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Temas de Sociologia Rural

2009, VIANA, Nildo (org.). Temas de Sociologia Rural. Pará de Minas: Virtualbooks, 2009.

O presente livro apresenta um conjunto de contribuições sobre a questão rural em nossa sociedade. Não se trata de um tratado de sociologia rural e sim alguns temas debatidos no âmbito da sociologia rural que aqui são abordados, inclusive por pesquisadores de outras áreas. O objetivo é analisar a questão rural, tanto como objeto de estudo (os dois primeiros artigos, “O Rural como domínio temático” e “Kautsky e Lênin como Precursores da Sociologia da Agricultura”) quanto seus temas mais concretos e fundamentais. Neste último caso, temos vários textos dedicados a uma das questões fundamentais da sociologia rural, a questão camponesa, abordada nos textos “Marx e o Modo de Produção Camponês”; “O Conceito de Camponês”, “O Campesinato no Brasil” e outros textos dedicados a outros temas clássicos, o da reforma agrária e movimentos sociais no campo (“A Reforma Agrária em Questão” e “A Comissão Pastoral da Terra e a Luta dos Trabalhadores Rurais em Goiás”). Desta forma, o conjunto de textos contribui com reflexões no âmbito da temática da sociologia rural. Apesar de possuir uma base teórica e metodológica semelhante, isto não cria uma homogeneidade total nas abordagens, tal como se vê nas posições diferenciadas sobre a existência ou não de um modo de produção camponês. Independente disso, as abordagens apresentadas mostram o processo de relações sociais no campo e como ela é abordada pela sociologia rural, fornecendo um quadro geral de temas que contribuem com a ampliação da percepção da questão agrária no Brasil, seja através de referências diretas, como em alguns textos, seja na contribuição teórica, tal como em outros.

© Copyright 2009, José Santana da Silva, Maria Angélica Peixoto, Nildo Viana (org.), Ovil Bueno Fernandes, Uelinton Barbosa Rodrigues. ________________________ Capa: xxxxxx Diagramação: xxxxxx 1ª edição Temas de Sociologia Rural J osé Sant ana da Silva Mar ia Angélica Peixot o Nildo Viana (or g. ) Ovil Bueno Fernandes Uelint on Barbosa Rodrigues 1ª impressão (2009) Todos os direit os reser vados. Nenhum a part e dest a edição pode ser ut ilizada ou reproduzida - em qualquer m eio ou form a, nem apropriada e est ocada sem a expressa aut orização dos aut or es. Silva, José Santana da; Peixoto, Maria Angélica; Viana, Nildo (org.); Fernandes, Ovil Bueno; Rodrigues, Uelinton Barbosa TEMAS DE SOCIOLOGIA RURAL. Pará de Minas, MG: Editora Virtualbooks, 2009.175p.14x20 cm. ________________________ ISBN xxxxxxxxxxxxxxxxxx 1.Ensaio brasileiro. 2. Sociologia. 3. Sociologia Rural. I. Título. II. Série. CDD- B869.4 Livro preparado e edit ado por VIRTUALBOOKS EDITORA E LIVRARIA LTDA. Rua Benedit o Valadares, 560 - cent ro – 35660-000- Pará de M inas - M G - Brasil Tel.: (37) 32316653 - e-mail: vbooks01@t erra.com.br ww w.virt ualbooks.com.br V irt ua lbook s 2 Índice: APRESENTAÇÃO Nildo Viana Apresentação Nildo Viana O Rural como Domínio Temático Nildo Viana Kautsky e Lênin como Precursores da Sociologia da Agricultura Maria Angélica Peixoto Marx e o Modo de Produção Camponês Nildo Viana O Conceito de Camponês José Santana da Silva O Campesinato no Brasil Ovil Bueno Fernandes A Reforma Agrária em Questão Uelinton Barbosa Rodrigues A Comissão Pastoral da Terra e as Lutas Dos Trabalhadores Rurais em Goiás José Santana Da Silva Sobre os Autores 3 O presente livro apresenta um conjunto de contribuições sobre a questão rural em nossa sociedade. Não se trata de um tratado de sociologia rural e sim alguns temas debatidos no âmbito da sociologia rural que aqui são abordados, inclusive por pesquisadores de outras áreas. O objetivo é analisar a questão rural, tanto como objeto de estudo (os dois primeiros artigos, “O Rural como domínio temático” e “Kautsky e Lênin como Precursores da Sociologia da Agricultura”) quanto seus temas mais concretos e fundamentais. Neste último caso, temos vários textos dedicados a uma das questões fundamentais da sociologia rural, a questão camponesa, abordada nos textos “Marx e o Modo de Produção Camponês”; “O Conceito de Camponês”, “O Campesinato no Brasil” e outros textos dedicados a outros temas clássicos, o da reforma agrária e movimentos sociais no campo (“A Reforma Agrária em Questão” e “A Comissão Pastoral da Terra e a Luta dos Trabalhadores Rurais em Goiás”). Desta forma, o conjunto de textos contribui com reflexões no âmbito da temática da sociologia rural. Apesar de possuir uma base teórica e metodológica semelhante, isto não cria uma homogeneidade total nas abordagens, tal como se vê nas posições diferenciadas sobre a existência ou não de um modo de produção camponês. Independente disso, as abordagens apresentadas mostram o processo de relações sociais no campo e como ela é abordada pela sociologia rural, fornecendo um quadro geral de temas que contribuem com a ampliação da percepção da questão agrária no Brasil, seja através de referências diretas, como em alguns textos, seja na contribuição teórica, tal como em outros. A discussão sobre o rural em nossa sociedade pode parecer ultrapassada e, sem dúvida, os estudos sobre questão agrária 4 vem diminuindo com o passar do tempo. Esse processo é derivado, em parte, da dinâmica capitalista, que com o processo de acumulação capitalista invade cada vez mais relações sociais e se expande espacialmente. O campo sempre foi um obstáculo para a expansão capitalista, mas removível, tal como ocorreu na Europa. No caso europeu, a redução drástica, para não dizer o fim, do campesinato, ao lado de sua modernização, que ocorre principalmente nos países de capitalismo subordinado, e o domínio capitalista da produção rural traz graves conseqüências não só para a população rural mas também para a urbana, tal como o preço dos alimentos, a poluição ambiental e suas conseqüências, o uso da tecnologia na produção alimentar e os riscos biológicos existentes, etc. Apenas como sintoma, podemos colocar a questão da Vaca Louca e da Gripe A (Suína) como elementos a se pensar. No mundo da ficção, a ambição capitalista e seus tentáculos sobre a produção rural já foi tema de obras artísticas e filmes, destacando-se o recente Larva (equivocadamente “Homem-Larva”, tal como a sinopse falsa, pois resume o que não existe no filme, tal como se encontra nas capas do DVD), no qual a experiência científica cria uma espécie mutante que mata as vacas e seres humanos. Uma metáfora, inintencional, certamente, das relações sociais no capitalismo, pois a criatura destrói o seu criador. Assim, as pesquisas sobre a questão rural numa perspectiva crítica são fundamentais, no sentido de possibilitar a ampliação da consciência das determinações, das características e conseqüências da expansão e domínio capitalista sobre as relações sociais no campo. A presente obra oferece uma pequena e modesta contribuição para se avançar no sentido de uma análise crítica de tais relações, focando mais alguns temas, que precisaria receber outras contribuições e abordar questões mais atuais, o que poderá ser objeto de uma futura publicação, sobre questões contemporâneas da sociologia rural. Outra questão fundamental que aqui transparece é a questão metodológica. A importância da abordagem do rural é evidente ao percebermos seus conflitos, mutações, relações. A luta pela terra, os movimentos sociais no campo, além das questões conceituais e que estão intimamente relacionadas, é um elemento que recebe pesquisas. Porém, isto muitas vezes é realizado de forma isolada, como se houvesse um “campo” sem uma “cidade”, o rural sem o urbano. Daí a necessidade da percepção da totalidade e esta remete ao processo de análise da dinâmica do capitalismo e das mudanças históricas do modo de produção capitalista e dos regimes de acumulação que são o corpo desta história. A percepção da totalidade é fundamental para não se iludir com as aparências do empírico e dos “objetos” de estudo isolados e sim inseridos em relações sociais que formam um todo. Sob o signo do capitalismo, o rural está subordinado ao capital e a percepção disso é fundamental, inclusive para entender sua historicidade e o seu caráter dependente. A presente obra, portanto, oferece uma contribuição para se pensar o rural e, ao lado de outras contribuições e com os necessários aprofundamentos a serem feitos, contribui com novas pesquisas e com o desenvolvimento da consciência sobre as relações sociais no campo. 5 6 O RURAL COMO DOMÍNIO TEMÁTICO Nildo Viana A distinção entre campo e cidade ou entre o rural e o urbano é uma dos problemas mais importantes no campo da sociologia rural e da sociologia urbana. Trataremos, aqui, desta distinção no sentido de tentar esclarecê-la e apresentar a especificidade do rural como domínio temático da pesquisa social. Mas aqui trataremos da distinção rural-urbano apenas no que se refere ao contexto da sociedade capitalista contemporânea, pois a relação cidade-campo ocorre sob formas diferentes em sociedades diferentes e os historiadores se dedicaram a esta diferença em sociedades pré-capitalistas enquanto que os sociólogos trataram desta relação tal como ela ocorre em nossa sociedade. Nós nos limitaremos ao caso da relação cidade-campo em nossa sociedade. A chamada sociologia rural surge com a constituição da sociedade capitalista. A emergência do capitalismo e da ciência moderna (enquanto ciências naturais) faz com que se torne necessário uma ciência da sociedade, a sociologia. Esta vai acompanhar o desenvolvimento da divisão social do trabalho, tanto pesquisando e transformando esta divisão em seu objeto de estudo quanto reproduzindo esta divisão em seu próprio interior. Surge, assim, a divisão entre “sociologia geral” e “sociologias especiais”. A sociologia rural se constitui como uma destas “sociologias especiais”. Alguns sociólogos se especializaram no estudo do “rural” ou do “campo”. Foi neste contexto que surgiu a necessidade de distinção e definição do rural e do urbano. A sociologia rural buscou definir o rural e seus objetivos como ciência que tem por objeto específico de estudo este tema e este será o nosso ponto de partida para nossa discussão sobre este domínio temático. Segundo Aldo Solari: “A sociologia rural tem por primeira tarefa fundamental descrever os traços relativamente constantes e universais das relações sociais no meio rural, e suas diferenças com relação ao meio urbano. 7 Nesta descrição a sociologia rural se preocupa com aqueles aspectos que revelam a existência de certas leis gerais próprias da sociedade rural, que não ocorrem, ou ocorrem de maneira diferente no meio urbano. Daí o caráter comparativo que a sociologia rural assume amiúde. A segunda tarefa fundamental da sociologia rural é explicar essas diferenças, ou seja, os traços específicos dos fenômenos sociais rurais. A explicação deve consistir na indicação dos fatores responsáveis por estes traços, ou no estabelecimento de correlações funcionais entre cada uma das diferenças específicas e cada uma das variáveis que intervém em sua formação. A sociologia rural só pode existir fundamentada na colaboração de toda uma série de ciências” (Solari, 1976, p. 05). Segundo este autor, existem algumas diferenças fundamentais entre a sociedade rural e a sociedade urbana, a saber: 1) a sociedade rural tem como ocupação fundamental as atividades agrícolas (exploração e cultivo de plantas e animais); 2) devido ao caráter desta ocupação, os habitantes rurais estão mais expostos e em contato com a natureza e trabalham com forças naturais que escapam, na maioria das vezes, ao seu controle, por mais que se intensifique o processo de mecanização e inovação tecnológica; 3) as comunidades agrícolas possuem uma baixa densidade populacional, derivada das próprias condições da produção agrícola; 4) a população da sociedade rural é mais homogênea que a da sociedade urbana e disto deriva vários outros aspectos diferenciadores entre as relações sociais no campo e na cidade. Esta concepção é, entretanto, demasiado simplista. Numa abordagem meramente descritiva, poderíamos concordar com este autor, mas sua concepção se revela estéril para uma abordagem explicativa. O primeiro grande problema é que sua distinção entre o rural e o urbano tem como fundamento uma abordagem comparativa, o que, em si, não é problemático, mas que se torna problemático pela forma como foi utilizada. A abordagem comparativa tem valor quando se analisa domínios temáticos distintos e autônomos, ou seja, que não se relacionam através da subordinação. É o caso do estudo que 8 antropólogos realizam sobre sociedades diferentes, comparando, por exemplo, duas sociedades indígenas ou uma sociedade indígena ainda não aculturada e nossa sociedade. Mas o autor utiliza a abordagem comparativa de forma inadequada, através de uma concepção mecanicista que despreza o processo histórico e as relações entre cidade e campo. A separação mecânica entre a cidade e o campo se mostra de forma mais evidente quando o autor usa as expressões sociedade rural e sociedade urbana, como se fossem duas “sociedades” diferentes. A idéia de sociedade nos remete a uma associação de seres humanos que não é dependente de outra associação, ou seja, com o conceito de sociedade pensamos uma totalidade auto-suficiente. No interior desta totalidade, isto é, no interior de uma sociedade, podemos encontrar redes de relações e grupos sociais que vivem em relação de dependência de outros grupos e relações e por isso não constituem “sociedades” e sim “comunidades”1. Podemos, portanto, falar em comunidades rurais e comunidades urbanas mas não em sociedades. O que é o rural? Em primeiro lugar, podemos observar algumas características invariantes do mundo rural: ligação às atividades agrícolas e um controle restrito sobre o meio ambiente natural. Porém, isto não é suficiente para definir o rural em nossa sociedade, pois tais características estão presentes também nas sociedades pré-capitalistas. A distinção contemporânea entre cidade e campo surge com o processo de desenvolvimento capitalista. A formação do capitalismo significa a destruição das relações de produção feudais e a industrialização, se instaurava as relações de produção capitalistas; no campo, novas relações de produção não-capitalistas surgiram e se desenvolveram de forma subordinada ao capitalismo. Daí notamos a relação de subordinação do campo à cidade. Portanto, o rural é um conjunto de relações sociais que existem fora da zona urbana e se caracterizam por serem determinadas por relações de produção capitalistas ou subordinadas ao capitalismo que geram outras relações sociais. Desta forma, o rural possui relações de 1 O sociólogo alemão Tönnies distingue comunidade de sociedade devido as relações internas de dependência, mas para nós uma comunidade se caracteriza pelas relações externas de dependência, o que muda o foco da análise mas não significa negar, em todo e qualquer caso, a existência da dependência interna (sobre a concepção de Tönnies (Tönnies, 1977). 9 produção específicas, tais como as relações de produção camponesas. Também as relações de produção capitalistas buscam se expandir no campo, mas devido as condições próprias da produção rural, suas características invariantes (controle restrito sobre o meio ambiente), a produção capitalista no campo também assume especificidades. Assim, a sociedade capitalista explica a o rural. O rural surge da divisão social do trabalho produzido por esta sociedade. Esta divisão se manifesta, num primeiro momento, como divisão entre cidade e campo, ou seja, entre produção capitalista e produção não-capitalista. Mas esta subordinação cria outras diferenciações, tal como a centralização da administração, do poder político, da produção cultural, etc. Assim, o rural tem sua origem nas relações de produção existentes no campo, mas vai além disso. A família possui uma importância social muito maior no mundo rural e os valores, atitudes e comportamentos no mundo rural possuem uma ligação muito mais intensa com as tradições do que no mundo urbano, embora a influência deste sobre aquele faça, aos poucos, deteriorar tais relações. Desta forma, observamos que o rural é, na verdade, um conjunto de relações sociais específicas, que são relações de produção e outras relações sociais derivadas, imprimindo um caráter específico nas relações sociais no campo. Neste sentido, existe uma especificidade nas relações sociais no campo e ela pode ser um domínio temático de pesquisa social. A sociologia rural teria tais relações como objeto de estudo. Hoje se questiona a existência de algo como o “rural” e se propõe estudar a agricultura, substituindo assim o nome de sociologia rural por sociologia da agricultura. Do nosso ponto de vista, isto se revela um equívoco. Os adeptos da sociologia da agricultura esquecem a necessidade de estudos específicos sobre o mundo rural. Seus adeptos questionam os conceitos de rural e urbano e afirmam que são noções descritivas. Para Pahl, vem ocorrendo uma homogeneização da base ocupacional provocada pela industrialização e a modernização da agricultura. Por isso o conceito de rural perderia seu significado e importância: num mundo homogêneo não há necessidade de estudos sobre o rural e o urbano, pois não há mais especificidades ou diferenças espaciais e ocupacionais entre o rural e o urbano (Schneider, 1997). Porém, qual é o sentido de se falar em uma “sociologia da agricultura”, já que as especificidades acabaram? Ou 10 seja, apenas há uma mudança de nome: troca-se sociologia rural por sociologia da agricultura. O domínio temático continua o mesmo: as relações sociais no campo. Sem dúvida, a abordagem da sociologia da agricultura avança em relação à sociologia rural norte-americana, de caráter funcionalista, mas sua desconsideração pela sociologia rural em outros países que já realizavam uma abordagem semelhante é um equívoco, como demonstra, aliás, a sua retomada de autores e pesquisadores que tinha o rural como objeto de estudo (Kautski, Lênin, Chayanov, Weber, etc.). Muda-se o método e a teoria, mas a realidade estudada é a mesma. Por isso, se existe razão para se estudar a “agricultura”, então é necessário reconhecer que o rural ainda é um domínio temático para a pesquisa social. A sociologia rural possui uma história diferenciada em países diferentes. Os primeiros estudos sobre o rural foram os realizados por Marx, ao tratar dos camponeses e da renda fundiária. Kautski, Weber, Lênin, Rosa Luxemburgo, Chayanov, entre outros, avançaram na análise das relações sociais no campo. O desenvolvimento da sociologia acadêmica proporcionou novos estudos sobre o rural que passou a seguir as especificidades teóricas e empíricas nacionais. Sem dúvida, o mundo rural não é o mesmo nos diversos países e, só para citar um exemplo, no caso brasileiro a influência das concepções de Lênin e Kautski foram constantes e antecederam a atual sociologia da agricultura norte-americana. Nos Estados Unidos predominou a concepção conservadora baseada, inicialmente, na Escola de Chicago, e posteriormente o funcionalismo sistêmico inspirado em Parsons, Merton e outros representantes desta escola sociológica. Mais recentemente vem se desenvolvendo a sociologia da agricultura, que retoma Marx, Weber e outros pensadores europeus e supera o caráter ateórico da sociologia norte-americana anterior marcada por sua perspectiva conservadora (Peixoto, 2009)2. Na França, a sociologia rural possuía um caráter muito mais teórico e refinado, já compreendendo a tendência de superação da ruralidade pela expansão capitalista. Na atualidade, é preciso retomar o domínio temático do rural no sentido de compreender tanto o seu processo de transformação, que é visível e inevitável, quanto seu processo de conservação, marcado pela 2 resistência não só de relações sociais e tradições culturais, como também pela limitação do controle humano sobre o meio ambiente natural que é marcado pelo ciclo reprodutivo animal e vegetal. Referências Bibliográficas SOLARI, Aldo. O Objeto da Sociologia Rural. In: SZMRECSÁNYI, Tamás & QUEDA, Oriowaldo (orgs.). Vida Rural e Mudança Social. Leituras Básicas de Sociologia Rural. 2a edição, São Paulo, Nacional, 1976. TÖNNIES, Ferdinand. Comunidade e Sociedade. in: BIRBAUN, Pierre & CHAZEL, François (orgs.). Teoria Sociológica. São Paulo, Hucitec, 1977). SCHNEIDER, Sérgio. Da Crise da Sociologia Rural à Emergência da Sociologia da Agricultura: Reflexões a Partir da Experiência NorteAmericana. In: Caderno de Ciência e Tecnologia. Vol. 14, n 2, 1997. PEIXOTO, Maria Angélica. Kautsky e Lênin como Precursores da Sociologia da Agricultura. In: VIANA, Nildo (org.). Temas de Sociologia Rural. Pará de Minas, Virtualbooks, 2009. Texto publicado nesta coletânea. 11 12 KAUTSKY E A QUESTÃO AGRÁRIA Kautsky começa seu livro colocando em evidência o caráter capitalista da sociedade contemporânea e a permanência de modos de produção pré-capitalistas: “É o modo de produção capitalista que domina na sociedade atual. É o antagonismo da classe dos capitalistas e do proletariado assalariado que move nosso século e lhe dá a sua fisionomia mas o modo de produção capitalista não constitui a única forma de produção existente na sociedade de nossos dias. Ao lado dele se encontram ainda restos de modos de produção pré-capitalistas que se mantiveram até hoje” (Kautsky: 1980: 25). Kautsky reconhece a existência de diversas classes sociais no capitalismo além da burguesia e do proletariado, tanto as que são resquícios do pré-capitalismo (monarcas, cortesões, etc.) quanto as que são “em parte produzidas, ou ao menos favorecidas, no seu crescimento, pelas necessidades do próprio capitalismo” (Kautsky: 1980: 25). Ele diz que uma análise da essência do capitalismo leva a considerar apenas a burguesia e o proletariado tal como fez Marx em O Capital, mas um político prático deve reconhecer a existência de outras classes sociais em seu papel político, tal como Marx fez em O Dezoito do Brumário de Luís Bonaparte. Entre estas classes sociais cabe um destaque para o campesinato. Isto se torna ainda mais verdadeiro se for considerado o seu peso quantitativo na população (da época) e seu papel político, que de contestador da nobreza e da igreja passou a seu aliado isto coloca a necessidade da social-democracia se preocupar com a questão camponesa. A isto soma-se o fato de que “ela vê que a pequena exploração na agricultura não obedece de modo algum a um processo de desaparecimento rápido, que as grandes explorações só lentamente conquistam terreno, perdendo o mesmo em alguns lugares” (Kautsky: 1980: 26). Sendo assim, a teoria econômica marxista parece falsa se aplicada à agricultura. Kautsky cita W. Sombart e o problema que ele coloca para a social-democracia: descobrir a tendência evolutiva da agricultura, pois, caso não siga a mesma tendência da indústria, isto provoca necessidade de mudanças no programa do partido. O objetivo de Kautsky é justamente descobrir qual é a tendência evolutiva da agricultura. Porém, ele ressalta que tal estudo não deve focalizar apenas a luta da pequena e da grande exploração mas considerar a agricultura em si mesma. Para Kautsky, a agricultura possui leis próprias e por isso não se desenvolve segundo o mesmo processo que a indústria. Porém, isto não quer dizer que elas sejam inconciliáveis ou opostas. Somente considerando a agricultura e a 13 14 KAUTSKY E LÊNIN COMO PRECURSORES DA SOCIOLOGIA DA AGRICULTURA Maria Angélica Peixoto O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma visão da contribuição de Kautsky e Lênin ao surgimento e desenvolvimento da sociologia da agricultura nos Estados Unidos. Partimos da hipótese de que estes dois autores clássicos da chamada “questão agrária” podem ser considerados precursores da sociologia da agricultura. Dividiremos nosso trabalho em quatro partes, a saber: a primeira parte irá apresentar uma exposição breve da principal obra de Karl Kautsky, A Questão Agrária, buscando apontar suas principais teses apresentadas nestes livro; a segunda irá apresentar uma exposição, também breve, das duas principais obras de Lênin a respeito da questão agrária: O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia e Capitalismo e Agricultura nos Estados Unidos da América com o mesmo objetivo que o anterior; a terceira parte será dedicada ao processo de crise da sociologia rural norte-americana, buscando descobrir as causas da emergência da sociologia da agricultura; a quarta parte tratará da emergência da sociologia da agricultura e da influência exercida pelas idéias de Kautsky e Lênin sobre ela, fornecendo assim os argumentos para confirmar ou não nossa idéia diretriz, segundo a qual Kautsky e Lênin seriam precursores da Sociologia da agricultura. Por fim, apresentaremos nossas observações finais. indústria como um processo em conjunto que se pode observar que elas tendem para o mesmo fim. Segundo Kautsky, “Se de deseja estudar a questão agrária segundo o método de Marx, não se deve equacionar apenas o problema de saber se a pequena exploração tem ou não futuro na agricultura. Deve-se, ao contrário, pesquisar todas as transformações experimentadas por esta última no decurso do regime de produção capitalista. Deve-se pesquisar se e como o capital se apodera da agricultura, revolucionando-a, subvertendo as antigas formas de produção e de propriedade, criando a necessidade de novas formas” (Kautsky: 1980: 28). O camponês passa por um processo de transformação de agricultor praticamente independente do mercado para um agricultor dependente do mercado, e, por conseguinte, de usuários. Neste sentido, a produção camponesa vai deixando paulatinamente de ser auto-subsistente para se tornar mercantil. Kautsky descreve esse processo de transição abordando a transição da sociedade feudal para a sociedade capitalista, demonstrando a transformação da produção rural. Kautsky demonstra que o crescimento e concentração populacional nas cidades, a industrialização e expansão capitalista, entre outros fatores derivados, provocaram diversas modificações na agricultura, entre as quais a ampliação do mercado consumidor de produtos rurais, especialmente de produtos alimentícios (ele enfatiza a produção de carne) , a subordinação da produção agrícola ao mercado, a expansão da divisão social do trabalho na agricultura, a introdução da maquinaria na agricultura (apesar dos obstáculos encontrados), a ciência e as novas técnicas e profissionais (engenheiros, químicos, fisiologistas) que passaram a racionalizar e transformar a agricultura de um ofício (herdado de pai para filho pelo agricultor, que era um “prático puro”) para se tornar um verdadeiro “sistema de ciências” que alarga o campo de investigações e conhecimentos teóricos sobre a produção agrícola. Kautsky tenta provar que a agricultura moderna assumiu um caráter capitalista. Segundo ele, “a exploração agrícola moderna é impossível sem dinheiro, ou, o que vem a dar no mesmo, sem capital. Porque na organização atual da produção toda soma de dinheiro que não serve ao consumo de dinheiro que não serve ao consumo pessoal 15 pode tornar-se capital (valor que produz mais-valia), e isto ocorre geralmente” (Kautsky: 1980: 76); “a exploração agrícola moderna é pois uma exploração capitalista” (Kautsky: 1980: 76). Kautsky irá enfatizar o caráter de mercadoria dos produtos agrícolas e a propriedade individual para confirmar sua hipótese do caráter capitalista da agricultura moderna. A troca mercantil dos produtos transforma a produção agrícola em produção capitalista. Kautsky também distingue a pequena exploração da grande exploração. As diferenças se encontram na casa1, no pátio2, no uso de ferramentas e máquinas3, no uso das forças humanas e animais4. Segundo Kautsky, existe uma superioridade técnica da grande exploração em relação à pequena: “Mas se o número de animais e de ferramentas empregadas e a soma de forças de trabalho utilizadas são, em proporção, menores numa grande do que numa pequena exploração relativamente à superfície, sendo idêntica a natureza da 1 “Uma grande família realiza uma economia de trabalho e de materiais. Isto quase que dispensa demonstração. Consideremos uma grande propriedade, com superfície igual à de cinqüenta pequena parcelas camponesas, e comparemos: de um lado, teremos uma única cozinha e um fogão; de outro, cinqüenta cozinhas com cinqüenta fogões. De um lado talvez cinco, de outro cinqüenta cozinheiras. De um lado, querosene, café de chicória, margarina adquiridos por atacado; de outro tudo comprado ao varejo, etc.” (Kautsky: 1980: 113). 2 “Se sairmos da casa para penetrarmos no pátio, encontraremos na grande exploração um estábulo para cinqüenta a cem vacas, ao passo que os pequenos camponeses, possuem, somados, cinqüenta estábulos para uma ou duas vacas de cada um. Cada um deles tem uma granja, uma nascente, ao invés de cinqüenta. Se continuarmos nosso exame, encontraremos número relativamente menor de caminhos que conduzam do pátio às lavouras — os camponeses não podem construir estradas de ferro rurais — número menor de sebes, paliçadas e cercas” (Kautsky: 1980: 113). 3 “Cinqüenta pequenas explorações camponesas têm necessidade de cinqüenta arados, cinqüenta grades, cinqüenta carroças, etc., ao passo que um número bem menor nesses apretechos, igual talvez a um décimo do primeiro, basta numa grande propriedade” (Kautsky: 1980: 114). 4 “O que é válido para as ferramentas, instrumentos e máquinas o é também para as forças humanas, animais e outras, que os movimentam e dirigem. A pequena exploração gasta-os proporcionalmente muito mais para obter o mesmo efeito útil” (Kautsky: 1980: 116). 16 lavoura, não é menos evidente, de outro lado, que são sempre maiores em valor absoluto na grande do que na pequena exploração: isto prova simplesmente que a primeira está mais habilitada a tirar proveito da divisão do trabalho do que a segunda. Unicamente a grande exploração permite a especialização e a adaptação de ferramentas e instrumentos aos diferentes trabalhos que fazem a produção moderna tão superior à produção pré-capitalista. O mesmo ocorre com relação às raças zootécnicas. O pequeno camponês utiliza a sua vaca como animal leiteiro, como animal de tiro e como animal reprodutor. Ele não pensa em seleção, de adaptação de raça e do alimento a objetos determinados, assim como não pode distribuir os diversos trabalhos de sua exploração entre diferentes pessoas. Ao contrário, é o que faz a grande exploração, com múltiplas vantagens. O grande proprietário classifica os trabalhos em duas categorias — os que reclamam habilidade e cuidado particulares, e os que só exigem um simples emprego de força. Confia os primeiros à parte de seu pessoal que evidencia destreza ou diligência, e cuja aptidão e experiência decorrem do ato de consagrar-se exclusiva ou principalmente a esse serviço determinado. Mas por efeito da divisão do trabalho e maior expansão da cultura. Os diversos operários permanecem nos respectivos serviços, muitas vezes não alteram as suas ocupações, e assim diminuem a perda de tempo e de força inerente a toda mudança de trabalho e de lugar. Enfim, a grande exploração pode beneficiar-se com as vantagens da cooperação metódicas e coordenada de numerosas pessoas tendo em vista um resultado preciso”(Kautsky: 1980: 117-118). Estas e outras vantagens da grande exploração em relação à pequena na esfera da produção soma-se as diversas vantagens que Kautski encontra no que se refere ao comércio e ao crédito. O grande produtor possui uma visão geral do mercado, despesas menores com transporte entre inúmeras outra vantagens em relação ao pequeno produtor. A necessidade de dinheiro para a compra de meios de produção torna necessário o crédito e o crédito hipotecário deixa o pequeno produtor ainda mais frágil diante do sistema mercantil capitalista. Entretanto, a grande exploração na agricultura não é necessariamente a melhor, pois na agricultura, ao contrário da indústria, “cada aumento de empresa — idênticas as circunstâncias, não mudando, particularmente, o método de cultura — implica num aumento ainda maior da superfície de terreno explorado. Por conseguinte a mudança provoca uma perda maior de utilidades, uma maior despesa de força, de meio e de tempo, para transporte de material e de operários. Isto é mais ponderável na agricultura quando se trata do transporte de elementos de pouco valor; relativamente ao seu peso e seu volume — esterco, feno, palha, trigo, batatas — e quando os métodos de carreto são muito primitivos, comparativamente aos da indústria. Quanto mais extensa é a propriedade, tanto mais se torna difícil a fiscalização dos operários dispersos, o que é muito importante quando se contratam assalariados” (Kautsky: 1980: 166167). Kautsky afirma que ocorre uma proletarização do camponês e uma intensificação da agricultura capitalista. Segundo Lênin, “Kautsky desenvolve uma das idéias fundamentais de Marx, que afirma de maneira categórica o papel histórico progressista do capitalismo agrícola (a racionalização da agricultura; a separação da terra do agricultor, dono dela; a libertação da população rural das relações de dominação e escravidão; etc.), e assinala ao mesmo tempo, com a mesma energia, o empobrecimento e a questão dos produtores diretos, a incompatibilidade do capitalismo com as exigências de uma agricultura racional” (Lênin: 1981: 123). Lênin, refutando um crítico de Kautsky, Bulgakov, que afirmava o equívoco deste em considerar que havia uma expansão da grande exploração, apelando para dados estatísticos sobre a diminuição da superfície dedicada à grande exploração, afirma que para Kautsky “a diminuição da superfície das fazendas de 20 a 1000 hectares (mais que compensada pelo aumento da área das de 1000 e mais hectares) não se deve à decadência da grande propriedade, mas à sua intensificação. Já vimos que esta intensificação se acentua na Alemanha, e que amiúde exige a redução da superfície das fazendas. O processo de intensificação da grande produção é evidenciado pelo crescimento do emprego de máquinas a vapor, assim como pelo enorme aumento do número de empregados agrícolas, que na Alemanha são contratados unicamente pelos grandes produtores. O número de administradores de fazendas, capatazes, contadores, etc., passou, entre 1882 e 1895, de 47 465 a 76 978, vale dizer, aumentou 17 18 LÊNIN E O DESENVOLVIMENTO DO CAPITALISMO NA AGRICULTURA Lênin escreveu diversos textos relativos aos problemas rurais. Cabe, porém, destaque aos seus livros O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia e também Capitalismo e Agricultura nos Estados Unidos da América. Nestes dois livros ele expõe de forma mais sistemática sua concepção do caráter capitalista do desenvolvimento da agricultura. Por isso tomaremos estes textos como base para o presente texto. A questão que Lênin procurará responder está relacionado com o contexto histórico e com as lutas políticas na Rússia no final do século 19 e início do século 20. Lênin buscará refutar os “populistas russos” (Narodiniki) e sua tese da impossibilidade de desenvolvimento do capitalismo na Rússia devido a falta de mercado interno. Lênin, então, buscará comprovar a existência e a expansão deste mercado interno. Lênin define mercado da seguinte forma: “o mercado é uma categoria da economia mercantil que, no curso do seu desenvolvimento, transforma-se em economia capitalista, alcançando, somente neste estágio, um domínio absoluto e uma extensão universal” (Lênin: 1985: 13). O mercado capitalista se forma com a expansão da divisão social do trabalho que corrói a economia de auto-subsistência, que produz uma divisão de ramos de produção cada vez maior, etc. Segundo ele, “o desenvolvimento da economia mercantil significa (...), que uma parte cada vez maior da população se afasta da agricultura, ou seja, que a população industrial cresce às expensas da população agrícola” (Lênin: 1985: 15). Portanto, no capitalismo, a população industrial e comercial cresce em detrimento da população agrícola e isto tem sérias conseqüências para a questão do mercado interno, pois “esse fator reveste-se da maior importância, uma vez que se liga indissoluvelmente à evolução da indústria e da agricultura: a formação de centros industriais, seu número crescente e a atracão que exerce sobre a população não podem deixar de suscitar o crescimento da agricultura comercial e capitalista” (Lênin: 1985: 15). Lênin passa, então, a tratar da ruína dos pequenos produtores. Estes, devido ao desenvolvimento capitalista, são separados de seus meios de produção e são levados à ruína. Os populistas russos sustentavam que este empobrecimento dos pequenos produtores reduz o poder de compra da população, diminuindo assim o mercado interno. Segundo Lênin, “os defensores desta tese esquecem que a ‘liberação’ de uma parte dos produtores dos meios de produção subentende, necessariamente, a passagem desses meios para outras mãos, sua conversão em capital, e que, por conseqüência, os novos proprietários desses meios produzirão sob a forma de mercadorias os produtos que, anteriormente, eram consumidos pelo próprio produtor — vale dizer: ampliam o mercado interno. Esquecem que a ampliação da produção pelos possuidores dos meios de produção coloca no mercado novas demandas de instrumentos, de matérias-primas, de meios de transporte, etc., bem como de artigos de consumo (seu enriquecimento acarreta naturalmente um aumento do seu consumo). Esquecem que, para o mercado, o é que importante não é o bem estar do produtor, mas os seus meios pecuniários disponíveis; o declínio do bem-estar de um camponês patriarcal, que antes praticava uma economia predominantemente natural, é perfeitamente compatível com o aumento do volume de recurso pecuniários em suas mãos, pois quanto mais esse camponês se arruina tanto ‘mais é forçado a recorrer 19 20 62 por cento; a porcentagem de mulheres entres estes empregados aumentou de 12 a 23,4 por cento”(Lênin: 1981: 110). Tal como colocou Ricardo Abramovay, a principal tentativa do livro de Kautsky consiste em “demostrar a superioridade da grande exploração capitalista sobre a propriedade familiar e portanto a inutilidade de se procurar frear de qualquer maneira o movimento inelutável que o capitalismo promove de expropriação camponesa. Kautsky procura provar teoricamente que ali onde os camponeses sobrevivem isso não é sinônimo de eficiência, mas de superexploração, do fato de venderem seus produtos a preços que não cobrem sequer a sua própria subsistência. O importante é a inutilidade de qualquer trabalho político que procure atenuar a irreversibilidade do declínio camponês. E o caminho para isso está na demonstração da superioridade técnica e econômica da grande exploração sobre a pequena”(Abramovay: 1992: 46). Por fim, podemos dizer que para Kautsky, a tendência evolutiva da agricultura na sociedade moderna se caracteriza pela expansão e primazia da produção capitalista sobre as formas não-capitalistas de produção. à venda de sua força de trabalho e tanto maior é a parte dos meios de subsistência (mesmo que sejam os mais exíguos) que ele deve adquirir no mercado” (Lênin: 1985: 16). Após discutir a questão do mercado interno, Lênin passa a discutir a economia camponesa. Para Lênin, ocorre uma “desintegração do campesinato”. Lênin utiliza diversos dados estatísticos para apresentar e confirmar sua tese. Juntamente com esta desintegração do campesinato ocorre o surgimento da diferenciação no seu interior produzindo três segmentos, a saber: os camponeses ricos, os camponeses médios e os camponeses pobres. Isto é o resultado do processo de expansão do capitalismo na agricultura. O camponês russo se encontra subordinado ao mercado. Esta subordinação significa a destruição do campesinato tradicional e a criação de “novos tipos de população rural”, o campesinato estratificado em rico (que Lênin chama de burguesia camponesa), médios e pobres (denominados por ele como “proletariado rural”). Segundo suas próprias palavras, “é claro que o surgimento de desigualdades entre os patrimônios é o ponto de partida de todo o processo, que em hipótese alguma se esgota nessa ‘diferenciação’. O campesinato antigo não se ‘diferencia’ apenas: ele deixa de existir, se destrói, é inteiramente substituídos por novos tipos de população rural, que constituem a base de uma sociedade dominada pela economia mercantil e pela produção capitalista. Esses novos tipos são a burguesia rural (sobretudo a pequena burguesia) e o proletariado rural — a classe dos produtores de mercadorias na agricultura e a classe dos operários agrícolas assalariados” (Lênin: 1985: 114). Ele afirma que “a desintegração do campesinato provoca um desenvolvimento dos grupos extremos, em detrimento do campesinato ‘médio’, criando dois tipos novos de população rural, cujo denominador comum é o caráter mercantil, monetário da economia. O primeiro desses tipos é a burguesia rural ou o campesinato rico englobando os cultivadores independentes (que praticam a agricultura mercantil sob todas as suas formas), os proprietários de estabelecimentos industriais-comerciais, de empresas comerciais etc. Esse campesinato rico associa à agricultura comercial empresas industriais e comerciais e essa ‘combinação da agricultura com as oficinas’ constitui o seu traço específico. É desse campesinato rico que sai a classe dos granjeiros, pois o arrendamento da terra para a venda de cereais desempenha (na região agrícola) um imenso papel na economia desses elementos, freqüentemente mais importante que o lote comunitário. Na maior dos casos, as dimensões da exploração estão acima das possibilidades da força de trabalho da família;; por isso, a formação de um contigente de operários agrícolas e, ainda mais, de diaristas, é condição indispensável da existência do campesinato rico. Os camponeses que investem o dinheiro disponível, obtido sob a forma de renda líquida nas operações comerciais e usurárias (sabe-se da extensão exagerada da usura em nossos campos), utilizam-se dele, em condições favoráveis, para comprar terras, melhorar seus estabelecimentos etc. Numa palavra, são pequenos proprietários agrícolas. Numericamente, a burguesia camponesa representa uma pequena minoria do campesinato (certamente não mais de 1/5 dos estabelecimentos, cerca de 3/10 da população), sendo que essa proporção varia muito conforme a região. No entanto, considerando o papel que ela exerce no conjunto da economia camponesa, a parte dos meios de produção que detém e a parte dos produtos agrícolas que fornece, ela exerce uma predominância absoluta no campo: atualmente, ela é o seu verdadeiro senhor” (Lênin: 1985: 115-116). Lênin retoma e aprofunda estas questões em um texto sobre a agricultura nos Estados Unidos. Para ele, os Estados Unidos se encontra na vanguarda do capitalismo moderno, sendo que a agricultura de caráter capitalista ocupava as maiores extensões, bem como uma grande diversidade de relações e matizes e formas. Segundo Lênin, “é comum inferir-se a penetração do capitalismo na agricultura a partir de dados sobre a extensão das farms ou sobre os números e a importância das grandes farms (grandes segundo a sua superfície). Já examinamos alguns destes dados e ainda examinarmos outros, mas devemos ressaltar que eles são todos de ordem indireta, pois a superfície está longe de indicar sempre e de uma forma direta a grandeza efetiva da exploração e seu caráter capitalista” (Lênin: 1980: 20). Para ele, os dados referentes ao trabalho assalariado são muito mais reveladores. “Os recenseamentos agrícolas dos últimos anos, como o recenseamento austríaco de 1902 e o alemão de 1907, que analisaremos em outra oportunidade, demonstraram que o emprego de mão-de-obra assalariada na agricultura moderna — e em particular, nas pequenas explorações agrícolas — é bem mais importante do que 21 22 geralmente se crê. Nada refuta tão categoricamente e com maior clareza que estes dados a fábula pequeno-burguesas da pequena agricultura ‘fundada no trabalho familiar’ ” (Lênin: 1980: 20). Através da análise destes dados estatísticos, Lênin conclui que há uma expansão do uso do trabalho assalariado e que ele é empregado em mais de 50% das farms do norte e oeste deste país (no sul, onde a herança do escravismo era mais forte,, 36, 6% das farms utilizava trabalho assalariado). Lênin, que considera o trabalho assalariado como “o indicador mais direto do capitalismo na agricultura”, passa a tratar da questão da grandeza das explorações agrícolas. Ele contesta o método que busca determinar a grandeza econômica e seu caráter capitalista através da área que elas ocupam ou cultivam. Segundo Wladimir Pomar, “Lênin destaca que a área ocupada está longe de indicar sempre e diretamente esse caráter ou grandeza. Apesar de ‘certas considerações científicas que indicam a necessidade e o acerto de tal agrupamento’ ou classificação, Lênin mostra que ela é insuficiente por não levar em conta a intensificação da agricultura, a crescente inversão de capital por área, seja em gado, máquinas, sementes selecionadas, métodos animais avançados de cultivo, ou mão-de-obra assalariada” (Pomar: 1980: XI). Lênin afirma que “a região da Nova Inglaterra, onde não existe qualquer colonização, onde as farms são menores e a agricultura mais intensiva que em qualquer outra região do país, é aquela na qual se constata o mais alto grau de capitalização na agricultura e a maior rapidez de desenvolvimento do capitalismo. Esta conclusão possui uma importância essencial e fundamental para a compreensão do processo de desenvolvimento do capitalismo na agricultura em geral, pois a intensificação da agricultura, acompanhada da redução da quantidade médias de terra por farm não tem nada de acidental, local, episódico, mas constitui um fenômeno geral, comum a todos os países civilizados” (Lênin: 1980: 38-39). Portanto, há uma distinção entre pequena e grande exploração, por um lado, e pequena e grande propriedade, por outro, pois nem sempre o caráter intensivo ou não da exploração coincide com o tamanho da propriedade. Por conseguinte, o caráter capitalista e a vantagem da grande exploração (que pode se realizar numa pequena propriedade) não depende do fato de se dar numa grande propriedade. Neste sentido, “seria imprudente confundir os latifúndios com a agricultura capitalista em grande escala, pois, com muita freqüência, os latifúndios constituem uma sobrevivência de relações précapitalistas: escravistas, feudais ou patriarcais” (Lênin: 1980: 42). A tendência apontada por Lênin é a progressiva substituição da pequena propriedade pela grande, embora ela não ocorra apenas na forma de uma “expropriação imediata”. Segundo ele, “ela pode também assumir a forma de um longo processo de ruína, de deterioração da situação econômica dos pequenos produtores, capaz de se estender por anos e por décadas. Esta deterioração se traduz no trabalho excessivo ou na péssima alimentação do pequeno agricultor, no seu endividamento, no fato de que o gado é mal alimentado e, em geral de baixa qualidade, a terra não é bem cultivada, trabalhada, adubada, etc.; não há progresso técnico, etc. A tarefa do pesquisador, se ele não deseja ser acusado de complacência voluntária ou involuntária para com a burguesia, embelezando a situação dos pequenos agricultores arruinados e esmagados, consiste antes de tudo e sobretudo em definir com precisão os indicadores desta ruína, que estão longe de ser simples e uniformes; depois, em elucidá-los e estimar, na medida do passível, a amplitude de sua propagação e modificação no tempo” (Lênin: 1980: 64). Lênin conclui, portanto, pelo predomínio e pelo avanço da agricultura capitalista também nos Estados Unidos. Assim ele reforça sua concepção do desenvolvimento capitalista na agricultura, que se vê agora confirmada não só pelo caso da Rússia como também pelo dos Estados Unidos. 23 24 A CRISE DA SOCIOLOGIA RURAL NORTE-AMERICANA A sociologia da agricultura é uma novidade que data das últimas décadas. Para compreender seu surgimento e significado é preciso, antes de tudo, observar seu processo de formação histórica. Iremos abordar brevemente esse processo histórico de formação e depois iremos relacionar sociologia da agricultura e as obras de Kautsky e Lênin. A sociologia da agricultura surge nos Estados Unidos. Isto se deve ao motivo do predomínio das tendências sociológicas consideradas “conservadoras”, tal como o funcionalismo sistêmico elaborado por Parsons, Merton, entre outros, o que justifica uma reação contra elas. As ciências sociais nos Estados Unidos, tal como colocou Schneider, não conhecia as obras de Max Weber e Karl Marx5, o que, sem dúvida, empobrecia a produção sociológica neste país e alimentava a possibilidade de uma reação no sentido da recuperação destes autores, de grande influência no resto do mundo. No caso da França, por exemplo, a situação era diferente e por isso podemos dizer que muito do que se chama de sociologia da agricultura hoje nos Estados Unidos faz parte da própria tradição da sociologia rural francesa (voltaremos a isto mais à frente). A sociologia rural norte-americana surge influenciada pelos estudos da “ecologia urbana” realizados pela Escola de Chicago. Tal escola se caracterizava pelo estudo da configuração urbana da sociedade e a partir daí a sociologia rural passou a tomar a dicotomia rural-urbano como o objeto específico de sua disciplina. Desta forma, “a delimitação dos objetos e do conteúdo específico de cada uma era, portanto, fornecida pelo ambiente empírico e geográfico em que se realizavam os estudos” (Schneider: 1997: 228). A primeira fase da sociologia rural norte-americana teve como característica os estudos de comunidade, produzidos pelo contexto histórico da sociedade norte-americana, principalmente a crise agrícola que ocorreu devido a Guerra Civil de 1861 a 1865. O Estado passou a se interessar pelo estudo dos problemas do campo e incentivou a pesquisa nesta área. A sociologia rural nesta época se inspirava na distinção de Tönnies entre “comunidade” e “sociedade”, que fundamentava a teoria do continuum rural-urbano, caracterizada por considerar que havia uma transição entre os laços comunitários (baseados na coesão emocional, intensidade e continuidade) e os laços societários (baseados na impessoalidade, na racionalização e em relações contratuais), o que lembra a teoria de Louis Wirth e da Escola de Chicago (Velho: 1979). A sociologia rural norte-americana adotou o uso de métodos empíricos, principalmente técnicas quantitativas, e deixou de lado a teoria. A sociologia rural possuía uma postura “ateórica”. Isto se 5 “Antes de Parsons, as obras de Marx e de Weber eram praticamente desconhecidas (e até ignoradas) nas universidades americanas, ao passo que a teoria de Durkheim era lida e aplicada com rigor” (Schneider: 1997: 229). 25 deve a quatro fatores principais: 1. A sociologia rural possuía uma relação íntima com a Igreja e herdou desta as suas técnicas de coletas de dados; 2. A influência exercida pela Escola de Chicago; 3. A negação das teorias de origem européia por parte dos sociólogos norte-americanos, o que provocou, entre outras coisas, o desconhecimento já referido das obras de Marx e Weber; 4. Muitos sociólogos norte-americanos tinham contato direto com as obras de Tönnies, Tarde, Sombart e Simmel, que exerciam forte influência na sociologia norte-americana desta época. Segundo Schneider, “a partir da II Guerra Mundial a teoria do continuum rural-urbano foi paulatinamente superada. As razões para o abandono desta perspectiva analítica estão nas transformações sociais e econômicas que sofreram a estrutura agrária dos EUA neste período. O processo de modernização tecnológica e a mercantilização das relações sociais no campo solaparam a base social e econômica da dicotomia ‘gemeinschaft/gesellschaft’, que fundamentava a teoria do continuum rural-urbano. Com a modernização da agricultura e a transformação do espaço rural, a sociologia passou a ocupar-se da elaboração de estudos sobre a difusão/inovação das novas tecnologias, bem como seus impactos psicocomportamentais sobre o os indivíduos” (Schneider: 1997: 232). Surge assim a tendência difusionista, inspirada pela psicologia behaviorista do estímulo-resposta. A questão principal a ser abordada é de como os atores (os agricultores, no caso) respondem aos estímulos das novas tecnologias agrícolas, dos meios de comunicação de massa e da educação. Esta tendência da sociologia rural norte-americana se diferenciava de outras tendências em outros países. A sociologia rural francesa, por exemplo, partia de uma perspectiva diferente. Segundo Maria Isaura Pereira de Queiroz, escrevendo em 1969, existia duas tendências importantes em Sociologia rural: “a tendência francesa, cujos trabalhos (mesmo os de pesquisa de campo) se orientam sempre para uma definição cada vez mais refinada do objeto da sociologia rural; e a tendência americana, voltada para a prática imediata, que pretende dominar um aspecto considerado atrasado e insatisfatório da realidade social para promover nele uma mudança mais rápida no sentido da modernização. A primeira tendência se norteia por indagações de tipo teórico; aborda os problemas da Sociologia Rural 26 numa perspectiva global, através de uma grande e constante indagação do que é urbano. A segunda, como muito bem nota Henri Mendras, não se interessa por essas diferenciações; para ela, rural e urbano são domínios perfeitamente distintos e definidos, estando o meio rural em processo de transformação expressa na adoção cada vez maior de modernas técnicas de trabalho, expressa na mecanização da lavoura e numa especialização cada vez maior do trabalho. Esta segunda tendência aceita como inevitável e inegável uma homogeneização cada vez maior dos dois mundos, tendendo o mundo rural a se confundir com o mundo urbano de que copiaria instituições e atitudes” (Queiroz: 1969: 7-8). Portanto, observamos que a sociologia rural francesa não possui o caráter ateórico que predominou por durante tanto tempo na sociologia rural norte-americana. Por conseguinte, a emergência da sociologia da agricultura tinha como espaço para surgir os Estados Unidos com seu contexto histórico preciso. A partir de 1960, de acordo com as mudanças históricas (a crise dos anos 60, a guerra fria, a guerra do Vietnã, a contracultura, etc.), que criaram um clima propício para o surgimento do questionamento e de abordagens críticas, a sociologia rural entra em crise. A crítica de Wright Mills ao funcionalismo sistêmico (a grande teoria e o empirismo abstrato), juntamente com outras críticas provenientes de outros sociólogos a respeito de outros aspectos da sociologia rural, tal como a crítica de Hightower ao esquema institucional do Land Grant System, provocaram a necessidade de revisão de paradigma na sociologia rural norte-americana. Segundo Schneider, “em razão destas transformações, alguns sociólogos como Pahl passaram a questionar a manutenção dos conceitos de rural e urbano como noções descritivas. Segundo este autor, a industrialização e a modernização da agricultura homogeneiza a base ocupacional (mercado de trabalho assalariado) da população. Nestas circunstâncias, o significado heurístico do termo rural perde sua importância para o sociólogo. Numa situação em que não há mais especificidades ou diferenças espaciais e ocupacionais entre o rural e o urbano, qual seria o sentido de uma sociologia específica do rural?” (Schneider: 1997: 237). Esta é apenas uma crítica entre outras à sociologia rural nesta época. Segundo Cavalcanti, “a partir das críticas a essa ‘Sociologia 27 Rural’, teóricos norte-americanos definem, desde meados dos anos 70, novas questões para analisar os problemas do campo. Suas investigações levaram à constituição de um campo atualmente rotulado de Sociologia da Agricultura ou Nova Sociologia Rural (de tendências neomarxistas e neoweberianas) com base nos fundamentos da Economia Política e da Escola da Organização da Produção (especialmente as contribuições de Marx, Lênin, Kautsky e Chayanov)...” (Cavalcanti: 1997: 62). Desta forma, entra em crise a sociologia rural norte-americana6 e em seu lugar emerge a sociologia da agricultura, da qual iremos tratar a partir de agora. A SOCIOLOGIA DA AGRICULTURA: RETORNO A KAUTSKY E LÊNIN É na década de 70 que surgem os primeiros trabalhos que marcam o surgimento da sociologia da agricultura. Segundo Schneider, “a sociologia da agricultura define-se, sobretudo, pela sua oposição e negação aos pressupostos da ‘rural sociology’. Influenciada pela tradição marxista clássica (Marx, Lênin, Kautsky) e pelos chamados neomarxistas, a sociologia da agricultura caracterizase por uma clara preocupação com o estudo da ‘estrutura da agricultura a partir de uma perspectiva crítica” (Schneider: 1997: 239). Esta tendência surge num contexto histórico delimitado: trata-se da época de emergência de protestos políticos, de expansão dos movimentos pelos direitos civis, pelo feminismo, contracultura, etc. Isto permitiu a emergência da perspectiva crítica e, por conseguinte, da sociologia da agricultura. Porém, deixaremos de lado aqui as influências chamadas neomarxistas e neoweberianas para focalizar a influência de dois autores em especial: Kautsky e Lênin. 6 Esta crise, porém, não significa o seu fim, pois tal como coloca Schneider, “embora nas duas últimas décadas a ‘rural sociology’ tenha perdido terreno para a ‘sociologia da agricultura’, sua influência acadêmicoinstitucional está longe do esgotamento. Os recentes trabalhos de Gartrell e Gartrell e, sobretudo, de Fliegel mostram que a ‘rural sociology’ vem enfrentando os novos temas do mundo rural-agrícola, mesmo que em alguns casos seja para rever antigas posições” (Schneider: 1997: 238). 28 A sociologia da agricultura possui uma pluralidade de temas e enfoques analíticos e empíricos, mas que busca uma integração de perspectivas de Kautsky, Marx e Weber. Segundo Schneider, “esta articulação permitiria à sociologia da agricultura desviar-se das correntes neopupulistas (que não debitam ao capitalismo a persistência da agricultura familiar, mas à lógica autônoma de sua organização social e econômica) e da ortodoxia do modelo original de Marx, no qual a oposição econômica dos atores gera o antagonismo de classe” (Schneider: 1997: 246). Como é possível a sociologia da agricultura retornar à Kautsky e Lênin utilizando a contribuição de Weber? Ao nosso ver isto é possível principalmente se considerarmos que o “jovem Weber” apresenta uma posição semi-marxista em seu texto de juventude A Situação dos Trabalhadores Rurais da Alemanha nas Províncias do Além-Elba7, o que torna possível um encontro entre a perspectiva de Weber deste período e as obras de Lênin e Kautsky. Lênin e Kautsky podem ser considerados precursores da sociologia da agricultura? Ao nosso ver sim, pois esta retoma temáticas e abordagens presentes nestes autores. Vejamos as temáticas e abordagens da sociologia da agricultura e depois comparemo-las com as de Lênin e Kautsky e poderemos perceber a semelhança ou não e assim confirmar ou não a continuidade entre a obra destes dois marxistas do final do século passado e início deste e a sociologia da agricultura. Em primeiro lugar, os autores que trataram da sociologia da agricultura reconhecem a influência de Kautsky e Lênin sobre a sociologia da agricultura (Cavalcanti: 1997; Schneider: 1997). Em segundo lugar, as temáticas tratadas pela sociologia da agricultura são principalmente a questão da persistência da agricultura familiar nas sociedades capitalistas avançadas e o significado do progresso técnico (Schneider: 1997). Além desta pode-se citar: as barreiras à transformação capitalista da agricultura, o papel do Estado como 7 Segundo Graziano da Silva e Verena Stolcke, “Esse livro, inacreditavelmente, permanece até nossos dias sem reedição, nem tradução conhecida do alemão (arcaico), embora tenha sido seguidamente referenciado nas obras de Kautsky (talvez o seu ‘defeito’, na opinião dos weberianos, seja o de ser uma ‘abordagem marxista’ do ‘jovem Weber’)” (Graziano da Silva & Stolcke: 1980: 08). 29 mediador dos conflitos de classes, as diferenças étnicas nos interior das farms, a agricultura industrial, os assalariados e o assalariamento na agricultura, as pequenas farms e o trabalho em tempo parcial, gênero e agricultura, a relação agricultura e meio ambiente e os impactos das mudanças tecnológicas, etc. (Cavalcanti: 1997). Esses temas, em sua maioria, já haviam sido tratados por Kautsky e Lênin. A pequena produção, sua persistência e tendência a extinção foi abordada por ambos os autores, embora de forma diferenciada, tal como colocamos anteriormente na parte dedicada a estes autores. A questão da persistência da agricultura familiar, como demonstramos, esteve presente tanto na obra de Lênin quanto da de Kautsky, sendo que para Lênin assumiu maior importância. O progresso técnico recebeu uma atenção especial por parte destes dois autores, principalmente para relacioná-las com o desenvolvimento capitalista na agricultura. Sendo assim, podemos observar que a maioria das temáticas da sociologia da agricultura já eram desenvolvidas por Lênin e Kautsky. As abordagens teóricas, por sua vez, também não escapam da influência das obras de Kautsky e Lênin. Sobre a questão da persistência da agricultura familiar e o progresso técnico na agricultura existem três posições principais: 1. A concepção de que a penetração do capitalismo no campo vem seguindo a via do progresso técnico; 2. A concepção de que o capitalismo tende a industrializar a agricultura, transformando-a em apenas mais uma forma de produção de mercadorias indistinta das outras formas; 3. A concepção conciliadora, que busca reunir estas duas concepções em uma só. Vemos nestas duas abordagens a influência inegável da tese leninista de capitalização inexorável da agricultura, sob formas e argumentos distintos. Segundo Schneider, no que diz respeito às diversas tendências teóricas, existe orientações distintas, mesmo tendo, todas elas, por base o marxismo. Existem pelo menos quatro abordagens diferenciadas dentro desta perspectiva: “Primeiro, continua haver uma adesão às explicações nomológicas, utilizando-se teorias dedutivistas para explicar as transformações na estrutura da agricultura (é o caso dos autores que seguem as teses leninistas da inexorabilidade da diferenciação social). Segundo, a questão agrária continua no centro do debate, especialmente no que se refere aos temas transformação 30 OBSERVAÇÕES FINAIS O presente texto tentou enfatizar a influência de Kautsky e Lênin sobre a formação e caracterização da sociologia da agricultura. A nossa intenção era demonstrar que estes dois autores podem ser considerados precursores da sociologia da agricultura. Para tanto, partimos da leitura das principais obras de Lênin e da principal obra de Kautsky e juntamente com a bibliografia referente a sociologia da agricultura, buscamos observar os pontos de coincidência entre as abordagens de Kautski e Lênin, por um lado, e da sociologia da agricultura, por outro. A grande preocupação de Lênin e Kautsky é o desenvolvimento da agricultura, ou seja, o processo de mudança histórica. Tal processo, segundo eles, se caracteriza pela diminuição quantitativa do campesinato tradicional, pela proletarização das massas rurais, pelas inovações tecnológicas, etc. A exploração de tipo capitalista tende a substituir a exploração de tipo “pré-capitalista” (talvez seria melhor dizer “não-capitalista”). Esta visão, um tanto quanto evolucionista será criticada e palco de inúmeras polêmicas desde o início do século, tal como se vê nas críticas endereçadas pelos populistas russos e retomadas pelos “neopopulistas” (expressão também inexata, levandose em conta que o populismo russo era um movimento político e não apenas uma interpretação da questão agrária que sustentava a preservação da produção camponesa). Muitos autores contemporâneos irão criticar estas teses (é o caso de: Abramovay: 1992), mas diversos outros irão defendê-las. Não nos cabe aqui apontar qual destas concepções está mais adequada à realidade, pois o assunto é extremamente complexo e a formação de uma opinião sobre ele requer uma árdua pesquisa tanto de ordem teórica quanto empírica. A partir de uma primeira impressão tendemos a considerar que tanto Kautsky e Lênin, por um lado, quanto seus críticos, os populistas, “neopopulistas” e outros, por outro lado, apresentam argumentos bem fundamentados e que há elementos corretos tanto em uma quanto em outra análise. No que diz respeito à sociologia rural norte-americana, tendemos a considerar que grande parte das críticas endereçadas pela sociologia da agricultura são procedentes, mas que alguns são referentes não à sociologia rural como um todo, ou seja, tudo que se denomina como tal, e sim a sociologia rural norte-americana especificamente. 31 32 versus persistência da agricultura familiar e à discussão acerca da posição do setor agrícola em relação à economia. Terceiro, existem autores que consideram que o desenvolvimento do capitalismo na agricultura tende a seguir os mesmos rumos que tomou na indústria (como é o caso dos neokautskistas). Quarto, existe a emergência do neoweberianismo (...). Seu principal expoente é Mooney, que propõe a junção das proposições estruturais dos neomarxistas com os conceitos neoweberianos de ‘social agency’ para focalizar a subjetividade dos atores e sua interação com os processos macrossociológicos” (Schneider: 1997: 247-248). Portanto, acha-se explícita a influência de Kautsky e Lênin nestas abordagens da sociologia da agricultura, tal como a concepção leninista da diferenciação social do campesinato, o caminho da agricultura como idêntico ao da indústria segundo Kautsky, embora este via a especificidade do mundo rural. Mas a influência de Kautsky parece ser maior do que a de Lênin. Pelo menos é o que se pode deduzir da afirmação de Schneider, segundo a qual vários autores buscam “colocar as teses de Kautsky no centro da economia política da agricultura. Esta tendência neokautskista vem revigorando a idéia de que a agricultura dos países capitalistas avançados não é um setor à parte da economia. As funções históricas da produção agrícola, como fornecimento de matérias-primas e força de trabalho, a produção de alimentos para os trabalhadores urbanos e a constituição de um mercado de consumo para os bens de origem industrial teriam sido subvertidas pela conversão da própria agricultura em um ‘ramo da indústria’, operando sob um único padrão de produção. Desse modo, acreditam que a estrutura agrária tende a consolidar um modelo dual (também chamado de bimodalismo): de um lado, persistirá uma diversidade de formas familiares de produção e, de outro, como pólo hegemônico, se consolidará a industrialização e a mercantilização da agricultura” (Schneider: 1997: 248). Desta forma, observamos que tanto Kautsky quanto Lênin forneceram enorme contribuição para a formação da sociologia da agricultura e podem ser considerados seus precursores. Para encerrar, podemos dizer que o debate irá continuar e que irá também contribuir com a compreensão de um dos mais fascinantes temas da sociologia: as relações sociais no campo. VELHO, Otávio G. (org.). O Fenômeno Urbano. 4a edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1979. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMOVAY, Ricardo. Paradigmas do Capitalismo Agrário em Questão. São Paulo, Hucitec, 1992. CAVALCANTI, Josefa S. B. Teoria Sociológica e Agricultura: Tendências e Desafios. S.l, S.E., 1997. GRAZIANO DA SILVA, José & STOLCKE, Verena (orgs.). A Questão Agrária. São Paulo, Brasiliense, 1981. GRAZIANO DA SILVA, José & STOLCKE, Verena. Apresentação. In: A Questão Agrária. São Paulo, Brasiliense, 1981. KAUTSKY, Karl. A Questão Agrária. 3a edição, Proposta Editorial, 1980. KAUTSKY, Karl. Socialização da Agricultura. 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Da Crise da Sociologia Rural à Emergência da Sociologia da Agricultura: Reflexões a Partir da Experiência Norte-Americana. In: Caderno de Ciência e Tecnologia. Vol. 14, n 2, 1997. 33 34 MARX E O MODO DE PRODUÇÃO CAMPONÊS Nildo Viana Existe uma polêmica no interior do marxismo e também entre os “marxólogos” sobre a análise de Marx sobre o campesinato. A questão gira em torno do que é o campesinato e da possibilidade de se referir a um modo de produção camponês no interior da teoria marxista. Alguns autores, como José de Sousa Martins1, afirmam que é impossível pensar um modo de produção camponês partindo da teoria marxista. Partimos do ponto de vista contrário, pois encontramos já 1 “Se eu separo cada um dos elementos do processo social, se não vejo a terra como relação social que é parte desse processo que é o processo do capital, a minha tendência será ver aí modos de produção diferentes e serão tantos os modos de produção quantas forem as diferenças. Essa tem sido, infelizmente, uma forte tendência especialmente na análise das situações no campo: cada diferença é tomada como indicador de um modo de produção distinto – no proprietário há os que vêem o senhor feudal e o modo de produção feudal; no produtor familiar há os que vêem o camponês e o modo de produção camponês. Este último caso é bem indicativo da invasão positivista no modo de pensar. Um modo de produção é um modo de exploração, que encerra antagonismos de categorias sociais. Nesse sentido a produção camponesa jamais poderia constituir um modo de produção, pois como todos sabemos ela se determina como produção familiar autônoma” (Martins, 1986, p. 172173). Esta passagem de J. S. Martins é problemática, pois além de não definir o que entende por positivismo e sustentar que não existe relação de exploração entre camponeses e outras categorias sociais (exploração que é efetivada pelo capital), afirma que um modo de produção é um modo de exploração, o que não resiste a uma análise crítica, pois o modo de produção é um conceito universal e que somente em sociedades de classes é que se pode falar em “exploração”. Isto significa que sua justificativa para negar a existência de um modo de produção camponês não se sustenta, principalmente no interior da teoria de Marx da produção, tal como mostraremos a seguir. 35 em Marx um embrião de uma teoria do modo de produção camponês e alguns de seus continuadores irão desenvolver tal concepção. Devido a isto iremos discutir como Marx apresentou os elementos que permitem se discutir a teoria do modo de produção camponês. Iremos analisar aqui o aspecto teórico e metodológico da concepção de Marx e inserir nesta discussão a possibilidade de se pensar em um modo de produção camponês. Também iremos nos remeter aos escritos de Marx sobre o campesinato, para descobrirmos se em sua teoria é possível trabalhar com a idéia de modo de produção camponês e também perceber no interior de seu método a forma como se pode analisar a questão camponesa. O Conceito de Modo de Produção Para Marx existia um modo de produção camponês? Marx não abordou exaustivamente a questão camponesa, o que dá margem à diversas interpretações. Então, para responder a pergunta acima temos apenas dois caminhos: buscar alguma referência ao modo de produção camponês em seus escritos ou então ver se em sua teoria do modo de produção é possível integrar a produção de tipo camponesa. Aqueles que sustentam ser impossível se pensar num modo de produção camponês partem desta última perspectiva. Por isso iremos começar por ela. O que é um modo de produção? Os diversos pensadores que trataram desta questão forneceram respostas diferentes. A concepção mais comum aponta para uma definição do modo de produção como uma determinada articulação entre relações de produção e forças produtivas. Segundo Shaw: “Em 1857, num manuscrito incompleto com objetivo de apresentar a Grundrisse, Marx escreveu a seguinte observação numa lista de questões a serem tidas em mente: ‘5. Dialética dos conceitos força produtiva (meios de produção) e relação de produção, os limites dessa correlação dialética, que não abole as diferenças reais, têm que ser definidos’. Infelizmente, Marx jamais desenvolveu essa nota explicando sua concepção de ‘forças produtivas’ e ‘relações de produção’. Essa deficiência é marcante: embora esses dois conceitos constituam a viga mestra do 36 materialismo histórico, raramente são manejados com precisão, inclusive por aqueles que adotam essa teoria”(Shaw, 1979, p. 15). Mas esta não é a única passagem em que Marx aborda estes conceitos. Segundo La Grassa: “O que é um modo de produção. No Prefácio à Contribuição... Marx escreve: ‘em grandes linhas, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês podem ser designados como épocas que marcam o progresso da formação econômica da sociedade’. E afirma, além disso, que ‘o modo de produção da vida material condiciona, em geral, o processo social, político e espiritual da vida’. (...) Prevalece, é certo, o dado econômico quando se considera a formação da sociedade (...); a afirmação relativa à ‘produção da vida material’ que está na base que qualquer processo de desenvolvimento social, é bastante clara. Assim como está claramente indicado, no texto há pouco citado, a distinção entre ‘base econômica’ da sociedade (conjunto das relações de produção), por um lado, e a sobrestrutura jurídico-política e as várias formas de consciência social, por outro. É, contudo, necessário recordar que o dado econômico não se pode reduzir apenas aos métodos organizativos e técnicos da produção material. Devem também tomar-se em consideração as relações (sociais) que intercorrem entre os homens (entre as classes determinantes) no curso desta produção (...). Portanto, no modo de produção acham-se ‘fundidos’, ‘sintetizados’, dois elementos, um de caráter prevalentemente técnico, o outro de caráter eminentemente social; isto é, por um lado, as forças produtivas (...), e, por outro, as relações sociais de produção”(La Grassa, 1974, p. 363-364). Uma outra interpretação, derivada da influência do estruturalismo em pesquisadores que se pretendem marxistas, coloca da seguinte forma: 37 “Um modo de produção é uma combinação específica de diversas estruturas e práticas que, em combinação, aparecem como instâncias ou níveis, isto é, como estruturas regionais com uma autonomia e dinâmica próprias, ligadas a uma unidade dialética. Um modo de produção compreende três níveis ou instâncias: a econômica ou infra-estrutura, a políticojurídica e a ideológica. Estas duas últimas constituem a superestrutura. Entende-se que se trata de um esquema abstrato indicativo que é constituído para efeito de uma análise, e que é possível adotar outro com diferentes instâncias”(Fioravante, 1991, p. 31). No entanto, estas e outras abordagens do que Marx entendia como modo de produção são, na verdade, uma estruturação de algo que no próprio autor em questão não se encontra estruturado, mas esboçado. Isto faz com que alguns cristalizem sua estruturação e diga que é impossível pensar fora dela, bem como a atribui a Marx. Desta forma, o problema reside em atribuir esta estruturação ao próprio Marx, seja apelando para uma pretensa “filosofia subjacente” ou para complementos extraídos de outras formulações (estruturalismo, por exemplo). Neste sentido (e somente neste) concordamos com Shaw: “... Marx quer dizer o que diz: não é preciso explicar isso em termos de alguma pretensa filosofia ‘subjacente’ ou de emprego peculiar de palavras. Não afirmo que não haja ambigüidades, discrepâncias, enigmas, ou enganos evidentes em Marx; simplesmente argumento que algum esforço as idéias de Marx podem tornar-se logicamente consistentes e coerentes – ou, onde isso não for possível, que os problemas podem pelos menos ser identificados” (Shaw,1979, p. 16). Como podemos compreender o conceito de modo de produção a partir de Marx? O procedimento de La Grassa nos parece o mais consistente: analisar as observações de Marx quando ele se refere a este conceito sem apelar para explicações que nos remetam a outras concepções. Daí os resultados a que ele chegou – enquanto não apela para outros autores e interpretações – serem mais adequados. Realmente, tal como La Grassa coloca, para Marx, o conceito de 38 modo de produção nos remete à produção de bens materiais. Um modo de produção, na acepção marxista do termo, é uma forma de produção de bens materiais. Além disso, esta produção é sempre uma relação social: “O objeto deste estudo é, em princípio, a produção material. Indivíduos produzindo em sociedade – portanto uma produção de indivíduos socialmente determinada, este é, naturalmente, o ponto de partida. O caçador e o pescador individuais e isolados, de que partem Smith e Ricardo, pertencem às inocentes ficções do século 18. São ‘robinsonadas’ que não exprimem de forma alguma, como parecem crer alguns historiadores da civilização, uma simples reação contra os excessos de requinte e um regresso a um estado de natureza mal compreendido” (Marx, 1983, p. 201). Mas a produção muda historicamente. Tal como coloca Marx: “Assim, sempre que falamos de produção, é à produção num estágio determinado do desenvolvimento social que nos referimos – à produção de indivíduos vivendo em sociedade. Pode parecer que, para falar da produção em geral, será conveniente ou seguir o processo histórico de seu desenvolvimento nas suas diversas fases, ou declarar antes de mais nada que iremos ocupar-nos de uma época histórica determinada, por exemplo, da produção burguesa moderna que é, de fato, o nosso verdadeiro tema. Mas todas as épocas da produção têm certas características comuns, certas determinações comuns. A produção em geral é uma abstração, mas uma abstração racional, na medida em que, sublinhando e precisando os traços comuns, nos evita a repetição. No entanto, este caráter geral ou estes traços comuns, que a comparação permite estabelecer, formam por seu lado um conjunto muito complexo cujos elementos divergem para revestir diferentes determinações. Algumas destas características pertencem a todas as épocas, outras apenas comuns a umas poucas. [Algumas] destas 39 determinações revelar-se-ão comuns tanto à época mais recente como à mais antiga. Sem elas, não é possível conceber qualquer espécie de produção. (...); do mesmo modo é importante distinguir as determinações que valem para a produção em geral, a fim de que a unidade (...) não nos faça esquecer a diferença essencial. Este esquecimento é o responsável por toda a sapiência dos economistas modernos que pretendem provar a eternidade e a harmonia das relações sociais atualmente existentes” (Marx, 1983, p. 202-203). Portanto, a produção adquire formas diferentes em épocas diferentes. Estas formas são os modos de produção. Marx abordou a sucessão de alguns modos de produção na Europa Ocidental. Existem elementos comuns a todos os modos de produção e elementos específicos em cada um deles. O modo de produção feudal possui determinações diferentes do modo de produção capitalista. Mas quais são os elementos componentes de um modo de produção? Qual é a relação do modo de produção com a sociedade? Vejamos o que diz Marx: “Na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral”(Marx, 1983, p. 24). Aqui temos os elementos componentes: as relações de produção e as forças produtivas. Mas o que são relações de produção? Segundo Marx: “Em certo estágio de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais entram em contradição com 40 as relações de produção existentes, ou, que é sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinha movido até então. De forma de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de revolução social”(Marx, 1983, p. 24-25). Portanto, as relações de produção são relações sociais entre os seres humanos no processo de produção que são, em determinadas sociedades, relações de propriedade. E, sendo relações de propriedade, são relações entre classes sociais (Viana, 2007). O que são as forças produtivas? Marx apresentou a seguinte definição: “As forças produtivas são o resultado da energia prática dos homens, mas esta mesma energia é circunscrita pelas condições em que os homens se acham colocados, pelas forças produtivas já adquiridas, pela forma social anterior, que não foi criada por eles e é produto da geração precedente. O simples fato de cada geração posterior deparar-se com forças produtivas adquiridas pelas gerações precedentes, que lhes servem de matéria-prima para novas produções, cria na história dos homens uma conexão, cria uma história da humanidade, que é tanto mais a história da humanidade quanto mais as forças produtivas dos homens, e, por conseguinte, as suas relações sociais adquiriram maior desenvolvimento”. (Marx, 1989, p. 207.). Assim, as forças produtivas são os meios de produção (máquinas, ferramentas, etc.). Logo, o modo de produção é composto pelas forças produtivas e relações de produção, que, em cada modo de produção específico, possui uma correspondência e contradição. O modo de produção possui uma dinâmica própria que se manifesta, em 41 determinadas sociedades (as divididas em classes sociais)2, como luta de classes. Como vimos na citação anterior, o modo de produção determina as formas jurídicas, políticas e ideológicas em uma determinada sociedade. Estes outros elementos componentes da sociedade, além do modo de produção, tiveram sua cristalização lingüística na expressão “superestrutura” (Viana, 2007). Assim, o modo de produção é a determinação fundamental de uma sociedade3. O Modo de Produção Camponês Podemos, agora, partir para a questão do modo de produção camponês. De acordo com a concepção de Marx é possível falar em mais de um modo de produção no interior de uma determinada sociedade? Ao que tudo indica sim. Na citação anterior, Marx se refere “ao conjunto das relações de produção”, o que significa que elas formam um “conjunto” que não são, necessariamente, da mesma natureza. Mas existem outras passagens de Marx em que ele deixa isto mais claro: 2 3 No Manifesto Comunista, Marx e Engels diferenciaram entre as sociedades divididas em classes sociais e as sociedades sem classes, préhistóricas: (cf. Marx e Engels, 1988). utilizamos aqui a expressão sociedade ao invés, como querem alguns, o de formação social. Os adeptos do uso deste último termo alegam a historicidade presente nela. No entanto, concordamos com Luporini, crítico da noção de formação social, pois, segundo ele: “a contraposição da palavra ‘formation’, como que um ‘nome de ação’ (e que denota portanto um conceito ‘dinâmico’), à palavra ‘Form’, como de um ‘nome de estado’ (e que denota portanto um que de ‘estático’) me parece sem fundamento. Parece-me evidente que a palavra ‘Form’ pode denotar uma forma que se desenvolve, dinâmica, portanto, e a palavra ‘formation’ uma configuração que se apresenta estaticamente (como em geologia, de cuja linguagem Marx provavelmente a tirou): e vice-versa. Os dois termos, tomados em si, são tais que nada se pode decidir sobre o seu valor estático ou dinâmico, a não ser a partir do contexto que são utilizados” (Luporini, 1974, p. 223). Devido a isto, não consideramos que o termo “sociedade” signifique algo estático (além de ter sido usado amplamente por Marx), pois o que decide isto é o contexto discursivo não qual é utilizado e consideramos, portanto, desnecessário substituí-lo por um outro termo como o de “formação social”. 42 “Em todas as formas de sociedade há uma determinada produção que decide a posição e a influência de todas as outras e cujas relações decidem por isso a posição e a influências de todas as outras”(Texier, 1974, p. 90). Portanto, para Marx, é possível, no interior de uma mesma sociedade, existirem relações de produção distintas, embora uma predomine sobre as outras. Assim, só falta comprovarmos se, para Marx, a produção camponesa pode ser considerada uma relação de produção. Para isso devemos recordar a definição de relações de produção anteriormente apresentada e ver se seus elementos estão presentes na produção camponesa. Ora, a produção camponesa produz bens materiais e se constitui como uma relação social, fundamentada no trabalho familiar, que colocam frente à frente o campesinato, enquanto classe produtora, à outras classes sociais, principalmente a burguesia, enquanto classe exploradora. A partir destas noções preliminares podemos dizer que é possível trabalhar com a idéia de modo de produção camponês no interior da teoria marxista. No entanto, o próprio Marx já havia falado em um modo de produção camponês. Quem melhor que o próprio Marx para dizer ao para dizer se é possível pensar em um conceito elaborado por ele mesmo? Vejamos o que ele diz: inteiramente a maior parte do que consome, adquirindo assim os meios de subsistência mais através de trocas com a natureza do que do intercambio com a sociedade”(Marx, 1986, p. 119). O modo de produção camponês se fundamenta na pequena propriedade familiar com forças produtivas menos desenvolvidas que as forças produtivas presentes nas relações de produção capitalistas. E onde se localizam as relações de propriedade como relações de classes? Ora, o modo de produção camponês é um modo de produção subordinado ao capitalismo. A pequena propriedade é “quase autosuficiente” (na época analisada por Marx isto era mais forte, mas, posteriormente, sob a influência do capitalismo, novas necessidades e dificuldades passam a diminuir sua auto-suficiência) mas está subordinada ao domínio do capital: “Os pequenos camponeses constituem uma imensa massa, cujos membros vivem em condições semelhantes mas sem estabelecerem relações multiformes entre si. Seu modo de produção os isola uns dos outros, em vez de criar entre eles um intercambio mútuo. Esse isolamento é agravado pelo mau sistema de comunicações existente na França e pela pobreza dos camponeses. Seu campo de produção, a pequena propriedade, não permite qualquer divisão do trabalho para o cultivo, nenhuma aplicação de métodos científicos e, portanto, nenhuma diversidade de desenvolvimento, nenhuma variedade de talento, nenhuma riqueza de relações sociais. Cada família camponesa é quase auto-suficiente; ela própria produz “O desenvolvimento econômico da pequena propriedade modificou radicalmente a relação dos camponeses para com as demais classes da sociedade. Sob Napoleão a fragmentação da terra no interior suplementava a livre concorrência e o começo da grande indústria nas cidades. O campesinato era o protesto ubíquo contra a aristocracia dos senhores de terra que acabara de ser derrubada. As raízes que a pequena propriedade estabeleceu no solo francês privaram o feudalismo de qualquer meio de subsistência. (...) Mas no decorrer do século dezenove, os senhores feudais foram substituídos pelos usurários urbanos; o imposto feudal referente à terra foi substituído pela hipoteca; a aristocrática propriedade territorial foi substituída pelo capital burguês. A pequena propriedade do camponês é agora o único pretexto que permite ao capitalista retirar lucros, juros e renda do solo, ao mesmo tempo que deixa ao próprio lavrador o cuidado de obter o próprio salário como puder. (...). A ordem burguesa, que no princípio do século pôs o Estado para montar guarda sobre a recémcriada pequena propriedade e premiou-a com lauréis, tornou-se um vampiro que suga seu sangue e sua 43 44 medula, atirando-o no caldeirão capital”4. (Marx, 1989, p. 119). alquimista do Marx acrescenta outra forma de exploração do campesinato: “Além da hipoteca que lhe é imposta pelo capital, a pequena propriedade está ainda sobrecarregada de impostos. Os impostos são a fonte de vida da burocracia, do exército, dos padres e da côrte, em suma, de toda a máquina do poder executivo. Governo forte e impostos fortes são coisas idênticas. Por sua própria natureza a pequena propriedade forma uma base adequada a uma burguesia todo-poderosa e inumerável”(Marx, 1989, p. 120). Portanto, a propriedade camponesa se constitui como uma relação de produção, também fundamentada na exploração. Marx coloca que o campesinato está submetido ao capital e sua propriedade é meramente imaginária, uma propriedade nominal: “A sua exploração só se distingue da exploração do proletariado industrial pela forma. O explorador é o mesmo: o capital. Individualmente, os capitalistas exploram os camponeses por meio da hipoteca e da usura; a classe capitalista explora a classe camponesa por meio dos impostos do Estado. O título de propriedade do camponês é o talismã com que o capital o vinha fascinando até agora, sob o pretexto de que se valia para atiçá-lo contra o proletariado industrial”(Marx, 1986, p. 131). A propriedade camponesa se revela uma propriedade nominal e o campesinato aparece, então, como uma classe social explorada pela classe capitalista. Portanto, notamos que Marx utilizou a idéia de modo de produção camponês e forneceu alguns elementos explicativos de suas relações de produção. Ora, como Marx coloca, o modo de produção camponês é quase auto-suficiente. É justamente no quase que se abre a brecha para a exploração do campesinato. Ao produzir quase tudo que necessita e 4 MARX, Karl. O Dezoito Brumário... ob. cit., p. 119. 45 ter que adquirir o que não produz, o modo de produção camponês se revela como um modo de produção fundamentado na produção mercantil simples, pois o que não produz é necessário adquirir no mercado. Marx analisou a produção mercantil simples e lhe explicou da seguinte forma. Ela se baseia no processo de troca de mercadorias, mas tendo como objetivo final o seu valor de uso. O produtor produz parte do que necessita para sua sobrevivência, mas não produz uma outra parte necessária. Por exemplo, produz alimentos mas não produz roupas. Assim, ele produz um excedente em alimentos (excedente em relação às suas necessidades) e os vende, ou seja, os troca por dinheiro. Com o dinheiro ele pode comprar aquilo que não produz, no caso, a roupa. Este processo é chamado de mercantil simples por que se diferencia do processo mercantil capitalista. Ele começa com o produto-mercadoria, que é trocado por dinheiro, que é transformado em novo produtomercadoria. Segundo Marx: “Acompanhemos agora um possuidor qualquer de mercadorias, por exemplo, nosso velho conhecido tecelão de linho, à cena do processo de intercambio, ao mercado. Sua mercadoria, 20 varas de linho, tem preço determinado. Seu preço é duas libras esterlinas. Ele a troca por 2 libras esterlinas e, homem de velha cepa, torças as 2 libras esterlinas, por sua vez, por uma Bíblia familiar do mesmo preço. O linho, para ele apenas mercadoria, portador de valor, é alienado por ouro, sua figura de valor: e dessa figura volta a ser alienado por outra mercadoria, a Bíblia, que, porém, como objeto de uso, deve ir para a casa do tecelão e lá satisfazer às necessidades de edificação. O processo de intercâmbio da mercadoria opera-se, portanto, por meio de duas metamorfoses opostas e reciprocamente complementares – transformação da mercadoria em dinheiro e sua retransformação de dinheiro em mercadoria. Os momentos da metamorfose da mercadoria são, ao mesmo tempo, transações do possuidor de mercadoria – venda, intercâmbio da mercadoria por dinheiro: compra, intercâmbio do 46 dinheiro por mercadoria e unidade de ambos os atos: vender, para comprar”(Marx, 1988a, p. 93). Assim, o produtor de mercadorias vende apenas para efetuar uma compra, ou seja, busca um valor de uso. Sua lógica, é, portanto, M-D-M: mercadoria-dinheiro-mercadoria. Esta lógica é diferente da produção mercantil capitalista, que possui outra lógica D-M-D: dinheiro-mercadoria-dinheiro. A produção mercantil simples realiza a troca mercantil para adquirir valores de uso enquanto que a produção capitalista visa a acumulação de capital5. Ora, o processo de produção mercantil simples numa sociedade onde predomina a produção mercantil capitalista se torna subordinada ao domínio do capital6. No caso do campesinato é isto que ocorre. O camponês produz um excedente que é trocado por dinheiro e retransformado em mercadoria. Porém, a mercadoria que ele irá comprar no mercado capitalista possui um valor superior à mercadoria que ele vende. Assim, o camponês é explorado não só pela hipoteca, juros, impostos mas também pela troca desigual entre produtos primários oriundos da produção camponesa e mercadorias fabricadas no setor capitalista de produção. Segundo Marx: “O camponês pode vender seu grão acima do valor ou comprar as roupas abaixo do valor delas. Ele 5 6 “O ciclo M-D-M parte do extremo de uma mercadoria e se encerra com o extremo de outra mercadoria, que sai da circulação e entra no consumo. Consumo, satisfação de necessidades, em uma palavra, valor de uso, é, por conseguinte, seu objetivo final” (Marx, 1988a, p. 123). “Comprar para vender, ou melhor, comprar para vender mais caro, D-M-D, parece ser decerto apenas uma espécie do capital, a forma peculiar do capital comercial. Mas também o capital industrial é dinheiro, que se transforma em mercadoria e por meio da venda de mercadoria retransforma-se em mais dinheiro” (Marx, 1988a, p. 127). “Mas a forma que o incipiente modo de produção capitalista encontra a propriedade fundiária não lhe é adequada. Só ele mesmo cria a forma que lhe é adequada, por meio da subordinação da agricultura ao capital; com isso, então, a propriedade fundiária feudal, a propriedade do clã ou a pequena propriedade camponesa combinada com as terras comunais são também transformadas na forma econômica adequada a esse modo de produção, por mais diversas que sejam suas formas jurídicas” (Marx, 1988a, p. 113). 47 pode, por sua vez, ser enganado pelo comerciante de roupas. Tal diferença de valor permanece, no entanto, para essa mesma forma de circulação, puramente casual. Ela não perde simplesmente sentido e entendimento como o processo D-M-D, se os dois extremos, grão e roupas, por exemplo, são equivalentes. Sua igualdade de valor é aqui muito mais condição do transcurso normal” (Marx, 1988a, p. 124). O problema aqui reside na explicação do baixo preço das mercadorias produzidas no modo de produção camponês. O que determina o valor de uma mercadoria? O trabalho socialmente necessário para produzi-la. Isto, no entanto, no modo de produção capitalista. É neste modo de produção que o valor da mercadoria é determinado pelo trabalho objetivado nela. Mas e o valor de uma mercadoria produzida na produção mercantil simples? Sem dúvida, é possível falar que o valor da mercadoria é determinado pelo trabalho objetivado na mercadoria, mas isto não entra no preço da mercadoria devido ao fato de a produção mercantil simples só comercializa o excedente. O que significa que somente uma parte do trabalho objetivado, aquele materializado nas mercadorias vendidas, é recuperada pelo camponês. A outra parte são as mercadorias utilizadas no consumo próprio de sua unidade de produção, ou seja, pelos gastos familiares. Assim, apenas uma parte do trabalho objetivado é comercializada. Ao ser comercializado, ele atrai renda para o camponês. Com esta renda ele deve adquirir os produtos que ele não produz diretamente (máquinas, ferramentas, meios de consumo, etc.) e que são custos de produção mais meios de consumo. Os meios de produção adquiridos, entretanto, não são utilizados em sua totalidade para a produção da parte comercializada, mas para toda a produção camponesa. Assim, o valor de uma mercadoria produzida pelo modo de produção camponês não pode ser determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la. O valor da força de trabalho não é equivalente as suas necessidades, pois ele auto-produz parte dela. Assim, o modo de produção camponês possui uma lógica diferente do modo de produção capitalista. Mas além disso, tal modo de produção não visa lucro, mas tão-somente a autosubsistência. Mas como é definido, portanto, o valor de uma 48 mercadoria produzida no modo de produção camponês? É definido pela lógica do mercado capitalista. Tal como Marx colocou: “Para que o camponês parcelário cultive sua terra ou compre terra para cultivar não é (...) necessário, como no modo de produção capitalista normal, que o preço de mercado do produto agrícola suba o bastante para render-lhe o lucro médio, e, ainda menos, um excedente, fixado na forma de renda, sobre esse lucro médio. Não é, portanto, necessário, que o preço de mercado suba até o valor ou até o preço de produção de seu produto. (...). Uma parte do maistrabalho dos camponeses que trabalham sob as piores condições é dada gratuitamente à sociedade e nem sequer entra na regulação dos preços de produção ou na formação do valor em geral. Esse preço mais baixo é, portanto, um resultado da pobreza dos produtores e, de modo algum, da produtividade do seu trabalho”(Marx, 1988a, p. 245). O camponês não tem que pagar pela força de trabalho, pois ele é a própria força de trabalho, e não busca lucro, sendo simultaneamente o proprietário. O que o camponês busca é tãosomente um complemento de sua produção. No entanto, devido ao seu endividamento, ele deve buscar aumentar sua produção, mas isto acaba sendo revertido para os setores capitalistas. O campesinato é vítima do Marx denominou “métodos secundários de exploração capitalista”. O modo de produção camponês proporciona um acréscimo à renda nacional além do mais-valor global produzido pelo proletariado. O capital produz o modo de produção camponês. Aqui devemos observar que Marx distingue entre o campesinato parcelar, típico do modo de produção capitalista, e o campesinato que podemos denominar “aldeão” ou “comunitário”. Para Marx, o modo de produção “aldeão” (embora ele não utilize esta expressão, pois em alguns momentos fala de modo de produção rural ou como forma de produção camponesa), embrião do modo de produção camponês, possui a seguinte organização: ao lado de uma parte do solo pertencente aos camponeses individuais (e cultivada autonomamente 49 por eles) há uma parte que é trabalhada comunitariamente, voltada para a produção de um excedente utilizado para despesas comunitárias e como fundo de reserva para más colheitas, entre outros usos. É por isso que Marx irá falar em “propriedade camponesa parcelária”, pois esta se diferencia da propriedade comunitária rural. No entanto, esta última é superada pelo modo de produção camponês (a propriedade camponesa parcelar). A formação desta se deve aos seguintes determinações apresentadas por Marx: “As causas de seu declínio indicam sua limitação. São elas: aniquilamento da indústria doméstica rural, que constituía sua complementação normal, devido ao desenvolvimento da grande indústria; paulatino empobrecimento e esgotamento do solo sujeito a esse cultivo; usurpação, por grandes proprietários de terra, da propriedade comunitária, que, por toda a parte, constitui a segunda complementação da economia parcelária, pois só ela possibilita a criação de gado; concorrência da grande cultura, seja ela do sistema de plantações, seja da exploração capitalista. Melhorias na agricultura que, por um lado, acarretem queda dos preços dos produtos agrícolas e, por outro, exijam maiores gastos e condições materiais de produção mais abundantes, também colaboram para tanto, como ocorreu na primeira metade do século 18 na Inglaterra”(Marx, 1988b, p. 246). Modo de Produção Camponês e Conceito de Campesinato A partir de agora iremos abordar o conceito de campesinato a partir dos escritos de Marx. Alguns autores falam de “sociedades camponesas” e outros definem campesinato como todo habitante do campo. Isto é um equívoco, pois não só retira a historicidade do conceito como cria uma indiferenciação no que, na realidade, é diferenciado, histórica e socialmente. Segundo Marx: “(...) Os homens, ao desenvolverem as suas faculdades produtivas, isto é: vivendo, desenvolvem certas relações entre si, e (...) o modo destas relações muda necessariamente com a modificação e o 50 desenvolvimento destas faculdades produtivas. (...) As categorias econômicas não são mais que abstrações destas relações reais e (...) somente são verdades enquanto estas relações subsistem”(Marx, 1989, p. 210211). Assim, um conceito, na abordagem marxista, é uma expressão da realidade, e, portanto, partilha com esta a historicidade, a mutabilidade, a transitoriedade. Logo, quando se fala em camponês é preciso delimitar a realidade a qual este conceito se refere. O que é o campesinato? É todo habitante do campo? Então o servo na sociedade feudal é um camponês, assim como todas as outras classes e grupos sociais que moram no campo. Mas devemos observar o caráter insuficiente do critério aqui utilizado: qual importância histórica e teórica possui os habitantes do campo desligados do conjunto das relações sociais aos quais estão submetidos? O servo e o pequeno proprietário familiar na sociedade moderna vivem no campo, mas sob relações sociais totalmente diferentes. Além disso, tomar o campesinato como grupo social que vive no campo em todas as épocas e sociedades significa criar uma indiferenciação e uma categoria ahistórica. A tendência a considerar todo mundo que mora no campo um camponês é forte e faz parte do uso comum da palavra. O próprio Marx utilizou tal expressão neste sentido e às vezes utilizou as expressões “camponês parcelar” e “pequeno camponês” para diferenciar o pequeno proprietário familiar, o camponês em sentido estrito, ligado ao modo de produção camponês, do camponês em sentido geral. Marx colocou várias vezes o momento histórico do surgimento do campesinato nos seus escritos sobre a França. O campesinato surge com a derrocada do feudalismo. A propriedade parcelar e simultaneamente comunitária, em algumas regiões, é substituída pela propriedade familiar. Engels também abordou seu surgimento do campesinato e sua diferença em relação ao servo da sociedade feudal. Engels notou três diferenças entre o servo e o camponês: “Primeiro, a Revolução Francesa libertou-o dos encargos e dos serviços feudais que devia ao seu senhor e, na maioria dos casos, pelo menos na margem esquerda do Reno, entregou-lhe totalmente a terra. 51 Segundo, perdeu a proteção da comunidade de pastoreio e deixou de participar na administração autônoma daquela. Ficou assim privado da sua parte de fruição do antigo pastoreio comum. Este pastoreio comum foi escamoteado, quer pelo antigo senhor, quer graças aos efeitos de uma legislação burocrática ‘esclarecida’, fundada no direito romano. O pequeno camponês vê-se assim privado da possibilidade de alimentar o gado sem comprar o pasto. (...). O número de camponeses que não podem sustentar os animais de trabalho cresce constantemente. Em terceiro lugar, o camponês atual distingue-se ainda pela perda da metade de sua atividade produtiva de outrora. Outrora, com a família, fabricava, com a ajuda de matérias primas que ele mesmo produzia, a maior parte dos produtos industriais de que necessitava. O que lhe faltava era-lhe ainda fornecido pelos vizinhos da aldeia que, além da agricultura, exerciam ainda um ofício e eram pagos, na maior parte das vezes, por troca ou por serviços recíprocos. A família, e, mais ainda, a aldeia, bastavam-se a si próprios e produziam mais ou menos tudo o que lhes era necessário. Era quase a economia natural no estado puro, quase nunca se utilizava o dinheiro. A produção capitalista acabou com este estado de coisas por intermédio da economia monetária e da grande indústria”(Engels, 1975, p. 9). Assim, Engels distingue entre servo e camponês, também se referindo ao aldeão, que produz em sua parcela de terra e também comunitariamente. Assim, em cada período histórico, no conjunto de determinadas relações sociais, o habitante do campo está envolvido em relações sociais específicas e envolvido por uma sociedade com relações sociais também específicas. Por isso, a especificidade não deve ser apagada e sim reconhecida e desta forma, o conceito de campesinato é um conceito só existente na sociedade capitalista. O que é um camponês? Ora, tal como colocamos anteriormente, o camponês é o pequeno proprietário rural, que cultiva juntamente com sua família, um pedaço de terra, e tem sua produção subordinada ao capitalismo. Enfim, o campesinato é a classe social que constitui o 52 modo de produção camponês. O campesinato surge com o processo de formação do capitalismo, marcado pela decadência das relações de produção feudais, pela servidão, e pela expansão do comércio, da indústria, da cidade, e, principalmente, pelas relações de produção capitalistas, que, ao se expandirem, destroem relações de produção pré-capitalistas e devido ao contexto derivado destas, constitui relações de produção não-capitalistas subordinadas ao capitalismo. Assim, o conceito de campesinato nos remete a uma classe social historicamente constituída e que tem características próprias. O campesinato é, portanto, uma classe social explorada e que sofre uma forma de exploração específica. Sua exploração não é a exploração específica do modo de produção capitalista. Ela se constitui enquanto forma secundária de exploração capitalista. Assim, o modo de produção camponês é um conceito que deve integrar a teoria marxista da sociedade capitalista. O objetivo do presente trabalho foi justamente resgatar o reconhecimento desta necessidade teórica, que possui, obviamente, implicações práticas. MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2a edição, São Paulo, Martins Fontes, 1983. MARX, Karl. O Capital. Vol. 1, 2a edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988a. MARX, Karl. O Capital. Vol. 2, 2a edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988b. MARX, Karl. O Dezoito Brumário e Cartas a Kugelmann. 5a edição, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986. SHAW, William. Teoria Marxista da História. Rio de Janeiro, Zahar, 1979. TEXIER, Jacques. “Modo de Produção”, “Formação Econômica”, “Formação Social”. In: SERENI, E. e outros. Modo de Produção e Formação Econômico-Social. Lisboa, Estampa, 1974. VIANA, Nildo. A Consciência da História. Ensaios Sobre o Materialismo histórico-Dialético. Rio de Janeiro, Achiamé, 2007. Referências Bibliográficas ENGELS, Friedrich. A Questão Camponesa em França e na Alemanha. Coimbra, Centelha, 1975. FIORAVANTE, Eduardo. 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In: A Miséria da Filosofia. 2a edição, São Paulo, Global, 1989. 53 CONCEITO DE CAMPONÊS José Santana da Silva 54 A categoria camponês (substantivo) ou campesinato tem merecido a atenção de inúmeros cientistas sociais de diferentes filiações teóricas e especialidades – economistas, sociólogos, antropólogos, historiadores – sem que, no entanto, tenha-se chegado a uma definição consensual. Os motivos das divergências são variados. Referem-se à condição do homem do campo em relação à posse da terra que cultiva: proprietário ou não proprietário; ao destino da sua produção: para o mercado ou apenas para o autoconsumo; à condição do campesinato dentro das diversas formações socioeconômicas: constitui um modo de produção independente ou apenas um tipo de processo produtivo? Uma forma específica de sociedade (“sociedade camponesa”) ou um “modo de vida” peculiar? Uma classe social ou apenas uma fração de classe? Por trás de todas essas polêmicas estão as transformações pelas quais o campesinato tem passado no tempo e no espaço. Certo é que o termo camponês ou campesinato não pode ser empregado para designar qualquer tipo de pessoa ou grupo que vive da produção agrícola, independente do contexto e das relações sociais e de poder vigentes. Coerente com esse caráter histórico da categoria camponês, o historiador francês Pierre Vilar afirma: O que me preocupa é o emprego da palavra ‘camponês’ sem qualificativo, como se existisse um camponês-conceito, um campesinato ‘em si’. Pois a figura, a imagem do camponês, desde que existe uma civilização urbana, é objeto de uma dupla mitificação: por um lado, o desprezo pelo ‘rústico’; por outro, o culto do ‘lavrador’ (ou do pastor!), a ‘apologia da aldeia’ (1985, p. 254). Além dessa dupla mitificação, o autor registra outras “duas perspectivas” em confronto, derivadas do comportamento político do campesinato frente às transformações ocorridas nas sociedades modernas, que afetaram e ainda afetam sua existência: uma, que, diante da resistência do campesinato à modernização capitalista e do seu apego a um modo de vida tradicional, o qualifica de conservador e até reacionário; outra, que considera o campesinato como “centro de todas as 55 esperanças revolucionárias”, devido ao seu envolvimento em importantes movimentos revolucionários. “Contradições que – segundo Vilar – bastam para nos inspirar alguma desconfiança em relação à utilização da palavra ‘camponês’ empregada isoladamente, sem mais distinções nem análises” (idem). Em virtude disso, a história se torna imprescindível à compreensão dessa categoria. Nesse sentido, Marx, ao explicitar a dimensão histórica dos conceitos, afirmou: Esse exemplo [refere-se à categoria trabalho] mostra de maneira muito clara como até as categorias mais abstratas – precisamente por causa de sua natureza abstrata –, apesar de sua validade para todas as épocas, são, contudo, na determinidade dessa abstração, igualmente produto de condições históricas, e não possuem plena validez senão para essas condições e dentro dos limites destas (1986, p. 17). Essa forma de encarar os conceitos caracteriza a dimensão histórica do método proposto por Marx: o materialismo histórico-dialético. É dessa perspectiva teórico-metodológica que procuramos chegar a um conceito de camponês neste texto. Para tanto, convém iniciar pela explanação das concepções clássicas dessa categoria. Entre os estudiosos do campesinato, verifica-se uma tendência a ressaltar as divergências entre o economista e agrônomo russo Alexander Vasilievich Chayanov (1888-1939) e Karl Marx (1818-1883), como faz Abramovay (1992), por exemplo. Sem dúvida que as diferenças entre esses dois autores são fundamentais, como se verá. Entretanto, há quem identifique alguns pontos comuns às concepções de ambos, como fez Eduardo P. Archetti na apresentação da obra de Chayanov, La organización de la unidad económica campesina (1974). Comecemos por Marx. Encontramos em sua obra, O capital (vol. I, livro primeiro, t. I, cap. IV), uma distinção entre a “forma direta de circulação de mercadorias” ou “circulação simples” e a circulação capitalista que nos permite caracterizar a 56 economia camponesa1 como uma produção mercantil simples, cuja circulação do excedente se expressa na fórmula M-D-M (mercadoria-dinheiro-mercadoria), tendo como finalidade a auto-subsistência. Nisto se distingue de modo fundamental da produção mercantil capitalista, cuja circulação se configura na fórmula D-M-D (dinheiro-mercadoria-dinheiro). Dessa comparação, depreende-se que, enquanto na economia mercantil simples – camponesa – a circulação se inicia e termina com a mercadoria, cujo destino é o consumo por parte do vendedor-comprador, no capitalismo a circulação começa com o dinheiro, transformado em mercadoria e, em seguida, em dinheiro novamente. Embora a circulação capitalista de mercadorias (D-M-D) percorra duas fases antitéticas, tal qual a circulação simples (M-D-M), nesta a finalidade é a apropriação de valor de uso, enquanto naquela interessa a obtenção do dinheiro, que, por sua vez, se converterá em capital. Obviamente que, para encontrar alguém disposto a comprá-la, a mercadoria deve conter, também, valor de uso, isto é, deve ser útil a quem vier adquiri-la. Mas o capitalista só investe na produção de mercadorias devido ao seu valor de troca, pois é na venda que ele concretiza seu objetivo final: a obtenção do lucro, cuja realização é indicada por Marx na fórmula D-M-D’, sendo D’=D+ D, “ou seja, igual à soma de dinheiro originalmente adiantado mais um incremento” (Marx, 1988: 124). É esse acréscimo que Marx chama de mais-valia ou sobrevalor. Segundo Archetti, a circulação simples “é possível porque o camponês não aparece no mercado como possuidor de dinheiro, mas sim como vendedor de mercadorias produzidas por ele 1 A expressão “economia camponesa” é utilizada por Chayanov, indicando uma autonomia relativa da produção camponesa frente à economia global. Embora neste texto não se reconheça o mesmo grau de autonomia atribuído por aquele autor à produção camponesa, essa denominação será empregada aqui para por falta de termo mais apropriado. Em todo caso, essa expressão parece mais coerente do que “sociedade camponesa”, conforme terminologia utilizada por Wolf (1976) e Mendras (s/d). 57 mesmo”, visto que, possuindo, total ou parcialmente, os meios de produção está em condição de “controlar as condições técnicas de produção” (Archetti, in: Chayanov, op. cit., p. 12). A caracterização da produção camponesa como sendo ao mesmo tempo de auto-subsistência e mercantil pode parecer paradoxal. Na verdade, auto-subsistência não pode ser confundida com auto-suficiência. Portanto, não sendo autosuficiente o camponês se vê impulsionado a produzir um excedente a ser vendido para a obtenção de artigos que ele não produz, tais como utensílios domésticos, sal, ferramentas de trabalho, dentre outros. O grau de autonomia ou de dependência do camponês em relação ao mercado para satisfazer suas necessidades, depende do nível de desenvolvimento da divisão do trabalho, que no capitalismo atingiu seu mais elevado grau. Da perspectiva marxista, então, podemos definir o camponês como um trabalhador rural que produz para a auto-subsistência, incluindo a geração de um excedente para a aquisição de artigos necessários ao próprio uso e ou para saldar seus compromissos com o proprietário da terra. Desse ponto de vista, não existe nem teria existido um “modo de produção camponês”. Aqui, ao invés de elencar os diversos modos de produção identificados nos escritos de Marx, desde a caracterização feita a partir das formas de propriedade contidas em A ideologia alemã, como argumento para negar a existência de um modo de produção camponês, importa apresentar uma definição dessa categoria. Embora tenha empregado com muita freqüência o termo modo de produção, o autor de O capital não se ocupou em defini-lo em todos os seus detalhes. No “Prefácio” (Introdução à Crítica da economia política) Marx afirma: O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor aos meus estudos, pode ser formulado em poucas palavras: na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real 58 sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual (grifos nossos) (Marx, 1986, p. 25).2 Baseados nessas formulações, muitos autores chegaram a uma definição de modo de produção que se limita a uma forma determinada de articulação entre as forças produtivas e as relações de produção. Coerentes com essa perspectiva, Cardoso e Brignoli (1983) apresentam a seguinte conceituação: “uma articulação historicamente dada entre determinado nível e forma de organização das forças produtivas, e as relações de produção correspondentes” (p. 66). Uma definição restrita. Porém, se se atentar para o fato de que a cada modo de produção específico corresponde uma superestrutura, ou seja, uma forma de regulação e legitimação das relações de produção vigentes, em que ambas as dimensões – estrutura e superestrutura – se interrelacionam, compondo, assim, uma totalidade mais complexa, essa definição é insuficiente. Ao considerar a afirmação de Marx de que sobre a “base real”, isto é, a totalidade das relações de produção, se ergue uma superestrutura político-jurídica, Vilar definiu modo de produção, não como “‘maneira de produzir’ (e muito menos maneira de trocar)”, mas como sendo, “ao mesmo tempo, um complexo técnico de determinado nível, um sistema de relações jurídicas e sociais, ligado ao tipo de exigências desse complexo técnico, e um conjunto de instituições e convicções ideológicas que asseguram o funcionamento do sistema geral” (op. cit., p. 289). Embora Vilar substitua a categoria forças produtivas (meios de produção mais força de trabalho) pelo termo “complexo técnico” e confunda relações sociais de produção com “sistema de relações jurídicas e sociais”, essa definição é mais completa do que a anterior. Se é correto afirmar que, para Marx, o que distingue um modo de produção de outro são as relações de produção 2 Nesse trecho do “Prefácio” Marx apresenta a sua concepção materialista da sociedade em oposição ao idealismo de Hegel. 59 características de cada um (aí incluídas as relações de propriedade), determinadas pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas, também é verdadeiro que cada modo de produção possui uma superestrutura político-jurídica específica. Daí, Marx afirmar que “Com a transformação da base econômica, toda a enorme superestrutura se transforma com maior ou menor rapidez” (1986, p. 25). Então, a partir das formulações de Marx, podemos definir modo de produção como uma totalidade social moldada por uma forma determinada de articulação entre forças produtivas e relações de produção, regulada por um sistema político-jurídico correspondente e legitimada por um conjunto de valores expressos pela ideologia dominante. Em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, ao caracterizar o campesinato francês em meados do século XIX (pequenos camponeses), Marx se referiu a um “modo de produção” camponês nos seguintes termos: Os pequenos camponeses constituem uma imensa massa, cujos membros vivem em condições semelhantes mas sem estabelecerem relações multiformes entre si. Seu modo de produção os isola uns dos outros, em vez de criar entre eles um intercâmbio mútuo. Esse isolamento é agravado pelo mau sistema de comunicações existente na França e pela pobreza dos camponeses. Seu campo de produção, a pequena propriedade, não permite qualquer divisão do trabalho para o cultivo, nenhuma aplicação de métodos científicos e, portanto, nenhuma diversidade de desenvolvimento, nenhuma variedade de talento nenhuma riqueza de relações sociais. Cada família camponesa é quase auto-suficiente; ela própria produz inteiramente a maior parte do que consome, adquirindo assim os meios de subsistência mais através de trocas com a natureza do que do intercâmbio com a sociedade (1978, p. 115). De acordo com essa caracterização, parece não haver dúvida de que Marx não emprega o termo modo de produção no mesmo sentido utilizado para denominar os modos de produção antigo, feudal e capitalista, por exemplo. Está claro que nesse parágrafo se refere à maneira de produzir, de se relacionar com seus iguais e de se inserir nas relações de troca. Essas constatações levaram Marx a tipificar os pequenos 60 camponeses franceses, não como uma classe propriamente dita, isto é, um conjunto orgânico em que os indivíduos se identificam uns com os outros pela mesma condição social e os mesmos interesses coletivos, distintos e mesmo opostos aos de outros segmentos e estabelecem entre si uma relação de solidariedade, expressa na consciência dessa identificação e na sua prática social e política autônoma em relação às demais classes. O campesinato constitui uma classe apenas na medida em que as condições econômicas em que vivem os seus integrantes, “o seu modo de vida, os seus interesses e sua cultura” os opõem aos das demais classes da sociedade (idem, p. 115-116). Assim, o mais coerente, segundo os escritos de Marx, seria definir a categoria social campesinato como uma classe, não como um modo de produção. A caracterização da “economia camponesa” elaborada por Chayanov está fundada em pressupostos distintos dos de Marx. Preocupado em ressaltar as peculiaridades da economia camponesa, Chayanov considerava a teoria econômica do modo de produção capitalista inadequada à sua compreensão. Afirmava ele que “todos os princípios de nossa teoria – renda da terra, capital, preço e outras categorias – formaram-se dentro do marco de uma economia baseada no trabalho assalariado, que busca maximizar lucros”, sem levar em conta as formas de vida econômica não-capitalistas (Chayanov, 1981, p. 133). Contrariando tal tendência, Chayanov se posiciona: não conseguiremos progredir no pensamento econômico unicamente com as categorias capitalistas, pois uma área muito vasta da vida econômica (a maior parte da esfera de produção agrária) baseia-se, não em uma forma capitalista, mas numa forma inteiramente diferente, de unidade econômica familiar não assalariada. Essa unidade tem motivações muito específicas para a atividade econômica, bem como uma concepção bastante específica de lucratividade (idem: 133-134). Na visão de Chayanov, portanto, o que move a família camponesa a produzir não é a busca de uma certa taxa de lucro, muito menos a obtenção de salários. Em vez disso, produz visando a própria subsistência. Nesse sentido, o economista e agrônomo russo afirma que o “produto do trabalho familiar é a 61 única categoria de renda possível, para uma unidade de trabalho familiar camponesa ou artesanal, pois não existe maneira de decompô-la analítica ou objetivamente” (idem: 138). Assim, o cálculo capitalista se torna inaplicável à produção familiar camponesa. Os fatores determinantes da quantidade de produto gerada pelo trabalho camponês são o “tamanho e a composição da família trabalhadora, o número de seus membros capazes de trabalhar”, além da “produtividade da unidade de trabalho e – isto é especialmente importante – (...) o grau de esforço do trabalho”, ou seja, “o grau de auto-exploração através do qual os membros trabalhadores realizam certa quantidade de unidades de trabalho durante o ano” (idem). Daí sua tese: “o grau de auto-exploração é determinado por um peculiar equilíbrio entre a satisfação da demanda familiar e a própria penosidade do trabalho” (idem: 138-139). Com o objetivo de melhor explicitar sua tese sobre as variáveis do cálculo da produção camponesa, Chayanov afirma que “com o aumento de produção obtido por trabalho árduo diminui a avaliação subjetiva do significado de cada novo rublo [moeda russa] para o consumo; mas a penosidade do trabalho para ganhá-lo, que exigirá uma quantidade cada vez maior de auto-exploração” (p. 139). Persistindo a exigência de maior produção, determinada por demanda interna, a família camponesa, que utiliza apenas a própria força de trabalho, prosseguirá com sua atividade econômica. Diferente disto, na medida em que se torna possível satisfazer suas necessidades com menor grau de auto-exploração, o equilíbrio entre os dois elementos se estabelecerá, levando o camponês a diminuir a intensidade do esforço. Se para a empresa capitalista o aumento da demanda do mercado – elemento externo e objetivo – é decisivo para forçar a produção para além de sua “capacidade ótima”, na unidade familiar não produz o mesmo efeito. Aí são os fatores internos, submetidos a uma avaliação subjetiva, nos termos já colocados, que exercem peso decisivo. Desta forma, Chayanov valoriza o 62 cálculo subjetivo na produção camponesa, relacionando-a com os fatores objetivos internos. Um confronto entre as concepções de Marx e de Chayanov nos permite constatar, além de alguns pontos em que estão de acordo, divergências fundamentais. Em conseqüência das discordâncias, o economista russo partiu, junto com os demais membros da ‘escola para o estudo da organização e produção camponesas’ na Rússia, para a construção de uma teoria que levasse em conta as suas especificidades, diferentemente do que fez Marx em sua análise crítica do modo de produção capitalista em O capital. De entrada, podemos dizer que Chayanov concorda com Marx que a produção camponesa se destina à auto-subsistência, mesmo trocando parte do excedente no mercado. Com base nisto, ambos definem a economia camponesa como mercantil simples, portanto distinta da economia mercantil capitalista que visa à obtenção do lucro. De acordo com Archetti, para os dois autores só é possível falar de um modo de produção ou economia estritamente camponesa “onde o campesinato se apropria integralmente do produto da terra que trabalha”. Um sistema em que os camponeses são obrigados a pagar algum tipo de renda não poderia ser definido como tal, a não ser para Chayanov, que não vê a troca de excedente da produção camponesa como transferência de trabalho para os segmentos dominantes da sociedade global, inclusive no capitalismo. Por isso, ele identifica a economia camponesa como um modo de produção da mesma forma que um outro qualquer. Quanto a Marx, a interpretação de Archetti é equivocada, visto que, na concepção de modo de produção daquele autor, não há qualquer indicação de que a apropriação integral do produto do trabalho por uma determinada classe, ainda que seja a classe dominante, seja condição para um sistema econômico-social ser considerado como tal. Além do mais, conforme já explicitado acima, nos escritos de Marx não é possível identificar um modo de produção camponês na acepção marxista do termo. Portanto, nesse ponto não há semelhanças entre os dois autores, mas sim divergências. Quanto ao limite da produção camponesa, para Chayanov são fatores internos, com ênfase na avaliação subjetiva das necessidades e condicionantes objetivos (tamanho da família, etc.), os verdadeiros determinantes da quantidade a ser produzida. É assim que ele fala de “auto-exploração”, com vistas a constituir “um fundo de subsistência definido culturalmente”, em vez de exploração como imposição de agentes externos (Archetti, in: op. cit., p. 11). Ao contrário disso, Marx encontra na relação com o sistema global, externo à unidade camponesa, os fatores objetivos que determinam o que e o quanto deve ser produzido. Isso se deve ao fato de a unidade camponesa não estar isolada de um contexto que ultrapassa seus limites, além de se encontrar submetido a relações de exploração impostas por setores dominantes que se apropriam de parte do produto do seu trabalho. Em todo caso, a produção camponesa não visa a acumular capital, sendo o camponês um trabalhador que produz para a auto-subsistência. Se levarmos em conta as elaborações de antropólogos e sociólogos sobre a categoria campesinato, alguns inspirados nas concepções de Marx ou de Chayanov, veremos que esta caracterização não dá conta de toda a extensão do termo. Atendendo ao propósito deste texto, faz-se necessário ampliar o quadro até aqui exposto com as contribuições de estudiosos dessas disciplinas. Em sua obra clássica, Sociedades camponesas (1976), o antropólogo Eric Wolf concebe o campesinato como uma espécie de grupo humano que permaneceu numa posição intermediária na escala da evolução, “entre a tribo primitiva e a sociedade industrial” (p. 9). Para ele, o mundo camponês é um mundo ordenado com formas particulares de organização, mas isso não significa dizer que sejam grupos que vivem isolados da sociedade global. Ao contrário, estão em permanente interação com ela. Wolf inicia a caracterização do campesinato 63 64 distinguindo-o dos grupos “primitivos”, bem como dos empresários agrícolas do tipo farmer norte-americano. Conforme sua compreensão, os camponeses se diferenciam dos primitivos pelo modo como se relacionam com os grupos exteriores. Assim, afirma que, nas sociedades primitivas, os excedentes são trocados diretamente pelos grupos ou por seus membros; os camponeses, no entanto, são cultivadores rurais cujos excedentes são transferidos para as mãos de um grupo dominante, constituído pelos que governam, que os utilizam para assegurar seu próprio nível de vida, e para distribuir o restante entre grupos da sociedade que não cultivam a terra, mas devem ser alimentados, dando em troca bens específicos e serviços (op. cit., p. 16). Aqui já está a indicação de que o campesinato é, por definição, um segmento subordinado econômica, social e politicamente. Essa subordinação, que se materializou historicamente com o surgimento do Estado, é tida por este autor como o marco da civilização e da origem do próprio campesinato. Ao caracterizar o campesinato como um segmento dominado, Wolf coincide com Marx. Difícil é encontrar algum autor que negue esta condição. Henri Mendras, ao propor seu “tipo ideal de sociedade camponesa”, inspirado em termos teóricos em Chayanov, e tendo como referência histórica o campesinato europeu ocidental do ano mil ao ano 2000, apresenta como um dos seus traços característicos “a autonomia relativa das coletividades camponesas frente a uma sociedade envolvente que as domina, mas tolera as suas originalidades” (Mendras, s/d, p. 14). Certamente que esta “autonomia relativa” aparece como atenuante da subordinação. Esta visão fica mais clara quando o autor identifica as características da economia camponesa, cujo traço fundamental é a produção para o autoconsumo, com base no trabalho familiar. “Mas – ressalva o autor – o camponês produz também para um mercado envolvente, e isso o distingue do ‘primitivo’. No entanto, essa exigência não é mais que um acessório para compreender a lógica que preside ao cálculo econômico do camponês” (op. cit., p. 44). Por causa dessa situação subordinada, a socióloga brasileira Maria Isaura de 65 Queiroz considera “impróprio falar de ‘sociedades camponesas’” (1976, p. 30). Segundo Wolf, além da produção para a própria subsistência e da geração de excedente que é transferido para os grupos dominantes, o camponês produz, também, para constituir uma série de fundos: um “fundo de manutenção” destinado a cobrir despesas com sementes para o cultivo, alimentação dos animais e reparos de equipamentos. Este fundo não é considerado excedente. Um “fundo cerimonial” cuja finalidade é cobrir gastos com cerimoniais (casamento, por exemplo) que funcionam como reforço das relações sociais internas. Um “fundo de aluguel” utilizado para pagar direitos de algum poder superior que exerce domínio sobre a terra cultivada pelo camponês, um “fundo de poder”, a ser pago ao grupo dominante. Estes últimos são considerados excedentes. Em sua caracterização do campesinato, a antropóloga Margarida Maria Moura afirma que “em qualquer tempo e lugar a posição do camponês é marcada pela subordinação aos donos da terra e do poder, que dele extraem diferentes tipos de renda: renda em produto, renda em trabalho, renda em dinheiro” (1986, p. 10). Todas essas partes em que se decompõe o produto do trabalho camponês são reveladoras da complexa teia de relações em que ele se envolve. Essa situação de ter de satisfazer às próprias necessidades e atender a exigências externas constitui o eterno dilema do camponês. Na tentativa de equacioná-lo, segundo Wolf, “o camponês pode seguir duas estratégias diametralmente opostas. A primeira delas é incrementar a produção; a segunda, reduzir o consumo” (op. cit., p. 31). Dependendo das possibilidades apresentadas pelo contexto social mais amplo no qual está inserido, o camponês poderá optar por uma ou outra, entretanto, sua tendência é combinar as duas, empregando meios que elevem a produtividade do seu trabalho e restringindo sua alimentação ao mínimo indispensável. Ressalte-se, porém, que, diante da superexploração imposta pelo grupo dominante, uma outra 66 possibilidade que se apresenta para os camponeses é a revolta: “se mais comumente dá a César econômica e cerimonialmente o que é de César, outras vezes mostrará hostilidade aos agentes de César” (Wolf, op. cit., p. 142-143). No que se refere aos sistemas produtivos, às formas de satisfação das necessidades que vão além do suprimento alimentar e aos tipos de domínio com suas respectivas modalidades de transferência de excedentes aos grupos dominantes, prevalece a diversidade. Wolf não apresenta as razões para essas diferenciações, mas não seria descabido identificar a influência das condições ambientais, do nível técnico da produção, da condição em que o camponês se encontra frente aos grupos dominantes e da sua visão de mundo na configuração desses aspectos da economia camponesa. Para Mendras, o estudo das “sociedades camponesas” deve levar em conta a relação entre os elementos humanos e não-humanos, no sentido de verificar o peso de cada um na definição da forma e do conteúdo do seu mundo. A luta do camponês com o meio natural marca todas as sociedades com diferentes resultados e intensidade, a depender, segundo o autor, principalmente dos fatores culturais. Do seu ponto de vista, o “equilíbrio entre recursos e população” depende dos recursos tecnológicos disponíveis, não do potencial dos recursos naturais. Na sua acepção, no mundo camponês é evidente a dicotomia homem-natureza. A relação direta com a natureza, possibilita ao camponês obter um profundo conhecimento empírico da sua dinâmica, o que é fundamental para a sua sobrevivência. Apesar do tradicionalismo e “de viver sob a égide do costume e da rotina”, Mendras afirma que elas não são impermeáveis às inovações e mudanças. Deve-se considerar, entretanto, que a inovação ameaça a tradição, por isso é aceita com cautela e restrições, conforme a necessidade. Sociedades mais abertas “à incerteza e à avaliação das situações são as mais preparadas para acolher a inovação, tanto a técnica como a social” (op. cit., 204). Tomando por base pesquisas psicológicas, Mendras conclui que “a difusão da inovação não está ligada a uma rede de comunicações, mas a uma hierarquia social”, onde a decisão é tomada por indivíduos da camada superior (p. 217). Na compreensão da organização social camponesa, o grupo familiar ocupa lugar central. O casamento é essencial para a reprodução biológica, a família é indispensável à produção econômica e à reprodução da vida social. A família camponesa é a forma mais elementar de expressão da solidariedade, apesar de não estar imune a conflitos. A sucessão e a herança são os motivos mais fortes de tensões no seio da família camponesa. Segundo Wolf, a família camponesa se estrutura de duas formas: em famílias nucleares – formadas por um casal e sua prole – e extensas – compostas de várias famílias do primeiro tipo. A predominância de um ou de outro tipo depende do potencial de suprimento de alimentos – onde há escassez a tendência é prevalecer as famílias nucleares; do nível de desenvolvimento tecnológico – nas sociedades de agricultura com certa especialização técnica tende a predominar as famílias extensas. A necessidade de manter o patrimônio indiviso e a vantagem da segurança social também favorecem a organização deste último. Por outro lado, a existência de terra abundante ou extremamente escassa e o predomínio do trabalho assalariado são considerados fatores favoráveis à constituição de grupos domésticos nucleares. Wolf identifica na família extensa uma maior propensão a gerar tensões internas do que a nuclear. Para manter a coesão, lança-se mão das cerimônias e da inculcação nos jovens de padrões de conduta apropriada. Procurando fugir ao que chama de “armadilhas” que contém a categoria família, Mendras emprega a expressão “grupo doméstico” para denominar o grupo familiar camponês. O grupo doméstico, conforme afirma, é constituído “pelas pessoas que vivem, segundo a expressão dos antigos, da mesma panela e do mesmo fogo, do mesmo pão e do mesmo vinho” ou da mesma dieta (op. cit., p. 65). Ele distingue a sociedade 67 68 industrial da “sociedade camponesa” no ponto em que, na primeira, o trabalho, geralmente, é organizado no exterior do grupo doméstico enquanto que na segunda ocorre o inverso, onde “cada grupo doméstico assegura a produção de certos bens alimentícios ou outros, que consome ou troca por outros bens e serviços com outros grupos domésticos” (op. cit., p. 66). A estabilidade e o alicerce patrimonial são as características essenciais do grupo doméstico camponês, apontadas por esse autor. Em vez de classificar os grupos familiares camponeses em nucleares e extensos, como o faz Wolf, Mendras os classifica em família indivisa ou “patriarcal”, “que vive de um patrimônio”, e a família original, grupo doméstico baseado em ‘residências’, onde “vivem um casal de avós, um casal de pais, alguns solteiros e as crianças” (op. cit., p. 69). Em qualquer um desses tipos o que garante a continuidade do grupo são a “inalienabilidade e a indivisibilidade do patrimônio” (idem, p. 72), o que contraria o direito individual e total de propriedade, conforme o direito romano.3 Essas discrepâncias entre o direito costumeiro e a lei estabelecida pelo sistema dominante se manifestam de modo mais agudo nos momentos cruciais da vida camponesa, como na partilha da herança. Embora seja a unidade básica, o grupo familiar, por maior extensão que alcance, não abarca toda a estrutura da organização social camponesa. Espraiando-se por um espaço mais amplo e congregando várias famílias, existem as 3 Nessa perspectiva, Moura afirma que “A força da lei está no cerne de constantes conflitos entre o campesinato e as classes ou sistema que o subordina de alguma forma, seja pela convivência conflitiva de antigos códigos costumeiros que regulam a existência camponesa na família, no trabalho e na terra e que ficam em aberta contradição com os códigos nacionais, seja pela constante procura de novas saídas para pressões sofridas pela vigência de leis do Estado ou de concepções divergentes do que seja o direito e a justiça” (op. cit., p. 33). 69 “coletividades locais” ou aldeias,4 segundo Mendras. De acordo com a caracterização apresentada por esse autor, um dos traços fundamentais das coletividades locais é o conhecimento mútuo dos seus integrantes. Nelas, a indiferenciação de papéis e de status permite um verdadeiro controle social. Do “arranjo da regulação social resulta uma previsibilidade muito grande dos comportamentos, ligada a essa transparência da sociedade para seus membros” (op. cit., p. 90). A condição da transparência está no respeito à privacidade dos indivíduos. Por outro lado, a situação de autarquia social da “sociedade camponesa” constitui condição da homogeneidade cultural. Todavia, homogeneidade cultural não pressupõe igualdade social, ao contrário, a diversidade social é que torna aquela suportável. Segundo Wolf, as relações do campesinato com o mundo interno e a sociedade que o cerca são marcadas por uma série de pressões que atuam sobre ele, desafiando constantemente a sua reprodução. Dentre elas, destacam-se: as pressões produzidas pelo meio ambiente, advindas das intempéries naturais (secas, inundações etc.), das pragas e da exaustão do solo; pressões derivadas do próprio sistema social, provocadas por desentendimentos entre interesses e projetos individuais, especialmente por causa de herança e sucessão; pressões emanadas da sociedade global, tanto de natureza econômica (cobrança de tributos, aluguéis e juros) quanto política 4 Num estudo sobre o campesinato em São Paulo, Parceiros do Rio Bonito (1977), Antonio Cândido em prega o termo “bairros rurais” ou “grupos de vizinhança” para denominar essas coletividades camponesas. Esse autor caracteriza o bairro rural paulista como “a estrutura fundamental da sociabilidade caipira [este é o termo que usa para designar o camponês paulista], consistindo no agrupamento de algumas ou muitas famílias, mais ou menos vinculadas pelo sentimento de localidade, pela convivência, pelas práticas de auxílio mútuo e pelas atividades lúdicoreligiosas. As habitações podem estar próximas umas das outras, sugerindo por vezes um esboço de povoado ralo; e podem estar de tal modo afastadas que o observador muitas vezes não discerne, nas casas isoladas que topa a certos intervalos, a unidade que as congrega” (p. 62). 70 (cerceamento da autonomia) e militar (serviço militar, repressão policial). No domínio superestrutural, o camponês cria suas representações com a finalidade de dar sentido à sua existência e tornar os fenômenos que o envolvem inteligíveis. Colocando em termos mais concretos, as crenças, os símbolos, os rituais, os valores, o conhecimento, além de estarem vinculados ao mundo real do camponês, funcionam como importantes fatores de sua estabilidade e continuidade. Portanto, de modo geral, cumprem um papel de conservação da ordem, mas, eventualmente, podem atuar como elemento que impulsiona a ruptura com a ordem sociopolítica envolvente. Ao analisar a “ordem ideológica” na “sociedade camponesa”, Wolf afirma que "tal ideologia consiste em atos e idéias cerimoniais e crenças” que preenchem diversas funções. Segundo ele, algumas são expressivas como quando os homens desfilam com objetos simbólicos à vista de todos pela ocasião de um casamento, funeral, festa religiosa ou festa da colheita. Esses conjuntos de idéias e crenças têm também uma função imitativa: ajudam os homens a lidar com crises inevitáveis e irredutíveis da vida como falência, doença e morte. Além disso, ajudando a mitigar os ansiosos e secando as lágrimas dos deserdados, ligam sua experiência individual ao domínio público (op. cit., p. 130). Por tudo isso, a “ideologia camponesa” possui “um significado moral”, na medida em que estabelece e reforça o padrão de conduta “correto” e atua como mecanismo de controle das tensões que surgem no interior do grupo. No estudo sobre o campesinato europeu, Mendras verifica que a “ideologia” é empregada “como instrumento da administração e da redução de conflitos” na coletividade camponesa (op. cit., p. 190-196). No que se refere aos “valores camponeses”, esse autor afirma que, numa sociedade onde prevalece a propriedade privada dos bens, o amor à terra manifestado pelo camponês corresponde à necessidade de sobrevivência e é o signo da liberdade. Já onde a terra é abundante ou é propriedade comunal, “será valorizada como nutriz do gênero humano”, podendo ser divinizada. Por seu lado, o reforço à distinção nós 71 e eles funciona como mecanismo de afirmação da identidade do grupo. Quanto ao significado da religião, as análises dos estudiosos do campesinato também coincidem. Tanto o cerimonial, com destaque para o casamento, quanto a religião são mecanismos de validação e equilíbrio da ordem camponesa, conforme interpretação de Wolf. Segundo Moura, para cada estágio da existência (nascimento, vida, morte), o camponês “tem concepções e práticas que tenta fazer prevalecer sobre as práticas e regras vindas da sociedade que o envolve e domina” (op. cit., p. 20). Sua religião tem um sentido prático, sua relação com a divindade é mediada pelo compromisso de fidelidade que mantém para com ela e pela contrapartida que dela espera receber nos momentos de dificuldade. Do ponto de vista dessa autora, “se o peso da religião é maior na cultura simbólica camponesa, é porque fornece uma explicação cheia de sentidos e sinais para quem observa diariamente o mistério da terra, da água e do ar, bem como a incompetência dos poderes seculares para atender às necessidades inerentes a seu modo de vida” (op. cit., p. 22). Num contexto em que a visão religiosa perpassa de forma tão marcante todas as dimensões da vida, o comportamento político não poderia ficar imune à sua influência. Submetido ao jugo da exploração e do poder despótico de outros indivíduos ou classe, o camponês sonha com um mundo redimido da opressão. Mendras afirma que o camponês não é um rebelde, é, antes, um irredento. E a sua utopia do “campo livre”, geralmente, é inspirada numa idealizada “idade de ouro passada” quando não estava submetido a um poder exterior. É nessas circunstâncias que os movimentos camponeses tendem a se expressar na forma de milenarismos ou messianismos, especialmente nas sociedades pré-industriais. A despeito dessa tendência do campesinato, Wolf afirma que, às vezes, “as expectativas de reordenamento radical da sociedade” o fazem evoluir para verdadeiras jacqueries, 72 podendo ser levado a se envolver em projetos revolucionários. Nesse caso, estaria ultrapassando o limite do caráter “prépolítico” dos seus movimentos, na acepção de Hobsbawm (1978). Porém, Mendras ressalva que as interpretações do papel histórico do campesinato como mero objeto ou, ao contrário, protagonista de grandes transformações são simplistas. Para ele, “os camponeses não são nem inventores da democracia ou do socialismo, nem o humo favorável à eclosão do totalitarismo” (op. cit., p. 142). Mas também não há dúvida de que o campesinato exerceu importante papel nas revoluções sociais que marcaram o triunfo da sociedade burguesa no Ocidente, da mesma forma que não se pode negar o seu peso em revoluções antiburguesas como a revolução russa de 1917. No Brasil, apesar da ocorrência de importantes revoltas como a de Canudos, no sertão da Bahia, a do Contestado, entre Santa Catarina e Paraná, e a de Formoso e Trombas, no estado de Goiás, os movimentos camponeses permaneceram por muito tempo ignoradas, o que, segundo Moura, “torna muitos ativistas e pensadores políticos uma espécie de observadores envergonhados do campesinato brasileiro” (op. cit., p. 51). Com a retomada das lutas pela terra nos últimos anos da ditadura militar (1964-1985), dadas as suas repercussões, inclusive nos meios de comunicação de massa, um grande setor do campesinato brasileiro tem merecido maior atenção dos agentes políticos e dos estudiosos de uma perspectiva menos preconceituosa. Apoiados na análise de Mendras, podemos dizer que, independente de movimentos que visem transformações profundas, o campesinato, mesmo subordinado a uma sociedade envolvente, exerce sobre ela pressão no sentido de definir uma política para o campo, cuja maior preocupação é com a sua alimentação. Obviamente que para isso é fundamental assegurar o acesso à terra, o que torna o camponês sem terra um defensor da reforma agrária. As caracterizações do campesinato feitas por Eric Wolf e Henri Mendras apresentadas até aqui, merecem algumas considerações críticas. A primeira constatação é de que são mais completas, na medida em que descrevem a complexidade da cultura e das relações sociopolíticas estabelecidas com o poder instituído e os demais segmentos sociais da “sociedade envolvente”, ultrapassando os limites da caracterização fundamentalmente econômica, típica da noção “economia camponesa”. Evidentemente, essa maior abrangência é determinada pela natureza das suas especialidades. Por outro lado, as noções de “sociedades camponesas”, ao mesmo tempo em que indicam a pluralidade do campesinato e a complexidade das suas relações, produzem a conotação de serem totalidades autônomas ante as realidades nacionais. Trata-se mais da inadequação da terminologia do que do não reconhecimento da estreita relação que o campesinato mantém com o restante da sociedade da qual é parte integrante. Para completar esta explanação sobre as definições de camponês, convém acrescentar as contribuições de outros estudiosos, especialmente as do sociólogo brasileiro José de Souza Martins. Ao estudar o campesinato brasileiro, Martins (1995) infere que essa categoria é derivada de uma importação política das esquerdas brasileiras, procurando dar conta da luta dos trabalhadores no campo. Ela vem para substituir um conjunto de categorias utilizadas anteriormente, tais como caipira, caiçara, tabaréu, caboclo, de acordo com diferentes épocas e regiões do país. Por sua vez, os grandes proprietários de terra recebiam outras denominações, quais sejam: fazendeiros, senhores de engenho, estancieiros, seringalistas. Essas categorias foram substituídas pelas de camponês e latifundiário. Segundo esse autor, 73 74 essas novas palavras – camponês e latifundiário – são palavras políticas, que procuram expressar a unidade das respectivas situações de classe e, sobretudo, que procuram dar unidade ás lutas dos camponeses... Nesse plano, a palavra camponês não designa apenas o seu novo nome, mas também o seu lugar social, não apenas no espaço geográfico, no campo em contraposição à povoação ou à cidade, mas na estrutura da sociedade; por isso, não é apenas um novo nome, mas pretende ser também a designação de um destino histórico” (op. cit., p. 22-23). Já fazendo a crítica dessa importação, o mencionado sociólogo observa: “Uma coisa, porém, é esse destino. Outra coisa é a concepção desse destino” (idem, p. 23). Conforme entende Martins, essa transplantação feita de forma mecânica da realidade histórica européia, especificamente da Rússia do final do século XIX e início do XX, em vez de ajudar dificulta a compreensão das lutas rurais no Brasil. Assim, “o destino do camponês brasileiro passa a ser concebido através de um entendimento estrangeiro de destino do camponês (como estranha é a própria palavra nova que designa) e que não corresponde à sua realidade, às contradições que vive, ao destino real que nasce de fato dessas contradições e não da imaginação política” (idem). Mais do que um problema hermenêutico, Martins coloca uma questão epistemológica e política, sem, no entanto, fornecer uma definição detalhada do campesinato. Somente numa nota de pé de página tenta delinear sua acepção: “Neste trabalho trato de diferentes formas de campesinato da sociedade brasileira, particularmente daquelas destituídas da propriedade da terra. Na concepção de camponês, não estou incluindo o trabalhador assalariado do campo" (op. cit., p. 21). Colocada desta forma, Martins apresenta uma visão de camponês como sendo um excluído, o que torna esse conceito muito mais abrangente, em termos social e político. Sua análise de relação entre campesinato e política, parte dessa definição de camponês enquanto um excluído do pacto político. É desta forma, segundo ele, que os partidos e grupos políticos irão encarar o camponês. Sendo assim, o camponês será visto – por aqueles que afirmam ser seus aliados – como um perigo, sujeito incapaz de fazer história, de intervir no processo histórico, senão para conservá-lo. Por isso, será concebido como um grupo social que deve ser “conscientizado” ou como um “aliado subordinado” do proletariado. 75 Assim, vemos a situação do campesinato no imaginário político dos partidos de esquerda. Estes transpõem mecanicamente a concepção que orienta sua ação política de um contexto para o outro. É o caso daqueles que, retomando Engels e Lênin, entre outros, irão colocar o campesinato como sendo um grupo social pequeno-burguês, que, por natureza, reivindica a propriedade da terra. O campesinato aparece, assim, como uma classe social que é portadora de uma ideologia pequeno-burguesa, um aliado perigoso, que, após a revolução socialista, deve ser combatido, havendo, portanto, a necessidade de uma “segunda luta”. Ao atribuir essa “essência” pequenoburguesa ao campesinato, as esquerdas brasileiras reforçam tal característica. Podemos buscar compreender essa situação partindo das reflexões de Martins (l989), nas quais ele afirma que os dilemas que atingem as classes subalternizadas “decorrem menos da realidade do que das interpretações correntes sobre camponeses” (p. 101). Segundo sua constatação de Martins, os pesquisadores acadêmicos de orientação marxista geralmente tratam o camponês de forma diferente do operário. A discrepância entre situação social e consciência de classe no proletariado é explicada pelo fenômeno da alienação, enquanto que essa mesma discrepância no campesinato é considerada arcaísmo, atraso. Isso desqualifica o campesinato para a luta política e traz a idéia de que tal grupo social deve ser dirigido pelos partidos ligados ao proletariado, formando a aliança revolucionária que libertará ambas as classes da espoliação e da dominação capitalistas. Como se depreende da explanação realizada até aqui, a definição da categoria camponês não é tão simples como alguns usos do termo por estudiosos ou ativistas dão a entender, empregando-o para denominar diferentes tipos de trabalhadores rurais em realidades diversas. Por outro lado, faz-se necessário reconhecer que esse quadro está longe de esgotar a produção das ciências sociais sobre o tema. Além do mais, ao empreender 76 a elaboração deste texto, não se tinha tal propósito, de resto impossível em espaço tão limitado. Feitos esses esclarecimentos e considerando as formulações apresentadas acima, chegamos a uma definição do campesinato nos seguintes termos: constitui a classe social que vive do próprio trabalho no campo, empregando a mão-de-obra familiar, detendo ou não a posse da terra que cultiva, sendo proprietária dos meios de trabalho, realizando uma produção que tem como fim a auto-subsistência, ainda que seja uma produção especializada destinada total ou parcialmente ao comércio. Esta noção tem a pretensão de ser utilizada para designar o campesinato desde o seu surgimento na história, mais precisamente a partir da consolidação da divisão social do trabalho entre campo e cidade e do conseqüente surgimento de uma classe dominante urbana, até a atualidade, guardadas, obviamente, as especificidades de cada época e lugar. Tendo chegado a uma definição geral, dada a complexidade e a diversidade da realidade camponesa, cabe agora apresentar algumas ressalvas e considerações a serem levadas em conta no emprego da categoria camponês. Em primeiro lugar, a condição existencial do camponês de cultivador da terra é imprescindível à sua caracterização como tal. Todavia, isso não pode nos levar a confundir os agricultores primitivos, anteriores à divisão social do trabalho entre campo e cidade, com o camponês. Este, dada a sua condição de classe subalternizada, produz um excedente que é apropriado pela classe dominante, aquele não. A classe que se apropria do excedente gerado pelo camponês exerce o seu domínio diretamente ou por meio do Estado. As formas de transferência do excedente para os grupos dominantes variam de acordo com o contexto histórico. Assim, na sociedade egípcia antiga, por exemplo, a transferência se dava na forma de tributos pagos com produtos ao Estado e à classe dominante local; nas sociedades européias medievais se materializavam na forma de trabalho, de produtos e/ou de 77 moeda, entregues à aristocracia pelo uso da terra e de equipamentos, e à Igreja, especialmente, como dízimo; nas sociedades capitalistas, a apropriação dos excedentes camponeses pela classe dominante ocorre tanto através das transações mercantis quanto na forma de renda da terra. No Brasil, o campesinato cujo marco constitutivo se encontra na desagregação do sistema escravista, a partir de meados do século XIX – embora tenha seus antecedentes num protocampesinato que coexistiu com o escravismo, segundo Flamarion Cardoso (1979) – historicamente, foi submetido a diversos modos de transferência dos excedentes, através dos sistemas de arrendamento da terra, tais como a meia, a terça, a parceria, o aforamento,5 etc. Mesmo com o avanço da modernização capitalista no campo, a partir da década de 1950, esses mecanismos não desapareceram totalmente. Entretanto, com o crescimento das cidades e o avanço da industrialização, o mercado passou a ocupar lugar central nessa relação. Ainda no âmbito econômico, deve-se levar em conta o tipo de vínculo que o camponês mantém com a terra em que trabalha e o tipo de mão-de-obra utilizado na produção. Neste caso, o trabalhador rural tanto pode ser proprietário como nãoproprietário, desde que empregue basicamente a força de trabalho familiar, utilizando mão-de-obra de terceiros apenas em ocasiões especiais (colheita, por exemplo). Não importa o tipo de técnica que use, contanto que o destino prioritário da produção seja a auto-subsistência. Aqui cabe ressaltar que, mesmo sendo proprietário de terra (pequena propriedade), em certos períodos do ano o camponês pode ter de se assalariar, para complementar a própria renda. Mas o trabalhador rural que 5 Todas essas formas de arrendamento eram cobradas pelos grandes e/ou médios proprietários aos camponeses sem terra. A meia correspondia à metade da produção gerada pelo camponês entregue ao proprietário pelo uso da terra, a terça correspondia a um terço da produção, o foro consistia numa taxa ou quantidade estabelecida previamente e a parceria era uma espécie de contrato em que o camponês se comprometia a realizar certos serviços para o proprietário. 78 vive predominantemente da venda da sua força de trabalho não se caracteriza como camponês, trata-se de proletário rural. Se essas indicações e ressalvas parecem dar conta da complexidade do ser camponês no aspecto econômico, nas dimensões social, cultural e política é necessário ampliar a caracterização. No que se refere aos padrões de relações sociais, deve-se tomar como referência os laços familiares e de vizinhanças. No Brasil, o compadrio desempenha papel fundamental na configuração do mundo social camponês. Ele é relevante para se compreender tanto as relações internas, geralmente horizontais, quanto aquelas estabelecidas com os grupos dominantes da sociedade em que está inserido. As representações do mundo construídas pelo camponês costumam causar estranheza nos indivíduos que não participam dele, inclusive nos seus estudiosos menos avisados. Mas é preciso que se entenda, sem elas a vida se tornaria ininteligível. A visão de mundo do camponeses – para alguns, “ideologia”, conforme acepção de Wolf e Mendras (obras citadas) – é profundamente marcada pelo modo como se relacionam com a terra e pela condição em que se encontram perante os grupos dominantes da sociedade. As crenças religiosas são instâncias privilegiadas das representações. As crenças no sobrenatural, ao mesmo tempo em que se expressam como uma projeção do mundo humano funcionam como um meio ordenador deste. As representações são importantes, inclusive para se compreender o comportamento político do campesinato, tanto na sua acomodação quanto nas suas manifestações de rebeldia. Para concluir, cabe reafirmar que a utilização da noção de camponês de modo algum deve ocorrer de maneira isolada dos contextos históricos nos quais se insere o campesinato. Nesse sentido, em vez de nos referirmos a camponês, no singular, talvez fosse melhor empregar o termo no plural. ARCHETTI, Eduardo P. “Apresentación”. In: CHAYANOV, Alexander V. La organización de la unidad económica campesina. Buenos Aires: Nueva Visión, 1974. CÂNDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. 4ª ed. São Paulo: Duas Cidades, 1977. CARDOSO, Ciro Flamarion S. Agricultura, capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1979. escravidão e CARDOSO, Ciro Flamarion S. e BRIGNOLI, Héctor P. História econômica da América Latina. Tradução de Fernando Antônio Faria. – Rio de Janeiro: Graal, 1983. 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Erich Wolf Segundo o censo agropecuário de 1985, o setor camponês de produção era responsável por mais de 80% dos alimentos de origem rural que abasteciam o mercado interno do país. O mesmo censo também revela que a pequena propriedade familiar emprega 60% da população economicamente ativa no campo, mostrando a importância da unidade produtora camponesa. O presente artigo não tem a pretensão de fazer uma análise profunda do campesinato brasileiro, 81 mas sim de mostrar as condições gerais de surgimento do campesinato brasileiro. Para José de Souza Martins, o campesinato brasileiro é constituído simultaneamente com a expansão capitalista, como produto das contradições dessa expansão. Por isso a história do campesinato brasileiro é, também a história do desenvolvimento do capitalismo no Brasil1. Na Europa Ocidental, o campesinato surge com a expansão do modo de produção capitalista. A transição de um modo de produção a outro é bastante complexa e o caso específico da transição do feudalismo para o capitalismo é mais complexa ainda, devido as próprias características complexas deste modo de produção. Nesta transição acontece a desarticulação do feudalismo e simultaneamente a expansão do capitalismo envolvendo diversas relações de produção não-capitalistas. Uma dessas relações de produção é a produção camponesa, que no caso da Europa Ocidental surge com a transição do feudalismo ao capitalismo. No Brasil não houve transição do feudalismo para o capitalismo e sim do escravismo colonial para o capitalismo. A produção camponesa no Brasil surge também subordinada ao capitalismo, constituindo-se como um modo de produção subordinado. O sistema agrário brasileiro caracteriza-se, desde os tempos coloniais até o presente, pela produção nas grandes fazendas de gêneros destinados a exportação, sendo apoiado no abastecimento interno de gêneros alimentícios pela produção local de tipo camponesa. A formação de um campesinato no Brasil se deu devido ao fato de que o capitalismo não é capaz de levar adiante uma homogeneização estrutural completa no interior de sua formação, e por isso é preciso basear-se na exploração de formas não-capitalistas de produção para que, através da acumulação primitiva de capital, possa a realizar a acumulação propriamente capitalista. Assim, ao lado do sistema monocultor de exportação, se desenvolve um setor camponês organizado em regimes familiares que 1 Cf. MARTINS, José de Souza. Os Camponeses e a Política no Brasil. 3ª ed. Petrópolis, Vozes, 1986. 82 produzem gêneros alimentícios para o consumo doméstico e vendem os seus excedentes em feiras locais. Para Otávio Guilherme Velho, a formação de um campesinato no Brasil agrário foi fundamental para o desenvolvimento do capitalismo brasileiro, porque o capitalismo só se reproduz através da exploração de classes 2 . Como a formação do capitalismo no Brasil se inicia no setor agrário (nos engenhos, cafeicultura, etc.) fez-se necessário a exploração de excedentes de um outro setor. Como o Brasil não teve possibilidade “externa” de transferência de excedente feita através do comércio exterior, colônias etc., para que pudesse proporcionar uma “acumulação primitiva de capital”, fez-se necessário uma base camponesa para que esta acumulação prosseguisse. Assim a formação de um campesinato foi fundamental para o desenvolvimento capitalista no Brasil agrário. Neste caso, definimos a produção camponesa como uma forma subordinada de produção, como uma forma não-capitalista de produção, ou seja, a produção camponesa constitui um modo de produção particular, apresentando uma combinação particular dos fatores de produção (força produtiva) unida a um tipo particular de relação entre os homens (relação de produção). Possui todos os traços de um modo de produção, porém é subordinado ao capitalismo. A economia camponesa tem como objetivo a subsistência e somente secundariamente a troca do produto que excede às suas necessidades, tratando-se de uma economia com base na pequena propriedade policultora voltada para o mercado interno e, parcialmente, para o mercado externo. O capital, devido suas necessidades, cria condições para extrair excedente econômico da produção camponesa. A principal forma de extração de excedente econômico é a alienação do produto do camponês ao mercado, onde o mercado passa a ser o regulador da economia e principal meio de extração do excedente da economia camponesa. Assim, o campesinato brasileiro se caracteriza por ser, desde a sua formação, vinculado ao mercado como forma de abastecimento 2 VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo Autoritário e Campesinato. 2ª ed. Rio de Janeiro, Difel, 1979. 83 interno de gêneros alimentícios e como suporte ao desenvolvimento capitalista. Segundo José de Souza Martins, o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, num primeiro momento, não operou, de modo geral, a separação entre a propriedade e a exploração desta propriedade3. O que vemos é o capital se apropriar da renda da terra. O capital tem se apropriado diretamente da grande propriedade da terra como é o caso das grandes lavouras monocultoras (cana-deaçúcar, café, soja, etc.), e onde a renda é baixa, como no caso dos setores de alimentos de consumo interno, o capital procura apropriarse da renda territorial, criando condições para extrair o excedente econômico. Onde o capital não torna-se proprietário real da terra para extrair juntos o lucro e a renda, como no caso da produção camponesa, ele se assegura o direito de extrair a renda territorial. Uma das formas de extração dessa renda é a cobrança de um aluguel ao arrendatário pelo o uso da terra como instrumento de produção. Mas no caso do campesinato brasileiro isso não é possível, porque aqui nossa noção de camponês é aquela do pequeno produtor com a produção policultora tipo familiar, por isso a forma de extrair a renda territorial pelo capital se dá de maneira diferente, não pela cobrança de aluguel, mas pela subordinação da economia camponesa ao mercado e pela troca desigual. Por isso o capital estabelece a dependência do produtor em relação ao mercado, etc. A produção camponesa se baseia na produção de mercadorias para que esta possa ser convertida em dinheiro e depois em mercadorias para satisfazer as necessidades do camponês e ao ser trocada no mercado, no momento da circulação das mercadorias de origem agrícola, o camponês entra em desvantagem através da troca desigual, possibilitando assim a extração da renda territorial pelo capital. O que acontece é que a pequena produção de base familiar está sempre em desvantagem nas relações de troca. Outra forma do capital extrair a renda territorial é a dependência do crédito bancário. O pequeno produtor de base familiar está sempre endividado com o banco, a sua propriedade está sempre comprometida com a garantia de empréstimos para manter o custo de sua lavoura. 3 MARTINS, José de Souza. ob. cit. 84 Mesmo sem qualquer alteração aparente na sua condição, mantendose proprietário, mantendo o seu trabalho organizado com base na família, o camponês entrega ao banco anualmente os juros dos empréstimos que faz. Assim, o banco extrai do camponês a renda da terra, sem ser o proprietário dela, através da cobrança de juros. Se aceitarmos a tese de que o modo de produção camponês é um modo de produção subordinado, veremos que essa subordinação é conseqüência de sua formação. No Brasil, ele surge simultaneamente com o desenvolvimento do capitalismo. Por isso nasce subordinado. Segundo Velho, é a própria subordinação do campesinato brasileiro que garante a sua reprodução. A própria forma histórica e estrutural de sua subordinação caracteriza o campesinato brasileiro. Para Velho, mesmo quando o camponês pode ser considerado livre no sentido de ser o dono dos seus meios de produção, ele continua sendo subordinado. Sua subordinação se processa através do mecanismo tributário, das trocas desiguais ou simplesmente por não lhe ser permitido ultrapassar certos limites em termos de acumulação, mesmo quando é “protegido” na sua sobrevivência enquanto camponês4. O campesinato brasileiro tem operado historicamente dentro de um sistema capitalista em expansão onde tudo tem um mercado: tanto a terra e o trabalho, quanto o produto. O camponês tem sido o produtor em pequena escala que supre com gêneros alimentícios e trabalho o setor dominante da economia orientada para a exportação. Neste caso, o termo “camponês” denotará nada mais nada menos que uma relação estrutural assimétrica entre produtor de excedentes e o grupo dominante. Por isso afirmamos que o nosso campesinato é constituído com a expansão capitalista, como produto das contradições dessa expansão, onde a propriedade camponesa constitui uma propriedade familiar mas capaz de produzir excedentes para abastecer o mercado interno e servir de base para o mesmo. O que designamos aqui como camponeses, são aqueles produtores que trabalham em uma pequena unidade de terra, onde seus sistemas de produção são organizados em regime familiar, com sua economia voltada para a subsistência e, secundariamente, para a troca dos produtos que vão além de suas necessidades (o chamado 4 VELHO, Otávio. G. ob. cit. 85 “excedente”) baseando-se numa produção policultora voltada para o mercado interno e, parcialmente, para o mercado externo. A classe camponesa brasileira é parte impotente de um sistema econômico, onde os camponeses são produtores de produtos básicos e consumidores de mercadorias vitais à continuidade deste sistema e de sua reprodução. No caso brasileiro, a unidade camponesa não é, portanto, somente uma organização produtiva, ela é também uma unidade de consumo. Portanto, ao trocar seus excedentes no mercado e ao adquirir bens necessários à sua sobrevivência, o camponês abre espaço para que o capital retire dele excedentes através da troca desigual para realizar a acumulação capitalista. A REFORMA AGRÁRIA EM QUESTÃO Uelinton Barbosa Rodrigues Recentemente temos visto uma intensificação no debate acadêmico e científico a respeito da questão agrária brasileira e sobretudo da agricultura familiar e camponesa desenvolvida nos assentamentos de trabalhadores rurais sem terra. Diante da importância de tal temática, o presente trabalho busca analisar e compreender se tais formas de organização demonstram a viabilidade econômica, política e social da agricultura familiar, desenvolvida nos assentamentos de trabalhadores rurais sem terra. Buscaremos assim caracterizar a organização política, produtiva e principalmente a cooperação agrícola desenvolvidas nos assentamentos de trabalhadores. De um lado a agricultura brasileira conviveu com um processo de aceleração da modernização agrícola e a revolução 86 Dilemas da Reforma e Questão Agrária no Capitalismo A presente análise tem como objetivo discutir algumas das mais importantes concepções teóricas que envolvem o modo de produção camponês e suas relações e implicações junto ao modo de produção capitalista. Onde num primeiro momento abordaremos o modo de produção camponês e a agricultura capitalista, partindo de uma perspectiva de análise dos clássicos da questão agrária a qual nos limitaremos a três autores, Kautsky, Lênin e Chayanov. Posteriormente discutiremos o processo de resistência e recriação do modo de produção camponês em suas contradições. Para tanto abordaremos como possível foco de resistência camponesa o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e a materialização dessa resistência que são os seus assentamentos rurais, abordando assim todo o processo de luta pela terra, desde a mobilização, passando pela fase de acampamento até a fase em que as famílias estão assentadas, sendo que esta última fase será abordada com prioridade em nossa análise. Analisaremos assim suas variadas formas de produção e organização. Para tanto faremos uma discussão preliminar sobre as variadas formas de abordar e compreender os vários conceitos de reforma agrária, fazendo assim uma breve apresentação desses conceitos. Para podermos compreender melhor a questão agrária e em especial o modo de produção camponês, na qual insere os assentamentos do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra, iremos fazer algumas breves considerações teóricas sobre o que se entende como modo de produção camponês e suas diversas leituras. Conforme Marx, o que caracteriza o modo de produção capitalista é a produção de mais-valor, no qual uma classe, o proletariado, produz mais-valor e outra, a burguesia, se apropria dele (Marx, 1988). Onde predomina o binômio de classes antagônicas, sendo nesse modo de produção as dos burgueses e proletários. Sendo que a primeira detém os meios de produção, e a segunda vendedora de sua força de trabalho. E no modo de produção camponês, que é nosso objeto de análise, como podemos caracterizar este binômio? Existe na verdade uma classificação dos modos de produção, onde se tem um modo de produção hegemônico, que, em nosso caso, é o capitalista, e tem uma família de modos de produção que se denomina por várias terminologias passando por termos como modos de produção periféricos, auxiliares, entre outros. Mas passaremos a chamar aos modos de produção não-capitalistas existentes em relação com ele de modos de produção subordinados, pois este exprime com mais exatidão o significado do modo de produção camponês dentro do 87 88 verde, chamada por alguns estudiosos de modernização conservadora, outros dizem de “modernização dolorosa”. Conservadora porque não modificou a estrutura agrária e da propriedade da terra, conservando a grande propriedade, o latifúndio. E dolorosa porque gerou uma crise de grandes proporções no meio agrário brasileiro, provocando o progressivo desaparecimento da pequena propriedade, o êxodo rural e a violência. Grande parte dos chamados pequenos produtores rurais, proprietários ou não, não conseguindo acompanhar a modernização, foi alijada do processo. Por isso foi expulsa do meio rural, gerando um excedente populacional nas cidades, elevando o índice de criminalidade, subemprego, favelização etc. Nesse contexto de exploração e expropriação dos camponeses e trabalhadores rurais, que foi provocado pela modernização agrícola e pelo desenvolvimento do capitalismo na agricultura, é que presenciamos o ressurgimento dos movimentos sociais no campo, primeiro com as ligas camponesas, posteriormente com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, entre outros. Esta resistência é parte de um processo de criação e recriação do modo de produção camponês, materializada na forma de ocupações e resistência na terra. capitalismo. O modo de produção camponês está contido nesse conjunto de modos de produção. No modo de produção camponês o binômio tem uma diferença, em vez do antagonismo da classe burguesa com a proletária, existe um binômio que opõem de um lado os camponeses produtores que são organizados em sociedades, e de outro lado uma classeestado que controla o acesso ao solo. Observamos, por outro lado, que as formações capitalistas, segundo Amin (1977, p.12), se distinguem das formações pré-capitalistas, no sentindo em que a lei fundamental do modo de produção capitalista acarreta uma tendência do mesmo de desintegrar as outras e fazê-las desaparecer, o que não ocorre nas formações pré-capitalistas. Onde as formações capitalistas tendem à homogeneidade, e estas formações tendem a ser reduzida ao modo de produção capitalista. Isso significa dizer que nas formações capitalistas, os modos de produção subordinados – e por isso eles subsistem – são profundamente alterados, transformados, desfigurados, às vezes esvaziados de seu conteúdo. Outro motivo de debates teóricos tratando do modo de produção capitalista e a agricultura reside no fato do modo capitalista ignorar o “controle” do solo, isto é, segundo Amin (1977, p.14), está no fato de se conhecer na verdade apenas duas classes no modo capitalista: a dos burgueses e proletários; dois “rendimentos”: lucros e salários que na verdade são linguagem na economia convencional dois fatores da produção, capital e trabalho. Assim não há proprietários fundiários, renda, fator “natureza ou terra”. Seria isso segundo o mesmo autor, uma “simplificação”, isto é, a terra seria também lucro (o do capital fundiário) e os proprietários fundiários, capitalistas particulares? Diante desta indagação podemos dizer, por um lado, que não, embora essas categorias pré-capitalistas assumirem cada vez mais esta forma, em virtude do que já tratamos outrora, que é a dominação do modo de produção capitalista provocando estas deformações. Sendo assim, a terra para o camponês assume um outro valor, que não o de lucro, como é visto no capitalismo. A terra tem assim um valor de uso, um meio de trabalho, podendo assim ser comparado com o gado, as ferramentas, entre outras. No sentido de compreendermos melhor o desenvolvimento do capitalismo na agricultura, e suas conseqüências para o modo de produção camponês, iremos trazer a tona alguns debates que envolveram as discussões socialistas no inicio do século passado, que tinham como protagonistas do debate, autores dentre as mais importantes Lênin, Kautsky e Chayanov. Para a social-democracia o desenvolvimento do capitalismo na agricultura, chega no final do século XIX, em sua terceira fase, onde a mesma formula a lei desse desenvolvimento, que consistia em que a concorrência deve eliminar progressivamente os camponeses, em favor dos grandes capitalistas agrários que dispunham de capitais necessários à utilização da mecanização. Sendo que a concentração da propriedade da terra uma tendência deste desenvolvimento. Por outro lado Karl Kautsky, em seu livro A Questão Agrária, faz uma critica a versão da social-democracia na qual reduziu a tendência da evolução da agricultura à concentração da terra. Sendo que em contrapartida da análise da social democracia Kautsky parte da constatação em primeiro lugar da resistência à concentração. Explica que a pequena exploração camponesa se opõe à grande “atividade mais considerável. Do trabalhador que produz por ele mesmo, ao contrário do assalariado. Podendo assim concluir que “para o pequeno camponês quando o preço da venda de seus produtos, tirando suas despesas, o paga por seu trabalho, ele pode viver; pode renunciar ao lucro e a renda fundiária”. Ainda analisando as relações do capitalismo e a agricultura em termos políticos de alianças de classe e não de simples desenvolvimento da agricultura capitalista, ele salienta que; “em termos da dominação do capitalismo industrial sobre as formas rurais não- 89 90 capitalistas ou pré-capitalista, em termos de real desprovimento, apesar da manutenção da propriedade formal, qualificando assim o camponês de “servos do capital industrial”. (Kautsky, p. 212, 1978]. Já Lênin em seu livro O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia faz uma análise próxima a de Kautsky, onde parte da hipótese da tendência da concentração, para examinar o desenvolvimento do capitalismo na agricultura da Rússia. Constatando a concentração da propriedade do solo e meios de produção (arados), aparição e desenvolvimento do número relativo e absoluto dos trabalhadores agrícolas, diferenciação crescente no seio do campesinato e reforço da posição dos camponeses ricos em detrimento dos camponeses médios, tais são as tendências do sistema. Enunciava ainda a decomposição rápida do campesinato, a proletarização dos produtores, a formação de uma burguesia rural. Enfim não vê diferença qualitativa entre agricultura e indústria; ao contrário vê um gigantesco processo de homogeneização da formação social russa sobre a base do modo de produção capitalista. Segundo Lênin, não há maior contradição entre agricultura e indústria. São dois ramos que tomados separadamente, devem ser concebidos como potencialmente idênticos. As maiores contradições da sociedade são, para Lênin, as existentes entre burgueses e proletários na indústria e entre fazendeiros ricos, de um lado, e proletário agrícola de outro, na agricultura. Na análise da economia camponesa, e suas relações com o modo de produção capitalista, Chayanov introduziu uma visão rica e aprofundada da interação entre capitalismo e agricultura. Onde parte da análise de um modo de produção camponês, nãocapitalista, cujas unidades elementares são constituídas por famílias de camponeses trabalhadores, proprietários do solo, e cujo produto é destinado, principalmente, à auto-subsistência, estando comercializada apenas uma fração deste. Sendo que a unidade elementar, para Chayanov, é "um espaço de produção e consumo” onde as trocas mercantes assumem um papel marginal. Pois segundo ele, os ruralistas sabem perfeitamente que a vida camponesa não é apenas organizada em torno da produção, como é o da empresa industrial, ela é tanto um modo de existência, de vida, quanto um modo de produzir. Chayanov vai além, diz que no modo de produção capitalista, a mercantilização do lucro, acarreta a mercantilização da terra, que se torna objeto de transações, ao invés do que ocorre nos modos pré-capitalistas, ou no modo feudal, caracterizado pelo direito inalienável ao solo, dos camponeses. Chayanov constata que o preço da terra não é, aí, equivalente à capitalização da renda (que não existe), mas ao trabalho necessário para satisfazer as necessidades da família. Numa outra observação, diz que o modo de produção camponês, desde que integrado a uma formação capitalista, esvazia-se de seu conteúdo, dominado pelo modo capitalista. Observando ainda a enorme capacidade de resistência da economia camponesa à concorrência capitalista na Rússia, no fim do século XIX. Acrescentando que o pequeno camponês pode aceitar remunerações globais tão baixas que façam a agricultura capitalista perder todo seu poder competitivo. Sendo assim, só poderemos compreender o modo de produção camponês num conjunto global ao qual o mesmo esta circunscrito. Onde quando falamos da concorrência capitalista, é na verdade supor que o camponês deva equiparar seus preços aos dos concorrentes capitalistas agrários mais eficazes. Implicando na redução da remuneração dos camponeses. Esta perda na remuneração, segundo Chayanov se dá de duas formas principais: a primeira é em relação à renda da terra (renda imputada à propriedade), que é anulada; a segunda concerne na remuneração do trabalho que se reduz o preço dos produtos, equiparando assim ao valor da força de trabalho proletária. Sobre esta questão Chayanov faz uma análise bastante pertinente sobre a renda da terra e o trabalho camponês. Analisando que o capital dominante anula a renda, isto é, livrase da propriedade fundiária e proletariza o camponês 91 92 trabalhador. Que conserva a propriedade da terra, mas, somente no sentido formal, pois não se tem mais a propriedade real. Conservando também a aparência de um produtor comerciante que oferece produtos no mercado, mas na verdade é um vendedor da força de trabalho, e sua venda é disfarçada pela aparência de produção comercial. Assim como diz Chayanov, “o camponês é reduzido, de fato a um trabalhador a domicílio”. Outra discussão que permeia a questão agrária, e que trataremos a partir de agora, refere-se às reflexões a respeito da reforma agrária e suas variadas formas de serem interpretadas e realizadas. Analisaremos, para tanto, de forma mais detalhada, sua principal forma de atuação que é por meio de ocupação de terras. Partiremos então dos conceitos e formas que se realizam e compreendem a reforma agrária. O conceito de reforma agrária ao longo do tempo vem sendo alvo de várias interpretações e concepções existindo assim muita confusão em relação ao seu conceito. Por isso, Fernandes no livro Brava gente: trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil, esclarece que existem três conceitos (concepção) de reforma agrária: clássica ou capitalista, política de assentamento e a dos movimentos sociais. (Fernandes, 1999, p. 158-59). Sendo a reforma agrária clássica e capitalista aquela feita pelas burguesias industriais no final do século passado e até depois da segunda guerra mundial. Seus objetivos eram democratizar a propriedade através da distribuição de terra para os camponeses, transformando-os em pequenos produtores autônomos, aumentar o mercado consumidor interno de produtos agrícolas e industriais. Foi realizada na França, nos Estados Unidos e no Japão (Fernandes, 1999, p. 159). A política de assentamentos é o tratamento dado pelo estado, principalmente pelos governos militares, como forma de resolver conflitos de terra. Limita-se ao assentamento de sem terra, sem, contudo afetar a estrutura da propriedade da terra (Fernandes, 1999, p. 159). 93 A reforma agrária dos movimentos sociais é aquela proposta pelas entidades e movimentos organizados no Fórum Nacional de Reforma Agrária, formado pelo Movimento dos Sem Terra, Comissão Pastoral da Terra (CPT), Confederação Nacional dos Trabalhadores em Agricultura (CONTAG), Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA) e outras forças progressistas que atuam e apóiam as organizações de trabalhadores rurais. (Fernandes, 1999, p. 159). Resumindo as idéias básicas do fórum supracitado, o Brasil enfrenta um grave problema agrário que é a concentração da propriedade da terra. Portanto para resolver este problema, é necessário realizar um amplo programa de desapropriação de terra, de forma rápida, regionalizada, e distribuí-las a todas famílias sem terra, ou seja, “Um conjunto de medidas a serem tomadas pelo governo para alterar a estrutura fundiária do país, e garantir terra a todos os agricultores que quiserem trabalhar. Além disso, medidas complementares da política agrícola, como crédito rural, preços, assistência, seguro social, etc., necessárias para garantir a viabilidade e rentabilidade da pequena produção” (Fernandes, 1994, p. 36) Além da garantia da terra e das condições de produção e rentabilidade, para o MST, segundo o autor acima, há três problemas estruturais no meio rural brasileiro: a pobreza, a desigualdade social e o analfabetismo. Onde segundo o MST para resolver estes problemas, há necessidade de democratizar o capital, ou seja, criar condições para que o camponês assentado tenha acesso aos meios de produção necessários à realização da produção e conseqüentemente da cidadania. Acesso ao capital, também, representa ter disponibilidade de credito para que possa instalar suas próprias agroindústrias, seus mecanismos de acesso ao mercado e a comercialização. Também o MST 94 defende que todos tenham acesso à educação, como instrumento básico que permita romper com a ignorância. O conhecimento técnico também faz parte da conquista dos trabalhadores, tanto na produção como na defesa de seus direitos (Fernandes, 1999, p.161). Diante do exposto, vemos algumas contradições, com nossa análise preliminar sobre a exclusão e expropriação do campesinato, pois como vimos outrora, o estado capitalista e o modo de produção hegemônico são os grandes responsáveis e causadores da pobreza, da desigualdade social e do analfabetismo e conseqüentemente da exclusão e expropriação do camponês. Sendo assim não se pode querer democratizar o capital, pois não basta a democratização do mesmo, pois no máximo o que pode acontecer com essa dita democratização é uma atenuação das lutas de classe e uma falsa ilusão de mudança. Onde na verdade tem que se lutar é para suprimir o Capital e todas suas formas de sustentação que são as ideologias reformistas e o estado capitalista burguês. Pois somente assim poderemos realmente, conseguir construir uma sociedade que possa superar todo este estado de coisas. Diante da relevância da questão supracitada, a trataremos de forma mais aprofunda adiante, onde analisaremos o papel das cooperativas de assentados como forma de subsistir e resistir enquanto pequenos produtores camponeses, pois existem várias controvérsias sobre a forma que se da essa resistência e uma provável desconfiguração dos objetivos propostos. Já em relação às formas de resistência e (re) criação do campesinato podemos observar estes fenômenos de variadas formas, mas sem dúvida a principal é por meio das ocupações de terras, a qual demonstra a resistência do camponês a exploração e expropriação. No desenvolvimento do processo de criação e (re) criação do campesinato ocorre a exclusão no processo de diferenciação do camponês. Mas conforme Fernandes (2000 p.279), esse processo de exclusão não leva necessariamente a proletarização ou a transformação do camponês em capitalista, causando o que Lênin e Kautsky denominaram de desintegração do campesinato. Leva também a recriação do campesinato por diferentes formas. Uma é pela sujeição da renda da terra ao capital, que acontece ante a “subordinação da produção camponesa, pelo capital, que sujeita e expropria a renda da terra e, mais que isto, expropria praticamente todo excedente produzido, reduzindo o rendimento do camponês ao mínimo necessário à sua reprodução física (Oliveira, 1991, p, 11). Uma outra forma de recriação do campesinato é pela ocupação da terra. Pois como em sua reprodução ampliada o capital não pode assalariar a todos, excluindo sempre grande parte dos trabalhadores. O mesmo ocorre com a reprodução das relações de produção não capitalistas, que não cria na mesma intensidade com que exclui. Assim, por meio da ocupação de terras os trabalhadores se ressocializam, lutando contra o capital, e se subordinando a ele, porque ao ocuparem e conquistarem a terra se reinserem na produção capitalista. Mediante o desenvolvimento desigual do modo de produção capitalista, que gera inevitavelmente a expropriação e a exploração, os trabalhadores expropriados se utilizam as ocupações como forma de reproduzirem o trabalho familiar. Criando assim uma forma de resistência política, contra esse processo de exclusão, que é por meio das ocupações de terras. É importante salientarmos que a base das ocupações não é apenas camponesa que outrora fora expropriado, muito pelo contrário a maior parte das pessoas que compõem um acampamento de trabalhadores rurais sem terra, são provenientes da zona urbana, e tem origens urbanas, não tendo assim nenhuma experiência no campo. Isso só vem reforçar que o modo de produção capitalista expropria e exclui tanto o camponês como os trabalhadores em geral, seja ele do campo ou da cidade. Portanto podemos observar que quanto mais o capital exclui, mas o movimento de resistência cresce, seja por 95 96 parte dos camponeses expropriados ou dos trabalhadores excluídos. As ocupações significando assim, um desafio dos trabalhadores, junto ao estado, que sempre representou os interesses da burguesia agrária e da classe dominante em geral, os capitalistas. Desta forma, ao longo do tempo, o estado somente apresenta medidas paliativas, que visam atenuar os processos de expropriação e exploração, e minimizar as lutas de classe. Portanto, podemos concluir que o modo de produção capitalista, em suas mais variadas investidas sobre o modo de produção camponês, e sobre os trabalhadores em geral, só provoca a exclusão e expropriação dos mesmos. Diante disso podemos afirmar que a luta pela reforma agrária em todas suas formas de criação e (re) criação, constitui num equívoco. Pois como vimos, o estado capitalista é o principal agente de manutenção dos “status quo” e que representa os interesses da classe capitalista, como já dizia Marx, “o estado é o comitê da burguesia” (Marx e Engels, 1988), lutar pela criação e recriação é se submeter a um ciclo vicioso de exclusão e recriação. Não resolvendo dessa forma o problema em sua estrutura, apenas ficando em mudanças de conjunturas, fazendo assim com que nos iludamos com as aparências. Onde ao nosso ver não se pode lutar pela sua reinserção no capital, pois, tem que se lutar e para a destruição do mesmo, rumo a construção de uma outra sociedade, que consiga superar todo este estado de coisas. Diante da exposição dos conceitos e formas de se compreende a questão agrária e reforma agrária, em suas mais diversas concepções teóricas, analisaremos a seguir, de forma mais detalhada, o modo de produção camponês em seu processo de resistência e recriação. Enfocando assim o papel das cooperativas, na suas formas elementares de produção de uma forma de resistência ou uma forma de reprodução do trabalho capitalista. Cooperativas agrícolas: resistência ou sujeição camponesa Como vimos outrora, o modo de produção capitalista vem submetendo o modo de produção camponês a um processo de exploração, expropriação e submissão. Que tem, dessa forma, provocado a exploração e submissão dos trabalhadores camponeses. Em contrapartida a esta situação de exploração e submissão surgem movimentos de criação e re-criação do modo de produção camponês. Onde a forma de produção e organização, surge como elemento decisivo no processo de articular, esta suposta resistência camponesa, frente ao grande avanço da exploração e submissão que o modo de produção capitalista vem impondo a agricultura camponesa. Resistência esta, demonstrada pela criação e re-criação do campesinato, pelos diversos agentes sociais que atuam no propósito se resistir à situação de proletarização. Diante do exposto, abordaremos o papel das cooperativas de produção no processo organizacional dos assentamentos de trabalhadores rurais organizados pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Para tanto, faremos uma discussão preliminar, sobre as cooperativas de produção e suas formas de atuação dentro do modo de produção capitalista. Este resgate se justifica pelo motivo que o papel das cooperativas de produção vem permeando o debate em torno da viabilidade econômica, política e social do modo de produção camponês, expressada dessa forma pelos assentamentos de trabalhadores rurais sem terra. Diante da análise proposta, observamos que se faz muita confusão entre o caráter da viabilidade econômica, política e social, dos assentamentos de trabalhadores rurais sem terra. De um lado temos uma proposta, concomitante com uma pratica, de caráter reformista/conservadora, que são implementadas nos assentamentos de trabalhadores rurais sem terra. Em contrapartida vemos algumas análises, que vê, a meu ver equivocadamente, esta proposta como se fosse uma prática e uma proposta revolucionária. Para não incorrer neste equivoco, proponho distinguir as duas formas de se compreender a 97 98 viabilidade econômica e social. Destacando assim também a partir de qual perspectiva abordaremos a questão da viabilidade econômica e social dos assentamentos de trabalhadores rurais sem terra. Podemos, grosso modo, distinguir as duas principais formas de conceber a viabilidade econômica e social dos assentamentos de trabalhadores rurais sem terra. Sendo que a primeira, de caráter reformista/conservador, parte de uma perspectiva de viabilidade econômica, política e social, no e pelo capital, onde busca uma relação de inclusão e integração mais justa e harmoniosa junto ao capital. Tendo como expoente maior, a bandeira de luta pela democratização do capital, reivindicando dessa forma, medidas governamentais que visam garantir esta integração, sendo que as principais reivindicações são pelo acesso a créditos bancários e subsídios e assistências governamentais. Não questionando dessa forma o caráter democrático/burguês e excludente do estado capitalista. Podemos constatar esta concepção, no Movimento de Trabalhadores Sem Terra, onde em entrevista a revista Caros Amigos, um de seus maiores interlocutores, João Pedro Stédile, diz que sua proposta de reforma agrária “não é socialista”, pois isto implicaria em mudar o “modo de produção” e vai além dizendo que “o problema não é o capitalismo”, e sim a falta de um projeto nacional popular. Sendo estas posições apenas um reflexo de uma proposta maior, que é de promover apenas algumas reformas dentro do estado democrático burguês. A segunda proposta parte de uma perspectiva revolucionária/transformadora, na qual pressupõe que a viabilidade econômica, política e social, visa garantir uma transformação radical da sociedade, com o fim dos explorados e exploradores. Com uma sociedade sem estado, classes sociais e sem exploração, uma sociedade autogerida pelos trabalhadores. Abominando dessa forma, toda e qualquer proposta que visam conservar a sociedade capitalista ou que tem como objetivos as reformas de caráter paliativo, que visam à manutenção da atual hegemonia do modo de produção capitalista, no conjunto da sociedade. E é com o intuito revolucionário de transformação radical da sociedade é que pretendo fazer uma análise do processo de funcionamento das cooperativas como uma possível alternativa de organização produtiva, na estrutura e na forma de organização da produção nos assentamentos de reforma agrária. Analisaremos assim, a partir da perspectiva revolucionária o problema da viabilidade econômica, política e social, da pequena produção camponesa desenvolvida junto aos assentamentos de trabalhadores rurais sem terra. Mediante o esclarecimento de qual perspectiva analisaremos o processo de produção, desenvolvido junto aos assentamentos de trabalhadores rurais sem terra, se torna pertinente fazermos uma análise aprofundada das cooperativas e cooperativismo dentro do modo de produção capitalista. Para tanto faremos um resgate histórico da discussão sobre a forma cooperativa como um agente de viabilização da transformação social, perpassando pelas discussões desde Rosa Luxemburgo até as concepções atuais de conceber as cooperativas. Para entendermos as cooperativas de produção, primeiro devemos remeter uma análise do modo de produção capitalista. Pois como o modo de produção capitalista é mais do que um modo de produção é também um modo de circulação de mercadorias temos que compreender o capitalismo na sua totalidade, pois somente assim poderemos entender os equívocos das relações entre capitalismo e cooperativismo. Em seu artigo Capitalismo e Cooperativismo, Emilio Genari, nos faz uma discussão muito esclarecedora a respeito das relações do cooperativismo com o capitalismo, onde diz que “nem toda produção no capitalismo acontece de forma capitalista. No campo, uma grande parte da produção ainda é camponesa, isto é, produção familiar, onde não existe a relação patrão empregado. Entretanto, para que as mercadorias sejam postas em circulação elas tem que obedecer às leis de mercado. 99 100 É nesse ponto que a forma de circulação capitalista subordina a produção, mesmo que ela não seja tipicamente capitalista. O mesmo acontece com as cooperativas. Mesmo que sua estrutura seja horizontal (não havendo hierarquia), mesmo que os lucros sejam divididos entre todos, mesmo que todos participam do trabalho e das decisões; enfim mesmo que a produção tenha um funcionamento autogestionário, qualquer cooperativa está submetida às leis de circulação de mercadorias do capitalismo. Mais do que isso, as matérias primas, maquinas, peças, e ferramentas que uma cooperativa utiliza são compradas no mercado, isto é, são mercadorias produzidas de forma capitalista. Significando assim que uma cooperativa está inevitavelmente dentro de um sistema capitalista”. Nessa mesma perspectiva Rosa Luxemburgo diz, Podemos assim observar que o processo de produção cooperativista tem como um elemento intrínseco, a sua subordinação ao modo de produção capitalista, seja na circulação das mercadorias seja sobre as relações entre os mesmos. Diante disso podemos dizer que a cooperativa de produção tem um limite intransponível, a partir do momento em que se propõem a ser uma “ilha” dentro do capitalismo. Nesse sentido Nildo Viana, em O que é autogestão, esclarece que “no interior da sociedade capitalista, as cooperativas não determinam seus fins, pois o mercado e o estado sempre interferem nas finalidades de uma cooperativa e não só nos fins como, em menor grau, também nos meios”. Acrescentando ainda que “as cooperativas podem existir no interior do modo de produção capitalista e são assimiláveis por ele. O capitalismo envolve todas estas manifestações e as colocam sob sua direção, direta ou indiretamente. Não existem nem podem existir "ilhas" de autogestão cercadas pelo mar do capitalismo”. (Viana, 1995, p. 28). Nesse sentido a Associação Internacional dos Trabalhadores em seu congresso em Genebra falou que “os sistemas cooperativos, restritos as formas minúsculas brotadas dos esforços individuais dos escravos assalariados, é impotente para transformar por si mesma a sociedade capitalista”. Onde Marx acrescenta que “para transformar a produção social em largo e harmonioso sistema de trabalho cooperativo, mudanças gerais se fazem necessário” (Guillerm & Bourdet, 1976, p.29). Mediante o fato do capitalismo não aceitar “ilhas” econômicas liberadas, segundo Genari, “é comum ver como essas unidades econômicas "alternativas", a medida em que se desenvolve começam a mudar. Começam a fazer concessões e evitam enfrentar e questionar o sistema capitalista a fundo. A história está cheia de exemplos de cooperativas de produção e comunidades que terminam sendo organismos capitalistas comuns, tendo proprietário e assalariado” (Genari, 2002, p.2) Segundo Genari, as cooperativas cumprem três papeis importantes para a classe dominante, o primeiro de caráter político, o segundo de caráter social e por último de caráter ideológico. No que se diz respeito ao caráter político afirma que “as cooperativas são politicamente interessante, exatamente 101 102 “As cooperativas, e antes de tudo, as cooperativas de produção, são elas por sua essência um ser híbrido dentro da economia capitalista: a pequena produção socializada dentro de uma troca capitalista. Mas na economia capitalista a troca domina a produção, fazendo da exploração impiedosa, isto é, da completa dominação do processo de produção pelos interesses do capital (...) para a cooperativa de produção, verem os operários na necessidade contraditória de governar-se a si mesmos com todo o absolutismo necessário e desempenhar entre eles mesmos o papel de patrão capitalista. É desta contradição que morre a cooperativa de produção, quer pela volta da empresa capitalista, que, no caso de serem mais fortes os interesses dos operários, pela dissolução” (Luxemburgo, p.52,1975). porque permitem um discurso demagógico que apela à participação da população, autogestão, co-gestão e etc. socialmente são extremamente interessantes porque aliviam as tensões sociais na medida em que resolvem os problemas para uma pequena parte da população. Finalmente sendo interessante ideologicamente, pois fornece a população uma nova ilusão: de que é possível para todos excluídos se incluírem através das cooperativas. Diante de todas essas análises que desmistificam a farsa reformista e conservadora que está implícita na prática das cooperativas, cabe a pergunta: o que levam ainda muitos estudiosos e movimentos sociais reivindicarem as mesmas como forma de solução para os problemas da expropriação e exclusão social? Ao meu ver estas limitações têm varias motivações, mas trataremos a grosso modo, das que considero as duas principais razões. A primeira motivação tem como ingrediente, o oportunismo de grupos e indivíduos que de alguma forma, tiram proveito destas situações, sejam eles proveitos políticos ou econômicos. O segundo fator está ligado à dificuldade em se pensar uma sociedade, e conseqüentemente uma organização produtiva, que transcenda os limites do modo de produção capitalista. Onde esta falta de visão, muitas das vezes sendo provocada ou estimulada, pelos aparelhos de sustentação da classe dominante, que é o estado burguês e suas instituições (Universidade, igreja e os partidos políticos, incluindo os da pseudo-esquerda). Depois dessas elucidações sobre o caráter das cooperativas de produção dentro do modo de produção capitalista e suas conseqüentes inclusões no mesmo, partiremos para uma análise que tem como foco principal estas apologias cooperativista como solução de existência e resistência do modo de produção camponês ou como alguns preferem agricultura familiar, desenvolvida nos assentamentos de trabalhadores rurais sem terra. Desde seu surgimento o MST, tem como uma de suas bandeiras de luta a preocupação com a organização da produção nos assentamentos. Para tal criou o “sistema cooperativista dos assentados”. 103 104 No campo da produção, os assentados ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, vêm desenvolvendo uma experiência cooperativista que é a cooperação agrícola. A cooperação agrícola é uma forma de produção onde os assentados, mesmo tendo recebido cada família um lote individual, procuram criar uma infra-estrutura comunitária, ou seja, eles se associam para comprar máquinas, insumos, meios de transporte, armazenagem, enfim, viabilizar a produção de forma a garantir sua sobrevivência no campo” (Mello, 1995, p. 39) Construindo assim, No campo da produção, os Sem Terra construíram a Confederação Nacional das Cooperativas (CONCRAB) com nove cooperativas centrais, 81 cooperativas locais de produção, serviços e comercialização, e duas cooperativas de crédito. Há também, nos assentamentos em torno de 400 associações realizando todo o tipo de formas diferenciadas de cooperação agrícola, como iniciativas de ajuda mútua para resolver seus problemas de produção circulação e prestação de serviços. Funcionam 45 unidades agroindustriais. Conquistaram linhas de crédito específicas para a reforma agrária, como o Procera, e financiamentos do BNDS para a agroindústria.” (MST, 1999 p.10) Em um outro momento o MST define que, “A cooperação agrícola é o jeito de juntar ou somar os esforços de cada agricultor individual, para fazer coisas em conjunto. Comprar ferramentas, juntas de bois, comprar maquinas entre outras. Quanto mais coisa fizer em conjunto mais rapidamente se vai progredir e crescer. Para comercializar os produtos também fica mais fácil: juntar as pequenas compras individuais e as pequenas vendas individuais dos produtos garante maior poder de barganha de preços e dá menos despesas com transporte, material, mão de obra etc.” (MST, 1993, p.8) Conforme Martins: “No Brasil, o movimento do capital não opera, de modo geral, no sentido da separação entre propriedade e a exploração dessa propriedade... o que vemos claramente, tanto no caso da grande propriedade quanto no caso da pequena, é que fundamentalmente o capital tende a se apropriar da renda da terra (...) o capital não se torna proprietário da terra, mas cria as condições para extrair o excedente econômico” (Martins, 1981, p. 175-6). Fernandes acrescenta que: Para Fernandes, “o Sistema Cooperativista dos Assentados-SCA, é um setor do MST que tem na cooperação agrícola a perspectiva do desenvolvimento econômico dos assentados, garantindo a organicidade do movimento. É uma forma de expandir e organizar o assentamento, contribuindo para a territorialização da luta pela terra. Construído a partir da lógica da resistência camponesa. Dessa forma procura desenvolver a agricultura camponesa em que a resistência contra a exploração, à expropriação e a luta pela terra não estejam separados” acrescenta ainda que para o MST a “Cooperação é mais do que cooperação” pois “os sem-terra não pretendem reproduzir o cooperativismo tradicional, mas sim construir uma nova concepção de cooperação que possa abranger as dimensões da lógica do MST” (Fernandes, 2000 p.228). Em outro momento o MST acrescenta que para tentar superar seus problemas, “estão construindo um novo tipo de cooperativismo, sob controle dos trabalhadores”. “Quando falamos de cooperativas de produção e comercialização, que estão sendo criadas nos assentamentos, estamos pensando num tipo de empresa social que seja uma ferramenta a mais na luta por uma sociedade justa” (MST, 1993b, p.33). O que podemos concluir é que apesar de todas essas formas de tentar atenuar a exploração, os sem terras, sejam eles cooperados ou não, sofrem um processo de exploração visível, principalmente pela sujeição da renda da terra ao capital. Ao longo do texto, observamos que as cooperativas são inviáveis tanto do ponto de vista revolucionário, visando uma profunda transformação social, que seria uma sociedade autogerida, como do ponto de vista de reformista/conservador, que visa garantir qualidades de vida para os trabalhadores rurais sem terra dentro dos limites do capitalismo, buscando assim somente sua inserção no processo de exploração. Mesmo diante de todos estes esclarecimentos a ideologia das cooperativas continua, num vigor ascendente. Pois para muitos o cooperativismo ainda “é um instrumento previsto e apontado como viável ao desenvolvimento da agricultura familiar”. Conforme Sandroni, “o cooperativismo é um instrumento que se caracteriza como um elemento incentivador, 105 106 “A exploração causada pela apropriação da renda da terra pelo capital tende a se intensificar até a falência das cooperativas e a expropriação dos assentados. Nesse processo, de modo geral, por meio da sujeição da renda da terra ao capital, as cooperativas de assentamentos estão em processo crescente de endividamento, principalmente pelos baixos preços dos produtos, alto custo da infraestrutura e dos insumos” (Fernandes, 2000 p. 231). e como tal pode ser visto como, uma doutrina que tem por objetivo a solução dos problemas sociais por meio da criação de comunidades de cooperação” (Sandroni, 1985). Para outros ideólogos, “são as cooperativas que possibilitam ao produtor a condição de se inserir no mercado de forma competitiva, servindo de intermediária entre o capital e o produtor, amortecendo os riscos, e garantindo a finalização eficiente da produção. Além disso, uma forma de distribuição de renda mais igualitária, um vez que todo processo é desenvolvido de forma coletiva”. Sendo também vista como um elemento de ascensão econômica dentro do modelo de produção familiar. “visto que os agricultores, quando organizado/cooperado, adquire condições de participar do processo de transformação da agricultura e acompanha cada mudança sem, com isso, ficar em desvantagem com relação aos sistemas agrícolas mais organizados” (Flores, 2002, p. 6) Podemos observar que todas estas teorias se tornam nulas, e não passam de fundamentações teóricas com caráter ideológico que visam, perpetuar a dominação e a exploração dos trabalhadores, e dos modos de produção subordinados, como é o modo de produção camponês. Tanto é verdade que em seu relatório a Confederação Nacional das Cooperativas (CONCRAB), diz que “as experiências cooperativas do MST que estão em curso, enfrentam diferentes tipos de problemas: desde a baixa rentabilidade a diferentes graus de endividamento (CONCRAB, 1997a). Sendo que, dentro do Sistema Cooperativo dos Assentados-SCA, enfrenta diversos problemas com a viabilidade da produção nos assentamentos, e com o modelo de cooperativismo que está implantado. Onde algumas cooperativas enceram suas atividades, motivadas pelo fato que essas experiências defrontaram com os vários obstáculos, provocado pelo modelo econômico de desenvolvimento da agricultura capitalista, que já estudamos outrora. Estes enfrentamentos, entre ideólogos burgueses de um lado e revolucionários por outro, remetem a meados do século XIX, quando Bakunin analisava a perspectiva da revolução, na Inglaterra, França e Alemanha, por meio das cooperativas. Onde 107 dizia que “enquanto os socialistas revolucionários, convencidos de que o proletariado não pode libertar-se dentro do marco do atual sistema econômico, desejam a liquidação social, os socialistas pacíficos (conservadores) desejam, ao contrário, preservar todas as bases principais, essenciais, da ordem econômica existente. E afirmam que os operários podem libertar-se e melhorar substancialmente sua situação material graças tão somente ao poder milagroso das associações livres (as cooperativas)” (Genari, 2002, p. 4) Posteriormente, foi provado que as experiências cooperativas, não puderam libertar os operários, nem ainda, melhorar sensivelmente seus níveis de vida dentro das condições existentes do capitalismo. Onde no máximo o que conseguiram, foram a criação de uma nova burguesia coletiva, que não vê inconveniente em explorar a massa dos operários não pertencentes à cooperativa. Podendo assim, afirmamos que na maioria dessas experiências não possuírem nenhuma estratégia global de ruptura com o sistema capitalista de produção. Dentro desta lógica é que faremos nossas críticas mais contundentes ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra MST, pois o mesmo é discípulo de uma esquerda reformista tradicional, remetendo dessa forma, para um futuro longínquo a completa transformação social. Levando assim a cabo uma reforma agrária dentro do atual sistema capitalista. Mesmo que estas reformas mudem as condições de vidas de muitos trabalhadores, conforme Anite Montreal, “as reformas continuam a ser reformas e o sistema em vigor mantém-se em vigor, bem como a propriedade privada e os proprietários”. Dessa forma, não devemos falar em reforma agrária, mas sim de ocupações que visam à abolição da propriedade privada. Montreal acrescenta que “porque razão continuar falando de reformar o velho mundo em vez de inventar um mundo novo? Nunca o MST clamou ‘abaixo o Estado’, nem sequer autogestão generalizada sob controle popular” (Montreal, 2002, p. 8). 108 O MST, surgindo e organizando, no propósito de fazer cumprir a reforma agrária do estado-burguês, capitalista. Sendo as famílias assentadas continuam a serem massas exploradas, debaixo da mesma opressão e exploração de antes. Pois não existe transformação social dentro das bases de uma reforma agrária, do estado capitalista. Não existindo dessa forma reforma agrária revolucionária. Fazendo assim com que o MST entre num grande dilema, ou continue numa postura reformista e, portanto burguesa, e aprofunda o processo de proletarização dos assentados ou segue uma postura revolucionária na qual propõem uma ruptura real com o modo de produção capitalista. E lute por uma transformação real da sociedade onde possa superar o estado capitalista e todas suas formas de opressão. Considerações finais O ponto de partida que instigou o desenvolvimento deste trabalho foi a existência de milhares de famílias sem terra no país e um crescente processo de proletarização de outros milhares de camponeses. Esta situação revela como conseqüência de uma sociedade baseada no modo de produção capitalista, que tem como característica histórica a concentração da propriedade e a conseqüente exploração, exclusão e expropriação dos camponeses. E apesar de toda esta situação que tem em suas origens históricas, o processo de ocupação colonial, perpassando por todos períodos históricos da sociedade brasileira, não vemos nenhuma proposta e/ou prática, seja promovidas pelos partidos ditos de esquerda ou movimentos sociais de luta pela terra, que proponha uma ruptura com o sistema vigente e a partir daí implantar uma nova sociedade, que passa por uma estrutura social e econômica diferentemente da capitalista. Vemos os movimentos sociais lutando por reformas que visam atenuar a exploração e as lutas de classe e a manutenção da estrutura da sociedade capitalista. Concluindo assim que o 109 modo de produção camponês vem sofrendo um processo intenso de subordinação e dominação pelo capitalismo, onde o camponês mantém apenas no sentido formal a propriedade da terra e sua condição de produtor independente, pois os mesmos não passam de meros “servos do capital industrial”. Nesse processo de dominação e exploração do capitalismo sobre o modo de produção camponês, o camponês tem se tornado, conforme disse Chayanov, “um Proletário a domicílio”. Constando dessa forma que a luta pela terra, no processo de criação e recriação do modo de produção camponês na forma em que se tem hoje, torna um grande equívoco, pois é lutar para ser explorado pelo capital. Nem as cooperativas de produção conseguem superar o processo de exploração dos trabalhadores camponeses. Sendo que as reivindicações para obter ajudas e subsídios governamentais não passam de uma grande ilusão e um equívoco, pois conforme já dizia Marx, as cooperativas não tinham valor enquanto não fossem “criações autônomas dos trabalhadores” e não estivessem “protegidas nem pelo governo, nem pelos burgueses”. Diante disso temos que repensar uma nova estratégia de luta e atuação, para superar a atual sociedade capitalista. Referências bibliográficas AMIM, Samir & VERGOPOULOS, Kostas. A Questão Agrária e o Capitalismo. 2º . ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra1977. CARDOSO, Ivan dos Reis & FLORES, Claudia Silveira Mendes. Agricultura Familiar e cooperativismo: desenvolvimento e complementariedade. Salvador, 2002. FERNANDES, Bernardo Mançano. 110 MST formação e territorialidade. São Paulo: Hucitec, 1999. Editora, 1987. FERRANTE, Vera Lúcia Botta. Retratos de Assentamento - MEDEIROS, Leonilde (Org.) Assentamentos rurais: uma Cadernos de Pesquisa. Ano 1 nº 1. 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Tendo se posicionado tradicionalmente ao lado dos grandes proprietários e do Estado, a partir da década de 1960, parte considerável dos agentes católicos (padres, religiosos, bispos) passou a se aliar aos camponeses nas suas lutas contra a expropriação e a expulsão da terra. Com a crescente proletarização e o recrudescimento dos conflitos entre trabalhadores assalariados e empresários rurais, em várias regiões do país esses agentes passaram a apoiar, também, as lutas desses trabalhadores por direitos, geralmente organizados em sindicatos. Essa inflexão na postura política de parcela do clero católico foi impulsionada por um conjunto de mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais por que passou a sociedade 1 113 A questão sociopolítica no campo se caracteriza pela existência de amplos contingentes da população rural subsistindo em condições de extrema pobreza, derivadas da expropriação e da impossibilidade econômica e jurídica de acesso à propriedade da terra, bem como da insuficiente remuneração do seu trabalho. Outra importante característica são as relações de dominação política a que estão submetidos os trabalhadores na agricultura, marcadas, em muitas situações, pela violência do poder privado dos grandes proprietários legitimados pela omissão ou conivência do Estado. A questão sociopolítica no campo é a expressão mais contundente da questão agrária. Para uma caracterização da questão agrária no Brasil, podem ser consultados: MARTINS, 1975; 1998; GRAZIANO DA SILVA, 1986; LINHARES & SILVA, 1999. 114 brasileira desde as últimas décadas do século XIX, aceleradas pela crescente urbanização resultante, principalmente, do êxodo rural, a partir da década de 1950. Tudo isso articulado com transformações ocorridas nas sociedades ditas centrais, refletidas nas mudanças na doutrina social da Igreja mundial, expressas nas encíclicas papais de João XXIII, nos documentos emanados do Concílio Vaticano II (1963-1965) e, particularmente na América Latina, no documento da II Conferência do Episcopado Latino-Americano – CELAM – realizada em 1968 na cidade de Medlín (Colômbia) e na Teologia da Libertação. A criação da Comissão Pastoral da Terra Nacional (1975) e da CPT Regional Goiás2 representou a culminância desse processo de mudança das práticas políticopastorais dos agentes católicos em relação à questão social em geral e à questão sociopolítica no campo em particular. Este texto consiste numa síntese da história das relações da CPT Regional Goiás com os movimentos dos trabalhadores rurais no estado, desde que foi criada em 1976 até o início deste século. Trata-se, portanto, de uma história da CPT Regional, tendo como pano de fundo as transformações provocadas pela expansão das relações capitalistas no campo e as mudanças político-pastorais ocorridas na Igreja ao longo da história republicana da sociedade brasileira. A explanação aqui apresentada se baseia nos resultados de uma dissertação de mestrado concluída por este autor há alguns anos: A CPT Regional Goiás e a questão sociopolítica no campo. O surgimento da CPT Nacional e da Regional Goiás A formação da CPT Regional Centro-Sul de Goiás foi antecedida em mais de um ano pela criação da CPT Nacional. 2 Oficialmente, a CPT Regional Goiás é denominada Comissão Pastoral da Terra Regional Centro-Sul de Goiás. Esta designação vem da época de sua fundação (1976), quando o território goiano ainda não havia sido dividido para dar origem ao estado do Tocantins (1988) e foi mantida por motivo prático, isto é, para evitar a necessidade de alteração dos seus registros junto aos órgãos oficiais e colaboradores financeiros. 115 Esta foi criada no momento em que a base econômica do regime ditatorial instalado no país a partir do golpe civil-militar de 1964 se encontrava em franco processo de desmoronamento, atingida pela crise do capitalismo internacional, mais conhecida como a “crise do petróleo” de 1973. Era a crise do “milagre econômico” (1968-1973). Mais do que uma crise econômica, a sociedade brasileira vivia uma profunda crise social, cujos efeitos mais dramáticos foram sentidos pelas classes espoliadas. Essa situação era agravada pela permanência da forte repressão contra qualquer manifestação de inconformismo ou crítica à ordem estabelecida. Porém, diante do agravamento da crise, a violência institucionalizada do regime repressor não foi mais suficiente assegurar a submissão das classes subalternas nem manter a resignação dos setores de classe média politicamente mais ativos. A saída política dos dirigentes militares para tentar restabelecer a legitimidade do regime foi encaminhada por meio da “distensão”, iniciada em 1974. Era a política da “abertura lenta, gradual e segura” que culminaria com o fim da ditadura em 19853. A promulgação da atual Constituição Federal em outubro de 1988 representou o coroamento do ordenamento jurídico dessa transição. Enquanto as reformas político-jurídicas eram feitas pelos próprios ditadores, no campo, especialmente na Amazônia, a expulsão violenta dos posseiros4 pelo capital agrário de origem urbana e multinacional, combinada com a ação de grileiros apoiados pelas polícias locais, assumia proporções nunca vistas. No Nordeste, a violência contra camponeses não proprietários e 3 4 As medidas político-jurídicas mais importantes do Estado militar em resposta às pressões pelo restabelecimento da democracia liberal foram: revogação do Ato Institucional nº 5 pela emenda constitucional nº 11, de 1978; anistia política (lei nº 6.683, de 1979), que restabeleceu os direitos políticos formais de ativistas punidos com a cassação e exílio; Nova Lei Orgânica dos Partidos (lei nº 6.767, de 1979), que restabeleceu o pluripartidarismo (cf. ALVES, 1987, passim). Para uma caracterização distintiva do posseiro, ver MARTINS, 1993, p. 130-134. 116 trabalhadores rurais assalariados seguia fazendo vítimas. A partir de meados da década de 1970, os conflitos com mortes se generalizaram em todo o campo brasileiro. Acuados pela violência e pela miséria crescentes e, ainda, politicamente desorganizados, restou aos posseiros amazônicos buscarem apoio junto à Igreja Católica na região, arrastando bispos e missionários para a sua causa. Com as organizações camponesas destruídas pela repressão, principalmente as Ligas Camponesas, e os sindicatos controlados por colaboradores do regime ditatorial, bispos e padres do Nordeste saíram em defesa dos trabalhadores rurais oprimidos. A resposta dos bispos aos “clamores” dos trabalhadores veio, inicialmente, na forma de cartas pastorais individuais, como a de Dom Pedro Casaldáliga ao assumir a direção da Prelazia de São Félix do Araguaia (Mato Grosso) em outubro de 1971, Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social5, ou declarações conjuntas6, mantendo a tendência de crítica às injustiças sociais e às estruturas e relações que as geravam. No dizer de Martins, esses documentos dos bispos do Nordeste, da Amazônia e do Centro-Oeste “anunciavam uma verdadeira revolução no trabalho pastoral”, demonstrando que o aguçamento do sofrimento imposto às maiorias sociais empobrecidas convenceu os bispos de que “o desenvolvimento econômico, que o estado e o capital levavam adiante, no País, 5 6 Nesse documento Dom Casaldáliga explicita, sem meios termos, a sua “opção preferencial pelos pobres”, mais especificamente pelos pobres do campo, contra o latifúndio. “Declaração da Comissão Episcopal Regional do Centro-Oeste”, s/l, 7 de julho de 1972. In: Pastoral da Terra. Estudos da CNBB, 1976; “Eu ouvi os clamores do meu povo”. Documento de Bispos e Superiores Religiosos do Nordeste, s/l, 6 maio 1973; Marginalização de um povo: grito das Igrejas. Documento de Bispos do Centro-Oeste, Goiânia, 6 maio 1973; Yjuca-pirama, o índio: aquele que deve morrer. Conselho Indigenista Missionário, 22 de dezembro de 1973; “Advertência dos Bispos da Província Eclesiástica do Maranhão”, Caxias (MA), 30 de agosto de 1973. In: Pastoral da Terra. Estudos da CNBB, 1976. 117 semeava fome, violência, destruição e morte” (MARTINS, 1999, p. 137). Essas manifestações corresponderam a um primeiro resultado concreto do esforço dos agentes católicos de ampliar o alcance da sua atuação política. A constatação era de que, desarticulados, tornavam-se mais vulneráveis à repressão e menos eficientes as suas ações. Depois de algumas reuniões, os bispos e prelados da Amazônia Legal e do Centro-Oeste, mais alguns padres e convidados, totalizando 67 participantes, se encontraram em Goiânia (Goiás), entre 19 e 22 de junho de 1975, para discutirem os problemas sociais e a ação políticopastoral nas dioceses e prelazias de ambas as regiões. No Encontro de Goiânia, como ficou conhecido o evento, foi decidida a criação da Comissão Pastoral da Terra Nacional, com indicativo da formação de equipes locais para promover o envolvimento de cada diocese ou prelazia com a questão agrária e sociopolítica no campo. Assim, os participantes resolveram: Criar uma “COMISSÃO DE TERRAS” que, na qualidade de organismo de caráter oficioso, ligado à Linha Missionária da CNBB, possa realizar com agilidade o objetivo de interligar, assessorar e dinamizar os que trabalham em favor dos homens sem terra e dos trabalhadores rurais, e estabelecer ligação com outros organismos afins (CPT. Boletim da Comissão Pastoral da Terra. Nº 1, ano I, Goiânia, dez. 1975, p. 8). Caberia à nova Comissão “dar especial atenção ao Estatuto da Terra e à Legislação Trabalhista Rural, procurando divulgá-los em linguagem popular”, devendo os seus integrantes promover “campanhas de ampla e inteligente conscientização em favor dos direitos dos 10 milhões de famílias sem terra” (ibidem). A CPT foi reconhecida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB – ainda em agosto de 1975, tendo sido seu primeiro presidente Dom Moacyr Grecchi, então bispo do Acre e Purus (Amazônia). Segundo Poletto, um dos seus militantes, apesar de não ter contado com a participação de trabalhadores rurais na sua fundação, os “verdadeiros pais e 118 mães da CPT” foram “os peões, os posseiros, os índios, os migrantes, as mulheres e os homens que lutam por sua liberdade e por sua dignidade numa terra livre da dominação da propriedade capitalista” (POLETTO, in: POLETTO & CANUTO, 2002, p. 20). Pouco mais de um ano depois de sua fundação, a CPT já se fazia presente em mais da metade dos estados do país, com a formação de catorze equipes regionais, dentre elas a Regional Centro-Sul de Goiás. A CPT Regional Centro-Sul foi criada num encontro de pessoas que atuavam junto aos trabalhadores em algumas dioceses, promovido pela CPT Nacional em novembro de 1976, em Goiânia, “depois de várias reuniões de preparação” (CPT. Boletim, nº 7, 1976, p. 12). Do encontro participaram vinte pessoas, das quais oito eram trabalhadores rurais. Na ocasião foi eleita uma Comissão Coordenadora, “não definitiva”, que não deveria “trabalhar como se fosse uma autoridade”. Os três membros que a compunham eram os seguintes: Alberto Gomes de Oliveira, o “Bacurau”, um agente leigo da diocese de Goiás; Dionísio Sfredo, padre que atuava na Diocese de São Luiz de Montes Belos, e o também padre Sérgio Bernardoni, missionário italiano da Arquidiocese de Goiânia. A CPT Regional Goiás nasceu com os mesmos objetivos da Pastoral da Terra Nacional. As lutas sociais no campo em Goiás e a atuação da CPT Regional (LOUREIRO, 1988), culminando com a resistência à expropriação, que teve na Revolta Camponesa de Formoso e Trombas sua maior expressão (CARNEIRO, 1988). Com a tomada do poder pelos militares, em 1964, e a desarticulação dos movimentos e organizações dos trabalhadores rurais pela repressão político, a questão sociopolítica no campo foi posta sob controle. Depois do fértil período de fundação de associações de lavradores e sindicatos nos anos que antecederam ao golpe, somente a partir de 1970 as iniciativas de organização dos trabalhadores do campo foram retomadas no estado com grande intensidade. A luta pela terra se reiniciou com a resistência dos posseiros à expulsão para, em seguida, assumir a forma de ocupações (“invasões”, na linguagem oficial) (cf. PESSOA, 1999; DUARTE, 1998; GOMES, 1996). Ao longo de sua história, o foco do trabalho políticopastoral da CPT, em particular a Regional Goiás, passou por importantes alterações, decorrentes das mudanças conjunturais por que passaram a sociedade brasileira e a Igreja no último quartel do século XX. Nesse período, a população brasileira em geral e a goiana em particular confirmaram a tendência à urbanização verificada nos anos anteriores. Uma decorrência do acentuado êxodo rural provocado, por sua vez, pela expansão das relações capitalistas de propriedade e de produção no campo. A) A modernização da agricultura e a luta por direitos: a prioridade da organização sindical A questão agrária surgiu no estado como reflexo da expansão da fronteira agrícola em direção ao Oeste – “marcha para o Oeste” – estimulada pelo governo de Getúlio Vargas durante o “Estado Novo” (1937-1945) e consolidada com a construção da rodovia Belém-Brasília, iniciada na década de 1950. Os movimentos camponeses em reação à superexploração e à grilagem vieram à tona já na segunda metade da década de 1940, com as lutas pela redução da taxa do “arrendo” A partir da década de 1970, a agricultura comercial passou por um acelerado processo de expansão e modernização no estado de Goiás, com vistas a produzir para o abastecimento dos mercados do sudeste do país e para a exportação, especialmente cereais e gado bovino. Essa expansão foi impulsionada pelos programas de desenvolvimento regional, inseridos no II Plano Nacional de Desenvolvimento – II PND – 119 120 criado pelo governo do general Ernesto Geisel (1974-1979): o Programa de Desenvolvimento dos Cerrados – POLOCENTRO ou Prodecer; o Programa de Desenvolvimento da Amazônia Legal – POLAMAZÔNIA – e o Programa de Desenvolvimento da Região Geoeconômica de Brasília (cf. BERTRAN, 1988; ESTEVAM, 1998). Segundo Estevam (ibidem, p. 167), “O esforço concentrou-se no aprimoramento da tecnologia de cultivos e na pecuária de corte em áreas de cerrado”. Porém, os pequenos produtores que cultivavam os alimentos básicos consumidos pela população local não se beneficiaram de tais recursos. Tanto a geração de novas tecnologias quanto os fundos de financiamento foram destinados à produção monocultora para a agroindústria e para o mercado externo (principalmente a soja), cultivados em grandes estabelecimentos. Além de manter a estrutura fundiária concentrada e ampliar a proletarização do camponês, essa modernização levou ao aumento dos empregos temporários e à conseqüente deterioração das relações de trabalho. De acordo com Estevam, três categorias de trabalhadores passaram a suprir essa agricultura modernizada: a “‘mão-de-obra familiar’, oferecida por pequenos proprietários e posseiros, ‘mão-de-obra volante’, destituída de propriedade ou posse fundiária, e um novo tipo de ‘mão-de-obra qualificada’ voltada para o manejo das incorporações tecnológicas” (op. cit., p. 182). A modernização da agricultura levou à “substituição das antigas e tradicionais formas de trabalho na terra, pela mecanização”, transformando “o antigo morador, agregado ou parceiro, e até mesmo o empregado permanente” em “assalariado sazonal, safrista, volante” (HEINEN, 1996, p. 34), mais conhecido como “bóiafria”. As condições sociais de existência dos trabalhadores rurais em geral tornavam-se cada vez mais precárias, conforme relatório da II Assembléia Geral da CPT Goiás, realizada em agosto de 1978. Uma situação marcada pela “insegurança em tudo”; “medo, pressões, ameaças, ‘cercas’”; ocupação das terras 121 pelo “boi e o capim”; concentração da propriedade em poder de empresas e latifundiários; “falta de financiamentos, insegurança financeira”; “expulsão” pela ação “dos grileiros”; “abandono das terras, despejos, êxodo rural, favelas, inchaço das cidades”; “injustiças dos patrões”; “analfabetismo e prostituição”. Difícil era medir qual categoria vivia em pior situação. Para os participantes daquela Assembléia, era a dos “bóias-frias”. Uma “pesquisa participante”, realizada pela CPT Centro-Sul (Goiás) em 1982, com assessoria do sociólogo José de Souza Martins7, constatou que os “bóias-frias” e “diaristas”8 eram as categorias que estavam submetidas às piores condições de trabalho e de existência. Homens e mulheres eram transportados amontoados em carrocerias de caminhões superlotadas, em precário estado de conservação, sem qualquer segurança, para trabalharem até doze horas por dia em troca de uma remuneração baixíssima. Com a expansão da cultura da cana-de-açúcar no estado, motivada pelo Programa do Álcool Combustível (Pró-Álcool), implementado no governo do general João Baptista Figueiredo (1979-1985), o grupo de “bóias-frias” que assumiu maior destaque foi o dos canavieiros (cortadores de cana). Para esses trabalhadores e os agentes da CPT Goiás, a causa fundamental de todos os seus problemas estava na falta da posse da terra. A expulsão da terra abriu a caixa de Pandora. Os “bóias-frias” ouvidos pela CPT consideravam que o salário era um “engano”. A solução para os seus problemas estava na retomada da posse da terra. Esta constatação foi feita por D’Incao (1983), através de sua pesquisa sobre os “bóias-frias” 7 8 Durante a pesquisa, os trabalhadores se reuniam em grupos nas próprias comunidades e respondiam as perguntas em número de oito (cf. CPT Centro-Sul de Goiás. Uma luta encolhida: bóias-frias e diaristas. Cartilha de formação. Goiânia, 1983, p. 17). A CPT distinguiu as duas categorias pela condição ou situação das refeições que consumiam quando estavam trabalhando: o diarista, “na maioria das vezes, ganha a bóia do patrão, que depois desconta da diária”, enquanto que o bóia-fria “leva a comida no caldeirão e quando chega a comer, ela já está fria”, às vezes estragada. 122 do Médio-Oeste de São Paulo. Heinen verificou que esses trabalhadores assalariados temporários “não assumem a sua atividade como uma verdadeira profissão, preferindo se identificar numa situação transitória ou passageira, em busca de um emprego mais duradouro e com efetivas garantias” (op. cit., p. 130). Grzybowski (1987, p. 71), por seu lado, entende que o fato de os agentes católicos considerarem os trabalhadores rurais assalariados como sem-terra gera “grandes equívocos” em sua prática, na medida em que deixam de levar em conta as particularidades de cada grupo, o que dificulta contribuir para o encaminhamento adequado de suas lutas, tendo em vista as suas reivindicações específicas. Certo é que, a situação de insegurança e medo (medo até de “pensar”), mais do que o desconhecimento da lei e dos próprios direitos, levava os trabalhadores a se manterem afastados de qualquer tipo de organização. Ao mesmo tempo, a desorganização dos “bóias-frias” permitia a reprodução das condições que os mantinham submetidos à superexploração. Embora a Constituição Federal de 1988 tenha estabelecido a igualdade de direitos entre assalariados rurais e urbanos, em meados da década de 1990 Heinen encontrou cem por cento dos “bóias-frias” trabalhando sem qualquer tipo de contrato escrito (op. cit., p. 58). Foi no quadro sócio-histórico descrito acima, agravado pela expansão do sindicalismo oficialista e assistencialista, que os militantes da CPT Goiás optaram por atuarem na organização dos trabalhadores rurais assalariados em sindicatos e apoiar a sua luta por direitos. A opção por priorizar a organização dos trabalhadores rurais (assalariados e não assalariados) em sindicatos teve duas justificativas principais: primeiro, porque estava “claro” que o “sindicalismo [era] fundamental, por ser o caminho legal da organização necessária dos trabalhadores rurais” e, segundo, porque já existia “um grande movimento de fundação de sindicatos, promovido pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura”. Para eles, a sindicalização era um “meio de se criar consciência de classe”, possibilitando a fundação de “sindicatos sérios”. Na definição dos agentes da Pastoral, sindicato sério era aquele “que representava a classe e seus interesses, cumpre a sua finalidade e não se curva diante da ameaça” (II Assembléia Geral). Para ser verdadeira, a entidade teria de ser criada “com o jeito da classe”, a partir da decisão consciente dos próprios trabalhadores, surgida “de baixo para cima”, não como habitualmente se fazia. A direção do sindicato teria de ser exclusividade dos membros da classe, aqueles mais experientes e comprometidos com os seus interesses coletivos. Mas, antes de partir para a fundação de sindicatos, era necessário esclarecer os próprios trabalhadores sobre o que era um sindicato; qual a sua finalidade; como deveria funcionar e quais os passos para a sua criação. A preocupação com este aspecto educativo era justificada pela ignorância de grande parte da classe em relação ao assunto, que, segundo os agentes da Pastoral, confundiam Sindicato de Trabalhador Rural (STR) com Sindicato Rural, dos patrões, e com a própria Igreja. Daí se originando a expressão “sindicato do padre”. Para os agentes da CPT Goiás, somente por meio da “conscientização” seria possível ultrapassar esse nível de consciência. Com vistas a isso, foi adotada a formação como prioridade, constituindo-se no “eixo” que atravessa todas as demais ações do trabalho político-pastoral. Neste setor, a prioridade foi dada à formação de lideranças, especialmente sindicais. No início, as ações da CPT Goiás se concentraram no trabalho essencialmente político da “conscientização” sobre os direitos e a necessidade de organização. À medida que a categoria desenvolveu sua capacidade de mobilização e pressão, o serviço prático de assessoria aos trabalhadores no processo de negociação, objetivando o estabelecimento de Acordos ou Convenções Coletivas com os patrões, assumiu maior relevância. Além de assegurar direitos, esses acordos contribuíram para tornar os sindicatos mais atraentes para os trabalhadores assalariados temporários, embora as conquistas 123 124 obtidas não tenham se traduzido em grandes progressos na organização da categoria. Ao mesmo tempo em que priorizavam a formação dos assalariados temporários para a formação de novos sindicatos, os agentes da Pastoral da Terra Regional Goiás apoiavam as ações dos integrantes da Oposição Sindical dos Trabalhadores Rurais (OSTR/GO) pela conquista das entidades sindicais dirigidas por sindicalistas pelegos, inclusive da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Goiás (Fetaeg). Lançada num mutirão na lavoura do pequeno proprietário José Teixeira, no município de Itaguaru, em 17 de fevereiro de 1979 (cf. REVERS, 1999), a partir de então a OSTR se ampliou com a incorporação de outras lideranças sindicais que se oponham à permanência do oportunista proprietário rural Antônio Bueno na presidência da Fetaeg9. Segundo Revers (op. cit., p. 122), a plataforma de lutas da OSTR/GO consistia de “três eixos”: luta pela terra e por condições satisfatórias para produzir; luta coletiva por direitos e luta contra o “peleguismo sindical, tendo como principal meta destituir do cargo o presidente da Federação e cassar os seus direitos sindicais”. Desde sua criação, a OSTR/GO centralizou a luta pela conquista da direção da Fetaeg, até ser incorporada à CUT Goiás em 1988, na sua Secretaria Rural. Após o afastamento de Antônio Bueno da presidência da Federação (1981), o embate passou a ser com o grupo dirigente composto por lideranças vinculadas ao Partido Comunista do Brasil (PC do B) e por ex-correligionários do presidente deposto. A única eleição para a diretoria da Fetaeg disputada por uma chapa da OSTR foi a de 1988, saindo derrotada por quatro votos de diferença. O primeiro sindicato fundado pelos militantes da Oposição Sindical foi o de Uruana. Sem jamais ter conseguido vencer os grupos que dirigiam a Fetaeg, em 1992, os 9 Presidentes dos STRs de Anápolis, de Bela Vista e de Nova Veneza, respectivamente, Milton do Carmo Rezende, Nelson de Assis Teles e Alírio Corrêa. 125 remanescentes da OSTR compuseram uma chapa única com as lideranças comunistas que controlavam a entidade em aliança com “pelegos”, passando assim a fazerem parte da sua direção. Esse fato permitiu que agentes da CPT Goiás passassem a prestar assessorias e a influenciar a atuação da direção da entidade, tendo sido adotado o sistema de Secretarias de setores específicos (assalariados, produção familiar, política sindical, formação), defendido pela Pastoral e pelos militantes da Oposição Sindical. Em virtude desse envolvimento com o movimento de Oposição Sindical, a CPT Goiás participou ativamente da formação da Central Única dos Trabalhadores no estado. A atuação dos seus agentes, porém, não se limitou a esse momento de gênese. Durante vários anos e em muitas ocasiões eles cooperaram estreitamente com as atividades desenvolvidas pela Central ou pelos grupos congregados na sua corrente hegemônica – a Articulação Sindical. Entre 1991 e 1993, a CPT Goiás integrou o Coletivo de Formação da CUT Goiás. Ao longo desse período de atuação, as conquistas obtidas pelos trabalhadores rurais, inclusive uma maior liberdade de organização, além da igualdade de direitos trabalhistas e sociais com os trabalhadores urbanos, não foram suficientes para concretizar as mudanças estruturais e alterar as práticas dos dirigentes sindicais na profundidade e extensão propugnadas pela CPT Regional Goiás. O sentimento relativo aos sindicatos conquistados ou fundados por lideranças vinculadas à Oposição Sindical foi de frustração. Já em 1983, os participantes da VI Assembléia Geral da Pastoral inferiam que as lideranças estavam absorvidas pela estrutura sindical, sem tempo para o “trabalho de base”. A saída proposta para a superação dos impasses em que se encontrava a organização sindical foi: a descentralização do poder, através da repartição das tarefas, encarada como um meio de possibilitar “o surgimento de novos militantes, animadores e líderes”. Numa avaliação feita em 1990, a Coordenação Ampliada da Pastoral apontava os fatores 126 geradores da crise: o fracionamento dos trabalhadores do campo em várias categorias; o “peleguismo” dos dirigentes; o corporativismo reforçado pela estrutura oficial e a desorientação dos trabalhadores provocada pelas disputas entre as correntes sindicais. Ainda assim, insistia na criação de novos sindicatos e reafirmava a necessidade de “fortalecer o Movimento Sindical”. B) A prioridade à luta pela terra O ascenso das lutas dos trabalhadores rurais pela terra em Goiás se deu no mesmo contexto da luta por direitos trabalhistas e políticos. As expulsões de milhares de famílias do campo transformadas em sem-terra, por vezes, culminaram em conflitos e até mortes. Entre 1974 e 1986, foram assassinadas 63 pessoas no campo no estado10. Durante a década de 1970 foram inúmeros os casos de tentativas de expulsão de posseiros mediante ações de grilagem. Na década seguinte, dada a crescente valorização das terras determinada pela procura para grandes empreendimentos agropecuários, os conflitos motivados por grilagem aumentaram em Goiás. Muitos contaram com a resistência apenas individual dos camponeses ocupantes. Em outros casos, a reação organizada permitiu que os posseiros assegurassem a regularização das posses pelo poder público. Em todo o país, a crescente radicalização dos conflitos no campo provocou importantes respostas por parte da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), do Estado e da Igreja. A resposta da Confederação às demandas dos camponeses e dos trabalhadores sem-terra foi dada, inicialmente, no III Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais em 1979. Os participantes desse encontro definiram a efetivação da reforma agrária como condição para a redemocratização do país. Visto desacreditarem na eficácia do Estatuto da Terra, como mecanismo de redistribuição da terra aos que dela precisavam para produzir e viver, aprovaram a resistência organizada dos posseiros à expulsão, o que já vinha ocorrendo, e a realização de ocupações das grandes propriedades improdutivas11. Levadas a efeito, essas resoluções haveriam de acirrar os conflitos entre os trabalhadores e os latifundiários. A esse recrudescimento dos conflitos no campo o governo do general Figueiredo respondeu com a instituição do Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins (GETAT), do Grupo Executivo do Baixo Amazonas (GEBAM) e a criação do Ministério Extraordinário para Assuntos Fundiários (MEAF). Ao GETAT, instituído em 1980, competia encaminhar as soluções para a questão fundiária na área mais conflituosa do país naquele momento, formada pelo sudeste do Pará, Bico do Papagaio (norte do atual estado do Tocantins) e oeste do Maranhão. A criação desse órgão representou o passo mais importante do regime ditatorial no processo de “militarização da questão agrária” (MARTINS, 1985). O GEBAM foi criado meses depois do GETAT, “com características semelhantes” (MEDEIROS, op. cit., p. 161). Com a instituição do MEAF, em 1982, o governo militar avançou mais ainda no processo de militarização e federalização da questão agrária. Quanto à Igreja, o posicionamento mais consistente da sua hierarquia frente à questão agrária foi tomado através do documento Igreja e problemas da terra, aprovado na XVIII Assembléia Geral da CNBB em 1980. Esse documento representou um reforço à posição da CPT. Os bispos identificaram na concentração da propriedade fundiária a causa fundamental do sofrimento e da miséria das massas rurais. A responsabilidade por tal situação caberia a toda a sociedade, mas principalmente, aos que impunham ao país “um sistema de vida e trabalho que enriquece uns poucos às custas da pobreza 10 11 Em todo o Brasil foram mais de 690 mortes provocadas por conflitos no campo, entre 1975 e 1984 (cf. MST, 1987). 127 Sobre as resoluções desse congresso, consultar: MEDIROS, 1989, p. 117; TEDESCO, 1995. 128 da maioria” (CNBB. Documento citado, nº 31). A superação do problema passaria pelo reconhecimento de um princípio bíblico ontológico: a terra é um dom de Deus a todos os homens. Agora, o discurso religioso, equivalente da noção metafísica do direito natural de propriedade, servia à causa dos espoliados não à dos espoliadores, como antes ocorria. Tendo como referência esta divisa, os bispos opunham o sentido atribuído pelo camponês-posseiro à propriedade da terra à concepção do proprietário capitalista: “terra de trabalho” versus “terra de negócio” ou “de exploração” (ibidem, nº 84 e 85). Assim, a permanência da questão agrária expressa no acirramento dos conflitos sociais no campo no final dos anos 1970 e início dos 80 impôs aos dirigentes sindicais, ao Estado militar e à Igreja uma tomada de posição de modo a responder às demandas dos trabalhadores por terra, cada um a seu modo e com distintos propósitos. 1) A campanha contra o Projeto JICA A efetiva atuação da CPT Goiás na luta dos trabalhadores do campo pela terra se iniciou com as mobilizações contra a implantação do Programa de Desenvolvimento do Cerrado – Prodecer – vulgarizado como Projeto JICA12 e com a prestação de assessoria jurídica e apoio político a posseiros na resistência à grilagem. Em sua primeira fase, o Prodecer/JICA foi implantado na forma de um projeto piloto na região de Coromandel, oeste de Minas Gerais, a partir de 1979, com a finalidade de produzir soja, milho, sorgo, café, eucalipto e trigo. Dirigido pela Companhia de Promoção Agrícola – CAMPO – criada pelo governo federal com 49% de participação do capital japonês, o Projeto elaborado pela JICA, ocupava uma área de 50 mil hectares. Na segunda fase, iniciada em 1985, o Prodecer 12 JICA – Japan International Cooperation Agency – na verdade, era um órgão do governo japonês que visa a criar oportunidades para a inversão de capital em outros países. 129 deveria abranger 200 mil hectares nos estados de Goiás (municípios de São João D’Aliança, Formosa, Planaltina, Catalão, Campo Alegre, Ipameri e Cristalina), Bahia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, além de Minas Gerais (cf. CPT Minas Gerais, 1985, p. 2425; OSADA, s/d). Posteriormente, foram planejadas mais duas etapas: o Prodecer III, em 1997, e o IV, em 1999, incorporando áreas de outros estados do Nordeste e Amazônia (OSADA, op. cit.). Com a efetivação do Projeto de Desenvolvimento do Cerrado o governo brasileiro pretendia gerar grandes excedentes e aumentar as exportações. Porém, para centenas de milhares de camponeses o principal efeito seria a expulsão das terras por ele incorporadas. Ao tomar conhecimento desse Projeto13 e das suas projetadas conseqüências prejudiciais aos trabalhadores rurais, os agentes da CPT Centro-Sul de Goiás iniciaram a mobilização dos camponeses, da Igreja e de setores populares contra a sua implementação. A IV Assembléia Geral da entidade (6 a 10 agosto de 1980) teve como tema central a luta contra o Prodecer. Já no final de setembro daquele ano, a Coordenação Ampliada se reunia para avaliar a campanha. Os resultados oscilaram entre o engajamento de alguns bispos e a indiferença de uma parcela das comunidades locais mais distantes das áreas até então afetadas pelo projeto. As várias assembléias locais não foram suficientes para motivar o envolvimento massivo nem dos sindicatos. Exatamente os pequenos proprietários que, segundo as previsões dos agentes da Pastoral da Terra, seriam os principais atingidos não se convenceram da ameaça que o Projeto JICA 13 Segundo informação da brochura Para quem fica nossa terra, para onde vai nosso povo, já citada, os agentes da CPT Goiás tomaram conhecimento do Projeto JICA em maio de 1980, através de uma reportagem publicada no semanário Cinco de Março (Goiânia, 19-25 de maio de 1980, p. 5) com base em denúncias feitas pelos deputados federais Hélio Duque, do Paraná, Jader Barbalho, do Pará, e Fernando Cunha, de Goiás, todos do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). 130 representava. Faltavam elementos concretos para tanto. Afinal, até aquele momento a sua implantação havia se restringido a alguns municípios mineiros sem que os seus efeitos negativos fossem imediatamente perceptíveis fora daquela área. Diante dessas dificuldades, o movimento diminuiu o seu impulso inicial, voltando à tona depois da posse dos governadores eleitos pelo partido de “oposição” ao regime militar, PMDB, em Minas Gerais e em Goiás, em março de 1983, que se posicionaram favoráveis à continuidade do Projeto. Após 1990, não se verifica qualquer referência ao assunto nos documentos da CPT Goiás. Distintamente do que ocorrera na campanha contra o Projeto JICA, nos casos de resistência de posseiros à expulsão os agentes da CPT Goiás não assumiram funções de direção. O seu apoio às vítimas de grilagem, em geral, deu-se através de denúncias públicas, prestação de assessoria jurídica e mediação nas negociações junto às instituições do Estado. Em alguns momentos, tentou-se agir preventivamente, reivindicando do poder público a regularização das ocupações antigas por meio da concessão dos títulos de propriedade aos posseiros. Entretanto, nos primeiros anos da década de 1980, a ênfase maior foi dada aos conflitos provocados pelas ações dos grileiros. Dentre os inúmeros casos de luta de posseiros contra a expulsão em que a CPT Goiás atuou como “apoio solidário” aos trabalhadores, destacam-se os da fazenda São João, município de Montes Claros, fazenda Mamoneiras, município de Fazenda Nova, fazenda Maria Alves, município de Itapuranga, e fazenda São João do Bugre/Estiva, município de Goiás. Estas experiências foram de fundamental importância para o desenvolvimento das ações posteriores da luta pela terra no estado, desenvolvidas na forma de ocupações coletivas de propriedades consideradas improdutivas pelos próprios trabalhadores e agentes da pastoral, que se tornaram mais freqüentes a partir de 1985. Mas antes disso, em 1983, a CPT Regional promoveu no estado, em conjunto com outras entidades, a Campanha Nacional pela Reforma Agrária. 131 132 1) A Campanha pela Reforma Agrária Segundo relato de Dom Tomás Balduino, a Campanha Nacional pela Reforma Agrária promovida pela CPT, CNBB, Contag, Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas do Rio de Janeiro (IBASE) e a Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), lançada em 28 de abril de 1983, surgiu em Britânia (extremo-oeste do estado de Goiás) (Entrevista concedida a Fernando de Brito em...). Tudo começou com a proposta de criação de uma lei que destinasse 20% das terras das fazendas para o cultivo de alimentos. A sugestão partiu de camponeses não-proprietários que, no período da vazante cultivavam as terras baixas às margens do Lago dos Tigres no referido município goiano. Dom Tomás Balduino levou a proposta aos sociólogos Herbert de Souza, o Betinho, do IBASE, e José de Souza Martins, da Universidade de São Paulo, à época, assessor da CPT Nacional. Betinho entrou em contato com outras organizações e num primeiro encontro entre seus representantes a proposta dos 20% foi transformada na Campanha Nacional pela Reforma Agrária, visto que consideraram aquele percentual insuficiente para solucionar os problemas dos camponeses sem-terra (cf. REVERS, op. cit., 143). Em Goiás, a campanha foi inaugurada no dia 30 de novembro daquele ano com uma passeata que reuniu em Goiânia cerca de seis mil pessoas vindas de 64 municípios. A data foi escolhida em função de coincidir com o 19º aniversário da aprovação do Estatuto da Terra pelo regime militar. O objetivo político mais importante da Campanha era unir os trabalhadores do campo e da cidade e grupos aliados na luta pela reforma agrária, visto ser compreendida como uma medida que interessaria a toda a sociedade. E para que atendesse, de fato, às necessidades dos diretamente interessados, teria de ser feita “sob o controle dos trabalhadores”. Este, o lema do movimento. Apesar de promover a campanha, a CPT nunca formulou uma proposta prática de reforma agrária, limitando-se a apoiar a luta dos trabalhadores por esse objetivo. O esforço de convencimento da necessidade e importância de se fazer a reforma agrária encontrou algumas resistências. Além da compreensível oposição dos grandes proprietários, muitos camponeses donos de pequenas glebas temiam a intervenção na estrutura fundiária. Um temor que foi explorado pelos maiores inimigos da reforma agrária, reunidos na União Democrática Ruralista (UDR), fundada em Goiânia em 1985. Na época, a CPT Regional constatava “a grande dificuldade dos pequenos proprietários se integrarem na luta pela reforma agrária”. Com o início das ocupações de propriedades improdutivas no estado pelos sem-terra, a Campanha assumiu forma mais concreta e se tornou uma ação permanente, a partir de 1985, conferindo maior visibilidade política à categoria dos sem-terra. As primeiras ocupações efetivadas na década de 1980 no estado de Goiás se inserem num contexto mais amplo em que esta forma de ação direta já era desenvolvida em outras regiões do país (cf. FERNANDES, 1999, p. 75; IOKOI, 1996, p. 67147). Das lutas no Sul do Brasil surgiu o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, com o apoio da CPT. Fundado em janeiro de 1984 em Cascavel, sudoeste do Paraná, sob o lema ocupar, resistir, produzir, o Movimento se propôs a lutar pelo fim da exploração do homem pelo homem, organizar os trabalhadores rurais na base, estimular a sua participação no sindicato e no partido, formar lideranças e construir uma direção política dos próprios trabalhadores e ainda, articular- se com os trabalhadores da cidade e da América Latina (FERNANDES, op. cit., p. 79). Em janeiro de 1985, o MST realizou seu primeiro Congresso, quando reafirmou as ocupações como principal forma de luta pela terra. Naquele mesmo ano se instalava o governo da “Nova República” (1985-1989) com a incumbência de completar o processo de transição político-jurídica para a democracia, mediante a elaboração de uma Nova Constituição por uma Assembléia Nacional Constituinte. Também em maio de 1985 a Contag realizou em Brasília o IV Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais. Nesse encontro, o presidente da República, José Sarney, apresentou a primeira versão da proposta do 1º Plano Nacional de Reforma Agrária. Aprovado em 10 de outubro daquele ano (Decreto nº 91.766), o 1º PNRA projetava assentar 1,4 milhão de famílias entre 1985 e 1989. Os beneficiários da reforma agrária seriam trabalhadores rurais sem-terra, posseiros, parceiros, arrendatários, assalariados do campo e minifundiários. Segundo o Relatório de atividades do INCRA (2001), ao final dos cinco anos de vigência do PNRA, apenas 6,43% das famílias foram assentadas em 10,55% da área pré-estabelecida. Em Goiás foram assentadas apenas 1,28% das 125 mil famílias previstas em 0,49% da área estipulada. Menos de um mês antes do anúncio da primeira proposta do PNRA, vinte e três famílias de sem-terra ocuparam a fazenda Mosquito, município de Goiás. O encorajamento do grupo para enfrentar o desafio veio das lutas vitoriosas dos posseiros das fazendas Maria Alves e São João do Bugre/Estiva, nos municípios de Itapuranga e Goiás, respectivamente. Embora os trabalhadores que participaram dessas ações tenham sido fortemente influenciados pelo “trabalho de conscientização” dos agentes de pastoral da Diocese local e da Pastoral da Terra Regional, a decisão de fazer valer o seu direito à terra coube aos próprios trabalhadores. Após a difícil luta das famílias de semterra pela fazenda Mosquito, muitas outras se seguiram em vários municípios do estado, mas com tendência a se concentrar 133 134 2) Ocupações: a reforma trabalhadores sem-terra agrária feita pelos na região da Diocese da cidade de Goiás. A partir de então, os acampamentos e ocupações se tornaram práticas comuns da luta pela terra em território goiano. De 1985 a 1989 foram registrados 194 conflitos, envolvendo 234.023 pessoas, resultando em 344 despejos judiciais (CPT. Conflitos de Terra, 1985-1989). No movimento de ocupação e formação de acampamentos de sem-terra, a CPT Regional Goiás foi mais ativa do que nos casos de resistência dos posseiros contra a grilagem. Além de contribuir com mais freqüência com a organização direta das ações, os seus agentes foram os principais articuladores de um núcleo do MST no estado e cumpriram importante papel na encampação da luta pela terra por parte das entidades sindicais, especialmente a Fetaeg. A iniciativa de criar a Secretaria do MST partiu dos próprios integrantes da Pastoral da Terra em conjunto com agentes de pastoral da Diocese de Goiás. Este fato coincidiu com o início da luta pela conquista da fazenda Mosquito. A estruturação da Secretaria se deu a partir do Primeiro Encontro dos Trabalhadores Sem Terra do estado, realizado no período de 2 a 5 de janeiro de 1986. A intenção confessa dos agentes da CPT, ao apoiar a formação do MST no estado, era levar os sem-terra a constituir uma organização própria capaz de tornar a luta pela terra mais eficaz, já que os sindicatos não a assumiam conforme as circunstâncias exigiam. Entretanto, esse apoio não foi suficiente para fazer do Movimento uma força político-organizativa de referência para a categoria até o início dos anos 1990. Ao mesmo tempo em que a CPT procurava organizar os trabalhadores sem-terra e apoiar as suas ações, os grandes proprietários também se articulavam na UDR. Para Ronaldo Caiado, seu fundador e primeiro presidente, a ocupação de propriedades improdutivas (terminologia rechaçada por ele) se constituía um ‘crime’; os acampamentos eram ‘a miséria amontoada nas estradas’, a ‘socialização da miséria’ e os assentamentos não passavam de “favelas rurais”. Além dos ataques verbais aos defensores da reforma agrária, a UDR utilizava do recurso às armas. Para tanto realizava leilões de gado para montar seu arsenal. Foram vários os casos de assassinatos e atentados contra trabalhadores rurais, líderes sindicais, padres e agentes de pastoral em que os fazendeiros ligados à UDR foram apontados como mandantes. Porém, sua maior vitória foi ter contribuído para a derrota de uma proposta popular de reforma agrária no Congresso Constituinte em 1988. 3) A aposta na reforma agrária via institucional e a retomada da luta direta pela terra A partir da segunda metade da década de 1980, a CPT Goiás avançou ainda mais no terreno institucional. Entre 1986 e 1988, a maior preocupação dos seus militantes foi com a mobilização dos trabalhadores rurais em articulação com outras pastorais sociais da Igreja e organizações populares urbanas em torno do Congresso Constituinte. Nesta frente de ação política, a sua atenção se concentrou na campanha pela inclusão da Proposta Popular de Reforma Agrária no projeto da Nova Constituição. De entrada, o primeiro artigo da Proposta reafirmava a função social (“obrigação social”) da propriedade fundiária: “Ao direito de propriedade de imóvel rural corresponde uma obrigação social” (O plantador, Goiânia, mar./abr. 1987, nº 6, p. 5). Esta seria cumprida quando a gleba fosse “racionalmente” aproveitada; conservasse os recursos naturais e preservasse o meio ambiente; observasse a legislação trabalhista e não motivasse “conflitos ou disputas pela posse ou domínio”; não excedesse “a área máxima prevista como limite regional” e respeitasse “os direitos das populações indígenas” que vivessem “nas suas imediações”. Caso não atendesse a esses requisitos, o seu proprietário seria sumariamente expropriado e o imóvel destinado à reforma agrária. Além de estabelecer critérios para desapropriação e indenização das propriedades, a proposta previa ainda: limites para as glebas de área contínua (60 módulos regionais, somando 135 136 ao todo 1.000ha); suspensão das “ações de despejos e reintegração de posse contra arrendatários, parceiros, posseiros e outros trabalhadores” que mantivessem relações de trabalho com o proprietário, ainda que de cunho indireto; vedação da posse de terrenos superiores a três módulos regionais a pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras; aplicação do instituto do usucapião após três anos de efetiva ocupação de áreas não superiores a três módulos regionais; proibição da venda dos lotes por parte dos beneficiários da reforma agrária e direito de participação dos trabalhadores nas instâncias decisórias públicas sobre assuntos de reforma agrária com, no mínimo, 50% dos votos (ibidem, p. 5 e 6). Essa proposta nasceu das discussões com os trabalhadores rurais e especialistas no assunto. O fato de contar com cerca de 1,5 milhão de assinaturas de eleitores de todo o país, não evitou sua rejeição pela maioria conservadora dos constituintes. Apesar de mantido o princípio da ‘função social da propriedade’ no texto constitucional, as possibilidades de desapropriações para fins de reforma agrária foram restringidas pela ressalva de que a propriedade produtiva é insuscetível de desapropriação. Na prática, isso significava manter a estrutura agrária do país inalterada e mais de quatro milhões de famílias de trabalhadores sem-terra impossibilitadas de ter acesso à terra. Perdida a batalha pela reforma agrária na Constituinte, a CPT passou a canalizar as esperanças dos trabalhadores para a eleição do candidato do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio da Silva, o Lula, para presidente da República em 1989. A possibilidade de eleição do ex-operário Lula era encarada por grande parte dos defensores da reforma agrária como o caminho mais curto para a sua concretização. Imbuídos dessa crença, os agentes da CPT Goiás se engajaram na campanha. Mas o candidato petista não conseguiu se eleger. Com a derrota de Lula foram-se as esperanças de realização da reforma agrária a curto prazo. 137 Esses dois fracassos consecutivos da reforma agrária – na Constituinte e na disputa eleitoral para a Presidência da República – produziram uma certa confusão e a paralisia política de parcela importante dos militantes da causa, inclusive dos agentes da CPT. Essa situação, decorrente do profundo envolvimento com as lutas institucionais, coincidiu com um acentuado refluxo do movimento ocupacionista no Brasil e em Goiás. Sumariamente, podemos apontar quatro razões para explicar a queda do número de ocupações realizadas em Goiás no período de 1988/89 a 1991: 1. O já mencionado envolvimento dos “agentes mediadores” da luta pela terra no processo político-institucional (eleições, Assembléia Constituinte) e o conseqüente afastamento da organização e apoio às ações diretas. 2. O reflexo da derrota da candidatura de Luiz Inácio da Silva à Presidência da República, combinado com os efeitos da desagregação do chamado “socialismo real”, a partir de 1989 com a queda do Muro de Berlim, e as expectativas geradas pelo discurso do presidente Collor de Mello em favor dos “descamisados” (pobres) e de seu primeiro plano econômico (Plano Collor I)14. Aqui deve ser incluído o fechamento do governo Collor ao diálogo com os setores organizados da sociedade civil (CPT Regional Goiás, “A luta pela terra em Goiás”, 1992). 3. A debilidade da organização dos trabalhadores rurais sem-terra. O MST apresentava muita dificuldade para atuar na mobilização da categoria, não possuía nem quadros nem recursos financeiros nem infra-estrutura suficiente. Os sindicatos, por seu lado, encontravam-se enfraquecidos 14 O Plano Collor I consistiu numa série de medidas, que incluiu o congelamento de contas correntes e de poupança, visando a combater a inflação e o déficit público, com apenas “um tiro”. Com o seu fracasso, um ano depois o governo editou o Plano Collor II que não gerou as mesmas expectativas do primeiro nem produziu os mesmos efeitos sobre as taxas de inflação. 138 financeira e organizativamente. Além do mais nunca assumiram, de modo efetivo, a luta pela terra, muito menos as ocupações. 4. Por fim, a emergência da luta pela permanência na terra – luta na terra – provocada pela necessidade de garantir condições satisfatórias à reprodução social das famílias assentadas (ex-sem-terra) e dos pequenos produtores tradicionais no campo. As demandas por uma política agrícola diferenciada para a pequena produção, ou produção familiar como passou a ser designada, por melhores condições de produção e comercialização levaram à abertura de uma nova frente de luta, provocando o redirecionamento das ações e dos recursos da Pastoral da Terra. A combinação de todos esses fatores repercutiu profundamente no desenvolvimento da luta pela terra, gerando o seu refluxo. A luta direta pela terra em Goiás foi retomada em 1992, com a ocupação da fazenda União, município de Mundo Novo, por cerca de 400 famílias sem-terra originárias de vários municípios goianos. Após o despejo dos ocupantes determinado pela justiça, seguiu-se um longo e conflituoso processo de negociação entre o fazendeiro, o INCRA e os trabalhadores assessorados pela CPT Goiás e pela Fetaeg, resultando no assentamento de apenas quarenta famílias na gleba Zebulândia, situada no município de Mara Rosa (INCRA SR-04/GO. Relação dos Projetos de Assentamento da SR-04/GO. 2002). As demais se dispersaram por outros projetos ou formaram novos acampamentos em outros municípios do estado. Além dessas áreas de terra do noroeste goiano, em 1992 foram ocupadas as fazendas Pouso Alegre (31 famílias), no município de Barro Alto (meio-norte), Serra Negra (63 famílias), em Bom Jardim de Goiás (oeste), Piratininga (31 famílias), município de Formosa (leste) e São Carlos (215 famílias), no município de Goiás (CPT. Conflitos no campo Brasil 1992, p. 78). Nesta nova fase, o movimento ocupacionista apresentou algumas características distintas das do período anterior. Uma delas foi a desconcentração geográfica. Enquanto até 1987/88 a maioria das ações havia se limitado à região da Diocese de Goiás, a partir de 1992 a tendência foi a expansão para o noroeste/norte e sudoeste do estado. Uma segunda característica foi a elevada média anual do número de ocupações. Entre 1995 e 2001, foram efetivadas 22,7 ações de apossamento por ano. Um terceiro aspecto a destacar é a assumência em escala mais ampla desta forma de luta pela terra por parte da Fetaeg, apesar de muitos sindicatos permanecerem numa posição tímida frente à questão. Esse novo posicionamento da Federação se explica, principalmente, pela entrada de sindicalistas egressos da Oposição Sindical em sua direção e pela maior influência política exercida pela CPT Goiás na orientação das suas ações. De modo geral, o encaminhamento de soluções para os problemas sociais que afetam as classes subalternas depende da sua capacidade de pressão. Em certa medida, a inércia dos governos presididos por Fernando Collor de Melo e seu vice e sucessor, Itamar Franco (1992-1994), frente à questão agrária refletiu o grau de desmobilização dos movimentos de luta pela terra. O número médio anual de assentamentos realizados no período não ultrapassou os 74 em todo o país e 1,4 no estado de Goiás (INCRA. Relatório de Atividades INCRA 30 anos. 2001; INCRA SR-O4/GO. Relação dos projetos de Assentamentos da SR-04/GO. 2002). Essas realizações são inferiores ao que foi feito pelo governo da “Nova República”, cuja média anual de assentamentos foi de 103 projetos em todo o território nacional e dois em Goiás. Nos anos de 1990 a 1992 não se registrou uma só desapropriação no estado de Goiás. Nos oito anos seguintes, correspondentes aos dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso (19952002), o quadro da questão agrária sofreria pouca alteração, a não ser quanto à dinamização das ações diretas empreendidas pelos principais interessados na redistribuição das terras rurais, culminando numa verdadeira explosão das ocupações, especialmente nos anos 1996 e 2000. A política agrária daquele 139 140 governo apresentou três traços fundamentais: 1) o esforço de substituir o Estado pelo mercado como principal agente da reforma agrária (“reforma agrária de mercado”: programas Cédula e Banco da Terra)15; 2) a tentativa de descentralização de sua execução, transferindo a maior parte da responsabilidade do governo federal para os governos estaduais e municipais (“Projeto Casulo”, Projeto Crédito Fundiário e Combate à pobreza Rural); e 3) a diversificação dos instrumentos de política agrícola (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf). Para planejar e encaminhar sua política agrária o governo central criou o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), ao qual vinculou o INCRA. Além disso, constituiu uma ampla legislação para regular tais ações. Na tentativa de reduzir a pressão dos sem-terra, o governo Fernando Henrique procurou combinar a criação dos programas já mencionados com campanhas publicitárias em que apresentava suas realizações no setor e atacava veladamente os seus críticos, especialmente o MST. A medida jurídica mais dura tomada por esse governo contra as ocupações de propriedades improdutivas foi a Medida Provisória nº 2.109-48/2001, que, no seu artigo 4º, parágrafo 6º estabeleceu: “O imóvel rural objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado nos dois anos seguintes à desocupação do imóvel”. Esse prazo dobraria, em caso de reincidência da “invasão” (§ 7º), e os incitadores ou praticantes do ato ficariam proibidos de receber recursos públicos (§ 8º). No estado de Goiás essas determinações foram aplicadas aos casos das fazendas Palmeiras, município de Guapó, e Porteirão, município de Caiapônia, alvo de ocupação pelos sem-terra. Entre 1995 e 2001 foi criada uma média de, aproximadamente, 750 assentamentos de reforma agrária no Brasil e de 19 em Goiás (INCRA. Balanço da Reforma Agrária, 15 A expressão “reforma agrária de mercado” era usada pelos críticos da política agrária do governo em sentido pejorativo. 141 2000; MST. Assentamentos 2001; INCRA SR-04/GO. Relação dos Projetos de Assentamentos da SR-04/GO, 2001). Os números oficiais geralmente foram considerados falsos pelos movimentos de luta pela terra e seus aliados, incluída a CPT. De qualquer modo, mesmo que os números apresentados pelo governo fossem inteiramente verdadeiros, a solução da questão agrária no país ainda se encontrava muito distante de ocorrer, até porque a expulsão das famílias do campo não foi estancada durante esses anos. Nesse período, a CPT Regional Goiás procurou se manter sintonizada com a posição dos movimentos de trabalhadores sem-terra mais ativos, isto é, de crítica e confronto com a política agrária do governo central. Os seus agentes avaliaram o programa Banco da Terra como “um mecanismo concentrador de renda” com o objetivo político de “acabar com a organização dos trabalhadores(as)” (CPT Regional Goiás, Relatório de atividades CPT Goiás 1999). Também se posicionaram contra a proposta de descentralização da execução da reforma agrária, por considerar que a maioria dos estados e municípios era administrada “por representantes do latifúndio”, em cuja prática política prevalece “o poder de barganha”. Se prevalecesse a descentralização, a grande maioria desorganizada dos trabalhadores rurais sem-terra, com poder de pressão quase nulo, dificilmente teria sua demanda por terra atendida, diante da bem articulada elite de proprietários rurais. Não obstante isso, a CPT Goiás admitiu a “descentralização dos serviços acessórios”, tais como a “construção de escolas, estradas, postos de saúde e rede elétrica” nos assentamentos. Quanto à sua atuação junto aos trabalhadores rurais, no período em questão, a CPT Goiás procurou reforçar seu “trabalho na base”, participando da organização dos sem-terra e apoiando os pequenos produtores na busca de condições favoráveis à sua permanência na terra. Imbuídos da autoatribuída missão “de interligar, assessorar e dinamizar os que trabalham em favor dos homens sem terra e dos trabalhadores rurais”, 142 os agentes da CPT Regional atuaram no sentido de promover a aproximação entre o MST e a Fetaeg. Apesar de integrarem articulações plurais mais amplas, como o Fórum pela Reforma Agrária e Justiça no Campo, esta unidade prática nunca foi alcançada. Ainda no que concerne à luta pela terra, a CPT Goiás integra a Campanha pelo Limite da Propriedade da Terra no Brasil, promovida por aquele Fórum16. Este movimento corresponde, na verdade, a uma nova Campanha pela Reforma Agrária, que tem como ação concreta a coleta de assinaturas em apoio a uma proposta popular de emenda constitucional que estabeleça limites ao tamanho das propriedades rurais de acordo com a região do país. A importância deste movimento está mais na sua função estratégica de fomentar o debate acerca da estrutura fundiária do país e da necessidade de transformá-la do que na proposta da emenda em si, visto ser pouco provável a sua aprovação pelo Congresso Nacional, dada a predominância das forças políticas que se opõem à reforma agrária naquela instituição. C) A ênfase na luta pela permanência na terra Como já indicado, na década de 1990, a luta dos pequenos produtores agrícolas ou produtores familiares (cf. CAUME, 1997, p. 18), particularmente os assentados, pela permanência na terra – luta na terra17 – assumiu importância crescente na atuação da CPT Goiás. Esta preocupação foi adotada como linha prioritária de ação a partir de 1990. A este 16 O Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo é integrado por 33 entidades, dentre as quais se incluem a CPT, o MST, a Contag (Fetaeg em Goiás) e a CNBB. Cf. Cartilha da Campanha pelo Limite da Propriedade no Brasil. Repartir a terra para multiplicar o pão. Brasília, s/d. p. 24. 17 A luta na terra consiste num conjunto de ações que visam a consecução de condições necessárias e satisfatórias à reprodução social do agricultor familiar. 143 respeito, a Coordenação Executiva proclamou que, a partir de então, o objetivo era garantir os assentamentos. Este redirecionamento do trabalho, que coincidiu com o já exposto enfraquecimento do movimento ocupacionista, partiu da constatação das grandes dificuldades enfrentadas pelas famílias assentadas resultantes do “completo abandono” a que foram relegadas pelos “órgãos governamentais”. Na verdade, era necessário dar um novo sentido ao trabalho da entidade, dada a forte crise que ela atravessava. De todas as medidas que visavam garantir condições para a reprodução do agricultor familiar, a política agrícola se constituiu na mais importante, embora a CPT Goiás tenha promovido e apoiado várias outras iniciativas de luta na terra, destacando-se: ações pelo desenvolvimento e disseminação de uma “agricultura alternativa” ou ecológica; atividades de capacitação dos agricultores (cursos, seminários, atividades de extensão); apoio à sua organização em associações, cooperativas e sindicatos; auxílio aos pequenos produtores na busca de formas alternativas de comercialização e apoio às ações pela melhoria da educação no meio rural. Em certa medida, a reivindicação por uma política agrícola esteve sempre associada à luta pela reforma agrária, tornando-se mais exigida a partir das primeiras conquistas de terras na segunda metade dos anos 1980. Assim como ocorre com a reforma agrária, a CPT nunca formulou uma proposta de política agrícola acabada, limitando-se, na maioria das vezes, a enunciados genéricos. Diante dos problemas que afetam a produção familiar como um todo, os agricultores compreenderam que somente organizados poderiam enfrentar com algum sucesso as dificuldades que os atingiam coletivamente. Embora existissem sindicatos constituídos em grande parte dos municípios goianos, a tendência predominante foi a formação de Associações de Pequenos Produtores. Conforme apurou Bittencourt (1995, p. 94), essa preferência se explica pelo fato de as associações, segundo os agricultores, contemplarem melhor as demandas da 144 produção familiar, “enquanto que o sindicato volta-se principalmente para o assalariado rural”. Neste ponto, a vantagem das associações está no fato de que congregam interesses mais homogêneos e número menor de membros. “Os sindicatos”, afirma a autora, “não conseguiram atender à questão da capitalização do produtor porque, em geral, assumem várias bandeiras, muitas delas políticas, ao passo que a associação torna-se uma ‘ferramenta’ que responde diretamente à questão da capitalização”. Neste sentido, o Fundo Constitucional do Centro-Oeste (FCO)18 cumpriu o papel de “mola mestra do processo” de organização em associações. Embora as primeiras associações tenham surgido bem antes de 1989, foi com a regulamentação do FCO que houve uma verdadeira explosão na fundação desses organismos. Segundo informações oficiais da EMATER-GO, em 1991 existiam 311 associações; em 1992 já eram 419 e, no ano seguinte, ultrapassavam as seiscentas. Com o aumento do índice da correção monetária – de 50% para 80%, depois 100% – que incidia sobre o valor do empréstimo, várias delas foram praticamente desativadas. Quanto às formas de articulação das associações em organismos mais amplos, a CPT Goiás tendeu a estimular a sua integração aos sindicatos, apesar de, em 1995, admitir que estes ainda não haviam conseguido “pensar as ações como produção, organização e comercialização”. Ainda no âmbito da organização específica dos produtores familiares, a CPT Goiás incluiu entre suas ações a criação de cooperativas. De acordo com Bittencourt, entre o sindicato, a associação e a cooperativa esta última é a que menos atrai a categoria. A restrição dos pequenos agricultores a este tipo de organização deve-se ao fato 18 O FCO e os Fundos Constitucionais do Nordeste (FNE) e do Norte (FNO), estão previstos na Constituição Federal de 1988, tendo sido regulamentados pela Lei nº 7.827, de 27 de setembro de 1989. Um dos critérios fundamentais para o acesso aos créditos do FCO é que os candidatos participem de uma associação, visto que o financiamento é concedido por seu intermédio. 145 de que “na medida em que se tornam fortes e crescem, seus sócios perdem o controle das mesmas e não participam do poder decisório” (op. cit., p. 94). Apesar dessa desconfiança dos camponeses em relação às cooperativas, a Pastoral da Terra insiste em estimular esta forma de organização. Para a entidade, essas formas associativas são importantes para garantir a reprodução social dos camponeses, mas também porque representam um embrião das relações socioeconômicas e políticas da “nova sociedade”. Portanto, promover o associativismo significa lançar as bases de uma sociedade “sem exploradores nem explorados”. Este, o fim estratégico de todas as ações da CPT, conforme autoproclamado por seus agentes. Conclusão Ao concluir esta exposição, é possível afirmar que todas as ações desenvolvidas pelos agentes da CPT Goiás, seja no âmbito da luta dos trabalhadores rurais por direitos, por terra, na luta dos sem-terra por terra, e nas lutas das famílias assentadas e dos pequenos produtores tradicionais para permanecerem na terra, têm esta finalidade: contribuir para a libertação dos “pobres do campo”, assim como para tornar livres os latifundiários, pois acreditam que ao se libertarem da opressão os oprimidos libertam os opressores, na medida em que os impedem de continuar oprimindo. Esta tem sido a lógica que orienta o raciocínio político-religioso dos agentes da CPT Goiás na construção da sua história. Ao longo dessa trajetória de lutas dos trabalhadores do campo em Goiás, os militantes da CPT Regional atuaram, fundamentalmente, como organizadores e educadores políticos da classe, inclusive na articulação com os trabalhadores da cidade. Tarefas assumidas desde a fundação da entidade. No desenvolvimento dessas ações, os agentes da CPT Goiás cumpriram o papel típico de intelectuais orgânicos da classe, 146 conforme definição de Gramsci. Para aqueles, não obstante as ambigüidades das suas práticas, a libertação dos grupos dominados só poderia se dar como auto-libertação, na medida em que se auto-identificassem como classes oprimidas e construíssem um projeto próprio de sociedade baseado na coexistência da propriedade familiar e da propriedade social e em relações sociais igualitárias. *** miséria. 9ª ed. – Petrópolis: Vozes, 1983. DUARTE, Élio Garcia. Do mutirão à ocupação de terras: manifestações camponesas contemporâneas em Goiás. 1998. 472 f. Tese (Doutorado em História). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998. ESTEVAM, Luís. O tempo da transformação: estrutura e dinâmica da formação econômica de Goiás. Goiânia: Editora do Autor, 1998. FERNANDES, Bernardo Mançano. 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III CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINOAMERICANO. PUEBLA: a evangelização no presente e no futuro da América Latina. Texto oficial da CNBB. 3ª ed. – 151 152 Petrópolis: Vozes, 1980. INCRA. Balanço da Reforma Agrária. Dez. 2000. INCRA. Relatório de atividades: Incra 30 anos. Brasília, 2001. Lei Complementar nº 93, de 4 fev. 1998. Institui o Fundo de Terras e da Reforma Agrária – Banco da Terra. Lei nº 8.629, de 25 fev. 1993. Regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária. MST. Assentamentos 2001, 30 de ago de 2001. Arquivo pessoal. OSADA, Neide Mayumi. PRODECER: projetos no cerrado e dívidas agrícolas. São Paulo, s/d. Disponível em: http://www.asiayargentina.com/usp-05.htm > Acesso em: 16 dez. 2002. Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf. Disponível em: http://www.bcb.gov.br/pre/bc_atende/port/pronaf.shtm > Acesso em: 27/12/2002. Relatórios das Assembléias Anuais da CPT Regional Centro-Sul de Goiás/Regional Goiás: 1978-2001. 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Ovil Bueno Fernandes é professor da FMB – Faculdade de Montes Belos/GO; Graduado em Ciências Sociais pela UFG – Universidade Federal de Goiás e Especialista em Metodologia do Ensino Superior pela UEG – Universidade Estadual de Goiás. Uelinton Barbosa Rodrigues é Professor da UEG – Universidade Estadual de Goiás; Graduado e Mestre em Geografia pela UFG – Universidade Federal de Goiás. 155