com o apoio de colegas da linha de Teorias da História e Historiografias do PPG para a organização e, sobretudo, para “emprestar” suas cotas de financiamento, organizar 7 edições delas, entre 2012 e 2015. O formato me parecia, e ainda me parece, bastante interessante, pois implicava uma apresentação com um tempo adequado de exposição e para o debate. Mas por vezes me dava a impressão de ser algo excessivamente volátil, sem uma possibilidade de sedimentar algo. Reuníamos especialistas para debates de altíssimo nível, mas isso acabava não ganhando em permanência. Ainda que algumas das edições fossem filmadas e posteriormente disponibilizadas publicamente, restava a sensação de que ainda faltava algo. Foi a partir daí que, em conversas completamente casuais, Rodrigo Turin, Arthur Lima de Ávila e eu, começamos a aventar a hipótese de realizar um evento sob um outro formato. A ideia era, mantendo a perspectiva de uma oportunidade que privilegiasse o espaço para o diálogo e a para a reflexão acadêmica, permitisse de alguma 186 forma fazer isso perdurar o tempo. Assim, ao invés de eventos sobre temas variados, que trouxessem regularmente diferentes convidados para Porto Alegre, para encontros pontuais e, em certa medida, efêmeros, pensamos em um formato que, ao longo de três anos e uma vez ao ano, mantivesse sempre as mesmas pessoas discutindo um eixo comum de questões, favorecendo que, de uma edição a outra, houvesse tempo suficiente para amadurecer a reflexão que, ao final, seria consolidada em um capítulo de coletânea. Definimos a questão da (in)disciplina da história como eixo teórico para a discussão e batizamos o evento, posteriormente publicado em livro, de A história (in)disciplinada: teoria, ensino e difusão do conhecimento histórico.37 Os encontros ocorreram em 2015, 2016 e, em razão do golpe de Estado ocorrido naquele ano, o seguinte teve que aguardar o ano de 2018 para poder ser realizado. Foram momentos realmente memoráveis aqueles e, creio, o livro teve certa repercussão positiva. A pandemia e a situação de confinamento impuseram outras formas de promoção e de organização de eventos. A partir do momento em que ficou evidenciado que aquele seria um momento longo de espera, sem condições para um retorno à convivência no curto prazo, os recursos possibilitados pelo mundo digital passaram a ser mobilizados de forma mais intensa. Enquanto a inépcia administrativa na UFRGS tornava indefinida a situação das aulas e demais atividades acadêmicas, a partir de nosso Laboratório iniciamos uma série de debates intitulada “Diálogos Luppa”, com transmissão on-line pelo canal do Youtube. Ocorrendo de forma quinzenal, sempre nas noites de quintas-feiras, foram quatorze sessões em que dois convidados abordavam tema contemporâneos que definíamos com antecedência, a partir da mediação que eu próprio assumia. A ideia era menos a de uma mesa-redonda que ocorresse de forma remota do que propriamente uma conversa aberta, tornando o evento mais dinâmico e, diria mesmo, interessante para uma audiência que interagia apenas por meio do chat da plataforma. Do ponto de vista acadêmico, aqueles foram momentos muito interessantes e profícuos no sentido da troca das ideias e do fomento a um tipo de reflexão que, em muitos casos (como nos temas envolvendo a pandemia), ocorria contemporânea ao seu próprio objeto. Do ponto de vista psicológico, posso dizer que servia para apaziguar um 37 AVILA, Arthur Lima de; NICOLAZZI, Fernando; TURIN, Rodrigo (orgs.). A história (in)disciplinada, op. cit. 187 pouco toda a angústia que tomava conta de nós, dando inclusive um certo sentido de rotina que organizava meu próprio tempo de isolamento. Além disso, a oportunidade me forçou, ou melhor dizendo, já que foi um esforço voluntário, motivou-me a conhecer um pouco mais a respeito do uso de plataformas de audiovisual, dos procedimentos de transmissão e edição de vídeos, algo que parece ter se tornado um caminho sem volta nas atuais circunstâncias. A inserção do trabalho historiográfico nas plataformas digitais, ainda que submetido aos dilemas dos modelos comerciais e aos algoritmos definidos pelas megacorporações que as administram, abre um campo de possibilidades que ainda precisará, falando no meu caso em particular, ser explorado de forma mais cuidadosa. As formas ocultas da produção intelectual Para finalizar este capítulo a respeito dos tempos da produção intelectual, talvez caibam algumas poucas palavras a respeito de um tipo de produção, que não só pode como deve ser colocado na conta do trabalho acadêmico, e que muitas vezes acaba sendo ocultado seja em razão da sua própria natureza sigilosa, seja pelo fato de ser muitas vezes desconsiderado como parte das atividades profissionais que realizamos cotidianamente. Refiro-me à elaboração de pareceres, seja para avaliação de artigos submetidos a revistas acadêmicas, seja para análise de projetos de pesquisa encaminhados a agências de financiamento. Se nas categorias disponíveis no currículo Lattes podemos inserir este tipo de produção na seção de “trabalhos técnicos”, cabe reconhecer que nem sempre temos plena ciência do que efetivamente define a tecnicalidade deste trabalho. Se atuamos em um modelo de ciência em que a avaliação por pares ou o famoso peer review encontram-se no centro das formas de legitimação do conhecimento produzido, não deixa de causar estranheza o fato de que nos nossos processos de formação de quadros acadêmicos este tipo de trabalho seja pouco discutido e, sobretudo, não seja encarado como parte das atividades e atribuições que requerem certa formação. Se em algumas vezes os pareceres científicos acabam se tornando tema de discussão pública, na grande maioria dos casos isso é devido a discordâncias do julgamento que expressam ou, em situações mais polêmicas e complexas, isso ocorre pelo fato de que acabam manifestando vieses sociais que infelizmente estruturam nossa 188 sociedade, como no caso recente que circulou nas redes sociais de um parecer negativo que considerou a maternidade como um fator desqualificador para a pesquisadora que submeteu o projeto. Assim, o caráter oculto deste tipo de atividade não se deve apenas às exigências que são consideradas legítimas para garantir um grau de objetividade adequado (se caráter feito às cegas ou a preservação do nome do parecerista para evitar constrangimentos), mas ele acaba sendo oculto no sentido de ocultado, entrando na conta daqueles “não ditos” de que Michel de Certeau falava em seu texto sobre a operação historiográfica. O fato é que, por mais técnico que seja, a emissão de um parecer não deixa de ser uma forma complexa de produção intelectual que obviamente respeita tanto critérios objetivos, definidos pela área de conhecimento, como requisitos protocolares determinados institucionalmente (pelas agências ou pelas universidades). Mas neles há também um peso considerável da subjetividade do avaliador, o que não implica necessariamente em um caráter pessoal, mas sim o lugar do sujeito ao realizar um procedimento que é, em sua essência, hermenêutico, ou seja, propriamente interpretativo. Se olhando hoje meu currículo consigo identificar as dezenas de vezes em que registrei a elaboração de um parecer (isso sem contar outras tantas que, por esquecimento ou desnecessidade), preciso reconhecer que sempre se tratou de uma forma de aprendizado feito na marra. Se durante a graduação as iniciativas de edição de um fanzine ou de uma revista acadêmica para graduandos já envolvia de alguma forma um princípio avaliativo, isso obviamente era feito de maneira demasiadamente amadora. Tudo mudou de figura quando, durante o doutorado, recebi a incumbência de emitir um parecer para um artigo que havia sido submetido para um periódico. Sem saber direito como proceder e, mantendo a perspectiva do sigilo, sem poder comentar com algum colega (o que hoje me parece excesso de zelo e ingenuidade), o resultado não poderia ser outro: um péssimo parecer. Creio, no entanto, que dentro de alguns limites eu consegui aperfeiçoar meus procedimentos de avaliação, adaptando-os às diversas situações a que somos convidados ou convocados a atuar (o parecer para um artigo é bastante distinto de um parecer para um projeto de pesquisa). Ainda que considere como uma das atribuições da minha profissão e assuma a inegável importância dessa função tenho para mim que 189 nem sempre é possível aceitar todas as incumbências que nos são dirigidas. Há um tempo próprio para o parecer e ele implica certa dedicação e cuidado que não pode ser feito a esmo. Claro que em alguns casos, o tempo disponível e um fator positivo (em certa ocasião, me dei ao trabalho de ler o romance sobre o qual tratava o artigo submetido para poder avaliá-lo adequadamente). Mas o mais fundamental dessas considerações que trago aqui é o fato de que talvez seja necessário que consideremos essa atividade como algo fundamental no âmbito de nossos processos formativos. Obviamente, não estou sugerindo a criação de disciplinas como Elaboração de parecer I ou Introdução ao parecer científico nos currículos de nossos cursos. Meu ponto é que precisamos fomentar de forma mais intensa uma cultura do debate e da crítica entre pares dentro de nosso ambiente de graduação. Trago um exemplo banal. Por vezes, em algumas atividades avaliativas entre alunos das primeiras etapas do curso, solicito um trabalho sem que sua autoria seja identificada, apenas o número do cartão da universidade (supondo que apenas seu detentor o conheça). Após a entrega, e sem aviso prévio, distribuo-os dentro da turma para que colegas avaliem os próprios colegas. Para mim sempre foi muito significativo o evidente constrangimento que isso acaba causando entre os estudantes. Claro que tento em seguida elaborar uma reflexão sobre o lugar da crítica em nosso trabalho intelectual, mas em um contexto marcado pelo tom de lacração das redes sociais, confesso que nem sempre sou bem-sucedido em meu intento. 190 Palavras finais “Já disse que isso aqui não é memória, é mergulho”. Ivan Angelo, Vida ao vivo, 2023. As identidades do historiador O exercício da memória impõe à reflexão seu tema correlato: a identidade. Se o gênero memorial foi aqui pensado desde o início como a manifestação/constituição de uma determinada persona acadêmica e institucional, o gesto de escrita pressupõe formas particulares que possibilitam a identificação e o reconhecimento de si por parte de quem se atribui a tarefa de colocar o gênero em funcionamento. Trata-se, neste caso, de uma forma de identidade que não é previamente dada, mas que apenas passa a ter seus traços mais reconhecíveis ao final de todo o processo. O tema, no entanto, não é novo. Em 1995, dois anos antes de meu ingresso como estudante de graduação em história, Francisco Falcon apresentou uma comunicação na mesa-redonda intitulada “A historiografia contemporânea e a identidade do historiador”, realizada durante o XVIII Simpósio Nacional de História, ocorrido no Recife.1 Na oportunidade, o historiador discorreu sobre a questão levantada a partir do que considerou como ataques perpetrados em duas direções diferentes, “o fazer do historiador” e o “discurso histórico”. Tratava-se de uma forma de enfrentar a crise da história, levando em conta o que assumia para ele o caráter de uma “crise de identidade do historiador”, motivada pelos questionamentos que abalaram os fundamentos epistemológicos da disciplina, o giro linguístico em primeiro lugar. Tais questionamentos atingiram, assim, tanto o produtor (o historiador) quanto o produto do conhecimento histórico (o texto historiográfico). De todo modo, ainda que reconhecesse a existência e mesmo a legitimidade da prática por indivíduos sem a formação disciplinar no campo, chamados por ele de “historiadores autodidatas” em contraposição aos “profissionalmente formados”, Falcon tratou do tema a partir de dentro da própria disciplina e, em certa medida, com a segurança de uma profissão constituída e plenamente identificável. Dou um salto no tempo e chego ao ano de 2018, seis anos antes de apresentar meu Memorial de fim de carreira. Foi o ano em que Rodrigo Turin, meu contemporâneo geracional, publicou seu artigo “Entre o passado disciplinar e os passados práticos. 1 FALCON, Falcon. “A Identidade do Historiador”. Estudos Históricos, n. 17, 1996, p. 7-30. 192 Figurações do historiador na crise das humanidades”.2 Seu intuito enunciado logo no início é “investigar os modos pelos quais os historiadores hoje redefinem sua identidade, enfrentando esse encontro entre a tradição disciplinar e as demandas contemporâneas”.3 Como se percebe, aproximadamente um quarto de século após as considerações de Francisco Falcon e a partir de uma geração bastante distinta daquela de que Falcon fazia parte, persiste a inquietação com a ideia de identidade do historiador encarada a partir do postulado da crise, neste caso, não apenas da história, mas das humanidades como um todo. Ainda seguindo o diagnóstico oferecido por Turin, elaborado num contexto em que os questionamentos em relação à legitimidade da historiografia chegam tanto de dentro como de fora da instância disciplinar, é possível perceber que “o historiador cada vez mais vê sua autoridade sendo intensamente disputada na arena pública, esmaecendo aquela forte distinção entre profissionais e amadores, estabelecida no século XIX”. Isso levou-o a uma indagação crucial para este contexto: “o que resta dessa distinção? No que hoje pode se sustentar a profissão do historiador e seu papel na sociedade diante dessas novas experiências sociais e políticas?”.4 Não é função deste Memorial, obviamente, oferecer respostas contundentes aos problemas que a situação contemporânea coloca aos praticantes do ofício. É preciso considerar, no entanto, que minha trajetória foi contemporânea a todo esse movimento que, mantendo-se a preocupação de fundo, fez deslocar a forma como as perguntas são colocadas. Há pontos de encontro entre os dois autores, mas parece-me que Rodrigo Turin mostra de forma mais direta como os dilemas em torno da identidade do historiador demandam enfrentamentos que atravessam de dentro para fora e de fora para dentro a epiderme disciplinar da história. Da mesma forma como a historiografia modificou as formas de abertura e de intervenção no espaço público, este mesmo espaço público se alterou de tal maneira que forçou os historiadores a reformularem os princípios que orientam os elementos definidores de sua identidade. No campo de atuação em que me situo mais diretamente, isso me parece explícito. 2 TURIN, Rodrigo. “Entre o passado disciplinar e os passados práticos. Figurações do historiador na crise das humanidades”. Tempo, vol. 24, n. 2, 2018, p. 186-205. 3 Ibid., p. 186. 4 Ibid., p. 192. 193 Basta atentar ao principal evento do campo, o SNHH. As primeiras edições trataram das dinâmicas do historicismo, de como aprender com a história, do tempo presente e os usos do passado, da biografia e da história intelectual. Já em sua oitava edição, de 2014, o dentro e o fora da disciplina começou a mostrar seus efeitos e o tema geral abarcou as variedades do discurso histórico para além do texto. Dois anos depois, os públicos do historiador brasileiro serviram de pretexto e no biênio seguinte os desafios contemporâneos para a historiografia eram tematizados. Em 2022, após o resultado das eleições presidenciais que retomaram nossos passos incertos pela democracia, vozes, pluralidades e futuros possíveis organizaram as reflexões então apresentadas. Em agosto deste ano, se historicidades e teorias constavam no título, fezse questão também de inserir nele a palavra afetos, pensando nas confluências entre o ensino da história a imaginação democrática. Toda instituição de identidades sociais implica, de uma forma ou de outra, uma política identitária. Nesse sentido, são os traços gerais desta política que foram profundamente transformados e mesmo transtornados. Sem entrar no mérito da questão e mantendo-me restrito ao simples esforço de constatação, o fato é que a ideia quase neutra e asséptica de historiador e os princípios puramente disciplinares de identidade não parecem mais ser suficientes no âmbito dos debates que ocorrem hoje em dia. A escrita de um memorial implica, por conseguinte, uma atenção a esse contexto de modificações. Se elas são proveitosas teórica e politicamente ou meros modismos fomentados por uma cultura de redes sociais, não cabe aqui o julgamento. Relendo as páginas precedentes e revisitando minha trajetória, não penso ser adequado simplesmente considerá-la como o percurso de um historiador. Trata-se sim do itinerário de um historiador homem, branco, nascido no sul do país, em uma classe média remediada, que ingressou no ensino superior em um contexto anterior às políticas de ações afirmativas e que, em razão de tudo isso, privilegiou-se de fatores estruturais que garantem a este perfil específico, se não regalias, ao menos vantagens ou prerrogativas que uma sociedade patriarcal, estruturalmente machista e racista interdita a outros indivíduos. Se ao longo de todo este Memorial a ênfase recaiu invariavelmente nas formas como me identifico institucional e epistemologicamente com um determinado campo de saber, a teoria da história e a história da historiografia, foi sobretudo porque ainda me cabe realizar um trabalho atento, cuidadoso e demorado 194 para incorporar em meu ethos profissional, mas também como ética para a vida, minha própria branquitude, meu gênero, minha condição de classe, minha situação geográfica. Obviamente, isso tem muito pouco a ver com a escolha de novos objetos para a pesquisa, mas significa problematizar a forma como meus velhos objetos serão pesquisados e as complexas implicações dos marcadores sociais em meu modo próprio de fazer história e tornar-me historiador. Assim, do que foi feito nesse Memorial, há um dado positivo no fato dele ter sido escrito naquele meio termo/meio tempo da vida a que me referi nas palavras iniciais, pois nos variados tempos que foram aqui abordados, há ainda o tempo que falta e que traz a possibilidade concreta de que, no segundo tempo da vida, minha identidade profissional possa ser reconstruída segundo outros parâmetros. O mergulho É difícil descrever com exatidão o som que escuto. Não se trata bem de um zumbido, tampouco é algo que soe como incômodo. Tão logo a cabeça afunda na água, ele começa a preencher meus ouvidos. Alguém poderia dizer que se trata de uma forma de silêncio e em certa medida o é. Mas apenas se considerarmos como silêncio a simples ausência de voz. Há algo ali que não implica necessariamente a inexistência de ruídos, persistindo sempre uma espécie de rumor que acompanha cada braçada, ganhando outras ressonâncias quando a cabeça se movimenta para puxar o ar acima da superfície. Foi este rumor que me acompanhou ao longo dos meses em que matutei sobre este Memorial, ruminando lembranças que sempre me aparecem opacas, fora de foco, quase apagadas pelas minhas dificuldades de lembrar. Foi neste rumor e na solidão quase diária em que me coloco quando nado que muitas das coisas escritas e dos fatos narrados nessas páginas começaram a ganhar forma. Posso dizer com certa segurança que, neste caso, isso aqui não foi memória, foi mergulho. Talvez não pelas águas fluidas de Lete, mas nessa massa líquida e turva que a desmemória me envolve. Lamentavelmente, a excelente metáfora que o romance de Ivan Angelo me propiciou, assim que o li durante as férias no começo deste ano, perdeu muito de sua força poética quando alguns meses depois as águas literalmente invadiram a cidade em que vivo. Aliás, este Memorial, que passou a ser pensado nos dias em que começávamos 195 a abandonar as máscaras e a retomar o convívio e a proximidade com outras pessoas, teve sua escrita finalizada pouco depois das enchentes que destruíram vastas regiões do Rio Grande do Sul, no momento mesmo em que nuvens tóxicas produzidas pelas queimadas no norte e no centro-oeste do país tomam conta do céu de Porto Alegre, trazendo de volta para as ruas as mesmas máscaras de outrora. Pandemia, inundação, fumaça, tudo aquilo que de alguma forma nos sufoca, dificulta o gesto de respirar, impossibilita que o oxigênio seja inalado e os pensamentos encontrem lugar, como se fosse um mergulho insensato na destruição. Apesar disso, peço licença para manter a metáfora e as ideias que ela me traz. A natação implica um exercício compassado de respiração natural, uma cadência muito bem orquestrada entre absorver o ar pela boca nos breves instantes entre algumas braçadas, e soltá-lo pelo nariz num ritmo totalmente controlado, quando a cabeça retorna para debaixo da água. Com a prática, todo esse ritual fisiológico passa a ser realizado de forma inconsciente; é justamente no automatismo dos pulmões que para mim a consciência toma lugar as ideias começam a aflorar na cabeça. Ao gesto da respiração alveolar, portanto, vem se somar esta outra forma de respiração neurológica que me dá fôlego aos pensamentos e às recordações. Poderia dizer que, como nesse gesto aquilo que inalo e exalo sou eu mesmo que produzo, se trata de um tipo de respiração artificial, mas isso seria apenas um artifício para encaixar forçadamente nessas páginas o trecho de Ricardo Piglia que preciso citar: “falo, então, para não pensar nisso, de outra coisa [...] de outra coisa cuja história tenho de contar, porque só é meu aquilo cuja história esqueci. E penso que ao contá-lo se dissolve e se apaga de minha lembrança: porque tudo o que contamos se perde, se afasta. Contar, então, é para mim uma maneira de apagar dos afluentes de minha memória aquilo que quero manter para sempre afastado de meu corpo”.5 No deslizar pela água da piscina, acompanhado por aquele indecifrável e indescritível rumor, penso ao final de todo esse percurso sobre o que seria, para mim, essa “outra coisa” de que falei nessas quase duas centenas de páginas; páginas que testaram a paciência de quem teve a obrigação ou a vontade de lê-las (neste caso, obrigação e vontade nem sempre caminham juntas). Pergunto ainda se tudo foi feito 5 PIGLIA, Ricardo. Respiração artificial. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 48. 196 para não pensar mais nisso, quando o que realmente fiz nos últimos meses não foi outra coisa senão pensar cotidianamente nisso. Seja como for, a desmemória me obriga a concordar que aquilo que é meu foi o que esqueci, talvez não de forma irreparável, mas como o que ficou reservado, esperando o momento em que a exigência institucional me fizesse buscá-lo e o prazer do texto o transformasse em algo concreto. A leitura do que escrevi certamente trouxe a sensação de que a escrita, ao fim e ao cabo, dissolveu tudo em minhas lembranças, como se elas de alguma forma se perdessem ou se afastassem de mim, permanecendo, contudo, inscritas nessas palavras. Creio ser exatamente no momento em que leio (ou releio) meu próprio Memorial que o descompasso entre sujeito narrador e sujeito narrado emerge de forma mais explícita e inquietante. Falar que me vi em um espelho não seria uma expressão correta, pois toda imagem especular carrega nela algo de impassível, de estático, e o que os relatos aqui reunidos me oferecem é a própria mobilidade de uma parte significativa de minha vida. A obra como movimento; a narrativa e seus muitos tempos. Por isso, não poderia terminar este mergulho e retornar à superfície sem escrever sobre algo que estava ali desde o início da escrita e que foi sendo a cada instante postergado. Uma das formas de tempo que habitam cada uma das palavras que compõem este Memorial e que talvez apenas uma consiga dar conta de expressar os traços fortes que a definem: sempre. A Caroline é a pessoa que ocupa este tempo entre os muitos tempos com que me ocupei nestas páginas. Mais do que qualquer outro fato mencionado no texto, este é aquele em que o profissional e o íntimo se fundem e se confundem de tal modo que a ideia de vida que se pretende narrar assume toda sua plenitude. Somos colegas de universidade, trabalhamos no mesmo departamento, atuamos no mesmo laboratório, habitamos a mesma casa. Compartilhamos alegrias, dividimos desencantos, trocamos experiências, ajudamos um ao outro em diferentes ocasiões. Ainda que ela não estivesse presente ao longo de todo o tempo dessa minha trajetória, não tenho dúvidas de que hoje posso organizar meu tempo entre um antes e um depois, e talvez tivesse que contar minha cronologia informando um a.C. ou d.C. depois de cada data informada. Essas palavras só podem de fato ser as palavras finais do Memorial se trouxerem nelas toda a admiração e o respeito que alimento cotidianamente pelo que a professora, a historiadora, a pesquisadora, a referência bibliográfica Caroline Silveira Bauer 197 representa hoje no campo profissional em que me insiro, mas também se carregarem nelas a gratidão e o amor que devo à companheira de todas as horas, com quem convivo intimamente neste tempo que habitamos juntos; este tempo que é sempre. Porto Alegre, janeiro-setembro de 2024. 198 Agradeço aos professores José Rivair Macedo, Ana Maria Mauad, Valdei Lopes de Araujo e Marlon Salomon, que compuseram a Comissão Especial de avaliação de mina promoção funcional, pela disponibilidade em ler meu memorial e pela generosidade com que manBveram o diálogo naquela manhã de 21 de outubro de 2024.