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Insolitudes acres, híbridas e fronteiriças: as disputas pelas identidades1
Francisco Bento da SILVA2
cada lugar es la frontera de outro lugar,
cada ser humano es la frontera del otro.
Fernando Ainsa
Preâmbulo
Este pequeno artigo deriva de minha palestra ocorrida em 10 de abril de 2015,
no Teatro Banzeiro, em Porto Velho, durante a realização do I Congresso métodos
fronteiriços: objetos míticos, insólitos e imaginários, organizado pelos professores da
Universidade Federal de Rondônia. A mesa da qual fiz parte chamou-se Objetos raros,
objetos híbridos: o que há nas fronteiras¿ e eu fui instigado pelos organizadores do
evento a falar de um Acre insólito.
Inicio esta exposição pontuando os três elementos realçados no título
pretensioso dado a minha breve comunicação para discutir algumas questões
relacionadas ao Acre em períodos de tempo distintos. Começo me referindo ao título:
nas variantes dicionarizadas do termo, Acre pode ser percebido como algo azedo,
áspero, penetrante, agudo e até violento. Já a palavra hibridez traz a ideia de algo
misturado, às vezes alguma coisa sem identidade ou cara definida, sendo a síntese dos
elementos formadores iniciais. A hibridez também carrega, geralmente, a polaridade dos
elementos que compõem sua existência e manifestação. Por fim, a fronteira que é o
local de transição, espaço dúbio, de alteridade, de passagem para outro terreno, outro
lugar. Front é espaço de encontros e confrontos, posições e oposições. Seu significado
tem uma latente perspectiva belicosa.
Tudo isso é insólito, palavra que é um adjetivo polissêmico. Significa algo
anormal, incomum, extraordinário. E que parece vir da mesma raiz semântica de
Palestra intitulada de “O Acre insólito” e apresentada durante o I Congresso - Métodos Fronteiriços:
objetos míticos, insólitos e imaginário realizado entre os dias 08 e 10 de abril de 2015 no Teatro
Banzeiro, em Porto Velho – Rondônia (Brasil). Trabalho não publicado.
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Professor Adjunto da Universidade Federal do Acre – UFAC. Doutor em História pela UFPR. Atua nos
cursos de graduação em História (bacharelado e licenciatura) e no Programa de Pós Graduação em Letras:
Linguagens e Identidades da mesma instituição.
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solitude, solidão, solitário. Aqui, duas as palavras latinas solitudine e insolitu se
aproximam. Lugares insólitos às vezes são também narrados como espaços de solidão,
amargos, de apatia, de falta de algo, incompleto, enfim, lugares acres.
O Acre insólito
Começo então falando de um Acre, que antes de ser Acre era uma região
desconhecida pelo olhar do colonizador. Por isso região nomeada como “tierras no
descubiertas” durante boa parte do século XIX em mapas diversos. Partindo desta
perspectiva, se compreende que há um Acre a-histórico: visto como destituído de
história, lugar anacrônico (fora do “tempo”), a margem de ambos pelo olhar colonizador
e até de intelectuais renomados da República. Então, “espaço e tempo se cruzam para
produzir figuras complexas de diferença e identidade, de passado e de presente, de
interior e exterior” (SKLIAR & DUSCHATZSKY, 2011, p. 119).
Temos um Acre que na virada do XIX para o XX torna-se objeto de desejo da
Bolívia, que tinha como pretensão ocupar o território e exercer sua imaginada soberania
e desejado domínio. Contudo, a república andina nunca exerceu de forma consistente
sobre o Acre qualquer uma dessas duas formas de controle. A soberania era somente
legal, mas não real, requerida sobre um território boliviano palmilhado havia muito por
visitantes não convidados de outras nacionalidades que irão ocupar e explorar suas
riquezas com volúpia.
O domínio, do latim domus, poder sobre a casa, nunca foi efetivado na região
acreana pelos bolivianos. Quando tentado, foi rechaçado por aqueles que a
historiografia local chamou de intrépidos seringueiros nacionalistas que tornaram o
Acre “brasileiro por opção”. Algo que hoje é mimetizado em slogans do tipo: “orgulho
de ser acreano”; “Acre, um só coração” e por aí vai. Essa tentativa e intencionalidade de
colonizar a região de fronteira, já hibridizada pela presença desde muito de diversos
grupos indígenas e da chegada constante de “outros” sujeitos: sejam eles brasileiros,
peruanos, bolivianos, europeus, judeus, árabes e demais adventícios foi algo concreto.
Diante da fragilidade que a Bolívia tinha sobre o Acre, a saída que as autoridades desse
país encontraram foi adotar o modelo das Chartered Company, de persistente signo
colonial (TOCANTINS, 2000) desde meados do século XVI.
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Nos dois mapas a seguir temos a cartografia imaginária da região acreana,
baseada nas escalas e nas narrativas que não são feitas essencialmente por meio de
palavras, mas de signos diversos: números, graus, meridianos, paralelos, linhas de
divisão, etc. Esse discurso cartográfico, como os demais, precisa de um lugar de onde
possa emergir e também para quem ele se direciona. Desenhar um mapa é sempre
cristalizar certas ideias e informações disponíveis em um dado momento histórico
(ZUNINO, FERREIRA & ORIHUELA, p. 57). O mapa é por definição um artefato de
poder, uma carta gráfica que diz à quem um determinado espaço pertence. Brasileiros e
bolivianos disputavam também nos mapas o poder sobre o Acre.
Mapa 01: Las vias terrestres y fluviales que conducen al Territorio Nacional de Colonias, Enero de 1903,
La Paz. Fonte: Biblioteca de Harvard (http://vc.lib.harvard.edu/). Latin American Pamphlet Digital
Collection.
A partir desta ideia, temos então um Acre pensado dentro da ótica colonial,
território de riquezas que deveriam servir aos interesses imperialistas e subalternamente
aos das elites dirigentes bolivianas. Ou seja, nessa perspectiva da conquista e da
exploração econômica e humana, há um Acre que inicialmente não é de ninguém; Um
Acre que está “lá”, geograficamente falando, esperando ser descoberto, colonizado; um
Acre boliviano de direito pelo Tratado de Ayacucho desde 1867; um Acre já
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abrasileirado majoritariamente pelos brasileiros do Acre, mas que a Bolívia queria se
apoderar; um Acre litigioso quando o Barão do Rio Branco entra em cena e impõem as
condições de negociação; E, por fim, um Acre brasileiro a partir de 1903 com o Tratado
de Petrópolis.
Mapa 02: Acre litigioso, por Horacio E. Williams (1905). Fonte: Biblioteca Nacional, Brasil.
(bndigital.bn.br).
É somente no alvorecer do século XX que o Acre ganha com mais intensidade
as páginas da imprensa e dos meios diplomáticos da capital da República brasileira, em
La Paz, ecoa em Londres, Nova York e outras cidades importantes do cenário
econômico mundial e nacional. Fazendo uma alusão a Eni Orlandi (1990, p. 50), é um
Acre que não fala, o Acre é essencialmente falado.
O Acre torna-se assim é pretexto para o discurso do outro, que o traduz e o
mostra muitas vezes como a imagem invertida de si. Há um Acre onde de forma
recorrente se evidencia o aparente, o folclorizado, o exótico, o amargo, o vazio, o
mortífero, o distante, a selva selvagem, entre outros epítetos de negatividade tão
recorrentes ao longo do tempo. Esse é o Acre de colonização à gandaia e povoamento
tumultuário, de acordo com Euclides da Cunha em A Margem da História. Um Acre de
macieza e aspereza que também é meu, nos dizeres adocicados de Mário de Andrade em
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seu poema Acalanto do seringueiro (1927). Acre que o marginalizado Lima Barreto
sonhava em conhecer algum dia, com afirma em seu Diário íntimo; Acre em que Nelson
Rodrigues, no conto A morta publicado na obra A vida como ela é, interna seu
personagem Quincas, assassino que mata uma mulher no Rio de Janeiro e resolve se
acoitar no Acre e, ao chegar nessas terras, sua fixação é encontrar alguma mulher
disponível para aplacar seus desejos carnais. Por fim, Acre é o local que Olavo Bilac
sugere na crônica Menor perverso (1909), como o mais adequado para o desterro de um
menor assassino de 09 anos que matou outro de apenas 03 anos na capital da república
(BILAC, 2005, p. 109).
Como podemos perceber, o Acre atrai manifestações de apreço, de repulsa, de
distanciamento, de curiosidade desde muito por vozes externas e internas que o narram.
São representações carregadas de múltiplos valores e interesses. São referencias de
épocas distintas, assim como os exemplos de insólitudes que selecionei a seguir.
Insólito I – a piada, o problema
FONTE: Revista O Malho, 1909, nº 380, p. 44. Acervo da Biblioteca Nacional.
Neste pequeno texto, publicado na revista humorística O Malho, temos a
“informação” de uma aludida entrevista publicada em um jornal indeterminado de um
ex-prefeito do Acre cujo nome também é oculto. A veracidade ou não da informação
não tem importância. Ela, seja real ou fictícia, é apenas um expediente utilizado para a
construção de outra narrativa/discurso.
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O título faz alusão a canhões e o texto à decantada rarefação de mulheres no
Acre como um problema enfrentado pelos homens que ali viviam, algo tão crítico que
preocupava até as autoridades ali estabelecidas. Constituindo desta forma uma
sociedade masculinizada e fálica, cuja vazão aos desejos carnais é obliterada num local
onde a mulher é um bem valioso e rarefeito, como bem percebeu Quincas. No Acre de
outrora, a figura feminina é narrada como um insólito objeto disputado por homens
diversos em suas carências também diversas.
Isso aparece em obras de cunho literário, mas também está presente em obras
historiográficas. Essa ausência anunciada permite as mais variadas soluções: envio para
o Acre de mulheres acusadas de prostituição no Rio de Janeiro para se tornarem
honradas no Acre, segundo as autoridades, como ocorreu em 1904 e 1910 nas revoltas
da Vacina e da Chibata. Fictícias prostitutas decadentes de Manaus que chegam ao Acre
e tornam-se objetos de desejo, como a personagem Conchita, presente na obra Coronel
de Barranco, de Cláudio Araújo Lima. Casos de zoofilia como o cometido pelo
seringueiro Agostinho e narrado na obra A Selva, de Ferreira de Castro, que se agregam
aos relatos de homossexualismo e pedofilia como saídas para o abrasamento sexual
masculino diante da falta de mulheres. De mulheres índias capturadas em correrias para
servirem de esposas, concubinas e escravas sexuais aos “brancos” que ali vão se
estabelecendo. Essas questões já são bastante conhecidas pela produção historiográfica
local e também fazem parte de certa memória coletiva herdada que paira sobre o Acre
ainda nos dias de hoje.
Insólito II – a charge, a solução
Esse discurso da ausência, da carência, onde beleza não se põe na mesa e os
valores morais imperam com elasticidade ou são estilhaçados, permitem ironias como a
da charge mostrada a seguir (CHARGE 01).
Nessa charge temos três mulheres e elas são identificadas como as três graças.
É uma ironia aberta, direta, que ao mesmo tempo remete aos seus possíveis nomes de
batismo. O que a charge quer realçar é a feiura das três solteironas, cuja tábua de
salvação que resta para elas é ir do Rio de Janeiro para o Acre de homens solitários. As
graças sem graças seriam ali naquela zona de contatos mulheres disputadas. Portanto, se
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temos homens colonizando a fronteira e homens subordinados a esta colonização à
gandaia, temos mulheres colonizadas mais ainda pelo poder do gênero oposto.
Charge 01: As três graças... Revista O Malho, 1909, nº 380, p. 44. Acervo da Biblioteca Nacional
Como bem expressa Anne McClintock (2010), na fantasia de descoberta do
Novo Mundo e de ocupação de regiões considerada inóspitas, essas áreas são tornadas
femininas e tudo é “espacialmente exposto a exploração masculina” (p. 47). Ela conclui
sua análise dizendo: “figuras femininas eram plantadas como fetiches nos pontos
ambíguos de contatos, nas fronteiras e orifícios das zonas disputadas” (ibidem).
É tão forte essa imagem que as terras inexploradas colonialmente serão
chamadas de virgens, a mata é também dita virgem e a natureza “espera” os seus
exploradores desvirginadores que um dia chegarão para fincar os alicerces
“civilizatórios”. Chegam com seus canhões reais ou metafóricos, para ocuparem o que é
narrado como vazio, selvagem e virginal. Há aí uma erotização do espaço colonial,
inseminado pela conquista discursiva, bélica, política e econômica do “civilizado” para
que ele então possa ser dominado e explorado de forma justificada pelo adventício.
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Insólito III – fronteiras e identidades diluídas
FOTO 01: Outdoor na fronteira entre Brasiléia (BR) e Cobija (BOL). Acervo de Francisco Bento, 2006
Nesta imagem acima e na outra a seguir temos um outdoor na margem
esquerda do rio Acre, na fronteira Brasil – Bolívia. Aí fica a cidade boliviana de Cobija,
capital do Departamento de Pando, ao fundo temos o quartel da marinha boliviana. Isso
por si só já é muito insólito, a Bolívia, junto com mais seis países no mundo todo tem
marinha, mas não tem mar. Mas voltando a placa e sua mensagem que ela traz: ela foi
fincada ali em 2006, próximo à ponte que atualmente liga e divide as cidades de
Brasiléia e de Cobija, e fazia referencia ao centenário da cidade boliviana na fronteira.
Quem ali passava era recepcionado pelo outdoor com a chamativa frase: “Bienvenidos a
Cobija, la perla del Acre”.
Quem é esse Acre ali referenciado: é o rio¿ é o estado¿ é a região¿ todos esses
elementos juntos¿ a indeterminação e a leitura multifacetada parecem ser a marca da
frase dúbia. É uma frase que remete ao orgulho ou a perca dele, diante das feridas não
cicatrizadas do passado conflituoso com brasileiros¿ O polissêmico, ambivalente e
indefinido Acre citado na placa, acaba sendo o vértice que aproxima brasileiros e
bolivianos em fronteiras. Mas é uma aproximação que não tem a capacidade de fusão ou
homogeneidade. Pelo contrário é heterogeneidade, separação, conflitos latentes e
abertos, comércio e relações de trabalho desiguais, línguas misturadas e preconceitos
em tons irônicos sempre latentes e presentes.
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FOTO 02: idem.
Cobija é uma cidade hibridizada pela presença constante de brasileiros
comprando produtos importados, quase todos chineses, sendo atendidos por muitos
brasileiros empregados no comércio local e quase todos se tratando por patrícios.
Patrício, por sinal, é um tratamento que esconde fissuras, conflitos e diferenças culturais
nessa zona de contato e de fricção. Há as mulheres indígenas em seus trajes étnicos
vendendo comidas e bebidas nas ruas, discriminadas muitas vezes de forma dupla por
brasileiros e bolivianos que se acham elitizados e brancos.
Mas de que Acre Cobija é considerada uma peróla¿, uma raridade¿, um objeto
insólito e de fronteira¿ Na imagem a seguir (FOTO 03), temos novamente a mesma
referência colocada na outra via de acesso pelo Brasil à cidade de Cobija. Esta frase está
fixada em uma espécie de portal logo após a ponte entre Epitaciolândia e Cobija,
próximo ao posto aduaneiro boliviano. Aparentemente dá boas vindas aos visitantes
brasileiros e anuncia aos acreanos, maioria que cruza a ponte na ida, que irão encontrar
do outro lado a “pérola do Acre”. Nesse viés, encontramos também algumas vans que
fazem o transporte coletivo local, carregando fixadas em suas laterais a mesma frase que
transita entre o viés do confronto, do orgulho disputado e do irônico.
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FOTO 03: Placa de boas vindas na ponte fronteiriça entre Epitaciolândia (BR) e Cobija (BOL). Acervo
de Francisco Bento, 2015.
Essa retórica do confronto é exaltada na imagem vazada no numero 100
(FOTO 04), onde um indígena aponta uma flecha incendiária para o outro lado do rio
Acre. Esse índio Tacana/boliviano mimetizado no outdoor chama-se Bruno Racua. Ele
é uma “personagem de fronteira” (PRATT, 1999, p. 59). Heroificado pelos bolivianos
devido seus aludidos feitos gloriosos em uma das batalhas vencida pelos patrícios
durante “La guerra del Acre”, em outubro de 1902.
FOTO 04: Estátua do soldado indígena Bruno
https://goo.gl/MXF2KX. Acesso em 10 de janeiro de 2015.
Racua
em
Cobija
(BOL).
FONTE:
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Sua posição desafiadora, preparado para o ataque serve para lembrar da
permanência de um passado não resolvido, de um passado acre, amargo para o “outro”
derrotado e despossuído do seu antigo território. Na imagem a seguir temos a estátua de
Bruno Racua situada em uma praça central próxima a zona comercial de Cobija. A
imagem vazada na placa mostrada anteriormente remete a este monumento cívico dos
pandinos. E cuja placa de bronze (FOTO 05) fixada no pedestal, atesta a qualidade
vigorosa e inusitada de um soldado indígena, flecheiro e incendiário. Herói do outro
lado, no final vencido e apagado na história dos vencedores da guerra, “os brasileiros do
Acre”.
FOTO 05: Placa na base da estátua de Bruno Racua. Acervo de Francisco Bento, 2015.
Na imagética produzida pelo outdoor, portal e estátua, há a predominância do
retórico sobre o factual e que acaba por lhes dar sentidos. Há um passado imaginado
sobre uma região também imaginada. Ou seja, construído socialmente e mutável de
acordo com o lugar de onde discursivamente ele emana. São, nestes casos mostrados,
imaginários coletivos em confronto, disputas pelo passado que melhor covem a quem é
instigado a se posicionar sobre ele. É sobre um Acre que não foi doméstico aos
bolivianos e nem domesticado pelos bolivianos. Mas que a cidade de Cobija, através de
suas autoridades, expressa ser o artefato mais valioso no dístico posto em duas pontes e
voltados para o lado brasileiro. O público leitor, a quem se dirige a mensagem não é o
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boliviano: mas o acreano. Esse discurso da conveniência, exagerado, pensado para um
determinado público, é o nosso próximo e último objeto insólito.
Insólito IV – Acre, a Sibéria tropical
Charge 02: Geographia política, Jornal do Brasil, nº 334, 29/11/1904. Acervo da Biblioteca Nacional
O Acre em particular e a Amazônia em um contexto mais amplo, eram piores do
que a Sibéria russa na visão de muitos que faziam essa associação ligeira entre esses
dois ambientes naturais. Espaços indelevelmente marcados pelas concepções de
vastidão, isolamento, natureza adversa ao elemento humano e ausência de civilização.
É recorrente essa alusão entre a Sibéria e a Amazônia — ou determinados lugares da
Amazônia —, onde ambas são apontadas como sinônimas de lugares remotos, distantes
dos seus centros administrativos, espaços de natureza hostil ao homem, vastos
“desertos”, regiões atrasadas e lugares de exílios, ambas funcionando como imensas
prisões sem grades para os que lá estavam ou eram enviados.
É recorrente encontrar em periódicos, relatórios oficiais sobre as revoltas de
1904 e 1910, expressões como “povoar o Acre” com os desterrados; que ali era uma
“selva selvagem”; fala-se de “deportados para o Acre” e que eles foram enviados
“sorrateiramente para o Acre”; de que seguiram a “passeio ao Acre”; que tiveram
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“destino conveniente”; no Rio, todos os chamados vagabundos eram potenciais
“aspirantes ao Acre” ou “candidatos ao Acre”; por isso, diziam: “Acre com eles!”; que
eles realizariam uma “viagem de instrução ao Acre”; e ali haveria a “regeneração pela
borracha”; naquela que seria uma “sociedade de quarta ordem” e espécie de “Sibéria
tropical”, entre outros termos correlatos que exprimem tais anátemas.
Aparece nessas fontes, em maior ou menor grau, um sentimento de rejeição e
aversão em relação ao Acre. Pela ótica das autoridades e da imprensa esse território é
comumente mostrado como sendo por excelência um lugar adequado para receber
aquele tipo de gente que foi desterrada. O Acre era assim um destino malfadado tal
como o Brasil do século XVI, descrito por Gil Vicente em sua obra Auto da barca do
purgatório, cuja uma das passagens assim diz: “e marinheiros sodes vós? Ora asi me
salve Deus e me livre do Brazil” (PIERONI, 2000, op. cit., p. 249.). Se fosse possível
reatualizá-la para o início do século XX, na perspectiva daqueles considerados
vagabundos, talvez ficasse assim essa frase: “Deus me salve e me livre do Acre”.
Charge 02: Formação do novo mundo, O Malho, 10/12/1904, ano III, nº 117, p. 18. Acervo da
Biblioteca Nacional.
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É esse Acre que no alvorecer do século XX, território recém incorporado ao
mapa geográfico nacional, aparece em muitas das representações mentais de
autoridades, jornalistas e populares com um lugar distante, vazio, atrasado e carente de
civilização. Os banidos para esse lugar de má reputação são simetricamente também
apontados como pessoas dotadas de múltiplas negatividades e nocividades. Juntam-se
então corpos de sujeitos recalcitrantes com um lugar em muito já mal afamado, para daí
moldarem um “Novo mundo” distante, conforme expressa o fictício diálogo, mas crível
de ter ocorrido — portanto verossímil —, entre duas senhoras inserido na charge a
seguir.
O tom sarcástico pauta toda a conversa, onde o tema central gira em torno dos
desterros ocorridos para o Acre. E toca num ponto pouco abordado pelo governo e pelos
jornais da época: a ida de mulheres entre os banidos para o Acre, localizados “lá para os
confins do Judas, lá para onde o diabo perdeu as botas!”, conforme expressa o diálogo.
Eram homens e mulheres fundando um novo “paraíso”, destino para o qual ninguém
queria ir a não ser por interesses bem focados ou por obrigação. Nessa perspectiva do
semanário e do chargista, só havia “Adões” e “Evas” compulsórios na formação daquele
“mundo da borracha”. A ironia como figura de linguagem invertida é clara: essas
pessoas foram expulsas não do paraíso, mas expulsas para o “paraíso”: ou melhor, o
anti-paraíso que seria o Acre. Confinados e isolados longe dos seus lares, dos parentes,
dos amigos, da cidade e de possíveis defensores de suas causas. Todos apartados
compulsoriamente das suas redes de sociabilidades humanas e espaciais, para um lugar
onde tudo seria novo e diferente.
Insólito IV – a megalomania
Temos abaixo uma manchete onde o então governador do Acre, Jorge Viana,
declara em 2002 ao jornal Valor Econômico que o estado do Acre almejava ser o
equivalente a Finlândia nos quesitos qualidade de vida e proteção ao meio ambiente. Na
sua entrevista, os acreanos e seu governo estariam irmanados rumo ao progresso
material e consciência ambiental explorando racionalmente a natureza. Exalta o acordo
com o Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID e destaca a contribuição
acreana nesse quesito como algo marcante no Brasil do século XXI. Não é megalomania
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somente. Há uma boa dose de altivez rombuda, adoçada com muito mascaramento da
realidade social e econômica do estado.
FONTE: https://goo.gl/Ub6iDP. Acessado em 15 de março de 2015.
O Acre é alçado à condição de protagonista de um milênio que mal tinha
começado. Seria apenas piada se alguns dados apresentados não colocassem no chão
esse discurso etéreo, vazio. Dirigido notadamente ao grande centro do país através de
um jornal de circulação restrita ao centro sul e ao público ligado ao mundo dos negócios
e da economia nacional.
O Acre aí é um produto sendo vendido, cuja comparação precisa ser feita com
um “outro” que simboliza sucesso naquilo que o Acre quer se destacar. Os acreanos,
sem serem consultado são alçados à pretensão de “caboclos querendo ser finlandeses”.
Mary Pratt usa o termo auto-etnografia para definir o individuo colonizado que se
apropria dos discursos e os signos do colonizador para criar sua identidade nos termos
do outro (p. 33).
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Parece ser um caso análogo, pois há uma tentativa – não importa se sincera ou
não – de reinventar o Acre e apresentá-lo no cenário nacional. Isso tudo articulado com
a ideia de progresso, desenvolvimento e inserção do Acre nos parâmetros dos países dos
países do chamado primeiro mundo e ambientalmente responsável. Mas dados oficiais e
de entidades ambientais desconstroem com facilidade essa tentativa de criar uma
imagem irreal como algo real, concreto.
FONTE: Revista Veja, 11de abril de 2007, com dados do IMAZON.
Ironicamente o slogan do governo de Jorge Viana era à época, como está
destacado na matéria da revista Veja ilustrada pelo gráfico acima, “governo da floresta”.
O discurso da proteção ambiental e da exploração racional da natureza é colocado em
xeque, desconstruído. Pois os dados apresentados põem por terra o discurso
megalomaníaco e fantasioso dado em forma de entrevista ao jornal Valor econômico
pelo governador. Também se cria durante esta administração o discurso de que no Acre
tínhamos em vez de “democracia” “florestania”, algo como cidadania na floresta, dos
“povos da floresta”. Este termo nada mais é do que um neologismo carregado de
abstração, vazio de conteúdo político. No Acre, parte desta Roma tropical (Brasil) que
fazia alusão Darcy Ribeiro, tentou-se até substituir o dístico católico-romano urbi et
orbis por silva et orbis. Contudo, a dureza dos dados oficiais teimam em nos dizer que o
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Acre está longe de ser o melhor lugar para se viver na Amazônia; de ter saúde de
primeiro mundo; de ter a tal da florestania ou democracia substanciais para a maioria
dos acreanos.
Vejamos a seguir outros dados, de acordo com o IBGE (2013) e Agencia
Nacional de Águas – ANA (2010): O estado do Acre ocupa na federação brasileira o
23º lugar em saneamento básico; o 19º lugar na coleta de esgoto e fossa séptica; é o 21º
colocado na coleta de lixo domiciliar e somente a 26º colocação no tocante às
residências com rede de abastecimento de água tratada. Nesses dois casos insólitos
apresentados acima, temos o exemplo de discursos voltados para um publico externo e
com o intuito de criar factoides, narrativas de efeitos e que chamam a atenção. Discurso
que vende uma imagem falsa da chamada realidade em que vive a população acreana.
Desde muito a imagem do Acre foi cristalizada sob o espectro da negatividade,
chegando a ser durante a virada do Xix para o XX como um lugar, vazio, de morte,
isolado, selvagem, enfim, uma Sibéria tropical como na charge que vem a seguir.
Talvez isso em parte explique essas tentativas de dizer ao “outro” que o Acre já é
superlativamente o melhor em alguma coisa, e no futuro servirá de exemplo ao Brasil e
o mundo. Esses dois campos de representações diametralmente opostos e exagerados,
dualistas e maniqueístas, só servem para reforçar mitos e fantasias, pouco ajudando a
compreensão mais acurada do que somos e podemos ser.
Coisas finais
Partindo para as considerações finais, gostaria de realçar que ainda hoje o
discurso e o sentimento de um Acre isolado é algo presente em diversas narrativas
locais e nacionais. Vide a cheia do rio Madeira em 2014, quando o acesso ao Acre pela
rodovia BR-364 tornou-se impossível e tais narrativas imperaram em noticiários das
mais variadas mídias e conversas cotidianas. O Acre como solidão, que nasce isolado e
que continua isolado por obra da natureza e do homem sempre aparece/reapapece
quando é útil ou insuflado por vozes de certos grupos ou indivíduos.
Em 2015 a cheia do rio Acre de 2014 já foi esquecida, pois agora tivemos “a
maior cheia de todos os tempos”, segundo as autoridades e os meios de comunicação
local. Como bem diz Kiening (p. 97), “colocar o estranho como mais ou menos
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incomparável sinaliza a possibilidade de um novo saber e possibilita a inserção do
discurso”. Ao longo desse período aqui aludido, esses imaginários e discursos
circularam e circulam nos jornais, panfletos, rádios, TV, fontes institucionais, trabalhos
acadêmicos, redes sociais e memorialistas. Confrontos, encontros e desencontros são
realidades nas zonas de contatos, às vezes necessários e, às vezes, inevitáveis.
Aimé Cesaire, em seu livro Discurso sobre o colonialismo, já dizia que uma
civilização que se encerra em si mesma não tem futuro, que povos e culturas devem se
encontrar. O que ele critica é o discurso da superioridade, da subjugação, da negação do
outro. Ele alerta que a colonização não é a melhor maneira de se estabelecer o contato,
pois a colonização desciviliza e embrutece o colonizador. Essa passagem pode dar
vazão para uma interpretação que justifique as barbaridades da colonização, como na
estória da “ilha da consciência” situada em algum ponto da Amazônia.
Contudo, o importante a ser ressaltado é a mensagem de que não podemos
viver em ilhas, reais ou mentais. Neste sentido, o Acre nunca esteve isolado, vazio e
indiferente ao “outro” e para o “outro”. O Acre é multifacetado na sua concretude e nas
suas representações, sejam elas geográficas, históricas, políticas, culturais, linguísticas
ou econômicas. Não devemos mitificar o passado, nem ficarmos reféns do seu peso
paralisante. Por mais que queiramos se apropriar do passado dos outros, ele nunca será
nosso.
Assim, quero encerrar minha explanação fazendo alusão a um poema de
Vinícius de Moraes e dizer que se perguntarem o que é o Acre direi, não sei. De fato
não sei, só sei que o Acre é o sal em longas lágrimas amargas. Mas também é
adocicado, pois a história doce, oficial, hegemônica, heroica, com bem diz Durval
Muniz (2014), é mais palatável e tem mais sabor para ser consumida, deglutida e
ruminada. O Acre são os acres, tantos os reais quanto os inventados, tantos os doces
quantos os salgados, amargos e insípidos. Acre é sabor, história é saber. A história do
Acre deve ser saboreada em todos seus tons de forma mais critica e menos ufanista,
nostálgica, épica ou lamentosa.
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Referências
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. “Por uma história acre: saberes e sabores
da escrita da historiografia, pp. 111-134”. In ALBUQUERQUE, Gerson Rodrigues de
& ISHII, Raquel (org.). Desde as Amazônias: colóquios. Volume 2. Rio Branco: Nepan,
2014.
BILAC, Olavo. Olavo Bilac (seleção e prefácio de Ubiratan Machado). São Paulo:
Global editora, 2005.
CESAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Livraria Sá da Costa editora,
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