Maracangalha1
(Entre o luto do cadáver e o banquete antropofágico)
Renato Rezende
Doutor em Artes / Universidade Estadual do Rio de Janeiro
[email protected]
Resumo: O artigo procura delinear um possível discernimento entre uma arte
ainda de cunho modernista e a arte contemporânea no Brasil, através da apresentação de obras de Nuno Ramos e de Deyson Gilbert, tendo Brasília como
ponto emblemático entre ambas abordagens, que recaem sobre uma concepção de arte e sua função.
Palavras-chave: arte moderna; arte contemporânea; arte brasileira; Brasília
Abstract: The article aims to delineate a possible distinguishing between a
1 Mário Pedrosa introduz o seu artigo “Relexões em torno da nova capital” (1957), no qual argumenta sermos, nós, brasileiros, “condenados ao moderno” porque a modernidade, transplantada sem
a resistência de uma forte cultura autóctone, “vai sendo cada vez mais o nosso habitat natural”, com
a pergunta: “Brasília ou Maracangalha?” Brasília, com sua arquitetura modernista, praticamente
sem vínculos com nosso passado, forjaria uma civilização-oásis. Posteriormente Pedrosa, assim
como Lúcio Costa, reconhecerá o fracasso desse projeto utópico, e de certo modo abandonará as
artes como campo de transformação política. PEDROSA, Mário. Arquitetura -- ensaios críticos. São
Paulo: Cosac Naify, 2015, pp. 130-146.
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still modernist art in Brazil and a contemporary one, through the presentation
of works by Nuno Ramos and Deyson Gilbert, and having Brasilia as an emblematic point between both approaches that refer to a conception of art and
its function.
Keywords: modern art; contemporary art; Brazilian art; Brasilia
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Em seu ensaio para os catálogos da “Bienal da Antropofagia” (São Paulo,
1998), com curadoria de Paulo Herkenhof e Adriano Pedrosa, Bienal que, de
certa maneira instaura o pensamento contemporâneo na arte brasileira, Suely
Rolnik resume as alições da existência hodierna com uma pergunta, ou melhor, com uma série de perguntas que se endereçaram a todos nós:
[...] nos tornamos de fato homeless, todos? a casa subjetiva dissolveu-se,
desmoronou, desapareceu? onde está a identidade? como recompor uma
identidade neste mundo onde territórios nacionais, culturais, étnicos, religiosos, sociais, sexuais perderam sua aura de verdade, desnaturalizaram-se
irreversivelmente, misturam-se de tudo quanto é jeito, lutuam ou deixam
de existir? Como reconstituir um território neste mundo movediço? Como
se virar com esta desorientação? Como reorganizar algum sentido?2
Antes de desenvolver algumas considerações sobre a especíica contribuição
brasileira, evidentemente vinculada às proposições de Oswald e sua vacina
antropofágica, Rolnik prossegue para caracterizar o mundo de hoje como um
“oceano ininito, agitado por ondas turbilhonares”. A imagem que ela pinta é
apocalíptica:
[...] um segundo dilúvio ― só que desta vez as águas nunca mais irão
baixar, nunca mais haverá terra à vista, as arcas são muitas e lutuam para
sempre, lotadas de noés também muitos e de toda espécie. Nunca mais os
pés pousarão na paisagem estável de uma terra irme: habituar-se a ‘nave-
2 ROLNIK, Suely. Subjetividade antropofágica. In: HERKENHOFF, Paulo; PEDROSA, Adriano
(ed.). Arte contemporânea brasileira: Um e/entre Outros. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo,
1998, p. 128.
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gar é preciso’.3
A grandiosa contundência dessa imagem, que não deixa de aludir à imensidão
do litoral e do território selvagem e/ou submerso brasileiro, lembrando também que “o sertão vai virar mar”, e a alusão à Fernando Pessoa têm o poder
de acender em nossas mentes, ou pelo menos na minha, um sem número de
poemas, fotograias, ilmes e objetos de todas as épocas que remetem de alguma forma ao inesgotável tema das águas...
Para icar apenas no campo da arte recente produzida no Brasil, podemos
pensar em alguns trabalhos de forte cunho poético, e quem sabe concluir que
muitos deles (ou quase todos) carregam um certo ar de melancolia, ou, no
melhor dos casos, de distante estranhamento, um sentimento de fragilidade
diante do imensurável, uma tentativa de restaurar um abrigo ou salvaguardar
um recolhimento. Lembro-me de Marulho (1991-1997), de Cildo Meireles;
Oceano possível (2002), de Sara Ramo; Algumas perguntas (2005), de Brígida
Baltar e Herança (2007), de Thiago Rocha Pitta ― todos com carga, poderíamos dizer, humanista. Do mesmo artista (Thiago), e navegando cada vez mais
no sentido inverso do quadro pintado por Rolnik, penso em Naufrágio interior
(2008); e de naufrágio em naufrágio, de recusa em recusa, de resistência em
resistência, de evaporação a evaporação, aproximo-me da lembrança de dois
barcos de pesca (uma grande canoa e uma pequena traineira), sem cor (na
verdade, revestidos pela cor neutra ou embranquecido do sabão), naufragados
no chão seco de uma galeria: Mar Morto (2009), de Nuno Ramos.
A ideia de naufrágio, de abandono, de resto ou ruína, é recorrente na obra de
Ramos; basta mencionar, por exemplo, Marécaixão (1996), Casco (Shackleton) (1999), Marémobília (2000) ou Morte das casas (2004). Escreve Paulo
3
Ibidem, p. 135.
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Sergio Duarte, no catálogo da exposição em questão:
Em Mar Morto, nada de natural, os barcos têm apagada qualquer memória
arcaica ou primitiva. Não há essa presença biológica da vida, como jumentos e aves de mau agouro. As embarcações são iguras e coisas violentadas
desde sua epiderme, outrora coloridas, agora encouraçadas de sabão.4
No espaço da galeria, na qual o espectador, emudecido e quase paralisado,
também imerge ― “mas imersão, aqui, não é mergulho, é simplesmente estar
aí, na obra”, continua Duarte ―, somos envolvidos pelas vozes de um homem
e de um coro, murmurando em tom de lamento um texto permeado por trechos
de obras literárias canônicas sobre o mar e o naufrágio, ecoando o oceano ausente. Da carne do mundo só restou uma linguagem fantasmática.5 Escutemos
um pouco:
Palavra mágica. Naufrágio. Mar morto. Ouça esta: abismo. Mesmo quando
lançado em circunstâncias eternas. Não sei. Ouça esta: seja que o abismo
branco, irado. Seja. Então seja. Silêncio. Nenhum comentário, tosse, celular tocando, pigarro. Nada. Todo mundo falando baixo, como num velório.
Para que apenas uma palavra ecoe pela sala. Esta palavra ― (Coro: Ai!)
abismo. Apenas seja. Que ele seja. Que esteja aqui, presente entre nós.
Neste exato momento. De novo: seja que o abismo. Que nossos corpos,
em suaves prestações de afogamento, oceano adentro, metro a metro, estejam afundando, como pedaços de ferro maciço ― enquanto rimos e rimamos, e continuamos a comer, e a ler, amar e fazer estas (num crescendo)
obras- lin-das (Coro: Castigo!). Seja que todos juntos façamos isso e por
isso, exatamente por isso, ninguém perceba o que está acontecendo e assim
4 DUARTE, Paulo Sérgio. Mar morto. Encarte avulso da galeria de arte Anita Schwartz, Rio de
Janeiro, 2010.
5 “São as memórias póstumas dos dois barcos, reduzidos a uma consciência tagarelante que morre
aos poucos, sem sentido épico”, vaticina Francisco Bosco. BOSCO, Francisco. A Ópera-Fantasma
de Nuno Ramos. Revista Cult, 135, maio 2009.
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continuemos todos a fazer as mesmas o-bras-lin-das todos os dias, sem
ninguém se queixar (ainal, são lindas), enquanto nossos corpos, não nós,
não exatamente nós, eles, eles, os corpos, nossos corpos, enquanto eles
afundam...6
Para Lorenzo Mammi, professor da USP e crítico que de perto acompanha a
obra de Ramos ― sem dúvida um dos artistas mais completos, premiados e
inluentes na cena atual da arte brasileira, com uma obra consistente e potente
que se desdobra, sem perdas, em instalações monumentais ou midiáticas e
conceituais, livros de poemas e contos e outros textos iccionais, letras de
canções e exímios ensaios (esse gênero literário tão moderno e ainda relativamente pouco exercido no Brasil)7 ―, “a igura de encalhe assinala justamente
o desmanche lento a que um corpo é condenado, quando a continuação de seu
movimento (de sua história) se torna impossível”.8 Estamos no momento do
im da história, do dilúvio, ou do Juízo Final, passível de ser pensado aqui, se
quisermos, como uma referência a Walter Benjamin e seu tempo messiânico,
momento no qual Agamben vai localizar sua comunidade que vem.9
Nesse limbo, ou ponto morto, ou limiar, limite entre um possível gesto e outro, ou na fronteira entre dois horizontes, ao invés dos “movimentos possíveis
[que] agora se reinventam e se redistribuem o tempo todo, ao sabor de ondas
de luxos, que desmancham formas de realidade e geram outras, que acabam
6 RAMOS, Nuno. Encarte com texto, parte integrante da exposição Mar Morto; galeria de arte
Anita Schwartz, Rio de Janeiro, 2010.
7
Ver Prefácio em AGUIAR, Joselia; BOSCO, Francisco; SOCHA, Eduardo. Indisciplinares.
Coleção Ensaios Brasileiros Contemporâneos. Rio de Janeiro: Funarte, 2016.
8 MAMMI, Lorenzo. Encalhes e desmanches: ruínas do modernismo na arte contemporânea
brasileira. In: MAMMI, Lorenzo. O que resta – arte e crítica de arte. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012, p. 227.
9 “A vocação messiânica é [...] um movimento imanente – ou, caso se queira, uma zona de absoluta indiscernibilidade entre imanência e transcendência, entre este mundo e o mundo futuro”.
AGAMBEN, Giorgio. O tempo que resta – um comentário à Carta aos romanos. Tradução de Davi
Pessoa e Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 39.
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igualmente dispersando-se no oceano, levadas pelo movimento de novas ondas”,10 sugeridos por Suely Rolnik em seu artigo, encontramos em Mar Morto
paralisia, entropia, incomunicabilidade e solidão. No lugar do mar aberto, explicitado e expandido, pleno e oferecido (ainda que perigoso e sem garantias),
o mar interiorizado, opaco, vazio, seco e ixo: sobre os barcos ensaboados (apagados) paira opressoramente a sombra (o vestígio de uma ausência) de todo um
oceano. Mar Morto é um totem à melancolia. Escutemos um pouco mais a este
lamento, ao coro das vozes do passado, meros escombros literários à deriva no
universo já sem o sentido (o corpo) da tradição:
(Coro: Ai! Ai de nós!) Ou esta: “Círculos concêntricos colhiam a própria
embarcação solitária e todos os marujos, e cada remo lutuante, cada cabo
de lança, cada ibra, animada ou inanimada, tudo, girando e regirando num
vórtice, até a menor lasca, afundou-se, desaparecendo de vista.” Isso. De
novo. Quase isso.11
Para Mammi, no entanto, o processo entrópico de desmanche ou dissolução
presente nesta e em grande parte das obras de Nuno Ramos não é de todo
negativo, pelo contrário, ao sugerir um paralelo entre a obra deste artista e o
próprio projeto modernista brasileiro, do qual Brasília seria exemplo paradigmático, uma espécie de “vértice e ruptura”, o ponto de traição de um arcaísmo
orgânico que no fundo contaminara o modernismo no Brasil:12
Mas podemos pensar os elementos contingenciais do plano piloto de Brasília (a cruz riscada no nada, o formato de avião) como uma traição positiva.
Desta forma, a cidade não seria simplesmente uma ruína moderna, mas
uma obra monumental pioneira que elabora o abismo do pós-guerra com
contingências, ou seja, que lança mão de práticas artísticas contemporâ10
ROLNIK, Suely. Subjetividade antropofágica, op. cit., p. 128.
11
RAMOS, Nuno, Ibidem.
12 Mammi pensa o Modernismo como um movimento essencialmente europeu, ou melhor,
francês, que se adapta às condições locais ao se expandir pelo mundo.
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neas.13
Brasília teria se tornado ruína, nos legado uma história de modernidade,14 no
mesmo ato de sua inauguração (o que nos lembra um velho mote sobre tantas
de nossas construções, conhecidas como “obras de igreja”, principalmente
quando pagas com dinheiro público, e com muito superfaturamento): “nem
bem inaugurou, já é ruína”. Poderíamos airmar que sonho de um Brasil moderno (iluminista) fracassa (como a rigor o projeto Iluminista como um todo
fracassa, também na própria Europa). No entanto, para Mammi, a modernidade resiste (e deve resistir): “Por ser desde o começo mais simbólica do que
funcional, a linguagem moderna brasileira serviu mal à ideia de progresso;
mas, pela mesma razão, não precisou ser abandonada junto com essa ideia”.15
Nuno Ramos levaria adiante a utopia da modernização brasileira, ainda que
de forma problemática, alçando o que ao ver do crítico são práticas artísticas que caracterizam o contemporâneo. Mas é justamente este o ponto-limite
da poética desse artista também limite: embora sempre compensada por um
furor propositivo, ela resiste à fusão dos elementos ― e se os elementos se
arruínam, é porque não são capazes de se fundir e fundar algo novo. Referindo-se a Casco, por exemplo, o crítico situa seu diferencial numa “oposição
mais acentuada e estilizada [em comparação a alguns trabalhos anteriores do
artista] entre os dois elementos que compõem a obra... [...] a oposição entre a
estrutura em madeira e o cubo de terra passa assim a remeter a uma oposição
13 MAMMI, Lorenzo. Encalhes e desmanches: ruínas do modernismo na arte contemporânea
brasileira. In: MAMMI, Lorenzo. O que resta – arte e crítica de arte. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012, p. 227.
14 De acordo com Guilherme Bueno, “a presença fantasmagórica da modernidade em nossos
dias transparece o sentimento de perda a ser enfrentado. Qual seria este? Pode-se cogita-lo sendo
a melancolia crítica diante da incompletude de sua premissa projetual.” BUENO, Guilherme. É a
modernidade nossa antiguidade?. Revista Arte&Ensaios n. 20, outubro de 2006.
15 MAMMI, Lorenzo. Encalhes e desmanches: ruínas do modernismo na arte contemporânea
brasileira, op. cit., p. 227.
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cultura/natureza...”.16 Para Mammi, foi justamente a falta de adequadas bases
sociais e econômicas17 que minou o projeto modernista brasileiro ― como
não poderia deixar de ser (nunca de fato fomos modernos) ― e facilitou ainda
mais a característica “informe” de nossa produção.”18 Em Nuno Ramos não há
fusão, mas choque, ou seja, embate e revolta e, em última análise, impotência.
No entanto, com a inteligente obra de Nuno Ramos somos enim modernos;
ou alcançamos enim os limites de nossa modernidade, quando, em fato, já estamos no seio de um outro contemporâneo, menos técnico e mais caótico. Se
o artista paulistano se torna um artista incontornável hoje é porque ele representa a culminação de um projeto para o país ― ou melhor, ele de melhor maneira discursa sobre o fracasso desse projeto. Isso signiica também um certo
controle: o cadáver de uma civilização, que tanto e tão comovedoramente nos
acompanha em Nuno. É o limite da eclosão do núcleo neutro que nos acompanha desde sempre (a morte), e não o descontrole (pulsão ou revolução). É
apenas violência muda, quase morta.19
Lorenzo Mammi, tão citado aqui, não é o único intelectual brasileiro que
16
Ibidem, p. 216.
17 “Os artistas brasileiros da primeira safra concretista logo adquiriram consciência de que a situação industrial e social do país não permitia projetos demasiado abrangentes: a escolha construtiva
era um fato ético, individual, mais do que político e social”. Ibidem, p. 219.
18 “No Brasil, desde cedo se julga que qualquer tipo de percepção é, por sua vez, um comportamento, e que esse comportamento estabelece estruturas relacionais nos indivíduos entre si, entre
indivíduos e objetos e entre objetos e o espaço, de modo que não é possível estabelecer uma gestalt
separada desse contexto”. Ibidem, p. 219. Interessante notar como Flávio de Carvalho parece encaixar-se nesta descrição, e lembrar como muitos de seus projetos arquitetônicos (a grande maioria
nunca realizada) e suas propostas urbanísticas (descritas, por exemplo, em A cidade do homem nu),
não foram consideradas sérias pelo nosso modernismo oicial (que imediatamente canonizou a si
mesmo e ao barroco – descartando, por exemplo, além de modernistas dissidentes, uma rica herança
neoclássica).
19 “Queria atuar, fazer, protestar, mas uma cinza morna, que não se apaga nem se acende, cobre
tudo aquilo em que toco”. RAMOS, Nuno. Foquedeu. Mas não deu. Piauí, n. 130, p. 42.
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parece apostar numa continuidade do projeto moderno, nem Nuno Ramos é
o único ou o último artista desta linhagem. Em fato, essa posição continua
prevalecendo entre nós, seja pelo viés do elogio às supostas conquistas civilizatórias da modernidade (ainda não alcançadas pelo Brasil, ou alcançadas
de forma precária e peculiar), seja como defesa inconsciente, ou classista,
contra o nosso caos: como a vontade construtiva, que se opõe a uma tradição
delirante, mais orgânica ― linhagem que passaria pela antropofagia, Flávio
de Carvalho, Hélio Oiticica e, no contemporâneo, artistas como Tunga, por
exemplo ― uma tradição mais ligada à magia, ao corpo e à dança. Se Brasília
(assim como o plano-piloto da poesia concreta), como metáfora de um projeto de modernidade brasileira, pousa no ar, como uma lor supostamente sem
raízes, seria sua ruína (sua entrada no contemporâneo) a queda causada pelo
peso de um corpo ignorado, bastante palpável: uma outra arquitetura.
***
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Concebido justamente para “testar de novo algumas ideias acerca da igura
do ‘artista-arquiteto’”,20 o 33o Panorama da Arte Brasileira, em 2013, com a
curadoria de Lisette Lagnado e Ana Maria Maia, teve como título Formas
únicas da continuidade no espaço e aconteceu no lugar “meio sagrado”21 do
MAM de São Paulo. Trata-se de um local “Meio sagrado”, ou melhor, como
um “terreiro”, porque situado entre a prancheta e a vida (a marquise livre projetada por Oscar Niemeyer acabou superada pela vivência popular ― talvez
de modo semelhante ao de como o plano-piloto de Brasília foi deturpado e em
alguns casos invertido organicamente pelo uso cotidiano da população) e, ali,
no vão que interligaria os pavilhões do Ibirapuera, Lina Bo Bardi, ciente de
tal ambiguidade (e Lisette percebe nisso um elogio à cultura brasileira), em
1982 adaptou o prédio do Museu. Formas únicas na continuidade do espaço
também é o nome de uma escultura do artista futurista italiano Umberto Boccioni, que pertenceu ao MAM-SP, e cujo insólito desaparecimento (da obra, e
também do artista), serve de ponto de análise poética e intensiva para o trabalho em vídeo (necessariamente para sempre inacabado, mas com pretensões
e possibilidade de se tornar um longa-metragem artístico-teórico) de Deyson
Gilbert, que o resigniica: Boccioni ― Formas Únicas na Continuidade do
Espaço (2013).
20 Escreve Lisette Lagnado, em texto para o catálogo da mostra: “é interessante perceber o quão
férteis para a arte foram as atividades dos arquitetos que não exerceram seu ofício strictu sensu”.
Situado posteriormente à Brasília, Lagnado cita Paulo Mendes da Rocha em declaração “contra a
mitiicação de civilizações solares, exotismos impostos de fora para dentro”. LAGNADO, Lisette.
Museu em movimento, arquitetura sem construção. In: P33: Formas únicas da continuidade no
espaço. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2013, p. 19.
21 Nas palavras de Lina Bo Bardi, citada no texto da curadora Lisette Lagnado para o catálogo da
mostra. Ibidem, p. 15.
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O trabalho de Gilbert, nas palavras do próprio artista, apresenta-se como uma
“alegoria do próprio drama da modernidade, a quebra do gesso original dessa
mesma escultura na década de 70 no acervo do MAC-USP, o alinhamento
metafórico entre essa quebra e a morte trágica e estúpida de Boccioni na 1º
Guerra Mundial e, por último, a iguração de todo esse quadro como uma
espécie síntese multifacetada e sincrônica da tragédia da própria modernidade
enquanto tal.”22
Dividida em capítulos (como “O calor”, ou “O sol”), incluindo um Prólogo e
um Epílogo (provisório), a obra de Gilbert, inacabada, propõe um estilhaçar
de contradições históricas e ilosóicas que se dá na própria ilha ou linha de
montagem do ilme, utilizando-se de imagens pré-gravadas (cenas como o
gol perdido por Pelé contra o Uruguai em 1970, e o encontro de um reverendo
japonês que sobreviveu a Hiroshima com o homem que pilotava o Enola Gay,
e o jornalista que ilma a própria morte, e a queda de Ceascescu na Romênia, e
uma sessão inteira de um documentário sobre uma mulher inglesa cujo desejo
é tornar-se paraplégica, e lashes das manifestações de rua no Brasil em junho
de 2013...), fotograias e gravações especialmente feitas para o trabalho, com
trilha sonora de Marcel Duchamp (uma versão de “La Mariée mise à nu par
ses célibataires même”, encontrada no disco Futurism and Dada Reviewed)
e narração em of em italiano, lida como uma narrativa da modernidade de
forma descentralizada tanto do ponto de vista espacial como temporal, de uma
maneira (aparentemente) dispersiva e difusa, ou melhor, propositadamente
contingencial em suas escolhas (caracterizada, por exemplo, na obsessiva ―
poderíamos dizer quase psicótica? ― utilização de números, retirados dos
universos fechados de pessoas como Philip K. Dick, do serial killer Febrônio
Índio do Brasil, de uma seita thelemita, de sons estranhos captados por rádios
soviéticas, etc...),23 poética e potentemente propondo possíveis e abrangentes
22
Email do artista para o autor.
23
“Obviamente, como eu já disse, nenhum desses detalhes é importante para a fruição do ilme.
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(e nada iluministas) relações entre, por exemplo, a queda de cavalo (sua égua
Vermiglia) de Boccioni, que acarretou a sua inusitada morte, e a queda da própria escultura num depósito de museu brasileiro (ou seja, nas mais distantes
periferias da modernidade, ou do projeto cristão),24 com a queda da bomba
atômica sobre Hiroshima, e a de são Paulo a caminho de Damasco, como
pintada por Caravaggio... Escutemos o que a voz em of (a do artista, abafada,
como num documentário antigo) diz, em italiano (com subtítulos em português), enquanto vemos estranhas e belas imagens em preto e branco do Enola
Gay no ar, do cogumelo atômico, de um homem deitado (morto?) levitando...:
Já se passavam noventa e três (93) minutos desde a queda do cavalo em
Sorte, quando o corpo desacordado de Umberto Boccioni adentrou o Hospital Militar de Verona. Seu silencioso sono se estenderia ainda por mais
nove horas e vinte sete minutos. Uma vez declarada a morte, uma mão canhota demoraria oitenta e nove (89) segundos para preencher as folhas do
óbito. Um mês antes, pesando oitenta e um quilos e dezoito gramas, Boccioni pousa sorridente para um fotógrafo anônimo. Sua última imagem. A
imagem. O tempo de exposição do ilme à luz é de zero, ponto, zero, zero,
cinco segundos (1/200 - 0,005 s). Intervalo oito vezes mais rápido do que
aquele destinado a cada frame na projeção desse ilme. Para fora do plano,
uma cabeça. A cabeça de um cavalo, ou melhor, de uma égua. A mesma
O que importa é a percepção da irrupção inconstante e ‘capada’ dessas pequenas unidades ‘racionais’. O que realmente importa é a intuição de uma certa selvageria metafísico-euclidiana rondando o
ilme por todos os lados como um tipo de mensagem subliminar” (mensagem de facebook enviada
pelo artista ao autor). Nota-se, a título de curiosidade, que Nuno Ramos tem uma série de desenhos inspirados em e dedicados a Scherber, a Série Scherber (2011/2012), exposta na galeria Anita
Schwartz no Rio de Janeiro concomitantemente ao Globo da morte de tudo.
24 Nessa periferia distante, quando os jesuítas chegaram com sua catequese, como nota Eduardo
Viveiros de Castro, “o inimigo não era um dogma diferente, mas uma indiferença ao dogma, uma
recusa de escolher”. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São
Paulo: Cosac Naify, 2002, p. 184, 185. Continuamos não fazendo parte do Ocidente, como descobriu
atônito, mas ao im feliz, Ernesto Neto, um artista cada vez mais voltado à causa indígena: “Não somos ocidentais – que ótimo!”. VIANNA, Hermano. Além do ocidente. Jornal O Globo, 28/07/2012.
https://hermanovianna.wordpress.com/tag/ernesto-neto/.
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égua que Boccioni batizara vinte e três (23) dias antes em homenagem a sua
cor predileta: Vermiglia. Trata-se do mesmo animal que, frente ao estribilho rítmico e sólido de um trem a quarenta e cinco quilômetros e setecentos
metros por hora, alçaria abruptamente suas patas dianteiras a dois metros e
treze centímetros do solo. O verde oliva do uniforme do artista levaria zero,
ponto, nove, três, sete, cinco, oito, quatro, nove, dois, seis (0.937584926)
segundos cruzando o horizonte até atingir o chão. A terra. Uma vez ali, caso
se quisesse, seria possível medir a distância mais curta entre seu corpo e
a linha do trem: uma linha reta que se estenderia de sua bota esquerda até
a lateral negra de um dos dormentes de madeira. Seis metros e dois centímetros (6.02 mts). A distância exata equivalente ao dobro da largura da
pintura seis anos antes inalizada pelo artista em Milão, ¨La Città Sale¨, a
cidade se levanta. O ímpeto moderno brota no meio do canteiro de obras
como a erupção furiosa de um único corpo, um único animal a condenar o
antigo mundo ao aço cravado no casco de suas patas indomáveis. Essa será
a síntese boccioniana: a ferradura e o osso; o aço e o casco. Uma rédea.
Uma cor. Um nome. Vermiglia. A luz e a cor não mais envolvem, não mais
delineiam ou tingem o corpo. Elas são o próprio corpo. Elas são o próprio
corpo em seu arrastar-se, em seu rasgar-se no espaço frenético do motor
febril da modernidade. Submersos os homens, as ruas, os prédios, as praças, as igrejas, os museus, os postes e as fábricas numa mesma enchente,
torna-se cada ser solitário e autônomo um erro. Um apêndice à amputação.
Tudo deve se reduzir a uma única verdade. E a verdade futura será aquela que, ao mesmo tempo, arrasta e empurra, decepa e parafusa, derruba
e levanta. Um braço. Um tijolo. Uma coluna de ferro. Uma trincheira. A
polifonia bruta do devir se faz ao som das cavalarias. A cavalaria vermelha. Um abalo sísmico místico, mágico e maçante. A história se escreve no
contrair-se e distender-se de um músculo. Um esfíncter. Poder-se-ia gravar
abaixo desta tela “isto não é um cavalo” tal qual poder-se-ia gravar nas
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ruínas de Hiroshima “isto não é uma pedra”. A pedra. Em carta de 1910 a
Nino Barbantini, Boccioni escreve: O ideal para mim seria um pintor que,
desejando representar o sono, não se detivesse na criatura (homem, animal,
etc) que dorme, mas que, através das linhas e das cores, fosse capaz de
expressar a própria ideia do sono, ou seja, do sono como algo universal
para além da mera casualidade dos fatores de tempo e lugar.” O tempo e o
lugar. São necessários 343 minutos para cruzar o caminho da base Tinian
no Pacíico Oeste até o Japão. O radar de Hiroshima detecta um pequeno
grupo de aviões. Três. Três B-29. Primeiro, o avião 82, número de série 4486292, codinome Enola Gay. Nome escolhido pelo piloto, o Coronel Paul
Tibbets, em homenagem a uma mulher, sua mãe. A mãe. Segundo, o avião
91, número de série 44-86291, comandado pelo Capitão George Marquardt,
batizado após a conclusão da operação como “The Necessary Evil”, o mal
necessário. Por último, o avião 89, número de série 44-27353, pilotado pelo
Major Charles Sweeney, aeronave responsável por vigiar e gravar a missão,
a única presente tanto no bombardeio de Hiroshima quanto no de Nagasaki.
Seu codinome: “The great artist”, O Grande Artista. Às oito e quinze de 6
agosto de 1945, o Enola Gay abre seu útero metálico despejando 60 kilos de
urânio-235 sobre uma cidade ainda letárgica. A bomba, “The Little Boy”,
cai em queda livre por 43 segundos e 672 milésimos. Da terra, vê-se um sol
e outro sol. Um segundo sol. Ele se rompe e se expande a 618 metros do
solo. Tecido, madeira, alumínio, osso, cabelo, plástico, pedra, ferro. Tudo
se converte em um único rasgo fulgurante de luz, vapor, líquido e pó. O
crânio se une à rua. A bicicleta ao seio. A árvore à lâmpada. Um número
estimado entre 70.000 e 80.000 pessoas morre instantaneamente. Bois e
cavalos se convertem em tochas ambulantes de dor e desespero. Vermiglia.
Vermiglia. Um ilho segura a parte anterior da coxa de um pai soterrado
abaixo de 13.071 quilos de escombros. Vermiglia. Trinta anos, cinco meses
e 17 dias antes, o mesmo número de caracteres é utilizado para estampar
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no jornal Le Fígaro o texto Fundação e Manifesto do Futurismo. No oitavo
parágrafo de sua segunda parte, Filippo Tommaso Marinetti, o grande mentor do movimento, escreve: “O Tempo e o Espaço morreram ontem. Nós
já vivemos no absoluto, pois já criamos a eterna velocidade onipresente.”25
Não há precisamente melancolia em Boccioni, nem o desejo de fazer o inventário de um mundo perdido, mas sim, talvez, de elaborar de alguma forma
uma enorme herança tragada (possivelmente por um evento traumático):
Algo como narrar a Odisséia para além de seu objeto, ou seja, para além de
Ulisses, a história do barco que o carrega, da droga que o enleia, do porco
que o ataca, do olho que ele perfura, da onda que o vence, do buraco que ele
cava, da ilha que ele atinge, da vagina que ele penetra etc etc”.26
Se para Deyson Gilbert em Boccioni o mundo está irremediável (e talvez euforicamente ― pois há algo de extático em seu ilme) partido (e, portanto,
perdido), de acordo com Alberto Tassinari, regenerar o destruído, dar outra
vida ao que não é mais, uma outra vida apenas poética, mas mesmo assim
uma vida, rejuntar fragmentos, alguns deles arruinados, e no im alcançar
uma unidade em que os pedaços luem uns ao lado dos outros nutridos pela
fantasia, por uma comunhão de todas as coisas, esse é o resultado sempre
buscado nas obras de Nuno Ramos.27
***
25 O ilme Boccioni – Formas Únicas na Continuidade do Espaço de Deyson Gilbert pode ser
visto na íntegra no endereço https://www.youtube.com/watch?v=2aUVsd72kto.
26
Email do artista para o autor.
27 TASSINARI, Alberto. O caminho dos limites. In: RAMOS, Nuno. Nuno Ramos. Rio de Janeiro: Cobogó, 2010, p. 18.
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Em Globo da morte de tudo, instalação montada entre novembro de 2012 e
janeiro de 2013, na mesma galeria (no elegante bairro da Gávea, no Rio de
Janeiro), que alguns anos antes havia acolhido a premiada exposição Mar
morto, Nuno (em parceria com Eduardo Climachauska), em ato destruidor e
airmativo (ou seja, de algum modo produtivo), que poderíamos aproximar
do viviicante conceito de dispêndio, o qual Bataille utiliza-se para elaborar
a teoria econômica que batizou como “parte maldita”,28 parece mover-se em
direção ao luto. Tudo gira no Globo da morte de tudo, ainda que sem qualquer redenção, mas em alta voltagem, esvaindo-se na vertigem de um ralo
voraz (não longe da tradição modernista das vanguardas com sua sucessão de
mortes). Como nos diz Lorenzo Mammi, “no fundo, todas as obras de Nuno
Ramos surgem de uma comunicação interrompida entre corpo e signo, projeto
e entropia. Se os pólos não se comunicam, a obra pode transbordar de um lado
ou de outro: num excesso de matéria ou num excesso de signiicado”.29 Entre
um pólo e outro, ou seja, poderíamos dizer, aquilo que não é nem sujeito, nem
objeto (nem matéria, nem linguagem, neti neti), mas o ponto indeterminado
de apresentação do inacessível, o informe (para Bataille, na indistinção entre
igura e fundo), aleph cego que não pode ser visto, por intolerável, imagem
portanto invisível30, mas latente e pulsante, sempre presente ― embora sem28 Interessante pensar, com Bataille, a noção de dispêndio como sinônimo de poesia (criação por
meio da perda), assim como, como reverso da moeda, a relação econômica (e política) entre desperdício (fetiche, gozo, pulsão de morte) e o circuito produtivo e comercial da arte contemporânea.
BATAILLE, Georges. A parte maldita. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Belo Horizonte:
Autêntica, 2013.
29 MAMMI, Lorenzo. Encalhes e desmanches: ruínas do modernismo na arte contemporânea
brasileira, op. cit., p. 227.
30 Em seu livro L’image naturelle, Marie-José Mondzain discute a imagem na tradição cristã
como imaginação dos mistérios da trindade, da encarnação e da ressureição: imagem invisível que,
como um protótipo, nortearia a produção de imagens artiiciais. Tal conceito de imagem invisível,
regendo a representação visual em nossa cultura, como ideia e não como semelhança, seria o fundamento da produção imagética do Ocidente e a base de uma relação com a visibilidade que se pauta
pela “presença de uma ausência”. MONDZAIN, Marie José. L’image naturelle. Paris : Le Nouveau
Commerce, 1995. Apud : SALGADO, Cristina, Escultura como imagem. Arte & Ensaios. Revista do
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais – EBA/UFRJ. Ano XV n 17.
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pre ausente ―, o umbigo da cena (em termos freudianos), ou, nas palavras
de Julia Kristeva, para engajar o pensamento de Hal Foster sobre o real, o
abjeto.31 Voltamos a um vislumbre de Mar morto:
Sobre um moribundo (Coro: Morres cruelmente!) é correto perguntar:
que é que lhe resta, que é que pode ainda que valha a pena, agora que pode
tão pouco? E se seu cu piscasse, acendendo desde os bagos todo o seu interior, como um bode renascido irradiando calor pelas entranhas, quando
seu papel agora seria morrer pacíica e dignamente, é isso o que se espera
de um moribundo, (Coro: Diz!) que morra solenemente, sem muita expressividade, como um conviva discreto, mas de repente, num último assomo,
com palavras e tudo, cuspindo o tubo em sua glótea, cheio de energia e de
gestos espalhafatosos, gritasse “o que eu quis antes não tem importância,
não tem a menor a menor importância”, apalpando os seios de quem o visitava na UTI, arrancando os botões da blusa da enfermeira num estertor enquanto murmura “agora, agora, eu quero agora”, com uma força imprevista, um desejo de vida, mais vida, ali bem na última fronteira, de modo que
ninguém pudesse sequer falar mal, ainal o cara renascia, constrangimento
geral na família, ele nunca se comportou assim, etc. (Coro: Ah, maldito!)32
Se em Nuno Ramos o universo parece poder concentrar-se num único ponto
de entropia ou voragem, como um buraco negro que tudo suga e destrói (mas
que pode, ainda que em fantasia ou delírio, querer viver ou dar vida, germinar e frutiicar), na astrofísica de Deyson Gilbert esse ponto de fato explode
31 Para Hal Foster, para além do abjeto, estaria o informe (conceito batailliano) e o obsceno, “em
que o olhar-objeto é apresentado como se não houvesse uma cena para encená-lo, uma moldura da
representação para contê-lo, nenhum anteparo.” FOSTER, HAL. O retorno do real. In: FOSTER,
Hal. O retorno do real. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p.144. “Num
mundo em que o Outro sucumbiu, airma ela enigmaticamente, a tarefa do artista já não é a de sublimar o abjeto, elevá-lo, mas de sondar o abjeto, penetrar a ‘origem’ sem fundo que é a repressão
dita originária”. Ibidem, p.148. Para Foster, “a abjeção é uma condição na qual a posição de sujeito
é perturbada”. Ibidem, p. 147.
32
RAMOS, Nuno, op. cit..
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e gera, como a pérola azul explodida na cosmogonia do Shivaísmo da Cachemira. Escutamos no Prólogo de Boccioni (enquanto assistimos o ilme de
um ilme sendo preparado para a projeção, entre outras cenas, como crianças
brincando num parquinho, que culminam com imagens do atentado de 11 de
setembro de 2001 às Torres Gêmeas do World Trade Center de Nova York, sob
os famosos dizeres de Zenão, “O movimento não existe”):
Sem mais, inalmente poderíamos reconhecer este ilme no interior e exterior de si mesmo, no interior e exterior de sua própria história.
Flagraríamos nele o secreto acasalamento transcorrido momento a momento no escuro abismo que se estende entre um fotograma e outro.
Assistiríamos, assim, inalmente, o profano coito entre luz e carne que torna possível às imagens pairar misteriosamente por sobre a face das águas.
Francisco Bosco, no texto do catálogo da exposição de Ramos e Climachauska, airma que “se esse Globo da morte quer destruir tudo, é apenas
para erguer uma criação que lembre ao mundo, a este mundo, que perder é
uma verdade fundamental da experiência humana. E quem a acata está mais
próximo da vida”33. Contrastemos essa bela frase, no entanto, com esta, bem
mais tosca e bruta, de Suely Rolnik, no ensaio “Subjetividade antropofágica”,
já citado: “Por que não se consegue parar de choramingar de saudade da casa
enraizada apesar desta evidente e irreversível mudança?”34.
Para usar uma imagem criada pelo próprio Nuno Ramos em Mar morto, o que
importa fazer coisas lindas, se nossos corpos (e esses corpos já não são apenas os físicos, que sempre apodreceram e apodrecerão) afundam? O que é ou
representa uma coisa bela, se a própria noção de mundo, ou de vida humana,
com toda sua carga de vivências acumuladas, foi posta em questão uma vez
33 BOSCO, Francisco. O princípio da perda. In: O globo da morte de tudo. Catálogo de exposição. Galeria Anita Schwartz, Rio de Janeiro, 2013.
34
ROLNIK, Suely. Subjetividade antropofágica, op. cit., p. 135.
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rompidos os vínculos comunitários, éticos e religiosos que nos deiniam? A
boa (ou má) nova é que não há mais retorno ou possibilidade de restauração.
Que arte interessa agora? Com certeza, não aquela que busca o gaguejar (a
documentação, a ponderação, o repetir eterno como se congelasse o tempo)
de um trauma, nem aquela que busca resgatar um mundo perdido, reconstruir
ruínas (a modernidade com seus valores humanistas), mas sim aquela que vai
lidar corajosamente com aquilo que nos destruiu como civilização e como
indivíduos. Uma arte capaz de propor e produzir novas formas de vida. Como
provoca Giorgio Agamben, no contexto de seus estudos sobre política (que
nunca está muito distante da arte): “aqueles que buscam ressacralizar o mundo e a vida são tão ímpios quantos aqueles que desesperam por causa de sua
profanação”.35 Ou como, entre nós, vaticinam Déborah Danowski e Eduardo
Viveiros de Castro: “a incapacidade de cumprir o luto do que já está morto é
terrível: mais precisamente, é mortal.”36
35 AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Tradução de Cláudio Oliveira. Belo Horizonte:
Autêntica, 2014, p. 83.
36 DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio sobre os
medos e os ins. Florianópolis: Instituto Socioambiental, 2014, p. 155.
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Referências
AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Tradução de Cláudio Oliveira.
Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
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de Davi Pessoa e Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
BATAILLE, Georges. A parte maldita. Tradução de Júlio Castañon Guimarães.
Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
BOSCO, Francisco. “A Ópera-Fantasma de Nuno Ramos”. Revista Cult, 135,
maio 2009.
__________. “O princípio da perda”. In: O globo da morte de tudo. Catálogo de
exposição. Galeria Anita Schwartz, Rio de Janeiro, 2013.
__________.; SOCHA, Eduardo. Prefácio. Indisciplinares. Coleção Ensaios Brasileiros Contemporâneos. Rio de Janeiro: Funarte, 2016.
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DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir?
Ensaio sobre os medos e os ins. Florianópolis: Instituto Socioambiental, 2014
DUARTE, Paulo Sérgio. Mar morto. Encarte avulso da galeria de arte Anita
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Naify, 2014.
MAMMI, Lorenzo. O que resta ― arte e crítica de arte. São Paulo: Companhia
das Letras, 2012.
MONDZAIN, Marie José. L’image naturelle. Paris : Le Nouveau Commerce,
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PEDROSA, Mário. Arquitetura -- ensaios críticos. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
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galeria de arte Anita Schwartz, Rio de Janeiro, 2010.
__________. Foquedeu. Mas não deu. Piauí, n. 130.
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ROLNIK, Suely. “Subjetividade antropofágica”. In: HERKENHOFF, Paulo; PEDROSA, Adriano (ed.). Arte contemporânea brasileira: Um e/entre Outros. São
Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1998.
SALGADO, Cristina, “Escultura como imagem”. Arte & Ensaios. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais ― EBA/UFRJ. Ano XV n 17.
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VIANNA, Hermano. “Além do ocidente” Jornal O Globo, 28/07/2012.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
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