Música em
Contexto
TRANSGRESSÃO E MÚSICA
Hugo Ribeiro
Universidade Federal de Sergipe
Universidade de Brasília
[email protected]
Resumo: Este artigo faz uma revisão do termo transgressão em
diversas áreas das ciências humanas e sociais com a inalidade
de compreender seu signiicado para as artes e, principalmente, na música. Nesse contexto, são revisitadas desde as rupturas
paradigmáticas da música renascentista até a chamada música
contemporânea. Em seguida, ao englobar o estudo da transgressão na música popular, torna-se claro que, não sendo inseparável de seu contexto, a música associa-se a uma ininidade
de elementos externos para agregar-lhe signiicados diversos.
Dessa forma, a relação entre transgressão e música passa tanto pela necessária análise dos elementos musicais (inerentes),
quanto os elementos extramusicais (delineado), identiicando
a coerência ou a incoerência entre a ideologia subjacente e o
produto musical resultante.
Palavras-chave: música, etnomusicologia, contracultura, transgressão.
Transgression and Music
Abstract: This article reviews the term transgression in several areas of the humanities and social sciences in order to understand
their signiicance to the arts and especially music. In this context,
paradigmatic ruptures from Renaissance to contemporary music
are revisited. Then, to encompass the study of transgression in
popular music, it becomes clear that, being inseparable from its
context, music can be associated to a multitude of foreign elements that aggregate diferent meanings to it. Thus, the relationship between transgression and music must take into account
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both the analysis of musical (inherent) and extra-musical elements
(outlined), identifying the consistency or inconsistency between
the underlying ideology and its resulting musical product.
Keywords: music, ethnomusicology, counterculture, transgression.
Introdução
O ato da transgressão ou subversão (interpretado como sinônimo neste artigo) pode ser considerado um universal do comportamento
social humano. Contudo, isso não signiica que todo ator social subverta
as normas a todo o momento. É a dialética entre o aceitar e o subverter
a norma que nos impulsiona em direção a uma identidade pessoal ao
mesmo tempo em que permite que nos identiiquemos como grupo. É
essa capacidade, ou melhor, essa necessidade de questionar e propor
mudanças que talvez mais nos caracterize como seres humanos. Na introdução do livro “Contracultura através dos tempos”, Timothy Leary assim inicia seu texto:
A contracultura loresce sempre e onde quer que alguns membros de
uma sociedade escolham estilos de vida, expressões artísticas e formas de pensamento e comportamento que sinceramente incorporam o antigo axioma segundo o qual a única verdadeira constante
é a própria mudança. (Gofman e Joy 2007, 9)
O autor assume, dessa forma, que a mudança seja um universal
da cultura, que a música é parte essencial e presente em todas as culturas humanas e que o surgimento de contraculturas no seio de sociedades já bem estabelecidas provavelmente indicaria mudanças musicais.
Todavia, é preciso lembrar que existem diversos fatores que podem contribuir para inibi-la, tal como Bruno Nettl nos alerta:
Somos tentados a perguntar por que a música muda ainal, mas se a
mudança é uma norma da cultura e na música, nós deveríamos perguntar a questão oposta, ou seja, levando em consideração todas as
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possibilidades mencionadas, se há culturas ou condições sociais nas
quais a música não muda, ou nas quais a mudança é enormemente
inibida. (Nettl 1983, 178)
Muitos fatores devem ser levados em consideração quando discutimos a questão da mudança musical. Um dos principais está na clara
distinção entre mudanças ocorridas em elementos musicais (na sintaxe sonora) ou elementos extramusicais – esse assunto será aprofundado posteriormente. Há, ainda, a diferenciação entre mudança no estilo
musical (as regras de composição ou nas características abstratas da
música) e no conteúdo (notas ou acordes diferentes, de acordo com as
possibilidades estilísticas).
O presente texto tem interesse na transgressão do estilo musical.
Ou seja, que fatores socioculturais levam determinados grupos a mudar
ou subverter padrões do que é aceito como música por grande parte
da sociedade (ou especialistas/formadores de opinião). Para chegar a
esse problema essencial, uma revisão bibliográica mais abrangente se
fez necessária, de forma a organizar o suporte teórico que irá guiar as
relexões pretendidas. Nesse sentido, é importante revisar os conceitos
de hegemonia (Gramsci), habitus (Bourdieu) e fronteiras culturais (Barth).
Em seguida, serão discutidos alguns exemplos de estudos sobre práticas
culturais transgressoras, desde a visão sociológica do termo quanto estudos da psicologia, inalizando com exemplos e questionamentos sobre estudos que relacionam transgressão e música.
1. Conceitos
Obviamente, se se pretende um estudo de práticas transgressoras, a primeira pergunta que se faz é: transgressor em relação ao quê?
No presente estudo, a transgressão está relacionada ao questionamento
dos comportamentos hegemônicos, a partir do entendimento de Gramsci desse conceito. Como disse Jones (2006, 41), hegemonia é um termo crítico mais sensível e dessa forma mais útil que o termo “dominação”
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de Marx, o qual, segundo o autor, falha em reconhecer o papel ativo das
pessoas subordinadas na disputa de poder. Uma das possíveis interpretações de hegemonia em Gramsci relaciona o processo educativo com
uma agenda política de certa classe social, cuja autoridade, conquistada
ou imposta, determina como se dará a interpretação do mundo, como
explica Monasta:
Ao adquirir a concepção própria de mundo, alguém pertence sempre a um grupo particular que é composto de todos aqueles elementos sociais que partilham do mesmo modo de pensar e de agir. Todos somos conformistas, de uma forma ou de outra, conformados
ao homem de massa ou ao homem coletivo. O que é preciso saber
é: de que natureza histórica é essa conformidade ou essa massa humana a que pertencemos? (Monasta 2010, 25)
É o que Foucault identiica ao airmar que “todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modiicar a apropriação
dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo”
(2010, 44). Ruby (1998) deixa essa relação ideológica mais clara ao rever
o posicionamento de Gramsci:
Ao propor o conceito de hegemonia, Gramsci faz os intelectuais
entrarem na dinâmica de classes da qual se acreditavam isentos,
sem jamais cair, entretanto, num aintiintelectualismo vão. Os intelectuais tradicionais são considerados “empregados” das classes
dirigentes, pois são formados em complexos de instituições, de
práticas e de aparelhos (escolas, universidades, museus, bibliotecas) nos quais se estabelece um consenso sobre o conjunto da sociedade. Esse consenso passa por normas sociais experimentadas.
Mas, além dessas, a função intelectual tem um sentido ‘orgânico’,
porque os intelectuais estão organicamente ligados à sua classe e
desempenham nela o papel de organizadores políticos. No que a
hegemonia deine um processo de imposição incluído nas lutas de
classes. (Ruby 1998, 127--128)
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Outro conceito bastante útil para nossa discussão é o habitus,
revisitado por Pierre Bourdieu, para quem seria “um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências
passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções,
de apreciações e de ações” (Bourdieu 1983, 65). Seria, portanto, a interiorização das formas de pensar o mundo, a partir das quais o grupo social
no qual se está inserido produz suas práticas sociais, assim como a formação de um conjunto de esquemas práticos de percepção, apreciação
e avaliação dessas práticas (Criado 2004). Sob esse ponto de vista, ninguém é totalmente livre, pois o próprio querer e o impulso de fazer algo
é, de alguma forma, inluenciado pela familiaridade e pelo costume que
temos com determinadas práticas culturais. Ao mesmo tempo, ninguém
está determinado a fazer algo sempre da mesma maneira, pois o habitus
não é um determinante, mas um conjunto de probabilidades que podem combinar-se de diversas formas, gerando uma coleção de práticas
distintas, mas reguladas por um limite social.
As noções de habitus e hegemonia nos ajudam a compreender
por que as pessoas tendem a reproduzir comportamentos e agir de
acordo com normas tácitas ou bem deinidas. Esse é tanto um processo
de identiicação e aceitação social quanto de legitimação. É o que Bourdieu identiica ao reconhecer que existe um campo determinado dos
possíveis legítimos,1 em um dado momento temporal, que é permitido
a alguém, “do que ele pode permitir-se razoavelmente, sem passar por
pretensioso ou insensato” (Bourdieu 1996, 294). Ou, como bem colocou
Foucault (2010, 9), “sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo,
que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer
1
“A relação subjetiva que um escritor (etc.) mantém, em cada momento, com o espaço dos
possíveis, depende muito fortemente dos possíveis que lhe são estatutariamente conferidos
nesse momento, e também de seu habitus, que se constituiu originariamente em uma posição
que implica, ela própria, certo direito aos possíveis. Todas as formas de consagração social e de
destinação estatutária, as conferidas por uma origem social elevada, por um signiicativo sucesso
escolar ou, para os escritores, pelo reconhecimento dos pares, tem por efeito aumentar o direito aos
possíveis mais raros e, através dessa segurança, a capacidade subjetiva de os realizar praticamente.”
(Bourdieu 1996, 294)
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um, enim, não pode falar de qualquer coisa.” Há, em ambas as percepções, um elemento de coerção social que inibe determinados atos ou
discursos, criando tabus e disseminando práticas de exclusão. É como
o discurso do louco, excluído socialmente, mas, por vezes, revestido de
verdade mascarada e cuja transgressão é somente aceita por ser considerada patológica e tida como exceção (Foucault 2010).
Todavia, apesar desse impulso pela coletividade, certa necessidade de diferenciação por meio da formação e imposição de uma identidade própria, fomenta a elasticidade desse campo de possíveis legítimos
ou mesmo sua negação. Isto é mais fácil de ser visualizado e identiicado no confronto entre práticas semelhantes que procuram se irmar
enquanto representações legítimas de certo grupo social, evidenciando
uma ideologia implícita.
Barth (1969), por exemplo, defendia a tese de que as fronteiras étnicas são formadas, principalmente no encontro e relacionamento entre
grupos diferentes, pois tais fronteiras são sempre dinâmicas e renegociadas a cada nova situação. Por isso, é possível identiicar fronteiras identitárias mesmo em sociedades que permitam uma mobilidade interna.
Durante a interação entre diferentes grupos, um grupo mantém sua identidade ao eleger critérios e símbolos de pertencimento e exclusão, o que
permite a persistência das diferenças culturais em ambientes mistos. De
acordo com Barth (Ibid., 14--16), as dicotomias étnicas poderiam ser vistas
analiticamente como sendo de duas ordens: 1) símbolos públicos, visíveis,
isto é, fatores diacríticos que as pessoas procuram ou exibem para marcar
seu pertencimento; e 2) orientações básicas de valores, como os padrões
compartilhados de moralidade e excelência pelos quais uma performance
é julgada. Em suma, Barth está propondo a identiicação não só dos produtos culturais, como da ideologia que as rege.
Logo, o estudo da transgressão na música pode ser entendido
pela dialética do “pertencer, mas ser diferente”. Esse paradoxo está presente de forma bastante acentuada nas cenas musicais. Há, cada vez
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mais, um número crescente de expressões musicais que surgem dentro
de cenas, como um relexo dessa necessidade de identiicar-se com certos grupos, ao mesmo tempo em que se diferencia do vizinho. A música
torna-se, ao mesmo tempo, um símbolo de congregação e separação
cultural tal como bem expôs Stokes, pois “ela provê os meios pelos quais
as pessoas reconhecem identidades e lugares, e as fronteiras que as separam” (Stokes 1994, 5).
2. Estudos sobre práticas culturais transgressoras
Diversas áreas têm se dedicado ao estudo da transgressão, tais
como as ciências humanas (sociologia, antropologia, psicologia, educação, ilosoia, história, geograia); as ciências sociais aplicadas (arquitetura e urbanismo, direito, serviço social); a área de letras e linguística e, por
im, as artes.
De acordo com Bicchieri (2006), muito da literatura sobre normas
sociais enfatizam a questão da conformidade deliberada, em geral com
base em um processo consciente de balancear custos e benefícios em
uma decisão entre conformar ou transgredir. Contudo, segundo a autora, a experiência pessoal nos informa que “concordância é frequentemente automática e não relexiva”. Já a transgressão, é sempre um ato
relexivo, intencional.
Logo, transgressão pode ser entendida como atos discursivos
que cruzam fronteira ou violam limites, um ato profundamente relexivo
de negação e airmação (Jenks 2003). Contudo, como Foust (2010, 3--4)
bem coloca, o ato transgressivo não se limita a violar regras explícitas ou
não verbalizadas que mantêm uma determinada ordem social. A ameaça à ordem social vai além de exceder expectativas que governam o que
seja “normal”, pois, como a transgressão excede o senso de normalidade,
ela ameaça o imperativo comunal pela conformidade.
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E, apesar de sua etimologia ser inócua (cruzar limite), Cliford nos
alerta que há muito esse termo está carregado com uma conotação
negativa, essencialmente moral (1987, 224). Ou seja, a relação entre a
transgressão e o que é transgredido é sempre mediado por alguma forma de julgamento. Assim, a transgressão ilumina e de certa forma cria
o limite que ela transgride, pois, ao tempo em que atos transgressivos
tendem, de certo modo, a negar fronteiras, eles as enfatizam, ao deixar
claro as linhas que separam, e logo deinem o que a sociedade entende
por normal ou anormal, saudável ou doente, o privado e o público, como
já demonstrou Foucault em seus textos.
Em seu livro sobre a crítica social, Bottomore (1970) contextualiza o período contemporâneo associando a moderna crítica social com
os movimentos de protesto, e é, atualmente, difícil de identiicar uma
linha divisória (p. 16). Um exemplo claro dessa relação está no movimento punk, cuja ideologia anarquista tem uma profunda raiz na crítica social.
Ao abordar os atos transgressivos como modos de resistência,
Foust (2010) nos informa que, ao operar por meio da transgressão,
movimentos e atos anarquistas têm inspirado a crítica social, particularmente àqueles que têm a hegemonia como uma forma natural de
orquestrar a mudança social. Tal visão de mudança social a partir do
posicionamento hegemônico tende a contestar a eicácia da transgressão ao fazer emergir questões tais como: “Deveriam os manifestantes
trabalhar por mudança a partir de dentro ou de fora do sistema? Ou
“É melhor defender a reforma ou a revolução?” (Foust 2010, 5).
Alguns textos tendem a enfatizar a transgressão, ou potencial
de mudança social, como uma característica das culturas juvenis (Catani e Gilioli 2008) ou típico da adolescência.2 Como diz Buzzi (1993,
2
Catani e Gilioli (2008, 16) escrevem que “ainda é recente a percepção das diversas manifestações
das culturas juvenis como produtos próprios do jovem e não como meros ‘desvios’ das normas
sociais. Isso implica considerar que os jovens são capazes de produzir uma cultura autônoma, que
não apenas imita o mundo adulto e suas instituições tradicionais (escola, Estado, família, empresas,
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167), “a população juvenil sempre se caracterizou por uma propensão
transgressiva maior em relação às normas morais e legais da sociedade”. Esse imperativo pode ser melhor caracterizado nas recentes cenas
juvenis urbanas, cujas inluências são moldadas pela rápida difusão midiática (Rocha 2008) e possibilidade de contato com grupos semelhantes em outras regiões da cidade, estado, país ou mesmo do planeta,
como identiicou Hobsbawn ao abordar a revolução cultural surgida
no pós-guerra (Segunda Guerra). Para o autor, uma das novidades dessa “nova cultura jovem nas sociedades urbanas foi seu espantoso internacionalismo” (Hobsbawn 1994, 320), tendo como marcas principais o
blue jeans e o rock.
Difundiam-se através da distribuição mundial de imagens; através dos contatos internacionais do turismo juvenil, que distribuía
pequenos mas crescente e inluentes luxos de rapazes e moças de
jeans por todo o globo; através da rede mundial de universidades,
cuja capacidade de rápida comunicação internacional se tornou
óbvia na década de 1960 [...] Passou a existir uma cultura jovem
global. (Hobsbawn 1994, 321)
Essa característica urbana dos atos transgressivos juvenis pode
se entendido, em parte, pela capacidade de diluir-se no anonimato
quando se envolvem em grupos com ideologia semelhante. Tal característica, apesar de ser possível e inclusive plausível de acontecer em
ambientes predominantemente rurais, ainda não foi suicientemente
documentado. Textos que abordam a juventude rural tendem a focar,
principalmente, a problemática relacionada ao interesse migratório
desses para áreas urbanas e questões sobre agricultura familiar (Carneiro e Castro 2007). De acordo com Catani e Gilioli (2008, 49), “a juventude é pouco signiicativa como etapa de vida em regiões rurais”, em
razão da necessidade de um rápido amadurecimento, de uma rápida
passagem da infância para as responsabilidades da fase adulta.
sindicatos etc.), mas articula estas últimas de acordo com parâmetros próprios, conigurando
novas formas de cultura.”
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Essa visão da juventude enquanto grupo ativo de mudanças sociais em diversos períodos e episódios da segunda metade do Século
XX é também abordada no livro de Brandão e Duarte (2004), no qual os
autores discutem desde as lutas por direito civis, ao questionamento dos
padrões conservadores do pós-guerra. Entre os diversos movimentos juvenis, podemos destacar o surgimento do rock’n’roll, das canções folk e
de protesto, da geração beat, os hippies etc.
Todavia, seria muito simplista relacionar movimentos transgressores
somente à fase juvenil, pois muitos dos jovens que deram início a determinado movimento dito transgressor continuaram nele por toda a vida. Entretanto, há também casos nos quais pessoas mais velhas, iniciam novos movimentos questionadores. O que podemos concordar é que, comumente, é
na juventude que se dá início ao engajamento por uma ideologia transgressora, inluenciada por um convívio social que pode, ou não, estender-se por
outras fases da vida. O interesse tardio pela crítica, em geral, ocorre de forma
mais individual, com maior suporte teórico e capacidade argumentativa.
2.1 A transgressão na psicologia
A literatura da área de psicologia tende a relacionar atos transgressivos (não conformidade) com atos desviantes, ou no caso da juventude, com a delinquência. Neste último caso, desvios de comportamento que podem ter potenciais consequências criminais, tais como o uso
de drogas, agressividade, assaltos e prostituição.
Em diversos textos da área, a agressividade também está muito relacionada com a adolescência. Singer (1975a, 4) faz uma revisão
sobre os estudos até então que abordaram o tema e concorda que “a
noção mais comumente aceita de agressão diz que esta é um impulso
humano fundamental.” Todavia, Singer e os demais colaboradores procuraram outras respostas para os atos humanos agressivos, uma vez
que não há evidências para conirmar tal teoria de impulso de agressão. Para o autor,
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o fato de que a maior violência pessoal (oposta à violência militar
socialmente aceita) ocorra no seio da família sugere que o comportamento agressivo está mais estreitamente ligado a consequências emocionais de frustração de esperanças, imagens e tensões
cotidianas entre pessoas que têm relações importantes e complexas. (Singer 1975a, 5)
Ao aceitar o fato de que impulsos agressivos são aprendidos, sendo uns socialmente aceitos (e.g., Boxe), outros tidos como tabu (homem
que bate em mulher), haveria uma tendência ao controle da agressão,
seja por restrição midiática (violência nos ilmes) ou meios educativos
por inibição da agressão pelo medo do castigo, sentimento de culpa,
empatia e aceitação da diferença.
É interessante notar que sempre houve muita especulação sobre
a relação entre a violência em ilmes (e mais recentemente em jogos de
vídeo) e o estímulo à agressão (Singer 1975b). No Brasil, parece haver
ainda uma carência de estudos empíricos sobre o assunto. Um desses
estudos procurou mostrar o “efeito que assistir a um ilme com cenas
de violência tem sobre o comportamento agressivo de crianças, medido por meio dos enredos de estórias redigidas por essas crianças logo
após o ilme” (Batista, Fukahori e Haydu 2004, 96). Apesar de veriicar “um
aumento signiicativo no grau de agressividade expresso nas redações,
tanto no caso dos meninos quanto no das meninas”, as autoras concordam que os dados ainda são insuicientes para vir a ser utilizada como
modelo explicativo, invocando o necessário estudo do contexto cultural
de grupo ao lembrar que o que “é considerado como sendo violência ou
agressão para um determinado grupo social não o é, necessariamente,
para outro grupo” (Ibid., 69).
Singer (1975b, 68) também questiona a validação dos
experimentos por ele analisados ao ressaltar que “um exame
cuidadoso da literatura formalmente cientíica não apresenta dados
que permitam uma ligação entre a crescente violência nos Estados
Unidos e a apresentação de violência em icção ou noticiário de TV ou
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ilmes de escola.” Para o autor, a ocorrência de três grandes guerras
no período de 25 anos e a frustração de esperanças sociais (crise
econômica) “parecem fatores muito mais decisivos” (Ibid., 69). O autor
ainda faz uma crítica à forma como tais experimentos foram utilizados
e aos efeitos negativos de uma relação causa–efeito simplista, tais
como atos de censura.
Sob essa perspectiva, é importante a análise de César (1999, 1), ao
rever que,
Na Europa do século XIX e no Brasil das primeiras décadas do século
XX, a implantação das reformas higienistas nos centros urbanos foi
responsável pelo aparecimento de personagens que se encontravam à margem da ordem burguesa. Entre essas iguras marginais
estavam a família disfuncional, a jovem prostituta e o delinqüente
juvenil.
Para resolver o “problema” da delinquência juvenil, os reformistas
do início do século teriam desenvolvido diversos aparatos segregacionistas, entre os quais os asilos de menores ou as escolas de aprendizes
de marinheiro. Assim sendo, “formou-se uma teoria a respeito da delinquência juvenil que, delineada pelas práticas reguladoras da sociedade,
produziu tanto a igura da criança e do jovem estigmatizados, como
também o seu contra-modelo idealizado” (César 1999, 2). Logo, criou-se
o estigma do jovem ideal e do jovem delinquente, e dessa forma, todos
os adolescentes sob essa segunda classiicação estariam em posição de
risco, sujeitos a intervenção social. Entra em jogo, então, o controle social
para evitar o insucesso:
No início dos anos cinquenta, o psicólogo norte-americano Frederic Werthan publicou o livro Seduction of the Innocence,3 no qual
apontava o caráter nefasto da cultura de massas na determinação
do fenômeno da delinqüência juvenil, criticando o descaso do governo americano para com as evidências dessas inluências negati3
Frederic Werthan. Seduction of the Innocence. New York: Kennikat Press, 1953.
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vas. Para Werthan, os comics (histórias em quadrinhos) teriam uma
forte inluência sobre o comportamento criminoso, pois, segundo
ele, praticamente todos os adolescentes que, acusados de crimes,
passavam por tratamento no hospital psiquiátrico onde clinicava,
possuíam em seu histórico o intenso consumo deste tipo de literatura, com suas histórias recheadas de sexo e horror. (César 1999, 4)
De acordo com a visão do impulso agressivo freudiano, Pfromm
Netto (1976, 115) airma que “a educação busca, pois, não a eliminação
das manifestações de agressividade, mas a orientação da mesma para
canais construtivos, louváveis ou socialmente aceitos como justiicáveis”,
pois o sentimento agressivo, se não controlado pelo indivíduo pode levar tanto a atos de agressão social quanto à autoagressão. Interessante
notar a relexão que o musicólogo Tagg (2004) faz a respeito da falta dessas formas legítimas de expressar os sentimentos reprimidos, geralmente fundados em problemas de ordem social (econômica ou ideológica).
Dessa forma, “a invalidação de indivíduos que expressam dor e angústia
tornou-se comum para a sociedade em que [nós vivemos]”. Tais consequências vão desde a automutilação ao uso de drogas e antidepressivos. Para o autor, tal comportamento seria, então, um relexo de uma
sociedade regida pelo contínuo estímulo ao consumo e à relação entre
felicidade e sucesso inanceiro. Assim, muitas pessoas
especialmente as mais jovens, irão se sentir naturalmente desvalorizadas, acreditando que é sua falta se não forem bem-sucedidas,
se não tiverem um emprego, e se izeram seu caminho à frente das
pessoas e icarem na linha de frente. Sem um canal legítimo para a
angústia que este sistema causa, sua insatisfação e dor é desvalorizada e reprimida para que a dor auto-inlingida torne-se a única saída. Como Miller (1994) and Favazza (1986-1996) explicam, a auto-punição tem diversas funções: É uma expressão da dor emocional
e fornece alívio. Quando se constroem sentimentos intensos, estas
pessoas são tomadas por ele e incapazes de escapar. Ao causar dor,
reduzem a um nível suportável a estimulação emocional e psicológica. Os auto-mutiladores também têm um ódio enorme guardado
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dentro de si. Com medo de expressá-lo, eles se ferem como forma de
liberar estes sentimentos. [...] O verdadeiro horror é que a expressão
de angústia causada pela cultura e sociedade na qual os jovens crescem parece agora ter muito poucas formas legítimas de expressão
pública, e que a negociação deste conlito torna-se consequentemente impossível, ao ponto de aqueles que expressam esta angústia são clinicamente categorizados como cronicamente depressivos
e que necessitam de tratamento médico. (Tagg 2004)
As artes, em geral, têm um papel fundamental para a expressão
de sentimentos agressivos ou reprimidos, seja de forma passiva e relexiva (apreciador-fruidor) ou de forma ativa (artista-produtor). Ainda assim,
nem tudo é socialmente aceito. Como diz Scarpa (2007), “o ‘prazer’ em
olhar atos violentos é, no entanto, também regulamentado e limitado.
Enquanto que o prazer em assistir uma luta de boxe é socialmente aceitável, o prazer que alguém pode eventualmente ter em assistir ilmagens
de tortura ou de guerra seria rapidamente condenado.” Outras formas
artísticas (além dos ilmes e quadrinhos já citados) também são geralmente condenadas como subversivas, desviantes. Entre eles, podemos
destacar certos estilos musicais, que dão vazão a letras que abordam assuntos politicamente incorretos ou moralmente inadequadas, e é inclusive, em alguns casos, criminalmente processados pelo ato de apologia.
Exemplos são muitos, tais como o rap e o funk carioca, por exemplo, ao
abordarem assuntos como fetichização das mulheres, defesa a atos criminosos e ao dinheiro fácil. O raggae, por fazer apologia à maconha; o
punk, com a crítica social.
Logo, um dos grandes desaios dos textos que abordam a questão da transgressão seria, justamente, ir além de sua conotação negativa
e identiicar como os indivíduos ou grupos sociais utilizam a transgressão
como airmação da diferença e de sua individualidade. E é nesse ponto
que textos de áreas relacionadas à antropologia, sociologia e ilosoia diferem de textos da área médica, de psicologia ou do direito. Há uma tendência, nesses últimos, a enfatizar o questionamento sobre os limites e
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as consequências de tais atos, mediados por algum tipo de julgamento
moral. Entretanto, texts humanistas tendem a identiicar o que levou as
pessoas a praticarem tais atos ou assumir tal intenção, procurando desvelar como esse grupo percebe e exerce a noção de coletividade e diferença.
2.2 A transgressão nas artes
Isso nos remete a uma problemática mais próxima ao nosso interesse principal, que indaga como as obras de arte podem reletir ideologias e/ou sentimentos transgressores. A questão pode ser aprofundada
ao se identiicar como a transgressão pode estar presente no objeto de
estudo, ou seja, ser inerente à obra, ou estar de forma externa à obra, isto
é, somente associada a ela.4 Seria, portanto, a diferença entre uma peça
do “teatro do absurdo” e uma peça de teatro nos moldes tradicionais,
mas que aborde temas “proibidos” ou “politicamente incorretos”, tais
como incesto, estupro, nazismo, racismo ou descriminação.
Podemos, dessa forma, nos remeter ao im do Século XVIII, com a
literatura do Marquês de Sade, escritor libertino, famoso por sua prosa
erótica e questionadora da moral da época.5 Cerca de um século depois,
também na França, surge uma forma de teatro denominado de Grand
Guignol,6 caracterizado por peças teatrais feitas para chocar e causar
repulsa. Como nos informa Scarpa (2007, 17), “lá o público podia assistir peças com cenas de desmembramentos, gargantas cortadas, mutilações, em produções com pouco ou nenhum enredo”. Esse teria sido
provavelmente o precursor dos chamados ilmes exploitation:
Os exploitations de má reputação e, considerados por muitos de
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Em música, seria o que alguns chamam de elementos musicais e extramusicais ou signiicado
inerente e delineado (Green 1988).
Esse pode ser visto como um exemplo de transgressão associada ao objeto, pois o autor tratava os
temas tabu por meio de uma escrita tradicional. Diferentemente da poesia concreta, por exemplo,
que pode tratar de temas banais, mas com uma estrutura que subverteu o tradicional discurso e
estrutura poética, libertando-se do sentido único para um caráter variado e polissêmico.
http://www.grandguignol.com/
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mau gosto, eram aqueles que abordavam temas proibidos pela
censura e pelos mecanismos auto-reguladores da indústria tais
como: higiene sexual, nudismo, prostituição, strip-tease, uso de
drogas, atrocidades, exotismo pseudo-etnográico ou qualquer
outro assunto considerado de mau gosto. (Scarpa 2007, 20)
Essa indústria de ilmes exploitation, com toda uma série de
subdivisões temáticas, viria a se consolidar a partir da década de 1950
e deu origem a diversas produções que se tornaram referência, tais
como Mondo Cane (1962); Holocausto Canibal (1979); Faces da Morte (1979) e Guinea Pig 1: Devil’s Experiment (1985). Havia, também, os
ilmes snuf, que “são ilmes que demonstram alguma pessoa sendo assassinada de fato, realizado com o im de ser vendido enquanto forma
de entretenimento. Segundo esta deinição, a existência de ilmes snuf
nunca foi comprovada” (Scarpa 2007, 95). Interessante notar que tais
temáticas já foram incorporadas pelo cinema hollywoodiano em ilmes
como Eight Millimeter7 (1999), Hannibal8 (2001) e a milionária série Jogos Mortais9 (2004-2010). Filmes semelhantes têm sido produzidos nas
mais diversas culturas, desde a Indonésia (Imanjaya 2009) até o Brasil,
cujo principal expoente é o ator e cineasta José Mojica Marins, o Zé do
Caixão, com dezenas de ilmes produzidos e estrelados.
Nota-se, desta forma, que muitos desses movimentos de rompimento estético acabam sendo absorvidos pelas mídias em geral,
inluenciando a cultura hegemônica, da qual acabam por se tornar
parte ou, pelo menos, aceitáveis. Um exemplo claro disso é a atual
disseminação do uso de cortes de cabelo no estilo moicano, que foi
utilizado pelos punks no início dos anos 1980, como um simbolismo
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A existência dessa cultura de ilmes snuf tornou-se mais conhecida após o ilme Eight Millimeter
(1999), estrelado pelo ator Nicholas Cage, cujo enredo fala sobre um investigador particular que é
contratado para veriicar a veracidade de um ilme snuf.
Basta lembrar da famosa cena em que o protagonista, estrelado por Anthony Hopkins, abre a
cabeça de uma vítima, corta um pedaço do cérebro, frita e depois dá para a própria vítima comer.
Uma série de sete ilmes, cujos enredos são uma desculpa para uma série de automutilações feitas
pelos atores para tentarem sobreviver em um jogo sádico.
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da luta contra o sistema.10 Porém, atualmente, esse corte de cabelo foi
amplamente incorporado pela cultura fashion que o popularizou, sendo utilizado desde jogadores de futebol a crianças de classe média em
idade escolar.
Portanto, uma vez que um símbolo de questionamento ou de
transgressão se torna um padrão aceitável, novos símbolos surgem para
assumir o lugar de cultura underground. Como, por exemplo, o kitsch.
Entendida genericamente como arte de mau gosto, o kitsch assume o
papel de transgressor da arte.
O kistch é a imitação da arte, a falsa aparência, a cópia. Não a antítese da arte, nem a idéia oposta, nem o signo contrário. Geralmente,
usa-se o kitsch para designar determinadas obras que não atendem
a uma hierarquia de padrões e valores éticos, técnicos e estéticos,
que lhes dão o estatuto de obra de arte, mas que são a sua negação.
O kitsch, portanto, é a não-arte. (Cardoso 2008, 5)
Camp seria algo semelhante ao kitsch. De acordo com Sontag
(1987, 302), camp seria um tipo de sensibilidade, mas não um modo natural de sensibilidade, “es más, la esencia de lo camp es el amor a lo no
natural: al artiicio y la exageración. Y lo camp es esotérico: tiene algo de
código privado, de símbolo de identidad incluso, entre pequeños círculos
urbanos.” É a sensação sintetizada pela máxima “é tão ruim que é bom”.
Nesse caminho, segue a análise de Castellano (2010) ao aplicar a ideia de
camp estudar a cibercultura trash. Segundo a autora,
Aplicado ao estudo de bens culturais, o conceito camp contribui
para a compreensão do porquê de alguns artefatos considerados
“péssimos”, “bregas”, “horrorosos”, “toscos”, “nojentos” pelo público
em geral serem alçados a elementos de culto por uma minoria devota. (Castellano 2010, 284--285)
10 É dito que esse corte de cabelo está intimamente relacionado com um determinado grupo
indígena norte-americano chamado moicano que, durante as lutas com os “brancos”, preferia
morrer a se deixar dominar por eles. Daí a relação ideológica desse uso de cabelo pelos punks.
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Outro meio artístico muito utilizado para a crítica social e questionamento moral são os desenhos em quadrinhos, que já provocou
calorosos debates e, inclusive, “the establishment of the Comics Code Authority (a self-censoring institution of the comics industry)” (Williams 1994,
129). Vale relembrar a citação sobre o psicólogo norte-americano Frederic Werthan que, “pretendeu mostrar em seu livro a similaridade entre os
crimes cometidos pelos adolescentes e aqueles descritos nas revistas em
quadrinhos, visto que, para ele, os adolescentes delinquentes transportariam a situação da narração ictícia para a esfera do real” (César 1999,
4). Um dos nomes mais famosos no underground dos quadrinhos brasileiros é Francisco A. Marcatti, conhecido pelos desenhos escatológicos e
seu personagem Frauzio. É dele a famosa capa do disco Brasil do grupo
Ratos de Porão.
3. A transgressão na música
Em acordo com Veiga (2000), acredito que a música,
sendo uma linguagem “predominantemente não-referencial (com
exceções notáveis), isto é, não portadoras de sentido em si mesmas
mas nas associações com o contexto, as músicas do mundo podem
ter um nível de abstração comparável ao das matemáticas, portanto com capacidade de combinarem-se com a totalidade das disciplinas do saber humano.
Assim, não é de se espantar que diversas correntes ideológicas
utilizem-se da música como canal legítimo para propagar suas premissas. Seja a música de protesto (com forte teor político em suas letras)
ou a música de entretenimento de massa (muitas delas com mensagens
sexuais subliminares ou explícitas, assim como danças consideradas vulgares), diversos gêneros musicais irão sofrer preconceito ou, até mesmo,
censura como forma de evitar a disseminação de ideias, e comportamentos transgressores. Da mesma forma que muitos grupos sociais vão
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questionar que ilmes agressivos irão afetar e incentivar comportamentos agressivos (geralmente em jovens e adolescentes), músicas com conteúdo subversivo também são condenadas por supostamente desvirtuar o comportamento social.
Contudo, percebe-se que a música, como objeto de estudo, está
muito menos propensa a ter elementos transgressores do que simplesmente associar-se a eles. Isto é, somente em poucos casos podemos
realmente falar em transgressão musical, algo inerente aos elementos
musicais. Em geral, a transgressão se associa à música na forma de letras, imagens ou comportamentos. Falar em uma transgressão musical
requer que exista uma intenção de evitar, ou ir além do habitus musical,
ou seja, daquele repertório de possibilidades de combinações sonoras
que é considerado não somente música, mas uma música legitimizada,
seja por associação a uma determinada noção de alta cultura, ou por
uma ampla aceitação e consumo social.
Ao longo da história da música de concerto ocidental, diversos
compositores podem ser considerados como transgressores das práticas
de sua época, ao romperem com os padrões tradicionais e as expectativas que os cercavam (Grout 1980). Na maioria das vezes, não havia uma
ruptura radical, mas um alargamento das possibilidades de determinado elemento musical, por meio da inserção de novas combinações. É o
caso de compositores como Carlo Gesualdo, ao explorar a dissonância
de uma forma até então não tentada, ou Beethoven, ao modiicar o ponto de acentuação do scherzo. Um compositor que merece destaque é
Debussy. Suas composições inovam em diversas áreas, do aspecto harmônico ao formal. Um exemplo é o uso do paralelismo na condução de
vozes, um procedimento até então tido como tabu para os compositores
“sérios” (Griiths 1987).
Percebemos que, em arte, a transgressão está quase sempre presente nos movimentos de vanguarda, como ideários de ruptura com
padrões vigentes. E não é por acaso que, em geral, são tais artistas cujos
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nomes permanecem escritos na história. Contudo, a transgressão nas artes tem um custo muito alto para o artista que, ao romper com padrões
estéticos tradicionais, acaba por inserir sua obra de arte em um espaço
além daquele “campo determinado dos possíveis legítimos” do qual Foucault escreve, criando pouca relação com os padrões de expectativas ou,
como nos informa Cardoso Filho (2010), foge ao campo de experiências
e ao horizonte de expectativas.11 Essa atitude pode causar uma estranheza tão grande que alguns (poucos) podem considerá-lo um gênio, mas
muitos geralmente irão afastar-se e receber tal obra de arte com muitas
críticas e reservas. Não seria difícil fazer uma lista com dezenas de nomes
de artistas que viveram uma vida de miséria, algumas vezes considerados
loucos, mas cuja posteridade revelou ser um artista único, genial.
Charles Ives (Albright 1999) foi um exemplo incomum. Viveu em
um contexto e em uma época em que suas composições não se “encaixavam”. E o mais curioso é que ele não se vinculava a nenhuma corrente
estética de vanguarda. Por outro lado, Schoenberg considerava-se um
herdeiro da tradição de compositores austrogermânica, e acreditava que
sua teoria de composição baseada nos doze sons (música serial dodecafônica), nada mais seria do que o caminho natural do desfalecimento do
sistema musical tonal (Neighbour, Griiths e Perle 1990).
Todavia, sabemos hoje que o “horizonte de expectativas” não
acompanhou as rápidas mudanças que os compositores da música de
concerto europeia impuseram aos seus ouvintes (Salzman 1970). O início do Século XX assistiu a algumas estreias musicais que até hoje ain-
11 Cardoso Filho utiliza as categorias de espaço de experiências e horizonte de expectativas a partir da
interpretação do historiador alemão Reinhart Koselleck, em seu livro “Futuro Passado: contribuição
à semântica dos tempos históricos”, Rio de Janeiro, Contraponto, 2006. “Koselleck (2006) fala de
um ‘espaço’ de experiências como categoria interpretativa por se tratar de um passado atual, no
qual os acontecimentos são incorporados e lembrados, um passado acessível a todos, que guarda
um componente alheio mesmo na subjetividade mais íntima. Há sentido falar desse passado atual
como um ‘espaço’ porque nele estão diversos estratos de tempos anteriores simultaneamente
presentes, sem referência a um antes ou um depois. O horizonte de expectativas também está
ligado ao subjetivo e ao intersubjetivo, mas se trata de uma categoria que nos projeta para o
futuro, para o ainda não experimentado, embora de algum modo previsto. O horizonte é sempre
aquele por-vir” (Cardoso Filho 2010, 49).
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da não são bem aceitas pelos ouvintes assíduos de salas de concerto,
quem dirá o ouvinte comum: Elektra de Richard Strauss (1910), Pierrot
Lunaire de Arnold Schoenberg (1912) e A Sagração da Primavera, de Igor
Strawinsky (1913), entre outras. Pode-se atribuir diversos fatores a essa
rápida transformação do sistema musical: do encurtamento das distâncias através da invenção de carros motorizados à invenção do fonógrafo.
Porém, é certo que o público não teve tempo de acompanhar os novos
acréscimos estéticos, e a tão sonhada emancipação da dissonância icou
somente na cabeça dos compositores.
Diversas outras correntes estéticas de vanguarda surgiram ao
longo do Século XX, do minimalismo de Phillip Glass ao serialismo integral de Boulez, da aleatoriedade de John Cage à música eletroacústica de Stockhausen. Todas também podem ser classiicadas como estéticas musicais transgressoras, ainda nos dias atuais, em razão de sua
pouca popularização e não relação com o sistema musical midiatizado,
isto é, não hegemônica. E é justamente essa essência transgressora que
faz com que diversos grupos de música popular utilizem seus recursos
como forma de inovar ou soar diferente dos demais.
No entanto, além do interesse que tais movimentos musicais nos
causam (seja por sua transgressão inerente ou associada), é importante
dar a devida atenção a determinadas cenas e contextos socioculturais
que dão suporte e permitem que tais práticas loresçam. Entre esses
momentos, podemos citar a Semana de 22 (Travassos 2003), um ponto
culminante de uma época de efervescência artístico/contemporânea.
Há, também, os movimentos de determinados grupos de compositores
e seus locais de origem tais como o Música Viva, o Música Nova, e o Grupo de Compositores da Bahia. No caso desse último, é notável a estreita
relação entre as composições de vanguarda e a cultura baiana por meio
do uso de ritmos especíicos, timbres e citações melódicas diversas em
uma constante mistura entre elementos musicais inovadores e outros
socialmente já aceitos.
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O momento de repressão militar no Brasil durante a década de
1970 também provocou diversos outros contextos que deram suporte
às músicas transgressoras. Desde a poética de crítica velada de Chico
Buarque, aos shows proibidos de Gilberto Gil (Costa 2003) à chamada
“vanguarda paulista” de compositores como Itamar Assumpção e Arrigo
Barnabé (Fenerick 2007).
Em 1983, surge em São Paulo o Restaurante Cultural Madame
Satã, que se tornaria um dos principais pontos de encontro e produção
de arte de vanguarda, com récitas de poesias, encenações teatrais e shows underground.
Uma das atrações mais famosas e comentadas pela maioria dos
ex-frequentadores e entrevistados foi a banda Jardim das Delícias,
liderada pela transexual Cláudia Wonder. O show chamava-se
“Vômito do Mito”. Nele, eram apresentadas as músicas da banda,
mas o mais esperado era o inal apoteótico. Cláudia chegava ao
limite da provocação ao inalizar a apresentação, toda nua, com
uma máscara animalesca, se jogando numa banheira cheia de
groselha, como se fosse sangue, e, de repente, emergia da banheira com o pênis, por vezes ereto, à mostra; para delírio do público.
(Moraes 2006, 85)
Em entrevista à Okky de Souza, publicada na revista Veja, de 15 de
Dezembro de 1982, Arrigo Barnabé airmava:
Eu sou ilho da Tropicália. Sem ela eu não existiria. Na época eu ouvia as músicas de Caetano e Gil e icava me perguntando: se eles
faziam inovações na letra e no arranjo, porquê não faziam na música também? Porque não alteravam os compassos, por exemplo?
E eu iquei achando que ousar na estrutura da música seria o próximo passo na evolução da música popular brasileira. Foi uma coisa
pensada, premeditada mesmo. Nada de inspiração espontânea.
(Souza 1982, 04; Fenerick 2007, 18)
Evidenciam-se, nessas citações, dois exemplos claros: o primeiro, de transgressão associada (letras e comportamento); o segundo, de
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transgressão inerente, cuja intenção é de transpor os limites do habitual.
Menos comum é encontrar artistas que procuram unir elementos transgressores tanto nos elementos musicais quanto extramusicais. Scarpa
nos remete a dois desses artistas japoneses:
Outro grupo musical que utilizou cenas de violência gráica para
seus vídeo-clipes foi o grupo artístico japonês noise Hijohkaidan.
O seu vídeo “live and confused” contém ilmagens da banda em
estúdio intercaladas com cenas de autópsia. Em um instante a
cena corta bruscamente de uma ilmagem pornográica para uma
mesa de autópsia onde uma menina semelhante a que acabamos
de ver está sendo autopsiada. O artista noise japonês Masami Akita (mais conhecido como Merzbow) realizou um curta-metragem
em 1990 intitulado Lost Paradise (como é conhecido pelo seu título
em inglês, o nome original em japonês é jôbafuku onna harakiri)
no qual vemos uma jovem japonesa cometer seppuku enquanto
uma trilha sonora composta unicamente por composições do próprio Merzbow toca de fundo. (Scarpa 2010, 108)
Há, ainda, casos controversos como grupos de Black Metal Cristão,
que utilizam toda uma indumentária, trejeitos, maquiagem e sonoridade relacionada ao estilo de música Black Metal (geralmente de cunho
satânico), mas com letras cristãs.
Lembro, portanto, que, apesar de que toda pesquisa em música
deve ter como foco central a música, não sendo inseparável de seu contexto, a música associa-se a uma ininidade de elementos externos para
agregar-lhe signiicados diversos. Cabe então, ao etnólogo, mediante
profunda análise cultural, desvendar como os elementos musicais e extramusicais associam-se para dar coerência à determinada ideologia.
Mesmo que a coerência seja a própria incoerência.
4. Por uma etnomusicologia da transgressão
As questões apresentadas anteriormente apontam para a complexidade que permeia a área a ser estudada. Não é possível estudar a
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relação entre transgressão e música sem uma abordagem interdisciplinar, que compreenda como os elementos musicais e extramusicais se
relacionam com a ideologia de transgressão.
Cito Anthony Seeger e suas quatro perguntas básicas para uma
etnograia musical, duas de cunho musicológico e duas de cunho antropológico: 1) O que os membros deste grupo estão fazendo? 2) Por que o
fazem desta maneira? 3) Quais os sistemas sonoros equivalentes ao que
chamamos de música? 4) Quais as estruturas destes sistemas sonoros?
Essas são questões essenciais que devem nortear qualquer pesquisa em etnomusicologia. É importante notar que o que se pretende
deinir é uma abordagem etnomusicológica, e não o objeto de estudo
da etnomusicologia, que atualmente não está limitado mais a nenhum
único texto ou contexto. Ou seja, a etnomusicologia não se deine pelo
objeto de estudo, como talvez já se pretendeu um dia, mas por sua
abordagem. E nesse sentido, a abordagem etnomusicológica vai centrar na música pesquisada, utilizando-se das demais ciências sociais
como suporte para responder o que acredito ser a grande contribuição
dessa disciplina: entender o porquê as pessoas escolheram fazer/ouvir música daquela forma especíica, e como essa escolha se relaciona
com sua vida cotidiana.
Quando estudamos músicas transgressoras, geralmente com
um alto grau de censura e/ou intolerância por parte de uma grande
parte da sociedade, é importante icar claro até que ponto estamos
falando sobre a música em si ou sobre elementos do contexto que se
associaram à determinada prática musical. Cabe ao analista, inclusive, a necessária dissociação entre elementos musicais e extramusicais
para melhor compreender qual a inluência de cada um desses fatores
sobre o preconceito e a censura que é imposta sobre tais músicas.
Recentemente uma letra inocente e infantil que versava sobre
uma certa equestre e cantada sobre uma simples batida funk gerou
uma polêmica discussão acadêmica. Todavia, o que estava causando
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tanta polêmica? A música em si? O contexto para qual ela foi criada
(bailes funk)? A dança associada à música? Ou o personagem (Lacraia)
criado pelo parceiro do referido cantor compositor?
Com o intuito de compreender os diversos aspectos relacionados
à multiplicidade de contextos nos quais a música associa-se à práticas
transgressoras, uma pesquisa etnomusicológica deveria investigar quais
as ideologias que organizam e dão sentido às práticas musicais subversivas e transgressoras, e como essa intenção se relete nos símbolos identitários musicais e extramusicais que caracterizam tais práticas. E, talvez
mais importante do que identiicar tais símbolos subversivos, é procurar
compreender o que leva um grupo de pessoas a gostar e se relacionar
de forma afetiva com tais práticas musicais transgressoras (uma sensibilidade camp?).
Pretende-se, então, investigar como música representa ou agrega atos e conceitos transgressores, através não só da análise do produto cultural, o ato musical em si, identiicando como ele se relaciona com
seus pares não transgressores, por meio do compartilhamento (identiicação) de elementos diversos, ou da inserção de novos elementos
(diferenciação). Ou seja, essa análise não deve se limitar somente ao
ato musical (produto), devendo ir além, ao procurar desvendar quais
as “orientações básicas de valores” (ideologia), que organizam tais práticas culturais.
5. Conclusão
Como já exposto, é no ato da transgressão que se identiica os limites do que é considerado “normal”. E, ao identiicar os limites, começamos a compreender o porquê fazemos as coisas da forma que fazemos.
Ao proceder dessa maneira, iluminamos aspectos do cotidiano que de
outra forma não nos atentamos.
Há diversas práticas musicais que, ao serem taxadas de mau gos-
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to (kitsch), agressivas, barulhentas, subversivas ou transgressoras, são
repudiadas ou “esquecidas” pela mídia ou mesmo pela academia. No entanto, apesar de muitos fazerem questão de ingir que tais práticas não
existem, há uma subcultura que produz e consome esse gênero musical.
Logo, compreender as escolhas culturais signiica não só estudar o lado
hegemônico, como as contraculturas também.
Vale reairmar que a noção de normalidade é relativa, e diferentes
grupos socioculturais terão diferentes opiniões do que seja um desvio,
ou uma transgressão, em relação à determinada prática cultural. E como
escreve Becker (2008, 17), “isso devia nos alertar para a possibilidade de
que a pessoa que faz o julgamento de desvio e o processo pelo qual
se chega ao julgamento e à situação em que ele é feito possam todos
estar intimamente envolvidos no fenômeno”. E o autor vai mais além, ao
airmar que,
pelo menos em fantasia, as pessoas são muito mais desviantes do
que parecem. Em vez de perguntar porque desviantes querem fazer
coisas reprovadas, seria melhor que perguntássemos por que as pessoas convencionais não se deixam levar pelos impulsos desviantes
que têm. (Becker 2008, 37)
Entretanto, se músicos e artistas têm a desculpa social para se
permitir todo tipo de extravagâncias, o que dizer sobre o público que
participa de tais eventos? O rótulo de outsider, apesar de ser almejado
por uns, é sufocante para outros. Tais rótulos, em geral pejorativos, incapacitam e deslegitimam o discurso dessas pessoas, que se sentem rejeitadas e deslocadas pelo simples fato de gostarem de algo diferente
dos demais. E, como já exposto anteriormente, sem um canal legítimo
de livre expressão para a expor as angústias que esse sistema repressivo
causa, criamos uma sociedade excludente e intolerante às diferenças.
Dessa forma, um estudo abrangente da relação entre transgressão e música é de grande relevância ao lançar um olhar crítico sobre a
realidade de nossas práticas musicais socialmente aceitáveis, trazendo
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à tona todo um repertório que, se não conhecemos, preferimos deixar
como está e, se conhecemos, preferimos varrer para debaixo do tapete;
empoderando o discurso “proibido” e dando voz aos excluídos.
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