© Copyright 2009, José Santana da Silva, Maria Angélica Peixoto, Nildo
Viana (org.), Ovil Bueno Fernandes, Uelinton Barbosa Rodrigues.
________________________
Capa: xxxxxx
Diagramação: xxxxxx
1ª edição
Temas de
Sociologia Rural
J osé Sant ana da Silva
Mar ia Angélica Peixot o
Nildo Viana (or g. )
Ovil Bueno Fernandes
Uelint on Barbosa Rodrigues
1ª impressão
(2009)
Todos os direit os reser vados.
Nenhum a part e dest a edição pode
ser ut ilizada ou reproduzida - em qualquer m eio ou form a,
nem apropriada e est ocada sem a expressa
aut orização dos aut or es.
Silva, José Santana da;
Peixoto, Maria Angélica;
Viana, Nildo (org.);
Fernandes, Ovil Bueno;
Rodrigues, Uelinton Barbosa
TEMAS DE SOCIOLOGIA RURAL. Pará de Minas, MG: Editora
Virtualbooks, 2009.175p.14x20 cm.
________________________
ISBN xxxxxxxxxxxxxxxxxx
1.Ensaio brasileiro. 2. Sociologia. 3. Sociologia Rural. I. Título. II. Série.
CDD- B869.4
Livro preparado e edit ado por
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V irt ua lbook s
2
Índice:
APRESENTAÇÃO
Nildo Viana
Apresentação
Nildo Viana
O Rural como Domínio Temático
Nildo Viana
Kautsky e Lênin como Precursores da Sociologia da Agricultura
Maria Angélica Peixoto
Marx e o Modo de Produção Camponês
Nildo Viana
O Conceito de Camponês
José Santana da Silva
O Campesinato no Brasil
Ovil Bueno Fernandes
A Reforma Agrária em Questão
Uelinton Barbosa Rodrigues
A Comissão Pastoral da Terra e as Lutas Dos Trabalhadores
Rurais em Goiás
José Santana Da Silva
Sobre os Autores
3
O presente livro apresenta um conjunto de contribuições
sobre a questão rural em nossa sociedade. Não se trata de um
tratado de sociologia rural e sim alguns temas debatidos no
âmbito da sociologia rural que aqui são abordados, inclusive por
pesquisadores de outras áreas. O objetivo é analisar a questão
rural, tanto como objeto de estudo (os dois primeiros artigos,
“O Rural como domínio temático” e “Kautsky e Lênin como
Precursores da Sociologia da Agricultura”) quanto seus temas
mais concretos e fundamentais. Neste último caso, temos vários
textos dedicados a uma das questões fundamentais da sociologia
rural, a questão camponesa, abordada nos textos “Marx e o
Modo de Produção Camponês”; “O Conceito de Camponês”,
“O Campesinato no Brasil” e outros textos dedicados a outros
temas clássicos, o da reforma agrária e movimentos sociais no
campo (“A Reforma Agrária em Questão” e “A Comissão
Pastoral da Terra e a Luta dos Trabalhadores Rurais em
Goiás”).
Desta forma, o conjunto de textos contribui com reflexões
no âmbito da temática da sociologia rural. Apesar de possuir
uma base teórica e metodológica semelhante, isto não cria uma
homogeneidade total nas abordagens, tal como se vê nas
posições diferenciadas sobre a existência ou não de um modo de
produção camponês. Independente disso, as abordagens
apresentadas mostram o processo de relações sociais no campo
e como ela é abordada pela sociologia rural, fornecendo um
quadro geral de temas que contribuem com a ampliação da
percepção da questão agrária no Brasil, seja através de
referências diretas, como em alguns textos, seja na contribuição
teórica, tal como em outros.
A discussão sobre o rural em nossa sociedade pode parecer
ultrapassada e, sem dúvida, os estudos sobre questão agrária
4
vem diminuindo com o passar do tempo. Esse processo é
derivado, em parte, da dinâmica capitalista, que com o processo
de acumulação capitalista invade cada vez mais relações sociais
e se expande espacialmente. O campo sempre foi um obstáculo
para a expansão capitalista, mas removível, tal como ocorreu na
Europa. No caso europeu, a redução drástica, para não dizer o
fim, do campesinato, ao lado de sua modernização, que ocorre
principalmente nos países de capitalismo subordinado, e o
domínio capitalista da produção rural traz graves conseqüências
não só para a população rural mas também para a urbana, tal
como o preço dos alimentos, a poluição ambiental e suas
conseqüências, o uso da tecnologia na produção alimentar e os
riscos biológicos existentes, etc. Apenas como sintoma,
podemos colocar a questão da Vaca Louca e da Gripe A (Suína)
como elementos a se pensar. No mundo da ficção, a ambição
capitalista e seus tentáculos sobre a produção rural já foi tema
de obras artísticas e filmes, destacando-se o recente Larva
(equivocadamente “Homem-Larva”, tal como a sinopse falsa,
pois resume o que não existe no filme, tal como se encontra nas
capas do DVD), no qual a experiência científica cria uma
espécie mutante que mata as vacas e seres humanos. Uma
metáfora, inintencional, certamente, das relações sociais no
capitalismo, pois a criatura destrói o seu criador.
Assim, as pesquisas sobre a questão rural numa perspectiva
crítica são fundamentais, no sentido de possibilitar a ampliação
da consciência das determinações, das características e
conseqüências da expansão e domínio capitalista sobre as
relações sociais no campo. A presente obra oferece uma
pequena e modesta contribuição para se avançar no sentido de
uma análise crítica de tais relações, focando mais alguns temas,
que precisaria receber outras contribuições e abordar questões
mais atuais, o que poderá ser objeto de uma futura publicação,
sobre questões contemporâneas da sociologia rural.
Outra questão fundamental que aqui transparece é a
questão metodológica. A importância da abordagem do rural é
evidente ao percebermos seus conflitos, mutações, relações. A
luta pela terra, os movimentos sociais no campo, além das
questões conceituais e que estão intimamente relacionadas, é um
elemento que recebe pesquisas. Porém, isto muitas vezes é
realizado de forma isolada, como se houvesse um “campo” sem
uma “cidade”, o rural sem o urbano. Daí a necessidade da
percepção da totalidade e esta remete ao processo de análise da
dinâmica do capitalismo e das mudanças históricas do modo de
produção capitalista e dos regimes de acumulação que são o
corpo desta história. A percepção da totalidade é fundamental
para não se iludir com as aparências do empírico e dos “objetos”
de estudo isolados e sim inseridos em relações sociais que
formam um todo. Sob o signo do capitalismo, o rural está
subordinado ao capital e a percepção disso é fundamental,
inclusive para entender sua historicidade e o seu caráter
dependente.
A presente obra, portanto, oferece uma contribuição para
se pensar o rural e, ao lado de outras contribuições e com os
necessários aprofundamentos a serem feitos, contribui com
novas pesquisas e com o desenvolvimento da consciência sobre
as relações sociais no campo.
5
6
O RURAL COMO DOMÍNIO TEMÁTICO
Nildo Viana
A distinção entre campo e cidade ou entre o rural e o urbano é
uma dos problemas mais importantes no campo da sociologia rural e
da sociologia urbana. Trataremos, aqui, desta distinção no sentido de
tentar esclarecê-la e apresentar a especificidade do rural como
domínio temático da pesquisa social.
Mas aqui trataremos da distinção rural-urbano apenas no que se
refere ao contexto da sociedade capitalista contemporânea, pois a
relação cidade-campo ocorre sob formas diferentes em sociedades
diferentes e os historiadores se dedicaram a esta diferença em
sociedades pré-capitalistas enquanto que os sociólogos trataram desta
relação tal como ela ocorre em nossa sociedade. Nós nos limitaremos
ao caso da relação cidade-campo em nossa sociedade.
A chamada sociologia rural surge com a constituição da
sociedade capitalista. A emergência do capitalismo e da ciência
moderna (enquanto ciências naturais) faz com que se torne necessário
uma ciência da sociedade, a sociologia. Esta vai acompanhar o
desenvolvimento da divisão social do trabalho, tanto pesquisando e
transformando esta divisão em seu objeto de estudo quanto
reproduzindo esta divisão em seu próprio interior. Surge, assim, a
divisão entre “sociologia geral” e “sociologias especiais”.
A sociologia rural se constitui como uma destas “sociologias
especiais”. Alguns sociólogos se especializaram no estudo do “rural”
ou do “campo”. Foi neste contexto que surgiu a necessidade de
distinção e definição do rural e do urbano. A sociologia rural buscou
definir o rural e seus objetivos como ciência que tem por objeto
específico de estudo este tema e este será o nosso ponto de partida
para nossa discussão sobre este domínio temático. Segundo Aldo
Solari:
“A sociologia rural tem por primeira tarefa
fundamental descrever os traços relativamente
constantes e universais das relações sociais no meio
rural, e suas diferenças com relação ao meio urbano.
7
Nesta descrição a sociologia rural se preocupa com
aqueles aspectos que revelam a existência de certas leis
gerais próprias da sociedade rural, que não ocorrem,
ou ocorrem de maneira diferente no meio urbano. Daí o
caráter comparativo que a sociologia rural assume
amiúde.
A segunda tarefa fundamental da sociologia rural
é explicar essas diferenças, ou seja, os traços
específicos dos fenômenos sociais rurais. A explicação
deve consistir na indicação dos fatores responsáveis
por estes traços, ou no estabelecimento de correlações
funcionais entre cada uma das diferenças específicas e
cada uma das variáveis que intervém em sua formação.
A sociologia rural só pode existir fundamentada na
colaboração de toda uma série de ciências” (Solari,
1976, p. 05).
Segundo este autor, existem algumas diferenças fundamentais
entre a sociedade rural e a sociedade urbana, a saber: 1) a sociedade
rural tem como ocupação fundamental as atividades agrícolas
(exploração e cultivo de plantas e animais); 2) devido ao caráter desta
ocupação, os habitantes rurais estão mais expostos e em contato com
a natureza e trabalham com forças naturais que escapam, na maioria
das vezes, ao seu controle, por mais que se intensifique o processo de
mecanização e inovação tecnológica; 3) as comunidades agrícolas
possuem uma baixa densidade populacional, derivada das próprias
condições da produção agrícola; 4) a população da sociedade rural é
mais homogênea que a da sociedade urbana e disto deriva vários
outros aspectos diferenciadores entre as relações sociais no campo e
na cidade.
Esta concepção é, entretanto, demasiado simplista. Numa
abordagem meramente descritiva, poderíamos concordar com este
autor, mas sua concepção se revela estéril para uma abordagem
explicativa. O primeiro grande problema é que sua distinção entre o
rural e o urbano tem como fundamento uma abordagem comparativa,
o que, em si, não é problemático, mas que se torna problemático pela
forma como foi utilizada. A abordagem comparativa tem valor quando
se analisa domínios temáticos distintos e autônomos, ou seja, que não
se relacionam através da subordinação. É o caso do estudo que
8
antropólogos realizam sobre sociedades diferentes, comparando, por
exemplo, duas sociedades indígenas ou uma sociedade indígena ainda
não aculturada e nossa sociedade. Mas o autor utiliza a abordagem
comparativa de forma inadequada, através de uma concepção
mecanicista que despreza o processo histórico e as relações entre
cidade e campo.
A separação mecânica entre a cidade e o campo se mostra de
forma mais evidente quando o autor usa as expressões sociedade rural
e sociedade urbana, como se fossem duas “sociedades” diferentes. A
idéia de sociedade nos remete a uma associação de seres humanos que
não é dependente de outra associação, ou seja, com o conceito de
sociedade pensamos uma totalidade auto-suficiente. No interior desta
totalidade, isto é, no interior de uma sociedade, podemos encontrar
redes de relações e grupos sociais que vivem em relação de
dependência de outros grupos e relações e por isso não constituem
“sociedades” e sim “comunidades”1. Podemos, portanto, falar em
comunidades rurais e comunidades urbanas mas não em sociedades.
O que é o rural? Em primeiro lugar, podemos observar algumas
características invariantes do mundo rural: ligação às atividades
agrícolas e um controle restrito sobre o meio ambiente natural. Porém,
isto não é suficiente para definir o rural em nossa sociedade, pois tais
características estão presentes também nas sociedades pré-capitalistas.
A distinção contemporânea entre cidade e campo surge com o
processo de desenvolvimento capitalista. A formação do capitalismo
significa a destruição das relações de produção feudais e a
industrialização, se instaurava as relações de produção capitalistas; no
campo, novas relações de produção não-capitalistas surgiram e se
desenvolveram de forma subordinada ao capitalismo. Daí notamos a
relação de subordinação do campo à cidade.
Portanto, o rural é um conjunto de relações sociais que existem
fora da zona urbana e se caracterizam por serem determinadas por
relações de produção capitalistas ou subordinadas ao capitalismo que
geram outras relações sociais. Desta forma, o rural possui relações de
1
O sociólogo alemão Tönnies distingue comunidade de sociedade devido as
relações internas de dependência, mas para nós uma comunidade se
caracteriza pelas relações externas de dependência, o que muda o foco da
análise mas não significa negar, em todo e qualquer caso, a existência da
dependência interna (sobre a concepção de Tönnies (Tönnies, 1977).
9
produção específicas, tais como as relações de produção camponesas.
Também as relações de produção capitalistas buscam se expandir no
campo, mas devido as condições próprias da produção rural, suas
características invariantes (controle restrito sobre o meio ambiente), a
produção capitalista no campo também assume especificidades.
Assim, a sociedade capitalista explica a o rural. O rural surge da
divisão social do trabalho produzido por esta sociedade. Esta divisão
se manifesta, num primeiro momento, como divisão entre cidade e
campo, ou seja, entre produção capitalista e produção não-capitalista.
Mas esta subordinação cria outras diferenciações, tal como a
centralização da administração, do poder político, da produção
cultural, etc. Assim, o rural tem sua origem nas relações de produção
existentes no campo, mas vai além disso. A família possui uma
importância social muito maior no mundo rural e os valores, atitudes e
comportamentos no mundo rural possuem uma ligação muito mais
intensa com as tradições do que no mundo urbano, embora a
influência deste sobre aquele faça, aos poucos, deteriorar tais relações.
Desta forma, observamos que o rural é, na verdade, um conjunto
de relações sociais específicas, que são relações de produção e outras
relações sociais derivadas, imprimindo um caráter específico nas
relações sociais no campo. Neste sentido, existe uma especificidade
nas relações sociais no campo e ela pode ser um domínio temático de
pesquisa social.
A sociologia rural teria tais relações como objeto de estudo. Hoje
se questiona a existência de algo como o “rural” e se propõe estudar a
agricultura, substituindo assim o nome de sociologia rural por
sociologia da agricultura. Do nosso ponto de vista, isto se revela um
equívoco. Os adeptos da sociologia da agricultura esquecem a
necessidade de estudos específicos sobre o mundo rural. Seus adeptos
questionam os conceitos de rural e urbano e afirmam que são noções
descritivas. Para Pahl, vem ocorrendo uma homogeneização da base
ocupacional provocada pela industrialização e a modernização da
agricultura. Por isso o conceito de rural perderia seu significado e
importância: num mundo homogêneo não há necessidade de estudos
sobre o rural e o urbano, pois não há mais especificidades ou
diferenças espaciais e ocupacionais entre o rural e o urbano
(Schneider, 1997). Porém, qual é o sentido de se falar em uma
“sociologia da agricultura”, já que as especificidades acabaram? Ou
10
seja, apenas há uma mudança de nome: troca-se sociologia rural por
sociologia da agricultura. O domínio temático continua o mesmo: as
relações sociais no campo. Sem dúvida, a abordagem da sociologia da
agricultura avança em relação à sociologia rural norte-americana, de
caráter funcionalista, mas sua desconsideração pela sociologia rural
em outros países que já realizavam uma abordagem semelhante é um
equívoco, como demonstra, aliás, a sua retomada de autores e
pesquisadores que tinha o rural como objeto de estudo (Kautski,
Lênin, Chayanov, Weber, etc.). Muda-se o método e a teoria, mas a
realidade estudada é a mesma. Por isso, se existe razão para se
estudar a “agricultura”, então é necessário reconhecer que o rural
ainda é um domínio temático para a pesquisa social.
A sociologia rural possui uma história diferenciada em países
diferentes. Os primeiros estudos sobre o rural foram os realizados por
Marx, ao tratar dos camponeses e da renda fundiária. Kautski, Weber,
Lênin, Rosa Luxemburgo, Chayanov, entre outros, avançaram na
análise das relações sociais no campo. O desenvolvimento da
sociologia acadêmica proporcionou novos estudos sobre o rural que
passou a seguir as especificidades teóricas e empíricas nacionais. Sem
dúvida, o mundo rural não é o mesmo nos diversos países e, só para
citar um exemplo, no caso brasileiro a influência das concepções de
Lênin e Kautski foram constantes e antecederam a atual sociologia da
agricultura norte-americana. Nos Estados Unidos predominou a
concepção conservadora baseada, inicialmente, na Escola de Chicago,
e posteriormente o funcionalismo sistêmico inspirado em Parsons,
Merton e outros representantes desta escola sociológica. Mais
recentemente vem se desenvolvendo a sociologia da agricultura, que
retoma Marx, Weber e outros pensadores europeus e supera o caráter
ateórico da sociologia norte-americana anterior marcada por sua
perspectiva conservadora (Peixoto, 2009)2. Na França, a sociologia
rural possuía um caráter muito mais teórico e refinado, já
compreendendo a tendência de superação da ruralidade pela expansão
capitalista.
Na atualidade, é preciso retomar o domínio temático do rural no
sentido de compreender tanto o seu processo de transformação, que é
visível e inevitável, quanto seu processo de conservação, marcado pela
2
resistência não só de relações sociais e tradições culturais, como
também pela limitação do controle humano sobre o meio ambiente
natural que é marcado pelo ciclo reprodutivo animal e vegetal.
Referências Bibliográficas
SOLARI, Aldo. O Objeto da Sociologia Rural. In: SZMRECSÁNYI,
Tamás & QUEDA, Oriowaldo (orgs.). Vida Rural e Mudança Social.
Leituras Básicas de Sociologia Rural. 2a edição, São Paulo, Nacional,
1976.
TÖNNIES, Ferdinand. Comunidade e Sociedade. in: BIRBAUN, Pierre &
CHAZEL, François (orgs.). Teoria Sociológica. São Paulo, Hucitec,
1977).
SCHNEIDER, Sérgio. Da Crise da Sociologia Rural à Emergência da
Sociologia da Agricultura: Reflexões a Partir da Experiência NorteAmericana. In: Caderno de Ciência e Tecnologia. Vol. 14, n 2, 1997.
PEIXOTO, Maria Angélica. Kautsky e Lênin como Precursores da
Sociologia da Agricultura. In: VIANA, Nildo (org.). Temas de
Sociologia Rural. Pará de Minas, Virtualbooks, 2009.
Texto publicado nesta coletânea.
11
12
KAUTSKY E A QUESTÃO AGRÁRIA
Kautsky começa seu livro colocando em evidência o caráter
capitalista da sociedade contemporânea e a permanência de modos de
produção pré-capitalistas: “É o modo de produção capitalista que
domina na sociedade atual. É o antagonismo da classe dos capitalistas
e do proletariado assalariado que move nosso século e lhe dá a sua
fisionomia mas o modo de produção capitalista não constitui a única
forma de produção existente na sociedade de nossos dias. Ao lado dele
se encontram ainda restos de modos de produção pré-capitalistas que
se mantiveram até hoje” (Kautsky: 1980: 25).
Kautsky reconhece a existência de diversas classes sociais no
capitalismo além da burguesia e do proletariado, tanto as que são
resquícios do pré-capitalismo (monarcas, cortesões, etc.) quanto as
que são “em parte produzidas, ou ao menos favorecidas, no seu
crescimento, pelas necessidades do próprio capitalismo” (Kautsky:
1980: 25). Ele diz que uma análise da essência do capitalismo leva a
considerar apenas a burguesia e o proletariado tal como fez Marx em
O Capital, mas um político prático deve reconhecer a existência de
outras classes sociais em seu papel político, tal como Marx fez em O
Dezoito do Brumário de Luís Bonaparte.
Entre estas classes sociais cabe um destaque para o campesinato.
Isto se torna ainda mais verdadeiro se for considerado o seu peso
quantitativo na população (da época) e seu papel político, que de
contestador da nobreza e da igreja passou a seu aliado isto coloca a
necessidade da social-democracia se preocupar com a questão
camponesa. A isto soma-se o fato de que “ela vê que a pequena
exploração na agricultura não obedece de modo algum a um processo
de desaparecimento rápido, que as grandes explorações só lentamente
conquistam terreno, perdendo o mesmo em alguns lugares” (Kautsky:
1980: 26).
Sendo assim, a teoria econômica marxista parece falsa se
aplicada à agricultura. Kautsky cita W. Sombart e o problema que ele
coloca para a social-democracia: descobrir a tendência evolutiva da
agricultura, pois, caso não siga a mesma tendência da indústria, isto
provoca necessidade de mudanças no programa do partido.
O objetivo de Kautsky é justamente descobrir qual é a tendência
evolutiva da agricultura. Porém, ele ressalta que tal estudo não deve
focalizar apenas a luta da pequena e da grande exploração mas
considerar a agricultura em si mesma. Para Kautsky, a agricultura
possui leis próprias e por isso não se desenvolve segundo o mesmo
processo que a indústria. Porém, isto não quer dizer que elas sejam
inconciliáveis ou opostas. Somente considerando a agricultura e a
13
14
KAUTSKY E LÊNIN COMO PRECURSORES
DA SOCIOLOGIA DA AGRICULTURA
Maria Angélica Peixoto
O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma visão da
contribuição de Kautsky e Lênin ao surgimento e desenvolvimento da
sociologia da agricultura nos Estados Unidos. Partimos da hipótese de
que estes dois autores clássicos da chamada “questão agrária” podem
ser considerados precursores da sociologia da agricultura.
Dividiremos nosso trabalho em quatro partes, a saber: a primeira
parte irá apresentar uma exposição breve da principal obra de Karl
Kautsky, A Questão Agrária, buscando apontar suas principais teses
apresentadas nestes livro; a segunda irá apresentar uma exposição,
também breve, das duas principais obras de Lênin a respeito da
questão agrária: O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia e
Capitalismo e Agricultura nos Estados Unidos da América com o
mesmo objetivo que o anterior; a terceira parte será dedicada ao
processo de crise da sociologia rural norte-americana, buscando
descobrir as causas da emergência da sociologia da agricultura; a
quarta parte tratará da emergência da sociologia da agricultura e da
influência exercida pelas idéias de Kautsky e Lênin sobre ela,
fornecendo assim os argumentos para confirmar ou não nossa idéia
diretriz, segundo a qual Kautsky e Lênin seriam precursores da
Sociologia da agricultura. Por fim, apresentaremos nossas
observações finais.
indústria como um processo em conjunto que se pode observar que
elas tendem para o mesmo fim.
Segundo Kautsky, “Se de deseja estudar a questão agrária
segundo o método de Marx, não se deve equacionar apenas o
problema de saber se a pequena exploração tem ou não futuro na
agricultura. Deve-se, ao contrário, pesquisar todas as transformações
experimentadas por esta última no decurso do regime de produção
capitalista. Deve-se pesquisar se e como o capital se apodera da
agricultura, revolucionando-a, subvertendo as antigas formas de
produção e de propriedade, criando a necessidade de novas formas”
(Kautsky: 1980: 28).
O camponês passa por um processo de transformação de
agricultor praticamente independente do mercado para um agricultor
dependente do mercado, e, por conseguinte, de usuários. Neste
sentido, a produção camponesa vai deixando paulatinamente de ser
auto-subsistente para se tornar mercantil. Kautsky descreve esse
processo de transição abordando a transição da sociedade feudal para
a sociedade capitalista, demonstrando a transformação da produção
rural.
Kautsky demonstra que o crescimento e concentração
populacional nas cidades, a industrialização e expansão capitalista,
entre outros fatores derivados, provocaram diversas modificações na
agricultura, entre as quais a ampliação do mercado consumidor de
produtos rurais, especialmente de produtos alimentícios (ele enfatiza a
produção de carne) , a subordinação da produção agrícola ao
mercado, a expansão da divisão social do trabalho na agricultura, a
introdução da maquinaria na agricultura (apesar dos obstáculos
encontrados), a ciência e as novas técnicas e profissionais
(engenheiros, químicos, fisiologistas) que passaram a racionalizar e
transformar a agricultura de um ofício (herdado de pai para filho pelo
agricultor, que era um “prático puro”) para se tornar um verdadeiro
“sistema de ciências” que alarga o campo de investigações e
conhecimentos teóricos sobre a produção agrícola.
Kautsky tenta provar que a agricultura moderna assumiu um
caráter capitalista. Segundo ele, “a exploração agrícola moderna é
impossível sem dinheiro, ou, o que vem a dar no mesmo, sem capital.
Porque na organização atual da produção toda soma de dinheiro que
não serve ao consumo de dinheiro que não serve ao consumo pessoal
15
pode tornar-se capital (valor que produz mais-valia), e isto ocorre
geralmente” (Kautsky: 1980: 76); “a exploração agrícola moderna é
pois uma exploração capitalista” (Kautsky: 1980: 76).
Kautsky irá enfatizar o caráter de mercadoria dos produtos
agrícolas e a propriedade individual para confirmar sua hipótese do
caráter capitalista da agricultura moderna. A troca mercantil dos
produtos transforma a produção agrícola em produção capitalista.
Kautsky também distingue a pequena exploração da grande
exploração. As diferenças se encontram na casa1, no pátio2, no uso de
ferramentas e máquinas3, no uso das forças humanas e animais4.
Segundo Kautsky, existe uma superioridade técnica da grande
exploração em relação à pequena: “Mas se o número de animais e de
ferramentas empregadas e a soma de forças de trabalho utilizadas são,
em proporção, menores numa grande do que numa pequena
exploração relativamente à superfície, sendo idêntica a natureza da
1
“Uma grande família realiza uma economia de trabalho e de materiais.
Isto quase que dispensa demonstração. Consideremos uma grande
propriedade, com superfície igual à de cinqüenta pequena parcelas
camponesas, e comparemos: de um lado, teremos uma única cozinha e
um fogão; de outro, cinqüenta cozinhas com cinqüenta fogões. De um
lado talvez cinco, de outro cinqüenta cozinheiras. De um lado, querosene,
café de chicória, margarina adquiridos por atacado; de outro tudo
comprado ao varejo, etc.” (Kautsky: 1980: 113).
2
“Se sairmos da casa para penetrarmos no pátio, encontraremos na grande
exploração um estábulo para cinqüenta a cem vacas, ao passo que os
pequenos camponeses, possuem, somados, cinqüenta estábulos para uma
ou duas vacas de cada um. Cada um deles tem uma granja, uma nascente,
ao invés de cinqüenta. Se continuarmos nosso exame, encontraremos
número relativamente menor de caminhos que conduzam do pátio às
lavouras — os camponeses não podem construir estradas de ferro rurais
— número menor de sebes, paliçadas e cercas” (Kautsky: 1980: 113).
3
“Cinqüenta pequenas explorações camponesas têm necessidade de
cinqüenta arados, cinqüenta grades, cinqüenta carroças, etc., ao passo
que um número bem menor nesses apretechos, igual talvez a um décimo
do primeiro, basta numa grande propriedade” (Kautsky: 1980: 114).
4
“O que é válido para as ferramentas, instrumentos e máquinas o é também
para as forças humanas, animais e outras, que os movimentam e dirigem.
A pequena exploração gasta-os proporcionalmente muito mais para obter
o mesmo efeito útil” (Kautsky: 1980: 116).
16
lavoura, não é menos evidente, de outro lado, que são sempre maiores
em valor absoluto na grande do que na pequena exploração: isto
prova simplesmente que a primeira está mais habilitada a tirar
proveito da divisão do trabalho do que a segunda. Unicamente a
grande exploração permite a especialização e a adaptação de
ferramentas e instrumentos aos diferentes trabalhos que fazem a
produção moderna tão superior à produção pré-capitalista. O mesmo
ocorre com relação às raças zootécnicas. O pequeno camponês utiliza
a sua vaca como animal leiteiro, como animal de tiro e como animal
reprodutor. Ele não pensa em seleção, de adaptação de raça e do
alimento a objetos determinados, assim como não pode distribuir os
diversos trabalhos de sua exploração entre diferentes pessoas. Ao
contrário, é o que faz a grande exploração, com múltiplas vantagens.
O grande proprietário classifica os trabalhos em duas categorias — os
que reclamam habilidade e cuidado particulares, e os que só exigem
um simples emprego de força. Confia os primeiros à parte de seu
pessoal que evidencia destreza ou diligência, e cuja aptidão e
experiência decorrem do ato de consagrar-se exclusiva ou
principalmente a esse serviço determinado. Mas por efeito da divisão
do trabalho e maior expansão da cultura. Os diversos operários
permanecem nos respectivos serviços, muitas vezes não alteram as
suas ocupações, e assim diminuem a perda de tempo e de força
inerente a toda mudança de trabalho e de lugar. Enfim, a grande
exploração pode beneficiar-se com as vantagens da cooperação
metódicas e coordenada de numerosas pessoas tendo em vista um
resultado preciso”(Kautsky: 1980: 117-118).
Estas e outras vantagens da grande exploração em relação à
pequena na esfera da produção soma-se as diversas vantagens que
Kautski encontra no que se refere ao comércio e ao crédito. O grande
produtor possui uma visão geral do mercado, despesas menores com
transporte entre inúmeras outra vantagens em relação ao pequeno
produtor. A necessidade de dinheiro para a compra de meios de
produção torna necessário o crédito e o crédito hipotecário deixa o
pequeno produtor ainda mais frágil diante do sistema mercantil
capitalista.
Entretanto, a grande exploração na agricultura não é
necessariamente a melhor, pois na agricultura, ao contrário da
indústria, “cada aumento de empresa — idênticas as circunstâncias,
não mudando, particularmente, o método de cultura — implica num
aumento ainda maior da superfície de terreno explorado. Por
conseguinte a mudança provoca uma perda maior de utilidades, uma
maior despesa de força, de meio e de tempo, para transporte de
material e de operários. Isto é mais ponderável na agricultura quando
se trata do transporte de elementos de pouco valor; relativamente ao
seu peso e seu volume — esterco, feno, palha, trigo, batatas — e
quando os métodos de carreto são muito primitivos, comparativamente
aos da indústria. Quanto mais extensa é a propriedade, tanto mais se
torna difícil a fiscalização dos operários dispersos, o que é muito
importante quando se contratam assalariados” (Kautsky: 1980: 166167).
Kautsky afirma que ocorre uma proletarização do camponês e
uma intensificação da agricultura capitalista. Segundo Lênin,
“Kautsky desenvolve uma das idéias fundamentais de Marx, que
afirma de maneira categórica o papel histórico progressista do
capitalismo agrícola (a racionalização da agricultura; a separação da
terra do agricultor, dono dela; a libertação da população rural das
relações de dominação e escravidão; etc.), e assinala ao mesmo tempo,
com a mesma energia, o empobrecimento e a questão dos produtores
diretos, a incompatibilidade do capitalismo com as exigências de uma
agricultura racional” (Lênin: 1981: 123).
Lênin, refutando um crítico de Kautsky, Bulgakov, que afirmava
o equívoco deste em considerar que havia uma expansão da grande
exploração, apelando para dados estatísticos sobre a diminuição da
superfície dedicada à grande exploração, afirma que para Kautsky “a
diminuição da superfície das fazendas de 20 a 1000 hectares (mais
que compensada pelo aumento da área das de 1000 e mais hectares)
não se deve à decadência da grande propriedade, mas à sua
intensificação. Já vimos que esta intensificação se acentua na
Alemanha, e que amiúde exige a redução da superfície das fazendas.
O processo de intensificação da grande produção é evidenciado pelo
crescimento do emprego de máquinas a vapor, assim como pelo
enorme aumento do número de empregados agrícolas, que na
Alemanha são contratados unicamente pelos grandes produtores. O
número de administradores de fazendas, capatazes, contadores, etc.,
passou, entre 1882 e 1895, de 47 465 a 76 978, vale dizer, aumentou
17
18
LÊNIN E O DESENVOLVIMENTO DO CAPITALISMO NA
AGRICULTURA
Lênin escreveu diversos textos relativos aos problemas rurais.
Cabe, porém, destaque aos seus livros O Desenvolvimento do
Capitalismo na Rússia e também Capitalismo e Agricultura nos
Estados Unidos da América. Nestes dois livros ele expõe de forma
mais sistemática sua concepção do caráter capitalista do
desenvolvimento da agricultura. Por isso tomaremos estes textos como
base para o presente texto.
A questão que Lênin procurará responder está relacionado com o
contexto histórico e com as lutas políticas na Rússia no final do século
19 e início do século 20. Lênin buscará refutar os “populistas russos”
(Narodiniki) e sua tese da impossibilidade de desenvolvimento do
capitalismo na Rússia devido a falta de mercado interno. Lênin, então,
buscará comprovar a existência e a expansão deste mercado interno.
Lênin define mercado da seguinte forma: “o mercado é uma
categoria da economia mercantil que, no curso do seu
desenvolvimento, transforma-se em economia capitalista, alcançando,
somente neste estágio, um domínio absoluto e uma extensão universal”
(Lênin: 1985: 13). O mercado capitalista se forma com a expansão da
divisão social do trabalho que corrói a economia de auto-subsistência,
que produz uma divisão de ramos de produção cada vez maior, etc.
Segundo ele, “o desenvolvimento da economia mercantil significa (...),
que uma parte cada vez maior da população se afasta da agricultura,
ou seja, que a população industrial cresce às expensas da população
agrícola” (Lênin: 1985: 15).
Portanto, no capitalismo, a população industrial e comercial
cresce em detrimento da população agrícola e isto tem sérias
conseqüências para a questão do mercado interno, pois “esse fator
reveste-se da maior importância, uma vez que se liga
indissoluvelmente à evolução da indústria e da agricultura: a formação
de centros industriais, seu número crescente e a atracão que exerce
sobre a população não podem deixar de suscitar o crescimento da
agricultura comercial e capitalista” (Lênin: 1985: 15).
Lênin passa, então, a tratar da ruína dos pequenos produtores.
Estes, devido ao desenvolvimento capitalista, são separados de seus
meios de produção e são levados à ruína. Os populistas russos
sustentavam que este empobrecimento dos pequenos produtores reduz
o poder de compra da população, diminuindo assim o mercado
interno. Segundo Lênin, “os defensores desta tese esquecem que a
‘liberação’ de uma parte dos produtores dos meios de produção
subentende, necessariamente, a passagem desses meios para outras
mãos, sua conversão em capital, e que, por conseqüência, os novos
proprietários desses meios produzirão sob a forma de mercadorias os
produtos que, anteriormente, eram consumidos pelo próprio produtor
— vale dizer: ampliam o mercado interno. Esquecem que a ampliação
da produção pelos possuidores dos meios de produção coloca no
mercado novas demandas de instrumentos, de matérias-primas, de
meios de transporte, etc., bem como de artigos de consumo (seu
enriquecimento acarreta naturalmente um aumento do seu consumo).
Esquecem que, para o mercado, o é que importante não é o bem estar
do produtor, mas os seus meios pecuniários disponíveis; o declínio do
bem-estar de um camponês patriarcal, que antes praticava uma
economia predominantemente natural, é perfeitamente compatível com
o aumento do volume de recurso pecuniários em suas mãos, pois
quanto mais esse camponês se arruina tanto ‘mais é forçado a recorrer
19
20
62 por cento; a porcentagem de mulheres entres estes empregados
aumentou de 12 a 23,4 por cento”(Lênin: 1981: 110).
Tal como colocou Ricardo Abramovay, a principal tentativa do
livro de Kautsky consiste em “demostrar a superioridade da grande
exploração capitalista sobre a propriedade familiar e portanto a
inutilidade de se procurar frear de qualquer maneira o movimento
inelutável que o capitalismo promove de expropriação camponesa.
Kautsky procura provar teoricamente que ali onde os camponeses
sobrevivem isso não é sinônimo de eficiência, mas de
superexploração, do fato de venderem seus produtos a preços que não
cobrem sequer a sua própria subsistência. O importante é a inutilidade
de qualquer trabalho político que procure atenuar a irreversibilidade
do declínio camponês. E o caminho para isso está na demonstração da
superioridade técnica e econômica da grande exploração sobre a
pequena”(Abramovay: 1992: 46).
Por fim, podemos dizer que para Kautsky, a tendência evolutiva
da agricultura na sociedade moderna se caracteriza pela expansão e
primazia da produção capitalista sobre as formas não-capitalistas de
produção.
à venda de sua força de trabalho e tanto maior é a parte dos meios de
subsistência (mesmo que sejam os mais exíguos) que ele deve adquirir
no mercado” (Lênin: 1985: 16).
Após discutir a questão do mercado interno, Lênin passa a
discutir a economia camponesa. Para Lênin, ocorre uma
“desintegração do campesinato”. Lênin utiliza diversos dados
estatísticos para apresentar e confirmar sua tese. Juntamente com esta
desintegração do campesinato ocorre o surgimento da diferenciação no
seu interior produzindo três segmentos, a saber: os camponeses ricos,
os camponeses médios e os camponeses pobres. Isto é o resultado do
processo de expansão do capitalismo na agricultura. O camponês
russo se encontra subordinado ao mercado. Esta subordinação
significa a destruição do campesinato tradicional e a criação de
“novos tipos de população rural”, o campesinato estratificado em rico
(que Lênin chama de burguesia camponesa), médios e pobres
(denominados por ele como “proletariado rural”). Segundo suas
próprias palavras, “é claro que o surgimento de desigualdades entre os
patrimônios é o ponto de partida de todo o processo, que em hipótese
alguma se esgota nessa ‘diferenciação’. O campesinato antigo não se
‘diferencia’ apenas: ele deixa de existir, se destrói, é inteiramente
substituídos por novos tipos de população rural, que constituem a
base de uma sociedade dominada pela economia mercantil e pela
produção capitalista. Esses novos tipos são a burguesia rural
(sobretudo a pequena burguesia) e o proletariado rural — a classe dos
produtores de mercadorias na agricultura e a classe dos operários
agrícolas assalariados” (Lênin: 1985: 114).
Ele afirma que “a desintegração do campesinato provoca um
desenvolvimento dos grupos extremos, em detrimento do campesinato
‘médio’, criando dois tipos novos de população rural, cujo
denominador comum é o caráter mercantil, monetário da economia. O
primeiro desses tipos é a burguesia rural ou o campesinato rico
englobando os cultivadores independentes (que praticam a agricultura
mercantil sob todas as suas formas), os proprietários de
estabelecimentos industriais-comerciais, de empresas comerciais etc.
Esse campesinato rico associa à agricultura comercial empresas
industriais e comerciais e essa ‘combinação da agricultura com as
oficinas’ constitui o seu traço específico. É desse campesinato rico que
sai a classe dos granjeiros, pois o arrendamento da terra para a venda
de cereais desempenha (na região agrícola) um imenso papel na
economia desses elementos, freqüentemente mais importante que o lote
comunitário. Na maior dos casos, as dimensões da exploração estão
acima das possibilidades da força de trabalho da família;; por isso, a
formação de um contigente de operários agrícolas e, ainda mais, de
diaristas, é condição indispensável da existência do campesinato rico.
Os camponeses que investem o dinheiro disponível, obtido sob a forma
de renda líquida nas operações comerciais e usurárias (sabe-se da
extensão exagerada da usura em nossos campos), utilizam-se dele, em
condições favoráveis, para comprar terras, melhorar seus
estabelecimentos etc. Numa palavra, são pequenos proprietários
agrícolas. Numericamente, a burguesia camponesa representa uma
pequena minoria do campesinato (certamente não mais de 1/5 dos
estabelecimentos, cerca de 3/10 da população), sendo que essa
proporção varia muito conforme a região. No entanto, considerando o
papel que ela exerce no conjunto da economia camponesa, a parte dos
meios de produção que detém e a parte dos produtos agrícolas que
fornece, ela exerce uma predominância absoluta no campo:
atualmente, ela é o seu verdadeiro senhor” (Lênin: 1985: 115-116).
Lênin retoma e aprofunda estas questões em um texto sobre a
agricultura nos Estados Unidos. Para ele, os Estados Unidos se
encontra na vanguarda do capitalismo moderno, sendo que a
agricultura de caráter capitalista ocupava as maiores extensões, bem
como uma grande diversidade de relações e matizes e formas.
Segundo Lênin, “é comum inferir-se a penetração do capitalismo
na agricultura a partir de dados sobre a extensão das farms ou sobre
os números e a importância das grandes farms (grandes segundo a sua
superfície). Já examinamos alguns destes dados e ainda examinarmos
outros, mas devemos ressaltar que eles são todos de ordem indireta,
pois a superfície está longe de indicar sempre e de uma forma direta a
grandeza efetiva da exploração e seu caráter capitalista” (Lênin:
1980: 20).
Para ele, os dados referentes ao trabalho assalariado são muito
mais reveladores. “Os recenseamentos agrícolas dos últimos anos,
como o recenseamento austríaco de 1902 e o alemão de 1907, que
analisaremos em outra oportunidade, demonstraram que o emprego de
mão-de-obra assalariada na agricultura moderna — e em particular,
nas pequenas explorações agrícolas — é bem mais importante do que
21
22
geralmente se crê. Nada refuta tão categoricamente e com maior
clareza que estes dados a fábula pequeno-burguesas da pequena
agricultura ‘fundada no trabalho familiar’ ” (Lênin: 1980: 20).
Através da análise destes dados estatísticos, Lênin conclui que há
uma expansão do uso do trabalho assalariado e que ele é empregado
em mais de 50% das farms do norte e oeste deste país (no sul, onde a
herança do escravismo era mais forte,, 36, 6% das farms utilizava
trabalho assalariado).
Lênin, que considera o trabalho assalariado como “o indicador
mais direto do capitalismo na agricultura”, passa a tratar da questão
da grandeza das explorações agrícolas. Ele contesta o método que
busca determinar a grandeza econômica e seu caráter capitalista
através da área que elas ocupam ou cultivam. Segundo Wladimir
Pomar, “Lênin destaca que a área ocupada está longe de indicar
sempre e diretamente esse caráter ou grandeza. Apesar de ‘certas
considerações científicas que indicam a necessidade e o acerto de tal
agrupamento’ ou classificação, Lênin mostra que ela é insuficiente por
não levar em conta a intensificação da agricultura, a crescente
inversão de capital por área, seja em gado, máquinas, sementes
selecionadas, métodos animais avançados de cultivo, ou mão-de-obra
assalariada” (Pomar: 1980: XI).
Lênin afirma que “a região da Nova Inglaterra, onde não existe
qualquer colonização, onde as farms são menores e a agricultura mais
intensiva que em qualquer outra região do país, é aquela na qual se
constata o mais alto grau de capitalização na agricultura e a maior
rapidez de desenvolvimento do capitalismo. Esta conclusão possui
uma importância essencial e fundamental para a compreensão do
processo de desenvolvimento do capitalismo na agricultura em geral,
pois a intensificação da agricultura, acompanhada da redução da
quantidade médias de terra por farm não tem nada de acidental, local,
episódico, mas constitui um fenômeno geral, comum a todos os países
civilizados” (Lênin: 1980: 38-39).
Portanto, há uma distinção entre pequena e grande exploração,
por um lado, e pequena e grande propriedade, por outro, pois nem
sempre o caráter intensivo ou não da exploração coincide com o
tamanho da propriedade. Por conseguinte, o caráter capitalista e a
vantagem da grande exploração (que pode se realizar numa pequena
propriedade) não depende do fato de se dar numa grande propriedade.
Neste sentido, “seria imprudente confundir os latifúndios com a
agricultura capitalista em grande escala, pois, com muita freqüência,
os latifúndios constituem uma sobrevivência de relações précapitalistas: escravistas, feudais ou patriarcais” (Lênin: 1980: 42).
A tendência apontada por Lênin é a progressiva substituição da
pequena propriedade pela grande, embora ela não ocorra apenas na
forma de uma “expropriação imediata”. Segundo ele, “ela pode
também assumir a forma de um longo processo de ruína, de
deterioração da situação econômica dos pequenos produtores, capaz
de se estender por anos e por décadas. Esta deterioração se traduz no
trabalho excessivo ou na péssima alimentação do pequeno agricultor,
no seu endividamento, no fato de que o gado é mal alimentado e, em
geral de baixa qualidade, a terra não é bem cultivada, trabalhada,
adubada, etc.; não há progresso técnico, etc. A tarefa do pesquisador,
se ele não deseja ser acusado de complacência voluntária ou
involuntária para com a burguesia, embelezando a situação dos
pequenos agricultores arruinados e esmagados, consiste antes de tudo
e sobretudo em definir com precisão os indicadores desta ruína, que
estão longe de ser simples e uniformes; depois, em elucidá-los e
estimar, na medida do passível, a amplitude de sua propagação e
modificação no tempo” (Lênin: 1980: 64).
Lênin conclui, portanto, pelo predomínio e pelo avanço da
agricultura capitalista também nos Estados Unidos. Assim ele reforça
sua concepção do desenvolvimento capitalista na agricultura, que se
vê agora confirmada não só pelo caso da Rússia como também pelo
dos Estados Unidos.
23
24
A CRISE DA SOCIOLOGIA RURAL NORTE-AMERICANA
A sociologia da agricultura é uma novidade que data das últimas
décadas. Para compreender seu surgimento e significado é preciso,
antes de tudo, observar seu processo de formação histórica. Iremos
abordar brevemente esse processo histórico de formação e depois
iremos relacionar sociologia da agricultura e as obras de Kautsky e
Lênin.
A sociologia da agricultura surge nos Estados Unidos. Isto se
deve ao motivo do predomínio das tendências sociológicas
consideradas “conservadoras”, tal como o funcionalismo sistêmico
elaborado por Parsons, Merton, entre outros, o que justifica uma
reação contra elas. As ciências sociais nos Estados Unidos, tal como
colocou Schneider, não conhecia as obras de Max Weber e Karl
Marx5, o que, sem dúvida, empobrecia a produção sociológica neste
país e alimentava a possibilidade de uma reação no sentido da
recuperação destes autores, de grande influência no resto do mundo.
No caso da França, por exemplo, a situação era diferente e por isso
podemos dizer que muito do que se chama de sociologia da agricultura
hoje nos Estados Unidos faz parte da própria tradição da sociologia
rural francesa (voltaremos a isto mais à frente).
A sociologia rural norte-americana surge influenciada pelos
estudos da “ecologia urbana” realizados pela Escola de Chicago. Tal
escola se caracterizava pelo estudo da configuração urbana da
sociedade e a partir daí a sociologia rural passou a tomar a dicotomia
rural-urbano como o objeto específico de sua disciplina. Desta forma,
“a delimitação dos objetos e do conteúdo específico de cada uma era,
portanto, fornecida pelo ambiente empírico e geográfico em que se
realizavam os estudos” (Schneider: 1997: 228).
A primeira fase da sociologia rural norte-americana teve como
característica os estudos de comunidade, produzidos pelo contexto
histórico da sociedade norte-americana, principalmente a crise
agrícola que ocorreu devido a Guerra Civil de 1861 a 1865. O Estado
passou a se interessar pelo estudo dos problemas do campo e
incentivou a pesquisa nesta área.
A sociologia rural nesta época se inspirava na distinção de
Tönnies entre “comunidade” e “sociedade”, que fundamentava a teoria
do continuum rural-urbano, caracterizada por considerar que havia
uma transição entre os laços comunitários (baseados na coesão
emocional, intensidade e continuidade) e os laços societários
(baseados na impessoalidade, na racionalização e em relações
contratuais), o que lembra a teoria de Louis Wirth e da Escola de
Chicago (Velho: 1979).
A sociologia rural norte-americana adotou o uso de métodos
empíricos, principalmente técnicas quantitativas, e deixou de lado a
teoria. A sociologia rural possuía uma postura “ateórica”. Isto se
5
“Antes de Parsons, as obras de Marx e de Weber eram praticamente
desconhecidas (e até ignoradas) nas universidades americanas, ao passo
que a teoria de Durkheim era lida e aplicada com rigor” (Schneider:
1997: 229).
25
deve a quatro fatores principais: 1. A sociologia rural possuía uma
relação íntima com a Igreja e herdou desta as suas técnicas de coletas
de dados; 2. A influência exercida pela Escola de Chicago; 3. A
negação das teorias de origem européia por parte dos sociólogos
norte-americanos, o que provocou, entre outras coisas, o
desconhecimento já referido das obras de Marx e Weber; 4. Muitos
sociólogos norte-americanos tinham contato direto com as obras de
Tönnies, Tarde, Sombart e Simmel, que exerciam forte influência na
sociologia norte-americana desta época.
Segundo Schneider, “a partir da II Guerra Mundial a teoria do
continuum rural-urbano foi paulatinamente superada. As razões para
o abandono desta perspectiva analítica estão nas transformações
sociais e econômicas que sofreram a estrutura agrária dos EUA neste
período. O processo de modernização tecnológica e a mercantilização
das relações sociais no campo solaparam a base social e econômica da
dicotomia ‘gemeinschaft/gesellschaft’, que fundamentava a teoria do
continuum rural-urbano. Com a modernização da agricultura e a
transformação do espaço rural, a sociologia passou a ocupar-se da
elaboração de estudos sobre a difusão/inovação das novas tecnologias,
bem como seus impactos psicocomportamentais sobre o os
indivíduos” (Schneider: 1997: 232).
Surge assim a tendência difusionista, inspirada pela psicologia
behaviorista do estímulo-resposta. A questão principal a ser abordada
é de como os atores (os agricultores, no caso) respondem aos
estímulos das novas tecnologias agrícolas, dos meios de comunicação
de massa e da educação.
Esta tendência da sociologia rural norte-americana se
diferenciava de outras tendências em outros países. A sociologia rural
francesa, por exemplo, partia de uma perspectiva diferente. Segundo
Maria Isaura Pereira de Queiroz, escrevendo em 1969, existia duas
tendências importantes em Sociologia rural: “a tendência francesa,
cujos trabalhos (mesmo os de pesquisa de campo) se orientam sempre
para uma definição cada vez mais refinada do objeto da sociologia
rural; e a tendência americana, voltada para a prática imediata, que
pretende dominar um aspecto considerado atrasado e insatisfatório da
realidade social para promover nele uma mudança mais rápida no
sentido da modernização. A primeira tendência se norteia por
indagações de tipo teórico; aborda os problemas da Sociologia Rural
26
numa perspectiva global, através de uma grande e constante indagação
do que é urbano. A segunda, como muito bem nota Henri Mendras,
não se interessa por essas diferenciações; para ela, rural e urbano são
domínios perfeitamente distintos e definidos, estando o meio rural em
processo de transformação expressa na adoção cada vez maior de
modernas técnicas de trabalho, expressa na mecanização da lavoura e
numa especialização cada vez maior do trabalho. Esta segunda
tendência aceita como inevitável e inegável uma homogeneização cada
vez maior dos dois mundos, tendendo o mundo rural a se confundir
com o mundo urbano de que copiaria instituições e atitudes” (Queiroz:
1969: 7-8).
Portanto, observamos que a sociologia rural francesa não possui
o caráter ateórico que predominou por durante tanto tempo na
sociologia rural norte-americana. Por conseguinte, a emergência da
sociologia da agricultura tinha como espaço para surgir os Estados
Unidos com seu contexto histórico preciso.
A partir de 1960, de acordo com as mudanças históricas (a crise
dos anos 60, a guerra fria, a guerra do Vietnã, a contracultura, etc.),
que criaram um clima propício para o surgimento do questionamento e
de abordagens críticas, a sociologia rural entra em crise. A crítica de
Wright Mills ao funcionalismo sistêmico (a grande teoria e o
empirismo abstrato), juntamente com outras críticas provenientes de
outros sociólogos a respeito de outros aspectos da sociologia rural, tal
como a crítica de Hightower ao esquema institucional do Land Grant
System, provocaram a necessidade de revisão de paradigma na
sociologia rural norte-americana.
Segundo Schneider, “em razão destas transformações, alguns
sociólogos como Pahl passaram a questionar a manutenção dos
conceitos de rural e urbano como noções descritivas. Segundo este
autor, a industrialização e a modernização da agricultura homogeneiza
a base ocupacional (mercado de trabalho assalariado) da população.
Nestas circunstâncias, o significado heurístico do termo rural perde
sua importância para o sociólogo. Numa situação em que não há mais
especificidades ou diferenças espaciais e ocupacionais entre o rural e o
urbano, qual seria o sentido de uma sociologia específica do rural?”
(Schneider: 1997: 237).
Esta é apenas uma crítica entre outras à sociologia rural nesta
época. Segundo Cavalcanti, “a partir das críticas a essa ‘Sociologia
27
Rural’, teóricos norte-americanos definem, desde meados dos anos 70,
novas questões para analisar os problemas do campo. Suas
investigações levaram à constituição de um campo atualmente
rotulado de Sociologia da Agricultura ou Nova Sociologia Rural (de
tendências neomarxistas e neoweberianas) com base nos fundamentos
da Economia Política e da Escola da Organização da Produção
(especialmente as contribuições de Marx, Lênin, Kautsky e
Chayanov)...” (Cavalcanti: 1997: 62).
Desta forma, entra em crise a sociologia rural norte-americana6 e
em seu lugar emerge a sociologia da agricultura, da qual iremos tratar
a partir de agora.
A SOCIOLOGIA DA AGRICULTURA: RETORNO A
KAUTSKY E LÊNIN
É na década de 70 que surgem os primeiros trabalhos que
marcam o surgimento da sociologia da agricultura. Segundo
Schneider, “a sociologia da agricultura define-se, sobretudo, pela sua
oposição e negação aos pressupostos da ‘rural sociology’.
Influenciada pela tradição marxista clássica (Marx, Lênin, Kautsky) e
pelos chamados neomarxistas, a sociologia da agricultura caracterizase por uma clara preocupação com o estudo da ‘estrutura da
agricultura a partir de uma perspectiva crítica” (Schneider: 1997:
239).
Esta tendência surge num contexto histórico delimitado: trata-se
da época de emergência de protestos políticos, de expansão dos
movimentos pelos direitos civis, pelo feminismo, contracultura, etc.
Isto permitiu a emergência da perspectiva crítica e, por conseguinte,
da sociologia da agricultura. Porém, deixaremos de lado aqui as
influências chamadas neomarxistas e neoweberianas para focalizar a
influência de dois autores em especial: Kautsky e Lênin.
6
Esta crise, porém, não significa o seu fim, pois tal como coloca Schneider,
“embora nas duas últimas décadas a ‘rural sociology’ tenha perdido
terreno para a ‘sociologia da agricultura’, sua influência acadêmicoinstitucional está longe do esgotamento. Os recentes trabalhos de Gartrell
e Gartrell e, sobretudo, de Fliegel mostram que a ‘rural sociology’ vem
enfrentando os novos temas do mundo rural-agrícola, mesmo que em
alguns casos seja para rever antigas posições” (Schneider: 1997: 238).
28
A sociologia da agricultura possui uma pluralidade de temas e
enfoques analíticos e empíricos, mas que busca uma integração de
perspectivas de Kautsky, Marx e Weber. Segundo Schneider, “esta
articulação permitiria à sociologia da agricultura desviar-se das
correntes neopupulistas (que não debitam ao capitalismo a
persistência da agricultura familiar, mas à lógica autônoma de sua
organização social e econômica) e da ortodoxia do modelo original de
Marx, no qual a oposição econômica dos atores gera o antagonismo de
classe” (Schneider: 1997: 246).
Como é possível a sociologia da agricultura retornar à Kautsky e
Lênin utilizando a contribuição de Weber? Ao nosso ver isto é
possível principalmente se considerarmos que o “jovem Weber”
apresenta uma posição semi-marxista em seu texto de juventude A
Situação dos Trabalhadores Rurais da Alemanha nas Províncias do
Além-Elba7, o que torna possível um encontro entre a perspectiva de
Weber deste período e as obras de Lênin e Kautsky.
Lênin e Kautsky podem ser considerados precursores da
sociologia da agricultura? Ao nosso ver sim, pois esta retoma
temáticas e abordagens presentes nestes autores. Vejamos as temáticas
e abordagens da sociologia da agricultura e depois comparemo-las
com as de Lênin e Kautsky e poderemos perceber a semelhança ou
não e assim confirmar ou não a continuidade entre a obra destes dois
marxistas do final do século passado e início deste e a sociologia da
agricultura.
Em primeiro lugar, os autores que trataram da sociologia da
agricultura reconhecem a influência de Kautsky e Lênin sobre a
sociologia da agricultura (Cavalcanti: 1997; Schneider: 1997). Em
segundo lugar, as temáticas tratadas pela sociologia da agricultura são
principalmente a questão da persistência da agricultura familiar nas
sociedades capitalistas avançadas e o significado do progresso técnico
(Schneider: 1997). Além desta pode-se citar: as barreiras à
transformação capitalista da agricultura, o papel do Estado como
7
Segundo Graziano da Silva e Verena Stolcke, “Esse livro,
inacreditavelmente, permanece até nossos dias sem reedição, nem
tradução conhecida do alemão (arcaico), embora tenha sido seguidamente
referenciado nas obras de Kautsky (talvez o seu ‘defeito’, na opinião dos
weberianos, seja o de ser uma ‘abordagem marxista’ do ‘jovem Weber’)”
(Graziano da Silva & Stolcke: 1980: 08).
29
mediador dos conflitos de classes, as diferenças étnicas nos interior
das farms, a agricultura industrial, os assalariados e o assalariamento
na agricultura, as pequenas farms e o trabalho em tempo parcial,
gênero e agricultura, a relação agricultura e meio ambiente e os
impactos das mudanças tecnológicas, etc. (Cavalcanti: 1997).
Esses temas, em sua maioria, já haviam sido tratados por
Kautsky e Lênin. A pequena produção, sua persistência e tendência a
extinção foi abordada por ambos os autores, embora de forma
diferenciada, tal como colocamos anteriormente na parte dedicada a
estes autores. A questão da persistência da agricultura familiar, como
demonstramos, esteve presente tanto na obra de Lênin quanto da de
Kautsky, sendo que para Lênin assumiu maior importância. O
progresso técnico recebeu uma atenção especial por parte destes dois
autores, principalmente para relacioná-las com o desenvolvimento
capitalista na agricultura. Sendo assim, podemos observar que a
maioria das temáticas da sociologia da agricultura já eram
desenvolvidas por Lênin e Kautsky.
As abordagens teóricas, por sua vez, também não escapam da
influência das obras de Kautsky e Lênin. Sobre a questão da
persistência da agricultura familiar e o progresso técnico na
agricultura existem três posições principais: 1. A concepção de que a
penetração do capitalismo no campo vem seguindo a via do progresso
técnico; 2. A concepção de que o capitalismo tende a industrializar a
agricultura, transformando-a em apenas mais uma forma de produção
de mercadorias indistinta das outras formas; 3. A concepção
conciliadora, que busca reunir estas duas concepções em uma só.
Vemos nestas duas abordagens a influência inegável da tese leninista
de capitalização inexorável da agricultura, sob formas e argumentos
distintos.
Segundo Schneider, no que diz respeito às diversas tendências
teóricas, existe orientações distintas, mesmo tendo, todas elas, por
base o marxismo. Existem pelo menos quatro abordagens
diferenciadas dentro desta perspectiva: “Primeiro, continua haver uma
adesão às explicações nomológicas, utilizando-se teorias dedutivistas
para explicar as transformações na estrutura da agricultura (é o caso
dos autores que seguem as teses leninistas da inexorabilidade da
diferenciação social). Segundo, a questão agrária continua no centro
do debate, especialmente no que se refere aos temas transformação
30
OBSERVAÇÕES FINAIS
O presente texto tentou enfatizar a influência de Kautsky e Lênin
sobre a formação e caracterização da sociologia da agricultura. A
nossa intenção era demonstrar que estes dois autores podem ser
considerados precursores da sociologia da agricultura. Para tanto,
partimos da leitura das principais obras de Lênin e da principal obra
de Kautsky e juntamente com a bibliografia referente a sociologia da
agricultura, buscamos observar os pontos de coincidência entre as
abordagens de Kautski e Lênin, por um lado, e da sociologia da
agricultura, por outro.
A grande preocupação de Lênin e Kautsky é o desenvolvimento
da agricultura, ou seja, o processo de mudança histórica. Tal
processo, segundo eles, se caracteriza pela diminuição quantitativa do
campesinato tradicional, pela proletarização das massas rurais, pelas
inovações tecnológicas, etc. A exploração de tipo capitalista tende a
substituir a exploração de tipo “pré-capitalista” (talvez seria melhor
dizer “não-capitalista”). Esta visão, um tanto quanto evolucionista
será criticada e palco de inúmeras polêmicas desde o início do século,
tal como se vê nas críticas endereçadas pelos populistas russos e
retomadas pelos “neopopulistas” (expressão também inexata, levandose em conta que o populismo russo era um movimento político e não
apenas uma interpretação da questão agrária que sustentava a
preservação
da
produção
camponesa).
Muitos
autores
contemporâneos irão criticar estas teses (é o caso de: Abramovay:
1992), mas diversos outros irão defendê-las.
Não nos cabe aqui apontar qual destas concepções está mais
adequada à realidade, pois o assunto é extremamente complexo e a
formação de uma opinião sobre ele requer uma árdua pesquisa tanto
de ordem teórica quanto empírica. A partir de uma primeira impressão
tendemos a considerar que tanto Kautsky e Lênin, por um lado, quanto
seus críticos, os populistas, “neopopulistas” e outros, por outro lado,
apresentam argumentos bem fundamentados e que há elementos
corretos tanto em uma quanto em outra análise. No que diz respeito à
sociologia rural norte-americana, tendemos a considerar que grande
parte das críticas endereçadas pela sociologia da agricultura são
procedentes, mas que alguns são referentes não à sociologia rural
como um todo, ou seja, tudo que se denomina como tal, e sim a
sociologia rural norte-americana especificamente.
31
32
versus persistência da agricultura familiar e à discussão acerca da
posição do setor agrícola em relação à economia. Terceiro, existem
autores que consideram que o desenvolvimento do capitalismo na
agricultura tende a seguir os mesmos rumos que tomou na indústria
(como é o caso dos neokautskistas). Quarto, existe a emergência do
neoweberianismo (...). Seu principal expoente é Mooney, que propõe a
junção das proposições estruturais dos neomarxistas com os conceitos
neoweberianos de ‘social agency’ para focalizar a subjetividade dos
atores e sua interação com os processos macrossociológicos”
(Schneider: 1997: 247-248).
Portanto, acha-se explícita a influência de Kautsky e Lênin
nestas abordagens da sociologia da agricultura, tal como a concepção
leninista da diferenciação social do campesinato, o caminho da
agricultura como idêntico ao da indústria segundo Kautsky, embora
este via a especificidade do mundo rural.
Mas a influência de Kautsky parece ser maior do que a de Lênin.
Pelo menos é o que se pode deduzir da afirmação de Schneider,
segundo a qual vários autores buscam “colocar as teses de Kautsky no
centro da economia política da agricultura. Esta tendência
neokautskista vem revigorando a idéia de que a agricultura dos países
capitalistas avançados não é um setor à parte da economia. As
funções históricas da produção agrícola, como fornecimento de
matérias-primas e força de trabalho, a produção de alimentos para os
trabalhadores urbanos e a constituição de um mercado de consumo
para os bens de origem industrial teriam sido subvertidas pela
conversão da própria agricultura em um ‘ramo da indústria’, operando
sob um único padrão de produção. Desse modo, acreditam que a
estrutura agrária tende a consolidar um modelo dual (também
chamado de bimodalismo): de um lado, persistirá uma diversidade de
formas familiares de produção e, de outro, como pólo hegemônico, se
consolidará a industrialização e a mercantilização da agricultura”
(Schneider: 1997: 248).
Desta forma, observamos que tanto Kautsky quanto Lênin
forneceram enorme contribuição para a formação da sociologia da
agricultura e podem ser considerados seus precursores.
Para encerrar, podemos dizer que o debate irá continuar e que irá
também contribuir com a compreensão de um dos mais fascinantes
temas da sociologia: as relações sociais no campo.
VELHO, Otávio G. (org.). O Fenômeno Urbano. 4a edição, Rio
de Janeiro, Zahar, 1979.
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Questão. São Paulo, Hucitec, 1992.
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GRAZIANO DA SILVA, José & STOLCKE, Verena (orgs.). A
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GRAZIANO DA SILVA, José & STOLCKE, Verena. Apresentação.
In: A Questão Agrária. São Paulo, Brasiliense, 1981.
KAUTSKY, Karl. A Questão Agrária. 3a edição, Proposta
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KAUTSKY, Karl. Socialização da Agricultura. Prólogo à
Primeira Edição. In: GRAZIANO DA SILVA, José & STOLCKE, Verena
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Kautsky e o Artigo do Senhor Bulgakov). In: GRAZIANO DA SILVA,
José & STOLCKE, Verena (orgs.). A Questão Agrária. São Paulo,
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LÊNIN, Wladimir. O Desenvolvimento do Capitalismo na
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POMAR, Wladimir. Apresentação. In: LÊNIN, Wladimir.
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QUEIROZ, Maria Isaura Pereira. Introdução: Por que Uma
Sociologia dos Grupos Rurais? In: QUEIROZ, Maria Isaura Pereira
(org.). Sociologia Rural. Rio de Janeiro, Zahar, 1969.
SCHNEIDER, Sérgio. Da Crise da Sociologia Rural à Emergência
da Sociologia da Agricultura: Reflexões a Partir da Experiência
Norte-Americana. In: Caderno de Ciência e Tecnologia. Vol. 14, n 2,
1997.
33
34
MARX E O MODO DE PRODUÇÃO
CAMPONÊS
Nildo Viana
Existe uma polêmica no interior do marxismo e também entre
os “marxólogos” sobre a análise de Marx sobre o campesinato. A
questão gira em torno do que é o campesinato e da possibilidade de se
referir a um modo de produção camponês no interior da teoria
marxista.
Alguns autores, como José de Sousa Martins1, afirmam que é
impossível pensar um modo de produção camponês partindo da teoria
marxista. Partimos do ponto de vista contrário, pois encontramos já
1
“Se eu separo cada um dos elementos do processo social, se não vejo a
terra como relação social que é parte desse processo que é o processo do
capital, a minha tendência será ver aí modos de produção diferentes e
serão tantos os modos de produção quantas forem as diferenças. Essa tem
sido, infelizmente, uma forte tendência especialmente na análise das
situações no campo: cada diferença é tomada como indicador de um
modo de produção distinto – no proprietário há os que vêem o senhor
feudal e o modo de produção feudal; no produtor familiar há os que vêem
o camponês e o modo de produção camponês. Este último caso é bem
indicativo da invasão positivista no modo de pensar. Um modo de
produção é um modo de exploração, que encerra antagonismos de
categorias sociais. Nesse sentido a produção camponesa jamais poderia
constituir um modo de produção, pois como todos sabemos ela se
determina como produção familiar autônoma” (Martins, 1986, p. 172173). Esta passagem de J. S. Martins é problemática, pois além de não
definir o que entende por positivismo e sustentar que não existe relação
de exploração entre camponeses e outras categorias sociais (exploração
que é efetivada pelo capital), afirma que um modo de produção é um
modo de exploração, o que não resiste a uma análise crítica, pois o modo
de produção é um conceito universal e que somente em sociedades de
classes é que se pode falar em “exploração”. Isto significa que sua
justificativa para negar a existência de um modo de produção camponês
não se sustenta, principalmente no interior da teoria de Marx da
produção, tal como mostraremos a seguir.
35
em Marx um embrião de uma teoria do modo de produção camponês e
alguns de seus continuadores irão desenvolver tal concepção.
Devido a isto iremos discutir como Marx apresentou os
elementos que permitem se discutir a teoria do modo de produção
camponês. Iremos analisar aqui o aspecto teórico e metodológico da
concepção de Marx e inserir nesta discussão a possibilidade de se
pensar em um modo de produção camponês. Também iremos nos
remeter aos escritos de Marx sobre o campesinato, para descobrirmos
se em sua teoria é possível trabalhar com a idéia de modo de produção
camponês e também perceber no interior de seu método a forma como
se pode analisar a questão camponesa.
O Conceito de Modo de Produção
Para Marx existia um modo de produção camponês? Marx não
abordou exaustivamente a questão camponesa, o que dá margem à
diversas interpretações. Então, para responder a pergunta acima temos
apenas dois caminhos: buscar alguma referência ao modo de produção
camponês em seus escritos ou então ver se em sua teoria do modo de
produção é possível integrar a produção de tipo camponesa. Aqueles
que sustentam ser impossível se pensar num modo de produção
camponês partem desta última perspectiva. Por isso iremos começar
por ela.
O que é um modo de produção? Os diversos pensadores que
trataram desta questão forneceram respostas diferentes. A concepção
mais comum aponta para uma definição do modo de produção como
uma determinada articulação entre relações de produção e forças
produtivas. Segundo Shaw:
“Em 1857, num manuscrito incompleto com
objetivo de apresentar a Grundrisse, Marx escreveu a
seguinte observação numa lista de questões a serem
tidas em mente: ‘5. Dialética dos conceitos força
produtiva (meios de produção) e relação de produção,
os limites dessa correlação dialética, que não abole as
diferenças reais, têm que ser definidos’. Infelizmente,
Marx jamais desenvolveu essa nota explicando sua
concepção de ‘forças produtivas’ e ‘relações de
produção’. Essa deficiência é marcante: embora esses
dois conceitos constituam a viga mestra do
36
materialismo histórico, raramente são manejados com
precisão, inclusive por aqueles que adotam essa
teoria”(Shaw, 1979, p. 15).
Mas esta não é a única passagem em que Marx aborda estes
conceitos. Segundo La Grassa:
“O que é um modo de produção. No Prefácio à
Contribuição... Marx escreve: ‘em grandes linhas, os
modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês
podem ser designados como épocas que marcam o
progresso da formação econômica da sociedade’. E
afirma, além disso, que ‘o modo de produção da vida
material condiciona, em geral, o processo social,
político e espiritual da vida’. (...) Prevalece, é certo, o
dado econômico quando se considera a formação da
sociedade (...); a afirmação relativa à ‘produção da
vida material’ que está na base que qualquer processo
de desenvolvimento social, é bastante clara. Assim
como está claramente indicado, no texto há pouco
citado, a distinção entre ‘base econômica’ da sociedade
(conjunto das relações de produção), por um lado, e a
sobrestrutura jurídico-política e as várias formas de
consciência social, por outro. É, contudo, necessário
recordar que o dado econômico não se pode reduzir
apenas aos métodos organizativos e técnicos da
produção material. Devem também tomar-se em
consideração as relações (sociais) que intercorrem
entre os homens (entre as classes determinantes) no
curso desta produção (...). Portanto, no modo de
produção acham-se ‘fundidos’, ‘sintetizados’, dois
elementos, um de caráter prevalentemente técnico, o
outro de caráter eminentemente social; isto é, por um
lado, as forças produtivas (...), e, por outro, as relações
sociais de produção”(La Grassa, 1974, p. 363-364).
Uma outra interpretação, derivada da influência do
estruturalismo em pesquisadores que se pretendem marxistas, coloca
da seguinte forma:
37
“Um modo de produção é uma combinação
específica de diversas estruturas e práticas que, em
combinação, aparecem como instâncias ou níveis, isto
é, como estruturas regionais com uma autonomia e
dinâmica próprias, ligadas a uma unidade dialética.
Um modo de produção compreende três níveis ou
instâncias: a econômica ou infra-estrutura, a políticojurídica e a ideológica. Estas duas últimas constituem a
superestrutura. Entende-se que se trata de um esquema
abstrato indicativo que é constituído para efeito de uma
análise, e que é possível adotar outro com diferentes
instâncias”(Fioravante, 1991, p. 31).
No entanto, estas e outras abordagens do que Marx entendia
como modo de produção são, na verdade, uma estruturação de algo
que no próprio autor em questão não se encontra estruturado, mas
esboçado. Isto faz com que alguns cristalizem sua estruturação e diga
que é impossível pensar fora dela, bem como a atribui a Marx. Desta
forma, o problema reside em atribuir esta estruturação ao próprio
Marx, seja apelando para uma pretensa “filosofia subjacente” ou para
complementos extraídos de outras formulações (estruturalismo, por
exemplo). Neste sentido (e somente neste) concordamos com Shaw:
“... Marx quer dizer o que diz: não é preciso
explicar isso em termos de alguma pretensa filosofia
‘subjacente’ ou de emprego peculiar de palavras. Não
afirmo que não haja ambigüidades, discrepâncias,
enigmas, ou enganos evidentes em Marx; simplesmente
argumento que algum esforço as idéias de Marx podem
tornar-se logicamente consistentes e coerentes – ou,
onde isso não for possível, que os problemas podem
pelos menos ser identificados” (Shaw,1979, p. 16).
Como podemos compreender o conceito de modo de produção a
partir de Marx? O procedimento de La Grassa nos parece o mais
consistente: analisar as observações de Marx quando ele se refere a
este conceito sem apelar para explicações que nos remetam a outras
concepções. Daí os resultados a que ele chegou – enquanto não apela
para outros autores e interpretações – serem mais adequados.
Realmente, tal como La Grassa coloca, para Marx, o conceito de
38
modo de produção nos remete à produção de bens materiais. Um modo
de produção, na acepção marxista do termo, é uma forma de produção
de bens materiais. Além disso, esta produção é sempre uma relação
social:
“O objeto deste estudo é, em princípio, a
produção material. Indivíduos produzindo em sociedade
– portanto uma produção de indivíduos socialmente
determinada, este é, naturalmente, o ponto de partida.
O caçador e o pescador individuais e isolados, de que
partem Smith e Ricardo, pertencem às inocentes ficções
do século 18. São ‘robinsonadas’ que não exprimem de
forma alguma, como parecem crer alguns historiadores
da civilização, uma simples reação contra os excessos
de requinte e um regresso a um estado de natureza mal
compreendido” (Marx, 1983, p. 201).
Mas a produção muda historicamente. Tal como coloca Marx:
“Assim, sempre que falamos de produção, é à
produção num estágio determinado do desenvolvimento
social que nos referimos – à produção de indivíduos
vivendo em sociedade. Pode parecer que, para falar da
produção em geral, será conveniente ou seguir o
processo histórico de seu desenvolvimento nas suas
diversas fases, ou declarar antes de mais nada que
iremos ocupar-nos de uma época histórica determinada,
por exemplo, da produção burguesa moderna que é, de
fato, o nosso verdadeiro tema. Mas todas as épocas da
produção têm certas características comuns, certas
determinações comuns. A produção em geral é uma
abstração, mas uma abstração racional, na medida em
que, sublinhando e precisando os traços comuns, nos
evita a repetição. No entanto, este caráter geral ou
estes traços comuns, que a comparação permite
estabelecer, formam por seu lado um conjunto muito
complexo cujos elementos divergem para revestir
diferentes
determinações.
Algumas
destas
características pertencem a todas as épocas, outras
apenas comuns a umas poucas. [Algumas] destas
39
determinações revelar-se-ão comuns tanto à época mais
recente como à mais antiga. Sem elas, não é possível
conceber qualquer espécie de produção. (...); do mesmo
modo é importante distinguir as determinações que
valem para a produção em geral, a fim de que a
unidade (...) não nos faça esquecer a diferença
essencial. Este esquecimento é o responsável por toda a
sapiência dos economistas modernos que pretendem
provar a eternidade e a harmonia das relações sociais
atualmente existentes” (Marx, 1983, p. 202-203).
Portanto, a produção adquire formas diferentes em épocas
diferentes. Estas formas são os modos de produção. Marx abordou a
sucessão de alguns modos de produção na Europa Ocidental. Existem
elementos comuns a todos os modos de produção e elementos
específicos em cada um deles. O modo de produção feudal possui
determinações diferentes do modo de produção capitalista. Mas quais
são os elementos componentes de um modo de produção? Qual é a
relação do modo de produção com a sociedade? Vejamos o que diz
Marx:
“Na produção social da sua existência, os
homens
estabelecem
relações
determinadas,
necessárias, independentes da sua vontade, relações de
produção que correspondem a um determinado grau de
desenvolvimento das forças produtivas materiais. O
conjunto destas relações de produção constitui a
estrutura econômica da sociedade, a base concreta
sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e
política e a qual correspondem determinadas formas de
consciência social. O modo de produção da vida
material condiciona o desenvolvimento da vida social,
política e intelectual em geral”(Marx, 1983, p. 24).
Aqui temos os elementos componentes: as relações de produção
e as forças produtivas. Mas o que são relações de produção? Segundo
Marx:
“Em certo estágio de seu desenvolvimento, as
forças produtivas materiais entram em contradição com
40
as relações de produção existentes, ou, que é sua
expressão jurídica, com as relações de propriedade no
seio das quais se tinha movido até então. De forma de
desenvolvimento das forças produtivas, estas relações
transformam-se no seu entrave. Surge então uma época
de revolução social”(Marx, 1983, p. 24-25).
Portanto, as relações de produção são relações sociais entre os
seres humanos no processo de produção que são, em determinadas
sociedades, relações de propriedade. E, sendo relações de propriedade,
são relações entre classes sociais (Viana, 2007).
O que são as forças produtivas? Marx apresentou a seguinte
definição:
“As forças produtivas são o resultado da energia
prática dos homens, mas esta mesma energia é
circunscrita pelas condições em que os homens se
acham colocados, pelas forças produtivas já
adquiridas, pela forma social anterior, que não foi
criada por eles e é produto da geração precedente. O
simples fato de cada geração posterior deparar-se com
forças produtivas adquiridas pelas gerações
precedentes, que lhes servem de matéria-prima para
novas produções, cria na história dos homens uma
conexão, cria uma história da humanidade, que é tanto
mais a história da humanidade quanto mais as forças
produtivas dos homens, e, por conseguinte, as suas
relações sociais adquiriram maior desenvolvimento”.
(Marx, 1989, p. 207.).
Assim, as forças produtivas são os meios de produção
(máquinas, ferramentas, etc.). Logo, o modo de produção é composto
pelas forças produtivas e relações de produção, que, em cada modo de
produção específico, possui uma correspondência e contradição. O
modo de produção possui uma dinâmica própria que se manifesta, em
41
determinadas sociedades (as divididas em classes sociais)2, como luta
de classes.
Como vimos na citação anterior, o modo de produção determina
as formas jurídicas, políticas e ideológicas em uma determinada
sociedade. Estes outros elementos componentes da sociedade, além do
modo de produção, tiveram sua cristalização lingüística na expressão
“superestrutura” (Viana, 2007). Assim, o modo de produção é a
determinação fundamental de uma sociedade3.
O Modo de Produção Camponês
Podemos, agora, partir para a questão do modo de produção
camponês. De acordo com a concepção de Marx é possível falar em
mais de um modo de produção no interior de uma determinada
sociedade? Ao que tudo indica sim. Na citação anterior, Marx se
refere “ao conjunto das relações de produção”, o que significa que elas
formam um “conjunto” que não são, necessariamente, da mesma
natureza. Mas existem outras passagens de Marx em que ele deixa
isto mais claro:
2
3
No Manifesto Comunista, Marx e Engels diferenciaram entre as
sociedades divididas em classes sociais e as sociedades sem classes, préhistóricas: (cf. Marx e Engels, 1988).
utilizamos aqui a expressão sociedade ao invés, como querem alguns, o de
formação social. Os adeptos do uso deste último termo alegam a
historicidade presente nela. No entanto, concordamos com Luporini,
crítico da noção de formação social, pois, segundo ele: “a contraposição
da palavra ‘formation’, como que um ‘nome de ação’ (e que denota
portanto um conceito ‘dinâmico’), à palavra ‘Form’, como de um ‘nome
de estado’ (e que denota portanto um que de ‘estático’) me parece sem
fundamento. Parece-me evidente que a palavra ‘Form’ pode denotar uma
forma que se desenvolve, dinâmica, portanto, e a palavra ‘formation’
uma configuração que se apresenta estaticamente (como em geologia, de
cuja linguagem Marx provavelmente a tirou): e vice-versa. Os dois
termos, tomados em si, são tais que nada se pode decidir sobre o seu valor
estático ou dinâmico, a não ser a partir do contexto que são utilizados”
(Luporini, 1974, p. 223). Devido a isto, não consideramos que o termo
“sociedade” signifique algo estático (além de ter sido usado amplamente
por Marx), pois o que decide isto é o contexto discursivo não qual é
utilizado e consideramos, portanto, desnecessário substituí-lo por um
outro termo como o de “formação social”.
42
“Em todas as formas de sociedade há uma
determinada produção que decide a posição e a
influência de todas as outras e cujas relações decidem
por isso a posição e a influências de todas as
outras”(Texier, 1974, p. 90).
Portanto, para Marx, é possível, no interior de uma mesma
sociedade, existirem relações de produção distintas, embora uma
predomine sobre as outras. Assim, só falta comprovarmos se, para
Marx, a produção camponesa pode ser considerada uma relação de
produção. Para isso devemos recordar a definição de relações de
produção anteriormente apresentada e ver se seus elementos estão
presentes na produção camponesa. Ora, a produção camponesa
produz bens materiais e se constitui como uma relação social,
fundamentada no trabalho familiar, que colocam frente à frente o
campesinato, enquanto classe produtora, à outras classes sociais,
principalmente a burguesia, enquanto classe exploradora. A partir
destas noções preliminares podemos dizer que é possível trabalhar
com a idéia de modo de produção camponês no interior da teoria
marxista.
No entanto, o próprio Marx já havia falado em um modo de
produção camponês. Quem melhor que o próprio Marx para dizer ao
para dizer se é possível pensar em um conceito elaborado por ele
mesmo? Vejamos o que ele diz:
inteiramente a maior parte do que consome, adquirindo
assim os meios de subsistência mais através de trocas
com a natureza do que do intercambio com a
sociedade”(Marx, 1986, p. 119).
O modo de produção camponês se fundamenta na pequena
propriedade familiar com forças produtivas menos desenvolvidas que
as forças produtivas presentes nas relações de produção capitalistas. E
onde se localizam as relações de propriedade como relações de
classes? Ora, o modo de produção camponês é um modo de produção
subordinado ao capitalismo. A pequena propriedade é “quase autosuficiente” (na época analisada por Marx isto era mais forte, mas,
posteriormente, sob a influência do capitalismo, novas necessidades e
dificuldades passam a diminuir sua auto-suficiência) mas está
subordinada ao domínio do capital:
“Os pequenos camponeses constituem uma
imensa massa, cujos membros vivem em condições
semelhantes mas sem estabelecerem relações
multiformes entre si. Seu modo de produção os isola
uns dos outros, em vez de criar entre eles um
intercambio mútuo. Esse isolamento é agravado pelo
mau sistema de comunicações existente na França e
pela pobreza dos camponeses. Seu campo de produção,
a pequena propriedade, não permite qualquer divisão
do trabalho para o cultivo, nenhuma aplicação de
métodos científicos e, portanto, nenhuma diversidade de
desenvolvimento, nenhuma variedade de talento,
nenhuma riqueza de relações sociais. Cada família
camponesa é quase auto-suficiente; ela própria produz
“O desenvolvimento econômico da pequena
propriedade modificou radicalmente a relação dos
camponeses para com as demais classes da sociedade.
Sob Napoleão a fragmentação da terra no interior
suplementava a livre concorrência e o começo da
grande indústria nas cidades. O campesinato era o
protesto ubíquo contra a aristocracia dos senhores de
terra que acabara de ser derrubada. As raízes que a
pequena propriedade estabeleceu no solo francês
privaram o feudalismo de qualquer meio de
subsistência. (...) Mas no decorrer do século dezenove,
os senhores feudais foram substituídos pelos usurários
urbanos; o imposto feudal referente à terra foi
substituído pela hipoteca; a aristocrática propriedade
territorial foi substituída pelo capital burguês. A
pequena propriedade do camponês é agora o único
pretexto que permite ao capitalista retirar lucros, juros
e renda do solo, ao mesmo tempo que deixa ao próprio
lavrador o cuidado de obter o próprio salário como
puder. (...). A ordem burguesa, que no princípio do
século pôs o Estado para montar guarda sobre a recémcriada pequena propriedade e premiou-a com lauréis,
tornou-se um vampiro que suga seu sangue e sua
43
44
medula, atirando-o no caldeirão
capital”4. (Marx, 1989, p. 119).
alquimista do
Marx acrescenta outra forma de exploração do campesinato:
“Além da hipoteca que lhe é imposta pelo capital,
a pequena propriedade está ainda sobrecarregada de
impostos. Os impostos são a fonte de vida da
burocracia, do exército, dos padres e da côrte, em
suma, de toda a máquina do poder executivo. Governo
forte e impostos fortes são coisas idênticas. Por sua
própria natureza a pequena propriedade forma uma
base adequada a uma burguesia todo-poderosa e
inumerável”(Marx, 1989, p. 120).
Portanto, a propriedade camponesa se constitui como uma
relação de produção, também fundamentada na exploração. Marx
coloca que o campesinato está submetido ao capital e sua propriedade
é meramente imaginária, uma propriedade nominal:
“A sua exploração só se distingue da exploração
do proletariado industrial pela forma. O explorador é o
mesmo: o capital. Individualmente, os capitalistas
exploram os camponeses por meio da hipoteca e da
usura; a classe capitalista explora a classe camponesa
por meio dos impostos do Estado. O título de
propriedade do camponês é o talismã com que o capital
o vinha fascinando até agora, sob o pretexto de que se
valia
para
atiçá-lo contra o
proletariado
industrial”(Marx, 1986, p. 131).
A propriedade camponesa se revela uma propriedade nominal e
o campesinato aparece, então, como uma classe social explorada pela
classe capitalista. Portanto, notamos que Marx utilizou a idéia de
modo de produção camponês e forneceu alguns elementos explicativos
de suas relações de produção.
Ora, como Marx coloca, o modo de produção camponês é quase
auto-suficiente. É justamente no quase que se abre a brecha para a
exploração do campesinato. Ao produzir quase tudo que necessita e
4
MARX, Karl. O Dezoito Brumário... ob. cit., p. 119.
45
ter que adquirir o que não produz, o modo de produção camponês se
revela como um modo de produção fundamentado na produção
mercantil simples, pois o que não produz é necessário adquirir no
mercado. Marx analisou a produção mercantil simples e lhe explicou
da seguinte forma.
Ela se baseia no processo de troca de mercadorias, mas tendo
como objetivo final o seu valor de uso. O produtor produz parte do
que necessita para sua sobrevivência, mas não produz uma outra parte
necessária. Por exemplo, produz alimentos mas não produz roupas.
Assim, ele produz um excedente em alimentos (excedente em relação
às suas necessidades) e os vende, ou seja, os troca por dinheiro. Com
o dinheiro ele pode comprar aquilo que não produz, no caso, a roupa.
Este processo é chamado de mercantil simples por que se diferencia do
processo mercantil capitalista. Ele começa com o produto-mercadoria,
que é trocado por dinheiro, que é transformado em novo produtomercadoria. Segundo Marx:
“Acompanhemos agora um possuidor qualquer
de mercadorias, por exemplo, nosso velho conhecido
tecelão de linho, à cena do processo de intercambio, ao
mercado. Sua mercadoria, 20 varas de linho, tem preço
determinado. Seu preço é duas libras esterlinas. Ele a
troca por 2 libras esterlinas e, homem de velha cepa,
torças as 2 libras esterlinas, por sua vez, por uma
Bíblia familiar do mesmo preço. O linho, para ele
apenas mercadoria, portador de valor, é alienado por
ouro, sua figura de valor: e dessa figura volta a ser
alienado por outra mercadoria, a Bíblia, que, porém,
como objeto de uso, deve ir para a casa do tecelão e lá
satisfazer às necessidades de edificação. O processo de
intercâmbio da mercadoria opera-se, portanto, por
meio de duas metamorfoses opostas e reciprocamente
complementares – transformação da mercadoria em
dinheiro e sua retransformação de dinheiro em
mercadoria. Os momentos da metamorfose da
mercadoria são, ao mesmo tempo, transações do
possuidor de mercadoria – venda, intercâmbio da
mercadoria por dinheiro: compra, intercâmbio do
46
dinheiro por mercadoria e unidade de ambos os atos:
vender, para comprar”(Marx, 1988a, p. 93).
Assim, o produtor de mercadorias vende apenas para efetuar
uma compra, ou seja, busca um valor de uso. Sua lógica, é, portanto,
M-D-M: mercadoria-dinheiro-mercadoria. Esta lógica é diferente da
produção mercantil capitalista, que possui outra lógica D-M-D:
dinheiro-mercadoria-dinheiro. A produção mercantil simples realiza a
troca mercantil para adquirir valores de uso enquanto que a produção
capitalista visa a acumulação de capital5.
Ora, o processo de produção mercantil simples numa sociedade
onde predomina a produção mercantil capitalista se torna subordinada
ao domínio do capital6. No caso do campesinato é isto que ocorre. O
camponês produz um excedente que é trocado por dinheiro e
retransformado em mercadoria. Porém, a mercadoria que ele irá
comprar no mercado capitalista possui um valor superior à
mercadoria que ele vende. Assim, o camponês é explorado não só pela
hipoteca, juros, impostos mas também pela troca desigual entre
produtos primários oriundos da produção camponesa e mercadorias
fabricadas no setor capitalista de produção. Segundo Marx:
“O camponês pode vender seu grão acima do
valor ou comprar as roupas abaixo do valor delas. Ele
5
6
“O ciclo M-D-M parte do extremo de uma mercadoria e se encerra com o
extremo de outra mercadoria, que sai da circulação e entra no consumo.
Consumo, satisfação de necessidades, em uma palavra, valor de uso, é,
por conseguinte, seu objetivo final” (Marx, 1988a, p. 123). “Comprar
para vender, ou melhor, comprar para vender mais caro, D-M-D, parece
ser decerto apenas uma espécie do capital, a forma peculiar do capital
comercial. Mas também o capital industrial é dinheiro, que se transforma
em mercadoria e por meio da venda de mercadoria retransforma-se em
mais dinheiro” (Marx, 1988a, p. 127).
“Mas a forma que o incipiente modo de produção capitalista encontra a
propriedade fundiária não lhe é adequada. Só ele mesmo cria a forma que
lhe é adequada, por meio da subordinação da agricultura ao capital; com
isso, então, a propriedade fundiária feudal, a propriedade do clã ou a
pequena propriedade camponesa combinada com as terras comunais são
também transformadas na forma econômica adequada a esse modo de
produção, por mais diversas que sejam suas formas jurídicas” (Marx,
1988a, p. 113).
47
pode, por sua vez, ser enganado pelo comerciante de
roupas. Tal diferença de valor permanece, no entanto,
para essa mesma forma de circulação, puramente
casual. Ela não perde simplesmente sentido e
entendimento como o processo D-M-D, se os dois
extremos, grão e roupas, por exemplo, são equivalentes.
Sua igualdade de valor é aqui muito mais condição do
transcurso normal” (Marx, 1988a, p. 124).
O problema aqui reside na explicação do baixo preço das
mercadorias produzidas no modo de produção camponês. O que
determina o valor de uma mercadoria? O trabalho socialmente
necessário para produzi-la. Isto, no entanto, no modo de produção
capitalista. É neste modo de produção que o valor da mercadoria é
determinado pelo trabalho objetivado nela. Mas e o valor de uma
mercadoria produzida na produção mercantil simples? Sem dúvida, é
possível falar que o valor da mercadoria é determinado pelo trabalho
objetivado na mercadoria, mas isto não entra no preço da mercadoria
devido ao fato de a produção mercantil simples só comercializa o
excedente. O que significa que somente uma parte do trabalho
objetivado, aquele materializado nas mercadorias vendidas, é
recuperada pelo camponês. A outra parte são as mercadorias
utilizadas no consumo próprio de sua unidade de produção, ou seja,
pelos gastos familiares. Assim, apenas uma parte do trabalho
objetivado é comercializada. Ao ser comercializado, ele atrai renda
para o camponês. Com esta renda ele deve adquirir os produtos que
ele não produz diretamente (máquinas, ferramentas, meios de
consumo, etc.) e que são custos de produção mais meios de consumo.
Os meios de produção adquiridos, entretanto, não são utilizados em
sua totalidade para a produção da parte comercializada, mas para toda
a produção camponesa. Assim, o valor de uma mercadoria produzida
pelo modo de produção camponês não pode ser determinado pelo
tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la. O valor da
força de trabalho não é equivalente as suas necessidades, pois ele
auto-produz parte dela. Assim, o modo de produção camponês possui
uma lógica diferente do modo de produção capitalista. Mas além
disso, tal modo de produção não visa lucro, mas tão-somente a autosubsistência. Mas como é definido, portanto, o valor de uma
48
mercadoria produzida no modo de produção camponês? É definido
pela lógica do mercado capitalista. Tal como Marx colocou:
“Para que o camponês parcelário cultive sua
terra ou compre terra para cultivar não é (...)
necessário, como no modo de produção capitalista
normal, que o preço de mercado do produto agrícola
suba o bastante para render-lhe o lucro médio, e, ainda
menos, um excedente, fixado na forma de renda, sobre
esse lucro médio. Não é, portanto, necessário, que o
preço de mercado suba até o valor ou até o preço de
produção de seu produto. (...). Uma parte do maistrabalho dos camponeses que trabalham sob as piores
condições é dada gratuitamente à sociedade e nem
sequer entra na regulação dos preços de produção ou
na formação do valor em geral. Esse preço mais baixo
é, portanto, um resultado da pobreza dos produtores e,
de modo algum, da produtividade do seu
trabalho”(Marx, 1988a, p. 245).
O camponês não tem que pagar pela força de trabalho, pois ele
é a própria força de trabalho, e não busca lucro, sendo
simultaneamente o proprietário. O que o camponês busca é tãosomente um complemento de sua produção. No entanto, devido ao seu
endividamento, ele deve buscar aumentar sua produção, mas isto
acaba sendo revertido para os setores capitalistas. O campesinato é
vítima do Marx denominou “métodos secundários de exploração
capitalista”. O modo de produção camponês proporciona um
acréscimo à renda nacional além do mais-valor global produzido pelo
proletariado.
O capital produz o modo de produção camponês. Aqui devemos
observar que Marx distingue entre o campesinato parcelar, típico do
modo de produção capitalista, e o campesinato que podemos
denominar “aldeão” ou “comunitário”. Para Marx, o modo de
produção “aldeão” (embora ele não utilize esta expressão, pois em
alguns momentos fala de modo de produção rural ou como forma de
produção camponesa), embrião do modo de produção camponês,
possui a seguinte organização: ao lado de uma parte do solo
pertencente aos camponeses individuais (e cultivada autonomamente
49
por eles) há uma parte que é trabalhada comunitariamente, voltada
para a produção de um excedente utilizado para despesas
comunitárias e como fundo de reserva para más colheitas, entre outros
usos. É por isso que Marx irá falar em “propriedade camponesa
parcelária”, pois esta se diferencia da propriedade comunitária rural.
No entanto, esta última é superada pelo modo de produção camponês
(a propriedade camponesa parcelar). A formação desta se deve aos
seguintes determinações apresentadas por Marx:
“As causas de seu declínio indicam sua
limitação. São elas: aniquilamento da indústria
doméstica rural, que constituía sua complementação
normal, devido ao desenvolvimento da grande
indústria; paulatino empobrecimento e esgotamento do
solo sujeito a esse cultivo; usurpação, por grandes
proprietários de terra, da propriedade comunitária,
que, por toda a parte, constitui a segunda
complementação da economia parcelária, pois só ela
possibilita a criação de gado; concorrência da grande
cultura, seja ela do sistema de plantações, seja da
exploração capitalista. Melhorias na agricultura que,
por um lado, acarretem queda dos preços dos produtos
agrícolas e, por outro, exijam maiores gastos e
condições materiais de produção mais abundantes,
também colaboram para tanto, como ocorreu na
primeira metade do século 18 na Inglaterra”(Marx,
1988b, p. 246).
Modo de Produção Camponês e Conceito de Campesinato
A partir de agora iremos abordar o conceito de campesinato a
partir dos escritos de Marx. Alguns autores falam de “sociedades
camponesas” e outros definem campesinato como todo habitante do
campo. Isto é um equívoco, pois não só retira a historicidade do
conceito como cria uma indiferenciação no que, na realidade, é
diferenciado, histórica e socialmente. Segundo Marx:
“(...) Os homens, ao desenvolverem as suas
faculdades produtivas, isto é: vivendo, desenvolvem
certas relações entre si, e (...) o modo destas relações
muda necessariamente com a modificação e o
50
desenvolvimento destas faculdades produtivas. (...) As
categorias econômicas não são mais que abstrações
destas relações reais e (...) somente são verdades
enquanto estas relações subsistem”(Marx, 1989, p. 210211).
Assim, um conceito, na abordagem marxista, é uma expressão
da realidade, e, portanto, partilha com esta a historicidade, a
mutabilidade, a transitoriedade. Logo, quando se fala em camponês é
preciso delimitar a realidade a qual este conceito se refere. O que é o
campesinato? É todo habitante do campo? Então o servo na sociedade
feudal é um camponês, assim como todas as outras classes e grupos
sociais que moram no campo. Mas devemos observar o caráter
insuficiente do critério aqui utilizado: qual importância histórica e
teórica possui os habitantes do campo desligados do conjunto das
relações sociais aos quais estão submetidos? O servo e o pequeno
proprietário familiar na sociedade moderna vivem no campo, mas sob
relações sociais totalmente diferentes. Além disso, tomar o
campesinato como grupo social que vive no campo em todas as épocas
e sociedades significa criar uma indiferenciação e uma categoria ahistórica. A tendência a considerar todo mundo que mora no campo
um camponês é forte e faz parte do uso comum da palavra. O próprio
Marx utilizou tal expressão neste sentido e às vezes utilizou as
expressões “camponês parcelar” e “pequeno camponês” para
diferenciar o pequeno proprietário familiar, o camponês em sentido
estrito, ligado ao modo de produção camponês, do camponês em
sentido geral.
Marx colocou várias vezes o momento histórico do surgimento
do campesinato nos seus escritos sobre a França. O campesinato surge
com a derrocada do feudalismo. A propriedade parcelar e
simultaneamente comunitária, em algumas regiões, é substituída pela
propriedade familiar. Engels também abordou seu surgimento do
campesinato e sua diferença em relação ao servo da sociedade feudal.
Engels notou três diferenças entre o servo e o camponês:
“Primeiro, a Revolução Francesa libertou-o dos
encargos e dos serviços feudais que devia ao seu senhor
e, na maioria dos casos, pelo menos na margem
esquerda do Reno, entregou-lhe totalmente a terra.
51
Segundo, perdeu a proteção da comunidade de
pastoreio e deixou de participar na administração
autônoma daquela. Ficou assim privado da sua parte de
fruição do antigo pastoreio comum. Este pastoreio
comum foi escamoteado, quer pelo antigo senhor, quer
graças aos efeitos de uma legislação burocrática
‘esclarecida’, fundada no direito romano. O pequeno
camponês vê-se assim privado da possibilidade de
alimentar o gado sem comprar o pasto. (...). O número
de camponeses que não podem sustentar os animais de
trabalho cresce constantemente. Em terceiro lugar, o
camponês atual distingue-se ainda pela perda da
metade de sua atividade produtiva de outrora. Outrora,
com a família, fabricava, com a ajuda de matérias
primas que ele mesmo produzia, a maior parte dos
produtos industriais de que necessitava. O que lhe
faltava era-lhe ainda fornecido pelos vizinhos da aldeia
que, além da agricultura, exerciam ainda um ofício e
eram pagos, na maior parte das vezes, por troca ou por
serviços recíprocos. A família, e, mais ainda, a aldeia,
bastavam-se a si próprios e produziam mais ou menos
tudo o que lhes era necessário. Era quase a economia
natural no estado puro, quase nunca se utilizava o
dinheiro. A produção capitalista acabou com este
estado de coisas por intermédio da economia monetária
e da grande indústria”(Engels, 1975, p. 9).
Assim, Engels distingue entre servo e camponês, também se
referindo ao aldeão, que produz em sua parcela de terra e também
comunitariamente. Assim, em cada período histórico, no conjunto de
determinadas relações sociais, o habitante do campo está envolvido em
relações sociais específicas e envolvido por uma sociedade com
relações sociais também específicas. Por isso, a especificidade não
deve ser apagada e sim reconhecida e desta forma, o conceito de
campesinato é um conceito só existente na sociedade capitalista.
O que é um camponês? Ora, tal como colocamos anteriormente,
o camponês é o pequeno proprietário rural, que cultiva juntamente
com sua família, um pedaço de terra, e tem sua produção subordinada
ao capitalismo. Enfim, o campesinato é a classe social que constitui o
52
modo de produção camponês. O campesinato surge com o processo de
formação do capitalismo, marcado pela decadência das relações de
produção feudais, pela servidão, e pela expansão do comércio, da
indústria, da cidade, e, principalmente, pelas relações de produção
capitalistas, que, ao se expandirem, destroem relações de produção
pré-capitalistas e devido ao contexto derivado destas, constitui
relações de produção não-capitalistas subordinadas ao capitalismo.
Assim, o conceito de campesinato nos remete a uma classe social
historicamente constituída e que tem características próprias.
O campesinato é, portanto, uma classe social explorada e que
sofre uma forma de exploração específica. Sua exploração não é a
exploração específica do modo de produção capitalista. Ela se
constitui enquanto forma secundária de exploração capitalista. Assim,
o modo de produção camponês é um conceito que deve integrar a
teoria marxista da sociedade capitalista. O objetivo do presente
trabalho foi justamente resgatar o reconhecimento desta necessidade
teórica, que possui, obviamente, implicações práticas.
MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2a edição, São
Paulo, Martins Fontes, 1983.
MARX, Karl. O Capital. Vol. 1, 2a edição, São Paulo, Nova Cultural,
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histórico-Dialético. Rio de Janeiro, Achiamé, 2007.
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MARX, Karl. Carta a Annenkov. In: A Miséria da Filosofia. 2a edição, São
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53
CONCEITO DE CAMPONÊS
José Santana da Silva
54
A categoria camponês (substantivo) ou campesinato tem
merecido a atenção de inúmeros cientistas sociais de diferentes
filiações teóricas e especialidades – economistas, sociólogos,
antropólogos, historiadores – sem que, no entanto, tenha-se
chegado a uma definição consensual. Os motivos das
divergências são variados. Referem-se à condição do homem do
campo em relação à posse da terra que cultiva: proprietário ou
não proprietário; ao destino da sua produção: para o mercado
ou apenas para o autoconsumo; à condição do campesinato
dentro das diversas formações socioeconômicas: constitui um
modo de produção independente ou apenas um tipo de processo
produtivo? Uma forma específica de sociedade (“sociedade
camponesa”) ou um “modo de vida” peculiar? Uma classe social
ou apenas uma fração de classe? Por trás de todas essas
polêmicas estão as transformações pelas quais o campesinato
tem passado no tempo e no espaço.
Certo é que o termo camponês ou campesinato não pode
ser empregado para designar qualquer tipo de pessoa ou grupo
que vive da produção agrícola, independente do contexto e das
relações sociais e de poder vigentes. Coerente com esse caráter
histórico da categoria camponês, o historiador francês Pierre
Vilar afirma:
O que me preocupa é o emprego da palavra ‘camponês’ sem
qualificativo, como se existisse um camponês-conceito, um campesinato
‘em si’. Pois a figura, a imagem do camponês, desde que existe uma
civilização urbana, é objeto de uma dupla mitificação: por um lado, o
desprezo pelo ‘rústico’; por outro, o culto do ‘lavrador’ (ou do pastor!), a
‘apologia da aldeia’ (1985, p. 254).
Além dessa dupla mitificação, o autor registra outras
“duas perspectivas” em confronto, derivadas do comportamento
político do campesinato frente às transformações ocorridas nas
sociedades modernas, que afetaram e ainda afetam sua
existência: uma, que, diante da resistência do campesinato à
modernização capitalista e do seu apego a um modo de vida
tradicional, o qualifica de conservador e até reacionário; outra,
que considera o campesinato como “centro de todas as
55
esperanças revolucionárias”, devido ao seu envolvimento em
importantes movimentos revolucionários. “Contradições que –
segundo Vilar – bastam para nos inspirar alguma desconfiança
em relação à utilização da palavra ‘camponês’ empregada
isoladamente, sem mais distinções nem análises” (idem). Em
virtude disso, a história se torna imprescindível à compreensão
dessa categoria. Nesse sentido, Marx, ao explicitar a dimensão
histórica dos conceitos, afirmou:
Esse exemplo [refere-se à categoria trabalho] mostra de maneira
muito clara como até as categorias mais abstratas – precisamente por causa
de sua natureza abstrata –, apesar de sua validade para todas as épocas, são,
contudo, na determinidade dessa abstração, igualmente produto de
condições históricas, e não possuem plena validez senão para essas
condições e dentro dos limites destas (1986, p. 17).
Essa forma de encarar os conceitos caracteriza a dimensão
histórica do método proposto por Marx: o materialismo
histórico-dialético. É dessa perspectiva teórico-metodológica
que procuramos chegar a um conceito de camponês neste texto.
Para tanto, convém iniciar pela explanação das concepções
clássicas dessa categoria.
Entre os estudiosos do campesinato, verifica-se uma
tendência a ressaltar as divergências entre o economista e
agrônomo russo Alexander Vasilievich Chayanov (1888-1939) e
Karl Marx (1818-1883), como faz Abramovay (1992), por
exemplo. Sem dúvida que as diferenças entre esses dois autores
são fundamentais, como se verá. Entretanto, há quem
identifique alguns pontos comuns às concepções de ambos,
como fez Eduardo P. Archetti na apresentação da obra de
Chayanov, La organización de la unidad económica campesina
(1974).
Comecemos por Marx. Encontramos em sua obra, O
capital (vol. I, livro primeiro, t. I, cap. IV), uma distinção entre
a “forma direta de circulação de mercadorias” ou “circulação
simples” e a circulação capitalista que nos permite caracterizar a
56
economia camponesa1 como uma produção mercantil simples,
cuja circulação do excedente se expressa na fórmula M-D-M
(mercadoria-dinheiro-mercadoria), tendo como finalidade a
auto-subsistência. Nisto se distingue de modo fundamental da
produção mercantil capitalista, cuja circulação se configura na
fórmula
D-M-D
(dinheiro-mercadoria-dinheiro).
Dessa
comparação, depreende-se que, enquanto na economia
mercantil simples – camponesa – a circulação se inicia e termina
com a mercadoria, cujo destino é o consumo por parte do
vendedor-comprador, no capitalismo a circulação começa com
o dinheiro, transformado em mercadoria e, em seguida, em
dinheiro novamente. Embora a circulação capitalista de
mercadorias (D-M-D) percorra duas fases antitéticas, tal qual a
circulação simples (M-D-M), nesta a finalidade é a apropriação
de valor de uso, enquanto naquela interessa a obtenção do
dinheiro, que, por sua vez, se converterá em capital.
Obviamente que, para encontrar alguém disposto a comprá-la, a
mercadoria deve conter, também, valor de uso, isto é, deve ser
útil a quem vier adquiri-la. Mas o capitalista só investe na
produção de mercadorias devido ao seu valor de troca, pois é na
venda que ele concretiza seu objetivo final: a obtenção do lucro,
cuja realização é indicada por Marx na fórmula D-M-D’, sendo
D’=D+ D, “ou seja, igual à soma de dinheiro originalmente
adiantado mais um incremento” (Marx, 1988: 124). É esse
acréscimo que Marx chama de mais-valia ou sobrevalor.
Segundo Archetti, a circulação simples “é possível porque o
camponês não aparece no mercado como possuidor de dinheiro,
mas sim como vendedor de mercadorias produzidas por ele
1
A expressão “economia camponesa” é utilizada por Chayanov, indicando
uma autonomia relativa da produção camponesa frente à economia
global. Embora neste texto não se reconheça o mesmo grau de autonomia
atribuído por aquele autor à produção camponesa, essa denominação será
empregada aqui para por falta de termo mais apropriado. Em todo caso,
essa expressão parece mais coerente do que “sociedade camponesa”,
conforme terminologia utilizada por Wolf (1976) e Mendras (s/d).
57
mesmo”, visto que, possuindo, total ou parcialmente, os meios
de produção está em condição de “controlar as condições
técnicas de produção” (Archetti, in: Chayanov, op. cit., p. 12).
A caracterização da produção camponesa como sendo ao
mesmo tempo de auto-subsistência e mercantil pode parecer
paradoxal. Na verdade, auto-subsistência não pode ser
confundida com auto-suficiência. Portanto, não sendo autosuficiente o camponês se vê impulsionado a produzir um
excedente a ser vendido para a obtenção de artigos que ele não
produz, tais como utensílios domésticos, sal, ferramentas de
trabalho, dentre outros. O grau de autonomia ou de
dependência do camponês em relação ao mercado para
satisfazer suas necessidades, depende do nível de
desenvolvimento da divisão do trabalho, que no capitalismo
atingiu seu mais elevado grau. Da perspectiva marxista, então,
podemos definir o camponês como um trabalhador rural que
produz para a auto-subsistência, incluindo a geração de um
excedente para a aquisição de artigos necessários ao próprio uso
e ou para saldar seus compromissos com o proprietário da terra.
Desse ponto de vista, não existe nem teria existido um “modo
de produção camponês”.
Aqui, ao invés de elencar os diversos modos de produção
identificados nos escritos de Marx, desde a caracterização feita
a partir das formas de propriedade contidas em A ideologia
alemã, como argumento para negar a existência de um modo de
produção camponês, importa apresentar uma definição dessa
categoria. Embora tenha empregado com muita freqüência o
termo modo de produção, o autor de O capital não se ocupou
em defini-lo em todos os seus detalhes. No “Prefácio”
(Introdução à Crítica da economia política) Marx afirma:
O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de
fio condutor aos meus estudos, pode ser formulado em poucas palavras: na
produção social da própria vida, os homens contraem relações
determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de
produção estas que correspondem a uma etapa determinada de
desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas
relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real
58
sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual
correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de
produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social,
político e espiritual (grifos nossos) (Marx, 1986, p. 25).2
Baseados nessas formulações, muitos autores chegaram a
uma definição de modo de produção que se limita a uma forma
determinada de articulação entre as forças produtivas e as
relações de produção. Coerentes com essa perspectiva, Cardoso
e Brignoli (1983) apresentam a seguinte conceituação: “uma
articulação historicamente dada entre determinado nível e forma
de organização das forças produtivas, e as relações de produção
correspondentes” (p. 66). Uma definição restrita. Porém, se se
atentar para o fato de que a cada modo de produção específico
corresponde uma superestrutura, ou seja, uma forma de
regulação e legitimação das relações de produção vigentes, em
que ambas as dimensões – estrutura e superestrutura – se interrelacionam, compondo, assim, uma totalidade mais complexa,
essa definição é insuficiente.
Ao considerar a afirmação de Marx de que sobre a “base
real”, isto é, a totalidade das relações de produção, se ergue
uma superestrutura político-jurídica, Vilar definiu modo de
produção, não como “‘maneira de produzir’ (e muito menos
maneira de trocar)”, mas como sendo, “ao mesmo tempo, um
complexo técnico de determinado nível, um sistema de relações
jurídicas e sociais, ligado ao tipo de exigências desse complexo
técnico, e um conjunto de instituições e convicções ideológicas
que asseguram o funcionamento do sistema geral” (op. cit., p.
289). Embora Vilar substitua a categoria forças produtivas
(meios de produção mais força de trabalho) pelo termo
“complexo técnico” e confunda relações sociais de produção
com “sistema de relações jurídicas e sociais”, essa definição é
mais completa do que a anterior.
Se é correto afirmar que, para Marx, o que distingue um
modo de produção de outro são as relações de produção
2
Nesse trecho do “Prefácio” Marx apresenta a sua concepção materialista
da sociedade em oposição ao idealismo de Hegel.
59
características de cada um (aí incluídas as relações de
propriedade), determinadas pelo nível de desenvolvimento das
forças produtivas, também é verdadeiro que cada modo de
produção possui uma superestrutura político-jurídica específica.
Daí, Marx afirmar que “Com a transformação da base
econômica, toda a enorme superestrutura se transforma com
maior ou menor rapidez” (1986, p. 25). Então, a partir das
formulações de Marx, podemos definir modo de produção como
uma totalidade social moldada por uma forma determinada de
articulação entre forças produtivas e relações de produção,
regulada por um sistema político-jurídico correspondente e
legitimada por um conjunto de valores expressos pela
ideologia dominante.
Em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, ao caracterizar o
campesinato francês em meados do século XIX (pequenos
camponeses), Marx se referiu a um “modo de produção”
camponês nos seguintes termos:
Os pequenos camponeses constituem uma imensa massa, cujos
membros vivem em condições semelhantes mas sem estabelecerem relações
multiformes entre si. Seu modo de produção os isola uns dos outros, em
vez de criar entre eles um intercâmbio mútuo. Esse isolamento é agravado
pelo mau sistema de comunicações existente na França e pela pobreza dos
camponeses. Seu campo de produção, a pequena propriedade, não permite
qualquer divisão do trabalho para o cultivo, nenhuma aplicação de métodos
científicos e, portanto, nenhuma diversidade de desenvolvimento, nenhuma
variedade de talento nenhuma riqueza de relações sociais. Cada família
camponesa é quase auto-suficiente; ela própria produz inteiramente a maior
parte do que consome, adquirindo assim os meios de subsistência mais
através de trocas com a natureza do que do intercâmbio com a sociedade
(1978, p. 115).
De acordo com essa caracterização, parece não haver
dúvida de que Marx não emprega o termo modo de produção
no mesmo sentido utilizado para denominar os modos de
produção antigo, feudal e capitalista, por exemplo. Está claro
que nesse parágrafo se refere à maneira de produzir, de se
relacionar com seus iguais e de se inserir nas relações de troca.
Essas constatações levaram Marx a tipificar os pequenos
60
camponeses franceses, não como uma classe propriamente dita,
isto é, um conjunto orgânico em que os indivíduos se
identificam uns com os outros pela mesma condição social e os
mesmos interesses coletivos, distintos e mesmo opostos aos de
outros segmentos e estabelecem entre si uma relação de
solidariedade, expressa na consciência dessa identificação e na
sua prática social e política autônoma em relação às demais
classes. O campesinato constitui uma classe apenas na medida
em que as condições econômicas em que vivem os seus
integrantes, “o seu modo de vida, os seus interesses e sua
cultura” os opõem aos das demais classes da sociedade (idem,
p. 115-116). Assim, o mais coerente, segundo os escritos de
Marx, seria definir a categoria social campesinato como uma
classe, não como um modo de produção.
A caracterização da “economia camponesa” elaborada por
Chayanov está fundada em pressupostos distintos dos de Marx.
Preocupado em ressaltar as peculiaridades da economia
camponesa, Chayanov considerava a teoria econômica do modo
de produção capitalista inadequada à sua compreensão.
Afirmava ele que “todos os princípios de nossa teoria – renda da
terra, capital, preço e outras categorias – formaram-se dentro
do marco de uma economia baseada no trabalho assalariado,
que busca maximizar lucros”, sem levar em conta as formas de
vida econômica não-capitalistas (Chayanov, 1981, p. 133).
Contrariando tal tendência, Chayanov se posiciona:
não conseguiremos progredir no pensamento econômico unicamente
com as categorias capitalistas, pois uma área muito vasta da vida
econômica (a maior parte da esfera de produção agrária) baseia-se, não em
uma forma capitalista, mas numa forma inteiramente diferente, de unidade
econômica familiar não assalariada. Essa unidade tem motivações muito
específicas para a atividade econômica, bem como uma concepção bastante
específica de lucratividade (idem: 133-134).
Na visão de Chayanov, portanto, o que move a família
camponesa a produzir não é a busca de uma certa taxa de lucro,
muito menos a obtenção de salários. Em vez disso, produz
visando a própria subsistência. Nesse sentido, o economista e
agrônomo russo afirma que o “produto do trabalho familiar é a
61
única categoria de renda possível, para uma unidade de trabalho
familiar camponesa ou artesanal, pois não existe maneira de
decompô-la analítica ou objetivamente” (idem: 138). Assim, o
cálculo capitalista se torna inaplicável à produção familiar
camponesa. Os fatores determinantes da quantidade de produto
gerada pelo trabalho camponês são o “tamanho e a composição
da família trabalhadora, o número de seus membros capazes de
trabalhar”, além da “produtividade da unidade de trabalho e –
isto é especialmente importante – (...) o grau de esforço do
trabalho”, ou seja, “o grau de auto-exploração através do qual
os membros trabalhadores realizam certa quantidade de
unidades de trabalho durante o ano” (idem). Daí sua tese: “o
grau de auto-exploração é determinado por um peculiar
equilíbrio entre a satisfação da demanda familiar e a própria
penosidade do trabalho” (idem: 138-139).
Com o objetivo de melhor explicitar sua tese sobre as
variáveis do cálculo da produção camponesa, Chayanov afirma
que “com o aumento de produção obtido por trabalho árduo
diminui a avaliação subjetiva do significado de cada novo rublo
[moeda russa] para o consumo; mas a penosidade do trabalho
para ganhá-lo, que exigirá uma quantidade cada vez maior de
auto-exploração” (p. 139). Persistindo a exigência de maior
produção, determinada por demanda interna, a família
camponesa, que utiliza apenas a própria força de trabalho,
prosseguirá com sua atividade econômica. Diferente disto, na
medida em que se torna possível satisfazer suas necessidades
com menor grau de auto-exploração, o equilíbrio entre os dois
elementos se estabelecerá, levando o camponês a diminuir a
intensidade do esforço.
Se para a empresa capitalista o aumento da demanda do
mercado – elemento externo e objetivo – é decisivo para forçar
a produção para além de sua “capacidade ótima”, na unidade
familiar não produz o mesmo efeito. Aí são os fatores internos,
submetidos a uma avaliação subjetiva, nos termos já colocados,
que exercem peso decisivo. Desta forma, Chayanov valoriza o
62
cálculo subjetivo na produção camponesa, relacionando-a com
os fatores objetivos internos.
Um confronto entre as concepções de Marx e de
Chayanov nos permite constatar, além de alguns pontos em que
estão de acordo, divergências fundamentais. Em conseqüência
das discordâncias, o economista russo partiu, junto com os
demais membros da ‘escola para o estudo da organização e
produção camponesas’ na Rússia, para a construção de uma
teoria que levasse em conta as suas especificidades,
diferentemente do que fez Marx em sua análise crítica do modo
de produção capitalista em O capital.
De entrada, podemos dizer que Chayanov concorda com
Marx que a produção camponesa se destina à auto-subsistência,
mesmo trocando parte do excedente no mercado. Com base
nisto, ambos definem a economia camponesa como mercantil
simples, portanto distinta da economia mercantil capitalista que
visa à obtenção do lucro. De acordo com Archetti, para os dois
autores só é possível falar de um modo de produção ou
economia estritamente camponesa “onde o campesinato se
apropria integralmente do produto da terra que trabalha”. Um
sistema em que os camponeses são obrigados a pagar algum
tipo de renda não poderia ser definido como tal, a não ser para
Chayanov, que não vê a troca de excedente da produção
camponesa como transferência de trabalho para os segmentos
dominantes da sociedade global, inclusive no capitalismo. Por
isso, ele identifica a economia camponesa como um modo de
produção da mesma forma que um outro qualquer. Quanto a
Marx, a interpretação de Archetti é equivocada, visto que, na
concepção de modo de produção daquele autor, não há
qualquer indicação de que a apropriação integral do produto do
trabalho por uma determinada classe, ainda que seja a classe
dominante, seja condição para um sistema econômico-social ser
considerado como tal. Além do mais, conforme já explicitado
acima, nos escritos de Marx não é possível identificar um modo
de produção camponês na acepção marxista do termo. Portanto,
nesse ponto não há semelhanças entre os dois autores, mas sim
divergências.
Quanto ao limite da produção camponesa, para Chayanov
são fatores internos, com ênfase na avaliação subjetiva das
necessidades e condicionantes objetivos (tamanho da família,
etc.), os verdadeiros determinantes da quantidade a ser
produzida. É assim que ele fala de “auto-exploração”, com
vistas a constituir “um fundo de subsistência definido
culturalmente”, em vez de exploração como imposição de
agentes externos (Archetti, in: op. cit., p. 11). Ao contrário
disso, Marx encontra na relação com o sistema global, externo à
unidade camponesa, os fatores objetivos que determinam o que
e o quanto deve ser produzido. Isso se deve ao fato de a
unidade camponesa não estar isolada de um contexto que
ultrapassa seus limites, além de se encontrar submetido a
relações de exploração impostas por setores dominantes que se
apropriam de parte do produto do seu trabalho. Em todo caso, a
produção camponesa não visa a acumular capital, sendo o
camponês um trabalhador que produz para a auto-subsistência.
Se levarmos em conta as elaborações de antropólogos e
sociólogos sobre a categoria campesinato, alguns inspirados nas
concepções de Marx ou de Chayanov, veremos que esta
caracterização não dá conta de toda a extensão do termo.
Atendendo ao propósito deste texto, faz-se necessário ampliar o
quadro até aqui exposto com as contribuições de estudiosos
dessas disciplinas.
Em sua obra clássica, Sociedades camponesas (1976), o
antropólogo Eric Wolf concebe o campesinato como uma
espécie de grupo humano que permaneceu numa posição
intermediária na escala da evolução, “entre a tribo primitiva e a
sociedade industrial” (p. 9). Para ele, o mundo camponês é um
mundo ordenado com formas particulares de organização, mas
isso não significa dizer que sejam grupos que vivem isolados da
sociedade global. Ao contrário, estão em permanente interação
com ela. Wolf inicia a caracterização do campesinato
63
64
distinguindo-o dos grupos “primitivos”, bem como dos
empresários agrícolas do tipo farmer norte-americano.
Conforme sua compreensão, os camponeses se diferenciam dos
primitivos pelo modo como se relacionam com os grupos
exteriores. Assim, afirma que,
nas sociedades primitivas, os excedentes são trocados diretamente
pelos grupos ou por seus membros; os camponeses, no entanto, são
cultivadores rurais cujos excedentes são transferidos para as mãos de um
grupo dominante, constituído pelos que governam, que os utilizam para
assegurar seu próprio nível de vida, e para distribuir o restante entre grupos
da sociedade que não cultivam a terra, mas devem ser alimentados, dando
em troca bens específicos e serviços (op. cit., p. 16).
Aqui já está a indicação de que o campesinato é, por
definição, um segmento subordinado econômica, social e
politicamente. Essa subordinação, que se materializou
historicamente com o surgimento do Estado, é tida por este
autor como o marco da civilização e da origem do próprio
campesinato. Ao caracterizar o campesinato como um segmento
dominado, Wolf coincide com Marx. Difícil é encontrar algum
autor que negue esta condição.
Henri Mendras, ao propor seu “tipo ideal de sociedade
camponesa”, inspirado em termos teóricos em Chayanov, e
tendo como referência histórica o campesinato europeu
ocidental do ano mil ao ano 2000, apresenta como um dos seus
traços característicos “a autonomia relativa das coletividades
camponesas frente a uma sociedade envolvente que as domina,
mas tolera as suas originalidades” (Mendras, s/d, p. 14).
Certamente que esta “autonomia relativa” aparece como
atenuante da subordinação. Esta visão fica mais clara quando o
autor identifica as características da economia camponesa, cujo
traço fundamental é a produção para o autoconsumo, com base
no trabalho familiar. “Mas – ressalva o autor – o camponês
produz também para um mercado envolvente, e isso o distingue
do ‘primitivo’. No entanto, essa exigência não é mais que um
acessório para compreender a lógica que preside ao cálculo
econômico do camponês” (op. cit., p. 44). Por causa dessa
situação subordinada, a socióloga brasileira Maria Isaura de
65
Queiroz considera “impróprio falar de ‘sociedades
camponesas’” (1976, p. 30).
Segundo Wolf, além da produção para a própria
subsistência e da geração de excedente que é transferido para os
grupos dominantes, o camponês produz, também, para
constituir uma série de fundos: um “fundo de manutenção”
destinado a cobrir despesas com sementes para o cultivo,
alimentação dos animais e reparos de equipamentos. Este fundo
não é considerado excedente. Um “fundo cerimonial” cuja
finalidade é cobrir gastos com cerimoniais (casamento, por
exemplo) que funcionam como reforço das relações sociais
internas. Um “fundo de aluguel” utilizado para pagar direitos
de algum poder superior que exerce domínio sobre a terra
cultivada pelo camponês, um “fundo de poder”, a ser pago ao
grupo dominante. Estes últimos são considerados excedentes.
Em sua caracterização do campesinato, a antropóloga
Margarida Maria Moura afirma que “em qualquer tempo e lugar
a posição do camponês é marcada pela subordinação aos donos
da terra e do poder, que dele extraem diferentes tipos de renda:
renda em produto, renda em trabalho, renda em dinheiro”
(1986, p. 10). Todas essas partes em que se decompõe o
produto do trabalho camponês são reveladoras da complexa teia
de relações em que ele se envolve. Essa situação de ter de
satisfazer às próprias necessidades e atender a exigências
externas constitui o eterno dilema do camponês. Na tentativa de
equacioná-lo, segundo Wolf, “o camponês pode seguir duas
estratégias diametralmente opostas. A primeira delas é
incrementar a produção; a segunda, reduzir o consumo” (op.
cit., p. 31). Dependendo das possibilidades apresentadas pelo
contexto social mais amplo no qual está inserido, o camponês
poderá optar por uma ou outra, entretanto, sua tendência é
combinar as duas, empregando meios que elevem a
produtividade do seu trabalho e restringindo sua alimentação ao
mínimo indispensável. Ressalte-se, porém, que, diante da
superexploração imposta pelo grupo dominante, uma outra
66
possibilidade que se apresenta para os camponeses é a revolta:
“se mais comumente dá a César econômica e cerimonialmente o
que é de César, outras vezes mostrará hostilidade aos agentes
de César” (Wolf, op. cit., p. 142-143).
No que se refere aos sistemas produtivos, às formas de
satisfação das necessidades que vão além do suprimento
alimentar e aos tipos de domínio com suas respectivas
modalidades de transferência de excedentes aos grupos
dominantes, prevalece a diversidade. Wolf não apresenta as
razões para essas diferenciações, mas não seria descabido
identificar a influência das condições ambientais, do nível
técnico da produção, da condição em que o camponês se
encontra frente aos grupos dominantes e da sua visão de mundo
na configuração desses aspectos da economia camponesa.
Para Mendras, o estudo das “sociedades camponesas”
deve levar em conta a relação entre os elementos humanos e
não-humanos, no sentido de verificar o peso de cada um na
definição da forma e do conteúdo do seu mundo. A luta do
camponês com o meio natural marca todas as sociedades com
diferentes resultados e intensidade, a depender, segundo o
autor, principalmente dos fatores culturais. Do seu ponto de
vista, o “equilíbrio entre recursos e população” depende dos
recursos tecnológicos disponíveis, não do potencial dos
recursos naturais. Na sua acepção, no mundo camponês é
evidente a dicotomia homem-natureza. A relação direta com a
natureza, possibilita ao camponês obter um profundo
conhecimento empírico da sua dinâmica, o que é fundamental
para a sua sobrevivência. Apesar do tradicionalismo e “de viver
sob a égide do costume e da rotina”, Mendras afirma que elas
não são impermeáveis às inovações e mudanças. Deve-se
considerar, entretanto, que a inovação ameaça a tradição, por
isso é aceita com cautela e restrições, conforme a necessidade.
Sociedades mais abertas “à incerteza e à avaliação das situações
são as mais preparadas para acolher a inovação, tanto a técnica
como a social” (op. cit., 204). Tomando por base pesquisas
psicológicas, Mendras conclui que “a difusão da inovação não
está ligada a uma rede de comunicações, mas a uma hierarquia
social”, onde a decisão é tomada por indivíduos da camada
superior (p. 217).
Na compreensão da organização social camponesa, o
grupo familiar ocupa lugar central. O casamento é essencial para
a reprodução biológica, a família é indispensável à produção
econômica e à reprodução da vida social. A família camponesa é
a forma mais elementar de expressão da solidariedade, apesar de
não estar imune a conflitos. A sucessão e a herança são os
motivos mais fortes de tensões no seio da família camponesa.
Segundo Wolf, a família camponesa se estrutura de duas
formas: em famílias nucleares – formadas por um casal e sua
prole – e extensas – compostas de várias famílias do primeiro
tipo. A predominância de um ou de outro tipo depende do
potencial de suprimento de alimentos – onde há escassez a
tendência é prevalecer as famílias nucleares; do nível de
desenvolvimento tecnológico – nas sociedades de agricultura
com certa especialização técnica tende a predominar as famílias
extensas. A necessidade de manter o patrimônio indiviso e a
vantagem da segurança social também favorecem a organização
deste último. Por outro lado, a existência de terra abundante ou
extremamente escassa e o predomínio do trabalho assalariado
são considerados fatores favoráveis à constituição de grupos
domésticos nucleares. Wolf identifica na família extensa uma
maior propensão a gerar tensões internas do que a nuclear. Para
manter a coesão, lança-se mão das cerimônias e da inculcação
nos jovens de padrões de conduta apropriada.
Procurando fugir ao que chama de “armadilhas” que
contém a categoria família, Mendras emprega a expressão
“grupo doméstico” para denominar o grupo familiar camponês.
O grupo doméstico, conforme afirma, é constituído “pelas
pessoas que vivem, segundo a expressão dos antigos, da mesma
panela e do mesmo fogo, do mesmo pão e do mesmo vinho” ou
da mesma dieta (op. cit., p. 65). Ele distingue a sociedade
67
68
industrial da “sociedade camponesa” no ponto em que, na
primeira, o trabalho, geralmente, é organizado no exterior do
grupo doméstico enquanto que na segunda ocorre o inverso,
onde “cada grupo doméstico assegura a produção de certos
bens alimentícios ou outros, que consome ou troca por outros
bens e serviços com outros grupos domésticos” (op. cit., p. 66).
A estabilidade e o alicerce patrimonial são as características
essenciais do grupo doméstico camponês, apontadas por esse
autor.
Em vez de classificar os grupos familiares camponeses em
nucleares e extensos, como o faz Wolf, Mendras os classifica
em família indivisa ou “patriarcal”, “que vive de um
patrimônio”, e a família original, grupo doméstico baseado em
‘residências’, onde “vivem um casal de avós, um casal de pais,
alguns solteiros e as crianças” (op. cit., p. 69). Em qualquer um
desses tipos o que garante a continuidade do grupo são a
“inalienabilidade e a indivisibilidade do patrimônio” (idem, p.
72), o que contraria o direito individual e total de propriedade,
conforme o direito romano.3 Essas discrepâncias entre o direito
costumeiro e a lei estabelecida pelo sistema dominante se
manifestam de modo mais agudo nos momentos cruciais da vida
camponesa, como na partilha da herança.
Embora seja a unidade básica, o grupo familiar, por maior
extensão que alcance, não abarca toda a estrutura da
organização social camponesa. Espraiando-se por um espaço
mais amplo e congregando várias famílias, existem as
3
Nessa perspectiva, Moura afirma que “A força da lei está no cerne de
constantes conflitos entre o campesinato e as classes ou sistema que o
subordina de alguma forma, seja pela convivência conflitiva de antigos
códigos costumeiros que regulam a existência camponesa na família, no
trabalho e na terra e que ficam em aberta contradição com os códigos
nacionais, seja pela constante procura de novas saídas para pressões
sofridas pela vigência de leis do Estado ou de concepções divergentes do
que seja o direito e a justiça” (op. cit., p. 33).
69
“coletividades locais” ou aldeias,4 segundo Mendras. De acordo
com a caracterização apresentada por esse autor, um dos traços
fundamentais das coletividades locais é o conhecimento mútuo
dos seus integrantes. Nelas, a indiferenciação de papéis e de
status permite um verdadeiro controle social. Do “arranjo da
regulação social resulta uma previsibilidade muito grande dos
comportamentos, ligada a essa transparência da sociedade para
seus membros” (op. cit., p. 90). A condição da transparência
está no respeito à privacidade dos indivíduos. Por outro lado, a
situação de autarquia social da “sociedade camponesa” constitui
condição da homogeneidade cultural. Todavia, homogeneidade
cultural não pressupõe igualdade social, ao contrário, a
diversidade social é que torna aquela suportável.
Segundo Wolf, as relações do campesinato com o mundo
interno e a sociedade que o cerca são marcadas por uma série
de pressões que atuam sobre ele, desafiando constantemente a
sua reprodução. Dentre elas, destacam-se: as pressões
produzidas pelo meio ambiente, advindas das intempéries
naturais (secas, inundações etc.), das pragas e da exaustão do
solo; pressões derivadas do próprio sistema social, provocadas
por desentendimentos entre interesses e projetos individuais,
especialmente por causa de herança e sucessão; pressões
emanadas da sociedade global, tanto de natureza econômica
(cobrança de tributos, aluguéis e juros) quanto política
4
Num estudo sobre o campesinato em São Paulo, Parceiros do Rio Bonito
(1977), Antonio Cândido em prega o termo “bairros rurais” ou “grupos
de vizinhança” para denominar essas coletividades camponesas. Esse
autor caracteriza o bairro rural paulista como “a estrutura fundamental
da sociabilidade caipira [este é o termo que usa para designar o camponês
paulista], consistindo no agrupamento de algumas ou muitas famílias,
mais ou menos vinculadas pelo sentimento de localidade, pela
convivência, pelas práticas de auxílio mútuo e pelas atividades lúdicoreligiosas. As habitações podem estar próximas umas das outras,
sugerindo por vezes um esboço de povoado ralo; e podem estar de tal
modo afastadas que o observador muitas vezes não discerne, nas casas
isoladas que topa a certos intervalos, a unidade que as congrega” (p. 62).
70
(cerceamento da autonomia) e militar (serviço militar, repressão
policial).
No domínio superestrutural, o camponês cria suas
representações com a finalidade de dar sentido à sua existência e
tornar os fenômenos que o envolvem inteligíveis. Colocando em
termos mais concretos, as crenças, os símbolos, os rituais, os
valores, o conhecimento, além de estarem vinculados ao mundo
real do camponês, funcionam como importantes fatores de sua
estabilidade e continuidade. Portanto, de modo geral, cumprem
um papel de conservação da ordem, mas, eventualmente, podem
atuar como elemento que impulsiona a ruptura com a ordem
sociopolítica envolvente.
Ao analisar a “ordem ideológica” na “sociedade
camponesa”, Wolf afirma que "tal ideologia consiste em atos e
idéias cerimoniais e crenças” que preenchem diversas funções.
Segundo ele,
algumas são expressivas como quando os homens desfilam com
objetos simbólicos à vista de todos pela ocasião de um casamento, funeral,
festa religiosa ou festa da colheita. Esses conjuntos de idéias e crenças têm
também uma função imitativa: ajudam os homens a lidar com crises
inevitáveis e irredutíveis da vida como falência, doença e morte. Além
disso, ajudando a mitigar os ansiosos e secando as lágrimas dos deserdados,
ligam sua experiência individual ao domínio público (op. cit., p. 130).
Por tudo isso, a “ideologia camponesa” possui “um
significado moral”, na medida em que estabelece e reforça o
padrão de conduta “correto” e atua como mecanismo de
controle das tensões que surgem no interior do grupo. No
estudo sobre o campesinato europeu, Mendras verifica que a
“ideologia” é empregada “como instrumento da administração e
da redução de conflitos” na coletividade camponesa (op. cit., p.
190-196). No que se refere aos “valores camponeses”, esse
autor afirma que, numa sociedade onde prevalece a propriedade
privada dos bens, o amor à terra manifestado pelo camponês
corresponde à necessidade de sobrevivência e é o signo da
liberdade. Já onde a terra é abundante ou é propriedade
comunal, “será valorizada como nutriz do gênero humano”,
podendo ser divinizada. Por seu lado, o reforço à distinção nós
71
e eles funciona como mecanismo de afirmação da identidade do
grupo.
Quanto ao significado da religião, as análises dos
estudiosos do campesinato também coincidem. Tanto o
cerimonial, com destaque para o casamento, quanto a religião
são mecanismos de validação e equilíbrio da ordem camponesa,
conforme interpretação de Wolf. Segundo Moura, para cada
estágio da existência (nascimento, vida, morte), o camponês
“tem concepções e práticas que tenta fazer prevalecer sobre as
práticas e regras vindas da sociedade que o envolve e domina”
(op. cit., p. 20). Sua religião tem um sentido prático, sua relação
com a divindade é mediada pelo compromisso de fidelidade que
mantém para com ela e pela contrapartida que dela espera
receber nos momentos de dificuldade. Do ponto de vista dessa
autora, “se o peso da religião é maior na cultura simbólica
camponesa, é porque fornece uma explicação cheia de sentidos
e sinais para quem observa diariamente o mistério da terra, da
água e do ar, bem como a incompetência dos poderes seculares
para atender às necessidades inerentes a seu modo de vida” (op.
cit., p. 22).
Num contexto em que a visão religiosa perpassa de forma
tão marcante todas as dimensões da vida, o comportamento
político não poderia ficar imune à sua influência. Submetido ao
jugo da exploração e do poder despótico de outros indivíduos
ou classe, o camponês sonha com um mundo redimido da
opressão. Mendras afirma que o camponês não é um rebelde, é,
antes, um irredento. E a sua utopia do “campo livre”,
geralmente, é inspirada numa idealizada “idade de ouro
passada” quando não estava submetido a um poder exterior. É
nessas circunstâncias que os movimentos camponeses tendem a
se expressar na forma de milenarismos ou messianismos,
especialmente nas sociedades pré-industriais.
A despeito dessa tendência do campesinato, Wolf afirma
que, às vezes, “as expectativas de reordenamento radical da
sociedade” o fazem evoluir para verdadeiras jacqueries,
72
podendo ser levado a se envolver em projetos revolucionários.
Nesse caso, estaria ultrapassando o limite do caráter “prépolítico” dos seus movimentos, na acepção de Hobsbawm
(1978). Porém, Mendras ressalva que as interpretações do papel
histórico do campesinato como mero objeto ou, ao contrário,
protagonista de grandes transformações são simplistas. Para ele,
“os camponeses não são nem inventores da democracia ou do
socialismo, nem o humo favorável à eclosão do totalitarismo”
(op. cit., p. 142). Mas também não há dúvida de que o
campesinato exerceu importante papel nas revoluções sociais
que marcaram o triunfo da sociedade burguesa no Ocidente, da
mesma forma que não se pode negar o seu peso em revoluções
antiburguesas como a revolução russa de 1917.
No Brasil, apesar da ocorrência de importantes revoltas
como a de Canudos, no sertão da Bahia, a do Contestado, entre
Santa Catarina e Paraná, e a de Formoso e Trombas, no estado
de Goiás, os movimentos camponeses permaneceram por muito
tempo ignoradas, o que, segundo Moura, “torna muitos ativistas
e pensadores políticos uma espécie de observadores
envergonhados do campesinato brasileiro” (op. cit., p. 51). Com
a retomada das lutas pela terra nos últimos anos da ditadura
militar (1964-1985), dadas as suas repercussões, inclusive nos
meios de comunicação de massa, um grande setor do
campesinato brasileiro tem merecido maior atenção dos agentes
políticos e dos estudiosos de uma perspectiva menos
preconceituosa.
Apoiados na análise de Mendras, podemos dizer que,
independente de movimentos que visem transformações
profundas, o campesinato, mesmo subordinado a uma sociedade
envolvente, exerce sobre ela pressão no sentido de definir uma
política para o campo, cuja maior preocupação é com a sua
alimentação. Obviamente que para isso é fundamental assegurar
o acesso à terra, o que torna o camponês sem terra um defensor
da reforma agrária.
As caracterizações do campesinato feitas por Eric Wolf e
Henri Mendras apresentadas até aqui, merecem algumas
considerações críticas. A primeira constatação é de que são mais
completas, na medida em que descrevem a complexidade da
cultura e das relações sociopolíticas estabelecidas com o poder
instituído e os demais segmentos sociais da “sociedade
envolvente”, ultrapassando os limites da caracterização
fundamentalmente econômica, típica da noção “economia
camponesa”. Evidentemente, essa maior abrangência é
determinada pela natureza das suas especialidades. Por outro
lado, as noções de “sociedades camponesas”, ao mesmo tempo
em que indicam a pluralidade do campesinato e a complexidade
das suas relações, produzem a conotação de serem totalidades
autônomas ante as realidades nacionais. Trata-se mais da
inadequação da terminologia do que do não reconhecimento da
estreita relação que o campesinato mantém com o restante da
sociedade da qual é parte integrante.
Para completar esta explanação sobre as definições de
camponês, convém acrescentar as contribuições de outros
estudiosos, especialmente as do sociólogo brasileiro José de
Souza Martins. Ao estudar o campesinato brasileiro, Martins
(1995) infere que essa categoria é derivada de uma importação
política das esquerdas brasileiras, procurando dar conta da luta
dos trabalhadores no campo. Ela vem para substituir um
conjunto de categorias utilizadas anteriormente, tais como
caipira, caiçara, tabaréu, caboclo, de acordo com diferentes
épocas e regiões do país. Por sua vez, os grandes proprietários
de terra recebiam outras denominações, quais sejam:
fazendeiros, senhores de engenho, estancieiros, seringalistas.
Essas categorias foram substituídas pelas de camponês e
latifundiário. Segundo esse autor,
73
74
essas novas palavras – camponês e latifundiário – são palavras
políticas, que procuram expressar a unidade das respectivas situações de
classe e, sobretudo, que procuram dar unidade ás lutas dos camponeses...
Nesse plano, a palavra camponês não designa apenas o seu novo nome, mas
também o seu lugar social, não apenas no espaço geográfico, no campo em
contraposição à povoação ou à cidade, mas na estrutura da sociedade; por
isso, não é apenas um novo nome, mas pretende ser também a designação
de um destino histórico” (op. cit., p. 22-23).
Já fazendo a crítica dessa importação, o mencionado
sociólogo observa: “Uma coisa, porém, é esse destino. Outra
coisa é a concepção desse destino” (idem, p. 23). Conforme
entende Martins, essa transplantação feita de forma mecânica da
realidade histórica européia, especificamente da Rússia do final
do século XIX e início do XX, em vez de ajudar dificulta a
compreensão das lutas rurais no Brasil. Assim, “o destino do
camponês brasileiro passa a ser concebido através de um
entendimento estrangeiro de destino do camponês (como
estranha é a própria palavra nova que designa) e que não
corresponde à sua realidade, às contradições que vive, ao
destino real que nasce de fato dessas contradições e não da
imaginação política” (idem). Mais do que um problema
hermenêutico, Martins coloca uma questão epistemológica e
política, sem, no entanto, fornecer uma definição detalhada do
campesinato.
Somente numa nota de pé de página tenta delinear sua
acepção: “Neste trabalho trato de diferentes formas de
campesinato da sociedade brasileira, particularmente daquelas
destituídas da propriedade da terra. Na concepção de camponês,
não estou incluindo o trabalhador assalariado do campo" (op.
cit., p. 21). Colocada desta forma, Martins apresenta uma visão
de camponês como sendo um excluído, o que torna esse
conceito muito mais abrangente, em termos social e político.
Sua análise de relação entre campesinato e política, parte dessa
definição de camponês enquanto um excluído do pacto político.
É desta forma, segundo ele, que os partidos e grupos políticos
irão encarar o camponês. Sendo assim, o camponês será visto –
por aqueles que afirmam ser seus aliados – como um perigo,
sujeito incapaz de fazer história, de intervir no processo
histórico, senão para conservá-lo. Por isso, será concebido
como um grupo social que deve ser “conscientizado” ou como
um “aliado subordinado” do proletariado.
75
Assim, vemos a situação do campesinato no imaginário
político dos partidos de esquerda. Estes transpõem
mecanicamente a concepção que orienta sua ação política de um
contexto para o outro. É o caso daqueles que, retomando
Engels e Lênin, entre outros, irão colocar o campesinato como
sendo um grupo social pequeno-burguês, que, por natureza,
reivindica a propriedade da terra. O campesinato aparece, assim,
como uma classe social que é portadora de uma ideologia
pequeno-burguesa, um aliado perigoso, que, após a revolução
socialista, deve ser combatido, havendo, portanto, a necessidade
de uma “segunda luta”. Ao atribuir essa “essência” pequenoburguesa ao campesinato, as esquerdas brasileiras reforçam tal
característica. Podemos buscar compreender essa situação
partindo das reflexões de Martins (l989), nas quais ele afirma
que os dilemas que atingem as classes subalternizadas
“decorrem menos da realidade do que das interpretações
correntes sobre camponeses” (p. 101).
Segundo sua constatação de Martins, os pesquisadores
acadêmicos de orientação marxista geralmente tratam o
camponês de forma diferente do operário. A discrepância entre
situação social e consciência de classe no proletariado é
explicada pelo fenômeno da alienação, enquanto que essa
mesma discrepância no campesinato é considerada arcaísmo,
atraso. Isso desqualifica o campesinato para a luta política e traz
a idéia de que tal grupo social deve ser dirigido pelos partidos
ligados ao proletariado, formando a aliança revolucionária que
libertará ambas as classes da espoliação e da dominação
capitalistas.
Como se depreende da explanação realizada até aqui, a
definição da categoria camponês não é tão simples como alguns
usos do termo por estudiosos ou ativistas dão a entender,
empregando-o para denominar diferentes tipos de trabalhadores
rurais em realidades diversas. Por outro lado, faz-se necessário
reconhecer que esse quadro está longe de esgotar a produção
das ciências sociais sobre o tema. Além do mais, ao empreender
76
a elaboração deste texto, não se tinha tal propósito, de resto
impossível em espaço tão limitado.
Feitos esses esclarecimentos e considerando as
formulações apresentadas acima, chegamos a uma definição do
campesinato nos seguintes termos: constitui a classe social que
vive do próprio trabalho no campo, empregando a mão-de-obra
familiar, detendo ou não a posse da terra que cultiva, sendo
proprietária dos meios de trabalho, realizando uma produção
que tem como fim a auto-subsistência, ainda que seja uma
produção especializada destinada total ou parcialmente ao
comércio. Esta noção tem a pretensão de ser utilizada para
designar o campesinato desde o seu surgimento na história, mais
precisamente a partir da consolidação da divisão social do
trabalho entre campo e cidade e do conseqüente surgimento de
uma classe dominante urbana, até a atualidade, guardadas,
obviamente, as especificidades de cada época e lugar.
Tendo chegado a uma definição geral, dada a
complexidade e a diversidade da realidade camponesa, cabe
agora apresentar algumas ressalvas e considerações a serem
levadas em conta no emprego da categoria camponês. Em
primeiro lugar, a condição existencial do camponês de
cultivador da terra é imprescindível à sua caracterização como
tal. Todavia, isso não pode nos levar a confundir os agricultores
primitivos, anteriores à divisão social do trabalho entre campo e
cidade, com o camponês. Este, dada a sua condição de classe
subalternizada, produz um excedente que é apropriado pela
classe dominante, aquele não. A classe que se apropria do
excedente gerado pelo camponês exerce o seu domínio
diretamente ou por meio do Estado.
As formas de transferência do excedente para os grupos
dominantes variam de acordo com o contexto histórico. Assim,
na sociedade egípcia antiga, por exemplo, a transferência se
dava na forma de tributos pagos com produtos ao Estado e à
classe dominante local; nas sociedades européias medievais se
materializavam na forma de trabalho, de produtos e/ou de
77
moeda, entregues à aristocracia pelo uso da terra e de
equipamentos, e à Igreja, especialmente, como dízimo; nas
sociedades capitalistas, a apropriação dos excedentes
camponeses pela classe dominante ocorre tanto através das
transações mercantis quanto na forma de renda da terra.
No Brasil, o campesinato cujo marco constitutivo se
encontra na desagregação do sistema escravista, a partir de
meados do século XIX – embora tenha seus antecedentes num
protocampesinato que coexistiu com o escravismo, segundo
Flamarion Cardoso (1979) – historicamente, foi submetido a
diversos modos de transferência dos excedentes, através dos
sistemas de arrendamento da terra, tais como a meia, a terça, a
parceria, o aforamento,5 etc. Mesmo com o avanço da
modernização capitalista no campo, a partir da década de 1950,
esses mecanismos não desapareceram totalmente. Entretanto,
com o crescimento das cidades e o avanço da industrialização, o
mercado passou a ocupar lugar central nessa relação.
Ainda no âmbito econômico, deve-se levar em conta o
tipo de vínculo que o camponês mantém com a terra em que
trabalha e o tipo de mão-de-obra utilizado na produção. Neste
caso, o trabalhador rural tanto pode ser proprietário como nãoproprietário, desde que empregue basicamente a força de
trabalho familiar, utilizando mão-de-obra de terceiros apenas em
ocasiões especiais (colheita, por exemplo). Não importa o tipo
de técnica que use, contanto que o destino prioritário da
produção seja a auto-subsistência. Aqui cabe ressaltar que,
mesmo sendo proprietário de terra (pequena propriedade), em
certos períodos do ano o camponês pode ter de se assalariar,
para complementar a própria renda. Mas o trabalhador rural que
5
Todas essas formas de arrendamento eram cobradas pelos grandes e/ou
médios proprietários aos camponeses sem terra. A meia correspondia à
metade da produção gerada pelo camponês entregue ao proprietário pelo
uso da terra, a terça correspondia a um terço da produção, o foro consistia
numa taxa ou quantidade estabelecida previamente e a parceria era uma
espécie de contrato em que o camponês se comprometia a realizar certos
serviços para o proprietário.
78
vive predominantemente da venda da sua força de trabalho não
se caracteriza como camponês, trata-se de proletário rural.
Se essas indicações e ressalvas parecem dar conta da
complexidade do ser camponês no aspecto econômico, nas
dimensões social, cultural e política é necessário ampliar a
caracterização. No que se refere aos padrões de relações
sociais, deve-se tomar como referência os laços familiares e de
vizinhanças. No Brasil, o compadrio desempenha papel
fundamental na configuração do mundo social camponês. Ele é
relevante para se compreender tanto as relações internas,
geralmente horizontais, quanto aquelas estabelecidas com os
grupos dominantes da sociedade em que está inserido.
As representações do mundo construídas pelo camponês
costumam causar estranheza nos indivíduos que não participam
dele, inclusive nos seus estudiosos menos avisados. Mas é
preciso que se entenda, sem elas a vida se tornaria ininteligível.
A visão de mundo do camponeses – para alguns, “ideologia”,
conforme acepção de Wolf e Mendras (obras citadas) – é
profundamente marcada pelo modo como se relacionam com a
terra e pela condição em que se encontram perante os grupos
dominantes da sociedade. As crenças religiosas são instâncias
privilegiadas das representações. As crenças no sobrenatural, ao
mesmo tempo em que se expressam como uma projeção do
mundo humano funcionam como um meio ordenador deste. As
representações são importantes, inclusive para se compreender
o comportamento político do campesinato, tanto na sua
acomodação quanto nas suas manifestações de rebeldia.
Para concluir, cabe reafirmar que a utilização da noção de
camponês de modo algum deve ocorrer de maneira isolada dos
contextos históricos nos quais se insere o campesinato. Nesse
sentido, em vez de nos referirmos a camponês, no singular,
talvez fosse melhor empregar o termo no plural.
ARCHETTI, Eduardo P. “Apresentación”. In: CHAYANOV,
Alexander V. La organización de la unidad económica campesina.
Buenos Aires: Nueva Visión, 1974.
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escravidão
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Caldeira S da Silva. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.
O CAMPESINATO NO BRASIL
Ovil Bueno Fernandes*
O mundo camponês, não é
amorfo,
mas
possui
formas
particulares de organização. Rotular
suas populações de “tradicionais”
ou “conservadoras”, em oposição as
consideradas “modernas”, não
explica porque a tradição persiste,
nem por que o povo se mantém fiel a
ela.
Erich Wolf
Segundo o censo agropecuário de 1985, o setor camponês de
produção era responsável por mais de 80% dos alimentos de origem
rural que abasteciam o mercado interno do país. O mesmo censo
também revela que a pequena propriedade familiar emprega 60% da
população economicamente ativa no campo, mostrando a importância
da unidade produtora camponesa. O presente artigo não tem a
pretensão de fazer uma análise profunda do campesinato brasileiro,
81
mas sim de mostrar as condições gerais de surgimento do campesinato
brasileiro.
Para José de Souza Martins, o campesinato brasileiro é
constituído simultaneamente com a expansão capitalista, como
produto das contradições dessa expansão. Por isso a história do
campesinato brasileiro é, também a história do desenvolvimento do
capitalismo no Brasil1.
Na Europa Ocidental, o campesinato surge com a expansão do
modo de produção capitalista. A transição de um modo de produção a
outro é bastante complexa e o caso específico da transição do
feudalismo para o capitalismo é mais complexa ainda, devido as
próprias características complexas deste modo de produção. Nesta
transição acontece a desarticulação do feudalismo e simultaneamente
a expansão do capitalismo envolvendo diversas relações de produção
não-capitalistas.
Uma dessas relações de produção é a produção camponesa, que
no caso da Europa Ocidental surge com a transição do feudalismo ao
capitalismo. No Brasil não houve transição do feudalismo para o
capitalismo e sim do escravismo colonial para o capitalismo. A
produção camponesa no Brasil surge também subordinada ao
capitalismo, constituindo-se como um modo de produção subordinado.
O sistema agrário brasileiro caracteriza-se, desde os tempos
coloniais até o presente, pela produção nas grandes fazendas de
gêneros destinados a exportação, sendo apoiado no abastecimento
interno de gêneros alimentícios pela produção local de tipo
camponesa.
A formação de um campesinato no Brasil se deu devido ao fato
de que o capitalismo não é capaz de levar adiante uma
homogeneização estrutural completa no interior de sua formação, e
por isso é preciso basear-se na exploração de formas não-capitalistas
de produção para que, através da acumulação primitiva de capital,
possa a realizar a acumulação propriamente capitalista.
Assim, ao lado do sistema monocultor de exportação, se
desenvolve um setor camponês organizado em regimes familiares que
1
Cf. MARTINS, José de Souza. Os Camponeses e a Política no Brasil. 3ª ed.
Petrópolis, Vozes, 1986.
82
produzem gêneros alimentícios para o consumo doméstico e vendem
os seus excedentes em feiras locais.
Para Otávio Guilherme Velho, a formação de um campesinato no
Brasil agrário foi fundamental para o desenvolvimento do capitalismo
brasileiro, porque o capitalismo só se reproduz através da exploração
de classes 2 . Como a formação do capitalismo no Brasil se inicia no
setor agrário (nos engenhos, cafeicultura, etc.) fez-se necessário a
exploração de excedentes de um outro setor. Como o Brasil não teve
possibilidade “externa” de transferência de excedente feita através do
comércio exterior, colônias etc., para que pudesse proporcionar uma
“acumulação primitiva de capital”, fez-se necessário uma base
camponesa para que esta acumulação prosseguisse. Assim a formação
de um campesinato foi fundamental para o desenvolvimento capitalista
no Brasil agrário.
Neste caso, definimos a produção camponesa como uma forma
subordinada de produção, como uma forma não-capitalista de
produção, ou seja, a produção camponesa constitui um modo de
produção particular, apresentando uma combinação particular dos
fatores de produção (força produtiva) unida a um tipo particular de
relação entre os homens (relação de produção). Possui todos os traços
de um modo de produção, porém é subordinado ao capitalismo.
A economia camponesa tem como objetivo a subsistência e
somente secundariamente a troca do produto que excede às suas
necessidades, tratando-se de uma economia com base na pequena
propriedade policultora voltada para o mercado interno e,
parcialmente, para o mercado externo. O capital, devido suas
necessidades, cria condições para extrair excedente econômico da
produção camponesa.
A principal forma de extração de excedente econômico é a
alienação do produto do camponês ao mercado, onde o mercado passa
a ser o regulador da economia e principal meio de extração do
excedente da economia camponesa.
Assim, o campesinato brasileiro se caracteriza por ser, desde a
sua formação, vinculado ao mercado como forma de abastecimento
2
VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo Autoritário e Campesinato. 2ª ed.
Rio de Janeiro, Difel, 1979.
83
interno de gêneros alimentícios e como suporte ao desenvolvimento
capitalista.
Segundo José de Souza Martins, o desenvolvimento do
capitalismo no Brasil, num primeiro momento, não operou, de modo
geral, a separação entre a propriedade e a exploração desta
propriedade3. O que vemos é o capital se apropriar da renda da terra.
O capital tem se apropriado diretamente da grande propriedade da
terra como é o caso das grandes lavouras monocultoras (cana-deaçúcar, café, soja, etc.), e onde a renda é baixa, como no caso dos
setores de alimentos de consumo interno, o capital procura apropriarse da renda territorial, criando condições para extrair o excedente
econômico.
Onde o capital não torna-se proprietário real da terra para extrair
juntos o lucro e a renda, como no caso da produção camponesa, ele se
assegura o direito de extrair a renda territorial. Uma das formas de
extração dessa renda é a cobrança de um aluguel ao arrendatário pelo
o uso da terra como instrumento de produção. Mas no caso do
campesinato brasileiro isso não é possível, porque aqui nossa noção
de camponês é aquela do pequeno produtor com a produção
policultora tipo familiar, por isso a forma de extrair a renda territorial
pelo capital se dá de maneira diferente, não pela cobrança de aluguel,
mas pela subordinação da economia camponesa ao mercado e pela
troca desigual. Por isso o capital estabelece a dependência do produtor
em relação ao mercado, etc.
A produção camponesa se baseia na produção de mercadorias
para que esta possa ser convertida em dinheiro e depois em
mercadorias para satisfazer as necessidades do camponês e ao ser
trocada no mercado, no momento da circulação das mercadorias de
origem agrícola, o camponês entra em desvantagem através da troca
desigual, possibilitando assim a extração da renda territorial pelo
capital. O que acontece é que a pequena produção de base familiar
está sempre em desvantagem nas relações de troca.
Outra forma do capital extrair a renda territorial é a dependência
do crédito bancário. O pequeno produtor de base familiar está sempre
endividado com o banco, a sua propriedade está sempre comprometida
com a garantia de empréstimos para manter o custo de sua lavoura.
3
MARTINS, José de Souza. ob. cit.
84
Mesmo sem qualquer alteração aparente na sua condição, mantendose proprietário, mantendo o seu trabalho organizado com base na
família, o camponês entrega ao banco anualmente os juros dos
empréstimos que faz. Assim, o banco extrai do camponês a renda da
terra, sem ser o proprietário dela, através da cobrança de juros.
Se aceitarmos a tese de que o modo de produção camponês é um
modo de produção subordinado, veremos que essa subordinação é
conseqüência de sua formação. No Brasil, ele surge simultaneamente
com o desenvolvimento do capitalismo. Por isso nasce subordinado.
Segundo Velho, é a própria subordinação do campesinato
brasileiro que garante a sua reprodução. A própria forma histórica e
estrutural de sua subordinação caracteriza o campesinato brasileiro.
Para Velho, mesmo quando o camponês pode ser considerado
livre no sentido de ser o dono dos seus meios de produção, ele
continua sendo subordinado. Sua subordinação se processa através do
mecanismo tributário, das trocas desiguais ou simplesmente por não
lhe ser permitido ultrapassar certos limites em termos de acumulação,
mesmo quando é “protegido” na sua sobrevivência enquanto
camponês4.
O campesinato brasileiro tem operado historicamente dentro de
um sistema capitalista em expansão onde tudo tem um mercado: tanto
a terra e o trabalho, quanto o produto. O camponês tem sido o
produtor em pequena escala que supre com gêneros alimentícios e
trabalho o setor dominante da economia orientada para a exportação.
Neste caso, o termo “camponês” denotará nada mais nada menos
que uma relação estrutural assimétrica entre produtor de excedentes e
o grupo dominante. Por isso afirmamos que o nosso campesinato é
constituído com a expansão capitalista, como produto das
contradições dessa expansão, onde a propriedade camponesa constitui
uma propriedade familiar mas capaz de produzir excedentes para
abastecer o mercado interno e servir de base para o mesmo.
O que designamos aqui como camponeses, são aqueles
produtores que trabalham em uma pequena unidade de terra, onde
seus sistemas de produção são organizados em regime familiar, com
sua economia voltada para a subsistência e, secundariamente, para a
troca dos produtos que vão além de suas necessidades (o chamado
4
VELHO, Otávio. G. ob. cit.
85
“excedente”) baseando-se numa produção policultora voltada para o
mercado interno e, parcialmente, para o mercado externo.
A classe camponesa brasileira é parte impotente de um sistema
econômico, onde os camponeses são produtores de produtos básicos e
consumidores de mercadorias vitais à continuidade deste sistema e de
sua reprodução.
No caso brasileiro, a unidade camponesa não é, portanto,
somente uma organização produtiva, ela é também uma unidade de
consumo. Portanto, ao trocar seus excedentes no mercado e ao
adquirir bens necessários à sua sobrevivência, o camponês abre
espaço para que o capital retire dele excedentes através da troca
desigual para realizar a acumulação capitalista.
A REFORMA AGRÁRIA EM QUESTÃO
Uelinton Barbosa Rodrigues
Recentemente temos visto uma intensificação no debate
acadêmico e científico a respeito da questão agrária brasileira e
sobretudo da agricultura familiar e camponesa desenvolvida nos
assentamentos de trabalhadores rurais sem terra. Diante da
importância de tal temática, o presente trabalho busca analisar e
compreender se tais formas de organização demonstram a
viabilidade econômica, política e social da agricultura familiar,
desenvolvida nos assentamentos de trabalhadores rurais sem
terra. Buscaremos assim caracterizar a organização política,
produtiva e principalmente a cooperação agrícola desenvolvidas
nos assentamentos de trabalhadores.
De um lado a agricultura brasileira conviveu com um
processo de aceleração da modernização agrícola e a revolução
86
Dilemas da Reforma e Questão Agrária no Capitalismo
A presente análise tem como objetivo discutir algumas
das mais importantes concepções teóricas que envolvem o
modo de produção camponês e suas relações e implicações
junto ao modo de produção capitalista. Onde num primeiro
momento abordaremos o modo de produção camponês e a
agricultura capitalista, partindo de uma perspectiva de análise
dos clássicos da questão agrária a qual nos limitaremos a três
autores, Kautsky, Lênin e Chayanov. Posteriormente
discutiremos o processo de resistência e recriação do modo de
produção camponês em suas contradições. Para tanto
abordaremos como possível foco de resistência camponesa o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e a
materialização dessa resistência que são os seus assentamentos
rurais, abordando assim todo o processo de luta pela terra,
desde a mobilização, passando pela fase de acampamento até a
fase em que as famílias estão assentadas, sendo que esta última
fase será abordada com prioridade em nossa análise.
Analisaremos assim suas variadas formas de produção e
organização. Para tanto faremos uma discussão preliminar sobre
as variadas formas de abordar e compreender os vários
conceitos de reforma agrária, fazendo assim uma breve
apresentação desses conceitos.
Para podermos compreender melhor a questão agrária e
em especial o modo de produção camponês, na qual insere os
assentamentos do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem
Terra, iremos fazer algumas breves considerações teóricas sobre
o que se entende como modo de produção camponês e suas
diversas leituras. Conforme Marx, o que caracteriza o modo de
produção capitalista é a produção de mais-valor, no qual uma
classe, o proletariado, produz mais-valor e outra, a burguesia, se
apropria dele (Marx, 1988). Onde predomina o binômio de
classes antagônicas, sendo nesse modo de produção as dos
burgueses e proletários. Sendo que a primeira detém os meios
de produção, e a segunda vendedora de sua força de trabalho.
E no modo de produção camponês, que é nosso objeto
de análise, como podemos caracterizar este binômio? Existe na
verdade uma classificação dos modos de produção, onde se tem
um modo de produção hegemônico, que, em nosso caso, é o
capitalista, e tem uma família de modos de produção que se
denomina por várias terminologias passando por termos como
modos de produção periféricos, auxiliares, entre outros. Mas
passaremos a chamar aos modos de produção não-capitalistas
existentes em relação com ele de modos de produção
subordinados, pois este exprime com mais exatidão o
significado do modo de produção camponês dentro do
87
88
verde, chamada por alguns estudiosos de modernização
conservadora, outros dizem de “modernização dolorosa”.
Conservadora porque não modificou a estrutura agrária e da
propriedade da terra, conservando a grande propriedade, o
latifúndio. E dolorosa porque gerou uma crise de grandes
proporções no meio agrário brasileiro, provocando o
progressivo desaparecimento da pequena propriedade, o êxodo
rural e a violência. Grande parte dos chamados pequenos
produtores rurais, proprietários ou não, não conseguindo
acompanhar a modernização, foi alijada do processo. Por isso
foi expulsa do meio rural, gerando um excedente populacional
nas cidades, elevando o índice de criminalidade, subemprego,
favelização etc.
Nesse contexto de exploração e expropriação dos
camponeses e trabalhadores rurais, que foi provocado pela
modernização agrícola e pelo desenvolvimento do capitalismo
na agricultura, é que presenciamos o ressurgimento dos
movimentos sociais no campo, primeiro com as ligas
camponesas, posteriormente com o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, entre outros. Esta
resistência é parte de um processo de criação e recriação do
modo de produção camponês, materializada na forma de
ocupações e resistência na terra.
capitalismo. O modo de produção camponês está contido nesse
conjunto de modos de produção. No modo de produção
camponês o binômio tem uma diferença, em vez do
antagonismo da classe burguesa com a proletária, existe um
binômio que opõem de um lado os camponeses produtores que
são organizados em sociedades, e de outro lado uma classeestado que controla o acesso ao solo.
Observamos, por outro lado, que as formações
capitalistas, segundo Amin (1977, p.12), se distinguem das
formações pré-capitalistas, no sentindo em que a lei fundamental
do modo de produção capitalista acarreta uma tendência do
mesmo de desintegrar as outras e fazê-las desaparecer, o que
não ocorre nas formações pré-capitalistas. Onde as formações
capitalistas tendem à homogeneidade, e estas formações tendem
a ser reduzida ao modo de produção capitalista. Isso significa
dizer que nas formações capitalistas, os modos de produção
subordinados – e por isso eles subsistem – são profundamente
alterados, transformados, desfigurados, às vezes esvaziados de
seu conteúdo.
Outro motivo de debates teóricos tratando do modo de
produção capitalista e a agricultura reside no fato do modo
capitalista ignorar o “controle” do solo, isto é, segundo Amin
(1977, p.14), está no fato de se conhecer na verdade apenas
duas classes no modo capitalista: a dos burgueses e proletários;
dois “rendimentos”: lucros e salários que na verdade são
linguagem na economia convencional dois fatores da produção,
capital e trabalho. Assim não há proprietários fundiários, renda,
fator “natureza ou terra”. Seria isso segundo o mesmo autor,
uma “simplificação”, isto é, a terra seria também lucro (o do
capital fundiário) e os proprietários fundiários, capitalistas
particulares? Diante desta indagação podemos dizer, por um
lado, que não, embora essas categorias pré-capitalistas
assumirem cada vez mais esta forma, em virtude do que já
tratamos outrora, que é a dominação do modo de produção
capitalista provocando estas deformações.
Sendo assim, a terra para o camponês assume um outro
valor, que não o de lucro, como é visto no capitalismo. A terra
tem assim um valor de uso, um meio de trabalho, podendo
assim ser comparado com o gado, as ferramentas, entre outras.
No
sentido
de
compreendermos
melhor
o
desenvolvimento do capitalismo na agricultura, e suas
conseqüências para o modo de produção camponês, iremos
trazer a tona alguns debates que envolveram as discussões
socialistas no inicio do século passado, que tinham como
protagonistas do debate, autores dentre as mais importantes
Lênin, Kautsky e Chayanov.
Para a social-democracia o desenvolvimento do capitalismo
na agricultura, chega no final do século XIX, em sua terceira
fase, onde a mesma formula a lei desse desenvolvimento, que
consistia em que a concorrência deve eliminar progressivamente
os camponeses, em favor dos grandes capitalistas agrários que
dispunham de capitais necessários à utilização da mecanização.
Sendo que a concentração da propriedade da terra uma
tendência deste desenvolvimento.
Por outro lado Karl Kautsky, em seu livro A Questão
Agrária, faz uma critica a versão da social-democracia na qual
reduziu a tendência da evolução da agricultura à concentração
da terra. Sendo que em contrapartida da análise da social
democracia Kautsky parte da constatação em primeiro lugar da
resistência à concentração. Explica que a pequena exploração
camponesa se opõe à grande “atividade mais considerável. Do
trabalhador que produz por ele mesmo, ao contrário do
assalariado. Podendo assim concluir que “para o pequeno
camponês quando o preço da venda de seus produtos, tirando
suas despesas, o paga por seu trabalho, ele pode viver; pode
renunciar ao lucro e a renda fundiária”. Ainda analisando as
relações do capitalismo e a agricultura em termos políticos de
alianças de classe e não de simples desenvolvimento da
agricultura capitalista, ele salienta que; “em termos da
dominação do capitalismo industrial sobre as formas rurais não-
89
90
capitalistas ou pré-capitalista, em termos de real desprovimento,
apesar da manutenção da propriedade formal, qualificando
assim o camponês de “servos do capital industrial”. (Kautsky, p.
212, 1978].
Já Lênin em seu livro O Desenvolvimento do
Capitalismo na Rússia faz uma análise próxima a de Kautsky,
onde parte da hipótese da tendência da concentração, para
examinar o desenvolvimento do capitalismo na agricultura da
Rússia. Constatando a concentração da propriedade do solo e
meios de produção (arados), aparição e desenvolvimento do
número relativo e absoluto dos trabalhadores agrícolas,
diferenciação crescente no seio do campesinato e reforço da
posição dos camponeses ricos em detrimento dos camponeses
médios, tais são as tendências do sistema. Enunciava ainda a
decomposição rápida do campesinato, a proletarização dos
produtores, a formação de uma burguesia rural. Enfim não vê
diferença qualitativa entre agricultura e indústria; ao contrário
vê um gigantesco processo de homogeneização da formação
social russa sobre a base do modo de produção capitalista.
Segundo Lênin, não há maior contradição entre agricultura e
indústria. São dois ramos que tomados separadamente, devem
ser concebidos como potencialmente idênticos. As maiores
contradições da sociedade são, para Lênin, as existentes entre
burgueses e proletários na indústria e entre fazendeiros ricos, de
um lado, e proletário agrícola de outro, na agricultura.
Na análise da economia camponesa, e suas relações com o
modo de produção capitalista, Chayanov introduziu uma visão
rica e aprofundada da interação entre capitalismo e agricultura.
Onde parte da análise de um modo de produção camponês, nãocapitalista, cujas unidades elementares são constituídas por
famílias de camponeses trabalhadores, proprietários do solo, e
cujo produto é destinado, principalmente, à auto-subsistência,
estando comercializada apenas uma fração deste. Sendo que a
unidade elementar, para Chayanov, é "um espaço de produção e
consumo” onde as trocas mercantes assumem um papel
marginal. Pois segundo ele, os ruralistas sabem perfeitamente
que a vida camponesa não é apenas organizada em torno da
produção, como é o da empresa industrial, ela é tanto um modo
de existência, de vida, quanto um modo de produzir.
Chayanov vai além, diz que no modo de produção
capitalista, a mercantilização do lucro, acarreta a
mercantilização da terra, que se torna objeto de transações, ao
invés do que ocorre nos modos pré-capitalistas, ou no modo
feudal, caracterizado pelo direito inalienável ao solo, dos
camponeses. Chayanov constata que o preço da terra não é, aí,
equivalente à capitalização da renda (que não existe), mas ao
trabalho necessário para satisfazer as necessidades da família.
Numa outra observação, diz que o modo de produção
camponês, desde que integrado a uma formação capitalista,
esvazia-se de seu conteúdo, dominado pelo modo capitalista.
Observando ainda a enorme capacidade de resistência da
economia camponesa à concorrência capitalista na Rússia, no
fim do século XIX. Acrescentando que o pequeno camponês
pode aceitar remunerações globais tão baixas que façam a
agricultura capitalista perder todo seu poder competitivo.
Sendo assim, só poderemos compreender o modo de
produção camponês num conjunto global ao qual o mesmo esta
circunscrito. Onde quando falamos da concorrência capitalista, é
na verdade supor que o camponês deva equiparar seus preços
aos dos concorrentes capitalistas agrários mais eficazes.
Implicando na redução da remuneração dos camponeses. Esta
perda na remuneração, segundo Chayanov se dá de duas formas
principais: a primeira é em relação à renda da terra (renda
imputada à propriedade), que é anulada; a segunda concerne na
remuneração do trabalho que se reduz o preço dos produtos,
equiparando assim ao valor da força de trabalho proletária.
Sobre esta questão Chayanov faz uma análise bastante
pertinente sobre a renda da terra e o trabalho camponês.
Analisando que o capital dominante anula a renda, isto é, livrase da propriedade fundiária e proletariza o camponês
91
92
trabalhador. Que conserva a propriedade da terra, mas, somente
no sentido formal, pois não se tem mais a propriedade real.
Conservando também a aparência de um produtor comerciante
que oferece produtos no mercado, mas na verdade é um
vendedor da força de trabalho, e sua venda é disfarçada pela
aparência de produção comercial. Assim como diz Chayanov, “o
camponês é reduzido, de fato a um trabalhador a domicílio”.
Outra discussão que permeia a questão agrária, e que
trataremos a partir de agora, refere-se às reflexões a respeito da
reforma agrária e suas variadas formas de serem interpretadas e
realizadas. Analisaremos, para tanto, de forma mais detalhada,
sua principal forma de atuação que é por meio de ocupação de
terras. Partiremos então dos conceitos e formas que se realizam
e compreendem a reforma agrária.
O conceito de reforma agrária ao longo do tempo vem
sendo alvo de várias interpretações e concepções existindo
assim muita confusão em relação ao seu conceito. Por isso,
Fernandes no livro Brava gente: trajetória do MST e a luta pela
terra no Brasil, esclarece que existem três conceitos
(concepção) de reforma agrária: clássica ou capitalista, política
de assentamento e a dos movimentos sociais. (Fernandes, 1999,
p. 158-59).
Sendo a reforma agrária clássica e capitalista aquela feita
pelas burguesias industriais no final do século passado e até
depois da segunda guerra mundial. Seus objetivos eram
democratizar a propriedade através da distribuição de terra para
os camponeses, transformando-os em pequenos produtores
autônomos, aumentar o mercado consumidor interno de
produtos agrícolas e industriais. Foi realizada na França, nos
Estados Unidos e no Japão (Fernandes, 1999, p. 159).
A política de assentamentos é o tratamento dado pelo
estado, principalmente pelos governos militares, como forma de
resolver conflitos de terra. Limita-se ao assentamento de sem
terra, sem, contudo afetar a estrutura da propriedade da terra
(Fernandes, 1999, p. 159).
93
A reforma agrária dos movimentos sociais é aquela
proposta pelas entidades e movimentos organizados no Fórum
Nacional de Reforma Agrária, formado pelo Movimento dos
Sem Terra, Comissão Pastoral da Terra (CPT), Confederação
Nacional dos Trabalhadores em Agricultura (CONTAG),
Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Associação Brasileira
de Reforma Agrária (ABRA) e outras forças progressistas que
atuam e apóiam as organizações de trabalhadores rurais.
(Fernandes, 1999, p. 159).
Resumindo as idéias básicas do fórum supracitado, o
Brasil enfrenta um grave problema agrário que é a concentração
da propriedade da terra. Portanto para resolver este problema, é
necessário realizar um amplo programa de desapropriação de
terra, de forma rápida, regionalizada, e distribuí-las a todas
famílias sem terra, ou seja,
“Um conjunto de medidas a serem tomadas
pelo governo para alterar a estrutura fundiária
do país, e garantir terra a todos os
agricultores que quiserem trabalhar. Além
disso, medidas complementares da política
agrícola, como crédito rural, preços,
assistência, seguro social, etc., necessárias
para garantir a viabilidade e rentabilidade da
pequena produção” (Fernandes, 1994, p. 36)
Além da garantia da terra e das condições de produção e
rentabilidade, para o MST, segundo o autor acima, há três
problemas estruturais no meio rural brasileiro: a pobreza, a
desigualdade social e o analfabetismo. Onde segundo o MST
para resolver estes problemas, há necessidade de democratizar o
capital, ou seja, criar condições para que o camponês assentado
tenha acesso aos meios de produção necessários à realização da
produção e conseqüentemente da cidadania. Acesso ao capital,
também, representa ter disponibilidade de credito para que
possa instalar suas próprias agroindústrias, seus mecanismos de
acesso ao mercado e a comercialização. Também o MST
94
defende que todos tenham acesso à educação, como
instrumento básico que permita romper com a ignorância. O
conhecimento técnico também faz parte da conquista dos
trabalhadores, tanto na produção como na defesa de seus
direitos (Fernandes, 1999, p.161).
Diante do exposto, vemos algumas contradições, com
nossa análise preliminar sobre a exclusão e expropriação do
campesinato, pois como vimos outrora, o estado capitalista e o
modo de produção hegemônico são os grandes responsáveis e
causadores da pobreza, da desigualdade social e do
analfabetismo e conseqüentemente da exclusão e expropriação
do camponês. Sendo assim não se pode querer democratizar o
capital, pois não basta a democratização do mesmo, pois no
máximo o que pode acontecer com essa dita democratização é
uma atenuação das lutas de classe e uma falsa ilusão de
mudança. Onde na verdade tem que se lutar é para suprimir o
Capital e todas suas formas de sustentação que são as ideologias
reformistas e o estado capitalista burguês. Pois somente assim
poderemos realmente, conseguir construir uma sociedade que
possa superar todo este estado de coisas.
Diante da relevância da questão supracitada, a
trataremos de forma mais aprofunda adiante, onde analisaremos
o papel das cooperativas de assentados como forma de subsistir
e resistir enquanto pequenos produtores camponeses, pois
existem várias controvérsias sobre a forma que se da essa
resistência e uma provável desconfiguração dos objetivos
propostos. Já em relação às formas de resistência e (re) criação
do campesinato podemos observar estes fenômenos de variadas
formas, mas sem dúvida a principal é por meio das ocupações
de terras, a qual demonstra a resistência do camponês a
exploração e expropriação.
No desenvolvimento do processo de criação e (re)
criação do campesinato ocorre a exclusão no processo de
diferenciação do camponês. Mas conforme Fernandes (2000
p.279), esse processo de exclusão não leva necessariamente a
proletarização ou a transformação do camponês em capitalista,
causando o que Lênin e Kautsky denominaram de
desintegração do campesinato. Leva também a recriação do
campesinato por diferentes formas. Uma é pela sujeição da
renda da terra ao capital, que acontece ante a “subordinação da
produção camponesa, pelo capital, que sujeita e expropria a
renda da terra e, mais que isto, expropria praticamente todo
excedente produzido, reduzindo o rendimento do camponês ao
mínimo necessário à sua reprodução física (Oliveira, 1991, p,
11).
Uma outra forma de recriação do campesinato é pela
ocupação da terra. Pois como em sua reprodução ampliada o
capital não pode assalariar a todos, excluindo sempre grande
parte dos trabalhadores. O mesmo ocorre com a reprodução das
relações de produção não capitalistas, que não cria na mesma
intensidade com que exclui. Assim, por meio da ocupação de
terras os trabalhadores se ressocializam, lutando contra o
capital, e se subordinando a ele, porque ao ocuparem e
conquistarem a terra se reinserem na produção capitalista.
Mediante o desenvolvimento desigual do modo de produção
capitalista, que gera inevitavelmente a expropriação e a
exploração, os trabalhadores expropriados se utilizam as
ocupações como forma de reproduzirem o trabalho familiar.
Criando assim uma forma de resistência política, contra esse
processo de exclusão, que é por meio das ocupações de terras.
É importante salientarmos que a base das ocupações não
é apenas camponesa que outrora fora expropriado, muito pelo
contrário a maior parte das pessoas que compõem um
acampamento de trabalhadores rurais sem terra, são
provenientes da zona urbana, e tem origens urbanas, não tendo
assim nenhuma experiência no campo. Isso só vem reforçar que
o modo de produção capitalista expropria e exclui tanto o
camponês como os trabalhadores em geral, seja ele do campo
ou da cidade. Portanto podemos observar que quanto mais o
capital exclui, mas o movimento de resistência cresce, seja por
95
96
parte dos camponeses expropriados ou dos trabalhadores
excluídos.
As ocupações significando assim, um desafio dos
trabalhadores, junto ao estado, que sempre representou os
interesses da burguesia agrária e da classe dominante em geral,
os capitalistas. Desta forma, ao longo do tempo, o estado
somente apresenta medidas paliativas, que visam atenuar os
processos de expropriação e exploração, e minimizar as lutas de
classe.
Portanto, podemos concluir que o modo de produção
capitalista, em suas mais variadas investidas sobre o modo de
produção camponês, e sobre os trabalhadores em geral, só
provoca a exclusão e expropriação dos mesmos. Diante disso
podemos afirmar que a luta pela reforma agrária em todas suas
formas de criação e (re) criação, constitui num equívoco. Pois
como vimos, o estado capitalista é o principal agente de
manutenção dos “status quo” e que representa os interesses da
classe capitalista, como já dizia Marx, “o estado é o comitê da
burguesia” (Marx e Engels, 1988), lutar pela criação e recriação
é se submeter a um ciclo vicioso de exclusão e recriação. Não
resolvendo dessa forma o problema em sua estrutura, apenas
ficando em mudanças de conjunturas, fazendo assim com que
nos iludamos com as aparências. Onde ao nosso ver não se pode
lutar pela sua reinserção no capital, pois, tem que se lutar e para
a destruição do mesmo, rumo a construção de uma outra
sociedade, que consiga superar todo este estado de coisas.
Diante da exposição dos conceitos e formas de se
compreende a questão agrária e reforma agrária, em suas mais
diversas concepções teóricas, analisaremos a seguir, de forma
mais detalhada, o modo de produção camponês em seu
processo de resistência e recriação. Enfocando assim o papel
das cooperativas, na suas formas elementares de produção de
uma forma de resistência ou uma forma de reprodução do
trabalho capitalista.
Cooperativas agrícolas: resistência ou sujeição camponesa
Como vimos outrora, o modo de produção capitalista
vem submetendo o modo de produção camponês a um processo
de exploração, expropriação e submissão. Que tem, dessa
forma, provocado a exploração e submissão dos trabalhadores
camponeses. Em contrapartida a esta situação de exploração e
submissão surgem movimentos de criação e re-criação do modo
de produção camponês. Onde a forma de produção e
organização, surge como elemento decisivo no processo de
articular, esta suposta resistência camponesa, frente ao grande
avanço da exploração e submissão que o modo de produção
capitalista vem impondo a agricultura camponesa. Resistência
esta, demonstrada pela criação e re-criação do campesinato,
pelos diversos agentes sociais que atuam no propósito se resistir
à situação de proletarização. Diante do exposto, abordaremos o
papel das cooperativas de produção no processo organizacional
dos assentamentos de trabalhadores rurais organizados pelo
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.
Para tanto, faremos uma discussão preliminar, sobre as
cooperativas de produção e suas formas de atuação dentro do
modo de produção capitalista. Este resgate se justifica pelo
motivo que o papel das cooperativas de produção vem
permeando o debate em torno da viabilidade econômica, política
e social do modo de produção camponês, expressada dessa
forma pelos assentamentos de trabalhadores rurais sem terra.
Diante da análise proposta, observamos que se faz muita
confusão entre o caráter da viabilidade econômica, política e
social, dos assentamentos de trabalhadores rurais sem terra. De
um lado temos uma proposta, concomitante com uma pratica,
de caráter reformista/conservadora, que são implementadas nos
assentamentos de trabalhadores rurais sem terra. Em
contrapartida vemos algumas análises, que vê, a meu ver
equivocadamente, esta proposta como se fosse uma prática e
uma proposta revolucionária. Para não incorrer neste equivoco,
proponho distinguir as duas formas de se compreender a
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98
viabilidade econômica e social. Destacando assim também a
partir de qual perspectiva abordaremos a questão da viabilidade
econômica e social dos assentamentos de trabalhadores rurais
sem terra.
Podemos, grosso modo, distinguir as duas principais
formas de conceber a viabilidade econômica e social dos
assentamentos de trabalhadores rurais sem terra. Sendo que a
primeira, de caráter reformista/conservador, parte de uma
perspectiva de viabilidade econômica, política e social, no e pelo
capital, onde busca uma relação de inclusão e integração mais
justa e harmoniosa junto ao capital. Tendo como expoente
maior, a bandeira de luta pela democratização do capital,
reivindicando dessa forma, medidas governamentais que visam
garantir esta integração, sendo que as principais reivindicações
são pelo acesso a créditos bancários e subsídios e assistências
governamentais. Não questionando dessa forma o caráter
democrático/burguês e excludente do estado capitalista.
Podemos constatar esta concepção, no Movimento de
Trabalhadores Sem Terra, onde em entrevista a revista Caros
Amigos, um de seus maiores interlocutores, João Pedro Stédile,
diz que sua proposta de reforma agrária “não é socialista”, pois
isto implicaria em mudar o “modo de produção” e vai além
dizendo que “o problema não é o capitalismo”, e sim a falta de
um projeto nacional popular. Sendo estas posições apenas um
reflexo de uma proposta maior, que é de promover apenas
algumas reformas dentro do estado democrático burguês.
A segunda proposta parte de uma perspectiva
revolucionária/transformadora, na qual pressupõe que a
viabilidade econômica, política e social, visa garantir uma
transformação radical da sociedade, com o fim dos explorados e
exploradores. Com uma sociedade sem estado, classes sociais e
sem exploração, uma sociedade autogerida pelos trabalhadores.
Abominando dessa forma, toda e qualquer proposta que visam
conservar a sociedade capitalista ou que tem como objetivos as
reformas de caráter paliativo, que visam à manutenção da atual
hegemonia do modo de produção capitalista, no conjunto da
sociedade.
E é com o intuito revolucionário de transformação
radical da sociedade é que pretendo fazer uma análise do
processo de funcionamento das cooperativas como uma possível
alternativa de organização produtiva, na estrutura e na forma de
organização da produção nos assentamentos de reforma agrária.
Analisaremos assim, a partir da perspectiva revolucionária o
problema da viabilidade econômica, política e social, da pequena
produção camponesa desenvolvida junto aos assentamentos de
trabalhadores rurais sem terra.
Mediante o esclarecimento de qual perspectiva
analisaremos o processo de produção, desenvolvido junto aos
assentamentos de trabalhadores rurais sem terra, se torna
pertinente fazermos uma análise aprofundada das cooperativas e
cooperativismo dentro do modo de produção capitalista. Para
tanto faremos um resgate histórico da discussão sobre a forma
cooperativa como um agente de viabilização da transformação
social, perpassando pelas discussões desde Rosa Luxemburgo
até as concepções atuais de conceber as cooperativas.
Para entendermos as cooperativas de produção, primeiro
devemos remeter uma análise do modo de produção capitalista.
Pois como o modo de produção capitalista é mais do que um
modo de produção é também um modo de circulação de
mercadorias temos que compreender o capitalismo na sua
totalidade, pois somente assim poderemos entender os
equívocos das relações entre capitalismo e cooperativismo.
Em seu artigo Capitalismo e Cooperativismo, Emilio
Genari, nos faz uma discussão muito esclarecedora a respeito
das relações do cooperativismo com o capitalismo, onde diz que
“nem toda produção no capitalismo acontece de forma
capitalista. No campo, uma grande parte da produção ainda é
camponesa, isto é, produção familiar, onde não existe a relação
patrão empregado. Entretanto, para que as mercadorias sejam
postas em circulação elas tem que obedecer às leis de mercado.
99
100
É nesse ponto que a forma de circulação capitalista subordina a
produção, mesmo que ela não seja tipicamente capitalista. O
mesmo acontece com as cooperativas. Mesmo que sua estrutura
seja horizontal (não havendo hierarquia), mesmo que os lucros
sejam divididos entre todos, mesmo que todos participam do
trabalho e das decisões; enfim mesmo que a produção tenha um
funcionamento autogestionário, qualquer cooperativa está
submetida às leis de circulação de mercadorias do capitalismo.
Mais do que isso, as matérias primas, maquinas, peças, e
ferramentas que uma cooperativa utiliza são compradas no
mercado, isto é, são mercadorias produzidas de forma
capitalista. Significando assim que uma cooperativa está
inevitavelmente dentro de um sistema capitalista”.
Nessa mesma perspectiva Rosa Luxemburgo diz,
Podemos assim observar que o processo de
produção cooperativista tem como um elemento intrínseco, a
sua subordinação ao modo de produção capitalista, seja na
circulação das mercadorias seja sobre as relações entre os
mesmos. Diante disso podemos dizer que a cooperativa de
produção tem um limite intransponível, a partir do momento em
que se propõem a ser uma “ilha” dentro do capitalismo.
Nesse sentido Nildo Viana, em O que é autogestão,
esclarece que “no interior da sociedade capitalista, as
cooperativas não determinam seus fins, pois o mercado e o
estado sempre interferem nas finalidades de uma cooperativa e
não só nos fins como, em menor grau, também nos meios”.
Acrescentando ainda que “as cooperativas podem existir no
interior do modo de produção capitalista e são assimiláveis
por ele. O capitalismo envolve todas estas manifestações e as
colocam sob sua direção, direta ou indiretamente. Não existem
nem podem existir "ilhas" de autogestão cercadas pelo mar do
capitalismo”. (Viana, 1995, p. 28).
Nesse sentido a Associação Internacional dos
Trabalhadores em seu congresso em Genebra falou que “os
sistemas cooperativos, restritos as formas minúsculas brotadas
dos esforços individuais dos escravos assalariados, é impotente
para transformar por si mesma a sociedade capitalista”. Onde
Marx acrescenta que “para transformar a produção social em
largo e harmonioso sistema de trabalho cooperativo, mudanças
gerais se fazem necessário” (Guillerm & Bourdet, 1976, p.29).
Mediante o fato do capitalismo não aceitar “ilhas”
econômicas liberadas, segundo Genari, “é comum ver como
essas unidades econômicas "alternativas", a medida em que se
desenvolve começam a mudar. Começam a fazer concessões e
evitam enfrentar e questionar o sistema capitalista a fundo. A
história está cheia de exemplos de cooperativas de produção e
comunidades que terminam sendo organismos capitalistas
comuns, tendo proprietário e assalariado” (Genari, 2002, p.2)
Segundo Genari, as cooperativas cumprem três papeis
importantes para a classe dominante, o primeiro de caráter
político, o segundo de caráter social e por último de caráter
ideológico. No que se diz respeito ao caráter político afirma que
“as cooperativas são politicamente interessante, exatamente
101
102
“As cooperativas, e antes de tudo, as
cooperativas de produção, são elas por sua
essência um ser híbrido dentro da economia
capitalista: a pequena produção socializada
dentro de uma troca capitalista. Mas na
economia capitalista a troca domina a
produção, fazendo da exploração impiedosa,
isto é, da completa dominação do processo de
produção pelos interesses do capital (...) para
a cooperativa de produção, verem os operários
na necessidade contraditória de governar-se a
si mesmos com todo o absolutismo necessário e
desempenhar entre eles mesmos o papel de
patrão capitalista. É desta contradição que
morre a cooperativa de produção, quer pela
volta da empresa capitalista, que, no caso de
serem mais fortes os interesses dos operários,
pela dissolução” (Luxemburgo, p.52,1975).
porque permitem um discurso demagógico que apela à
participação da população, autogestão, co-gestão e etc.
socialmente são extremamente interessantes porque aliviam as
tensões sociais na medida em que resolvem os problemas para
uma pequena parte da população. Finalmente sendo interessante
ideologicamente, pois fornece a população uma nova ilusão: de
que é possível para todos excluídos se incluírem através das
cooperativas.
Diante de todas essas análises que desmistificam a farsa
reformista e conservadora que está implícita na prática das
cooperativas, cabe a pergunta: o que levam ainda muitos
estudiosos e movimentos sociais reivindicarem as mesmas como
forma de solução para os problemas da expropriação e exclusão
social? Ao meu ver estas limitações têm varias motivações, mas
trataremos a grosso modo, das que considero as duas principais
razões. A primeira motivação tem como ingrediente, o
oportunismo de grupos e indivíduos que de alguma forma, tiram
proveito destas situações, sejam eles proveitos políticos ou
econômicos. O segundo fator está ligado à dificuldade em se
pensar uma sociedade, e conseqüentemente uma organização
produtiva, que transcenda os limites do modo de produção
capitalista. Onde esta falta de visão, muitas das vezes sendo
provocada ou estimulada, pelos aparelhos de sustentação da
classe dominante, que é o estado burguês e suas instituições
(Universidade, igreja e os partidos políticos, incluindo os da
pseudo-esquerda).
Depois dessas elucidações sobre o caráter das
cooperativas de produção dentro do modo de produção
capitalista e suas conseqüentes inclusões no mesmo, partiremos
para uma análise que tem como foco principal estas apologias
cooperativista como solução de existência e resistência do modo
de produção camponês ou como alguns preferem agricultura
familiar, desenvolvida nos assentamentos de trabalhadores rurais
sem terra.
Desde seu surgimento o MST, tem como uma de suas
bandeiras de luta a preocupação com a organização da
produção nos assentamentos. Para tal criou o “sistema
cooperativista dos assentados”.
103
104
No campo da produção, os assentados ligados
ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra, vêm desenvolvendo uma experiência
cooperativista que é a cooperação agrícola. A
cooperação agrícola é uma forma de produção
onde os assentados, mesmo tendo recebido
cada família um lote individual, procuram
criar uma infra-estrutura comunitária, ou seja,
eles se associam para comprar máquinas,
insumos, meios de transporte, armazenagem,
enfim, viabilizar a produção de forma a
garantir sua sobrevivência no campo” (Mello,
1995, p. 39)
Construindo assim,
No campo da produção, os Sem Terra
construíram a Confederação Nacional das
Cooperativas
(CONCRAB)
com
nove
cooperativas centrais, 81 cooperativas locais
de produção, serviços e comercialização, e
duas cooperativas de crédito. Há também, nos
assentamentos em torno de 400 associações
realizando todo o tipo de formas diferenciadas
de cooperação agrícola, como iniciativas de
ajuda mútua para resolver seus problemas de
produção circulação e prestação de serviços.
Funcionam 45 unidades agroindustriais.
Conquistaram linhas de crédito específicas
para a reforma agrária, como o Procera, e
financiamentos
do
BNDS
para
a
agroindústria.” (MST, 1999 p.10)
Em um outro momento o MST define que,
“A cooperação agrícola é o jeito de juntar ou
somar os esforços de cada agricultor
individual, para fazer coisas em conjunto.
Comprar ferramentas, juntas de bois, comprar
maquinas entre outras. Quanto mais coisa fizer
em conjunto mais rapidamente se vai progredir
e crescer. Para comercializar os produtos
também fica mais fácil: juntar as pequenas
compras individuais e as pequenas vendas
individuais dos produtos garante maior poder
de barganha de preços e dá menos despesas
com transporte, material, mão de obra etc.”
(MST, 1993, p.8)
Conforme Martins:
“No Brasil, o movimento do capital não opera, de modo
geral, no sentido da separação entre propriedade e a exploração
dessa propriedade... o que vemos claramente, tanto no caso da
grande propriedade quanto no caso da pequena, é que
fundamentalmente o capital tende a se apropriar da renda da
terra (...) o capital não se torna proprietário da terra, mas cria as
condições para extrair o excedente econômico” (Martins, 1981,
p. 175-6).
Fernandes acrescenta que:
Para Fernandes, “o Sistema Cooperativista dos
Assentados-SCA, é um setor do MST que tem na cooperação
agrícola a perspectiva do desenvolvimento econômico dos
assentados, garantindo a organicidade do movimento. É uma
forma de expandir e organizar o assentamento, contribuindo
para a territorialização da luta pela terra. Construído a partir da
lógica da resistência camponesa. Dessa forma procura
desenvolver a agricultura camponesa em que a resistência contra
a exploração, à expropriação e a luta pela terra não estejam
separados” acrescenta ainda que para o MST a “Cooperação é
mais do que cooperação” pois “os sem-terra não pretendem
reproduzir o cooperativismo tradicional, mas sim construir uma
nova concepção de cooperação que possa abranger as
dimensões da lógica do MST” (Fernandes, 2000 p.228).
Em outro momento o MST acrescenta que para tentar
superar seus problemas, “estão construindo um novo tipo de
cooperativismo, sob controle dos trabalhadores”. “Quando
falamos de cooperativas de produção e comercialização, que
estão sendo criadas nos assentamentos, estamos pensando num
tipo de empresa social que seja uma ferramenta a mais na luta
por uma sociedade justa” (MST, 1993b, p.33).
O que podemos concluir é que apesar de todas essas
formas de tentar atenuar a exploração, os sem terras, sejam eles
cooperados ou não, sofrem um processo de exploração visível,
principalmente pela sujeição da renda da terra ao capital.
Ao longo do texto, observamos que as cooperativas são
inviáveis tanto do ponto de vista revolucionário, visando uma
profunda transformação social, que seria uma sociedade
autogerida, como do ponto de vista de reformista/conservador,
que visa garantir qualidades de vida para os trabalhadores rurais
sem terra dentro dos limites do capitalismo, buscando assim
somente sua inserção no processo de exploração.
Mesmo diante de todos estes esclarecimentos a ideologia
das cooperativas continua, num vigor ascendente. Pois para
muitos o cooperativismo ainda “é um instrumento previsto e
apontado como viável ao desenvolvimento da agricultura
familiar”. Conforme Sandroni, “o cooperativismo é um
instrumento que se caracteriza como um elemento incentivador,
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106
“A exploração causada pela apropriação da
renda da terra pelo capital tende a se
intensificar até a falência das cooperativas e a
expropriação dos assentados. Nesse processo,
de modo geral, por meio da sujeição da renda
da terra ao capital, as cooperativas de
assentamentos estão em processo crescente de
endividamento, principalmente pelos baixos
preços dos produtos, alto custo da infraestrutura e dos insumos” (Fernandes, 2000 p.
231).
e como tal pode ser visto como, uma doutrina que tem por
objetivo a solução dos problemas sociais por meio da criação
de comunidades de cooperação” (Sandroni, 1985).
Para outros ideólogos, “são as cooperativas que
possibilitam ao produtor a condição de se inserir no mercado de
forma competitiva, servindo de intermediária entre o capital e o
produtor, amortecendo os riscos, e garantindo a finalização
eficiente da produção. Além disso, uma forma de distribuição de
renda mais igualitária, um vez que todo processo é desenvolvido
de forma coletiva”. Sendo também vista como um elemento de
ascensão econômica dentro do modelo de produção familiar.
“visto que os agricultores, quando organizado/cooperado,
adquire condições de participar do processo de transformação
da agricultura e acompanha cada mudança sem, com isso, ficar
em desvantagem com relação aos sistemas agrícolas mais
organizados” (Flores, 2002, p. 6)
Podemos observar que todas estas teorias se tornam nulas, e não
passam de fundamentações teóricas com caráter ideológico que
visam, perpetuar a dominação e a exploração dos trabalhadores, e
dos modos de produção subordinados, como é o modo de produção
camponês. Tanto é verdade que em seu relatório a Confederação
Nacional das Cooperativas (CONCRAB), diz que “as experiências
cooperativas do MST que estão em curso, enfrentam diferentes
tipos de problemas: desde a baixa rentabilidade a diferentes graus
de endividamento (CONCRAB, 1997a).
Sendo que, dentro do Sistema Cooperativo dos
Assentados-SCA, enfrenta diversos problemas com a viabilidade
da produção nos assentamentos, e com o modelo de
cooperativismo que está implantado. Onde algumas
cooperativas enceram suas atividades, motivadas pelo fato que
essas experiências defrontaram com os vários obstáculos,
provocado pelo modelo econômico de desenvolvimento da
agricultura capitalista, que já estudamos outrora.
Estes enfrentamentos, entre ideólogos burgueses de um
lado e revolucionários por outro, remetem a meados do século
XIX, quando Bakunin analisava a perspectiva da revolução, na
Inglaterra, França e Alemanha, por meio das cooperativas. Onde
107
dizia que “enquanto os socialistas revolucionários, convencidos
de que o proletariado não pode libertar-se dentro do marco do
atual sistema econômico, desejam a liquidação social, os
socialistas pacíficos (conservadores) desejam, ao contrário,
preservar todas as bases principais, essenciais, da ordem
econômica existente. E afirmam que os operários podem
libertar-se e melhorar substancialmente sua situação material
graças tão somente ao poder milagroso das associações livres
(as cooperativas)” (Genari, 2002, p. 4)
Posteriormente, foi provado que as experiências
cooperativas, não puderam libertar os operários, nem ainda,
melhorar sensivelmente seus níveis de vida dentro das condições
existentes do capitalismo. Onde no máximo o que conseguiram,
foram a criação de uma nova burguesia coletiva, que não vê
inconveniente em explorar a massa dos operários não
pertencentes à cooperativa. Podendo assim, afirmamos que na
maioria dessas experiências não possuírem nenhuma estratégia
global de ruptura com o sistema capitalista de produção.
Dentro desta lógica é que faremos nossas críticas mais
contundentes ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra MST, pois o mesmo é discípulo de uma esquerda reformista
tradicional, remetendo dessa forma, para um futuro longínquo a
completa transformação social. Levando assim a cabo uma
reforma agrária dentro do atual sistema capitalista. Mesmo que
estas reformas mudem as condições de vidas de muitos
trabalhadores, conforme Anite Montreal, “as reformas
continuam a ser reformas e o sistema em vigor mantém-se em
vigor, bem como a propriedade privada e os proprietários”.
Dessa forma, não devemos falar em reforma agrária, mas sim de
ocupações que visam à abolição da propriedade privada.
Montreal acrescenta que “porque razão continuar falando de
reformar o velho mundo em vez de inventar um mundo novo?
Nunca o MST clamou ‘abaixo o Estado’, nem sequer
autogestão generalizada sob controle popular” (Montreal, 2002,
p. 8).
108
O MST, surgindo e organizando, no propósito de fazer
cumprir a reforma agrária do estado-burguês, capitalista. Sendo
as famílias assentadas continuam a serem massas exploradas,
debaixo da mesma opressão e exploração de antes. Pois não
existe transformação social dentro das bases de uma reforma
agrária, do estado capitalista. Não existindo dessa forma
reforma agrária revolucionária.
Fazendo assim com que o MST entre num grande
dilema, ou continue numa postura reformista e, portanto
burguesa, e aprofunda o processo de proletarização dos
assentados ou segue uma postura revolucionária na qual
propõem uma ruptura real com o modo de produção capitalista.
E lute por uma transformação real da sociedade onde possa
superar o estado capitalista e todas suas formas de opressão.
Considerações finais
O ponto de partida que instigou o desenvolvimento
deste trabalho foi a existência de milhares de famílias sem terra
no país e um crescente processo de proletarização de outros
milhares de camponeses. Esta situação revela como
conseqüência de uma sociedade baseada no modo de produção
capitalista, que tem como característica histórica a concentração
da propriedade e a conseqüente exploração, exclusão e
expropriação dos camponeses. E apesar de toda esta situação
que tem em suas origens históricas, o processo de ocupação
colonial, perpassando por todos períodos históricos da
sociedade brasileira, não vemos nenhuma proposta e/ou prática,
seja promovidas pelos partidos ditos de esquerda ou
movimentos sociais de luta pela terra, que proponha uma
ruptura com o sistema vigente e a partir daí implantar uma nova
sociedade, que passa por uma estrutura social e econômica
diferentemente da capitalista.
Vemos os movimentos sociais lutando por reformas que
visam atenuar a exploração e as lutas de classe e a manutenção
da estrutura da sociedade capitalista. Concluindo assim que o
109
modo de produção camponês vem sofrendo um processo
intenso de subordinação e dominação pelo capitalismo, onde o
camponês mantém apenas no sentido formal a propriedade da
terra e sua condição de produtor independente, pois os mesmos
não passam de meros “servos do capital industrial”.
Nesse processo de dominação e exploração do
capitalismo sobre o modo de produção camponês, o camponês
tem se tornado, conforme disse Chayanov, “um Proletário a
domicílio”. Constando dessa forma que a luta pela terra, no
processo de criação e recriação do modo de produção
camponês na forma em que se tem hoje, torna um grande
equívoco, pois é lutar para ser explorado pelo capital.
Nem as cooperativas de produção conseguem superar o
processo de exploração dos trabalhadores camponeses. Sendo
que as reivindicações para obter ajudas e subsídios
governamentais não passam de uma grande ilusão e um
equívoco, pois conforme já dizia Marx, as cooperativas não
tinham valor enquanto não fossem “criações autônomas dos
trabalhadores” e não estivessem “protegidas nem pelo governo,
nem pelos burgueses”. Diante disso temos que repensar uma
nova estratégia de luta e atuação, para superar a atual sociedade
capitalista.
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O envolvimento da Igreja católica romana com a questão
sociopolítica no campo no Brasil1 vem de tempos remotos.
Tendo se posicionado tradicionalmente ao lado dos grandes
proprietários e do Estado, a partir da década de 1960, parte
considerável dos agentes católicos (padres, religiosos, bispos)
passou a se aliar aos camponeses nas suas lutas contra a
expropriação e a expulsão da terra. Com a crescente
proletarização e o recrudescimento dos conflitos entre
trabalhadores assalariados e empresários rurais, em várias
regiões do país esses agentes passaram a apoiar, também, as
lutas desses trabalhadores por direitos, geralmente organizados
em sindicatos.
Essa inflexão na postura política de parcela do clero
católico foi impulsionada por um conjunto de mudanças sociais,
econômicas, políticas e culturais por que passou a sociedade
1
113
A questão sociopolítica no campo se caracteriza pela existência de amplos
contingentes da população rural subsistindo em condições de extrema
pobreza, derivadas da expropriação e da impossibilidade econômica e
jurídica de acesso à propriedade da terra, bem como da insuficiente
remuneração do seu trabalho. Outra importante característica são as
relações de dominação política a que estão submetidos os trabalhadores
na agricultura, marcadas, em muitas situações, pela violência do poder
privado dos grandes proprietários legitimados pela omissão ou conivência
do Estado. A questão sociopolítica no campo é a expressão mais
contundente da questão agrária. Para uma caracterização da questão
agrária no Brasil, podem ser consultados: MARTINS, 1975; 1998;
GRAZIANO DA SILVA, 1986; LINHARES & SILVA, 1999.
114
brasileira desde as últimas décadas do século XIX, aceleradas
pela crescente urbanização resultante, principalmente, do êxodo
rural, a partir da década de 1950. Tudo isso articulado com
transformações ocorridas nas sociedades ditas centrais,
refletidas nas mudanças na doutrina social da Igreja mundial,
expressas nas encíclicas papais de João XXIII, nos documentos
emanados do Concílio Vaticano II (1963-1965) e,
particularmente na América Latina, no documento da II
Conferência do Episcopado Latino-Americano – CELAM –
realizada em 1968 na cidade de Medlín (Colômbia) e na
Teologia da Libertação. A criação da Comissão Pastoral da
Terra Nacional (1975) e da CPT Regional Goiás2 representou a
culminância desse processo de mudança das práticas políticopastorais dos agentes católicos em relação à questão social em
geral e à questão sociopolítica no campo em particular.
Este texto consiste numa síntese da história das relações
da CPT Regional Goiás com os movimentos dos trabalhadores
rurais no estado, desde que foi criada em 1976 até o início deste
século. Trata-se, portanto, de uma história da CPT Regional,
tendo como pano de fundo as transformações provocadas pela
expansão das relações capitalistas no campo e as mudanças
político-pastorais ocorridas na Igreja ao longo da história
republicana da sociedade brasileira. A explanação aqui
apresentada se baseia nos resultados de uma dissertação de
mestrado concluída por este autor há alguns anos: A CPT
Regional Goiás e a questão sociopolítica no campo.
O surgimento da CPT Nacional e da Regional Goiás
A formação da CPT Regional Centro-Sul de Goiás foi
antecedida em mais de um ano pela criação da CPT Nacional.
2
Oficialmente, a CPT Regional Goiás é denominada Comissão Pastoral da
Terra Regional Centro-Sul de Goiás. Esta designação vem da época de
sua fundação (1976), quando o território goiano ainda não havia sido
dividido para dar origem ao estado do Tocantins (1988) e foi mantida por
motivo prático, isto é, para evitar a necessidade de alteração dos seus
registros junto aos órgãos oficiais e colaboradores financeiros.
115
Esta foi criada no momento em que a base econômica do regime
ditatorial instalado no país a partir do golpe civil-militar de 1964
se encontrava em franco processo de desmoronamento, atingida
pela crise do capitalismo internacional, mais conhecida como a
“crise do petróleo” de 1973. Era a crise do “milagre
econômico” (1968-1973). Mais do que uma crise econômica, a
sociedade brasileira vivia uma profunda crise social, cujos
efeitos mais dramáticos foram sentidos pelas classes espoliadas.
Essa situação era agravada pela permanência da forte repressão
contra qualquer manifestação de inconformismo ou crítica à
ordem estabelecida. Porém, diante do agravamento da crise, a
violência institucionalizada do regime repressor não foi mais
suficiente assegurar a submissão das classes subalternas nem
manter a resignação dos setores de classe média politicamente
mais ativos. A saída política dos dirigentes militares para tentar
restabelecer a legitimidade do regime foi encaminhada por meio
da “distensão”, iniciada em 1974. Era a política da “abertura
lenta, gradual e segura” que culminaria com o fim da ditadura
em 19853. A promulgação da atual Constituição Federal em
outubro de 1988 representou o coroamento do ordenamento
jurídico dessa transição.
Enquanto as reformas político-jurídicas eram feitas pelos
próprios ditadores, no campo, especialmente na Amazônia, a
expulsão violenta dos posseiros4 pelo capital agrário de origem
urbana e multinacional, combinada com a ação de grileiros
apoiados pelas polícias locais, assumia proporções nunca vistas.
No Nordeste, a violência contra camponeses não proprietários e
3
4
As medidas político-jurídicas mais importantes do Estado militar em
resposta às pressões pelo restabelecimento da democracia liberal foram:
revogação do Ato Institucional nº 5 pela emenda constitucional nº 11, de
1978; anistia política (lei nº 6.683, de 1979), que restabeleceu os direitos
políticos formais de ativistas punidos com a cassação e exílio; Nova Lei
Orgânica dos Partidos (lei nº 6.767, de 1979), que restabeleceu o
pluripartidarismo (cf. ALVES, 1987, passim).
Para uma caracterização distintiva do posseiro, ver MARTINS, 1993, p.
130-134.
116
trabalhadores rurais assalariados seguia fazendo vítimas. A
partir de meados da década de 1970, os conflitos com mortes se
generalizaram em todo o campo brasileiro.
Acuados pela violência e pela miséria crescentes e, ainda,
politicamente desorganizados, restou aos posseiros amazônicos
buscarem apoio junto à Igreja Católica na região, arrastando
bispos e missionários para a sua causa. Com as organizações
camponesas destruídas pela repressão, principalmente as Ligas
Camponesas, e os sindicatos controlados por colaboradores do
regime ditatorial, bispos e padres do Nordeste saíram em defesa
dos trabalhadores rurais oprimidos. A resposta dos bispos aos
“clamores” dos trabalhadores veio, inicialmente, na forma de
cartas pastorais individuais, como a de Dom Pedro Casaldáliga
ao assumir a direção da Prelazia de São Félix do Araguaia
(Mato Grosso) em outubro de 1971, Uma Igreja da Amazônia
em conflito com o latifúndio e a marginalização social5, ou
declarações conjuntas6, mantendo a tendência de crítica às
injustiças sociais e às estruturas e relações que as geravam. No
dizer de Martins, esses documentos dos bispos do Nordeste, da
Amazônia e do Centro-Oeste “anunciavam uma verdadeira
revolução no trabalho pastoral”, demonstrando que o
aguçamento do sofrimento imposto às maiorias sociais
empobrecidas convenceu os bispos de que “o desenvolvimento
econômico, que o estado e o capital levavam adiante, no País,
5
6
Nesse documento Dom Casaldáliga explicita, sem meios termos, a sua
“opção preferencial pelos pobres”, mais especificamente pelos pobres do
campo, contra o latifúndio.
“Declaração da Comissão Episcopal Regional do Centro-Oeste”, s/l, 7 de
julho de 1972. In: Pastoral da Terra. Estudos da CNBB, 1976; “Eu ouvi
os clamores do meu povo”. Documento de Bispos e Superiores Religiosos
do Nordeste, s/l, 6 maio 1973; Marginalização de um povo: grito das
Igrejas. Documento de Bispos do Centro-Oeste, Goiânia, 6 maio 1973; Yjuca-pirama, o índio: aquele que deve morrer. Conselho Indigenista
Missionário, 22 de dezembro de 1973; “Advertência dos Bispos da
Província Eclesiástica do Maranhão”, Caxias (MA), 30 de agosto de
1973. In: Pastoral da Terra. Estudos da CNBB, 1976.
117
semeava fome, violência, destruição e morte” (MARTINS,
1999, p. 137).
Essas manifestações corresponderam a um primeiro
resultado concreto do esforço dos agentes católicos de ampliar
o alcance da sua atuação política. A constatação era de que,
desarticulados, tornavam-se mais vulneráveis à repressão e
menos eficientes as suas ações. Depois de algumas reuniões, os
bispos e prelados da Amazônia Legal e do Centro-Oeste, mais
alguns padres e convidados, totalizando 67 participantes, se
encontraram em Goiânia (Goiás), entre 19 e 22 de junho de
1975, para discutirem os problemas sociais e a ação políticopastoral nas dioceses e prelazias de ambas as regiões. No
Encontro de Goiânia, como ficou conhecido o evento, foi
decidida a criação da Comissão Pastoral da Terra Nacional, com
indicativo da formação de equipes locais para promover o
envolvimento de cada diocese ou prelazia com a questão agrária
e sociopolítica no campo. Assim, os participantes resolveram:
Criar uma “COMISSÃO DE TERRAS” que, na qualidade de
organismo de caráter oficioso, ligado à Linha Missionária da CNBB,
possa realizar com agilidade o objetivo de interligar, assessorar e
dinamizar os que trabalham em favor dos homens sem terra e dos
trabalhadores rurais, e estabelecer ligação com outros organismos
afins (CPT. Boletim da Comissão Pastoral da Terra. Nº 1, ano I,
Goiânia, dez. 1975, p. 8).
Caberia à nova Comissão “dar especial atenção ao
Estatuto da Terra e à Legislação Trabalhista Rural, procurando
divulgá-los em linguagem popular”, devendo os seus integrantes
promover “campanhas de ampla e inteligente conscientização
em favor dos direitos dos 10 milhões de famílias sem terra”
(ibidem).
A CPT foi reconhecida pela Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil – CNBB – ainda em agosto de 1975, tendo
sido seu primeiro presidente Dom Moacyr Grecchi, então bispo
do Acre e Purus (Amazônia). Segundo Poletto, um dos seus
militantes, apesar de não ter contado com a participação de
trabalhadores rurais na sua fundação, os “verdadeiros pais e
118
mães da CPT” foram “os peões, os posseiros, os índios, os
migrantes, as mulheres e os homens que lutam por sua liberdade
e por sua dignidade numa terra livre da dominação da
propriedade capitalista” (POLETTO, in: POLETTO &
CANUTO, 2002, p. 20). Pouco mais de um ano depois de sua
fundação, a CPT já se fazia presente em mais da metade dos
estados do país, com a formação de catorze equipes regionais,
dentre elas a Regional Centro-Sul de Goiás.
A CPT Regional Centro-Sul foi criada num encontro de
pessoas que atuavam junto aos trabalhadores em algumas
dioceses, promovido pela CPT Nacional em novembro de 1976,
em Goiânia, “depois de várias reuniões de preparação” (CPT.
Boletim, nº 7, 1976, p. 12). Do encontro participaram vinte
pessoas, das quais oito eram trabalhadores rurais. Na ocasião foi
eleita uma Comissão Coordenadora, “não definitiva”, que não
deveria “trabalhar como se fosse uma autoridade”. Os três
membros que a compunham eram os seguintes: Alberto Gomes
de Oliveira, o “Bacurau”, um agente leigo da diocese de Goiás;
Dionísio Sfredo, padre que atuava na Diocese de São Luiz de
Montes Belos, e o também padre Sérgio Bernardoni,
missionário italiano da Arquidiocese de Goiânia. A CPT
Regional Goiás nasceu com os mesmos objetivos da Pastoral da
Terra Nacional.
As lutas sociais no campo em Goiás e a atuação da
CPT Regional
(LOUREIRO, 1988), culminando com a resistência à
expropriação, que teve na Revolta Camponesa de Formoso e
Trombas sua maior expressão (CARNEIRO, 1988). Com a
tomada do poder pelos militares, em 1964, e a desarticulação
dos movimentos e organizações dos trabalhadores rurais pela
repressão político, a questão sociopolítica no campo foi posta
sob controle. Depois do fértil período de fundação de
associações de lavradores e sindicatos nos anos que
antecederam ao golpe, somente a partir de 1970 as iniciativas de
organização dos trabalhadores do campo foram retomadas no
estado com grande intensidade. A luta pela terra se reiniciou
com a resistência dos posseiros à expulsão para, em seguida,
assumir a forma de ocupações (“invasões”, na linguagem oficial)
(cf. PESSOA, 1999; DUARTE, 1998; GOMES, 1996).
Ao longo de sua história, o foco do trabalho políticopastoral da CPT, em particular a Regional Goiás, passou por
importantes alterações, decorrentes das mudanças conjunturais
por que passaram a sociedade brasileira e a Igreja no último
quartel do século XX. Nesse período, a população brasileira em
geral e a goiana em particular confirmaram a tendência à
urbanização verificada nos anos anteriores. Uma decorrência do
acentuado êxodo rural provocado, por sua vez, pela expansão
das relações capitalistas de propriedade e de produção no
campo.
A)
A modernização da agricultura e a luta por
direitos: a prioridade da organização sindical
A questão agrária surgiu no estado como reflexo da
expansão da fronteira agrícola em direção ao Oeste – “marcha
para o Oeste” – estimulada pelo governo de Getúlio Vargas
durante o “Estado Novo” (1937-1945) e consolidada com a
construção da rodovia Belém-Brasília, iniciada na década de
1950. Os movimentos camponeses em reação à superexploração
e à grilagem vieram à tona já na segunda metade da década de
1940, com as lutas pela redução da taxa do “arrendo”
A partir da década de 1970, a agricultura comercial
passou por um acelerado processo de expansão e modernização
no estado de Goiás, com vistas a produzir para o abastecimento
dos mercados do sudeste do país e para a exportação,
especialmente cereais e gado bovino. Essa expansão foi
impulsionada pelos programas de desenvolvimento regional,
inseridos no II Plano Nacional de Desenvolvimento – II PND –
119
120
criado pelo governo do general Ernesto Geisel (1974-1979): o
Programa de Desenvolvimento dos Cerrados – POLOCENTRO
ou Prodecer; o Programa de Desenvolvimento da Amazônia
Legal – POLAMAZÔNIA – e o Programa de Desenvolvimento
da Região Geoeconômica de Brasília (cf. BERTRAN, 1988;
ESTEVAM, 1998). Segundo Estevam (ibidem, p. 167), “O
esforço concentrou-se no aprimoramento da tecnologia de
cultivos e na pecuária de corte em áreas de cerrado”. Porém, os
pequenos produtores que cultivavam os alimentos básicos
consumidos pela população local não se beneficiaram de tais
recursos. Tanto a geração de novas tecnologias quanto os
fundos de financiamento foram destinados à produção
monocultora para a agroindústria e para o mercado externo
(principalmente a soja), cultivados em grandes estabelecimentos.
Além de manter a estrutura fundiária concentrada e
ampliar a proletarização do camponês, essa modernização levou
ao aumento dos empregos temporários e à conseqüente
deterioração das relações de trabalho. De acordo com Estevam,
três categorias de trabalhadores passaram a suprir essa
agricultura modernizada: a “‘mão-de-obra familiar’, oferecida
por pequenos proprietários e posseiros, ‘mão-de-obra volante’,
destituída de propriedade ou posse fundiária, e um novo tipo de
‘mão-de-obra qualificada’ voltada para o manejo das
incorporações tecnológicas” (op. cit., p. 182). A modernização
da agricultura levou à “substituição das antigas e tradicionais
formas de trabalho na terra, pela mecanização”, transformando
“o antigo morador, agregado ou parceiro, e até mesmo o
empregado permanente” em “assalariado sazonal, safrista,
volante” (HEINEN, 1996, p. 34), mais conhecido como “bóiafria”.
As condições sociais de existência dos trabalhadores
rurais em geral tornavam-se cada vez mais precárias, conforme
relatório da II Assembléia Geral da CPT Goiás, realizada em
agosto de 1978. Uma situação marcada pela “insegurança em
tudo”; “medo, pressões, ameaças, ‘cercas’”; ocupação das terras
121
pelo “boi e o capim”; concentração da propriedade em poder de
empresas e latifundiários; “falta de financiamentos, insegurança
financeira”; “expulsão” pela ação “dos grileiros”; “abandono das
terras, despejos, êxodo rural, favelas, inchaço das cidades”;
“injustiças dos patrões”; “analfabetismo e prostituição”. Difícil
era medir qual categoria vivia em pior situação. Para os
participantes daquela Assembléia, era a dos “bóias-frias”. Uma
“pesquisa participante”, realizada pela CPT Centro-Sul (Goiás)
em 1982, com assessoria do sociólogo José de Souza Martins7,
constatou que os “bóias-frias” e “diaristas”8 eram as categorias
que estavam submetidas às piores condições de trabalho e de
existência. Homens e mulheres eram transportados amontoados
em carrocerias de caminhões superlotadas, em precário estado
de conservação, sem qualquer segurança, para trabalharem até
doze horas por dia em troca de uma remuneração baixíssima.
Com a expansão da cultura da cana-de-açúcar no estado,
motivada pelo Programa do Álcool Combustível (Pró-Álcool),
implementado no governo do general João Baptista Figueiredo
(1979-1985), o grupo de “bóias-frias” que assumiu maior
destaque foi o dos canavieiros (cortadores de cana).
Para esses trabalhadores e os agentes da CPT Goiás, a
causa fundamental de todos os seus problemas estava na falta da
posse da terra. A expulsão da terra abriu a caixa de Pandora. Os
“bóias-frias” ouvidos pela CPT consideravam que o salário era
um “engano”. A solução para os seus problemas estava na
retomada da posse da terra. Esta constatação foi feita por
D’Incao (1983), através de sua pesquisa sobre os “bóias-frias”
7
8
Durante a pesquisa, os trabalhadores se reuniam em grupos nas próprias
comunidades e respondiam as perguntas em número de oito (cf. CPT
Centro-Sul de Goiás. Uma luta encolhida: bóias-frias e diaristas. Cartilha
de formação. Goiânia, 1983, p. 17).
A CPT distinguiu as duas categorias pela condição ou situação das
refeições que consumiam quando estavam trabalhando: o diarista, “na
maioria das vezes, ganha a bóia do patrão, que depois desconta da
diária”, enquanto que o bóia-fria “leva a comida no caldeirão e quando
chega a comer, ela já está fria”, às vezes estragada.
122
do Médio-Oeste de São Paulo. Heinen verificou que esses
trabalhadores assalariados temporários “não assumem a sua
atividade como uma verdadeira profissão, preferindo se
identificar numa situação transitória ou passageira, em busca de
um emprego mais duradouro e com efetivas garantias” (op. cit.,
p. 130). Grzybowski (1987, p. 71), por seu lado, entende que o
fato de os agentes católicos considerarem os trabalhadores
rurais assalariados como sem-terra gera “grandes equívocos”
em sua prática, na medida em que deixam de levar em conta as
particularidades de cada grupo, o que dificulta contribuir para o
encaminhamento adequado de suas lutas, tendo em vista as suas
reivindicações específicas.
Certo é que, a situação de insegurança e medo (medo até
de “pensar”), mais do que o desconhecimento da lei e dos
próprios direitos, levava os trabalhadores a se manterem
afastados de qualquer tipo de organização. Ao mesmo tempo, a
desorganização dos “bóias-frias” permitia a reprodução das
condições que os mantinham submetidos à superexploração.
Embora a Constituição Federal de 1988 tenha estabelecido a
igualdade de direitos entre assalariados rurais e urbanos, em
meados da década de 1990 Heinen encontrou cem por cento
dos “bóias-frias” trabalhando sem qualquer tipo de contrato
escrito (op. cit., p. 58). Foi no quadro sócio-histórico descrito
acima, agravado pela expansão do sindicalismo oficialista e
assistencialista, que os militantes da CPT Goiás optaram por
atuarem na organização dos trabalhadores rurais assalariados
em sindicatos e apoiar a sua luta por direitos.
A opção por priorizar a organização dos trabalhadores
rurais (assalariados e não assalariados) em sindicatos teve duas
justificativas principais: primeiro, porque estava “claro” que o
“sindicalismo [era] fundamental, por ser o caminho legal da
organização necessária dos trabalhadores rurais” e, segundo,
porque já existia “um grande movimento de fundação de
sindicatos, promovido pela Federação dos Trabalhadores na
Agricultura”. Para eles, a sindicalização era um “meio de se
criar consciência de classe”, possibilitando a fundação de
“sindicatos sérios”. Na definição dos agentes da Pastoral,
sindicato sério era aquele “que representava a classe e seus
interesses, cumpre a sua finalidade e não se curva diante da
ameaça” (II Assembléia Geral). Para ser verdadeira, a entidade
teria de ser criada “com o jeito da classe”, a partir da decisão
consciente dos próprios trabalhadores, surgida “de baixo para
cima”, não como habitualmente se fazia. A direção do sindicato
teria de ser exclusividade dos membros da classe, aqueles mais
experientes e comprometidos com os seus interesses coletivos.
Mas, antes de partir para a fundação de sindicatos, era
necessário esclarecer os próprios trabalhadores sobre o que era
um sindicato; qual a sua finalidade; como deveria funcionar e
quais os passos para a sua criação. A preocupação com este
aspecto educativo era justificada pela ignorância de grande parte
da classe em relação ao assunto, que, segundo os agentes da
Pastoral, confundiam Sindicato de Trabalhador Rural (STR)
com Sindicato Rural, dos patrões, e com a própria Igreja. Daí se
originando a expressão “sindicato do padre”.
Para os agentes da CPT Goiás, somente por meio da
“conscientização” seria possível ultrapassar esse nível de
consciência. Com vistas a isso, foi adotada a formação como
prioridade, constituindo-se no “eixo” que atravessa todas as
demais ações do trabalho político-pastoral. Neste setor, a
prioridade foi dada à formação de lideranças, especialmente
sindicais. No início, as ações da CPT Goiás se concentraram no
trabalho essencialmente político da “conscientização” sobre os
direitos e a necessidade de organização. À medida que a
categoria desenvolveu sua capacidade de mobilização e pressão,
o serviço prático de assessoria aos trabalhadores no processo de
negociação, objetivando o estabelecimento de Acordos ou
Convenções Coletivas com os patrões, assumiu maior
relevância. Além de assegurar direitos, esses acordos
contribuíram para tornar os sindicatos mais atraentes para os
trabalhadores assalariados temporários, embora as conquistas
123
124
obtidas não tenham se traduzido em grandes progressos na
organização da categoria.
Ao mesmo tempo em que priorizavam a formação dos
assalariados temporários para a formação de novos sindicatos,
os agentes da Pastoral da Terra Regional Goiás apoiavam as
ações dos integrantes da Oposição Sindical dos Trabalhadores
Rurais (OSTR/GO) pela conquista das entidades sindicais
dirigidas por sindicalistas pelegos, inclusive da Federação dos
Trabalhadores na Agricultura do Estado de Goiás (Fetaeg).
Lançada num mutirão na lavoura do pequeno proprietário José
Teixeira, no município de Itaguaru, em 17 de fevereiro de 1979
(cf. REVERS, 1999), a partir de então a OSTR se ampliou com
a incorporação de outras lideranças sindicais que se oponham à
permanência do oportunista proprietário rural Antônio Bueno
na presidência da Fetaeg9.
Segundo Revers (op. cit., p. 122), a plataforma de lutas da
OSTR/GO consistia de “três eixos”: luta pela terra e por
condições satisfatórias para produzir; luta coletiva por direitos e
luta contra o “peleguismo sindical, tendo como principal meta
destituir do cargo o presidente da Federação e cassar os seus
direitos sindicais”. Desde sua criação, a OSTR/GO centralizou a
luta pela conquista da direção da Fetaeg, até ser incorporada à
CUT Goiás em 1988, na sua Secretaria Rural. Após o
afastamento de Antônio Bueno da presidência da Federação
(1981), o embate passou a ser com o grupo dirigente composto
por lideranças vinculadas ao Partido Comunista do Brasil (PC
do B) e por ex-correligionários do presidente deposto. A única
eleição para a diretoria da Fetaeg disputada por uma chapa da
OSTR foi a de 1988, saindo derrotada por quatro votos de
diferença. O primeiro sindicato fundado pelos militantes da
Oposição Sindical foi o de Uruana. Sem jamais ter conseguido
vencer os grupos que dirigiam a Fetaeg, em 1992, os
9
Presidentes dos STRs de Anápolis, de Bela Vista e de Nova Veneza,
respectivamente, Milton do Carmo Rezende, Nelson de Assis Teles e
Alírio Corrêa.
125
remanescentes da OSTR compuseram uma chapa única com as
lideranças comunistas que controlavam a entidade em aliança
com “pelegos”, passando assim a fazerem parte da sua direção.
Esse fato permitiu que agentes da CPT Goiás passassem a
prestar assessorias e a influenciar a atuação da direção da
entidade, tendo sido adotado o sistema de Secretarias de setores
específicos (assalariados, produção familiar, política sindical,
formação), defendido pela Pastoral e pelos militantes da
Oposição Sindical.
Em virtude desse envolvimento com o movimento de
Oposição Sindical, a CPT Goiás participou ativamente da
formação da Central Única dos Trabalhadores no estado. A
atuação dos seus agentes, porém, não se limitou a esse
momento de gênese. Durante vários anos e em muitas ocasiões
eles cooperaram estreitamente com as atividades desenvolvidas
pela Central ou pelos grupos congregados na sua corrente
hegemônica – a Articulação Sindical. Entre 1991 e 1993, a CPT
Goiás integrou o Coletivo de Formação da CUT Goiás.
Ao longo desse período de atuação, as conquistas obtidas
pelos trabalhadores rurais, inclusive uma maior liberdade de
organização, além da igualdade de direitos trabalhistas e sociais
com os trabalhadores urbanos, não foram suficientes para
concretizar as mudanças estruturais e alterar as práticas dos
dirigentes sindicais na profundidade e extensão propugnadas
pela CPT Regional Goiás. O sentimento relativo aos sindicatos
conquistados ou fundados por lideranças vinculadas à Oposição
Sindical foi de frustração. Já em 1983, os participantes da VI
Assembléia Geral da Pastoral inferiam que as lideranças estavam
absorvidas pela estrutura sindical, sem tempo para o “trabalho
de base”. A saída proposta para a superação dos impasses em
que se encontrava a organização sindical foi: a descentralização
do poder, através da repartição das tarefas, encarada como um
meio de possibilitar “o surgimento de novos militantes,
animadores e líderes”. Numa avaliação feita em 1990, a
Coordenação Ampliada da Pastoral apontava os fatores
126
geradores da crise: o fracionamento dos trabalhadores do
campo em várias categorias; o “peleguismo” dos dirigentes; o
corporativismo reforçado pela estrutura oficial e a desorientação
dos trabalhadores provocada pelas disputas entre as correntes
sindicais. Ainda assim, insistia na criação de novos sindicatos e
reafirmava a necessidade de “fortalecer o Movimento Sindical”.
B)
A prioridade à luta pela terra
O ascenso das lutas dos trabalhadores rurais pela terra em
Goiás se deu no mesmo contexto da luta por direitos
trabalhistas e políticos. As expulsões de milhares de famílias do
campo transformadas em sem-terra, por vezes, culminaram em
conflitos e até mortes. Entre 1974 e 1986, foram assassinadas
63 pessoas no campo no estado10. Durante a década de 1970
foram inúmeros os casos de tentativas de expulsão de posseiros
mediante ações de grilagem. Na década seguinte, dada a
crescente valorização das terras determinada pela procura para
grandes empreendimentos agropecuários, os conflitos
motivados por grilagem aumentaram em Goiás. Muitos
contaram com a resistência apenas individual dos camponeses
ocupantes. Em outros casos, a reação organizada permitiu que
os posseiros assegurassem a regularização das posses pelo
poder público.
Em todo o país, a crescente radicalização dos conflitos
no campo provocou importantes respostas por parte da
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
(Contag), do Estado e da Igreja. A resposta da Confederação
às demandas dos camponeses e dos trabalhadores sem-terra
foi dada, inicialmente, no III Congresso Nacional dos
Trabalhadores Rurais em 1979. Os participantes desse
encontro definiram a efetivação da reforma agrária como
condição para a redemocratização do país. Visto desacreditarem
na eficácia do Estatuto da Terra, como mecanismo de
redistribuição da terra aos que dela precisavam para produzir e
viver, aprovaram a resistência organizada dos posseiros à
expulsão, o que já vinha ocorrendo, e a realização de ocupações
das grandes propriedades improdutivas11. Levadas a efeito,
essas resoluções haveriam de acirrar os conflitos entre os
trabalhadores e os latifundiários.
A esse recrudescimento dos conflitos no campo o
governo do general Figueiredo respondeu com a instituição
do Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins
(GETAT), do Grupo Executivo do Baixo Amazonas
(GEBAM) e a criação do Ministério Extraordinário para
Assuntos Fundiários (MEAF). Ao GETAT, instituído em
1980, competia encaminhar as soluções para a questão
fundiária na área mais conflituosa do país naquele momento,
formada pelo sudeste do Pará, Bico do Papagaio (norte do
atual estado do Tocantins) e oeste do Maranhão. A criação
desse órgão representou o passo mais importante do regime
ditatorial no processo de “militarização da questão agrária”
(MARTINS, 1985). O GEBAM foi criado meses depois do
GETAT, “com características semelhantes” (MEDEIROS,
op. cit., p. 161). Com a instituição do MEAF, em 1982, o
governo militar avançou mais ainda no processo de
militarização e federalização da questão agrária.
Quanto à Igreja, o posicionamento mais consistente da sua
hierarquia frente à questão agrária foi tomado através do
documento Igreja e problemas da terra, aprovado na XVIII
Assembléia Geral da CNBB em 1980. Esse documento
representou um reforço à posição da CPT. Os bispos
identificaram na concentração da propriedade fundiária a causa
fundamental do sofrimento e da miséria das massas rurais. A
responsabilidade por tal situação caberia a toda a sociedade,
mas principalmente, aos que impunham ao país “um sistema de
vida e trabalho que enriquece uns poucos às custas da pobreza
10
11
Em todo o Brasil foram mais de 690 mortes provocadas por conflitos no
campo, entre 1975 e 1984 (cf. MST, 1987).
127
Sobre as resoluções desse congresso, consultar: MEDIROS, 1989, p.
117; TEDESCO, 1995.
128
da maioria” (CNBB. Documento citado, nº 31). A superação do
problema passaria pelo reconhecimento de um princípio bíblico
ontológico: a terra é um dom de Deus a todos os homens.
Agora, o discurso religioso, equivalente da noção metafísica do
direito natural de propriedade, servia à causa dos espoliados não
à dos espoliadores, como antes ocorria. Tendo como referência
esta divisa, os bispos opunham o sentido atribuído pelo
camponês-posseiro à propriedade da terra à concepção do
proprietário capitalista: “terra de trabalho” versus “terra de
negócio” ou “de exploração” (ibidem, nº 84 e 85).
Assim, a permanência da questão agrária expressa no
acirramento dos conflitos sociais no campo no final dos anos
1970 e início dos 80 impôs aos dirigentes sindicais, ao Estado
militar e à Igreja uma tomada de posição de modo a responder
às demandas dos trabalhadores por terra, cada um a seu modo e
com distintos propósitos.
1) A campanha contra o Projeto JICA
A efetiva atuação da CPT Goiás na luta dos trabalhadores
do campo pela terra se iniciou com as mobilizações contra a
implantação do Programa de Desenvolvimento do Cerrado –
Prodecer – vulgarizado como Projeto JICA12 e com a prestação
de assessoria jurídica e apoio político a posseiros na resistência
à grilagem. Em sua primeira fase, o Prodecer/JICA foi
implantado na forma de um projeto piloto na região de
Coromandel, oeste de Minas Gerais, a partir de 1979, com a
finalidade de produzir soja, milho, sorgo, café, eucalipto e trigo.
Dirigido pela Companhia de Promoção Agrícola – CAMPO –
criada pelo governo federal com 49% de participação do capital
japonês, o Projeto elaborado pela JICA, ocupava uma área de
50 mil hectares. Na segunda fase, iniciada em 1985, o Prodecer
12
JICA – Japan International Cooperation Agency – na verdade, era um
órgão do governo japonês que visa a criar oportunidades para a inversão
de capital em outros países.
129
deveria abranger 200 mil hectares nos estados de Goiás (municípios
de São João D’Aliança, Formosa, Planaltina, Catalão, Campo
Alegre, Ipameri e Cristalina), Bahia, Mato Grosso e Mato Grosso
do Sul, além de Minas Gerais (cf. CPT Minas Gerais, 1985, p. 2425; OSADA, s/d). Posteriormente, foram planejadas mais duas
etapas: o Prodecer III, em 1997, e o IV, em 1999, incorporando
áreas de outros estados do Nordeste e Amazônia (OSADA, op.
cit.).
Com a efetivação do Projeto de Desenvolvimento do
Cerrado o governo brasileiro pretendia gerar grandes
excedentes e aumentar as exportações. Porém, para centenas de
milhares de camponeses o principal efeito seria a expulsão das
terras por ele incorporadas. Ao tomar conhecimento desse
Projeto13 e das suas projetadas conseqüências prejudiciais aos
trabalhadores rurais, os agentes da CPT Centro-Sul de Goiás
iniciaram a mobilização dos camponeses, da Igreja e de setores
populares contra a sua implementação. A IV Assembléia Geral
da entidade (6 a 10 agosto de 1980) teve como tema central a
luta contra o Prodecer. Já no final de setembro daquele ano, a
Coordenação Ampliada se reunia para avaliar a campanha. Os
resultados oscilaram entre o engajamento de alguns bispos e a
indiferença de uma parcela das comunidades locais mais
distantes das áreas até então afetadas pelo projeto. As várias
assembléias locais não foram suficientes para motivar o
envolvimento massivo nem dos sindicatos.
Exatamente os pequenos proprietários que, segundo as
previsões dos agentes da Pastoral da Terra, seriam os principais
atingidos não se convenceram da ameaça que o Projeto JICA
13
Segundo informação da brochura Para quem fica nossa terra, para
onde vai nosso povo, já citada, os agentes da CPT Goiás tomaram
conhecimento do Projeto JICA em maio de 1980, através de uma
reportagem publicada no semanário Cinco de Março (Goiânia, 19-25 de
maio de 1980, p. 5) com base em denúncias feitas pelos deputados
federais Hélio Duque, do Paraná, Jader Barbalho, do Pará, e Fernando
Cunha, de Goiás, todos do Partido do Movimento Democrático Brasileiro
(PMDB).
130
representava. Faltavam elementos concretos para tanto. Afinal,
até aquele momento a sua implantação havia se restringido a
alguns municípios mineiros sem que os seus efeitos negativos
fossem imediatamente perceptíveis fora daquela área. Diante
dessas dificuldades, o movimento diminuiu o seu impulso inicial,
voltando à tona depois da posse dos governadores eleitos pelo
partido de “oposição” ao regime militar, PMDB, em Minas
Gerais e em Goiás, em março de 1983, que se posicionaram
favoráveis à continuidade do Projeto. Após 1990, não se
verifica qualquer referência ao assunto nos documentos da CPT
Goiás.
Distintamente do que ocorrera na campanha contra o
Projeto JICA, nos casos de resistência de posseiros à expulsão
os agentes da CPT Goiás não assumiram funções de direção. O
seu apoio às vítimas de grilagem, em geral, deu-se através de
denúncias públicas, prestação de assessoria jurídica e mediação
nas negociações junto às instituições do Estado. Em alguns
momentos, tentou-se agir preventivamente, reivindicando do
poder público a regularização das ocupações antigas por meio
da concessão dos títulos de propriedade aos posseiros.
Entretanto, nos primeiros anos da década de 1980, a ênfase
maior foi dada aos conflitos provocados pelas ações dos
grileiros. Dentre os inúmeros casos de luta de posseiros contra a
expulsão em que a CPT Goiás atuou como “apoio solidário” aos
trabalhadores, destacam-se os da fazenda São João, município
de Montes Claros, fazenda Mamoneiras, município de Fazenda
Nova, fazenda Maria Alves, município de Itapuranga, e fazenda
São João do Bugre/Estiva, município de Goiás. Estas
experiências foram de fundamental importância para o
desenvolvimento das ações posteriores da luta pela terra no
estado, desenvolvidas na forma de ocupações coletivas de
propriedades consideradas improdutivas pelos próprios
trabalhadores e agentes da pastoral, que se tornaram mais
freqüentes a partir de 1985. Mas antes disso, em 1983, a CPT
Regional promoveu no estado, em conjunto com outras
entidades, a Campanha Nacional pela Reforma Agrária.
131
132
1) A Campanha pela Reforma Agrária
Segundo relato de Dom Tomás Balduino, a Campanha
Nacional pela Reforma Agrária promovida pela CPT, CNBB,
Contag, Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas
do Rio de Janeiro (IBASE) e a Associação Brasileira de
Reforma Agrária (ABRA), lançada em 28 de abril de 1983,
surgiu em Britânia (extremo-oeste do estado de Goiás)
(Entrevista concedida a Fernando de Brito em...). Tudo
começou com a proposta de criação de uma lei que destinasse
20% das terras das fazendas para o cultivo de alimentos. A
sugestão partiu de camponeses não-proprietários que, no
período da vazante cultivavam as terras baixas às margens do
Lago dos Tigres no referido município goiano. Dom Tomás
Balduino levou a proposta aos sociólogos Herbert de Souza, o
Betinho, do IBASE, e José de Souza Martins, da Universidade
de São Paulo, à época, assessor da CPT Nacional. Betinho
entrou em contato com outras organizações e num primeiro
encontro entre seus representantes a proposta dos 20% foi
transformada na Campanha Nacional pela Reforma Agrária,
visto que consideraram aquele percentual insuficiente para
solucionar os problemas dos camponeses sem-terra (cf.
REVERS, op. cit., 143).
Em Goiás, a campanha foi inaugurada no dia 30 de
novembro daquele ano com uma passeata que reuniu em
Goiânia cerca de seis mil pessoas vindas de 64 municípios. A
data foi escolhida em função de coincidir com o 19º aniversário
da aprovação do Estatuto da Terra pelo regime militar. O
objetivo político mais importante da Campanha era unir os
trabalhadores do campo e da cidade e grupos aliados na luta
pela reforma agrária, visto ser compreendida como uma medida
que interessaria a toda a sociedade. E para que atendesse, de
fato, às necessidades dos diretamente interessados, teria de ser
feita “sob o controle dos trabalhadores”. Este, o lema do
movimento. Apesar de promover a campanha, a CPT nunca
formulou uma proposta prática de reforma agrária, limitando-se
a apoiar a luta dos trabalhadores por esse objetivo.
O esforço de convencimento da necessidade e importância
de se fazer a reforma agrária encontrou algumas resistências.
Além da compreensível oposição dos grandes proprietários,
muitos camponeses donos de pequenas glebas temiam a
intervenção na estrutura fundiária. Um temor que foi explorado
pelos maiores inimigos da reforma agrária, reunidos na União
Democrática Ruralista (UDR), fundada em Goiânia em 1985.
Na época, a CPT Regional constatava “a grande dificuldade dos
pequenos proprietários se integrarem na luta pela reforma
agrária”. Com o início das ocupações de propriedades
improdutivas no estado pelos sem-terra, a Campanha assumiu
forma mais concreta e se tornou uma ação permanente, a partir
de 1985, conferindo maior visibilidade política à categoria dos
sem-terra.
As primeiras ocupações efetivadas na década de 1980 no
estado de Goiás se inserem num contexto mais amplo em que
esta forma de ação direta já era desenvolvida em outras regiões
do país (cf. FERNANDES, 1999, p. 75; IOKOI, 1996, p. 67147). Das lutas no Sul do Brasil surgiu o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, com o apoio da CPT.
Fundado em janeiro de 1984 em Cascavel, sudoeste do Paraná,
sob o lema ocupar, resistir, produzir, o Movimento se propôs a
lutar pelo fim da exploração do homem pelo homem, organizar
os trabalhadores rurais na base, estimular a sua participação
no sindicato e no partido, formar lideranças e construir uma
direção política dos próprios trabalhadores e ainda, articular-
se com os trabalhadores da cidade e da América Latina
(FERNANDES, op. cit., p. 79). Em janeiro de 1985, o MST
realizou seu primeiro Congresso, quando reafirmou as
ocupações como principal forma de luta pela terra.
Naquele mesmo ano se instalava o governo da “Nova
República” (1985-1989) com a incumbência de completar o
processo de transição político-jurídica para a democracia,
mediante a elaboração de uma Nova Constituição por uma
Assembléia Nacional Constituinte. Também em maio de 1985 a
Contag realizou em Brasília o IV Congresso Nacional dos
Trabalhadores Rurais. Nesse encontro, o presidente da
República, José Sarney, apresentou a primeira versão da
proposta do 1º Plano Nacional de Reforma Agrária. Aprovado
em 10 de outubro daquele ano (Decreto nº 91.766), o 1º PNRA
projetava assentar 1,4 milhão de famílias entre 1985 e 1989. Os
beneficiários da reforma agrária seriam trabalhadores rurais
sem-terra, posseiros, parceiros, arrendatários, assalariados do
campo e minifundiários. Segundo o Relatório de atividades do
INCRA (2001), ao final dos cinco anos de vigência do PNRA,
apenas 6,43% das famílias foram assentadas em 10,55% da área
pré-estabelecida. Em Goiás foram assentadas apenas 1,28% das
125 mil famílias previstas em 0,49% da área estipulada.
Menos de um mês antes do anúncio da primeira proposta
do PNRA, vinte e três famílias de sem-terra ocuparam a fazenda
Mosquito, município de Goiás. O encorajamento do grupo para
enfrentar o desafio veio das lutas vitoriosas dos posseiros das
fazendas Maria Alves e São João do Bugre/Estiva, nos
municípios de Itapuranga e Goiás, respectivamente. Embora os
trabalhadores que participaram dessas ações tenham sido
fortemente influenciados pelo “trabalho de conscientização” dos
agentes de pastoral da Diocese local e da Pastoral da Terra
Regional, a decisão de fazer valer o seu direito à terra coube aos
próprios trabalhadores. Após a difícil luta das famílias de semterra pela fazenda Mosquito, muitas outras se seguiram em
vários municípios do estado, mas com tendência a se concentrar
133
134
2) Ocupações: a reforma
trabalhadores sem-terra
agrária
feita
pelos
na região da Diocese da cidade de Goiás. A partir de então, os
acampamentos e ocupações se tornaram práticas comuns da luta
pela terra em território goiano. De 1985 a 1989 foram
registrados 194 conflitos, envolvendo 234.023 pessoas,
resultando em 344 despejos judiciais (CPT. Conflitos de Terra,
1985-1989).
No movimento de ocupação e formação de acampamentos
de sem-terra, a CPT Regional Goiás foi mais ativa do que nos
casos de resistência dos posseiros contra a grilagem. Além de
contribuir com mais freqüência com a organização direta das
ações, os seus agentes foram os principais articuladores de um
núcleo do MST no estado e cumpriram importante papel na
encampação da luta pela terra por parte das entidades sindicais,
especialmente a Fetaeg. A iniciativa de criar a Secretaria do
MST partiu dos próprios integrantes da Pastoral da Terra em
conjunto com agentes de pastoral da Diocese de Goiás. Este
fato coincidiu com o início da luta pela conquista da fazenda
Mosquito. A estruturação da Secretaria se deu a partir do
Primeiro Encontro dos Trabalhadores Sem Terra do estado,
realizado no período de 2 a 5 de janeiro de 1986. A intenção
confessa dos agentes da CPT, ao apoiar a formação do MST no
estado, era levar os sem-terra a constituir uma organização
própria capaz de tornar a luta pela terra mais eficaz, já que os
sindicatos não a assumiam conforme as circunstâncias exigiam.
Entretanto, esse apoio não foi suficiente para fazer do
Movimento uma força político-organizativa de referência para a
categoria até o início dos anos 1990.
Ao mesmo tempo em que a CPT procurava organizar os
trabalhadores sem-terra e apoiar as suas ações, os grandes
proprietários também se articulavam na UDR. Para Ronaldo
Caiado, seu fundador e primeiro presidente, a ocupação de
propriedades improdutivas (terminologia rechaçada por ele) se
constituía um ‘crime’; os acampamentos eram ‘a miséria
amontoada nas estradas’, a ‘socialização da miséria’ e os
assentamentos não passavam de “favelas rurais”. Além dos
ataques verbais aos defensores da reforma agrária, a UDR
utilizava do recurso às armas. Para tanto realizava leilões de
gado para montar seu arsenal. Foram vários os casos de
assassinatos e atentados contra trabalhadores rurais, líderes
sindicais, padres e agentes de pastoral em que os fazendeiros
ligados à UDR foram apontados como mandantes. Porém, sua
maior vitória foi ter contribuído para a derrota de uma proposta
popular de reforma agrária no Congresso Constituinte em 1988.
3) A aposta na reforma agrária via institucional e a
retomada da luta direta pela terra
A partir da segunda metade da década de 1980, a CPT
Goiás avançou ainda mais no terreno institucional. Entre 1986 e
1988, a maior preocupação dos seus militantes foi com a
mobilização dos trabalhadores rurais em articulação com outras
pastorais sociais da Igreja e organizações populares urbanas em
torno do Congresso Constituinte. Nesta frente de ação política,
a sua atenção se concentrou na campanha pela inclusão da
Proposta Popular de Reforma Agrária no projeto da Nova
Constituição. De entrada, o primeiro artigo da Proposta
reafirmava a função social (“obrigação social”) da propriedade
fundiária: “Ao direito de propriedade de imóvel rural
corresponde uma obrigação social” (O plantador, Goiânia,
mar./abr. 1987, nº 6, p. 5). Esta seria cumprida quando a gleba
fosse “racionalmente” aproveitada; conservasse os recursos
naturais e preservasse o meio ambiente; observasse a legislação
trabalhista e não motivasse “conflitos ou disputas pela posse ou
domínio”; não excedesse “a área máxima prevista como limite
regional” e respeitasse “os direitos das populações indígenas”
que vivessem “nas suas imediações”. Caso não atendesse a esses
requisitos, o seu proprietário seria sumariamente expropriado e
o imóvel destinado à reforma agrária.
Além de estabelecer critérios para desapropriação e
indenização das propriedades, a proposta previa ainda: limites
para as glebas de área contínua (60 módulos regionais, somando
135
136
ao todo 1.000ha); suspensão das “ações de despejos e
reintegração de posse contra arrendatários, parceiros, posseiros
e outros trabalhadores” que mantivessem relações de trabalho
com o proprietário, ainda que de cunho indireto; vedação da
posse de terrenos superiores a três módulos regionais a pessoas
físicas ou jurídicas estrangeiras; aplicação do instituto do
usucapião após três anos de efetiva ocupação de áreas não
superiores a três módulos regionais; proibição da venda dos
lotes por parte dos beneficiários da reforma agrária e direito de
participação dos trabalhadores nas instâncias decisórias públicas
sobre assuntos de reforma agrária com, no mínimo, 50% dos
votos (ibidem, p. 5 e 6).
Essa proposta nasceu das discussões com os trabalhadores
rurais e especialistas no assunto. O fato de contar com cerca de
1,5 milhão de assinaturas de eleitores de todo o país, não evitou
sua rejeição pela maioria conservadora dos constituintes. Apesar
de mantido o princípio da ‘função social da propriedade’ no
texto constitucional, as possibilidades de desapropriações para
fins de reforma agrária foram restringidas pela ressalva de que a
propriedade produtiva é insuscetível de desapropriação. Na
prática, isso significava manter a estrutura agrária do país
inalterada e mais de quatro milhões de famílias de trabalhadores
sem-terra impossibilitadas de ter acesso à terra.
Perdida a batalha pela reforma agrária na Constituinte, a
CPT passou a canalizar as esperanças dos trabalhadores para a
eleição do candidato do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio
da Silva, o Lula, para presidente da República em 1989. A
possibilidade de eleição do ex-operário Lula era encarada por
grande parte dos defensores da reforma agrária como o caminho
mais curto para a sua concretização. Imbuídos dessa crença, os
agentes da CPT Goiás se engajaram na campanha. Mas o
candidato petista não conseguiu se eleger. Com a derrota de
Lula foram-se as esperanças de realização da reforma agrária a
curto prazo.
137
Esses dois fracassos consecutivos da reforma agrária – na
Constituinte e na disputa eleitoral para a Presidência da
República – produziram uma certa confusão e a paralisia política
de parcela importante dos militantes da causa, inclusive dos
agentes da CPT. Essa situação, decorrente do profundo
envolvimento com as lutas institucionais, coincidiu com um
acentuado refluxo do movimento ocupacionista no Brasil e em
Goiás. Sumariamente, podemos apontar quatro razões para
explicar a queda do número de ocupações realizadas em Goiás
no período de 1988/89 a 1991:
1.
O já mencionado envolvimento dos “agentes
mediadores” da luta pela terra no processo político-institucional
(eleições, Assembléia Constituinte) e o conseqüente afastamento
da organização e apoio às ações diretas.
2.
O reflexo da derrota da candidatura de Luiz
Inácio da Silva à Presidência da República, combinado com os
efeitos da desagregação do chamado “socialismo real”, a partir
de 1989 com a queda do Muro de Berlim, e as expectativas
geradas pelo discurso do presidente Collor de Mello em favor
dos “descamisados” (pobres) e de seu primeiro plano
econômico (Plano Collor I)14. Aqui deve ser incluído o
fechamento do governo Collor ao diálogo com os setores
organizados da sociedade civil (CPT Regional Goiás, “A luta
pela terra em Goiás”, 1992).
3.
A debilidade da organização dos trabalhadores
rurais sem-terra. O MST apresentava muita dificuldade para
atuar na mobilização da categoria, não possuía nem quadros
nem recursos financeiros nem infra-estrutura suficiente. Os
sindicatos, por seu lado, encontravam-se enfraquecidos
14
O Plano Collor I consistiu numa série de medidas, que incluiu o
congelamento de contas correntes e de poupança, visando a combater a
inflação e o déficit público, com apenas “um tiro”. Com o seu fracasso,
um ano depois o governo editou o Plano Collor II que não gerou as
mesmas expectativas do primeiro nem produziu os mesmos efeitos sobre
as taxas de inflação.
138
financeira e organizativamente. Além do mais nunca assumiram,
de modo efetivo, a luta pela terra, muito menos as ocupações.
4.
Por fim, a emergência da luta pela permanência
na terra – luta na terra – provocada pela necessidade de
garantir condições satisfatórias à reprodução social das famílias
assentadas (ex-sem-terra) e dos pequenos produtores
tradicionais no campo. As demandas por uma política agrícola
diferenciada para a pequena produção, ou produção familiar
como passou a ser designada, por melhores condições de
produção e comercialização levaram à abertura de uma nova
frente de luta, provocando o redirecionamento das ações e dos
recursos da Pastoral da Terra.
A combinação de todos esses fatores repercutiu
profundamente no desenvolvimento da luta pela terra, gerando
o seu refluxo. A luta direta pela terra em Goiás foi retomada em
1992, com a ocupação da fazenda União, município de Mundo
Novo, por cerca de 400 famílias sem-terra originárias de vários
municípios goianos. Após o despejo dos ocupantes determinado
pela justiça, seguiu-se um longo e conflituoso processo de
negociação entre o fazendeiro, o INCRA e os trabalhadores
assessorados pela CPT Goiás e pela Fetaeg, resultando no
assentamento de apenas quarenta famílias na gleba Zebulândia,
situada no município de Mara Rosa (INCRA SR-04/GO.
Relação dos Projetos de Assentamento da SR-04/GO. 2002).
As demais se dispersaram por outros projetos ou formaram
novos acampamentos em outros municípios do estado.
Além dessas áreas de terra do noroeste goiano, em 1992
foram ocupadas as fazendas Pouso Alegre (31 famílias), no
município de Barro Alto (meio-norte), Serra Negra (63
famílias), em Bom Jardim de Goiás (oeste), Piratininga (31
famílias), município de Formosa (leste) e São Carlos (215
famílias), no município de Goiás (CPT. Conflitos no campo
Brasil 1992, p. 78). Nesta nova fase, o movimento
ocupacionista apresentou algumas características distintas das
do período anterior. Uma delas foi a desconcentração
geográfica. Enquanto até 1987/88 a maioria das ações havia se
limitado à região da Diocese de Goiás, a partir de 1992 a
tendência foi a expansão para o noroeste/norte e sudoeste do
estado. Uma segunda característica foi a elevada média anual do
número de ocupações. Entre 1995 e 2001, foram efetivadas
22,7 ações de apossamento por ano. Um terceiro aspecto a
destacar é a assumência em escala mais ampla desta forma de
luta pela terra por parte da Fetaeg, apesar de muitos sindicatos
permanecerem numa posição tímida frente à questão. Esse novo
posicionamento da Federação se explica, principalmente, pela
entrada de sindicalistas egressos da Oposição Sindical em sua
direção e pela maior influência política exercida pela CPT Goiás
na orientação das suas ações.
De modo geral, o encaminhamento de soluções para os
problemas sociais que afetam as classes subalternas depende da
sua capacidade de pressão. Em certa medida, a inércia dos
governos presididos por Fernando Collor de Melo e seu vice e
sucessor, Itamar Franco (1992-1994), frente à questão agrária
refletiu o grau de desmobilização dos movimentos de luta pela
terra. O número médio anual de assentamentos realizados no
período não ultrapassou os 74 em todo o país e 1,4 no estado
de Goiás (INCRA. Relatório de Atividades INCRA 30 anos.
2001; INCRA SR-O4/GO. Relação dos projetos de
Assentamentos da SR-04/GO. 2002). Essas realizações são
inferiores ao que foi feito pelo governo da “Nova República”,
cuja média anual de assentamentos foi de 103 projetos em todo
o território nacional e dois em Goiás. Nos anos de 1990 a 1992
não se registrou uma só desapropriação no estado de Goiás.
Nos oito anos seguintes, correspondentes aos dois
mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso (19952002), o quadro da questão agrária sofreria pouca alteração, a
não ser quanto à dinamização das ações diretas empreendidas
pelos principais interessados na redistribuição das terras rurais,
culminando numa verdadeira explosão das ocupações,
especialmente nos anos 1996 e 2000. A política agrária daquele
139
140
governo apresentou três traços fundamentais: 1) o esforço de
substituir o Estado pelo mercado como principal agente da
reforma agrária (“reforma agrária de mercado”: programas
Cédula e Banco da Terra)15; 2) a tentativa de descentralização
de sua execução, transferindo a maior parte da responsabilidade
do governo federal para os governos estaduais e municipais
(“Projeto Casulo”, Projeto Crédito Fundiário e Combate à
pobreza Rural); e 3) a diversificação dos instrumentos de
política agrícola (Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar – Pronaf).
Para planejar e encaminhar sua política agrária o governo
central criou o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA),
ao qual vinculou o INCRA. Além disso, constituiu uma ampla
legislação para regular tais ações. Na tentativa de reduzir a
pressão dos sem-terra, o governo Fernando Henrique procurou
combinar a criação dos programas já mencionados com
campanhas publicitárias em que apresentava suas realizações no
setor e atacava veladamente os seus críticos, especialmente o
MST. A medida jurídica mais dura tomada por esse governo
contra as ocupações de propriedades improdutivas foi a Medida
Provisória nº 2.109-48/2001, que, no seu artigo 4º, parágrafo 6º
estabeleceu: “O imóvel rural objeto de esbulho possessório ou
invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter
coletivo não será vistoriado nos dois anos seguintes à
desocupação do imóvel”. Esse prazo dobraria, em caso de
reincidência da “invasão” (§ 7º), e os incitadores ou praticantes
do ato ficariam proibidos de receber recursos públicos (§ 8º).
No estado de Goiás essas determinações foram aplicadas aos
casos das fazendas Palmeiras, município de Guapó, e Porteirão,
município de Caiapônia, alvo de ocupação pelos sem-terra.
Entre 1995 e 2001 foi criada uma média de,
aproximadamente, 750 assentamentos de reforma agrária no
Brasil e de 19 em Goiás (INCRA. Balanço da Reforma Agrária,
15
A expressão “reforma agrária de mercado” era usada pelos críticos da
política agrária do governo em sentido pejorativo.
141
2000; MST. Assentamentos 2001; INCRA SR-04/GO. Relação
dos Projetos de Assentamentos da SR-04/GO, 2001). Os
números oficiais geralmente foram considerados falsos pelos
movimentos de luta pela terra e seus aliados, incluída a CPT. De
qualquer modo, mesmo que os números apresentados pelo
governo fossem inteiramente verdadeiros, a solução da questão
agrária no país ainda se encontrava muito distante de ocorrer,
até porque a expulsão das famílias do campo não foi estancada
durante esses anos.
Nesse período, a CPT Regional Goiás procurou se manter
sintonizada com a posição dos movimentos de trabalhadores
sem-terra mais ativos, isto é, de crítica e confronto com a
política agrária do governo central. Os seus agentes avaliaram o
programa Banco da Terra como “um mecanismo concentrador
de renda” com o objetivo político de “acabar com a organização
dos trabalhadores(as)” (CPT Regional Goiás, Relatório de
atividades CPT Goiás 1999). Também se posicionaram contra a
proposta de descentralização da execução da reforma agrária,
por considerar que a maioria dos estados e municípios era
administrada “por representantes do latifúndio”, em cuja prática
política prevalece “o poder de barganha”. Se prevalecesse a
descentralização, a grande maioria desorganizada dos
trabalhadores rurais sem-terra, com poder de pressão quase
nulo, dificilmente teria sua demanda por terra atendida, diante
da bem articulada elite de proprietários rurais. Não obstante
isso, a CPT Goiás admitiu a “descentralização dos serviços
acessórios”, tais como a “construção de escolas, estradas,
postos de saúde e rede elétrica” nos assentamentos.
Quanto à sua atuação junto aos trabalhadores rurais, no
período em questão, a CPT Goiás procurou reforçar seu
“trabalho na base”, participando da organização dos sem-terra e
apoiando os pequenos produtores na busca de condições
favoráveis à sua permanência na terra. Imbuídos da autoatribuída missão “de interligar, assessorar e dinamizar os que
trabalham em favor dos homens sem terra e dos trabalhadores rurais”,
142
os agentes da CPT Regional atuaram no sentido de promover a
aproximação entre o MST e a Fetaeg. Apesar de integrarem
articulações plurais mais amplas, como o Fórum pela Reforma
Agrária e Justiça no Campo, esta unidade prática nunca foi
alcançada.
Ainda no que concerne à luta pela terra, a CPT Goiás
integra a Campanha pelo Limite da Propriedade da Terra no
Brasil, promovida por aquele Fórum16. Este movimento
corresponde, na verdade, a uma nova Campanha pela
Reforma Agrária, que tem como ação concreta a coleta de
assinaturas em apoio a uma proposta popular de emenda
constitucional que estabeleça limites ao tamanho das
propriedades rurais de acordo com a região do país. A
importância deste movimento está mais na sua função
estratégica de fomentar o debate acerca da estrutura
fundiária do país e da necessidade de transformá-la do que na
proposta da emenda em si, visto ser pouco provável a sua
aprovação pelo Congresso Nacional, dada a predominância
das forças políticas que se opõem à reforma agrária naquela
instituição.
C) A ênfase na luta pela permanência na terra
Como já indicado, na década de 1990, a luta dos
pequenos produtores agrícolas ou produtores familiares (cf.
CAUME, 1997, p. 18), particularmente os assentados, pela
permanência na terra – luta na terra17 – assumiu importância
crescente na atuação da CPT Goiás. Esta preocupação foi
adotada como linha prioritária de ação a partir de 1990. A este
16
O Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo é
integrado por 33 entidades, dentre as quais se incluem a CPT, o MST, a
Contag (Fetaeg em Goiás) e a CNBB. Cf. Cartilha da Campanha pelo
Limite da Propriedade no Brasil. Repartir a terra para multiplicar o pão.
Brasília, s/d. p. 24.
17
A luta na terra consiste num conjunto de ações que visam a consecução
de condições necessárias e satisfatórias à reprodução social do agricultor
familiar.
143
respeito, a Coordenação Executiva proclamou que, a partir de
então, o objetivo era garantir os assentamentos. Este
redirecionamento do trabalho, que coincidiu com o já exposto
enfraquecimento do movimento ocupacionista, partiu da
constatação das grandes dificuldades enfrentadas pelas famílias
assentadas resultantes do “completo abandono” a que foram
relegadas pelos “órgãos governamentais”. Na verdade, era
necessário dar um novo sentido ao trabalho da entidade, dada a
forte crise que ela atravessava.
De todas as medidas que visavam garantir condições para
a reprodução do agricultor familiar, a política agrícola se
constituiu na mais importante, embora a CPT Goiás tenha
promovido e apoiado várias outras iniciativas de luta na terra,
destacando-se: ações pelo desenvolvimento e disseminação de
uma “agricultura alternativa” ou ecológica; atividades de
capacitação dos agricultores (cursos, seminários, atividades de
extensão); apoio à sua organização em associações,
cooperativas e sindicatos; auxílio aos pequenos produtores na
busca de formas alternativas de comercialização e apoio às
ações pela melhoria da educação no meio rural. Em certa
medida, a reivindicação por uma política agrícola esteve sempre
associada à luta pela reforma agrária, tornando-se mais exigida a
partir das primeiras conquistas de terras na segunda metade dos
anos 1980. Assim como ocorre com a reforma agrária, a CPT
nunca formulou uma proposta de política agrícola acabada,
limitando-se, na maioria das vezes, a enunciados genéricos.
Diante dos problemas que afetam a produção familiar
como um todo, os agricultores compreenderam que somente
organizados poderiam enfrentar com algum sucesso as
dificuldades que os atingiam coletivamente. Embora existissem
sindicatos constituídos em grande parte dos municípios goianos,
a tendência predominante foi a formação de Associações de
Pequenos Produtores. Conforme apurou Bittencourt (1995, p.
94), essa preferência se explica pelo fato de as associações,
segundo os agricultores, contemplarem melhor as demandas da
144
produção familiar, “enquanto que o sindicato volta-se
principalmente para o assalariado rural”. Neste ponto, a
vantagem das associações está no fato de que congregam
interesses mais homogêneos e número menor de membros. “Os
sindicatos”, afirma a autora, “não conseguiram atender à
questão da capitalização do produtor porque, em geral,
assumem várias bandeiras, muitas delas políticas, ao passo que a
associação torna-se uma ‘ferramenta’ que responde diretamente
à questão da capitalização”. Neste sentido, o Fundo
Constitucional do Centro-Oeste (FCO)18 cumpriu o papel de
“mola mestra do processo” de organização em associações.
Embora as primeiras associações tenham surgido bem antes de
1989, foi com a regulamentação do FCO que houve uma
verdadeira explosão na fundação desses organismos. Segundo
informações oficiais da EMATER-GO, em 1991 existiam 311
associações; em 1992 já eram 419 e, no ano seguinte,
ultrapassavam as seiscentas. Com o aumento do índice da
correção monetária – de 50% para 80%, depois 100% – que
incidia sobre o valor do empréstimo, várias delas foram
praticamente desativadas.
Quanto às formas de articulação das associações em
organismos mais amplos, a CPT Goiás tendeu a estimular a sua
integração aos sindicatos, apesar de, em 1995, admitir que estes
ainda não haviam conseguido “pensar as ações como produção,
organização e comercialização”. Ainda no âmbito da
organização específica dos produtores familiares, a CPT Goiás
incluiu entre suas ações a criação de cooperativas. De acordo
com Bittencourt, entre o sindicato, a associação e a cooperativa
esta última é a que menos atrai a categoria. A restrição dos
pequenos agricultores a este tipo de organização deve-se ao fato
18
O FCO e os Fundos Constitucionais do Nordeste (FNE) e do Norte
(FNO), estão previstos na Constituição Federal de 1988, tendo sido
regulamentados pela Lei nº 7.827, de 27 de setembro de 1989. Um dos
critérios fundamentais para o acesso aos créditos do FCO é que os
candidatos participem de uma associação, visto que o financiamento é
concedido por seu intermédio.
145
de que “na medida em que se tornam fortes e crescem, seus
sócios perdem o controle das mesmas e não participam do
poder decisório” (op. cit., p. 94).
Apesar dessa desconfiança dos camponeses em relação às
cooperativas, a Pastoral da Terra insiste em estimular esta forma
de organização. Para a entidade, essas formas associativas são
importantes para garantir a reprodução social dos camponeses,
mas também porque representam um embrião das relações
socioeconômicas e políticas da “nova sociedade”. Portanto,
promover o associativismo significa lançar as bases de uma
sociedade “sem exploradores nem explorados”. Este, o fim
estratégico de todas as ações da CPT, conforme
autoproclamado por seus agentes.
Conclusão
Ao concluir esta exposição, é possível afirmar que todas
as ações desenvolvidas pelos agentes da CPT Goiás, seja no
âmbito da luta dos trabalhadores rurais por direitos, por terra,
na luta dos sem-terra por terra, e nas lutas das famílias
assentadas e dos pequenos produtores tradicionais para
permanecerem na terra, têm esta finalidade: contribuir para a
libertação dos “pobres do campo”, assim como para tornar
livres os latifundiários, pois acreditam que ao se libertarem da
opressão os oprimidos libertam os opressores, na medida em
que os impedem de continuar oprimindo. Esta tem sido a lógica
que orienta o raciocínio político-religioso dos agentes da CPT
Goiás na construção da sua história.
Ao longo dessa trajetória de lutas dos trabalhadores do
campo em Goiás, os militantes da CPT Regional atuaram,
fundamentalmente, como organizadores e educadores políticos
da classe, inclusive na articulação com os trabalhadores da
cidade. Tarefas assumidas desde a fundação da entidade. No
desenvolvimento dessas ações, os agentes da CPT Goiás
cumpriram o papel típico de intelectuais orgânicos da classe,
146
conforme definição de Gramsci. Para aqueles, não obstante as
ambigüidades das suas práticas, a libertação dos grupos
dominados só poderia se dar como auto-libertação, na medida
em que se auto-identificassem como classes oprimidas e
construíssem um projeto próprio de sociedade baseado na
coexistência da propriedade familiar e da propriedade social e
em relações sociais igualitárias.
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2002. Goiânia, 2002.
153
SOBRE OS AUTORES
José Santana da Silva é professor da UEG – Universidade
Estadual de Goiás; Graduado em Ciências Sociais e Mestre em
História pela UFG – Universidade Federal de Goiás.
Maria Angélica Peixoto é professora da UNIP – Universidade
Paulista – Campus Goiânia; Graduada em Ciências Sociais e
Mestra em Sociologia pela UnB – Universidade de Brasília.
154
Nildo Viana é professor da UFG – Universidade Federal de Goiás;
Graduado em Ciências Sociais e Doutor em Sociologia pela UnB –
Universidade de Brasília.
Ovil Bueno Fernandes é professor da FMB – Faculdade de
Montes Belos/GO; Graduado em Ciências Sociais pela UFG –
Universidade Federal de Goiás e Especialista em Metodologia do
Ensino Superior pela UEG – Universidade Estadual de Goiás.
Uelinton Barbosa Rodrigues é Professor da UEG – Universidade
Estadual de Goiás; Graduado e Mestre em Geografia pela UFG –
Universidade Federal de Goiás.
155