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Análise de “Acre Lírica”, de Rubens Rodrigues Torres Filho

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Danielle Takase Queiroz Introdução aos Estudos da Literatura I, Profª. Marta Kawano Análise de “Acre Lírica”, de Rubens Rodrigues Torres Filho Acre lírica 1. 2. Quem pede o lado de dentro quer o espaço alucinado: um lado que esteja dentro, um dentro que seja alado. Lúcida lira delira dócil de lírico amor e vibra fibra por fibra nas garras do mago Amor, Que mal estava aninhado, secretamente assanhado na concha de qual palavra? não por você, preferida, pretérita ou preterida que a lira sabe de cor. Entre que casca e que ovo corre eternamente novo o fio da fragilidade? Eis que meu aço efetivo sem meu cálice afetivo e, sem vaso prévio, a flor deixam a lira mais pura Corre o verso pelo inverso e o delírio pelo lírio na lírica do extravio. Por onde passa essa falha? Que má paixão se agasalha nas labaredas do frio? e, em desespero de cura, mais mágica e minuciosa, mais trágica e menos ciosa de girar ao teu redor. O pássaro do poema abre as asas, orvalhadas ou molhadas de suor? Rubens Rodrigues Torres Filho inicia o poema com uma epígrafe enigmática, confrontando duas imagens opostas: um espaço delimitado − o “dentro” − e o desejado “espaço alucinado”. A partir de um jogo de palavras paronomásico (lado/alado), o poeta sintetiza nestes quatro versos a ideia da obra em que o poema está inserido, O voo circunflexo (1981). É importante levar em consideração que este é o último poema do livro, um desfecho. O alçar voo, a ideia das asas, entre outras imagens, carregam uma ideia simbólica de liberdade, de falta de limites. Por que, então, o poeta confronta essa dada falta de limitação com o delineamento de um “lado de dentro”? Voo circunflexo: o voo que se fecha sobre si mesmo? Algumas imagens utilizadas em Acre Lírica estão presentes em outros poemas da obra, como em Circunflexo (“O voo circunflexo de uma ave,/ ponto de exclamação e convergência/(...) Deixamos de esperar que alguma dança/ perdoe nosso espaço alucinado.(...) As linhas, uma a uma, caem mortas/(...) aguçadas/ pelas doces palavras desarmadas.” e Ab Ovo. (“Não é novo ser poeta/ mas ser poeta no ovo/(...) E que espaços de silêncio/ vão nos silêncios que chovo/ se me comovo não vendo/ no ovo o voo do novo.”). A recorrência dessas imagens justificam a intenção do autor em atrelar a ideia do voo à produção poética. A começar pelo título do poema, percebe-se a intenção de discutir a própria poesia: a “Acre Lírica”, − amarga, corrosiva −, sendo assim atribuída à palavra lírica a concepção substantiva de gênero. Nota-se a menção de diversos elementos ligados à composição poética (“palavra”, “verso”, “lira”, “lírica”, “poema”). Esses elementos atestam a intenção metapoética de Rubens, que será discutida adiante. A lira é um instrumento musical de som considerado doce (sinestesicamente) que acompanhava as declamações na Grécia antiga. Por conseguinte, deu origem à palavra “lírica”, e a ela, o autor atribui o caráter “acre”. O poema é nitidamente lírico – possui brevidade e intensidade, fluidez entre o eu lírico e o mundo, uma linguagem altamente metafórica. E a subjetividade acaba sendo, não apenas uma característica, mas também a temática do poema. Quanto aos aspectos formais, é estruturado em redondilhas maiores (sete sílabas poéticas na divisão silábico-acentual), o que dinamiza a leitura. Essa dinâmica oferecida pela métrica, considerando que o heptassílabo se assemelha ao modo da fala cotidiana, é modificada por outros recursos dos quais o poeta se serve. Além das rimas externas (ex. aninhado/assanhado) e internas (ex. “Lúcida lira delira”), há ao longo do poema uma série de aliterações e, principalmente, paronomásias (ovo/novo, verso/inverso, delírio/lírio, lira/delira, vibra/fibra, preferida/pretérita/preterida, efetivo/afetivo, minuciosa/menos ciosa), que fazem com que a musicalidade seja um aspecto marcante. É possível perceber, portanto, meticulosidade na seleção vocabular para conciliar os efeitos sonoros e rítmicos com a significação. Dos quatro tercetos da primeira parte, três apresentam indagações tão enigmáticas quanto a epígrafe. Apresentam também palavras que remetem à ideia de envolvimento, invólucro (“aninhado”, “concha”, “casca”, “agasalha”); opondo-se à ideia de fluidez, movimento (“assanhado”, “corre”, “extravio”, “passa”). O poeta cria imagens complexas a partir de uma série de oximoros – “verso pelo inverso”, “eternamente novo”, “má paixão”, “labaredas do frio”. Semelhantemente, pode-se abstrair do título a oposição entre a doçura da lírica e sua condição “acre”, amarga, já mencionada acima. No único terceto afirmativo, é exposta a “lírica do extravio”. Da primeira parte do poema, portanto, pode-se conceber que o eu lírico reflete sobre a dimensão abismal da lírica e sobre a linha tênue (“fio da fragilidade”) que separa o conteúdo do continente; estando a linha tênue entre a poesia(conteúdo) e o poema(continente), levando em conta o caráter extremamente subjetivo da lírica, designando-a como o “interior” e ao poema concreto como a evasão (o “delírio”, o “extravio”). Enquanto a primeira parte do poema não demarca sujeito, aparentemente são apenas digressões, a presença do eu lírico vem a ser claramente marcada na segunda parte, com o pronome possessivo “meu”, seguido de um direcionamento a um “você”. A lira aparece num frenesi – que pode ser considerado o da composição poética. Quem toca a lira “com suas garras” é uma personificação do Amor. Na segunda estrofe, esclarece que não é mais “por você preferida/, pretérita ou preterida” que a lira toca, ou seja, que a poesia é composta. O eu lírico coloca a pessoa a quem se dirige, que a lira outrora soubera de cor, como algo já passado (“pretérita”) ou superado (preterida). Na disposição rímica da segunda parte do poema, há diversos fatores a serem observados. Na primeira estrofe, há uma rima toante feminina (delira/fibra) e uma rima de palavras iguais (amor/Amor). Nas três estrofes seguintes, há pares de rimas consoantes e femininas (preferida/preterida, efetivo/afetivo, pura/cura, minuciosa/ciosa) e versos de rima masculina, terminados em “–or” envolvem os outros pares (como esquematizado acima) e, depois de dois versos brancos, encerra o poema com “suor”. Nessa organização, pode ser percebido – enquanto as rimas masculinas distam-se e as femininas encostam-se –, algo como o ritmo de um bater de asas do próprio poema, como se o poema alçasse voo e ascendesse. A ascensão do poema culmina no terceto final, que traz à tona a imagem do “pássaro do poema”, e mais uma vez, é uma estrofe inquisitiva: (asas) orvalhadas ou molhadas de suor? Essa imagem, das asas do pássaro e a alternância entre orvalho ou suor, faz alusão à oposição clássica entre a poesia por inspiração (“orvalho”, sendo a poesia o sopro que é condensado nas gotas orvalhadas do poema, a efusão dos sentimentos, entusiasmo) ou por lavor (“suor”, o trabalho, a técnica, lapidação da forma), retomando o discurso metalinguístico sobre a produção poética. Num poema de meticulosa e intencionada técnica e de um intenso – e alucinado – esforço de expandir os limites da subjetividade, o poeta discute, enfim, se a arte poética é fruto da lapidação das palavras, do uso metódico de formas-fórmulas; ou dum entusiasmo em que a poesia se oferece ao poeta, como um dom. Apesar de o poema encerrar-se em uma dúvida, possível resposta à dúvida seria a dimensão criada por Rubens em todos os seus voos. O “dentro alado” da epígrafe, o “abrir de asas” do fim e o “voo circunflexo” da obra são voos que fecham sobre si mesmos. A lírica é, enfim, algo que fecha sobre si mesma. O verso que versa, vai e vem; a subjetividade que em sua delineação, dentro dos limites do eu, tem uma infinita abrangência – estejam as asas do pássaro do poema fatigadas ou prestes a alçar novo voo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FILHO, R. R. T. Vôo Circunflexo, 1981. In: ______. Novolume. São Paulo: Iluminuras, 1997.