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2014, Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe

O artigo apresenta breves considerações de natureza historiográfica sobre a constituição do conceito de Cultura política no movimento chamado Nova História Política com o intuito de discutir as características do ideário liberal luso brasileiro e sua influência no debate político que marcou o processo de emancipação do Brasil e consolidação do Estado Nacional.

O CONSTITUCIONALISMO LUSO-BRASILEIRO NA CULTURA POLÍTICA DA INDEPENDÊNCIA: a Capitania de Sergipe THE CONSTITUTIONALISM PORTUGUESE-BRAZILIAN CULTURE IN POLITICAL INDEPENDENCE: the captaincy of Sergipe Edna Maria Matos Antônio* RESUMO ABSTRACT O artigo apresenta breves considerações de natureza historiográfica sobre a constituição do conceito de Cultura política no movimento chamado Nova História Política com o intuito de discutir as características do ideário liberal luso brasileiro e sua influência no debate político que marcou o processo de emancipação do Brasil e consolidação do Estado Nacional. The article presents brief historiographical considerations of nature on the formation of the concept of culture in political movement called New Political History, its relevance to discuss the characteristics of Brazilian Portuguese Liberal ideology and its influence on the process that would culminate in the political emancipation of Brazil and consolidation of State national. Palavras-chave: Cultura Política, Liberalismo, Independência Keywords: Politic culture, liberalism, independence * Doutora em História (2011) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Possui graduação em História (1996) e mestrado em História (1999) pela mesma instituição. Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal de Sergipe. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil, atuando principalmente nos seguintes temas: História do Brasil Colonial e Império; História de Sergipe; Cultura e Política; Memória. Revista do IHGSE, Aracaju, n. 44, pp. 107-126, 2014 O Constitucionalismo Luso-Brasileiro na Cultura Política da Independência Normalmente associado à discussão sobre a escravidão e coexistência entre dimensões supostamente antagônicas, têm se constituído um desafio para os pesquisadores sofisticar historicamente a compreensão acerca dos sentidos e os usos atribuídos ao conceito de liberalismo na fase que antecede e permeia o processo de independência da América Portuguesa. Igualmente se observa como interpretação discutível, embora usual nas abordagens sobre o tema, localizar o entendimento de noções políticas liberais originadas dos movimentos do final do século XVIII, que se evidenciam a partir das críticas dos colonos dirigidas à dominação colonial, transmutadas em oposição ferrenha ao absolutismo e que adentraram de forma inalterável no processo de autonomia da colônia americana em relação a Portugal. O debate historiográfico contemporâneo sobre o período tem contribuído pra desconstruir ideias arraigadas sobre a precedência da unidade política e coesão de ideais por seus agentes e se mostrado estimulante no sentido de redimensionar as particularidades históricas da América na análise da dinâmica de emancipação política e construção dos estados nacionais dessas regiões e, nesta operação, a plasticidade do entendimento do liberalismo para esta sociedade. Nele, têm-se evidenciado a compreensão das ideias liberais como um repertório diversificado de concepções formador de diretrizes de pensamento político fundamental para a elaboração de projetos, e que orientou os sentidos da intervenção política dos sujeitos históricos na realidade à época. O reconhecimento de uma diversidade de realidades sócio-geográficas e de opiniões políticas vigentes à época sinaliza para a insuficiência em se adotar explicações generalizantes para a análise de um processo intenso de discussões e disputas cujo conteúdo moldou o sentido do pensamento e da ação de diversificados agentes sociais envolvidos na separação entre os reinos de Portugal e Brasil e na construção de um modelo de Estado Nacional. Das questões de análise sugeridas pelo movimento historiográfico recente, a perspectiva de reconsiderar o papel das experiências regionais na compreensão desse processo ganhou relevância por permitir que se desvele, com mais elementos de problematização, importantes aspectos do constitucionalismo luso-brasileiro. 108 REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE SERGIPE | n. 44 | 2014 O presente artigo propõe explorar os significados desses ideários e alinhamentos naquele contexto por meio da reflexão sobre a dinâmica ocorrida na capitania de Sergipe. A riqueza interpretativa da experiência política neste espaço relacionou-se ao entrelaçamento das questões de autonomia local (a separação administrativa da capitania da Bahia) e do processo de separação do Brasil. Por força das circunstâncias, nesta parte da América, as duas trajetórias estavam imbricadas, de modo que o encaminhamento e resolução de um incidir diretamente na trama do outro. Esta situação convergiu para assinalar um período de enfrentamento e negociações entre os grupos políticos em Sergipe diante das questões do poder local e regional, num processo que, guardando semelhanças ou divergências em relação à dinâmica em curso nos centros decisórios (Lisboa, Bahia e Rio de Janeiro), ressoavam no complexo processo político a que estavam envolvidos. A proposta de interpretação sugerida neste texto dialoga com o quadro de renovação dos estudos históricos promovido pela História Política e sua assimilação no Brasil, marcado por importantes aquisições conceituais e possibilidades investigativas fecundas. Para instrumentalizar a discussão, convém remontar a constituição do conceito de cultura política no contexto do movimento historiográfico chamado Nova História Política. A História Política, tal como a estudamos hoje, um campo de investigação histórico consolidado, foi resultante do amplo movimento intelectual da renovação na pesquisa e produção do conhecimento histórico ocorrido no final dos anos 70 e início dos 80 na historiografia europeia. Sob a influência das investidas teóricas metodológicas inauguradas pela Nova História, movimento historiográfico francês na década de 30,1 que questionou o paradigma de uma dita “história tradicional”, - um entendimento de história pautado na validade de dogmas envolvendo a objetividade como procedimento, documentos escritos como fontes 1 Pela vigorosa influência e seus efeitos na historiografia brasileira, demarcamos a importância do movimento composto por Lucien Febvre e Marc Bloch, que fundaram a revista Annales em 1929 e na geração seguinte, Fernand Braudel. 109 O Constitucionalismo Luso-Brasileiro na Cultura Política da Independência legítimas e a narrativa como forma de escrita -, e que contribuiu para a renovação da produção do conhecimento histórico sugerindo a ampliação de objetos e de fontes, a problematização do fato e a adoção de inovadores enfoques teórico-metodológicos. Essa mudança de perspectiva sobre a História redirecionou o sentido de sua escrita nas décadas seguintes. Esse quadro de reflexões arrojadas sobre o fazer histórico provocou, entre outros desdobramentos, um expressivo interesse por pesquisas na área da História Política de tal impacto no campo de conhecimento historiográfico que muitos especialistas identificaram o “retorno do político”. A ideia de que ocorreu uma retomada de estudo sobre o campo político na história repousa na percepção de que a História Política, da forma como era estudada, era desacreditada. A noção de política estava muito colada ao conceito de História Metódica, que por essência já era política, ou seja, a história sempre fora vista como a seleção de personagens e fatos relevantes relacionados ao poder, a guerra e ao Estado, sinalizando para uma história das elites. Tratava-se de uma história épica, predominantemente narrativa, que se interessava pelos grandes personagens e seus atos extraordinários, relegando pouco espaço para a participação dos sujeitos comuns no processo mais amplo da História, aspecto que explica o distanciamento dos historiadores pelas temáticas ligadas ao político por considerável período. Os anos 80 do século XX configuram-se como uma fase particularmente fecunda no desenvolvimento da disciplina História como forma de conhecimento acadêmico devido ao enfrentamento de questões cruciais de natureza epistemológica e atendimento a demandas de saber calcadas em questões contemporâneas importantes. Esse movimento adentrou a década de 90 com bastante vigor chamando a atenção dos historiadores para a constante exigência de atualização e reformulação de seus problemas conceituais e teóricos e confirmava a tendência para a construção de uma proposta de conhecimento interdisciplinar capaz de proporcionar uma interpretação mais profunda e complexa do passado. Através de um diálogo fértil e criativo com as Ciências Sociais, se destacaram as contribuições das análises realizadas por Michel Foucault e Pierre Bourdieu cujas abordagens foram decisivas para inspirar estudos 110 REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE SERGIPE | n. 44 | 2014 acerca do poder, demonstrando que o mesmo não se restringe ao nível macro e institucionalizado, mais evidente, como também ao seu nível micro, invisível e até simbólico, em que a manifestação de relações de poder, não encontra no Estado seu exclusivo núcleo gerador, mas ocorre na fábrica, na escola e até mesmo na família. O território da investigação sobre o político expandiu-se e foi explorado pelos historiadores que se apropriaram e reinterpretaram seus conceitos e temas. A aproximação dos historiadores com a Antropologia e, especialmente ao tema da Cultura, resultou em desdobramentos com destaque para a formação da História Cultural como campo de pesquisa,2 em que cabe destacar a importância das análises do antropólogo Clifford Geertz que recolocou o problema da interpretação das culturas, ao afirmar que “o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu” e a cultura poderia ser entendida como essas teias, cabendo à ciência interpretar analiticamente seus significados.3 Do antropólogo Marshal Sahlins, outra referência fundamental no campo dos estudos culturais, assimilou-se a compreensão de que a história é ordenada culturalmente de diferentes modos nas diversas sociedades, de acordo com os esquemas de significação das coisas. Nesses termos, a cultura é historicamente reproduzida na ação.4 Assim, o conceito de cultura política, um conceito limiar entre história política e história cultural, passou a ser usado largamente pelos historiadores. Outro caminho profícuo de constituição do conceito de cultura política foi trilhado do contato com a Sociologia em que um novo campo de pesquisa, cultura política, foi construído a partir da publicação, 2 3 4 Em razão da complexidade de definição, uso e objeto da imprecisão do conceito História cultural, sobre o qual muito já se discutiu, cabe indicá-lo com um movimento bastante heterogêneo de tratamento das abordagens culturais, em que o próprio conceito de cultura se modificou ao longo do processo histórico, e por isso mesmo, se constitui por múltiplos caminhos de conceituação e abordagem. Ver: BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2005. GEERTZ, Clifford James. A Interpretação da Cultura. In: Uma Descrição Densa: Por uma Teoria Interpretativa da Cultura. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1989, p. 15. SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1994, p.7. 111 O Constitucionalismo Luso-Brasileiro na Cultura Política da Independência em 1963, da obra A cultura cívica: atitudes políticas e democracia em cinco países (The civic culture: political attitudes and democracy in five countries), escrito pelos cientistas sociais Gabriel Almond e Sidney Verba. Sua interpretação, o primeiro estudo político a comparar as atitudes dos cidadãos de vários países, sustenta que o funcionamento dos sistemas políticos poderia ser explicado a partir da socialização política uma vez que elementos ambientais e psicológicos condicionariam a formação das crenças, valores, opiniões políticas e no comportamento social diante dos processos políticos. Embora muito criticados por sugerir um modelo idealizado de comportamento - uma vez que condicionava o estabelecimento da democracia e à manutenção da estabilidade do sistema democrático à presença de elementos e contextos culturais determinados - o estudo destacou-se por permitir que o tema da cultura política ganhasse evidência e acendesse o interesse sobre assuntos políticos num momento em que, nas Ciências Sociais, o estudo das instituições políticas era um objeto de pesquisa restrito à área jurídica, ao Direito.5 Contudo, a produção acadêmica francesa ganhou a preferência dos pesquisadores brasileiros fazendo-se presente em importantes centros de pesquisa histórica com plena assimilação dos referencias de reflexão inaugurados pelos estudos de René Remond,6 Sergey Berstein e Jean-François Sirinelli. Por meio de uma abordagem pluralista do conceito de cultura, Berstein indica que a cultura política pode ser conceituada como um sistema de representações, fundado sobre uma certa visão de mundo, sobre uma leitura significante do passado histórico, sobre as escolhas de um sistema institucional e de uma sociedade ideal, um vocabulário com especificidades, além de fórmulas, ritos e símbolos que, tal como as palavras, um discurso codificado, desempenham o papel de significante. 7 5 6 7 DUTRA, Eliana F. História e culturas políticas: definições, usos, genealogias. In.:Varia História: Revista da Pós-Graduação em História da UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, n. 28,dez. 2002, p. 13-28. REMÒND, René (Org.). Por uma História Política. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. BERSTEIN, Serge. A Cultura Política. In: RIO UX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean François. Para uma história cultural. Lisboa: Estampa, 1998. p. 350-351. 112 REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE SERGIPE | n. 44 | 2014 Desse amplo processo formativo emerge um entendimento de cultura política multidisciplinar - não isento de críticas e desconfianças acerca da eficácia conceitual e operacional do termo,8 que envolve a confluência criativa de conceitos e técnicas da Sociologia, Antropologia, Economia e Psicologia. Variável entre períodos da história e sociedades, a cultura política forneceria um arcabouço complexo constituído por vocabulário, símbolos, gestos, rituais que forneceria aos que dela compartilham formas semelhantes de enxergar o mundo, interpretando-o e atuando nele, e sua investigação permitiria a compreensão dos significados dos projetos e ações políticas dos homens num momento da sua história,9 perspectiva que estrutura a presente reflexão. CULTURA POLÍTICA E CONSTITUCIONALISMO EM SERGIPE NO SÉCULO XIX As inquietações epistemológicas pelas quais passou a História Política atraíram a atenção dos historiadores para a revisão de enraizados paradigmas explicativos e também a repensar matrizes teóricas que os levaram à revisitação de temas de natureza política consagrados pela memória social. No Brasil, essa reavaliação proporcionou a releitura de emblemáticos processos da história nacional sob novas perspectivas de análise. Os estudos de cultura política no Brasil sobre a Independência estão se avolumando na produção acadêmica, singularizados pela aplicação de análise qualificada, diversificada e inovadora na formulação de questionamentos sobre um árduo assunto. Têm sido estudados o vocabulário político, o papel da imprensa e sua constituição como espaço de concepções e ações políticas, o simbolismo das relações 8 9 Ver a útil reflexão: MOTTA, Rodrigo P. S. Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela historiografia. In: MOTTA, Rodrigo P. S. (org.) Culturas políticas na história: novos estudos. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009. BERSTEIN, Serge.Op. Cit. p. 363. 113 O Constitucionalismo Luso-Brasileiro na Cultura Política da Independência de poder, as formas plurais de sociabilidade e as ideias políticas.10 A historiografia recente têm realçado a vigência de distintas opções de pensamento político na América portuguesa, cujas matrizes de modelo nutriam-se da experiência da América do Norte, da América espanhola, e do amplo debate político instalado na Europa. Os elementos prático-teóricos assimilados do conhecimento sobre esses processos, combinados às condicionantes sócio-econômicas específicas do Brasil, originaram interpretações próprias de seu conteúdo e usos múltiplos de seus princípios no Brasil.11 Ideias liberais não eram exatamente novidades para um colono letrado na América, mas passaram a dominar o debate cotidiano a partir da deflagração da Revolução do Porto em agosto de 1820. Também chamada de movimento vintista, as lideranças do movimento objetivavam criar condições para reformas político-administrativas que modernizassem as estruturas econômicas e sociais do país ibérico. Os liberais portugueses conceberam projetos de Estado e de organi- 10 11 Na impossibilidade de citar todos os autores, optou-se por uma seleção exemplificadora: LUSTOSA, Isabel. Insultos impressos: a guerra dos jornalistas na Independência, 18211823. São Paulo, Companhia das Letras, 2000; LEITE, Renato Lopes. Republicanos e libertários: pensadores radicais no Rio de Janeiro (1822). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000; SCHULTZ, Kirsten. Tropical Versailles: Empire, Monarchy and the Portuguese Royal Court in Rio de Janeiro, 1808-1821. New York, Routledge, 2001; NEVES, Lúcia Maria B. P. Corcundas, constitucionais e pés-de-chumbo. A cultura política da Independência. 1820-1822. Rio de Janeiro: Revan, 2003. MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos. Imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade imperial. São Paulo: Hucitec, 2005. LYRA, Maria de Lourdes Vianna. A utopia do poderoso império: Portugal e Brasil – bastidores da política. 1798-1822. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994. BITTENCOURT, Vera Nagib. De alteza real a Imperador: O Governo do Príncipe D. Pedro, de abril de 1821 a outubro de 1822. Tese de doutorado. São Paulo: FFLCH-USP, 2006 BERBEL, Márcia. A nação como artefato. Deputados do Brasil nas cortes portuguesas (1821-1822). São Paulo: Hucitec/FAPESP, 1999. SOUZA, Iara Lis Carvalho. Pátria Coroada. O Brasil como corpo político autônomo (1780-1831). São Paulo: Editora UNESP, 1999. CARMAGNANI, Marcelo (org.). Federalismos latino-americanos: México, Brasil, Argentina. México: Fondo de Cultura, 1990; CARVALHO, Marcus J. M. de. Cavalcantis e cavalgados: a formação das alianças políticas em Pernambuco, 1817-1824. Revista Brasileira de História, São Paulo,v.18, n.36, 1998. 114 REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE SERGIPE | n. 44 | 2014 zação de instituições políticas, oriundos de uma compreensão muito própria dos princípios da Ilustração, e atribuíam à reforma liberal lusa uma importância crucial no processo de transformação do país e do desenvolvimento material de todo o Império Português. A convocação feita pelos deputados portugueses de representantes da América para participar das atividades deliberativas nas cortes, órgão responsável pela elaboração de uma constituição, abriu um intenso período de debates e tensões sobre a adesão a essas propostas e acerca de outras proposições que envolveriam o Rio de Janeiro, da Bahia e demais partes da América portuguesa. De acordo com a interpretação clássica, e mais conhecida, sobre a construção do Liberalismo e sua difusão na elite brasileira, a disputa política referia-se a oposição entre liberais e absolutistas e o óbvio antagonismo dos regimes políticos a que cada conceito alude. Aos liberais era atribuída uma tipologia social e econômica caracterizada por sua ocupação em atividades mercantis e, por isso, seus partidários, críticos impiedosos do Antigo Regime e suas estruturas, principalmente o colonialismo, seriam reivindicadores da instalação de regras e instrumentos institucionais que promovessem maior de liberdade de variadas tipologias: política, cultural, religiosa e econômica. O Absolutismo, por sua vez, seria defendido pelos setores mais tradicionais, dedicados à agricultura de exportação e seus agentes eram interlocutores dos interesses da grande lavoura. A dependência do sistema escravocrata constituía questão básica na construção do novo país e, por isso, temiam que a adoção de medidas liberalizantes na economia acabasse por comprometer a continuidade da utilização desse tipo de mão de obra. Ligados às estruturas de poder do Antigo Regime, defendiam a manutenção dos padrões tradicionais de governo e política, dos quais usufruíam de vantagens e privilégios. A caracterização desses agentes políticos e seus projetos a partir de suas atividades econômicas e o confronto político motivado por razões materiais tem se mostrado insuficiente para explicar as razões de defesa dos projetos liberais diversificados. A matriz de diferenciação política que se firmou no contexto dos debates políticos da Independência 115 O Constitucionalismo Luso-Brasileiro na Cultura Política da Independência não se sustenta se explicada exclusivamente pela premissa de posturas conflituosas devido seus agentes desenvolverem atividades econômicas presumivelmente antagônicas e que a diferença de interesses e visões de mundo foi transposta para o campo do ideário político, significando concepções conflitantes sobre a construção do Estado e da nação. Há de se considerar que, embora majoritariamente agrária, a economia colonial americana, a essa época, apresentava-se com fortes traços de participação do setor mercantil, o que torna admissível pensar num cenário de valorização e de entrelaçamento desses dois ramos de atividades produtivas, resultando inclusive em casamentos ou alianças com vistas à ampliação de oportunidades econômicas, permitido pela expansão das atividades econômicas da segunda metade do século XVIII.12 Assim, as explicações devem ser buscadas considerando os planos políticos e visões de Estado e sociedade. Localizando as propostas relativas aos formatos políticos disponíveis percebe-se a constituição de um ideário liberal, constitucional, que se desdobra em correntes, cujas características puderam ser captadas frente à dinâmica de dois processos cruciais: o de disputa, entre as Cortes em Lisboa e o Rio de Janeiro e suas respectivas propostas pela captação do apoio político das elites das províncias no Brasil; e, relacionado ao resultado da primeira situação, mas num momento posterior, o da aceitação ou não do projeto de Independência do Brasil liderado por D. Pedro. Mais do que a escolha de um ou outro polo de poder, o dilema colocado às facções das elites brasileiras relacionava-se em definir qual deles possuía a efetiva capacidade de solucionar os problemas econômicos e sociais e traria os benefícios esperados. Por isso, as oposições evocavam diferentes engajamentos na defesa de projetos acerca da unidade das províncias do Brasil, pois nessas elaborações atuavam noções que atribuíam graus diferentes de autonomia para os grupos da elite local, uma questão pontual e muito disputada na organização 12 FRAGOSO, João. Homens de grossa aventura. Acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro 1790 – 1830. 2.ed. revisada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. 116 REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE SERGIPE | n. 44 | 2014 política pensada para o Brasil.13 Nas feições assumidas do Liberalismo no Brasil envolvendo entendimentos variados acerca de assuntos como pacto social, atribuição dos poderes entre executivo e legislativo, instituições, pode-se sublinhar duas expressivas formas de compreensão do constitucionalismo naquele momento, descritas a seguir. Um ideário constitucionalista que pode ser definido como “federalista”, uma vez que pautava-se no projeto da autonomia provincial como importante elemento na organização do Estado. O Constitucionalismo adotado pelos baianos podia ser classificado como de vertente federalista, pois defendia a aliança com os liberais em Portugal, e, num sistema de poder com esse formato, a acreditava-se na possibilidade de obter e conquistar um maior equilíbrio nas relações políticas e econômicas entre as partes desse Império, visando contemplar demandas bastante específicas ligadas à condição de subalternidade vivenciada nas últimas décadas, situação julgada como derivada de uma política de governo centralista e autoritária. Essa adesão refletia a opção pelo rompimento da subordinação à Corte instalada no Rio de Janeiro e acalentava o projeto de organização de poder e de instituições em que as elites regionais, fora do centro, pudessem participar das decisões governativas. Nessa elaboração, não se excluía a referencialidade da monarquia na organização do poder, como observado no trecho da “Carta que a junta provisional de governo da Província da Bahia dirigiu ao muito alto e muito poderoso rei senhor D. João VI”, em 12 de fevereiro de 1821: “os honrados habitantes da Bahia, apurados por mil incidentes e motivos, desejam há muito o estabelecimento de um governo liberal e justo [...] e permaneciam na mais completa obediência e lealdade ao trono” 14 [grifos meus]. Nessa, e em demais expressões observadas nas 13 14 LEME, Marisa Saenz. A construção do poder de governo na Província de São Paulo e o estado em formação no Brasil independente: entre a Revolução do Porto e a outorga constitucional. In: CALDEIRA, João Ricardo de C.; ODALIA, Nilo (orgs.) História do Estado de São Paulo: a formação da unidade paulista. São Paulo: Imprensa Oficial/Editora UNESP/Arquivo do Estado, 2010. AMARAL, Braz do. História da Independência na Bahia. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1957, p. 47. 117 O Constitucionalismo Luso-Brasileiro na Cultura Política da Independência fontes, evidenciam-se os traços de valoração dos laços de fidelidade ao monarca, cuja participação no projeto político em construção era necessária, desde que suavizada de alguns excessos do autoritarismo. Essa tendência rivalizava com outra expressiva manifestação de constitucionalismo à época que pode ser entendida como “centralista”. Esta visava à articulação das regiões ao projeto do Rio de Janeiro, e se colocava favorável a união das províncias que seriam lideradas por D. Pedro. As proposições políticas apresentadas pelos centralistas mostravam-se simpáticas ao governo constitucional e representativo e, por essas diretrizes desejam construir uma ordem nova política, mas temiam os excessos de outros projetos liberais inspirados pelo modelo do constitucionalismo de Cádiz e do exemplo federalista e republicano norte-americano, que minaram a força do poder monárquico. Assim, acreditavam na eficácia de uma organização institucional para o novo país que primasse pela manutenção de certos traços de estabilidade política sem profundas e desnecessárias alterações na essência do modelo governativo.15 Grosseiramente caracterizado como “absolutismo” ou “corcundismo”, pode-se aventar que essas associações feitas ao liberalismo de natureza centralista nutriam-se do da postura de defesa de continuidade de relação de poder com um centro colonial americano e expressava o desejo de conservação das estruturas econômica e políticas como conhecidas, chegando até a ser caracterizado como um projeto político de manutenção do Antigo Regime e, no seu extremo, com a preservação da estrutura de dominação colonial. Em meio aos embates, esta associação teve sua utilidade enquanto discurso, pois serviu para descaracterizar o sentido dos projetos políticos desse grupo, pois associado ao conservadorismo e ao continuísmo, seus opositores marcavam uma significativa diferenciação entre esses formatos. A vinculação às propostas das Cortes acenava para uma possibilidade de reforma política pela transformação, que proporcionaria o progresso e a modernidade. Em torno do ideário 15 LYNCH, Christian E. C. O pensamento conservador Ibero-Americano na era das Independências (1808-1850). Lua Nova, São Paulo, 74, p.213-221, 2008. 118 REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE SERGIPE | n. 44 | 2014 constitucional, formou-se a crença de que, respeitado o princípio da representatividade, se elaborariam normas que tocariam em questões fundamentais para o funcionamento do Império Português, como: o monopólio comercial, a revisão do fiscalismo exacerbado, o poder absoluto do rei, enfim a transformação da ordem social e política.16 Nas duas formulações, nota-se a constante referência de preservação da figura política de D. João VI como já mencionado. As modernidades políticas expressas na defesa dos elementos do constitucionalismo e suas novas regras de organização do poder aparentemente não conflitavam, entre segmentos da elite colonial, com a tradição real sugerindo, inclusive, a aceitação da centralidade da figura real, aspecto que indica a vigorosa permanência de referências monárquicas nas concepções sobre o poder de Estado naquele momento e pode ajudar a compreender a adoção - não sem negociação entre essas facções das elites regionais - do sistema monárquico em detrimento de outros modelos políticos disponíveis à época como o republicanismo. Como referenciado, a autonomia da capitania de Sergipe em relação à da Bahia foi concedida por D. João VI em 1820 no bojo de uma reorganização administrativa que objetivava aprimorar os mecanismos de controle e desenvolvimento econômico da colônia, através de política reformista do espaço colonial.17 O novo governador de Sergipe, Carlos César Burlamaqui, assumiu o posto em fevereiro de 1821 e, contrário às ordens das Cortes, iniciou a estratégia de combate às ideias liberais na capitania. Estava ciente da deposição dos agentes metropolitanos na capitania da Bahia por uma Junta de Governo Provisório, de perfil político constitucional federalista e a favor das Cortes portuguesas, que assumiu o poder e possuía ligações familiares e econômicas em Sergipe.18 O governador mandou publicar e avisar “a toque de corneta”, 16 17 18 NEVES, Lúcia Maria B. P. das. O Império do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. ANTONIO, Edna Maria Matos. A independência do solo que habitamos. São Paulo: EDUNESP, 2012. Com apoio de tropas baianas, o governador foi deposto no dia 16 de março de 1821e a administração da capitania ficou a cargo do coronel Pedro Vieira de Melo, que manteve a ligação administrativa de Sergipe à Bahia. 119 O Constitucionalismo Luso-Brasileiro na Cultura Política da Independência em todas as ruas de São Cristóvão, uma ordem de proibição aos moradores de falar em constituição, ato que seria tratado como um crime, passível de processo e prisão. José Pinto de Carvalho19 descreveu que a divulgação dessa medida na vila provocou pânico nas pessoas que passaram a falar na “palavra proibida” apenas secretamente. 20 A solução encontrada pelos moradores para “resistir à ordem de Burlamaqui e seu despotismo” foi fazer uso do segredo como estratégia, um elemento da cultura política do Antigo Regime expresso na “cultura do segredo”, própria das rebeliões coloniais. Adotar esse comportamento caracterizava uma conduta atípica para os padrões de sociabilidade colonial, pois num mundo em que todos se conheciam e os atos sociais eram naturalmente públicos, atos individuais, privados ou solitários eram situações difíceis de serem vivenciadas.21 Por força dessa característica, geralmente, tinha-se a impressão de que conversas de conteúdo político realizadas de forma oculta, não pública porque proibidas, já traziam em si a intencionalidade de realizar algo subversivo por princípio.22 Além disso, o comentário de José Pinto de Carvalho, expresso no plural, indica a ocorrência de reuniões secretas para comentar assuntos do momento político e as ideias do Liberalismo. Secretas também deviam ser as correspondências com teor político, que tratavam de ideias perturbadoras para a preservação das estruturas de autoridade do An19 20 21 22 Português, chegado ao Brasil em 1804 e após ter percorrido as províncias do Sul estabeleceu-se em Sergipe em 1816. Montou um trapiche no porto de Maruim tornando-se importante homem de negócios na região do vale do Cotinguiba. Participou ativamente do processo político que envolveu a independência na capitania de Sergipe, experiência sobre a qual escreveu uma memória: “Apontamentos sobre alguns atos da vida pública do cidadão brasileiro José Pinto de Carvalho”. CARVALHO, José Pinto de. Apontamentos sobre alguns atos da vida pública do cidadão brasileiro José Pinto de Carvalho. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju, n.3, v.1, 1914, p. 66. ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e vida doméstica. In: NOVAIS, Fernando e SOUZA, Laura de Mello e. (orgs.). Cotidiano e vida privada na América Portuguesa (Coleção História da vida privada no Brasil). vol 1. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.152. SLEMIAN, Andréa. Vida política em tempo de crise. Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo: Hucitec, 2006, p. 101. 120 REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE SERGIPE | n. 44 | 2014 tigo Regime. Reuniões e carta subversivas pareciam uma combinação perigosa num contexto crítico de (in)definição política. A reação à medida do governador Burlamaqui ao estabelecer a censura pública nos permite conhecer uma das formas em que a discussão política nesse período se processava, e mais especificamente, o modo de sua divulgação. Marcada pela naturalização da sua ocorrência em lugares públicos, bem ao gosto da ideologia liberal, que confiava na eficácia da divulgação pedagógica das ideias da ilustração e no conhecimento como ferramenta libertadora da ignorância dos povos, a disseminação de todo conhecimento para a sociedade devia ser feita de forma aberta e transparente, uma vez que era de domínio público. O direito à liberdade de discussão e os espaços de efetivação desse princípio passaram a constituir um valor na cultura política da época, pois, segundo os pressupostos do ideário liberal, importantes garantias do indivíduo como a liberdade de expressão, de reunião e de associação eram fundamentais para torná-lo pleno possuidor de direitos de um cidadão.23 A menção a essa experiência tornou possível conhecer ainda uma das formas pelas quais os colonos de Sergipe conseguiam obter as informações sobre os acontecimentos e discussões políticas de outros locais, da América ou da Europa. As reuniões tinham múltiplas finalidades que não se limitavam à difusão trivial das notícias. Conhecer teorias e conceitos políticos novos, informar-se sobre os acontecimentos distantes e próximos, ouvir opiniões, trocar informações, refletir sobre os rumos que a situação ia tomando e falar de... Constituição. A censura régia portuguesa proibia a entrada de publicações de conteúdo político e filosófico na Colônia, principalmente as que tratassem de assuntos “revolucionários” como os acontecimentos e ideias da França e obras que criticavam a moral, os bons costumes e a religião. O controle acirrado, mas não perfeito, da censura absolutista sobre a 23 NEVES, Lúcia Maria B. P. Liberalismo político no Brasil: ideias, representações e práticas (1820-1823) In: GUIMARÃES, Lúcia Maria P.; PRADO, Maria Emília.(orgs.). O liberalismo no Brasil Imperial. Rio de Janeiro: REVAN/UERJ, 2001.p. 92. 121 O Constitucionalismo Luso-Brasileiro na Cultura Política da Independência imprensa e a inexistência de jornais na capitania, comum a outros lugares, eram circunstâncias que faziam com que as ideias liberais fossem difundidas por meio de três suportes: os livros clandestinos, as cópias manuscritas e, principalmente, a linguagem oral.24 Essa evidência permite conhecer, de forma aproximada, uma experiência de sociabilidade de esfera pública e sua politização do tipo moderno.25 Através do bom relacionamento e contatos constantes que o português José Pinto mantinha com o secretário da Junta Provisória da Bahia, José Lino Coutinho, suas embarcações que vinham da Bahia para Sergipe com mercadorias traziam clandestinamente jornais “que naquela época quase exclusivamente tratavam da constituição”. Assim, ele divulgava as notícias de um “avultado número de jornais”, exposição que fazia “com gosto” e agia para “que sem demora chegassem às mãos dos diferentes corpos de milícias com o fim de predispor os ânimos assombrados com aquela despótica ordem”.26 A fase de experimentação de novidades políticas marcada por intensa expectativa sobre a instalação de uma Constituição foi bem captada por José da Silva Lisboa27 ao diagnosticar que “a época das constituições chegou”, expondo a situação complexa dos indivíduos que vivenciavam o Antigo Regime em seu momento de crise e a necessidade de definição de caminhos para prosseguir com a vida. Essas pessoas passaram a conviver com palavras de um novo vocabulário político como constituição, direitos, igualdade, representação e como assinalou 24 25 26 27 JANCSÓ, Istvan. A sedução da liberdade: cotidiano e contestação política no final do século XVIII. In: SOUZA, Laura de Mello e. (org.). História da vida privada no Brasil, v.1. São Paulo: Companhia. das Letras, 1997, p.403. MOREL, Marcos. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na Cidade Imperial (1820-1840). São Paulo, Hucitec, 2005. CARVALHO, José Pinto de. Apontamentos sobre alguns atos da vida pública do cidadão brasileiro José Pinto de Carvalho. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju, n.3, v.1, 1914.p.65-70 LISBOA, José da Silva. História dos principais sucessos políticos do império do Brasil dedicada ao Senhor D. Pedro I. Rio de Janeiro: Tipografia Imperial e Nacional, 1827, p.21. 122 REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE SERGIPE | n. 44 | 2014 Neves28 conceitos carregados de inquietações e fascínios não se restringiam apenas ao uso cotidiano, mas ao seu significado mais profundo, pois a eles estavam relacionadas práticas e valores que mudavam a compreensão costumeira das coisas e que naturalmente assustavam, causando desconfiança nas pessoas habituadas com o sistema político do Antigo Regime, o mundo conhecido. Essa impressão foi bem captada por Antônio Moniz ao registrar que “havia muitos brasileiros assombrados com ela”, mas igualmente reconhecia-se que a constituição continha atributos considerados eficazes para solucionar os principais problemas que afligiam o mundo luso-brasileiro. Em especial para o colono Moniz, a constituição possuía o atributo de extinguir privilégios originados de nascimento e que tanto limitavam sua possibilidade de sucesso profissional por não ser português de nascimento e nem nobre.29 O Liberalismo influenciou ainda outro formato de sistema político cirscuncrito ao ideário republicano. Sobre as especificidades do modelo republicano brasileiro, Renato Lopes Leite empreendeu uma análise que ressalta que a Revolução Francesa e as Guerras Napoleônicas eram vistas pelos principais nomes desse movimento como episódios desastrosos, dado o radicalismo de seu formato e o perigo que represantavam ante a possibilidade de libertação dos escravos. Esse traço diz muito sobre a natureza moderada das ideias republicanas em voga no 28 29 NEVES, Lúcia Maria B. P. Corcundas, constitucionais e pés-de-chumbo. A cultura política da Independência. 1820-1822. Rio de Janeiro: Revan, 2003. Antônio Moniz de Souza nasceu em 1782, em Campos do Rio Real, na Vila de Lagarto, capitania de Sergipe. Dedicou-se as atividades de pecuária nas fazendas da família e posteriormente ao comércio. No convento da Bahia adquiriu conhecimentos básicos de Botânica e Mineralogia e obteve, do Conde dos Arcos, a autorização para aperfeiçoar seus conhecimentos sobre as plantas medicinais e minérios explorando os sertões do norte da América portuguesa. A expedição, iniciada em maio de 1817, foi interrompida em julho de 1822, quando se envolveu com as guerras de independência nessa região. SOUZA, Antônio Moniz de. Viagens e observações de um Brasileiro. 3.ed. Salvador: Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, 2000 [1834] 123 O Constitucionalismo Luso-Brasileiro na Cultura Política da Independência Brasil.30 De qualquer forma, tratava-se de uma questão incontornável naquele contexto: o temor das elites a respeito da adoção de sistemas políticos que levassem o país a convulsões sociais de tal impacto que afetassem a manutenção da escravidão, receio agravado pelo fato de o país possuir uma das maiores concentrações de população escrava e livre mestiça da América do século XIX. Essa articulação estava esboçada na documentação produzida, por exemplo, pelas autoridades policiais em Sergipe, em 1824: Sabem por ser voz pública e notório que Sebastião Soares, crioulo, casado e morador na povoação do Rosário, alferes comandante da companhia de Henriques, tem convocado pelos engenhos e fazendas a pretos cativos para pelo natal do corrente ano se levantarem contra seus senhores e contra tudo o que fosse branco e os matarem e aclamarem a república.31 Possivelmente, o raciocínio da elite em Sergipe manifestado neste trecho sobre a questão coadunava-se com o de boa parte das classes dirigentes do país e entendia que a fragmentação e abolição eram elementos inseparáveis da proposta republicana, cujo exemplo mais cabal estava na América espanhola convulsionada e despedaçada em Repúblicas. Do exposto, sugere-se que o Liberalismo vivenciado em terras coloniais apresentou-se fundamentado na crítica ao colonialismo e na defesa do princípio do constitucionalismo como o instrumento de efetivação do reconhecimento de direitos civis e políticos, de representação e participação política conforme expectativas diversificadas originadas dos anseios de modernização das condições sociais e econômicas dos indivíduos que viveram o século XIX na América Portuguesa. 30 31 LEITE, Renato Lopes. Republicanos e libertários. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. MOTT, Luís. Sergipe Del Rey. População, Economia e sociedade. Aracaju: Secretaria de Estado da Educação e Cultura, 1986, p.68. 124 REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE SERGIPE | n. 44 | 2014 Extremamente significativo para a análise do processo de separação da colônia é observar que os traços do ideário liberal foram interpretados de forma diferente pelos agentes políticos de acordo com a região a que pertenciam e as hierarquias políticas e geográficas a que estavam vinculados, as características das elites que as compunham, seus referenciais intelectuais e a possibilidade e os meios disponíveis da ação política, elementos que influenciaram na elaboração de posicionamentos variados. Dele, emergiu uma visão de mundo composta a partir de referenciais extraídos do repertório de expectativas liberais e heranças coloniais nada desprezíveis, em que o conteúdo desse constitucionalismo influenciou na idealização de regras relativas ao relacionamento entre as capitanias, a estrutura dos poderes local e central, a organização do poder legislativo e o exercício da cidadania. Coube aos segmentos das elites, localizadas em diferentes regiões da ex-colônia, defenderem, negociarem, dar sentido e corpo ao projeto que parecia melhor assegurar a efetivação de um modelo de Estado liberal, nação, de sociedade, de civilização e que, fundamentalmente, resguardasse a escravidão. Artigo recebido em 07 de abril de 2014. Aprovado em 20 de abril de 2014. 125