MONTAIGNE, Michel de. “Dos Canibais”. In: Ensaios. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural,
1980, pp. 100-106.
Montaigne: o Novo Mundo e as suas reflexões1
Hiago Rangel Fernandes2
Michel de Montaigne pode ser considerado como um dos mais importantes
humanistas do século XVI, famoso pelos seus Ensaios. Nascido na cidade francesa de
Bordéus, em fevereiro de 1533, Montaigne era filho de pai ativo na política da cidade,
seguindo seus passos ao assumir o cargo de conselheiro no Parlamento da cidade, em 1554.
Em 1580 após dedicação aos estudos e encerramento de sua vida pública, Montaigne finaliza
os seus Ensaios.
O filósofo francês em questão se insere no contexto histórico de grande importância:
a Descoberta da América, que segundo afirma Todorov (2010) trata-se do encontro mais
surpreendente da história (TODOROV, 2010, p. 05). É o período das Grandes Navegações,
nas quais os reinos unificados de Portugal, Espanha, França, Holanda e Inglaterra adentram-se
nas expedições ultramar, em busca de paraísos que rendam metais preciosos, novas rotas e
vantagens comerciais.
Como fora antes participante do dia a dia da Corte, Montaigne presenciou as
“novidades” e os passos dados pelos projetos colonizadores franceses além-mar, como a
França Antártica, no Brasil. Do contato com alguns dos “descobertos” do Novo Mundo temse a bagagem que o humanista francês irá carregar para as suas reflexões nos Ensaios, como
se pode perceber nos seu discorrer a respeito “Dos Canibais” (I, 31).
Montaigne também pode ser localizado como pertencente a um contexto de amplas
transformações que se seguem na Europa causados pelos chamados renascimentos, que são
caracterizados pelas continuidades do Medievo, mas também de rupturas e inovações. Seguese, através do crescimento de Universidades, dos estudos das línguas antigas e a retomada de
suas leituras, um ceticismo pelo qual Danilo Marcondes (2012) entende ser desenvolvido em
1
Resenha apresentada para a disciplina de História da Modernidade, Profª Fabrina Magalhães, em 18 de maio de
2018.
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Discente do curso de História da Universidade Federal Fluminense. Instituto de Ciências da Sociedade e
Desenvolvimento Regional - ESR. E-mail:
[email protected]
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dois momentos: pela retomada da leitura dos antigos e pelo “descobrimento” do Novo
Mundo.
Marcondes (2012) desenvolve uma importante argumentação sobre como as
Descobertas foram fundamentais para o pensamento moderno. Na medida em que os
aventureiros e viajantes vão concedendo notícias e descrições sobre os “extraordinários” do
Novo Continente, causam-se estranhamentos que ocasionarão discussões céticas e levantarão
questionamentos sobre a natureza humana, aquilo que ele denomina de “argumento
antropológico” (MARCONDES, 2012, p. 423).
Montaigne não fica de fora desse debate, e evidencia nos seus Ensaios em “Dos
Canibais” (I, 31) o impacto das descobertas que “[...] presta-se a sérias reflexões.”
(MONTAIGNE, 1980, p. 100). Já no início do capítulo o humanista francês pode nos levar a
apontar como – além da reflexão para o argumento antropológico que daí se advirá – elas
foram importantes para a própria crítica aos antigos nas suas formulações e concepções, que
estavam à tona no seu tempo.
É dessa forma, por exemplo, que Montaigne apresenta que essas navegações
ultramarinas irão contrastar com os relatos dos antigos na existência de ilhas como a
Atlântida, relatada por Platão, e as relatadas pelos cartagineses, segundo Aristóteles.
Ademais, é visível no autor dos Ensaios uma crítica àqueles que não conferem sobre os
relatos ou que acrescentam os fatos com a finalidade de persuadir e valorizar suas
interpretações, por isso afirmou que “gostaria que cada qual escrevesse sobre o que sabe e
sem ultrapassar os limites de seus conhecimentos” (MONTAIGNE, 1980, p. 101)
Pode-se daí revelar-se uma crítica de Montaigne aos antigos, mas também aos seus
contemporâneos próximos, como Colombo, se quisermos enquadrá-lo nessa lógica, uma vez
que ele não procura investigar e encontrar a verdade com a experiência concreta, pelo
contrário, considera-a apenas como resultado de regras e conhecimentos preestabelecidos
(TODOROV, 2010, p. 23). Ou seja, além da crítica aos autores que visualizam “as
maravilhas” do Mundo Novo e que acrescentam fatos, há também uma crítica à sua bagagem
intelectual, que muitas vezes não bate com os relatos objetivos e confiáveis dos homens
simples.
Entretanto, no prosseguimento da leitura “Dos Canibais” (I, 31), é possível de se
perceber como Montaigne desenvolveu uma leitura sobre os costumes dos povos indígenas de
forma original, que pode até nos levar a concluir não ser uma escrita feita no seu tempo.Vale
lembrar de que fazia parte de um contexto do tema humanista da miseria hominis, que
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demonizava o indígena enquanto bárbaro, apesar de contrastar também a com a visão do
“bom selvagem” (MARCONDES, 2012, p. 428).
É impressionante como Montaigne, apesar de ser sintético, apresenta elementos que
qualquer estudioso da Antropologia identificaria como constituinte do seu trabalho. Ele
aborda aquilo que costumamos chamar de instituições daquelas sociedades. Vai apresentar
como eles se organizam no dia a dia em relação ao convívio, aos papeis sociais, a forma de se
alimentarem e de habitar, do matrimônio, e relatará sobre duas instituições que se
complementam e nos chamam a atenção até hoje: a guerra e o canibalismo.
A guerra, segundo Montaigne, não é gerada pelos mesmos motivos dos conflitos
conhecidos pelo Velho Continente, ou seja, pela busca de novos territórios num desejo de
expansionismo e dominação sobre os outros povos; o que possuem para eles seus territórios é
suficiente para atender as necessidades. O que movem os conflitos, portanto, é a inveja da
virtude. O benefício da vitória é unicamente a glória que daí se contempla, a demonstração de
uma superioridade de valentia e coragem (MONTAIGNE, 1980, p. 104).
O canibalismo, por sua vez, pode ser visto, em Montaigne, como uma instituição que
fica no interior da guerra. Não se trata de uma alimentação corriqueira, mas de uma
ritualística do pós-conflito. Como o que está em jogo é a demonstração de virtudes, o que se
basta para declarar o fim do conflito é a aceitação da derrota por parte do perdedor, porém,
coo afirma Montaigne, “[...] não se encontra um só, em um século, que não prefira a morte a
assumir uma atitude ou a proferir uma palavra suscetíveis de desmentirem uma coragem que
timbram em ostentar acima de tudo. Não se vê nenhum que não prefira ser matado e comigo a
pedir mercê.” (MONTAIGNE, 1980, p. 104).
O pensador francês chama atenção para como a prática do canibalismo não é
realizada de forma arbitrária e imposta, uma vez que os vencedores dão a oportunidade para o
derrotado livrar-se se somente confessar estar vencido e não mais apresentar-se como ameaça
ao seu povo. Além disso, não há execução doss presos de um dia para o outro, mas um
tratamento honroso até o dia final. No entanto, como já dito, há aqueles que numa
demonstração de resistência e honra, apressam a morte ao proferirem palavras de orgulho
sobre as vitórias passadas dos seus descendentes sobre o povo que os encarcerara.
Toda essa descrição nos Ensaios não pode ser vista apenas como mais uma descrição
holística, impulsionada pela “maravilhosidade”. Montaigne parece causar uma reflexão diante
desse cenário do “descobrimento” do Novo Mundo, contribuindo para o debate cético quanto
à natureza humana, o chamado argumento antropológico como argumenta Marcondes (2012).
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O pensador francês deseja enfatizar a diversidade dos costumes e experiências humanas nos
seus diferentes contextos (MARCONDES, 2012, p. 431).
Ao dizer que não vê nada de bárbaro ou selvagem do que dizem daqueles povos
(MONTAIGNE, 1982, p. 101), Montaigne indica a impropriedade das concepções que criam
a oposição entre um costume e outro, como estava se fazendo desde a antiguidade pelos
gregos em relação aos demais povos e, que se perpetuava com a retomada dos antigos nos
renascimentos. O autor, porém, não nega o estranhamento que ocorre ou que possa vir do
europeu em relação aos americanos, mas apresenta uma perspectiva original que dá a grande
importância ao seu trabalho.
Quando o autor nega-se a utilizar esses termos e concepções dicotômicas, chama
atenção para como a oposição que se faz com o Outro desperta, em contrapartida, o seu
espelho ou a sua simetria. Da mesma forma que os europeus estranham os comportamentos
dos “povos descobertos”, estes também estranham os seus. É o caso dos três indígenas do
Brasil que vão para a Corte francesa que Montaigne testemunha e chega a conversar com um
dentre eles, através de um intérprete nada confiável. Segundo ele, o chefe estranhava a forma
como os soldados grandes e adultos obedeciam a uma criança feito rei (referência a Carlos
IX), e a quantidade de miseráveis que batem nas portas e mendigam sem se revoltarem com a
injustiça que estava sobre eles (MONTAIGNE, 1982, p. 105).
Montaigne afirma que aqueles que quiserem fazer alteridade e julgarem
determinados comportamentos como “bárbaros”, como o canibalismo, não devem fechar os
olhos para os defeitos da realidade do lado do Velho Continente, pois agindo assim poderia
pender a balança para o lado do último, já que:
[...] é mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer depois de morto;
e é pior esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos
poucos, ou entregá-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé, como não
somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos; e
isso em verdade é bem mais grave do que assar e comer um homem
previamente executado (MONTAIGNE, 1982, p. 103).
Essa passagem evidencia as ações do passado europeu, inclusive entre os ditos
civilizados, os gregos, e as do presente como era o caso da fogueira da Inquisição, por
pretexto de devoção e fé, segundo ele afirma. Não se trata de qualificar quem é mais
“bárbaro” do que o outro, pois caiaria assim numa alteridade e dicotomia; mas na ênfase do
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tipo “acusar o outro também faz revelar as nossas barbaridades que, em certos casos, podem
até ser taxados como piores”. Como o autor francês mesmo diz, “podemos qualificar esses
povos como bárbaros em dado apenas ouvidos à inteligência, mas nunca se os compararmos a
nós mesmos, que os excedemos em toda sorte de barbaridades.” (MONTAINGE, 192, p.
103).
Os Ensaios de Michel de Montaigne, portanto, como o capítulo “Dos Canibais” (I,
31) são fundamentais para a percepção do debate e da dúvida que se colocava no seu período
por conta dos “descobrimentos”. Apresentam uma especificidade do autor que é o levantar a
diversidade dos povos, no caso, do Novo Mundo. Trata-se de uma obra rica, portanto que
merece mais atenção e estudos, na finalidade de se perceber a amplitude da filosofia cética
desse período e o pensamento moderno com as suas rupturas e inovações.
Referências bibliográficas
MARCONDES, Danilo. “Montaigne, a descoberta do Novo Mundo e o ceticismo Moderno”
In: Kriterion, Belo Horizonte, n. 126, dez. 2012, pp. 421-433.
MONTAIGNE, Michel de. “Dos Canibais”. In: Ensaios. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural,
1980, pp. 100-106.
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. 4ª ed. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2010.