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Tradição como transgressão

O artigo apresenta uma reflexão sobre o teatro-dança indiano bharatanatyam e o contexto pós-colonial a partir da trajetória de duas artistas: Kalanidhi Narayanan (1928-2016) e Chandralekha (1928-2006). Ambas transgrediram a tradição vigente em busca dos princípios vitalizadores da cultura milenar hinduísta, evidenciando a representação do feminino e a necessidade de se (re)pensar a arte em diálogo com os tempos contemporâneos. Abstract The article presents a reflection on the Indian theater-dance bharatanatyam and the pos- tcolonial context from the trajectory of two artists: Kalanidhi Narayanan (1928-2016) and Chandralekha (1928-2006). Both transgressed the current tradition in search of the vitalizing principles of the Hindu culture, highlighting the representation of the feminine and the need to (re)think art in dialogue with contemporaneity. Keywords Indian theater-dance; tradition; transgression.

Pitágoras 500 10º número 2016 volume 2 Tradição como transgressão: joana pinto Wildhagen Kalanidhi Narayanan e Chandralekha RESUMO > O artigo apresenta uma reflexão sobre o teatro-dança indiano bharatanatyam e o contexto pós-colonial a partir da trajetória de duas artistas: Kalanidhi Narayanan (1928-2016) e Chandralekha (1928-2006). Ambas transgrediram a tradição vigente em busca dos princípios vitalizadores da cultura milenar hinduísta, evidenciando a representação do feminino e a necessidade de se (re)pensar a arte em diálogo com os tempos contemporâneos. Palavras-chave: teatro-dança indiano; tradição; transgressão. 16 Pitágoras 500 10º número 2016 volume 2 Tradição como transgressão: Kalanidhi Narayanan e Chandralekha Joana Pinto Wildhagen Joana Pinto Wildhagen - Doutora em Artes da Cena pela Unicamp, Mestre em Letras pela UFMG, Especialista em Cultura e Arte Barroca pela UFOP. É professora do Curso de Licenciatura em Dança na UFAL, lotada na disciplina Danças das Tradições, coordena o Grupo de Pesquisa Poéticas da Dança, Educação e Transculturalidade. Desenvolve pesquisas sobre artes corporais asiáticas; dança, cultura e tradição popular; técnicas e processos de formação e transmissão de conhecimento em artes. [email protected] É reconhecido o movimento iniciado pelos primeiros formadores de atores e preceptores da dança moderna que, frente às suas inquietações e impulsos, buscaram valorizar o aspecto formativo de sua proissão a partir de referências externas. Nesse contexto, encontram-se inluências de conceitos e de práticas advindos de países asiáticos, tais como os teatros kabuki e noh do Japão; as danças cênicas kathakali e bharatanatyam do sul da Índia; as artes marciais judô, karatê e t’ai chi ch’uan; a dança de Bali; os conceitos da medicina chinesa; as antigas esculturas indianas; a totalidade de yin e yang e a estética de base zen (cf. HODGE, 2000; WHEELER, 1984). Nessas linguagens, os artistas da cena ocidentais encontraram treinamentos bastante complexos e desenvolvidos que os auxiliaram a problematizar as práticas artísticas de seus próprios contextos como, por exemplo, a relação entre preparação e espetáculo. Com isso, inicia-se um deslocamento de preparação de intérpretes da cena com uma função mais utilitária e à serviço de linguagens preexistentes para o treinamento como “um valor em si mesmo” (BONFITTO, 2009, p. 38). Contudo, é preciso colocar em perspectiva uma visão ainda recorrente de se ver nessas culturas tradições intactas. Propõe-se neste artigo pensar o caminho inverso a partir das narrativas de vida e obra de duas artistas cênicas da Índia, buscando observar como uma tradição reinventada a partir dos discursos externos e internos pós-coloniais inluenciou profundamente essa civilização. Antes de mais nada, ressalta-se que alguns conceitos utilizados neste artigo aparecem como traduções da Língua Sânscrita para a Língua Inglesa e, por sua vez, para a Língua Portuguesa, o que acaba interferindo na compreensão dos mesmos, já que vêm embebidos por constructos ilosóicos ocidentais. Um estudo mais aprofundado e comparativo desses termos ainda precisa ser feito, para que os estudiosos em Língua Portuguesa possam articulá-los a partir de parâmetros mais sólidos. 17 Pitágoras 500 10º número 2016 volume 2 Os artistas e o cenário sócio político Kalanidhi Narayanan (1928-2016) e Chandralekha1 (1928-2006), duas mulheres de origem hindu, duas artistas iniciadas na dança por meio do recém reconigurado estilo bharatanatyam, teatrodança originário na região de Tamil Nadu. Ambas nascidas em 1928, exatamente vinte anos antes da Índia ser oicializada como nação independente; ambas já falecidas; a primeira, dez anos após a segunda. O que mais teriam em comum essas artistas cujas trajetórias de vida foram completamente diferentes uma da outra? Tratam-se de mulheres que buscaram no campo das artes reinterpretar a própria tradição, cada qual com sua especiicidade, mas recorrendo a princípios vitalizadores dos vestígios da cultura de origem. Para compreender o contexto sociocultural no qual ambas as artistas nasceram e se desenvolveram, há que mencionar alguns fatos que as antecederam. Um deles foi a presença conlitiva dos povos britânicos na Índia colonial, sobretudo a partir de 1858. Um período marcado pelo processo progressivo, e aparentemente não violento, de incorporação de valores culturais, dos quais se pode mencionar: uma visão de arte neoclassicista, o vitorianismo e o puritanismo2. Em decorrência disso, práticas culturais pré-modernas começaram a ser combatidas tanto Chandralekha Prabudhas Patel é o nome de nascimento dessa artista, que icou mais conhecida pelo uso do primeiro nome apenas. 2 Nandi aprofunda essas questões na obra he Intimate Enemy, estudo no qual o autor investiga as formas de resistência psicológica ao processo de ocidentalização da Índia colonial 3 Este basicamente abolia a adoração de ídolos, defendia o im da prática de sati (suicídio das viúvas), combatia o sistema de castas e, por sua vez, questionava a condição dos intocáveis, evidenciando as contradições sociopolíticas em um território prestes a se uniicar como nação (Cf. KNOTT, 2003). 4 Delineadas sobretudo em Hind Swaraj or Indian Home Rule, em que Gandhi se posiciona basicamente a favor de uma revolução pacíica e contra a adoção do estilo de vida do colonizador, bem como a manutenção de relações comerciais com esse. 5 Período de dominação mais radical da Coroa Inglesa. 6 No original: “Vedanta philosophy, interpreted politically, could be used to further nationalist sentiments. Sanskrit stanzas on spiritual unity and freedom from illusion could be used in promoting national unity and political awakening […]. Similarly, a resurrection of dance as described in the Natya Sastra (a text on theatrical arts dated between 200B.C. and 200 A.D. and depicted in the Stone sculptures on temple walls, created a basis for renewed pride in the ancient, classical arts”. 7 Matriarcado de artistas que serviam os templos hindus na região sul indiana durante o último milênio. 1 pelos colonizadores, quanto por uma parte signiicativa da elite indiana. Fato esse marcado pelos movimentos nacionalistas iniciados no século XIX, que traziam em seus discursos o questionamento de costumes ancestrais, como ocorreu no movimento de Brahmo3. Somado a isso, a ideia de uma religião única, contendo saberes de todas as outras, foi levada a cabo por líderes espirituais da Índia, dentre eles o revolucionário Gandhi4 (1938) , propagando-se no Ocidente durante a primeira metade do século passado e ganhando expressão mais evidente nos anos 1970, com o movimento hippie. No campo das artes cênicas, o movimento nacionalista esteve nos bastidores do processo de ressigniicação da tradição artística, encabeçado por intelectuais da elite indiana educados na Inglaterra que se sentiam insatisfeitos com a dominação não democrática do British Raj5. Conforme Dandekar, tal insatisfação levou essa classe à busca pela rica e antiga cultura de seu país a im de reclamar uma identidade nacional. De tal forma que, a] ilosoia Vedanta, interpretada politicamente, poderia ser usada para outros sentimentos nacionalistas. Estrofes em sânscrito sobre a unidade espiritual e liberdade contra a ilusão poderiam ser usadas para promover a unidade nacional e o despertar político [...]. Semelhantemente, um ressurgimento da dança como descrita no Natya Shastra (um texto sobre artes teatrais datadas entre 200 a.C. e 200 d.C. e representada nas esculturas de pedra nas paredes do templo, criou uma base para nova orgulho nas antigas, artes clássicas6 (DANDEKAR, 1998, p. 37). Conforme assinala a autora, esse “ressurgimento” do teatro-dança bharatanatyam, assim como ocorreu com a ilosoia Vedanta, não foi feita com o intuito de reestabelecer a tradição dos templos, onde outrora se desenvolvera essa arte pelas devadasis7, “[...] mas a recriaram e a reinaram como arte performática para ser elevada como símbolo de orgulho nacional” (DANDEKAR, 1998, p. 37). 18 Pitágoras 500 10º número 2016 volume 2 Em 1947, três meses após a declaração da independência da Índia, a classe artística das devadasis foi condenada de vez à extinção por meio do Ato Devadasi em Chennai. O fato implicou em mudanças signiicativas de todo um constructo social, religioso e artístico: o im do matriarcado de mulheres artistas dos templos pela proibição de rituais de pertencimento, o estímulo ao casamento, a inserção das mesmas na sociedade patriarcal e a abjeção daquelas que optavam por não se casar (THOMPSON, 2012). Ao excluir essas mulheres do reformado teatrodança bharatanatyam, houve também uma seleção do repertório de obras que condiziam com valores mais nobres para a época. Tal qual observa Légeret (2015, p. 467): “[...] sob a pressão da pudicícia vitoriana, os textos e gestos mais explicitamente eróticos foram afastados dos repertórios”. A dança ressigniicada na região sul seria, portanto, a apropriação dessa arte pelas mulheres de classes privilegiadas, que, por um lado, signiicou uma iniciativa de descriminalizar a prática do teatro-dança e contribuiu para sua perpetuação e os estudos que atualmente têm sido realizados; por outro, tem resultado na horizontalização dessas formas plurais8. Um aprofundado estudo sobre o processo de discriminação e marginalização das devadasis se encontra em hompson, 2012 e em Marglin, 1985. 9 No original: “I am not able to set a ixed dance even if I want”. 10 Segundo Vatsyayan (1994, p. 4), abhinaya é a arte do dançarino comunicar as imagens verbais de um poema, por meio dos movimentos corporais, sobretudo das expressões faciais. Distancia-se, no entanto, da imitação ou interpretação literal da cada palavra contida nos versos poéticos, e sua força está contida na qualidade de sugerir estados emocionais (bhavas) a partir da imaginação (bhavana). 11 A expressão foi extraída de Júnior (2015, p. 23). De fato, a palavra sânscrita abhinaya não possui uma tradução consensual entre os autores em Língua Portuguesa, encontrando-se inclusive em uma mesma obra vários outros sinônimos, tais como: “gesticulação” (p. 66), “expressões” (p. 76), “expressão performática” (p. 84), “formas expressivas” (p.89), “elemento da expressão” (p. 97). 12 Na década passada, seus discípulos produziram uma série de coleções audiovisuais pela instituição Kalakriya, nas quais a artista mostra seu método de interpretação das composições poéticas e a construção cênica a partir de trechos de aulas individuais. 2 Kalanidhi Narayanan: Transgressão na Tradição Não consigo conceber uma dança ixa, mesmo que eu queira9. Kalanidhi Narayanan (1928-2016), nascida em Bangalore, estado ao sul da Índia, foi uma dançarina de bharatanatyam, que teve em seu universo de relações a convivência com algumas devadasis, as quais sua mãe, amante da dança e da música, nutria bastante afeição. Como foi visto, cresceu em um contexto em que o teatro-dança já havia sido extremamente combatido e que somente poucos haviam mantido esses conhecimentos, basicamente devadasis decaídas, que viviam em condições de extrema pobreza, com pouco ou nenhum reconhecimento, conforme revela Narayanan (COORLAWALA et al., 2016). Iniciou seus estudos com a devadasi Mylapore Gauri Ammal, que, por sua vez, ensinou dança para outras artistas de renome, como Balasaraswati (1928-1984) – também uma remanescente das devadasis – e Rukmini Devi Arundale (1904-1986), conhecida pela criação do atual centro artístico Kalakshetra Foundation na década de 1930 e igura central na divulgação do bharatanatyam. Narayanan teve uma carreira incomum para a época, pois estudou dança dos sete aos dezesseis anos de idade e somente retornou à área aos quarenta e seis, quando passa a lecionar a arte do abhinaya e se torna uma das maiores expoentes nesse campo, tendo atraído centenas de artistas indianos e estrangeiros, interessados em se especializar nos planos expressivos da encenação. Em entrevista a Coorlawala et al (2016), declara que seu marido, assim como ocorre com várias mulheres ainda hoje, a proibiu de continuar dançando e de ter contato com as devadasis. Contudo, Narayanan jamais as esqueceu e sua busca na arte do abhinaya revela a necessidade de ampliar os repertórios do teatro-dança, pois a maioria deles se centravam na iguração das mulheres como mães ou como meninas inocentes. É o que revela em seu legado, seja em entrevistas, em livro, em vídeos educativos12 ou por meio de seus discípulos. 19 Pitágoras 500 10º número 2016 volume 2 Em 1994, publica seu único livro, Aspects of Abhinaya, no qual reúne palestras e artigos escritos durante duas décadas a respeito de um tema carente de publicações até então. Nessa obra busca compreender as intrincadas relações entre “[...] a palavra (signiicado e elementos formais da poesia), a música, o ritmo e a interpretação cinética” (VATSYAYAN, 1994, p. 5), os quais, internalizados e encenados em conjunto, possibilitam ao artista realizar a arte do abhinaya. Detalha também uma série de procedimentos dos quais os dançarinos podem se valer, partindo das sugestões de imagens que as poesias evocam. Narayanan (COORLAWALA et al., 2016) demonstra que na iniciação em bharatanatyam aprendia sem muita sistematização, como se houvesse poucos parâmetros para se apoiar. Quando começa a ensinar abhinaya para dançarinas mais jovens, devido à busca dessas por uma expressão menos igurativa, procura se apoiar em sua memória, em estudos dos tratados artísticos e em cursos com outros artistas. No legado de Narayanan encontram-se questões fundamentais para se aprofundar a arte de abhinaya no teatro-dança da Índia: ao transitar pelas diferentes temporalidades permitidas pela interpretação do texto, o intérprete trabalha mais com a evocação de estados mentais, do que com a interpretação de um personagem especíico. Para compreender a obra de Narayanan, é importante reconhecer três conceitos, ou níveis dos planos expressivos. São eles: pada-artha, vakya-artha e sanchari. No primeiro, o dançarino traduz em gestos cada palavra do texto, no segundo ele retrata o sentido de cada verso, e no terceiro nível, um verso é cantado repetidas vezes pelo músico, permitindo ao 13 Cf. o assunto na obra de Cippiciani (2015), que oferece uma boa interpretação a respeito das nuances de Abhinaya. 14 No original: “She sees the performance of external actions as dramatization or mime. She sees sanchari, as the development of leeting personalized (as opposed to generic) responses. Because the responses can be individualized, within each style of dance, each dancer will nuance the narrative as she/he experiences the bhava. [Skilled performers trust their knowledge enough to allow themselves to improvise responses that are tuned to the moment and sensitivities of the audience.] his notion of sanchari as technique of spinning out streams of relections, is not so speciied in the Natyashastra of Bharata where sanchari are equated with leeting emotions, vyabhicharibhava. In dance, many current usages of terms in the Natyashastra reference current praxis rather than their hypothetical historical signiications”. artista transitar por diferentes temporalidades, o que confere bastante liberdade de ações e dá margem às improvisações (RAO, 2016). É justamente nesse último nível que Narayanan se aprofunda, estimulando em seus alunos a independência poética, de forma que, uma vez iniciado o verso, eles se tornam capazes de improvisá-lo ininitamente . Além disso, sanchara, na música carnática do sul, é um termo que se refere à maneira de explorar o terreno de um raga (ou notas musicais) com um andamento particular, geometria, progressão, pausas (RAO, 2016). Nesse terreno em diálogo com a música, o artista cênico torna-se capaz de evocar os planos expressivos. A artista diferencia, ainda, dois tipos de trabalho sobre os planos expressivos: um convencional, que consiste em elaborar ações (externas), tais como “[...] escalar uma montanha, matar um demônio, ser perfurado por lechas de amor [...]”, em oposição à “[...] técnica de escavar paisagens interiores de emoção” (COORLAWALA et al., p. 58). Dessa maneira, ela vê o desempenho de ações externas como dramatização ou mímica. Vê sanchari, como o desenvolvimento de respostas passageiras personalizadas (em oposição às genéricas). Como as respostas podem ser individualizadas, dentro de cada estilo de teatro-dança, cada artista irá matizar a narrativa enquanto experimenta as emoções. (Os artistas qualiicados coniam no seu conhecimento o suiciente para permitir improvisar respostas que são sintonizadas com o momento e sensibilidade do público). Essa noção de sanchari como técnica de girar luxos de relexões não é tão especiicada no Natyashastra de Bharata, no qual os sanchari são equiparados a emoções fugazes, os vyabhicharibhava. No teatro-dança, muitos são os usos atuais de termos na praxis de referência do Natyashastra, em vez de relacioná-los as suas signiicações históricas hipotéticas 14 (COORLAWALA et al., p. 58). 20 Pitágoras 500 10º número 2016 volume 2 Com isso, Coorlawala et al. (2016) colocam uma questão interessante, pois grande parte da classe artística se apoia no consagrado tratado cênico Natyashastra, um dos pilares teórico-conceituais do bharatanatyam. No entanto, o que Narayanan propõe é uma interpretação crítica e diacrônica do mesmo. Além disso, uma de suas maiores contribuições, e que a torna transgressora para sua época, é o aprofundamento em composições outrora negligenciadas, devido ao seu caráter erótico. Em seus anos de estudos, observa um número considerável de padams e javalis que não foram musicados e, consequentemente, encenados, sendo que a maioria deles retratam as Nayikas (aspectos do feminino), que para a artista são essenciais para quem deseja se aprofundar nos planos expressivos. Segundo seu ponto de vista, em uma performance deve-se dar maior ênfase às obras coreográicas que tenham Sringara Rasa como tema central, pois é o que permite maior espectro de expressão dos rasas15. Sringara não é apenas o elemento erótico aplicado aos seres humanos. A arte indiana, especialmente, é de uma natureza profundamente religiosa, deve notar-se que Sringara também é o amor de um humano para o Eterno. Pode mos- Experiência estética e sentimento expresso em cena (RAO, 2016). No original: “Sringara is not merely the erotic element as applied to human beings. Indian art especially is of a deeply religious nature, it must be noted that Sringara is also the love of a human for the Eternal One. It can show the anguish of being separated from him, the soul’s search and its anguish to be reunited with him. All great artistes in the ield of poetry, sculpture, painting and dance have taken refuge in Sringara. his is because it allows for imaginative depiction. Great composers like Jayadeva, Kshetrayya and others have composed songs in Sringara rasa. hey have treated themselves as Nayika and God as the Nayaka, because the closest relationship possible is that of man and woman whether as husband and wife or as Nayika and Nayaka, the lover and the beloved”. 17 Essa é uma questão apresentada na obra Natyashastra, mais especiicamente nos capítulos VI e VII, que tratam das técnicas de exposição das emoções, diferencia a expressão dos estados emocionais, daqueles que lhe originam, bem como as emoções transitórias. Mais detalhes, cf. CIPPICIANI, 2015. 18 No original: “In our Indian Culture we never talk out about love, we might feel it, we might enjoy it but we won’t talk much about it. So when we are talking to her about making love we don’t have the guts to face her, or we feel shy to tell her to our face, but that’s why you’re triyng to get your eyes from her”. 15 16 trar a angústia de ser separado dele, a busca da alma e sua angústia para se reunir com ele. Todos os grandes artistas no campo da poesia, escultura, pintura e dança se refugiaram em Sringara. Issoocorre porque ele permite uma representação imaginativa. Os grandes compositores como Jayadeva, Kshetrayya e outros compuseram músicas em Sringara rasa. Eles se trataram como Nayika e Deus como o Nayaka, porque a relação mais próxima possível é a do homem e da mulher, seja como marido e mulher ou como Nayika e Nayaka, o amante e o amado (NARAYANAN, 1994, p. 19)16. Narayanan (1994), contudo, não declara abertamente a razão pela qual compreende a escassez de representação das nayikas, mas pode-se depreender que se deve ao conteúdo explicitamente sexual que tais poemas evocam, mais especiicamente os rati bhava, i.e., o elemento erótico causador da expressão amorosa (sringara rasa)17. Isso não quer dizer que no âmbito da representação ela não siga os parâmetros estéticos dos tratados artísticos, aconselhando, inclusive, uma interpretação alegórica da intimidade entre uma mulher e um homem, tal qual a proximidade almejada entre uma pessoa devota para com seu Deus. Na nossa cultura indiana, nunca falamos sobre o amor, podemos senti-lo, podemos gostar dele, mas não falamos muito sobre isso. Então, quando estamos falando [personagem Krishna] com ela [a personagem Radha] sobre fazer amor, não temos a coragem de enfrentá-la, ou nós nos sentimos tímidos para dizer a ela, no nosso rosto, e é por isso que você está tentando tirar seus olhos dela18 (NARAYANAN, 2008). 21 Pitágoras 500 10º número 2016 volume 2 Em entrevistas, quando explica seu método, ou mesmo quando fala sobre sua relação com a dança, Narayanan demonstra que se apoia nos padrões de sua cultura, na referência à mãe e nas relações com as devadasis, de quem tomou as lições na juventude. Conforme Coorlawala et al.: O que ela nos deu foi formas de reconstruir poemas históricos, estudando seus contextos, dependendo também da imaginação e da observação humana. Graças, em grande parte, à sua orientação, agora somos tratados com interpretações de mulher a mulher, ao contrário dos desempenhos pós-independência anteriores, que já foram inluenciados pelos olhares masculino e colonial19 (COORLAWALA et al., p. 56). Basicamente, você treinou seus alunos para pensar por si mesmos através das danças. É o que acontece quando executam. Eles não estão apenas reproduzindo o que você ensinou. Essa é uma grande diferença, entre seus alunos e outros. Você faz exame de com todo o processo de criar o abhinaya, não apenas a parte inal do processo. Você está dando a eles a capacidade de fazê-lo por conta própria20 (COORLAWALA et al., p. 56). 19 No original: “What she gave us were ways to reconstruct historical poems by studying their contexts, while relying also on imagination and human observation. hanks in large part to her mentorship, we are now treated to woman-to-woman interpretations unlike earlier post-Independence performances, which had already been inlected by the male and colonial gazes”. 20 No original: “Basicamente, você treinou seus alunos para pensar por si mesmos através das danças. É o que acontece quando executam. Eles não estão apenas reproduzindo o que você ensinou. Essa é uma grande diferença, entre seus alunos e outros. Você faz exame de com todo o processo de criar o abhinaya, não apenas a parte inal do processo. Você está dando a eles a capacidade de fazê-lo por conta própria”. 21 No original: “I feel that traditions should be tested in the sunlight”. 22 No original: “She has danced; choreographed; designed exhibitions, posters, logos, graphics; conducted workshops with development and feminist groups; written poems, tracts, essays, and a novella; travelled widely and committed herself to the ‘art of living’ in a highly original and creative way” Seus ensinamentos se expandiram para outros estilos de teatro-dança, como ela mesma explica, ao airmar que adequava os gestos e as letras das canções de acordo com cada especiicidade cultural que aquele estilo carrega, porém com a consciência de que as emoções são universais e, que o mais importante, e nisso dialoga ielmente com os propósitos da estética de rasa, é evocar emoções que possam despertar algo no público. Ao longo de sua vida, Kalanidhi Narayanan foi agraciada com três grandes prêmios pelas maiores organizações de apoio e promoção às artes na Índia (Padma Bhushan em 1985, Sangeet Natak Akademi em 1990 e Kalidas Samman em 1998). Chandralekha: Transgressão na Subversão Eu sinto que as tradições devem ser testadas à luz do sol 21. Chandralekha (1928-2006) foi uma artista, coreógrafa, feminista e ativista nascida no vilarejo Wada, no estado de Maharashtra/Índia. Iniciou sua carreira como dançarina de bharatanatyam, tendo sido iniciada pelos mestres Kanchipuram Ellapa Pillai (1908-1974) e pela devadasi Balasaraswati (1918-1984). Entre 1972 e 1984 abandona a dança e passa a trabalhar no ramo de comunicação visual para ativistas em um setor não-governamental. Conforme Barucha, autor da biograia Chandralekha: Woman, Dance, Resistance, a artista foi erroneamente reconhecida com a proissão principal de dançarina, pois realizou atividades bastante diversas, tais como: [...] elaboração de coreograias, projetou exposições, cartazes, logotipos, gráicos, workshops com grupos de desenvolvimento e feministas, escreveu poemas, tratados, ensaios e uma novela, viajou amplamente e comprometeu-se com a “arte de viver” de uma forma altamente original e criativa22 (BARUCHA, 1995, p. 1). 22 Pitágoras 500 10º número 2016 volume 2 Apesar de ter tido reconhecimento em vida, a exemplo dos prêmios Dança Criativa pela Sangeet Natak Akademi em 1990-1991, atravessou momentos de muitas críticas, tanto em relação às escolhas pessoais, quanto pelas opções artísticas. Nunca se casou, mas viveu com uma celebridade artística, Harindranath Chattopadhyay (1898-1990), e outro homem, fato que gerou controvérsias e julgamentos. No teatro-dança bharatanatyam reconhecia uma força expressiva, mas criticava a técnica pela técnica e a representação de narrativas descontextualizadas das crises existenciais humanas de seu tempo. No artigo Relections on New Directions in Indian Dance, relembra seu primeiro estranhamento com o palco, quando estreou sua carreira em um recital público, que era parte de um programa de caridade. Eu estava dançando Mathura Nagarilo, retratando o rio Yamuna, a brincadeira de jogar água nas amigas, a sensualidade, a luxúria e a abundância das águas. De repente, paralisei com a constatação de que estava retratando toda essa profusão de água no contexto de uma seca. Lembrei-me das fotograias nos jornais de terra rachada, de ilas longas e sinuosas de pessoas à espera de água com pequenas latas na mão. Aqui, Guru Ellappa estava cantando Mathura Nagarilo. A arte e a vida pareciam estar em conlito. O paradoxo foi impressionante. Por essa fração, eu estava dividida, dividida em duas pessoas23 (CHANDRALEKHA, 2010, p. 374). No original: “I was dancing Mathura Nagarilo depicting the river Yamuna, the water-play of sakhis, the sensuality, the luxuriance, and abundance of water. Suddenly, I froze, with the realization that I was portraying all this profusion of water in the context of a drought. I remembered photographs in the newspapers of cracked earth, of long, winding queues of people waiting for water with little tins in the hand. Here, Guru Ellappa was singing Mathura Nagarilo. Art and life seemed to be in conlict. he paradox was stunning. For that split second I was divided, fragmented into two people”. 24 No original: “[…] harsh realities of life”. 25 No original: “[…] a circuit of energy in which the feet can be said to be holding the Earth. More than a movement, mandala is a principle in which the body is realised as the very centre of the cosmos itself ”. 26 No original: “Only when we are able to see the cosmos not as some external point of reference but something contained within us, only when we begin to see the body as mandala, then only can we hope to fully participate in the aesthetics of our dance Tal fato desencadeou em uma cisão “crucial”, termo ao qual se refere para caracterizar a contradição percebida entre a rica herança cultural da Índia e as “[...] duras realidades da vida24 ” (CHANDRALEKHA, 2010, p. 374). Essa consciência de uma cultura plena de abundância e sensualidade, derivada das paisagens naturais e propagada por séculos nas artes hindus, revela as contradições de uma arte não representativa da vida e dos contrastes sociais. Barucha (1995, p. 58-59) identiica essa visão peculiar de Chandralekha na própria técnica de bharatanatyam, a exemplo da percepção que tinha sobre a mandala (ou aramandhi), compreendida usualmente como uma postura de base, na qual os tornozelos e os joelhos são rotacionados para as laterais, enquanto a coluna permanece ereta. No entanto, para Chandralekha se trata de uma posição que põe em movimento um circuito de energia, na qual os pés “[...] estão segurando a terra. Mais do que um movimento, a mandala é um princípio em que o corpo é realizado como o próprio centro do próprio cosmos” 25(BARUCHA, 1995, p. 58-59) . Tal fato demonstra a percepção de que a técnica só ganha sentido quando compreendida a partir de uma consciência mais holística do corpo inserido no espaço. Nas palavras da artista: Somente quando podemos ver o cosmos não como um ponto de referência externo, mas algo contido dentro de nós, somente quando começamos a ver o corpo como mandala, só podemos esperar participar plenamente da estética de nossa tradição de dança (CHANDRALEKHA apud BARUCHA, 1995, p. 59). 23 Um outro aspecto que a fez se distanciar do teatro-dança tradicional foi o desconforto das vestimentas, tendo começado a usar tecidos mais leves, assim como as devadasis dos templos usavam (CHANDRALEKHA, 2000). Declara que gostava de dançar, mas não do “espetáculo” em si, porém não tinha nenhuma referência externa que a auxiliasse a compreender o que estava buscando. Tal personalidade questionadora a levou a experimentar formas 23 Pitágoras 500 10º número 2016 volume 2 mais livres de expressão e novas linguagens a partir dos princípios do yoga, da arte marcial kalarippayatt e do teatro-dança bharatanatyam. A partir de Angika, Chandralekha trilha um caminho não explorado e passa a buscar alternativas para o corpo no espaço cênico. Por exemplo, a inluência do yoga a auxilia a usar mais o espaço do chão e a inserir movimentos extremamente lentos, carregados de tensão, a inserir temas ligados à integração do feminino com o masculino e as diferentes qualidades de energia que cada princípio carrega, como pode ser visto em seu trabalho Sharira: Fire and Desire (2000). Em um trecho dessa obra, uma dançarina realiza contorções com o corpo e gestos com as mãos que se assemelham às imagens simbólicas do princípio feminino, com isso busca levantar a seguinte questão: como maximizar a energia do corpo e como podem coexistir num mesmo corpo a sensualidade, a sexualidade e a espiritualidade? Em suas próprias palavras, “no corpo, não há diferença entre sensualidade, sexualidade, espiritualidade”(LALL, 2007)27. Para tanto, explora as possíveis relações entre a geometria do corpo e a geometria do cosmos. Busca tipos de contato a partir das visualidades, cria tensões a partir da presença de dançarinos que se olham, olhos nos olhos, e a relação que se estabelece entre eles. Lábios de homens que quase se tocam. Propostas que tiveram uma recepção estranha a um público que espera encontrar códigos reconhecíveis. Em geral, o repertório coreográico dialoga profundamente com a relação do corpo com a criação, com a vitalidade do feminino e do masculino presente nas formas: 27 No original: “In the body there is no diference between sensuality, sexuality, spirituality” 28 No original: “In the body there is no diference between sensuality, sexuality, spirituality […] the three are amalgam, we need all that, we need all those to harmonize ourselves, and not to become dry, and not to make compartments in our body. […] I feel the feminine principle is primal according to our culture, our texts, our religious authorities, feminine principle is primal because the entire creation – and by creation I don’t mean procreation, I don’t mean give bearth to children – I mean the entire creation, the entire vegetation, […] everything comes from procreation”. No corpo não há diferença entre sensualidade, sexualidade, espiritualidade [...] as três são amálgamas, precisamos de tudo isso, precisamos de todos aqueles que nos harmonizem e não se tornem secos e não façam compartimentos em nosso corpo. [...] Eu sinto que o princípio feminino é primordial de acordo com a nossa cultura, nossos textos, nossas autoridades religiosas, o princípio feminino é primordial porque a criação inteira - e por criação não quero dizer procriação, não quero dar a luz às crianças - Quero dizer, toda a criação, toda a vegetação, [...] tudo vem da procriação28(CHANDRALEKHA apud LALL, 2007) . Percebe-se no percurso das obras de Chandralekha a busca por tornar o teatro-dança livre de idealizações do papel do feminino, do esoterismo e das demandas de um mercado comercial. Dá vazão ao engajamento do corpo rumo ao encontro da própria tradição, mas uma tradição como pré-requisito para a renovação de suas energias na vida diária. Para isso, há que revelar suas “[...] contradições, conlitos, tensões, deslizamentos e rupturas” (CHANDRALEKHA, 2010, p. 381). Conclusão Esta breve incursão na trajetória das duas artistas indianas permite reletir a respeito da universalidade de algumas questões da encenação no campo social e artístico, e como outras estão diretamente vinculadas ao contexto que lhe originou. Permite, igualmente, compreender as formas artísticas da Índia de maneira mais humana, e menos exótica. A aproximação de Narayanan e Chandralekha, com trajetórias de vida e obra tão diferentes uma da outra, foi possível pela consciência da marginalização e discriminação social das mulheres e da busca por uma expressão artística contextualizada. A saída que ambas encontraram foi pela imersão nas possibilidades do corpo e da imaginação, a expressão da sexualidade e da sensualidade que lhes são inerentes. 24 Pitágoras 500 10º número 2016 volume 2 Em Kalanidhi Narayanan essa questão é menos explícita do que em Chandralekha, mas a potência do discurso que lhes origina pode ser observada quando se olha mais a fundo. Uma última consideração que se colocar é, se se pode ver, por um lado, uma Índia moderna ambivalente, que absorve e ao mesmo tempo evita reproduzir valores ocidentais, por outro, a participação de artistas como Narayanan e Chandralekha na sociedade é fundamental para um olhar contemporâneo, no qual essa mesma cultura pode se redescobrir naquilo que tem de mais valioso: um legado humano milenar. Na discussão contemporânea se coloca: reconhecer a importância da cultura das devadasis, reletir sobre as relações com o Ocidente, o risco de se propagar uma arte engessada, e a consciência de que não é necessário responder aos exoticismos. Encontrar esse equilíbrio talvez seja a grande tarefa para as próximas décadas. 25 Pitágoras 500 10º número 2016 volume 2   BARUCHA, Rustom. Chandralekha: Woman, Dance, Resistance. New Delhi: Indus, 1995. BONFITTO, M. A cinética do invisível: processos de atuação no teatro de Peter Brook. São Paulo: Perspectiva, 2009. 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Sharira - Chandralekha’s Explorations in Dance (2007). Direção: Ein Lall. Public Service Broadcasting Trust, New Delhi, India. 1 DVD. color. son. 30 min. Abstract he article presents a relection on the Indian theater-dance bharatanatyam and the postcolonial context from the trajectory of two artists: Kalanidhi Narayanan (1928-2016) and Chandralekha (1928-2006). Both transgressed the current tradition in search of the vitalizing principles of the Hindu culture, highlighting the representation of the feminine and the need to (re)think art in dialogue with contemporaneity. Keywords Indian theater-dance; tradition; transgression. 27