Academia.eduAcademia.edu

Estágio Supervisionado nas Licenciaturas

RAÍDO v.8, n.15 UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS Coordenadoria Editorial Revista Semestral do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD Dourados, v.8, n.15, jan./jun. 2014. UFGD Reitor: Damião Duque de Farias Vice-Reitor: Wedson Desidério Fernandes COED Coordenador Editorial da UFGD: Edvaldo Cesar Moretti Técnico de Apoio: Givaldo Ramos da Silva Filho FACALE Diretor da Faculdade de Comunicação Artes e Letras: Rogério Silva Pereira Conselho Editorial Consultivo Adair Vieira Gonçalves (UFGD-Brasil) André Luiz Gomes (UnB-Brasil) América Lucia César (UFBA-Brasil) Carmen Mejia Ruiz (Universidad Complutense de Madrid-Madrid) Edgar Cézar Nolasco dos Santos (UFMS-Brasil) Eneida Maria de Souza (UFMG-Brasil) Idelber Avelar (University of Tulane-New Orleans-USA) Leoné Astride Barzotto (UFGD-Brasil) Lisa Block de Behar (Universidad de la República-Uruguay) Luiz Gonzaga Marchezan (UNESP-Brasil) Luiz Roberto Velloso Cairo (UNESP-Brasil) Manuel Fernando Medina (University of Louisville-USA) Marcelo Marinho (Universidade de Quebec-UQAM-Montreal) Miguel Angel Fernández (UNA-Asunción-PY) Norma Wimmer (UNESP-Brasil) Pablo Rocca (Universidad de la Republica – Montevidéu /Uy) Paulo Sérgio Nolasco dos Santos (UFGD-Brasil) Rita de Cássia Aparecida Pacheco Limberti (UFGD-Brasil) Wander Melo Miranda (UFMG-Brasil) Raído: Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFGD / Universidade Federal da Grande Dourados (v.8, n. 15, jan./ jun. 2014) -. Dourados, MS : UFGD, 2014 -. Semestral ISSN 1984-4018 1. Linguística Aplicada. 2. Estágios Supervisionados. 3.Escrita do professor. RAÍDO v.8, n.15 UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS Coordenadoria Editorial Raído: Revista do PPG em Letras | Dourados, MS | v.8 n. 15 | p. 1 - 296 | jan./jun. 2014 RAÍDO v.8, n.15, jan./jun. 2014 Editores Adair Vieira Gonçalves e Wagner Rodrigues Silva Revisão A revisão gramatical é de responsabilidade dos(as) autores(as). Editoração Eletrônica, Produção Gráica, Fabrício Trindade Ferreira ME Correspondências para: UFGD/FACALE Rua João Rosa Goes n. 1761, Vila Progresso Caixa Postal 322 CEP 79825-070 - Dourados-MS Fones: +55 67 3410-2015 / Fax: +55 67 3410-2011 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ......................................................................................................7 LETRAMENTO 1. O estágio supervisionado e a voz social do estagiário / Trainees’ social voice in a teaching internship program .......................................................................................................... 13 Marília Curado Valsechi (UNICAMP/CAPES) Angela Bustos Kleiman (UNICAMP/CNPq) 2. A professora regente disse que aprendeu muito: a voz do outro e o trabalho do professor iniciante no estágio / The school teacher said she learned a lot: voice of the other and prospective teacher´s work in the practicum ........................................................................................ 33 Carla Lynn Reichmann (UFPB) 3. Projeções como práticas acadêmicas de citação na escrita reflexiva profissional de relatórios de estágio supervisionado / Projections from academic citation practices in the professional reflective writing of supervised teacher training reports ...................................... 45 Lívia Chaves de Melo (UFT) Adair Vieira Gonçalves (UFGD/CNPq) 4. Investigação científica na docência universitária: reescrita como uma atividade sustentável na licenciatura / Scientific research in undergraduate teaching: rewritten as a sustainable activity in teacher training course..................................................................... 71 Wagner Rodrigues Silva (UFT) Janete Silva dos Santos (UFT) Aliny Sousa Mendes (UFT/CAPES) PRÁTICA ESCOLAR DE LINGUAGEM 5. Mobilizando olhares de estagiários em letras sobre as aulas de português e literatura na escola / Mobilizing the views of teacher trainees in letras about portuguese and literature classes in school ................................................................................................................ 97 Clara Dornelles (UNIPAMPA) 6. Olhares sobre as práticas de linguagem na aula de língua inglesa em contexto de estágio supervisionado ............................................................................................ 117 Cristiane Carvalho de Paula Brito (UFU) 7. Estágio de docência supervisionado: um caminho para desenvolvimento da compreensão leitora e da consciência textual / Supervised teaching practice: a way to reading comprehension and textual consciousnes development........................................................ 135 Vera Wannmacher Pereira (PUC/RS) Leandro Lemes do Prado (PUC/RS) POLÍTICA DE FORMAÇÃO INICIAL 8. Diálogo entre teoria e prática: a pesquisa em estágio / Dialogue between theory and practice: the research in teacher training ......................................................................... 155 Antonio Francisco de Andrade Júnior (UFRJ) 9. Estabelecendo parâmetros enunciativos para a avaliação de Relatórios de Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa / Establishing enunciative parameters to Portuguese Supervised Stage reports .................................................................................................. 175 Silvana Silva (UNIPAMPA) 10. Textos de estagiários e o professor observado: relações entre um ser genérico e um profissional efetivo / Texts of trainees and the teacher observed: relations between an idealistic and an effective professional ............................................................................................ 191 Luzia Bueno (USF) 11. Estágio supervisionado e ensino de língua portuguesa: reflexões no curso de Letras/ português da UFPB / Supervised practice and portuguese language teaching: Reflections in the letters/portuguese course in UFPB ................................................................................... 205 Socorro Cláudia Tavares de Sousa (UFPB) Josete Marinho de Lucena (UFPB) Daniela Segabinaz (UFPB) TECNOLOGIA NO ENSINO 12. O mundo lá fora, o da escola: interação em fórum digital no estágio supervisionado sob a perspectiva da sociossemiótica / The world out there, the school’s one: interaction in digital forum on supervised internship in the perspective of sociosemiotic............................ 227 Luiza Helena Oliveira da Silva (UFT/CAPES) 13. A formação pré-serviço do professor de língua estrangeira em curso de licenciatura: crenças e reflexões em experiências de estágio supervisionado em diferentes contextos (sala de aula e teletandem) / Pre-service education of foreign language teachers: beliefs and rflections in initial teaching practices in different contexts (classroom and teletandem) ........ 249 Marta Lúcia Cabrera Kfouri Kaneoya (UNESP/S.J.Rio Preto) INCLUSÃO 14. Estágio supervisionado em educação de surdos na perspectiva da educação inclusiva: relato de experiência / Teacher training in deaf education from the perspective of inclusive education: experience report ............................................................................................ 267 Michelle Nave Valadão (UFV) Carla Rejane de Paula Barros Caetano (UFV) Juliana da Silva Paula (UFV) 15. Estágio supervisionado e a docência indígena: um caso Karajá / Supervised traineeship and the indigenous teaching: a Karajá case ...................................................................... 283 Caroline Pereira de Oliveira (UFMS) Rogério Vicente Ferreira (UFMS) Universidade Federal da Grande Dourados APRESENTAÇÃO ESTÁGIO SUPERVISIONADO NAS LICENCIATURAS A organização deste volume da Revista Raído, destinado ao Estágio Supervisionado nas Licenciaturas, mostrou-nos a consolidação deste periódico no domínio acadêmico nacional e a configuração dos estágios supervisionados como uma área emergente de estudos científicos em Linguística Aplicada (LA)1. Esses fatos são evidenciados a partir da quantidade de artigos com os quais trabalhamos na organização do periódico: 47 (quarenta e sete) artigos foram recebidos em resposta à chamada amplamente divulgada para o volume temático; 15 (quinze) artigos foram aprovados, aproximadamente 32% dos textos recebidos; 24 (vinte e quatro) artigos não foram selecionados, ou seja, 52% dos trabalhos recebidos; 8 (oito) artigos foram enviados fora da temática, perfazendo 17% de textos não avaliados por nossos pareceristas. Foram recebidos artigos de todas as regiões do Brasil, o que pode ser ilustrado pelas universidades aqui representadas (PUC/RS; UFPB; UFG; UFGD; UFMS; UFT; UFU; UFV; UNESP; UNICAMP; UNIPAMPA; USF), sendo os autores dos trabalhos reunidos em cinco seções intituladas, conforme o enfoque de pesquisa apresentado nos artigos: Letramento; Prática Escolar de Linguagem; Política de Formação Inicial; Tecnologia no Ensino; Inclusão. Esses títulos evidenciam que os estágios supervisionados funcionam como pontes mais seguras para as pesquisas científicas alcançarem as salas de aula do Ensino Básico, o que, conforme já revelaram inúmeras pesquisas acadêmicas (cf. LÜDKE CRUZ, 2005; LÜDKE e BOING, 2012), configura-se como um enorme desafio para diferentes disciplinas ou campos do conhecimento que lidam com o ensino e a formação de professores, a exemplo da LA2. Todos os artigos divulgados neste volume trazem pesquisas desenvolvidas nas Licenciaturas em Letras, envolvendo o ensino e a formação de professores de línguas, o que nos deixa em débito com o leitor no tocante às pesquisas a respeito de usos da linguagem em outras licenciaturas, o que fora focalizado em trabalhos recebidos, mas, lamentavelmente, não selecionado para publicação. Como área de investigação na LA, as pesquisas a respeito dos estágios das diferentes licenciaturas possibilitam a construção de objetos de pesquisa diversos, envolvendo a escola e a universidade (cf. SILVA, 2012; SILVA; BARBOSA, 2011). É nos estágios supervisionados obrigatórios das licenciaturas que tais instituições de ensino inevitavelmente se encontram, poProvavelmente, há leitores que apresentarão restrições ao fato de reunirmos todos os trabalhos aqui sob o guarda-chuva da Linguística Aplicada. Nossa opção se conigura como uma resposta à antiga prática de situar as pesquisas em Linguística Aplicada como uma subárea da Linguística. Nesta situação, por que o inverso não seria uma resposta audível dos linguistas aplicados aos linguistas que, oportunamente, vislumbram percorrer caminhos não comumente por eles trilhados? 2 Na década de 1990, Moita Lopes (1996, p. 32) já destacava que uma “questão de grande interesse na comunidade brasileira de LA tem sido a da formação do professor. Acredita-se que os desenvolvimentos teóricos e práticos dos programas de LA não conseguiram ir além do mundo acadêmico e alcançar o mundo relativamente distante da sala de aula de línguas, onde a prática de ensinar e aprender línguas se desenvolve”. 1 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 7 dendo desencadear o encontro demandado por anos entre teoria acadêmica e prática profissional, tanto do ponto de visto do ensino, como no da pesquisa científica. De alguma forma, os artigos reunidos neste volume sinalizam o caminho promissor dessa área de investigação emergente na LA, cujo percurso pode ser visualizado em diferentes fontes de investigação científica, todas geradas no complexo contexto das disciplinas de estágio, requerendo tratamento teórico e metodológico diversificado (cf. SILVA, 2013; PEREIRA, 2014). Em Letramento, são reunidos os seguintes artigos, cujas pesquisas apresentadas envolvem o letramento do professor em formação inicial: “O estágio supervisionado e a voz social do estagiário”, de Marília Curado Valsechi (UNICAMP/CAPES) e Angela Bustos Kleiman (UNICAMP/CNPq); “A professora regente disse que aprendeu muito: a voz do outro e o trabalho do professor iniciante no estágio”, de Carla Lynn Reichmann (UFPB); “Projeções como práticas acadêmicas de citação na escrita reflexiva profissional de relatórios de estágio supervisionado”, de Lívia Chaves de Melo (UFT/CAPES) e Adair Vieira Gonçalves (UFGD/CNPq); e “Investigação científica na docência universitária: reescrita como uma atividade sustentável na licenciatura”, de Wagner Rodrigues Silva (UFT), Janete Silva dos Santos (UFT) e Aliny Sousa Mendes (UFT/CAPES). Em Prática Escolar de Linguagem, encontram-se os seguintes artigos, cujas pesquisas apresentadas focalizam a construção de objetos de ensino por professores em formação inicial, para regências de aulas de língua do ensino básico: “Mobilizando olhares de estagiários em letras sobre as aulas de português e literatura na escola”, de Clara Dornelles (UNIPAMPA); “Olhares sobre as práticas de linguagem na aula de língua inglesa em contexto de estágio supervisionado”, de Cristiane Carvalho de Paula Brito (UFU); e “Estágio de docência supervisionado: um caminho para desenvolvimento da compreensão leitora e da consciência textual”, de Vera Wannmacher Pereira e Leandro Lemes do Prado (PUC/RS). Em Política de Formação Inicial, os textos tratam de pesquisas que investigam usos de diferentes instrumentos de mediação na formação inicial do professor na Licenciatura em Letras, os quais podem contribuir para uma formação teórica estritamente articulada a demandas da prática de ensino na educação básica: “Diálogo entre teoria e prática: a pesquisa em estágio”, de Antonio Francisco de Andrade Júnior (UFRJ); “Estabelecendo parâmetros enunciativos para a avaliação de Relatórios de Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa”, de Silvana Silva (UNIPAMPA); “Textos de estagiários e o professor observado: relações entre um ser genérico e um profissional efetivo”, de Luzia Bueno (USF); e “Estágio supervisionado e ensino de língua portuguesa: reflexões no curso de Letras/português da UFPB”, de Socorro Cláudia Tavares de Sousa et al (UFPB). Em Tecnologia no Ensino, há artigos cujas pesquisas focalizam usos de tecnologias como instrumentos de mediação em situações de ensino, instauradas em contextos Universidade Federal da Grande Dourados complexos dos estágios das licenciaturas: “O mundo lá fora, o da escola: interação em fórum digital no estágio supervisionado sob a perspectiva da sociossemiótica”, de Luiza Helena Oliveira da Silva (UFT/CAPES); e “A formação pré-serviço do professor de língua estrangeira em curso de licenciatura: crenças e reflexões em experiências de estágio supervisionado em diferentes contextos (sala de aula e teletandem)”, de Marta Lúcia Cabrera Kfouri Kaneoya(UNESP). Em Inclusão, estão dois relatos de experiência de estágio supervisionado realizado em contextos de ensino de grupos minoritários, os quais são invisibilizados em pesquisas da LA a respeito da referida disciplina acadêmica obrigatória nas licenciaturas: “Estágio supervisionado em educação de surdos na perspectiva da educação inclusiva: relato de experiência”, de Michelle Nave Valadão et al (UFV); e “Estágio supervisionado e a docência indígena: um caso Karajá” Caroline Pereira de Oliveira (UFMS) e Rogério Vicente Ferreira (UFMS). Finalmente, desejamos diálogos produtivos aos leitores deste volume temático da Raído. Agradecemos a colaboração de todos os autores responsáveis pelas pesquisas divulgadas e, inclusive, aos autores que não tiveram seus textos selecionados. Esperamos novas colaborações dos referidos autores e, inclusive, dos leitores com os quais iniciamos um novo diálogo a partir deste ponto que, ironicamente, precisamos identificá-los como final. REFERÊNCIAS LÜDKE, Menga; BOING, Luiz A. Do trabalho à formação de professores. In: Caderno de Pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas. v. 42, n. 146, p. 428-451, 2012. _____; CRUZ, Giseli B. da. Aproximando universidade e escola de educação básica pela pesquisa. In: Caderno de Pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas. v. 35, n.125, p. 81-109, 2005. MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Oficina de Linguística Aplicada. Campinas: Mercado de Letras, 1996. PEREIRA, Bruno G. Professores em formação inicial no gênero relatório de estágio supervisionado: um estudo em licenciaturas paraenses. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras: Ensino de Língua e Literatura. Araguaína: UFT, 2014 (em andamento). SILVA, Wagner R. Escrita do gênero relatório de estágio supervisionado na formação inicial do professor brasileiro. Revista Brasileira de Linguística Aplicada. Belo Horizonte: UFMG/ALAB, v. 13, n. 1, p. 171-195, 2013. _____. (O rg.). Letramento do professor em formação inicial: interdisciplinaridade no estágio supervisionado da licenciatura. Campinas: Pontes Editores Editores, 2012. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 9 Universidade Federal da Grande Dourados _____; BARBOSA, Selma M. A. D. Desafios do estágio numa licenciatura dupla: flagrando demandas e conflitos. In: Adair V. Gonçalves; Alexandra S. Pinheiro; Maria E. Ferro (Orgs.). Estágio supervisionado e práticas educativas: diálogos interdisciplinares. Dourados: Editora da UEMS, 2011. p. 179-202. Dourados (MS) / Araguaína (TO), 24 de abril de 2014. Adair Vieira Gonçalves (UFGD/CNPq) Wagner Rodrigues Silva (UFT) 10 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 LETRAMENTO Universidade Federal da Grande Dourados O ESTÁGIO SUPERVISIONADO E A VOZ SOCIAL DO ESTAGIÁRIO THE SUPERVISED TRAINEESHIP’ AND THE SOCIAL VOICE OF THE TRAINEEIN A TEACHING INTERNSHIP PROGRAM Marília Curado Valsechi* Angela Bustos Kleiman** RESUMO: Neste artigo, analisamos um pequeno recorte de um corpus gerado para uma pesquisa de doutorado em andamento que tem por objeto o estágio supervisionado do curso noturno de Licenciatura em Letras de uma instituição pública paulista. Procuramos apresentar uma voz social do estagiário a fim de entendermos a sua concepção do estágio supervisionado e como a organização dos estágios supervisionados pela instituição de ensino superior forja seu olhar para a prática do estágio. Inserido no campo transdisciplinar da Linguística Aplicada, nosso estudo fundamenta-se nos Estudos de Letramento e na teoria sócio-enunciativa do Círculo de Bakhtin. A metodologia utilizada na pesquisa é qualitativo-interpretativista de cunho etnográfico, visto que busca compreender seu objeto constituído na prática social, a partir da lógica interna dos seus sujeitos: os estagiários. A análise discursiva de dois documentos oficiais, um dado de interação em sala de aula e uma entrevista mostra que os eixos de sentido articulados pela palavra enunciada no texto do documento oficial e na fala do sujeito de pesquisa, atualizada pelas apreciações valorativas dos enunciatários, desvelam a histórica situação de desvalorização dos estágios supervisionados no contexto acadêmico e de anulação da agência do estagiário. Palavras-chave: estágio supervisionado; letramento; formação do professor; apreciações valorativas. ABSTRACT: In this paper we analyze a small segment of an on-going thesis project that has as its research object a guided internship program for a language teacher training night course in a public state university in the State of São Paulo. Our objective is to present the trainees’ social voice in order to understand his conception of the supervised traineeship and the manner in which the structure of the internship program determines how they view the program. The work follows a transdisciplinary approach characteristic of Applied Linguistic studies and is supported theoretically by the New Literacy Studies and the Bakhtin Circle approach to discourse studies. The methodology used is qualitative and interpretive, aimed at the construction of ethnographic descriptions revealing the social practices involved in the traineeship from the trainees’ perspective. Doutoranda em Linguística Aplicada pelo Instituto de Estudos da Linguagem (UNICAMP). E-mail: [email protected] **Professora titular colaboradora do Instituto de Estudos da Linguagem (UNICAMP). Email: [email protected] * Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 13 Universidade Federal da Grande Dourados We analyze the discourse of two official documents and the oral texts produced by one trainee in classroom interaction and in an interview with the supervisor of the internship program. The analysis shows that both the text in the documents and the trainee´s speech reveal the historical evaluative response to guided internship programs in academic contexts and the negation of the trainees’ potential for social agency. Keywords: internship program for language teachers; literacy studies; teacher education; evaluative accent. INTRODUÇÃO Na área de pesquisas voltadas para a formação do professor, parte-se do pressuposto de que o estágio curricular supervisionado é de extrema relevância para a formação docente, por ser considerado o lugar privilegiado para a almejada articulação teoria e prática na formação inicial. Em decorrência, é consensual também a ideia de que o estágio não se constitui como a “parte prática” da licenciatura em detrimento de reflexões teóricas, realizadas em disciplinas consideradas “teóricas”; por essa razão também o estágio não pode mais ser considerado como o único componente responsável pela formação do docente para a efetiva prática em sala de aula. Na literatura da área da Educação, alguns pesquisadores o concebem como “atividade teórica instrumentalizadora da práxis” (cf. PIMENTA e LIMA, 2011); outros o definem como “ponto nevrálgico no processo de formação de nossos futuros professores” (LÜDKE, 2009). Por muito tempo objeto das pesquisas da Educação, o estágio supervisionado passou a ser, mais recentemente, objeto de investigação da Linguística Aplicada (cf. BUENO, 2007; MACHADO, 2007; MELO, 2011; REICHMANN, 2012; SILVA, 2013), campo em que esta pesquisa se insere. A centralidade na linguagem, a sua relevância social, o compromisso ético com os participantes, a transdisciplinaridade definem nosso trabalho como uma pesquisa em Linguística Aplicada. Gostaríamos também de ter um impacto na realidade social de modo a transformá-la (FABRÍCIO, 2006), porém, considerando as rígidas normas (quase leis) impostas pela tradição na universidade brasileira, sabemos ser isso ainda uma utopia, pois, como Kleiman (2013, p. 56) afirma em relação aos complexos problemas da universidade, todos eles “viram insignificantes, de fácil solução, frente à questão de mudanças curriculares que não obedeçam ao cânone estabelecido ao longo de décadas de tradição ‘científica’”. A transformação da ‘disciplina’ do estágio certamente depende de uma transformação anterior à organização disciplinar fragmentada, que separa os saberes práticos dos analíticos e teóricos. Entretanto, como mostraremos neste artigo, essa continua sendo a concepção dos cursos de licenciatura, mesmo daqueles comprometidos com a mudança, e de seus alunos, sujeitos históricos responsivos a essa concepção. 14 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Mesmo com essas limitações, no entanto, as reflexões críticas oriundas de nossa pesquisa podem fornecer subsídios para as disciplinas de estágio na universidade que abre suas portas para a pesquisa sobre o assunto, tal como acontece em outras pesquisas que assumem a perspectiva1 dos estudos da linguagem e do letramento em contextos educacionais. Tais reflexões críticas justificam a relevância social do nosso trabalho no contexto da formação inicial do professor. Neste artigo, analisaremos um pequeno recorte de um corpus gerado para uma investigação maior de Doutorado. Serão examinados o Projeto Político Pedagógico e o Projeto de Estágio do curso de Licenciatura em Letras, a fim de conhecermos o contexto institucional em que os estagiários estavam envolvidos, e dados de interação em sala de aula e de entrevista com um dos sujeitos participantes da pesquisa. Procuramos apresentar uma voz social do estagiário a fim de entendermos como esse participante vê o estágio supervisionado a partir da sua vivência e como a organização dos estágios supervisionados pela instituição de ensino superior forja seu olhar para essa prática. ESTUDOS DE LETRAMENTO E PERSPECTIVA SÓCIOENUNCIATIVA DA LINGUAGEM NUMA ABORDAGEM ETNOGRÁFICA DO ESTÁGIO A pesquisa visa analisar os textos produzidos pelos sujeitos de pesquisa, dentre outros documentos, com o objetivo geral de entender como se dá a inserção de estagiários na situação específica do estágio supervisionado do curso noturno de Licenciatura em Letras de uma instituição de ensino superior pública paulista. A escolha do estágio supervisionado nesse contexto está relacionada à trajetória profissional de uma das autoras deste artigo, que atuou, por três anos e meio consecutivos, como professora substituta na referida instituição, trabalhando com as disciplinas de estágio em língua materna e que foi, ela mesma, egressa da Licenciatura em Letras da mesma instituição. Quando aluna de graduação, chamava-lhe atenção e a comovia a intensa atuação da sua professora de estágio em língua materna na luta por mudanças nos estágios supervisionados do curso de Letras e das licenciaturas da instituição de modo geral. Por exemplo, o compromisso dessa docente com a educação no ensino superior levou-a a reivindicar abertura de concurso específico para um profissional que atuaria com estágios supervisionados em língua estrangeira, após o argumento das instâncias superiores da universidade de que qualquer professor do Departamento de Educação poderia realizar esse trabalho. Atuando como professora substituta alguns anos mais tarde na mesma instituição, o envolvimento com uma nova realidade dos estágios supervisionados, em virtude das modificações curriculares realizadas e também do lugar social que passou a ocupar – de aluna para professora –, despertou na ex-aluna 1 Essa é a perspectiva do Grupo de pesquisa Letramento do Professor, do qual as autoras participam, que investiga práticas de leitura e escrita do professor e de outros agentes de letramento em uma perspectiva identitária. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 15 Universidade Federal da Grande Dourados o desejo de transformar a situação dos estágios supervisionados em língua materna da Licenciatura em Letras, o que a impulsionou para a pesquisa do tema, já mencionada. O foco da pesquisa é a prática social do estágio, tal qual evidenciada nas diversas atividades realizadas pelos estagiários e investigada por meio de uma metodologia de cunho etnográfico, entendida como “perspectiva intelectual que envolve uma forma de olhar e que busca compreender de dentro a lógica interna dos próprios participantes2” (ZAVALA, 2013). A escolha metodológica, no paradigma qualitativo-interpretativo, se justifica em um estudo que tem por objeto a prática social e cujos dados são gerados no seu contexto natural de produção. De caráter longitudinal, a pesquisa analisa textos produzidos pelos sujeitos ao longo de quatro semestres em que a pesquisadora ministrou a disciplina de estágio. Para alcançarmos a visão holística de uma pesquisa qualitativa, realizamos a triangulação de dados provenientes de diversas fontes: aqueles produzidos pelos sujeitos de pesquisa no contexto da prática social acadêmica e profissional, tais como relatórios de estágio, planos de aula, diários reflexivos, questionário de avaliação da disciplina de estágio; aqueles provenientes de textos de outros enunciadores, tais como os diários de campo da professora do estágio, produzidos em função das aulas na universidade; planejamento das disciplinas de estágio; transcrição de aulas áudio gravadas na universidade; transcrição de reuniões realizadas entre docentes responsáveis pelas disciplinas de estágios supervisionados das licenciaturas da instituição3; documentos oficiais, como o Projeto Político Pedagógico e o Projeto de Estágio. A esse amplo espectro de dados, acrescentam-se entrevistas semiestruturadas realizadas com alguns alunos formados (“ex-estagiários” atuando como professores de Língua Portuguesa na escola). A abordagem metodológica etnográfica na geração dos dados é complementada com uma perspectiva analítica linguístico-enunciativo-discursiva. Para essa análise, a perspectiva dialógica do Círculo de Bakhtin é teoricamente relevante, pois o dialogismo está diretamente ligado à alteridade: é em função do outro que o enunciado é formulado, tanto o outro a quem o enunciador fornece a réplica – que, ao mesmo tempo em que responde, suscita outras respostas –, quanto o outro que lhe fornecerá a réplica, antecipada pelo enunciador. A duplicidade de orientação do enunciado na cadeia comunicativa define a natureza da permanente interação com os enunciados dos outros, nos quais imprimimos nossa apreciação valorativa (VOLOCHINOV/ BAKHTIN, ([1929] 1995). Para compreendermos como se dá a inserção do estagiário no estágio supervisionado, realizamos uma microanálise dos textos que o estagiário produz e das interações de que participa a fim de determinar que sentidos e valores são construídos nos seus textos Tradução do espanhol. Esta e as demais traduções pertencem às autoras. Participavam destas reuniões, em média, seis professores de um total de treze docentes do departamento responsáveis pelos estágios supervisionados de diversas licenciaturas. 2 3 16 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados bem como os modos de apropriação dos enunciados do outro, o professor universitário. Nos dados de interação, o destinatário é a voz da academia e, portanto, para o enunciador, essa voz pode coincidir com a pessoa a quem o estagiário se dirige, a professora substituta pesquisadora. Também analisamos textos produzidos por outros enunciadores, em que a relação intersubjetiva acontece entre o enunciatário autor do documento – a voz de professor de estágio – e o destinatário – constituído pela voz do corpo docente da Licenciatura em Letras –, e o objeto da enunciação sendo construído é o estágio. A análise dos documentos oficiais, para compreendermos a apreciação valorativa do estágio da instituição de ensino superior envolvida, deixa, portanto, vislumbrar aquilo que Blommaert apud Zavala (2013) denomina de “contexto macroscópico”. Nossa concepção de estágio está atrelada à perspectiva dos Estudos de Letramento, que compreende os usos da língua escrita como práticas sociais situadas, permeadas por relações de poder e de identidade (STREET, 1984; KLEIMAN, 1995). O estágio é uma prática social letrada. As pesquisas sobre letramentos costumam destacar a centralidade do conceito de “prática” para os estudos de letramento, devido a seu caráter articulador entre as estruturas abstratas (que seriam os recursos simbólicos, conhecimentos, valores sociais, identidades) e os eventos concretos realizados em lugares específicos, como a sala de aula na escola, na universidade. Zavala caracteriza adequadamente essa concepção quando diz que nas práticas sociais, as pessoas se comprometem, constroem identidades, desenvolvem relações sociais com outros membros da comunidade, utilizam artefatos especíicos, reproduzem valores implícitos no marco de um sistema ideológico particular e, desta maneira, constituem a sociedade e a cultura (ZAVALA, 2011, p. 55). Para poder participar dessa prática social letrada, o estagiário deve atender a várias demandas decorrentes do estatuto do estágio como exigência curricular acadêmica obrigatória: procedimentos burocráticos (como a solicitação de termos de compromisso, devidamente assinado por alguns agentes envolvidos), preparo teórico-prático a ser realizado na instituição de ensino superior, trabalho pedagógico (no tratamento dos conteúdos que serão ensinados aos alunos, por exemplo), vivência na escola dentro e fora da sala de aula. No seu desenvolvimento, tanto a universidade quanto a escola estão envolvidas: os estagiários desenvolvem relações sociais com o formador acadêmico, os professores supervisores do estágio da escola, o coordenador pedagógico, os alunos da Educação Básica. Em se tratando de uma prática situada, as formas específicas de interação com os sujeitos envolvidos e os significados que serão construídos nessas interações se dão de maneira particular, de acordo com a forma de inserção do estagiário nessa prática que é, simultaneamente, acadêmica e profissional e que, como Kleiman e Reichmann (2012, p. 159) afirmam, “reflete, reforça e transforma os valores culturais e ideológicos da esfera em que essa prática se desenvolve”. Entretanto, para que o estágio possa colaborar para o letramento profissional do professor, que contempla não só os “conteúdos” da disciplina a ser ministrada, mas Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 17 Universidade Federal da Grande Dourados também “conhecimentos sobre as condições específicas de trabalho, as capacidades e interesses da turma, a disponibilidade de materiais e o acesso que a comunidade tem a eles” (KLEIMAN, 2008, p.512), é preciso que as práticas acadêmicas exigidas nesse espaço estejam bem articuladas às práticas exigidas pelo local de trabalho docente. DA CONFIGURAÇÃO DO ESTÁGIO NO PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO AOS EIXOS DE SENTIDO NO PROJETO DO ESTÁGIO: DOCENTE RESPONSÁVEL E ALUNO Para entender o contexto macro dos discursos sobre o estágio na instituição, iniciaremos a análise pelo Projeto Político Pedagógico (PPP) do curso de Licenciatura em Letras. Embora o documento tenha 114 páginas, 90 delas correspondem aos programas de ensino com as ementas das disciplinas que compõem o curso. As 25 páginas do projeto propriamente dito tratam dos objetivos gerais da Licenciatura em Letras, do perfil profissional, dos principais pontos da reestruturação curricular, da estrutura curricular, da transição entre a estrutura curricular vigente e a estrutura curricular proposta, da grade horária e da avaliação. O “estágio supervisionado” é abordado na seção “A reestruturação curricular proposta: pontos principais”, em um parágrafo, no qual se descrevem as mudanças relativas à distribuição da carga horária do estágio, havia tempo reivindicadas pelos alunos do curso: Na estrutura curricular proposta, adequada à contagem dos créditos, a carga horária exigida de 400 horas para o estágio supervisionado eleva-se para 420 horas, que corresponde a 28 créditos, igualmente divididos entre as disciplinas de ‘Estágios Curriculares Supervisionados: Língua Materna’ e ‘Estágios Curriculares Supervisionados: Língua Estrangeira’. Diferentemente da estrutura curricular então vigente, essa carga horária destinada às atividades de estágio permitiu a sua distribuição nos dois últimos anos do curso, reivindicação já bastante antiga. Como poderá ser veriicado mais adiante, parte das atividades dessas disciplinas, teórica, por assim dizer, será desenvolvida em sala de aula e igurará, portanto, na grade horária do curso. Principalmente para os alunos do período noturno, está garantido espaço na grade horária para o cumprimento da parte restante, prática, por assim dizer, que se desenvolverá sob forma de estágio de observação, de regência, de visita a escolas, minicursos etc. (cf. quadros 8 e 9). [Texto da subseção “O Estágio Supervisionado”, negrito acrescido] A nova distribuição dos estágios supervisionados, em atendimento a uma “reivindicação já bastante antiga”, em mais um ano da licenciatura, constitui um avanço real do estágio no curso de formação de professores. Entretanto, apesar da mudança, algumas concepções sobre a natureza do fazer científico são mantidas. A expressão atenuadora do compromisso dos enunciadores com a justeza da apreciação sobre a teoria e a prática no estágio, “por assim dizer”, em 18 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados “parte das atividades dessas disciplinas, teórica, por assim dizer, será desenvolvida em sala de aula e figurará, portanto, na grade horária do curso” e, mais adiante, “o cumprimento da parte restante, prática, por assim dizer” remete a uma antiga concepção dicotômica da relação teoria e prática, por um lado, e a uma concepção tradicional, elitista, sobre a produção do saber, por outro: o que se faz no espaço da aula universitária (excetuando a disciplina de estágio, ‘por assim dizer’?) é sempre teórico, ao passo que a prática é aquilo que se faz nas escolas-campo (“estágio de observação, de regência, de visita a escolas, minicursos etc.”). É interessante destacar que, com a reestruturação curricular, houve um acréscimo no prazo mínimo de integralização do curso noturno da Licenciatura em Letras, que passou de quatro para cinco anos, justamente para possibilitar mais tempo ao aluno para cumprir suas atividades acadêmicas fora de sala de aula. Não obstante, mudanças na grade curricular de modo a ter “espaço garantido na grade horária” do curso noturno para o cumprimento da realização dos estágios nas escolas não são previstas no documento, que parece desconsiderar as condições que impedem sua plena realização. Obstáculos temporais e locais são ignorados, como a dificuldade em conciliar o horário disponível na grade horária para ida à escola e o desenvolvimento do estágio com as demais disciplinas acadêmicas do curso. O escasso tempo (duas horas no total) para realizar o estágio durante o período de estudo universitário de fato inviabiliza a sua realização no mesmo período das aulas acadêmicas4. No documento Projeto de Estágio (PE) é definida a estrutura e organização dos estágios supervisionados do referido curso de Licenciatura em Letras, inclusive a carga horária. De autoria da professora responsável pelas disciplinas de Estágio Supervisionado na área de língua materna e assinado por ela e pelo coordenador de curso da época de produção do documento (2008), o projeto foi apresentado ao Conselho de Curso para fins de normatização do estágio na Licenciatura em Letras da instituição. Encontramos dois enunciadores no documento, na voz do corpo docente responsável pela formação do professor de Letras e naquela dos diretamente responsáveis pela disciplina do estágio, que coincide com a voz do autor do texto. O documento não tem como destinatário o estagiário, que desconhece o texto por não ter acesso a ele. Trata-se de um documento de 14 páginas, dividido em seis seções: uma introdução, seguida da definição do conceito de estágio, distribuição e organização da carga horária, coordenação e supervisão dos estágios, distribuição e carga horária dos estágios, avaliação das atividades e coordenação geral, suporte e apoio às atividades de estágio. O documento finaliza com as referências bibliográficas, data e local (cidade) de produção do texto e os nomes e assinaturas da autora do PE e do coordenador do curso. 4 A grande maioria dos universitários do curso noturno de Letras depende de transporte coletivo. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 19 Universidade Federal da Grande Dourados Há, no documento, reiteradas referências à legislação educacional5, o que indica atenção às restrições impostas por esta à produção de projetos pedagógicos, como o PE, mas também sugere uma intencionalidade em destacar a consonância da voz dos enunciadores com as leis, no que diz respeito ao escopo de possibilidades das atividades de estágio na licenciatura. Os guias curriculares para a disciplina de Estágio são bastante flexíveis. Aproveitando essa flexibilidade, o PE define que o estagiário deve cumprir 210 horas de estágio para cada habilitação. Horas realizadas em sala de aula na Universidade, regências ministradas a alunos em salas de aula da escola pública, desenvolvimento de projetos de minicurso ministrado dentro ou fora da Universidade, participação em projetos escolares6, atividades de reflexão são, todas elas, modalidades de estágio possíveis de serem vivenciadas. A palavra “docente” ativa um dos eixos de sentido articulados no documento. Responsabilidade, acompanhamento, monitoração, coordenação, supervisão estão entre os significados elaborados na discussão do estágio. Assim, o docente universitário – um docente do Departamento de Educação – é construído como o agente que concentra maior poder em relação à atividade: Caberá ao docente do Departamento de Educação preparar o Estagiário para essas atividades, dando-lhe embasamento metodológico e didático especíicos para o ensino e aprendizagem de LE e suas literaturas e trabalhando, junto a esse futuro proissional, técnicas e estratégias de ensino e aprendizagem desses componentes curriculares, voltadas para a sala de aula do ciclo II do ensino fundamental e para o ensino médio, monitorando-o em todas as modalidades de Estágio II (regências, projeto de 20 horas e minicurso) e instruindo-o, pedagogicamente, no planejamento de atividades para a sala de aula do ensino fundamental e do médio. [Página 11 do PE, grifos no original, negrito acrescido] O segundo eixo do sentido é ativado pela palavra estagiário, a mais recorrente no documento; há 51 referências (incluindo as formas pronominais remissivas), que constroem noções com pequenas diferenças entre si: o aspecto profissional, o acadêmico, o identitário (“estagiário”, “licenciando”, “futuro profissional”, “futuro professor”, “aluno”). Entretanto, as noções de protagonismo e agência não são construídas no desenvolvimento do tema. O estagiário é apresentado gramaticalmente na função de objeto da ação do professor universitário, que o acompanha, monitora, coordena, orienta, redireciona, prepara, como no trecho abaixo: 5 Parecer CNE/CP nº 1/2002(cinco vezes citado); Parecer CNE/CP nº 2/2002 (4 vezes citado); Parecer CNE/CP nº 27/2001 (4 vezes); Parecer CNE/CP nº 9/2001 (1 vez); Resoluções CNE 1 e 2/ 2002 (1 vez); Resolução da Universidade (2 vezes citada). 6 Consta no PE que, caso haja impossibilidade de o licenciando participar de tais projetos, poderia ser combinado com o professor de estágio a substituição desta atividade por análise de material didático. Após a proposta de um professor do Departamento de Estudos Linguísticos e Literários de realização de um trabalho interdisciplinar entre as disciplinas “ECSII: língua materna” e “Semântica da Língua Portuguesa”, envolvendo análise de material didático e elaboração de planos de aula, passou-se a utilizar essa carga horária para o desenvolvimento desse trabalho. 20 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Ao docente do Departamento de Educação competirá acompanhar, monitorar, coordenar e intermediar o contato do estagiário com a escola campo de estágio e supervisionar o desenvolvimento de todo o processo de Estágio (I e II) da formação inicial do licenciando em Letras, orientando-o, metodológica e pedagogicamente, e redirecionando ações especíicas nesse campo, sempre que necessário. [Página 13 do PE, negrito acrescido] No decorrer do documento, encontramos o uso de agente da passiva para descrever as atividades do estagiário, como em 16 (dezesseis) horas/aula para análise/relexão, em sala de aula, sob a supervisão direta de docente do Departamento de Educação, que conduzirá essa “atividade de relexão” com base nas três modalidades de ESTÁGIO CURRICULAR SUPERVISIONADO realizadas pelos estagiários. [Página 8 do PE, ênfase no original, negrito acrescido] Esses usos, quando são contrapostos à recorrente posição de objeto das ações realizadas pelos docentes universitários (os agentes, de fato, na tríade estagiário – professor supervisor – docente universitário) e à seleção lexical usada para construir noções ao longo desse eixo de sentido (dar embasamento, estabelecer planos, acompanhar desenvolvimento, efetivar, avaliar, supervisionar, instruir, monitorar, encarregado responsável) constituem pistas linguísticas claras da voz do estagiário na tríade: poucas vezes caracterizado como um agente humano (aquele que faz ou causa as ações, e que segundo a gramática de casos ocuparia o papel de sujeito da frase)7. Logo, a palavra “estagiário” não ativa os eixos de sentido associados ao conceito de agente social (ARCHER, 2000), especificamente, o de um agente de letramento capaz de articular interesses partilhados pelos aprendizes, organizar uma turma na escola para a ação coletiva, auxiliar na tomada de decisões sobre determinados cursos de ação, interagir com outros agentes (neste caso, o docente universitário e o professor supervisor na escola), adaptar seus planos de ação segundo as necessidades (KLEIMAN, 2006). No documento, a descrição das ações do estagiário se limita ao cumprimento da carga horária dos estágios e à realização e entrega dos instrumentos de avaliação solicitados (relatórios, projeto de minicurso, artigo, apresentação de seminários). O conceito corresponde àquele de aluno, que tem de cumprir com suas obrigações acadêmicas, orientado por um professor. Não há referência explícita ou implícita a um agente que, ao atuar na escola básica, tente experimentar ou levar contribuições para os professores dessa esfera, com metodologias inovadoras ou com diferentes perspectivas na compreensão de problemas escolares. Nem poderia, porque, como já apontamos, a sua agência na escola não é cogitada. A relação entre estagiário e professor da escola campo não é contemplada no documento, nem como parceria nem como relação entre aprendiz iniciante e experiente mestre do ofício. Tendo em vista que os leitores do documento são os membros do conselho de curso, a valoração do papel do professor acadêmico pode ser compreendida como 7 Teoria proposta por Fillmore (1968); ver descrição para ins de formação do professor em Kleiman e Sepulveda (2012). Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 21 Universidade Federal da Grande Dourados uma maneira de projetar a voz do professor da disciplina de estágio, mostrando a necessidade de maior reconhecimento ao trabalho desse profissional, por parte da instituição8 e de um maior envolvimento do corpo docente com a disciplina. O apagamento linguístico da voz do enunciador, aqui como em todo o documento, não implica que seu lugar discursivo privilegiado esteja também apagado, como indicam as avaliações subjetivas valorativas (“oportuno”), o uso da 3ª pessoa do presente do indicativo, que marca os dizeres tomados como verdadeiros (“é’, “supõe”, “envolve”) e as modalizações deônticas (“não pode”, “necessariamente”), recuperadas do texto legislativo, que modificam a distribuição de poder na instituição: É oportuno lembrar que, de acordo com as diretrizes do CNE/CP, o Estágio é um processo formativo que supõe a atuação conjunta de todos os docentes de um curso de graduação, seja este curso licenciatura ou bacharelado. Sendo assim, o Estágio não pode icar sob a responsabilidade de um único professor, mas envolve necessariamente uma atuação coletiva de formadores (Parecer CNE/CP, 9/2001, homologado em 17/1/2002 e publicado no Diário Oicial da União de 18/1/2002, Seção I, p.31) [Página 10 do PE, ênfases no original, negrito acrescido] A articulação do discurso do enunciador autor ao longo de um terceiro eixo de sentido, o de poder, evidencia os conflitos institucionais na sua esfera de ação: a tentativa de combater forças ou vontades sociais mais poderosas revela um posicionamento subordinado do professor da disciplina de estágio em relação às disciplinas ‘acadêmicas’ propriamente ditas9. O enunciador do documento é um docente da disciplina de estágio tentando dialogar com seus colegas no coletivo do Conselho. Seu discurso atua como força centrífuga tentando mitigar o poder regulador do discurso hegemônico, na concepção discursiva de Bakhtin ( [1934-35/1975] 1988), resistindo à construção de uma imagem depreciadora do trabalho do professor de estágio supervisionado e, consequentemente, do próprio estágio. A compreensão desse jogo de forças que atuam sobre a palavra permite-nos conhecer a apreciação valorativa (VOLOCHINOV/ BAKHTIN, 1995 [1929] inscrita nos enunciados do documento, quais os sentidos imbricados nos enunciados atribuídos pelos próprios interlocutores em relação a si mesmos e ao objeto do discurso. A palavra, como bem apontam os teóricos do Círculo “produto da interação do locutor e do ouvinte” e “expressão a um em relação ao outro” e, “em última análise, em relação à coletividade”. (VOLOCHINOV/BAKHTIN, ([1929]/1995), p.113) “é Conforme evidencia o relato apresentado na primeira seção do artigo sobre a reivindicação da professora de estágio diante da negação da universidade em abrir concurso para contratação docente sob a alegação de que o trabalho com os estágios supervisionados em línguas prescinde de proissionais especializados na área. 9 Ao professor responsável pela disciplina de estágio é exigida mais dedicação, pois, além do preparo das aulas da disciplina, existe o trabalho de supervisão de estágios, o que inclui desde visitas à escola até atendimento individual (ou em grupos) com os estagiários sob sua responsabilidade. Pimenta e Lima (2011, p.100) consideram “precárias” as condições institucionais para o exercício docente no ensino superior. Baseando-se em Alarcão (2003), as autoras mencionam o elevado número de alunos e diiculdades dos docentes universitários, “que muitas vezes não recebem o devido reconhecimento por essa atividade [de supervisão]”, comum a diversos países. 8 22 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados sempre acompanhada por um acento apreciativo determinado”. (VOLOCHINOV/ BAKHTIN, ([1929]/1995). Qual o efeito desse acento apreciativo no estagiário? Mesmo que o documento não o contemple como interlocutor, mesmo sem acesso ao texto, a ausência da agência, por um lado, e o lugar ocupado pelo estágio na grade da licenciatura, por outro, são históricos. Os sujeitos participantes da pesquisa, os estagiários, necessariamente carregam marcas de sua situação histórica (KLEIMAN, 2013), como mostraremos na seção a seguir. CONDIÇÃO HISTÓRICA E VOZ DO ESTAGIÁRIO Na disciplina de estágio objeto da pesquisa de doutorado já mencionada foram introduzidas algumas atividades para ouvir a voz do aluno e engajá-lo na sua própria formação. Visando a esses objetivos, eram realizadas rodas de discussão dos textos produzidos pelos estagiários contando suas experiências, eram identificados os temas que lhes eram relevantes, também para discussão e debate, foi elaborado um blog da turma para que os estagiários pudessem realizar atividades, compartilhar textos, notícias e fazer comentários nas postagens dos colegas. Um dos temas que foi recorrentemente abordado, destacando-se nos textos, dizia respeito à própria estrutura do estágio da instituição. Ele foi, por isso, um dos objetos de uma roda de discussão realizada no dia de entrega dos relatórios de regência, no início do segundo semestre da disciplina de estágio. Sentados em círculo, os estagiários faziam seus apontamentos à medida que se sentiam à vontade para isso. Em um dado momento, uma estagiária levanta o problema da insuficiência de tempo para conhecer os alunos da educação básica para quem devem ministrar as aulas e caracteriza o estágio como um espaço “tumultuado”. Em seguida, outro estagiário (Osmar)10 toma a palavra e aponta como principal problema do estágio a sua estrutura, incompatível com a realidade do aluno do curso noturno de Licenciatura em Letras: 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 10 Osmar: o problema desse estágio é que é no último ano e a gente tem quarenta horas desse estágio, mais quarenta do outro, mais catorze do outro, mais catorze do outro, os professores do quinto ano exigindo da gente uma postura de um aluno do quinto ano, eles não querem mais aqueles textos de qualquer jeito e a maioria trabalha então assim acabam que essas quarenta horas elas é:: transtornam com as nossas vidas, elas acabam com a nossa vida por quê? porque como é que você tira quarenta horas da sua vida, claro, pensando-se numa pessoa que só vive e faz isso nada mais justo do que você se preparar pra isso, sabe? só que essa não é a realidade do curso de letras Professora: uh-hum Osmar: a realidade do curso de letras Clara: ((em voz baixa)) [do noturno] Os nomes são ictícios para preservar a identidade dos sujeitos. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 23 Universidade Federal da Grande Dourados 14 15 16 17 18 19 20 21 Osmar: é um pessoal que trabalha bastante, é um pessoal que muitos aqui se não trabalhar não tem o que comer, então como é que você chega no seu serviço e fala assim “olha, eu preciso de QUARENTA HORAS para dar um estágio”, mas aí você resolve uma matéria Profa: uh-hum uh-hum Osmar: e você tem que resolver outra e outra e outra e outra e outra... [Transcrição11 da roda de discussão realizada com a turma de Estágios Curriculares Supervisionados II no dia 13/08/2012] Osmar critica o acúmulo de atividades acadêmicas no último ano do curso: na sua fala, o estágio em questão é apenas mais uma obrigação, dentre as muitas exigências a serem cumpridas nessa etapa da formação (“a gente tem quarenta horas desse estágio, mais quarenta do outro, mais catorze do outro, mais catorze do outro, os professores do quinto ano exigindo da gente uma postura de um aluno do quinto ano...”). Cria-se um efeito de sentido de exasperação do coletivo (construído por Omar pelo uso dos pronomes na primeira pessoa do plural “nossa(s)”, “a gente”) por meio da reiteração dos advérbios “mais” e “outro” e da conjunção “e” com a função de operadores argumentativos aditivos (KOCH, 2003) (apesar de os argumentos não serem sempre explicitados): “aí você resolve uma matéria /.../ e você tem que resolver outra e outra e outra e outra e outra”. O estágio tem sido considerado um entrelugar (BABHA, 1998) socioprofissional na fronteira (REICHMANN, 2012, p.108; SILVA, 2012), um espaço híbrido, que envolve, ao mesmo tempo, a esfera acadêmica e a profissional pelas quais o estagiário transita. No entanto, o mundo do trabalho não chega a ser abrangido pela disciplina acadêmica de estágio, ele inexiste para o estagiário e, nesse sentido, a caracterização de Fontana (2011) do estágio como um não lugar é apta: caberia ao estagiário encontrar, ou melhor, conquistar, o seu lugar na escola de acordo com os sentidos que vai construindo na interação com os atores da escola. Entretanto, o enunciado de Osmar indica que não há construção de sentidos possível. Em vez de um não lugar passageiro, temos aqui um não lugar permanente, portanto permanentemente desprovido de sentidos e novas significações. A experiência do estágio não colabora na constituição de sua identidade profissional. Isso porque apenas a disciplina acadêmica é importante. Em vez de funcionar como um entrelugar socioprofissional eficaz o estágio acaba tornando-se algo que transtorna, acaba e tira horas da vida dos estagiários (“transtornam com as nossas vidas, elas acabam com a nossa vida por quê? porque como é que você tira quarenta horas da sua vida”), como já mostrado em trabalho anterior (VALSECHI, 2014). O eixo de sentido construído pela palavra “transtorno de vida” aponta para uma valoração muito negativa do estágio, magnificada pela hipérbole da morte (“acabar com a vida”). Isso porque, na opinião do estagiário, não há espaço suficiente na grade curricular para a conciliação das práticas de estágio supervisionado com as exigências das demais disciplinas acadêmicas do curso, ao contrário do que prevê o Adotamos as seguintes convenções de transcrição: / interrupção ou corte brusco da fala; ... pausa de pequena extensão; /.../ suspensão de trecho da gravação original; :: alongamento da vogal; “ ” discurso reportado; MAIÚSCULA aumento na entonação da voz com efeito de ênfase; (( )) comentário do analista; negrito dá mais destaque nos dados para ins analíticos. 11 24 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados texto do PPP, mas que é, de certa forma, esperado nas entrelinhas do texto do PE, conforme análise na seção anterior. A fala do estagiário dialoga com as réplicas do texto do PE que denunciam o jogo de forças em que o estágio supervisionado está envolvido. Da mesma forma que, no discurso do PE, o movimento de valorização da agência do professor de estágio evidencia que o componente “acadêmico” era considerado mais relevante pelo destinatário do documento, também a fala do estagiário revela que o estágio também é posicionado em lugar subordinado na grade curricular tendo que competir por espaço ou tempo de realização com as demais disciplinas acadêmicas. Assim, a condição histórica de desvalorização do estágio supervisionado (ou dos profissionais envolvidos com essa prática) e a ausência de agência do estagiário é reacentuada em ambos os textos – PE e fala do estagiário – ainda que de modos diferentes. A fala de Osmar também parece remeter a algum discurso dos oprimidos, denunciando o conflito social existente entre a realidade do aluno da Licenciatura em Letras, que precisa trabalhar para se sustentar (linhas 14-15), e a estrutura curricular do curso, que ignoraria os limites que essa realidade impõe ao estagiário. Entretanto, não há discurso de resistência em construção. O sentido ativado pela palavra “trabalho” no seu texto está baseado em noções de trabalho como necessidade para uma sobrevivência mínima: o grupo de alunos trabalhadores “é um pessoal que trabalha bastante, é um pessoal que muitos aqui se não trabalhar não tem o que comer”. Constrói-se, ainda, certo distanciamento do grupo de colegas trabalhadores, pelo uso dos pronomes de 3ª pessoa e do discurso citado “então como é que você chega no seu serviço e fala assim ‘olha, eu preciso de QUARENTA HORAS para dar um estágio’”. Um semestre após ter cumprido as atividades de estágio e se formado em Letras, numa entrevista em resposta à pergunta da pesquisadora se o relatório de estágio era visto como uma atividade propiciadora de reflexão, Osmar pondera: Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 25 Universidade Federal da Grande Dourados 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 Osmar: só que não era o mais importante pra mim então isso tem uma dif/ isso DÁ um contraste muito grande porque quando você enxerga e num quer muito enxergar você tem que ((faz estalo com os dedos indicando pressa)) passar é... você não tem tempo hoje que você é de certa forma obrigado a vivenciar, obrigado a fazer não com obrigação como uma coisa ruim sabe? mas como parte do processo é:: você talvez é, volta aquela conversa, de se posicionar melhor de poder perguntar algumas coisas, sabe assim? porque é:: como é parte do processo você não escapa e não é não é ruim elaborar, você VAI elaborar, só que a elaboração depois pós-form/ depois que a gente tá formado em uma escola, ela não tem pressão COmo a gente tem na matéria que a gente tem prazo na matéria, a gente tem que cumprir e tem que fazer e o prazo é cu::rto e... eu sei lá eu acho que pra mim particularmente foi um PARto dar todas essas aulas porque a minha vida é mu::ito corrida e a gente deixou lá pro inalzinho /.../ então foi tudo de uma vez, é... pensado muito rápido de uma maneira muito assim, vamo cumprir isso aqui, temos que cumprir então às vezes eu acho que a matéria ela tem sido vista com esses olhos sabe assim? ter que cumprir e enquanto que às vezes devi/ deveria ser uma matéria um pouco mais disse::minada ao longo de mais anos assim /.../ /.../ por quê? porque aí você dá mais tempo pra fazer eu não sei se ia resolver mas eu acho que ia ser visto como mais:: ((pequena pausa)) com mais nitidez assim ia mais claro na cabeça do aluno por exemplo assim o que que eu tenho de muito claro desse processo pouca coisa percebe por quê? porque eu tinha um milhão de coisas pra fazer /.../ hoje eu posso hoje talvez eu possa falar assim ah eu vou voltar pra graduação, eu vou fazer mais com calma, eu vou per/ pensar... perguntar... sabe? eu vou reletir o processo porque eu eu acho que uma das propostas do do estágio é reletir /.../ ((rindo)) que você menos faz é reletir, e o que você mais faz é cumprir tabela sabe assim? (...) [Trecho da entrevista, realizada em 3 de julho de 2013] O enunciado de Osmar ativa dois eixos de sentido contrastantes, passado e presente. A palavra hoje, o momento da enunciação, mas também o período depois de se graduar, já atuando como professor, é acentuada pelas noções de vivência na profissão (“depois que a gente tá formado em uma escola”, “hoje que você é de certa forma obrigado a vivenciar, obrigado a fazer não com obrigação como uma coisa ruim”) e de reflexão voluntária (“você VAI elaborar, só que a elaboração depois pós-form/ depois que a gente tá formado em uma escola, ela não tem pressão COmo a gente tem na matéria”). O uso da expressão “contraste muito grande” reforça a posição axiológica de Osmar quanto à divergência dos dois momentos sob comparação: o enunciado remete a outro sentido, antes, um momento anterior ao atual, quando ainda cursava disciplinas, no qual sua apreciação valorativa do estágio não se baseava na experiência como professor. Os conceitos que são trazidos nessa construção sobre o passado relativos ao curso, às disciplinas, ao estágio, às exigências de escrever relatórios reflexivos são todos avaliados negativamente (“pra mim particularmente foi um PARto dar todas essas aulas”), por serem atividades impostas e pelos prazos exíguos para poder cumpri-las. A noção de cumprimento e, a ela associada, de obrigação, é recorrente no texto, com base no verbo “cumprir” reforçado pelo verbo modalizador deôntico, “ter que”, listando deveres do estagiário: “tem que cumprir”, “tem que fazer”, “vamos cumprir isso aqui”, “temos que 26 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados cumprir”, “ter que cumprir”. É interessante salientar que a sugestão trazida por Osmar a fim de modificar a visão que se tem da disciplina de estágio leva em consideração uma redistribuição do estágio ao longo do curso (“deveria ser uma matéria um pouco mais disse::minada ao longo de mais anos assim”), que acreditamos ser necessária, mas não questiona as demais disciplinas acadêmicas, que, numa perspectiva que toma o estágio supervisionado como o eixo da licenciatura, teriam que sofrer modificações. Esse posicionamento parece ser resultante de uma licenciatura distante das questões de ordem prática que acabam aparecendo especificamente nos estágios supervisionados. Por outro lado, a vivência atual, isto é, a experiência como professor, é acentuada positivamente no discurso do ex-estagiário, e a reflexão nesse período da vida do professor é construída positivamente, como “parte do processo”, porque permite “se posicionar melhor”, “perguntar”; “elaborar essa reflexão”. Na modalização avaliativa desse processo construída pelo enunciador, a experiência “não é ruim” porque “não tem pressão”. Mesmo a palavra “reflexão” é ressignificada quando é usada para se referir a atividades no momento atual. Apesar de ter sido tematizada no estágio, para Osmar, a atividade reflexiva realizada na esfera profissional, quando se assume definitivamente o papel de professor da sala de aula, é inerente à atividade profissional, faz parte de uma rotina da qual não se escapa, que é “obrigado a fazer não com obrigação como uma coisa ruim”. Um terceiro eixo de ativação de sentidos é o conceito de tempo, desta vez não ao longo do eixo contrastante passado versus presente, mas como um objeto maleável, que pode passar lenta ou rapidamente. Essa forma de conceber o tempo (uma metáfora cognitiva, segundo Lakoff and Jonhson, 1980) traz para o enunciado as noções de encurtamento do tempo decorrente das exigências das disciplinas do curso, inclusive da disciplina de estágio: existência de “pressão”, cumprimento de “prazo curto”, dificuldade de dar aulas por causa da “vida muito corrida”, resultado que foi “pensado muito rápido”, devido à quantidade de trabalho com “milhões de coisas para fazer” e à procrastinação “a gente deixou lá pro finalzinho”. Também os gestos do enunciador ajudam a construir a noção de pressa e tempo curto, como os repetidos estalos com os dedos. Uma vez que o curso de Letras noturno é constituído por alunos que geralmente trabalham em período integral, a crítica de Osmar está relacionada novamente à oposição entre as condições reais do licenciando em Letras do período noturno e a quantidade de exigências acadêmicas curriculares que devem ser cumpridas. O objetivo do relatório de estágio era justamente fomentar a reflexão, mas, para o enunciador, a reflexão só acontece quando se vivencia a situação profissional atual – quando se é professor. Os sentidos atribuídos à experiência e aos textos produzidos no contexto do estágio evidenciam que a produção dos relatórios de reflexão ficou “longe de funcionar como instrumentos mediadores entre as práticas de letramento acadêmico e as práticas de letramento profissional” (KLEIMAN; REICHMANN, 2012, p.161). Não há potencial viabilizador do reposicionamento do estagiário enquanto Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 27 Universidade Federal da Grande Dourados agente do processo em que se encontra inserido, pelo processo de reflexão sobre a sua visão de mundo, sua concepção de ser professor e os processos de ensino e aprendizagem. O entrelugar que a experiência de estágio propiciaria – lugar privilegiado que permitiria, em princípio, mobilizar, atualizar e participar de práticas letradas acadêmicas e escolares, não se concretiza na experiência do estagiário, cuja identidade, nessa fase, continua a de um aluno iniciante, com pouca maturidade, com limitadas possibilidades de assumir-se agente de sua própria formação. Esta observação é corroborada em outro contexto estudado por Bueno (2007, p.150). Em relação aos gêneros elaborados no estágio, a autora argumenta que enquanto os dispositivos utilizados para a formação forem os mesmos de avaliação do estagiário, o estágio continuará sendo visto como “mais uma disciplina da graduação em que se atribui uma nota”. A possibilidade de ampliação dos horizontes de dizer do enunciatário, por meio da interação com um destinatário real, o docente pesquisador, que traz outras vozes, a partir de outras posições enunciativas, com outras apreciações valorativas, não se concretiza, pelas razões socio-históricas já discutidas. A alteridade construída na interação não chega a prevalecer sobre outros significados socioculturais já construídos. Daí que a identidade socioprofissional do professor, a ser constituída no diálogo e na alteridade, não consiga emergir nesses enunciados, que trazem vozes, concepções de mundo continuamente convocados ao longo dos cinco anos da Licenciatura em Letras. Ela só será reorganizada quando outras teias de significações são instituídas, ou acentuadas, mesmo que provisoriamente, como em toda construção identitária, na escola. CONSIDERAÇÕES FINAIS O recorte de dados da tese aqui analisado sugere um processo de refração dos valores culturais implícitos no sistema ideológico da universidade no discurso do estagiário, que valoriza as disciplinas da esfera acadêmica em detrimento de outras atividades. Se, por um lado, o estágio supervisionado contribui para o letramento profissional do professor, inclusive para o seu desenvolvimento como agente; por outro, a desvalorização da prática de estágio, simultaneamente acadêmica e profissional, dificulta a concretização do potencial reconfigurador de identidades, do ser, sentir e agir aluno para o ser, sentir e agir professor. Isso é particularmente evidente quando o estagiário está inserido na cadeia comunicativa do curso universitário, que apaga a sua agência nas relações sociais com membros envolvidos no estágio. Por outro lado, há movimentos discursivos que buscam romper com as assimetrias de poder da instituição, que posicionam desfavoravelmente o trabalho do docente universitário responsável pelo estágio. Essa resistência representa uma importante luta, na arena discursiva, para melhorar o estágio e reposicionar os profissionais que aí exercem suas atividades. 28 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Por isso, para além da mudança na grade curricular, como já efetuada na universidade que forneceu o contexto da pesquisa, e que não parece, como os dados parciais sugerem, ter representado mudanças significativas na concepção do estágio supervisionado, acreditamos ser necessário o redimensionamento da avaliação axiológica do estágio supervisionado e dos agentes envolvidos, principalmente o estagiário, que acaba carregando as marcas históricas de sua situação. Assim, as mudanças na grade curricular seriam decorrentes dessa mudança maior e, acreditamos, surtiria efeitos mais positivos nas apreciações valorativas dos estagiários sobre essa atividade essencial na formação. Isso não é tarefa fácil. Uma das grandes dificuldades do processo de transformação dos cursos na universidade brasileira é a rigidez desta para adaptar-se a uma sociedade em constante mudança e para aceitar formas de construir conhecimentos que não sejam aquelas validadas por anos de tradição, mesmo quando se constata uma ruptura de diálogo com o aluno e um defasado ou insuficiente preparo para o mundo do trabalho. Momentos de subjetividade como os permitidos pela docente pesquisadora dão acesso a identidades e sistemas de valores e conhecimentos geralmente apagados na aula universitária. As pesquisas do grupo a que pertencemos visam melhorar o ensino e a formação do professor. Pesquisas críticas como esta, em que o objeto de pesquisa não é apenas objeto de observação e análise, mas é reacentuado por compromissos éticos e políticos com sujeitos cujas histórias não são ouvidas, constituem um passo importante para admitir a pluralidade de vozes, romper os arcaicos monopólios do saber, intervir na realidade social e, talvez, um dia, mudá-la. REFERÊNCIAS ALARCÃO, Isabel. Supervisão da prática pedagógica. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 2003. ARCHER, Margaret S. Being Human: The Problem of Agency. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. BABHA, Homi K. O lugar da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998. BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. São Paulo: Hucitec/UNESP, [1934-35/1975] 1988. BRASIL. Ministério de Educação e Cultura. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP n. 009/2001, de 08 de maio de 2001. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, do curso de licenciatura, de graduação plena. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/ pdf/009.pdf>. Acesso em: 21 de outubro de 2013. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 29 Universidade Federal da Grande Dourados ______. Conselho Nacional de Educação. Resoluções CNE/CP no. 1/2002, de 18 de fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, do curso de licenciatura, de graduação plena. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/rcp01_02. pdf>. Acesso em: 24 de outubro de 2013. ______. Ministério de Educação e Cultura. Conselho Nacional de Educação. Resoluções CNE/CP n. 2, de 19 de fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, do curso de licenciatura, de graduação plena. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/ cne/arquivos/pdf/rcp01_02.pdf>. Acesso em: 24 de outubro de 2013. BUENO, Luzia. A construção de representações sobre o trabalho docente: o papel do estágio. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem)- Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP), São Paulo, 2007. FABRÍCIO, Branca. F. Lingüística Aplicada como espaço de desaprendizagem: redescrições em curso. In: MOITA-LOPES, L. P. (Org.). Por uma Lingüística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006, p. 45-65. FILLMORE, Charles J. The case for case. In: BACH, E.; HARMS, R. T. (Orgs.). Universals in Linguistic Theory. New York: Holt, Rinehart & Winston, 1968. FONTANA, Roseli A. C. Estágio: do labirinto aos frágeis fios de Ariadne. In: GONÇALVES, A. V.; PINHEIRO, A. S.; FERRO, M. E. (Orgs.). Estágio supervisionado e práticas educativas: diálogos interdisciplinares. Dourados (MS): Editora UEMS, 2011, p.19-31. KLEIMAN, Angela. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. In: ___. (Org.). Os significados do Letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995, p. 15-61. ______. Processos identitários na formação profissional – o professor como agente de letramento. In: Corrêa, Manoel (Org.). Ensino de Língua: Letramento e Representações. Campinas: Mercado de Letras, 2006, p.75-91. ______. Os estudos de letramento e a formação do professor de língua materna. Linguagem em (Dis)curso, v. 8, p. 519-541, 2008. ______. Agenda de pesquisa e ação em Linguística Aplicada: problematizações. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). Linguística Aplicada na modernidade recente: festschrift para Antonieta Celani. SP: Parábola, 2013, p. 39-58. ______; REICHMANN, Carla. ...tive uma visão melhor da minha vida escolar: Letramentos híbridos e o relato autobiográfico no estágio supervisionado. Caderno de Letras (UFPEL), v.18, p.156-175, 2012. ______; SEPULVEDA, Cida. Oficina de gramática: metalinguagem para Principiantes. Campinas: Pontes Editores Editores, 2012. 30 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados KOCH, Ingedore. A inter-ação pela linguagem. 8ª ed. São Paulo: Contexto, 2003. LAKOFF, G. e JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago: The University of Cjicago Press, 1980. Tradução brasileira de M. Zanotto e V. Maluf, Metáforas da vida cotidiana, Educ/Mercado de Letras 2002. LÜDKE, Menga. Universidade, escola de educação básica e o problema do estágio na formação de professores. Formação Docente. Belo Horizonte, v.1, n.1, p.95-108, ago/ dez 2009. Disponível em: <http://formacaodocente.autenticaeditora.com.br/artigo/ exibir/1/5/1>. Acesso em: 15 de maio de 2012. MACHADO, Hellen A. Uma radiografia das competências mínimas do professor pré-serviço através de uma prática de ensino/estágio supervisionado de inglês: um estudo de caso. 2007. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) – Universidade de Brasília (UnB), Brasília, 2007. MELO, Lívia Chaves de. Relatórios de estágio supervisionado em ensino de língua inglesa: práticas auto-reflexivas de escrita 2011. Dissertação (Mestrado em Ensino de Língua e Literatura) – Universidade Federal do Tocantins (UFT), Araguaína, 2011. PIMENTA, Selma G.; LIMA, Maria Socorro L. Estágio e docência. 6ª ed. São Paulo: Cortez, 2011. REICHMANN, Carla L. Tecendo o gênero profissional: o estágio como prática de letramento docente e formação identitária. In: REICHMANN, C. L.; MEDRADO, B. P. (Org.). Projetos e práticas na formação de professores de língua inglesa. João Pessoa: Editora da UFPB, 2012, p.101-124. SILVA, Wagner Rodrigues (Org.). Letramento do professor em formação inicial: interdisciplinaridade no estágio supervisionado da licenciatura. Campinas, SP: Pontes Editores Editores, 2012. ______. Escrita do gênero relatório de estágio supervisionado na formação inicial do professor brasileiro. Revista Brasileira de Linguística Aplicada. Belo Horizonte, v.1, n.1, p.141-165, 2013. STREET, Brian. Literacy in theory and practice. Londres: Cambridge University Press, 1984. VALSECHI, Marília C. Entre (trans)formar e transtornar: o estágio supervisionado no documento oficial e na visão do estagiário do curso de Letras noturno. In: Anais do 2º Congresso Nacional de Formação de Professores e 12º Congresso Estadual Paulista sobre Formação de Educadores, 7-9 abril, Águas de Lindóia / Universidade Estadual Paulista, Pró-Reitoria de Graduação, p. 2239-2251, 2014. Disponível em: <http://www.unesp. br/prograd/e-livros-prograd/>. VOLOCHINOV, V. / BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud; Yara Frateschi Vieira. 7ª ed. São Paulo: Hucitec, [1929] 1995. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 31 Universidade Federal da Grande Dourados ZAVALA, V. La escritura académica y la agencia de los sujetos. In: Cuadernos Comillas, 1, p.52-66, 2011. ______. Literacidad académica, etnografía e interdisciplinariedad: una nueva mirada al objeto de estúdio. Conferência no VI Coloquio de Investigadores en Estudios del Discurso, junho de 2013. Disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=zel3aK_stls>. Acesso em: 19 de março de 2014. Recebido em 31/03/2014. Aprovado em 20/04/2014. 32 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados A PROFESSORA REGENTE DISSE QUE APRENDEU MUITO: A VOZ DO OUTRO E O TRABALHO DO PROFESSOR INICIANTE NO ESTÁGIO THE SCHOOL TEACHER SAID SHE LEARNED A LOT: THE VOICE OF THE OTHER AND THE PROSPECTIVE TEACHER’S WORK IN TRAINEESHIP Carla Lynn Reichmann* RESUMO: Levando em conta a relevância da escrita situada, este trabalho objetiva discutir o trabalho do professor estagiário. O estudo focalizará o professor de língua inglesa, investigando a voz do ‘profissional professor’ que ressoa em textos empíricos produzidos por cinco acadêmicos atuando no ensino médio (IFPB). A análise permitiu constatar que emergem vozes docentes significativas, convocadas do passado e do presente, ressaltando-se a importância vital da voz da professora colaboradora na escola-campo. Palavras-chave: estágio supervisionado; trabalho docente; letramento acadêmico-profissional; vozes enunciativas; Letras. ABSTRACT: Taking into account the relevance of the writing situated, this paper aims to discuss the work of the trainee teacher. The study will focus on the English teacher, investigating the voice of ‘professional teacher’ that resonates in empirical texts written by five academics acting in high school (IFPB). The analysis enabled to turn out that significant teachers voices arise from theses texts, convoked from the past and the present, stressing the vital importance of the voice of the collaborative teacher at the school-field. Keywords: supervised traineeship; teacher’s work; academic-professional literacy; enunciative voices; languages. * Professora Associada da Universidade Federal da Paraíba. E-mail: [email protected] Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 33 Universidade Federal da Grande Dourados INTRODUÇÃO Este artigo tem como objetivo geral investigar o trabalho do professor iniciante no âmbito do estágio supervisionado em Letras, com foco especial na voz do outro que ressoa em textos empíricos escritos por professores estagiários. Voltado para a formação inicial do professor de língua inglesa no ensino superior, cabe frisar que o presente recorte decorre de um projeto de pesquisa mais amplo situado na Linguística Aplicada, aliando os Estudos do Letramento, o Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) e as Ciências do Trabalho1. Levando em conta que o estagiário se encontra literalmente na fronteira, ou seja, em trânsito entre diversas instâncias vinculadas à universidade e à escola-campo, o estágio é aqui entendido como um entrelugar socioprofissional que permite letramentos híbridos (KLEIMAN e REICHMANN, 2012). Considero o estágio supervisionado como “um ponto nevrálgico da licenciatura” (LÜDKE, 2009), enfatizando que a perspectiva do “estágio como campo de conhecimentos e eixo curricular central nos cursos de formação de professores possibilita que sejam trabalhados aspectos indispensáveis à construção de identidade, dos saberes e das posturas específicas ao exercício profissional docente” (PIMENTA e LIMA, 2009, p.61). No Curso de Letras Estrangeiras da UFPB, foi a partir da reforma curricular de 2006 que o eixo do estágio curricular obrigatório na licenciatura em Letras-Língua Inglesa passou a ser responsabilidade dos professores de inglês; desde então, o trabalho docente por mim desenvolvido tem se direcionado, principalmente, ao trabalho do professor iniciante no estágio. Neste recorte, voltado para uma disciplina de estágio que ministrei em 2011 (direcionada ao ensino médio em uma escola pública federal em João Pessoa), discutirei especificamente a voz de ‘profissional professor’ que permeia os textos empíricos produzidos pelos estagiários e que incide na a voz do professor iniciante, visibilizando a suma relevância do professor colaborador na experiência vivida pelo estagiário, como já apontado por Lüdke (2009). Em relação à identidade socioprofissional, questão que norteou o referido projeto de pós-doutorado, na contemporaneidade, entende-se a identidade como um construto descentrado, instável e situado, como asseveram Hall ([1992] 2011) e Moita Lopes (2006), entre outros. Adoto a definição de identidade como uma condição transitória e dinâmica, construída na interação, segundo Kleiman (1998, p.280) e proponho que a identidade social do professor estagiário se constitui por meio de um coro de vozes de outros (interiorizadas) e de si (internas) que ressoam em seus textos empíricos, escritos na esfera do estágio supervisionado. Nesse sentido, o presente artigo, focalizando a voz do outro, dialogará com a seguinte questão norteadora: o que revelam as vozes docentes que emergem em textos empíricos escritos por professores estagiários? Na próxima seção, apresentarei sucintamente alguns conceitos relevantes advindos do marco teórico embasando este estudo. Posteriormente, descreverei a situação de produção dos três gêneros em foco e, na seção subsequente, analisarei as vozes docentes que emergem nos textos, constituídas como voz de personagem (BRONCKART O presente artigo se vincula ao projeto de pós-doutorado intitulado Práticas de letramento e formação de professores de língua estrangeira, realizado no IEL/UNICAMP (2011-2013) sob supervisão da Profª. Drª. Angela Bustos Kleiman, vice-coordenadora do grupo de pesquisa CNPq Letramento do Professor. 1 34 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados 1999, 2006, 2008). Por fim, tecerei algumas considerações a respeito da voz do outro e construção identitária do professor iniciante no âmbito do estágio supervisionado. ANCORAGEM TEÓRICA Neste estudo, considero a escrita situada como elemento identitário de formação (KLEIMAN, 2007), a centralidade da linguagem para a ciência do humano e que as práticas linguageiras situadas (os textos) são os instrumentos principais do desenvolvimento humano (BRONCART, 2006), como também considero o ensino como trabalho (MACHADO, 2004). Em consonância com os Estudos do Letramento, de acordo com Street (2003, p.79), práticas de letramento “referem-se à ampla concepção cultural sobre as maneiras particulares de se pensar sobre e fazer leitura e escrita em contextos culturais”. À luz dessa perspectiva, Kleiman (1995, p.11), esclarece que há múltiplas formas de usar a escrita, atreladas a variadas práticas socioculturais e históricas, também ressaltando (2007, p.5) que “uma situação comunicativa que envolve atitudes que usam ou pressupõem uso da língua escrita – um evento de letramento – não se diferencia de outras situações da vida social”, pois tal evento “envolve uma atividade coletiva, com vários participantes que têm diferentes saberes e os mobilizam (em geral cooperativamente) segundo interesses, intenções e objetivos individuais e metas comuns” (KLEIMAN, 2007, p.5). Nessa direção, e alinhando-me a Kleiman e Matêncio (2005), Gonçalves et. al (2011) e Silva (2012), vale esclarecer que na disciplina de estágio em foco foram desenvolvidos eventos de letramento específicos que geraram atividades e gêneros situados no âmbito da formação docente, como será visto na próxima seção. Em relação ao ensino como trabalho (MACHADO, 2004), apresentarei a seguir os aspectos mais pertinentes a este estudo. Voltadas para uma análise discursiva do trabalho docente, pesquisas nesta linha (CRISTÓVÃO, 2004; MACHADO et. al, 2011; BUENO et al, 2013, entre outros) têm se debruçado sobre textos na esfera da atividade educacional a partir do quadro do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) aliado às Ciências do Trabalho. Como Machado e Bronckart (2009) asseveram, diversas vertentes teóricas pertinentes foram envolvidas, tais como a Filosofia da Linguagem, a Linguística e a Psicologia do Trabalho. Fundadas nessa perspectiva, as investigações conduzidas pelo grupo de pesquisa GELIT-UFPB (MEDRADO e PÉREZ, 2011; FREUDENBERGER e PEREIRA, 2012; REICHMANN, 2012, entre outros), focalizam o agir humano em situação de trabalho levando em conta o papel fundador da linguagem, que se materializa em textos orais ou escritos produzidos pelos próprios trabalhadores (antes, durante ou após a atividade de trabalho). Em outras palavras, é de especial interesse o que se revela acerca de textos produzidos no e sobre o trabalho docente, por meio da investigação linguístico-enunciativa voltando-se, por exemplo, para a constituição do professor e seu agir profissional. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 35 Universidade Federal da Grande Dourados No presente artigo, serão investigadas as vozes enunciativas em textos empíricos escritos por estagiários para dessa forma verificar os pontos de vista docentes inscritos nos textos, ou seja, o que diz, vê e pensa o professor na escola. Bronckart (1999, p.326) salienta que as vozes “podem ser definidas como as entidades que assumem (ou às quais são atribuídas) a responsabilidade do que é enunciado”. As vozes inscrevem as instâncias enunciativas, assumindo a responsabilidade pelo que é dito (ou pensado), como também a responsabilidade pela interação entre o produtor do texto e destinatários. Nesta discussão, sintonizarei em especial com a voz de personagem (do outro, interiorizada) que se faz presente nos textos dos estagiários. Cabe esclarecer que vozes de personagens são entendidas como as vozes advindas de seres humanos (ou de entidades humanizadas) implicados nos acontecimentos do conteúdo temático de um segmento do texto (BRONCKART, 1999, p.327). Como ressalta Bronckart (2006, p.149), “essas vozes podem não ser traduzidas por marcas linguísticas específicas, podem também ser explicitadas por formas pronominais, sintagmas nominais ou, ainda, por frases ou segmentos de frases”. Ademais, em sintonia com a perspectiva dialógica da linguagem e a partir do conceito bakhtiniano de gênero discursivo, Clot (2007, p.41), situado nas Ciências do Trabalho, define outro conceito relevante neste estudo, a saber, gênero profissional. Este pode ser entendido como “um corpo intermediário entre os sujeitos, um interposto social situado entre eles, por um lado, e entre eles e o objeto de trabalho, por outro. De fato, um gênero sempre vincula entre si os que participam de uma situação, como coatores que conhecem, compreendem e avaliam essa situação da mesma maneira. O autor esclarece que o gênero profissional se fundamenta em uma memória coletiva da atividade, em um falar sobre o trabalho docente, podendo “definir-se como o conjunto de atividades mobilizadas por uma situação, convocadas por ela” (CLOT, 2007, p.44). Ou seja, salienta-se a dimensão coletiva e socio-histórica do trabalho, pois como esclarece Souza-e-Silva (2004, p.97), o gênero profissional é, de algum modo, a parte subentendida da atividade, aquilo que os trabalhadores de um dado meio conhecem, esperam, reconhecem, apreciam; o que lhes é comum e o que os reúne sob condições reais de vida; o que eles sabem dever fazer sem que seja necessário reespeciicar a tarefa cada vez que ela se apresenta. Existem tipos relativamente estáveis de atividades socialmente organizadas por um meio proissional, tipos por intermédio dos quais o mundo da atividade pessoal se realiza, se precisa em formas sociais que não são fortuitas, nem ocasionais, mas que têm uma razão de ser e uma certa perenidade. Em consonância com a perspectiva do ensino como trabalho (MACHADO, 2004), é relevante mencionar que “o reconhecimento de que o trabalho docente forma um corpo organizado de atividades, recursos e rotinas próprias, [...] pode levar a sua caracterização como um gênero profissional (FREUDENBERGER, 2012, p.125). Nessa linha de raciocínio, procurarei compreender melhor o gênero profissional do professor estagiário e refletir sobre o papel do professor colaborador no estágio. Na próxima seção, apresentarei a situação de produção. 36 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados RELATO FOTOBIOGRÁFICO, RELATO PÓSOBSERVAÇÃO E RELATÓRIO DE ESTÁGIO Os textos empíricos produzidos pelos estagiários se vincularam a diferentes eventos de letramento, correspondentes às fases vividas na disciplina de estágio em questão, a saber, a fase de memória educativa, a fase de observação e a fase de regência. Cada evento de letramento mobilizou atividades e gêneros situados, a saber, o relato fotobiográfico, o relato pós-observação virtual (em um blog) e o relatório de estágio, como pode ser vislumbrado a seguir: (i) Fase da memória educativa: esta fase inicial da disciplina envolveu uma visita à própria escola (da época do ensino médio), com o objetivo de fotografar o que captasse a atenção do universitário; seguiu-se a partilha das fotos em forma de seminário e, posteriormente, os estagiários produziram um relato sobre a experiência vivida, aqui denominado relato fotobiográfico. (ii) Fase de observação: nesta fase de entrada na escola-campo, devido à dispersão dos estagiários nas escolas, solicitei à turma que mantivéssemos contato por meio de um blog. Os estagiários passaram a postar suas reflexões e relatos pós-observação em um blog especialmente criado para este momento, dessa forma possibilitando a partilha de experiências. (iii) Fase de regência: a etapa final envolveu uma série de encontros presenciais na universidade, antes e depois da regência – tanto para se preparar para a ministração de aulas, como também para discutir e problematizar o relatório, promovendo uma análise reflexivo-crítica da prática. Produzidos em tal contexto, os excertos analisados na próxima seção foram escritos por cinco professores estagiários: discutirei um fragmento do relato fotobiográfico de João, dois fragmentos dos relatos pós-observação de Pedro e Lina e dois fragmentos do relatório de estágio de Gabi e Eva (especificamente da seção ‘Análise da prática de ensino’).2 Como Bronckart (1999, p.93) esclarece, um conjunto de parâmetros pode exercer uma influência sobre a forma como um texto é organizado, e fundado em Habermas (1987), aponta para dois grupos de parâmetros que se reúnem, a saber, o mundo físico e o mundo sociossubjetivo. Os parâmetros do mundo físico situam o comportamento verbal concreto de um agente-produtor em um espaço-tempo específico; os parâmetros do mundo sociossubjetivo, mais complexos, enquadram a produção textual como uma forma de interação comunicativa, isto é, em relação a lugares e papéis sociais. De acordo com Machado e Bronckart (2009, p. 49-50), tal situação de produção envolve os diferentes objetivos e papéis assumidos pelo agente-produtor do texto e 2 Vale dizer que as autorizações para a análise foram devidamente concedidas e que os nomes adotados são ictícios. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 37 Universidade Federal da Grande Dourados seu(s) destinatário(s). No quadro a seguir, apresento a situação de produção do relato fotobiográfico, relato pós-observação e relatório de estágio3. Quadro 1. Situação de produção dos três gêneros em foco RELATO FOTOBIOGRÁFICO AGENTEPRODUTOR ENUNCIADOR RELATO PÓSOBSERVAÇÃO RELATÓRIO DE ESTÁGIO Pessoa física - acadê- Pessoa física - acadê- Pessoa física - acadêmico na licenciatura mico na licenciatura mico na licenciatura em Letras Estrangeiras em Letras Estrangeiras em Letras Estrangeiras Papel social - acadêmico na licenciatura em Letras Estrangeiras/professor em formação inicial Papel social - acadêmico na licenciatura em Letras Estrangeiras/professor em formação inicial Papel social - acadêmico na licenciatura em Letras Estrangeiras/professor em formação inicial LEITOR Pessoa física – profes- Pessoa física – colegas Pessoa física – professora da disciplina de e professora da disci- sora da disciplina de estágio supervisionado plina de estágio super- estágio supervisionado visionado DESTINATÁRIO Papel social – professo- Papel social – profes- Papel social – professora orientadora do está- sores em formação ra orientadora do estágio supervisionado inicial e professora gio supervisionado orientadora do estágio supervisionado MOMENTO DE PRODUÇÃO Após a realização das Após entrada na esco- Após regência na esfotografias escolares e la-campo e aulas ob- cola-campo e discusseminário. servadas sões presenciais na universidade OBJETIVO COMUNICATIVO Relatar à professora de estágio a história vivida ao fotografar a própria escola e apresentar o seminário, mobilizando um conjunto de situações vividas antes da entrada na escola campo. Relatar ao coletivo de trabalho do estágio as impressões/reflexões sobre as aulas observadas. Relatar ações realizadas durante o estágio de observação e de regência, no ensino médio; cumprir o regulamento de estágio. Após esta breve descrição relativa à situação de produção textual, apresentarei a seguir os resultados e a discussão. 3 A referida numeração das três fases da disciplina é retomada no quadro. 38 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados VESTÍGIOS DE VOZES DOCENTES Nesta seção, dialogarei com a já mencionada questão norteadora: o que revelam as vozes docentes que emergem em textos empíricos escritos por professores estagiários? Durante a disciplina, as vozes de outros professores entrecruzavam as nossas falas constantemente, tanto vozes advindas do passado, como do presente compartilhado, como poderemos vislumbrar nos cinco fragmentos adiante. Levando em consideração o complexo contexto do estágio e as inúmeras questões consideradas pelos estagiários durante a escrita, vale esclarecer que este recorte focaliza principalmente a voz do outro, no caso, a voz de personagem ‘profissional professor’ que emerge nos textos4. Inicio esta discussão com um fragmento do relato fotobiográfico de João, que sob o impacto da partilha no seminário, discorre sobre a visita à sua caótica escola, como pode ser verificado a seguir (destaques meus): 1. Quando tirei as fotos na visita à escola na qual estudei durante o ensino médio, tive uma breve lembrança do tempo que vivi por lá e pouca coisa me veio à cabeça no tocante à memória escolar, porém no momento em que apresentei à turma, tive uma visão melhor da minha vida escolar e pude compartilhar o que pareceu um pouco diferente dos demais. Achei interessante ressaltar detalhadamente como na verdade funciona o ensino nas escolas públicas, os problemas encontrados nelas, principalmente problemas envolvendo segurança, falta de professores, falta de compromisso por parte dos diretores, e todos envolvidos no processo de educação. Uma das memórias mais marcantes desse período está ligada ao professor H, um ex-aluno dessa mesma escola, que dava a melhor aula de português, sempre conscientizando a turma de não deixar de estudar, a fim de obter um futuro melhor. (João, relato fotobiográfico). No excerto acima, é marcante a voz de personagem ‘professor H’, um ex-aluno no lugar social de professor de português na própria escola. Configurado como bom professor, podemos ouvi-lo incentivando os alunos a seguirem lutando, sinalizando a possibilidade de horizontes mais amplos e de um futuro diferente. Ou seja, emerge esta voz de personagem de incentivo, uma voz docente contundente e inspiradora que ressoa em um contexto adverso, pois é retratada uma escola onde tudo falta – falta segurança, falta professor, falta compromisso. Vale salientar que no fragmento acima emerge uma voz docente marcante, advinda do passado, que vem à tona a partir da visita à escola; no próximo trecho, extraído do relato pós-observação de Pedro, pode-se notar que é a partir da observação das aulas na escola-campo que ecoa a voz de personagem ‘profissional professor’ da época da escola: 4 Ou seja, esta análise não investiga o olhar crítico do estagiário para a própria prática proissional. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 39 Universidade Federal da Grande Dourados 2. Essa ótima fluência das aulas de inglês na escola me surpreendeu bastante, tendo em vista que as minhas aulas de inglês no ensino médio se resumiam a 1 hora semanal, onde o professor dificilmente conseguia realizar alguma atividade e os alunos pouco se importavam com a aula. E mesmo quando o professor finalmente conseguia fazer algo, a aula já estava se encaminhando para o final, com isso ele acabava dando as respostas do exercício que estávamos resolvendo "A número 1 é letra a; a número 2 é letra b..." (trágico). (Pedro, relato pós-observação no blog). O trecho informa que a aula de língua inglesa na escola-campo flui, em contraste com os pré-construídos do estagiário, evidentes neste fragmento – podemos notar como foi insatisfatória sua experiência escolar no passado, quando era aluno de língua inglesa. A aula observada e o contexto são avaliados de maneira positiva, respectivamente, por meio dos modalizadores nas frases ótima fluência e me surpreendeu bastante. Esse fato inesperado - isto é, a aula que funciona - desencadeia uma série de comentários sobre sua própria experiência na época escolar. Pedro aponta alguns problemas que complicam o trabalho do seu ex-professor, por exemplo, a carga semanal reduzida e desinteresse dos alunos. Os modalizadores atribuídos ao agir do ex-professor – dificilmente conseguia realizar, finalmente conseguia fazer, além da questão dos dizeres em aspas (ou seja, o professor adiantava as respostas aos alunos), resulta na seguinte avaliação da aula de inglês: simplesmente trágica. Diante da surpresa de Pedro, ao observar que a professora observada consegue realizar seu trabalho, fica evidenciada a relevância da inserção de estagiários em classes que funcionam, dessa forma possibilitando a ressignificação de pré-construídos e desconstrução/renovação do gênero profissional do professor iniciante. No próximo fragmento, extraído do relato pós-observação de Lina, também se pode notar a surpresa da estagiária em relação ao trabalho da professora colaboradora: 3. [A professora] começou a aula falando aos estudantes que ela os chamaria, uma dupla de cada vez, para mostrar as notas da prova que tinham feito na semana anterior. Ela também disse que ela daria um retorno a eles durante esse processo. Começou a fazer isso e em um momento os alunos estavam bagunçando e ela disse em uma voz meio alta “Vocês deveriam falar baixo, este é um momento importante, é importante para vocês terem esse retorno”. Achei que essa foi uma estratégia interessante. Fiquei espantada com a maneira que os alunos realmente a ouviram nesse momento. (Lina, relato pós-observação no blog). Ecoa a voz de personagem ‘profissional professora’ que começou a aula falando aos estudantes, os chamaria, disse que ela daria um retorno a eles. É perceptível a surpresa da estagiária ao constatar que há diálogo entre a professora e seus alunos, sugerindo que os pré-construídos sobre a relação professor-aluno divergem daquilo que observa na aula de inglês. A estagiária fica espantada com o fato de que os alunos realmente ouvem, como a avaliação ressalta. Lina avalia positivamente os dizeres da professora (trecho aspeado), que esclarece aos alunos as razões para seu agir. Em função da voz do outro configurada neste fragmento, mais uma vez gostaria de ressaltar a importância 40 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados do professor colaborador no estágio: é uma voz que pode contribuir para o trabalho do professor estagiário, desestabilizando pré-construídos, por exemplo, e suscitando uma rearticulação do gênero profissional do professor iniciante. Os próximos dois fragmentos, extraídos dos relatórios de Gabi e de Eva (que trabalharam em parceria), se referem à mesma professora-colaboradora. A questão das interações professor-aluno e professor-estagiário é saliente nos excertos e configura-se a voz de personagem ‘profissional professora’ inscrita como ‘professora regente’, ‘professora da turma’ e ‘ela’, por exemplo: 4. A professora regente apreciou tanto nossa aula que decidiu repensar sobre o fato de os alunos também produzirem, elaborou um trabalho bem parecido com o nosso para aprofundar o gênero com os alunos. A professora regente disse que aprendeu muito, principalmente em relação à produção e ao fato de observar que o barulho que os alunos às vezes causam faz parte da produção. (Gabi, Relatório de Estágio). Ao dizer que aprendeu muito [com os estagiários], a voz de personagem ‘profissional professora’ se refere a dois aspectos identitários, a saber, simultaneamente professora regente e professora colaboradora: é mencionada a questão do barulho dos alunos na sala de aula, que antes considerava apenas como desinteresse; também é assinalado que sua própria maneira de trabalhar se transformou, pois resolveu dar continuidade à regência dos estagiários, com foco na produção textual. A estagiária Gabi frisa que a professora-colaboradora passa a considerar atividades educacionais que não realizava e que pretende adotar, ou seja, também se renova o gênero profissional da professora na escola. Dessa forma, podemos perceber a importância da rede de professores atuando no estágio, engatilhando a transformação em contextos de formação inicial e continuada. Neste caso, é perceptível a apropriação do entrelugar socioprofissional por parte do professor iniciante: é criada uma via de mão dupla, dinâmica, onde todos aprendem e rearticulam conjuntamente o gênero profissional docente. Por fim, no fragmento a seguir, configura-se a voz de personagem ‘profissional professora’ que explicou, conversava conosco, mencionou que também aprendeu, como pode ser verificado a seguir: 5. Uma das coisas que me marcou no trabalho da professora regente, momento que serviu de aprendizagem para a minha formação, foi a forma de avaliação que ela usou. Após a realização da prova, como alguns alunos não tinham atingido a nota necessária, ela deu a oportunidade para eles refazerem a prova. Ela explicou que o objetivo principal era a formação deles e não a nota. Não havia pensado nessa possibilidade antes. Isso pude aprender com a professora da turma. [...] Outro fato que merece destaque foi o acolhimento da professora regente. Acredito ser essencial nessa relação entre escola e universidade. Normalmente, ao final de suas aulas ela conversava conosco a respeito de suas dificuldades e progressos. Das tentativas de realizar suas atividades e os resultados que produzia. O interessante é que ela mencionou que também aprendeu com a nossa aula, pois de fora como observadora ela pode perceber que barulho não significa bagunça, pois o barulho que havia na aula demonstrava o interesse dos alunos na atividade. (Eva, relatório de estágio). Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 41 Universidade Federal da Grande Dourados Neste excerto, novamente são perceptíveis as diferentes posturas sinalizadas pela voz de personagem ‘professora regente/professora colaboradora’, constitui-se uma voz docente que dialoga com todos – com os alunos, com os estagiários, consigo mesma (pode perceber...). As explicações da professora sobre avaliação formativa marcam a estagiária, que passa a enxergar novas possibilidades; ademais, a professora colaboradora é avaliada como uma profissional que acolhe, atitude imprescindível para o bom funcionamento do estágio. Por meio da voz do outro que permeia o texto, em consonância com o excerto anterior, nota-se que uma postura franca e construtiva possibilita o aprendizado das estagiárias, permitindo o redimensionamento do gênero profissional do professor iniciante, que, por sua vez, inspira a própria professora colaboradora, que também pode reconfigurar a dimensão genérica. Nesta breve análise, cabe ressaltar que a voz do outro entrecruza claramente a voz do professor estagiário nos textos. Configura-se um diálogo desencadeado por eventos de letramento escolares e acadêmico-profissionais que contribuem para o processo de construção identitária docente no âmbito do estágio: em suma, ao discutir o trabalho e gênero profissional na esfera do estágio, este artigo sublinhou o papel crucial do professor colaborador como formador. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nos textos produzidos por professores iniciantes no complexo entrelugar constituído pelo estágio, uma miríade de vozes podem se constituir – vozes sociais, vozes de personagem, voz de autor. Esta pesquisa investigou o trabalho do professor iniciante no estágio com um foco especial na voz de personagem ‘profissional professor’ que é configurada em textos empíricos escritos por professores estagiários em uma disciplina de estágio voltada para o ensino médio. Ao detectar e analisar os dizeres de vozes docentes inscritos nos textos, verificou-se a importância do professor colaborador no processo de constituição identitária e genérica: nesse sentido, vale salientar o papel da academia na construção de parcerias colaborativas universidade-escola, pois é a partir do nosso agir como professores formadores que a entrada na escola-campo e a interlocução com o professor colaborador são forjadas. Arrisco afirmar que os vestígios de vozes docentes constituídos nos textos sinalizam “aspectos indispensáveis à construção de identidade, dos saberes e das posturas específicas ao exercício profissional docente” (PIMENTA e LIMA, 2009, p.61), como já dito; verificou-se que a voz do outro, permeando os textos e incidindo na voz do professor estagiário, dinamiza o processo identitário na formação inicial. Em conclusão, ressalto a importância da perspectiva do estágio como prática de letramento acadêmico–profissional, mobilizando atividades e gêneros situados que catalisam a construção identitária do professor estagiário por meio da escrita situada. 42 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados REFERÊNCIAS BRONCKART, Jean-Paul. O agir nos discursos: das concepções teóricas às concepções dos trabalhadores. Tradução de Anna Rachel Machado; Maria de Lourdes Meirelles Matêncio. Campinas: Mercado de Letras, 2008. ______. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. (Org. Anna Rachel Machado e Maria de Lourdes Meirelles Matêncio; Tradução de Anna Rachel Machado e Maria de Lourdes Meirelles Matêncio). Campinas, SP: Mercado de Letras, 2006. ______. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sociodiscursivo. São Paulo: EDUC, 1999. BUENO, Luzia; LOPES, Maria Angela Paulino Teixeira; CRISTÓVÃO, Vera Lúcia Lopes. Gêneros textuais e formação inicial: uma homenagem a Malu Matêncio. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2013. CLOT. Yves. A função psicológica do trabalho. Tradução de Adail Sobral. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, [1999] 2007. CRISTÓVÃO, Vera Lúcia Lopes (Org.). Estudos da linguagem à luz do interacionismo sociodiscursivo. Londrina: UEL, 2008. FREUDENBERGER, Franciely Martiny. Gênero profissional e formação inicial: possibilidades e contradições na análise da atividade docente. In: MEDRADO Betânia Passos; REICHMANN, Carla Lynn. (Orgs.). Projetos e práticas na formação de professores de língua inglesa. João Pessoa, PB: Editora da UFPB. ______; PEREIRA, Regina Celi Mendes. Descrição e análise do trabalho docente em relatórios de estágio produzidos por professores em formação inicial: possibilidades e contradições. Raído (Online), v. 6, p. 115-130, 2012. GONÇALVES, Adair Vieira; PINHERO, Alexandra Santos; FERRO, Maria Eduarda (Orgs.). Estágio supervisionado e práticas educativas: diálogos interdisciplinares. Dourados, MS: Editora UEMS, 2011. HABERMAS, Jürgen. Théorie de l´agir comunicationnel: rationalité de l´agir et rationalisation de la société. Tomo 1. Paris: Fayard, 1987. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 11ª edição. Rio de Janeiro, DP&A, [1992] 2011. KLEIMAN, Angela Bustos. Letramento e suas implicações para o ensino de língua materna. Signo, v. 32, p. 1-25, 2007. ______. (1998b). A construção de identidades em sala de aula: um enfoque interacional. In: SIGNORINI, Inês (Org.). Lingua(gem) e identidade. Elementos para uma discussão no campo aplicado. Campinas: Mercado de Letras, 1998, p. 267-302. ______. (Org.). Os Significados do Letramento. Uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 43 Universidade Federal da Grande Dourados ______.; REICHMANN, Carla Lynn. (2012). “...tive uma visão melhor da minha vida escolar”: letramentos híbridos e o relato fotobiográfico no estágio supervisionado. Caderno de Letras (UFPEL), v. 18, p. 156-175, 2012. ______; MATÊNCIO, Maria de Lourdes Meirelles Matêncio (Orgs.). Letramento e formação do professor. Práticas discursivas, representações e construção do saber. Campinas, S. P.: Mercado de Letras, 2005. LÜDKE, Menga (2009). Universidade, escola de educação básica e o problema do estágio na formação de professores. Formação Docente - Revista Brasileira de Pesquisa sobre Formação de Professores, v. 1, pp. 95-108. Disponível em: <http://formacaodocente.autenticaeditora.com.br/artigo/exibir/1/5/1>. Acesso em: 31 de março de 2013. MACHADO, Anna Rachel (Org.). O ensino como trabalho: uma abordagem discursiva. Londrina: EDUEL - FAPESP (coeditora), 2004. ______; LOUSADA, Eliane Gouvêa; FERREIRA, Anise D´Orange. (Orgs.). O professor e seu trabalho: a linguagem revelando práticas docentes. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2011. ______; BRONCKART, Jean-Paul. (Re-)configurações do trabalho do professor construídas nos e pelos textos: a perspectiva metodológica do grupo ALTER-LAEL. In: ______. e colaboradores. Linguagem e educação: o trabalho do professor em uma nova perspectiva. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2009, p.31-77. MEDRADO, Betânia Passos; PÉREZ, Mariana (Orgs.). Leituras do agir docente: a atividade educacional à luz da perspectiva interacionista sociodiscursiva. Coleção NPLA, v.12. Campinas: Editora Pontes Editores, 2011. MOITA LOPES, Luiz Paulo (Org.). Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. PIMENTA, Selma Garrido; LIMA, Maria Socorro Lucena. Estágio e docência. 4ª ed. São Paulo: Cortez Editora, 2009. REICHMANN, Carla Lynn. Práticas de letramento docente no estágio supervisionado de Letras Estrangeiras. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v. 12, n.4, p. 933-954, 2012. SILVA, Wagner Rodrigues. Letramento do professor em formação inicial: interdisciplinaridade no estágio supervisionado da licenciatura. Campinas, SP: Editora Pontes Editores, 2012. STREET, Brian. What´s “new” in New Literacy Studies? Critical approaches to literacy in theory and practice. Current Issues in Comparative Education, v.5, n.2, p.7791, 2003. Recebido em 31/03/2014. Aprovado em 13/04/2014. 44 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados PROJEÇÕES COMO PRÁTICAS ACADÊMICAS DE CITAÇÃO NA ESCRITA REFLEXIVA PROFISSIONAL DE RELATÓRIOS DE ESTÁGIO SUPERVISIONADO PROJECTIONS AS ACADEMIC CITATION PRACTICES ON THE PROFESSIONAL REFLECTIVE WRITING OF SUPERVISED TRAINEESHIP REPORTS Lívia Chaves de Melo* Adair Vieira Gonçalves** RESUMO: No presente trabalho, investigamos o sistema semântico de projeção de práticas acadêmicas de citação na escrita reflexiva profissional de relatórios de estágio supervisionado, produzidos por professores em formação inicial, em disciplinas de estágio em Língua Inglesa e em Língua Portuguesa de uma Licenciatura em Letras, pertencente a uma universidade pública brasileira. O objetivo do presente trabalho é analisar as projeções acadêmicas de citação de literaturas científicas e não científicas nos relatórios de estágio, considerando as funções por elas exercidas nesses documentos. Também analisamos as projeções de outras vozes que perpassam os complexos oracionais nessa escrita e as implicações das mesmas para o letramento acadêmico do professor em formação inicial. Assumimos a abordagem da pesquisa qualitativa para caracterizar o tratamento dado aos documentos pesquisados. Demostramos que os enunciadores dos documentos investigados utilizam os recursos do sistema de projeção principalmente para: manter imparcialidade com o próprio dizer, abrandar argumentos, introduzir pontos de vista, ou mesmo evitar imposição de pontos de vista, conferir autoridade a escrita, validar dizeres e pensamentos, apontar descobertas e crenças, fazer intervenção autoral explícita. Palavras-chave: escrita; formação do professor; letramento; Linguística Sistêmico-Funcional. ABSTRACT: In this paper, we investigate the citation’s semantic projection system of academic practices on the professional reflective writing of supervised traineeship reports, produced by teachers in initial training in disciplines of training in English language and in Portuguese of a Licentiate in Languages, belonging a Brazilian public university.. The aim of this study is to analyze the citation’s academic projections of scientific and non-scientific literatures on traineeship reports, considering the func* Doutoranda pela Universidade Federal do Tocantins – UFT, Araguaína, Tocantins, Brasil; CAPES; E-mail: [email protected] ** Professor da Universidade Federal da Grande Dourados, - UFGD, Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil; CNPq; E-mail: [email protected] Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 45 Universidade Federal da Grande Dourados tions by them outside in these documents. We also analyzed the projections of other voices that underlie the clausal complexes in this writing and their implications for academic literacy of the teacher in initial training. We take on the qualitative research approach to characterize the treatment given to the researched documents. We demonstrate that the enunciators of those investigated documents use the resources of the projection system primarily for: maintaining impartiality with its own mean, abating arguments, introducing points of view, or even avoiding imposition of viewpoints, conferring authority to the writing, validating sayings and thoughts, pointing discoveries and beliefs, making explicit authorial intervention. Keywords: writing; teacher training; literacy; Systemic Functional Linguistics INTRODUÇÃO Situado no campo transdisciplinar da Linguística Aplicada, no presente trabalho, utilizamos perspectivas teórico-metodológicas advindas de outras áreas do conhecimento para investigarmos relatórios escritos, elaborados por professores em formação inicial, aqui denominados alunos-mestre, no contexto de instrução formal do estágio supervisionado da Licenciatura em Letras, com habilitação dupla em Língua Inglesa e Língua Portuguesa, pertencente à Universidade Federal do Tocantins (UFT), Campus Universitário de Araguaína. Analisamos as projeções de práticas acadêmicas de citação de literaturas científicas e não científicas nos relatórios de estágio, considerando as funções por elas exercidas nesses relatórios. Também analisamos as projeções de outras vozes que perpassam os complexos oracionais nessa escrita e as suas implicações para o letramento acadêmico do professor em formação inicial. As discussões teóricas que sustentam este trabalho baseiam-se principalmente (i) no sistema lógico-semântico de projeção de citação, pertencente à Linguística Sistêmico-Funcional (doravante LSF), que nos permite compreender as implicações das vozes alheias na elaboração dos diversos registros escritos; (ii) nos esquemas linguísticos do discurso citado, alicerçados na noção dialógica dos estudos bakhtinianos; por fim, (iii) nos estudos do letramento, por entendermos os relatórios escritos como eventos de letramento. 46 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Acentuamos que os relatórios de estágios são compreendidos como ferramentas de transposição didática interna que envolve a passagem dos saberes a ensinar (saber teórico/científico) aos objetos ensinados (saber prático)1. Apesar de não apontarmos diretamente neste trabalho, nossos dados de pesquisa vêm revelando-nos que os saberes teóricos empregados nos relatórios orientam as atividades práticas docentes, porque, a partir das reflexões dos estudos científicos e não científicos, os enunciadores tentam escapar de ações tradicionais de ensino, ainda que isso, por vezes, não aconteça. Os autores do registro investigado descrevem as ferramentas utilizadas nas aulas práticas para a transformação dos conhecimentos científicos em situações de ensino. Esse registro é utilizado na formação inicial para potencializar o aluno-mestre a ampliar, aperfeiçoar e adaptar seus conhecimentos de forma reflexiva e crítica, contribuindo para a construção de sua identidade. Decorrente do exposto, investigamos relatórios escritos elaborados durante as atividades de observação, ou seja, apenas quando os alunos-mestre observam o trabalho docente e refletem sobre as aulas ministradas pelos professores-colaboradores. Analisamos as passagens dos relatórios em que os alunos-mestre mobilizam direta ou indiretamente as práticas de citação da literatura científica e não científica. Este artigo está organizado em cinco principais seções, além da Introdução, Considerações finais e Referências. Na primeira, Caracterizando a Escrita Reflexiva Profissional dos Relatórios, apresentamos considerações a respeito da escrita do aluno-mestre, caracterizando-a como fluida, de natureza descritivo-narrativa, ao mesmo tempo em que apresentamos efeitos de objetividade típicos dos eventos de letramento científico. Na segunda seção, intitulada Projeção de Citação na Escrita de Relatórios de Estágio, mostramos/discutimos/observamos categorias da LSF necessárias para o desenvolvimento da análise das citações do corpus. Na terceira seção, Esquemas Linguísticos do Discurso Citado na Escrita de Relatórios de Estágios, consideramos os estudos dialógicos bakhtinianos sobre o discurso citado, o qual marca a transmissão das enunciações alheias. Na quarta seção, Práticas de Letramento na Escrita de Relatórios de Estágio, definimos como compreendemos o termo letramento e o associamos ao gênero investigado, o relatório de estágio supervisionado. Na última seção, Projeções de Práticas Acadêmica de Citação de Literaturas Científicas e Não Científicas, analisamos as projeções de citação em duas passagens textuais reproduzidas dos relatórios. 1 O termo conceitual transposição didática advém da didática do francês, mais especiicamente de Chevallard que atua no campo da didática da matemática. Esse conceito foi reapropriado pela equipe de Didática de Línguas da Universidade de Genebra, iliada ao Interacionismo Sociodiscursivo, e refere-se a um conjunto de rupturas, deslocamentos, transformações, adaptações de conhecimentos cientíicos, descontextualização do saber “sábio” (saber acadêmico), transpostos ao objeto social de ensino. Em outras palavras, são os conhecimentos didatizados (CHEVALLARD, 1989; GONÇALVES e BARROS, 2010). O processo de transposição didática é composto por dois níveis: externo e interno. A transposição didática externa refere-se à passagem dos saberes cientíicos aos saberes a ensinar. A transposição didática interna envolve a passagem dos saberes a ensinar aos objetos ensinados, e a criação de ferramentas para mediar a aprendizagem (cf. BARROS, 2012), tais como memória de aula, handouts, notas feitas no quadro, relatórios de estágios, por exemplo, que, na formação inicial docente, é idealizada para potencializar a prática crítica relexiva. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 47 Universidade Federal da Grande Dourados CARACTERIZANDO A ESCRITA REFLEXIVA PROFISSIONAL DOS RELATÓRIOS As atividades das disciplinas de estágios iniciam-se na Licenciatura em Letras, na instituição focalizada neste trabalho a partir do 5° período, sendo que os alunos-mestre fazem quatro disciplinas de Estágio (Estágio I, II, III e IV). Essas disciplinas acontecem em dois momentos: aulas teóricas no contexto da universidade e aulas práticas nas escolas-campo de ensino básico. As aulas práticas estão divididas em duas etapas principais: as observações de aulas ministradas por um professor-colaborador em exercício da profissão, e as atividades de regência a partir das quais os alunos-mestre são responsáveis por ministrar, sob a supervisão do professor-formador2 e do professor-colaborador, algumas horas-aula, tentando articular a teoria estudada na academia, à prática vivenciada no ambiente real de ensino e aprendizagem. Para elaborar os relatórios escritos de estágio, consciente ou inconscientemente, os alunos-mestre voltam-se para si mesmo na tentativa de rememorar3 e reconstruir ações vivenciadas na prática pedagógica do magistério, ao exercer a função de professor-estagiário. Estes mobilizam um conjunto de atividades e histórias de vida como forma de documentar e ressignificar a experiência vivida, e estabelecem um diálogo com enunciados reconhecidos como saberes de referência, originários de pesquisas científicas, ou até mesmo com saberes que não são considerados legitimados cientificamente, como: fragmentos bíblicos, textos literários, textos pertencentes a obras de autoajuda, etc. Os saberes não científicos, divulgados nos relatórios em forma de citação, ou em epígrafes, mesmo que façam parte das práticas socioculturais, não são considerados conhecimentos científicos por evocarem vozes oriundas de diferentes esferas, como o discurso religioso, pedagógico, de autoajuda, entre outros. Tais vozes oferecem mensagens otimistas, verdadeiras, inquestionáveis, encorajadoras, enfatizando aspectos emocionais e afetivos dos indivíduos. São tipos de leituras com aspectos terapêuticos. Os saberes científicos e não científicos mobilizados na escrita dos relatórios de estágios, por meio das práticas de citação, são estratégias argumentativas para sustentar teoricamente algumas definições e ideias apresentadas pelos alunos-mestre com o objetivo de fundamentar as afirmações tecidas e introduzir pontos de vista. Esses saberes são por nós denominados respectivamente de literaturas científicas e de literaturas não científicas4, os quais são tomados como objeto de análise neste trabalho. 2 Estamos usando as denominações aluno-mestre para nos referirmos aos professores em formação inicial, discentes regularmente matriculados nas disciplinas de estágio da Licenciatura em Letras. Empregamos professor-formador para nos referirmos aos professores universitários, responsáveis pelas disciplinas de estágio na universidade. E professor-colaborador, aos professores em exercício da proissão, responsáveis pelas disciplinas nas escolas de educação básica, onde os estágios supervisionados são desenvolvidos. 3 Outros registros solicitados pelos professores-formadores do estágio para avaliar os alunos-mestre são a elaboração de projeto de pesquisa, resenhas, resumos, ichamentos, seminários, curtas simulações de aulas, planos de aulas, entre outros. Muitos alunos-mestre elaboram diários de campo, ou outros tipos de anotações pessoais para os auxiliarem na reconstrução de algumas ações vivenciadas, os quais aparecem nos anexados dos relatórios. 4 Em trabalhos anteriores, caracterizamos mais detalhadamente o que compreendemos por literatura cientíica e não cientíica (cf. MELO, GONÇALVES e SILVA, 2013; MELO e BRITO, 2014 [no prelo]). 48 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Os relatórios escritos são considerados eventos de letramento dominantes nos estágios supervisionados por serem as principais formas de avaliação da disciplina. Ao contrário da escrita acadêmica concebida como mais rigorosa, crítica, objetiva e impessoal, possivelmente, por ser a língua utilizada na produção do conhecimento científico, a escrita dos relatórios é entendida como uma escrita mais descritivo-narrativa, subjetiva, menos rigorosa, com aspecto pessoal e íntimo, na qual a principal referência para o dizer é o próprio autor – aluno-mestre, com suas percepções dos fatos, de suas experiências e de formas de (re) significações, envolvidas nos acontecimentos do cotidiano escolar e sua apreciação (cf. FIAD e SILVA, 2009; SILVA e PEREIRA, 2013). Embora os alunos-mestre sejam o elemento de referência para seus dizeres, na escrita dos relatórios, estes dialogam frequentemente com vozes reconhecidas e autorizadas academicamente, ou mesmo autorizadas em outras práticas sociais não legitimadas como acadêmica. Nesse sentido, estamos compreendendo a elaboração dos relatórios de estágios como uma escrita reflexiva profissional produzida na academia. Nesta escrita, os enunciadores possuem a liberdade de expressar desabafos, sentimentos, questionamentos, compartilhar descobertas e decisões, tornando-se um espaço de confissão e de reflexão das ações experienciadas; contribuindo para o fortalecimento da profissionalização inicial do professor. Ao mesmo tempo, os relatórios produzem efeitos de cientificidade e objetividade, principalmente quando algumas vozes/saberes das práticas de citação da literatura científica de referência, estudadas durante a formação profissional, são reproduzidas para orientar o desenvolvimento de um olhar crítico na atuação docente. Esses registros são sócio-historicamente construídos nas situações culturais e contextuais da academia, a partir de uma mistura, incorporação, ou mesmo em um diálogo relacionados a outros registros acadêmicos (projeto de pesquisa, artigo acadêmico, ensaio, resenha, resumo, fichamento, etc.) ou profissionais (diários pessoais, autobiografias, memorial, carta, etc.). Em termos de estrutura composicional, não existe na universidade focalizada uma estrutura composicional rígida para o registro relatório; entretanto, devido às necessidades dos alunos-mestre, os professores-formadores oferecem orientações orais de esclarecimento nas aulas de supervisão de estágios e, em algumas situações, roteiros para a realização dessa escrita. Essas orientações incluem a sugestão de articulação entre as vivências no campo de estágio e a leitura das literaturas realizadas na disciplina. Desse modo, diversas estruturas5 composicionais acabam sendo empregadas pelos acadêmicos. Fazendo coro às muitas vozes que nos compõem, os relatórios escritos são formas discursivas com propósitos comunicativos institucionais, elaborados numa escrita As principais partes ou seções componentes dos documentos são nomeadas de: epígrafe, introdução, fundamentação teórica, justiicativa, objetivos, metodologia, formulação do problema, considerações inais, referências bibliográicas, anexos com alguns diários de campo, exercícios didáticos aplicados nas aulas observadas, documentos legais que orientam o desenvolvimento dos estágios, fotograias, dentre outros. Alguns documentos não apresentam seção para a estrutura textual, apenas um texto corrido sem marcação explícita das seguintes subdivisões: introdução, corpo ou texto principal e conclusões (cf. MELO, 2012). 5 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 49 Universidade Federal da Grande Dourados aqui caracterizada como reflexiva profissional, considerada inovadora, criativa, mais flexível, maleável, dinâmica, fluida, com estilo individual (cf. BAKHTIN, [1929] 1986; [1952-1953], BHATIA, 2004). Portanto, a escrita reflexiva profissional configura-se como uma característica do registro relatório de estágio, ou seja, uma escrita diferenciada da produzida na academia. Essa escrita é bastante comum e cada vez mais utilizada nos cursos universitários de formação docente, por ser uma estratégia didática que encoraja a prática reflexiva a respeito das ações docentes. Portanto, salientamos a relevância de uma caracterização mais profunda desta escrita em investigações futuras. PROJEÇÃO DE CITAÇÃO NA ESCRITA DE RELATÓRIOS DE ESTÁGIO Nos pressupostos teórico-metodológicos da LSF, a gramática é considerada a unidade central de processamento da língua. Nesta unidade, os significados da língua são entendidos a partir de um sistema semiótico identificado por metalinguagens funcionalmente motivadas. O mundo e as relações nele construídas são representados na linguagem por meio das seguintes metafunções: ideacional, interpessoal e textual, as quais se relacionam entre si. A metafunção ideacional é responsável por descrever eventos, estados e entidades construídas em nossas experiências do mundo ao nosso redor, incluindo o mundo interno a nossa consciência e realiza-se pelo sistema de Transitividade. A metafunção interpessoal, na interação pela linguagem, desempenha papéis sociais em geral e papéis discursivos em particular. Nesta metafunção, a linguagem é utilizada para estabelecer e manter relações com outras pessoas, influenciar comportamentos, expressar o nosso próprio ponto de vista sobre as coisas do mundo. Esta metafunção realiza-se pelo sistema de Modo. A metafunção textual, por fim, refere-se à criação textual, concernente à apresentação dos significados ideacionais e interpessoais como informação que pode ser compartilhada pelo enunciador e enunciatário no texto. Esta metafunção realiza-se pelo sistema de Tema (cf. MATTHIESSEN e HALLIDAY, 2004)6. Na LSF, as práticas de citação, utilizadas nos discursos comuns, como a redação científica, biografia, narrativas, entre outros, podem ser analisadas pelo sistema de projeção, um sistema relacional lógico-semântico que projeta sequências de informações de figuras de segunda ordem da realidade. Ou seja, uma oração sinaliza, ao projetar outra, que esta possivelmente já tenha sido mencionada em momentos anteriores. Esse sistema é disperso na léxico-gramática, organizado na metafunção ideacional (componente experiencial e componente lógico), na metafunção interpessoal, com algumas incursões na metafunção textual. Refere-se aos recursos linguísticos pelos quais escriPara investigarmos as representações construídas nas situações interativas dos estágios supervisionados, neste trabalho, investigamos os relatórios escritos, elaborados em seu contexto de uso. Acentuamos que não temos como propósito realizar uma revisão exaustiva dos pressupostos da LSF. Sobre a questão, conferir os estudos de Barbara e Macedo (2009); Gouveia (2009); Vian Jr. (2009); Halliday e Matthiessen (2004, 2006, 2014); Silva e Espindola (2014); Melo (2014). 6 50 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados tores/falantes introduzem vozes adicionais em um discurso. Constitui-se como um sistema que indica o modo como fatos ocorrem e são interpretados, podem ser relatados para os outros (HALLIDAY e MATHIESSEN, 2004; 2006). O sistema de projeção encontra-se na Gramática Sistêmico-Funcional (GSF) no estrato semântico, no nível de significados, e no estrato da léxico-gramática, no nível das palavras. No primeiro nível, a projeção ocorre por meio dos eventos da consciência e representa ideias, crenças, presunções, pelos processos mentais de cognição e dos processos mentais desiderativos; no segundo, a projeção ocorre por meio dos eventos do dizer e refere-se às locuções, por meio dos processos verbais. Em algumas situações, mas não frequentemente, a projeção ocorre também por meio de orações com os processos relacionais. Algumas orações interrogativas, os elementos vocativos, o uso de aspas e certas pontuações sinalizam os recursos do sistema de projeção. (cf. HALLIDAY e MATHIESSEN, 2006; HALLIDAY e MATHIESSEN, 2014). Esse sistema sinaliza a transmissão das enunciações próprias e alheias. Sua função é compartilhar valores, crenças e posicionamentos dialógicos, associadas às posições do conteúdo da mensagem enunciada, dando mais prestígio e credibilidade aos significados projetados dependendo da fonte que serve de base à citação ou ao relato7. O sistema de projeção é bastante comum tanto na oralidade, quanto nos registros acadêmicos escritos. Neste último, o seu propósito é atribuir ao discurso elaborado um caráter de escrita científica e dialógica (cf. HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2014, p. 509). Nesses documentos, por exemplo, quando outras vozes são divulgadas, entreglosadas ou não às vozes dos alunos-mestre, por meio das práticas de citação de literaturas científicas e de literaturas não científicas, os enunciadores idealizam fundamentar seus dizeres. Quando um escritor/falante anuncia suas atitudes posicionais, por meio dos recursos do sistema de projeção, este não só se autoexpressa, mas dialogicamente convida, convoca, proclama outras vozes/vozes externas tidas pelas vozes autorais como corretas, válidas, incontestáveis e legítimas para compartilhar pensamentos, gostos, avaliações e pontos de vista. Nesse sentido, considerando que toda comunicação verbal, falada ou escrita, é influenciada diretamente por algo já dito ou falado anteriormente, o sistema de projeção é articulado ao princípio dialógico/heteroglóssico da teoria bakhtiniana (cf. MARTIN e WHITE, 2005). Na metafunção ideacional, o sistema de projeção ocorre no componente experiencial, por meio do sistema de Transitividade, via processos mentais, verbais e relacionais, ou mesmo por meio de outros recursos. No componente Lógico, a projeção 7 Na citação, nós sinalizamos que estamos (re) utilizando, mais ou menos exatamente, as formas linguísticas do pensamentos/ dizer alheio em evento original da comunicação. No relato, nós não projetamos apenas formas linguísticas (pensamentos/ dizer) do outro, mas signiicados de eventos originais. Tanto o citar como o reportar são tipos de projeção. Cabral e Bárbara (2012, p. 585) airmam que “na citação, o elemento projetado tem status independente, é mais imediato e real. A citação é usada para ditos e pensamentos, incluindo pensamentos não só de primeira pessoa como de terceira. No relato, o elemento projetado é dependente, não funciona como um movimento na interação”. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 51 Universidade Federal da Grande Dourados acontece a partir do sistema gramatical da Transitividade, realizado na ordem dos complexos oracionais. Na metafunção interpessoal, o sistema de projeção efetiva-se no sistema de Modo, na ordem da oração, correlacionando-se à projeção de ideias e locuções, nos modos de citação e relato. Nesta metafunção, o conteúdo de uma projeção pode ser uma proposição, nos casos de oferta ou demanda de informações; ou uma proposta, nos casos de oferta ou demanda de bens e serviços. (cf. ARAÚJO, 2007, p. 114). Na metafunção interpessoal, o sistema de projeção acontece ainda no sistema de Avaliatividade, subárea da LSF, pelo subsistema de engajamento8, com o propósito de avaliar a validade do conteúdo da mensagem e a expectativa do falante em relação à ação demandada. Já na metafunção textual, a projeção é mais abstrata, no entanto, pode ser presumida no sistema de Coesão que estabelece significação a mensagem. Nesta metafunção, a projeção faz algumas incursões concernentes aos significados ideacionais e interpessoais. Ao investigarmos os recursos de projeção, mobilizados nos relatórios escritos de estágio, podemos compreender as principais vozes enunciativas que emergem nesses documentos e como as experiências docentes dos professores em formação inicial são representadas. ESQUEMAS LINGUÍSTICOS DO DIRCURSO CITADO NA ESCRITA DE RELATÓRIOS DE ESTÁGIOS Nos estudos dialógicos bakhtinianos, mais especificamente no livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin/Volochinov esclarecem o funcionamento dos esquemas linguísticos do discurso citado, principalmente o discurso indireto livre, ao comentarem uma publicação intitulada Gertraud Lerch, examinada por Lorck. Em Lerch, é a “sensibilidade simpatizante” (Einfühlung) que desempenha o papel que tinha a imaginação em Lorck. O discurso indireto livre dá à sensibilidade sua expressão mais adequada. As formas dos discursos direto e indireto são condicionados por um verbo introdutório (disse, pensou, etc.). Dessa maneira, o autor joga sobre o herói a responsabilidade daquilo que é dito. Pelo contrário, no discurso indireto livre graças à omissão do verbo introdutório, o autor apresenta a enunciação do herói como se ele mesmo se encarregasse dela, como se se tratasse de fatos e não simplesmente de pensamentos ou palavras. Isso só é possível, diz Lerch, se o escritor se associa com toda a sua sensibilidade aos produtos de sua própria imaginação, se ele se identiica completamente com eles (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1929], p. 185). Na citação reproduzida, os processos verbais introdutórios disse e pensou, conforme mencionados pelos autores, são condicionados no discurso direto e no discurso indireto. No discurso indireto livre, esses recursos são omitidos. Por meio dos processos verbais apontados (disse; pensou), o enunciador responsabiliza o outro pelo dito. Na 8 Sobre como as instâncias do Sistema de Avaliatividade são realizadas em Português brasileiro, conferir o trabalho de Vian Jr (2009). 52 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados LSF, estes mesmos processos são recursos do sistema de projeção, denominados respectivamente de processo verbal de projeção e processo mental cognitivo de projeção. Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin/Volochinov apresentam o discurso reportado como um dos temas centrais. Para os autores, os esquemas linguísticos do discurso citado, os quais marcam a transmissão das palavras/enunciações do outro ocorrem por meio do discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre. Acreditamos que um fenômeno assim altamente produtivo, “nodal” mesmo, é o discurso citado, isto é, os esquemas linguísticos (discurso direto, discurso indireto, discurso indireto livre), as modiicações desses esquemas e as variantes dessas modiicações que encontramos na língua, e que servem para a transmissão das enunciações de outrem e para a integração dessas enunciações, enquanto enunciações de outrem, num contexto monológico coerente. [...](BAKHTIN/VOLOCHINOV, [1929] , p. 143). Considerando as formulações apontadas pelos autores mencionados e dialogando com os estudos em LSF, compreendemos o discurso direto como um tipo de enunciado com a função idealizada de representar literalmente o que é dito e pensado por outro. É a forma mais simples de projetar o discurso. O discurso indireto, de outro modo, possui a função idealizada de representar o sentido, ou a essência do que é enunciado ou pensado por outro ao representar a consciência, opiniões e crenças dos sujeitos envolvidos no discurso. Muitas vezes, esse tipo de esquema linguístico avalia o que é projetado para obter informações. Já no discurso indireto livre9, tido como uma mistura de discurso direto e discurso indireto, a fala e o pensamento alheios são incorporados de forma imbricada e ao mesmo tempo velada no enunciado, não sendo explicitado por marcas visíveis, cabendo ao ouvinte/leitor descobrir quem tem a palavra. Neste esquema linguístico, a projeção ocorre não só para representar dizeres de primeira pessoa, mas também para representar pensamentos de terceira pessoa, projetadas natural e oniscientemente. Esses esquemas linguísticos geralmente são mobilizados na escrita reflexiva profissional dos relatórios de estágios para assegurar a autoridade e a seriedade dos enunciados apresentados como vozes que dizem a verdade, já que estão fundamentados em saberes legitimados da academia, ou mesmo reconhecidos nas práticas socioculturais tidas por inquestionáveis. Ainda sobre o discurso citado, esclarecemos que “o discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, Nas narrativas, o discurso indireto livre possui a função de retratar o luxo da consciência dos personagens, transportando o leitor a uma época passada, em uma contínua realização do passado para o presente. Neste tipo de discurso, predominam as formas verbais do pretérito imperfeito do indicativo, o pretérito mais-que-perfeito do indicativo, futuro do pretérito do indicativo, e o pretérito imperfeito do subjuntivo, exatamente os tempos verbais em que as primeiras e terceiras pessoas do singular icam idênticas, quando conjugados. Por meio dessas formas verbais, o narrador retoma sua própria linguagem para, oniscientemente, acrescentar novas informações no registro produzido. A respeito de esquemas linguísticos do discurso citado mencionados, na visão da LSF, conferir o trabalho de Halliday e Matthiessen (2014, p. 512-548). 9 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 53 Universidade Federal da Grande Dourados [1929] 2002),, p. 144). Em outros termos, quando fazemos referência às palavras dos outros em nossas palavras, é como se reproduzíssemos as palavras nas palavras. Ao nos apropriarmos das palavras dos outros, essas palavras tornam-se “minha palavra” alheia, no “meu discurso”. No discurso citado, no contexto acadêmico especificamente, ao mobilizarmos a voz do outro, geralmente não se utilizam disfarces, já que o discurso do outro, no “meu discurso”, em muitas situações, é ressignificado cada vez que for enunciado e reproduzido em diferentes contextos de uso da linguagem. PRÁTICAS DE LETRAMENTO NA ESCRITA DE RELATÓRIOS DE ESTÁGIO Neste trabalho, estamos compreendendo letramento10 como conjunto de práticas sociais, historicamente situadas nos contextos específicos de interações humanas que envolvem os usos das atividades de leitura e escrita, nas várias maneiras culturais da vida contemporânea, responsável pela construção de identidades. Nos termos de Barton e Hamilton (2012, p. 8), “letramento é mais bem compreendido como um conjunto de práticas sociais; essas práticas podem ser inferidas a partir dos eventos que são mediados por textos escritos” (BARTON e HAMILTON, 2012, p. 8, tradução nossa)11. Nos diferentes domínios sociais, várias práticas de letramentos são utilizadas diariamente pelos indivíduos para dar sentido aos acontecimentos cotidianos, como: relacionados à saúde, ao local de trabalho, à educação, às instituições religiosas, ao lar, as atividades relacionadas ao entretenimento, entre outros, muitos dos quais envolvem conhecimentos especializados. Nesse sentido, os pesquisadores preferem utilizar o termo letramentos, no plural, já que, essas práticas são inferidas, observáveis e moldadas a partir dos diversos registros textuais escritos, ou mesmo registros que envolvem a oralidade (STREET, 2006; BARTON e PAPEN, 2010; BARTON e HAMILTON, 2012; KALMAN e STREET, 2013). Portanto, não existe letramento único, mas multiplicidade de letramentos. Apesar de a escola ser considerada a principal agência de letramento, enfatizamos que os processos de letramentos não podem ser entendidos simplesmente em termos de escolarização e pedagogia, mas parte de instituições e concepções sociais mais abrangentes12. Vivemos cercados por múltiplas práticas de letramentos, as paisagens linguísticas 10 As práticas de letramento são culturalmente construídas, e, como todos os fenômenos culturais, tais práticas têm suas raízes no passado, ou seja, são luidas, dinâmicas e mudam à medida que há transformações na sociedade e novos letramentos são adquiridos. 11 “Literacy is best understood as a set of social practices; these can be inferred from events which are mediated by written texts”. (BARTON e HAMILTON, 2012, p. 8). 12 A pesquisa de Barton e Hamilton (2012), por exemplo, mostrou que, no próprio lar, uma das primeiras agências de letramento, diversos eventos de letramentos são utilizados diariamente pelas pessoas: a preparação de uma receita qualquer; os recadinhos colados na porta da geladeira para orientar a distribuição de tarefas, ou mesmo notiicar uma saída; os cartões-postais escritos para amigos e demais membros da família; a leitura das instruções de uso de como utilizar adequadamente determinados produtos de limpeza, ou conservar certos alimentos; as memórias familiares (fotos, cartas, vídeos, cartões-postais, livros, diários, autobiograias, etc..), a leitura de histórias infantis para as crianças; a leitura e meditação da bíblia, as listas de compras, entre muitas outras práticas que envolvem os usos da leitura e da escrita, empregadas para organizar as atividades do lar, e inluenciar as interações e a comunicação entre os membros do grupo familiar. 54 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados visuais nas cidades são exemplos disso: cartazes, outdoors, placas, sinais de trânsito, grafites, anúncios, etc., são formas de comunicação, com propósitos específicos (cf. BARTON e HAMILTON, 2012). No contexto universitário, mais especificamente nas disciplinas de estágios supervisionados, não é diferente. Múltiplas práticas de letramentos que envolvem os usos da leitura e escrita são empregadas como estratégias didáticas para organizar as ações desse contexto. Os relatórios escritos de estágios, elaborados por uma mistura de vários outros registros, investigados neste trabalho, são exemplos de prática de letramento, culturalmente construído e dominante nesse contexto. Nesses documentos, entendemos os usos das citações como práticas de letramentos comuns na instituição universitária, presente numa escrita que é resultado das práticas letradas do local do trabalho. A escrita dos relatórios são práticas de letramentos, idealizada para a formação reflexiva do professor e a construção de sua identidade sócio-profissional. Pelos registros, podemos compreender os diversos aspectos humanos e não humanos que envolvem as atividades de estágios supervisionados e algumas demandas da formação inicial docente. Concordando com Bhatia (2004), ao referir-se à importância das práticas de citação, destacamos que, para se tornar aceitável na comunidade de pesquisadores, o discurso acadêmico escrito deve ser relacionado aos conhecimentos acumulados de outros pesquisadores, no campo do conhecimento da área de estudo abordada. O diálogo com outras literaturas por meio das práticas de citação para embasar teoricamente os saberes enunciados, garantir e justificar dizeres torna-se uma atividade importante no repertório dos pesquisadores. Nesse sentido, Amsterdamska e Leydesdorff (1989, p. 451 apud BHATIA, 2004, p. 190), ao discutirem sobre o registro artigo acadêmico, destacam: Em um artigo cientíico ‘o novo encontra o velho’ pela primeira vez. Este encontro possui signiicado duplo desde artigos que não somente justiicam o novo, mostrando que o resultado é garantido por experimento ou observação, ou teorias prévias, mas também estabelece e integra inovações em contextos de conhecimento ‘velho’ e aceito… Referências que aparecem em textos são as formas mais explicitas em que os argumentos apresentados no artigo são retratados como conexão a outros textos, e, portanto, como um corpo particular do conhecimento13. (tradução nossa). “In a scientiic article ‘the new encounters the old’ for the irst time. his encounter has a double signiicance since articles not only justify the new by showing that the result is warranted by experiment or observation or previous theory, but also place and integrate innovations into the context of ‘old’ and accepted knowledge… References which appear in the text are the most explicit manner in which the arguments presented in the article are portrayed as linked to other texts, and thus also a particular body of knowledge”. 13 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 55 Universidade Federal da Grande Dourados Em pesquisa realizada por Araújo e Dieb (2013), os autores mostraram a utilização de um fórum virtual como ferramenta catalisadora eficaz para que os alunos, colaboradores do estudo, desenvolvessem a aprendizagem acerca da produção de registros acadêmicos e ampliassem sua consciência dos valores que norteiam a prática deontológica14 de escrita. Os autores evidenciaram que, ao escreverem os diversos registros científicos, os estudantes revelaram grande fragilidade e preocupação acerca de como estabelecer, de acordo com as normas praticadas na comunidade acadêmica, uma comunicação satisfatória ao fazer uso efetivo de certas práticas de letramentos. Conforme apontado por Araújo e Dieb (2013), ao produzirem seus textos, os estudantes/pesquisadores precisam divulgar não apenas os dados gerados de suas investigações, mas também trazer a voz de discursos de autoridade de outros autores para o interior de seus próprios textos e fundamentar a investigação pretendida. No entanto, uma das principais preocupações dos estudantes mencionados centrava-se em como deveriam fazer referência aos autores em seus trabalhos e efetuar, por escrito, as citações desses autores, sem que o uso das práticas citações insinuasse apropriação indevida do pensamento alheio. Outra inquietação dizia respeito a como buscar fontes confiáveis para a fundamentação teórica de seus textos e fazer uso das informações que as fontes lhes disponibilizam, uma vez que, ao elaborar um trabalho acadêmico, um autor deve saber dialogar com as vozes de outros pesquisadores para, a partir delas, pôr em cena o seu próprio projeto de dizer. Para o uso significativo dos relatórios escritos na instituição superior aqui focalizada, e para o aperfeiçoamento da aprendizagem das práticas de letramentos acadêmicas, é necessário que o professor-formador seja agente de letramento, ao propiciar aos alunos-mestre o trabalho com a linguagem dos registros elaborados por eles mesmos, por meio de atividades de reescrita comentadas, o que ainda é uma atividade incipiente e desvalorizada. Na escrita dos relatórios, quando são realizadas intervenções dos docentes no texto dos alunos-mestre, estas são limitadas a aspectos linguísticos formais envolvendo principalmente questões ortográficas e gramaticais (SILVA e PEREIRA, 2013). É importante que os alunos-mestre compreendam as condições de produção do discurso acadêmico na escrita reflexiva profissional e as relações de poder envolvidas nesses discursos (cf. MARINHO, 2010). Ressaltamos que a consciência da escrita acadêmica é desenvolvida a depender da participação do estudante/pesquisador em contextos diversos de práticas de letramentos com fins pragmáticos, sócio-comunicativos específicos e significativos. Na elaboração de um registro acadêmico, ou mesmo reflexivo profissional, como é o caso Aqui o termo deontologia refere-se ao despertar para a formação de um processo de consciência dos alunos acerca da dimensão dos deveres éticos que perpassa a atividade de produção da escrita acadêmica, baseada na construção e na vivência de valores socialmente estabelecidos, aceitos e praticados pelos membros das práticas acadêmicas. Nos relatórios escritos de estágio supervisionado, essa consciência é perceptível nas relexões e transformação pessoais reconhecidas pelos próprios alunos-mestre; nas relexões sobre assuntos ligados à proissão docente; nos métodos de trabalho adquiridos, nas diversas vozes citadas que perpassam os seus enunciados (práticas de citação, referência ao livro didático, reprodução de dizeres de alunos e professores, descrição de aulas), entre outros (cf. ARAÚJO e DIEB, 2013; GONÇALVES e CAMARGO, 2014 [no prelo]). Sobre deontologia em relação à consciência dos deveres relacionados à proissão docente, conferir Sadio (2011). 14 56 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados dos relatórios, não basta somente buscar fontes confiáveis, é necessário saber citá-las adequadamente para não se distanciar do ethos acadêmico, dos registros praticados na universidade. O uso significativo das práticas da linguagem escrita é uma preocupação frequente não só dos estudantes de graduação, mas também de pós-graduação, educação básica, e até mesmo, no cotidiano de escritores experientes. PROJEÇÕES DE PRÁTICAS ACADÊMICAS DE CITAÇÃO DE LITERATURAS CIENTÍFICAS E NÃO CIENTÍFICAS Devido à riqueza de informação presentes nos relatórios escritos de estágios, bem como possíveis contribuições para o letramento do professor em formação inicial, tais produções são gêneros discursivos, utilizados para o empoderamento docente. Neste trabalho, essas fontes de pesquisa são extremamente preciosas por nos permitir fazer algumas inferências para o futuro e reconstruir as vivências do vivido das atividades humanas nos estágios. A pesquisa apresentada é caracterizada como uma análise de documento15 (FLICK, 2009). Os documentos investigados neste trabalho fazem parte do banco de dados do Centro Interdisciplinar de Memória dos Estágios das Licenciaturas (CIMES), localizado no Campus Universitário de Araguaína, pertencente à Universidade Federal do Tocantins, os quais estão disponíveis à pesquisa ou mesmo a um uso didático pelos próprios estudantes das licenciaturas diversas. Analisamos vinte e oito (28) relatórios elaborados para as disciplinas de Investigação da Prática Pedagógica e Estágio Supervisionado em Língua Inglesa: Língua e Literatura (I) e Investigação da Prática Pedagógica e Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa: Língua e Literatura (I), vinculadas à licenciatura em Letras. Esses documentos foram produzidos no primeiro e segundo semestre letivo do ano de 2012. Para identificarmos as passagens textuais, selecionadas a partir das várias seções que compõem os relatórios de estágios supervisionados em que as práticas de citação são empregadas, utilizamos as seguintes informações: informante, semestre letivo, ano letivo, estágio em Ensino de Língua Inglesa (LI), ou estágio em Ensino Língua Portuguesa (LP), e a seção do relatório em que o extrato reproduzido foi retirado. Para melhor compreensão e contextualização da passagem textual 01, reproduzida adiante, antes de destacarmos alguns recursos de projeção analisados à luz das categorias analíticas da LSF, situamos brevemente os parágrafos que a antecedem. 15 Por documentos, estamos compreendendo qualquer suporte que contenha informação registrada em material escrito e não escrito de natureza iconográica, sonora e cinematográica, ou de qualquer outro tipo de testemunho que registre os objetos do cotidiano, tais como ilmes, vídeos, slides, fotograias ou pôsteres, dentre inúmeros outros. Tudo o que é vestígio do passado, tudo o que serve de testemunho, é considerado como documento ou ‘fonte’ de investigação. Em outras palavras, documentos são enunciados simbólicos reconhecíveis em gêneros diversos, responsáveis por registrar informações/conhecimentos especíicos em sistemas especíicos. (SÁ-SILVA et al, 2009; BAZERMAN, 2012). Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 57 Universidade Federal da Grande Dourados No primeiro parágrafo da introdução do relatório que antecede a passagem textual mencionada (cf. introdução completa no anexo), o aluno-mestre utiliza as seguintes escolhas lexicais: essencial, grande importância e imprescindível para apreciar positivamente e intensificar a força do valor das atividades de estágios como ferramentas fundamentais nos estudos dos docentes em formação inicial, pois, o estágio é uma forma para os acadêmicos utilizarem os conhecimentos teóricos estudados na universidade, no campo de atuação profissional. As reflexões apontadas pelo enunciador sugerem-nos que este dialoga com os vários discursos provenientes da academia, o que é bastante comum nos documentos investigados, mostrando-nos certo alinhamento aos discursos que anunciam o estágio curricular como atividade proposta para a articulação entre teorias acadêmicas e intervenção nas práticas escolares. Para diminuir o grau de comprometimento com o conteúdo de sua própria declaração, elaborada em consonância com muitas outras vozes, o aluno-mestre divulga na passagem reproduzida uma citação direta da literatura científica. Esta citação discute a importância das atividades de estágio para a formação do futuro profissional de ensino, crítico e sempre atento para refletir sua prática pedagógica. A citação mencionada é uma estratégia argumentativa para embasar os dizeres tecidos. Em seguida, o aluno-mestre afirma no relatório escrito que as orientações para o desenvolvimento das atividades práticas de estágios que acontecem nas escolas de educação básica são oferecidas na universidade, durantes as aulas teóricas da disciplina, e enfatiza que o estágio é uma “exigência” da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. O uso da escolha lexical exigência, reproduzida na oração: O Estágio Supervisionado é uma exigência da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) Lei número 9394, de 20 de dezembro de 1996 (LDB 9394/96), revela-nos que o aluno-mestre refere-se ao saber de autoridade soberana (lei), possivelmente para enfatizar que, para obter o título de Licenciado em Letras, cabe a ele cumprir todos os requisitos do curso. Como o estágio é uma das condições para a obtenção desse título, deve-se cumpri-lo satisfatoriamente. As próprias alusões ao espaço universitário, às aulas teóricas neste espaço (As orientações para o estágio são recebidas na universidade por meio de aulas teóricas para que em seguida os acadêmicos realizem a parte prática em escolas que devem pertencer à rede pública), assim também como a lei (LDB), são informações prestadas que provêm de vozes culturalmente valorizadas nas práticas letradas da academia. Em seguida, o aluno-mestre destaca as etapas das atividades do estágio (aulas teóricas no contexto universitário; observação e regência nas escolas de educação básica), carga horária da disciplina, e situa o ambiente de realização das observações que aconteceram em sala de aula da Educação de Jovens e Adultos – EJA, ministradas por um professor-colaborador. Todas as informações dadas podem ser estratégias encontradas pelo enunciador do relatório para informar ao seu leitor, já no início da produção escrita, como o estágio é desenvolvido. 58 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Adiante, reproduzimos a passagem textual selecionada, a partir da qual realizamos uma breve análise linguística, focando principalmente as implicações dos recursos de projeção e suas contribuições para o letramento acadêmico do professor em formação inicial. Passagem textual 01: Seguindo as recomendações teóricas que partiram da universidade, durante todas as observações foram escritos diários que abordavam os acontecimentos da aula, como o tema, o conteúdo ensinado pela professora, os métodos e recursos utilizados por ela, as formas de avaliação, o desempenho dos alunos, entre outras peculiaridades. Os diários são essenciais para uma observação eicaz, é o ponto de partida para a relexão a respeito da prática pedagógica observada, além de propiciar um contato mais próximo entre o acadêmico e o meio educacional, é também uma forma de reletir sobre o contexto escolar e seus problemas. É importante ressaltar que a prática de escrever sobre o ambiente escolar não deve necessariamente se restringir ao estágio, mas também estar presente no decorrer da vida docente do educador, já que isso pode ajudá-lo a aperfeiçoar seus métodos, a respeito disso, Zabalza, (1994) assume que “o professor, ao escrever sobre sua prática, aprende e reconstrói, pela relexão sua atividade proissional.” (ZABALZA, 1994 apud GALIAZZI e LINDEMANN, 2003, p. 137). (Informante 01, Estágio I, 2012.1 - LI, Trecho da introdução do relatório). Na passagem em destaque, há três projeções com diferentes propósitos. A primeira, [os] diários que abordavam (...), a projeção co-ocorre em um grupo nominal, identificada no processo verbal abordar, com função de relato. Aqui, o aluno-mestre para não dizer diretamente, [nos] diários abordamos (...), ou mesmo, [eu] abordei nos diários (...), entre outras possibilidades, prefere utilizar [os] diários abordavam (...). Nesse sentido, o item lexical diários desempenha metaforicamente o potencial de dizente, sugerindo-nos que a voz autoral mantém certa imparcialidade com o próprio dizer. Ou seja, o aluno-mestre não assume diretamente o dito. Conforme enfatizado neste trecho, os diários foram utilizados durante as atividades de observação como estratégias para relatar os acontecimentos das aulas: tema das aulas, conteúdo ensinado, métodos e recursos de ensino empregados pelo professor-colaborador, formas de avaliação, desempenho dos alunos, etc. São instrumentos avaliados pelo próprio aluno-mestre como recurso essencial na mediação da formação inicial docente para se conseguir eficientes observações. As escolhas essencial e eficaz (Os diários são essenciais para uma observação eficaz) amplificam e intensificam o valor desse instrumento que orienta e potencializa a reflexão crítica docente, assim também como as atividades de observação. A segunda projeção identificada acontece por meio de um processo verbal, no grupo nominal É importante ressaltar que (...), também com função de relato. Nesta situação, o processo ressaltar exerce a função da voz do dizente (eu ressalto que [...]) que é implicitamente desempenhado pelo enunciador aluno-mestre. Este enunciador sugere possuir a consciência da importância da utilização de diários escritos como fer- Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 59 Universidade Federal da Grande Dourados ramentas de mediação, necessárias tanto no processo de formação profissional, podendo inclusive auxiliar a escrita do relatório, quanto na qualificação da prática cotidiana do docente em exercício da profissão. Este instrumento, conforme acentuado pelo enunciador, permite ao aluno-mestre, assim também como ao docente em exercício, potencializar e aperfeiçoar métodos de ensino, autoanalisar os acontecimentos apreciados, entre outras práticas letradas que podem aparecer invisibilizadas. A escolha lexical importante, presente no grupo nominal É importante ressaltar que (...), intensifica a força do valor da prática de escrita na profissionalização docente. Observamos que o aluno-mestre introduz seus pontos de vista, e, ao mesmo tempo, atenua o grau de compromisso com suas afirmações, pelo uso do modalizador de probabilidade pode (a prática de escrever sobre o ambiente escolar não deve necessariamente se restringir ao estágio, mas também estar presente no decorrer da vida docente do educador, já que isso pode ajudá-lo a aperfeiçoar seus métodos). Esse modalizador é uma espécie de construção interpessoal, indicador de que o enunciado reportado é algo provável. É uma forma de o aluno-mestre estabelecer com o leitor idealizado um diálogo e negociar os possíveis contra-argumentos. Além do mais, para reforçar e confirmar as afirmações apontadas no trecho em destaque, as quais são mediadas pelas próprias vozes da academia, e evitar os possíveis contra-argumentos, uma citação direta da literatura científica é divulgada pelo aluno-mestre. Esta citação é percebida na passagem em análise pelo uso do recurso metaenunciativo aspas duplas, referência a um autor consolidado na área da educação, além do uso dos parênteses com ano de publicação da voz sinalizada e o próprio recurso de projeção com função de citação, que acontece por meio de uma circunstância de ângulo indicando ponto de vista: Zabalza, (1994) assume que (...). Aqui, o recurso de projeção é identificado no processo mental de cognição assumir e anuncia um pensamento alheio, selecionado e contextualizado em uma nova situação discursiva. Essa citação ecoa o discurso de que a escrita de diários constitui-se como elemento identitário da formação sócio-profissional; uma prática de letramento relevante no cotidiano docente que possibilita a construção de ações reflexivas e críticas. Ao divulgar a citação mencionada no trecho em foco, o aluno-mestre intensifica o valor da escrita de diários, justifica que suas afirmações estão fundamentadas em vozes de referência, e, possivelmente, em eventos vivenciados por ele mesmo, durante as atividades de observação. Nesta passagem investigada, observamos que os pontos de vista do aluno-mestre não são assumidos diretamente por ele, mas cuidadosamente utiliza escolhas lexicais para manter imparcialidade com o próprio dizer; abrandar seus argumentos, além de evitar imposição dos seus pontos de vista, característico da escrita reflexiva profissional. Para isso, nesta escrita, o aluno-mestre negocia com o seu leitor a validade do conteúdo expresso ao utilizar a escolha metafórica destacada, com o potencial de dizente; o modalizador de probabilidade para negociar ideias; e a invocação do pensamento 60 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados alheio pelo sistema de projeção de uma citação direta da literatura científica para conferir autoridade, validar dizeres e pensamentos de um enunciador comum. Em outro exemplo, reproduzido adiante, na passagem textual 02, retirada da seção conclusão de um dos relatórios de estágios investigados, observamos que o enunciador aluno-mestre interioza a voz de si, situada nas lembranças do passado, dos tempos da escola, enquanto ex-estudante da educação básica, para salientar aspectos que não eram identificados por ele como aluno, mas que foram visualizados no presente, em função das atividades de observação, enquanto profissional do ensino em formação, tais como: alguns conflitos deste meio; a desmotivação dos docentes; alunos indisciplinados, entre outros. Passagem textual 02: Embora tenhamos passado boa parte de nossas vidas na instituição escolar, não fomos capazes de perceber quantas questões estão envolvidas nesse meio. Conlitos intermináveis. Professores desmotivados. Alunos descompromissados e Instituições movidas por regras estabelecidas por seres que não conhecem a prática da realidade escolar. Assim, na função de observadores e futuros proissionais da educação, tivemos a oportunidade de conhecer e avaliar por outro ângulo o que se passa dentro de uma instituição responsável pela formação de cidadãos. O Estágio Supervisionado I nos permitiu ter uma visão mais ampla do sistema educacional, além de nos fazer acreditar que a educação ainda pode, sim, alcançar o seu melhor. Pois, apesar de todas essas deiciências detectadas, ainda há alunos comprometidos com o ensino e professores empenhados com a docência. Como disse Roberto Leão, “a escola pública brasileira se sustenta hoje muito mais pela solidariedade dos proissionais da educação que atuam nela, do que por conta das políticas públicas que deveriam fazê-la funcionar direito”. Entre os fatores que contribuíram para o bom desempenho do referido estágio, podemos destacar as experiências trocadas com nossos próprios colegas pelo Moodle16 disponibilizado no site da Universidade, uma ferramenta que nos permitiu dialogar em tempo real e contar nossas experiências durante o período de observações nas escolas. Foi um instrumento enriquecedor para todos nós. Enim, inalizamos o presente relatório com as palavras de Rubem Alves, quando ele airma que “Professores há aos milhares. Mas professor é proissão, não é algo que se deine por dentro, por amor. Educador, ao contrário, não é proissão; é vocação. E toda vocação nasce de um grande amor, de uma grande esperança.” (Informante 02, Estágio I, 2012.2 - LP,– Conclusão completa do relatório). Grifos nossos. Destacamos no primeiro parágrafo o uso do recurso de projeção sinalizado no processo mental perceptivo perceber, na oração Embora tenhamos passado boa parte de nossas vidas na instituição escolar, não fomos capazes de perceber quantas questões estão envolvidas nesse meio. Nesta oração, a projeção destacada, entendida como: [eu aluno-mestre] percebi (...), possui a função de relato e aponta as descobertas do expeNas disciplinas de estágio, em algumas situações, os alunos-mestre são orientados a participar das discussões e interagir na Plataforma Moodle - UFT, ou mesmo em interações orais ocorridas nos momentos de supervisão, nos quais há troca de experiência entre os próprios alunos-mestre e professor-formador, a respeito do que acontece nas escolas-campo, durante as atividades de observação. 16 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 61 Universidade Federal da Grande Dourados rienciador aluno-mestre. Esta projeção revela-nos ainda que no Português brasileiro, o processo mental perceptivo, ao contrário da Língua Inglesa, também pode projetar ideias de segunda ordem. No segundo parágrafo da passagem, há mais duas projeções. A primeira ocorre no grupo nominal nos fazer acreditar que (O estágio supervisionado I nos fez acreditar que [...]), presente na oração O Estágio Supervisionado I nos permitiu ter uma visão mais ampla do sistema educacional, além de nos fazer acreditar que a educação ainda pode, sim, alcançar o seu melhor. Aqui a projeção acontece por meio de um processo mental cognitivo acreditar, com função de relato, sinaliza a própria voz do aluno-mestre que, mesmo diante das descobertas salientadas, avaliadas negativamente por ele como deficiências, as atividades de estágio contribuíram para que o mesmo desse crédito à educação, pois existem alunos, avaliados positivamente pelo próprio enunciador, comprometidos e professores empenhados. Nesta oração, acentuamos que pelo uso do modalizador de probabilidade pode, o aluno-mestre introduz seus pontos de vista, mas, ao mesmo tempo, atenua o grau de compromisso com seus dizeres. Como na passagem textual 01, mostrada nos parágrafos anteriores, neste exemplo 02, o modalizador pode é uma construção interpessoal utilizada para estabelecer com o leitor um diálogo e negociar contra-argumentos e possíveis objeções. É uma maneira de o aluno-mestre evitar impor ao seu leitor seus próprios pontos de vista, mesmo deixando claro que ele está certo de que a educação pode alcançar dias melhores, pois, as suas experiências durante as atividades de observação, fizeram-no crer que esta é uma visão possivelmente correta e válida. Outra projeção presente também no segundo parágrafo, como disse Roberto Leão, acontece no processo verbal disse, em uma circunstância de ângulo indicando fonte, com função de citação. Esta projeção manifesta de modo explícito a recorrência de uma voz externa que aparece reproduzida entre aspas duplas. No parágrafo introdutório da seção desenvolvimento deste mesmo relatório (cf. anexo), esta mesma citação é reproduzida, de modo mais completo e com o atributo de reconhecimento da posição enunciativa da voz alheia, marcada por suas credenciais, na oração (...) disse Roberto Leão, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, em entrevista à IHU17 On-Line, revista produzida mensalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos. Nesta situação, o emprego do recurso de projeção indica que a opinião do aluno-mestre é alinhada a uma voz de confiança e valimento, reconhecida como autoritária, pois quem fala é o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, em uma fonte confiável, numa revista especializada a professores. Ao trazer tal citação para o texto escrito do relatório, o aluno-mestre a utiliza como fonte para embasar seus dizeres e, até mesmo, provavelmente, para indicar ao seu leitor que, apesar dos desafios, está motivado e esperançoso em não desistir de sua futura profissão. 17 A escola pública brasileira: uma realidade dura. Entrevista com Roberto de Leão. Revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Unisinos, 2009. 62 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Muitas outras vozes aparecem perpassadas nestes dois primeiros parágrafos destacados, vozes que podem ser percebidas, dependendo dos gestos de interpretação dos diferentes sujeitos pesquisadores. Salientamos, por exemplo, as próprias normas que orientam as ações do espaço escolar, as quais, segundo o aluno-mestre, são estabelecidas por sujeitos que não têm noção de como realmente funciona esse ambiente (Instituições movidas por regras estabelecidas por seres que não conhecem a prática da realidade escolar), como os políticos, ou mesmo outros indivíduos, os quais estabelecem vários projetos e leis para o bom funcionamento das instituições de educação básica, mas que não funcionam, pois não são dadas aos professores, boas condições de trabalho. Aqui, possivelmente, o estagiário assume os próprios discursos e descontentamentos dos professores-colaboradores do estágio. No terceiro parágrafo da passagem reproduzida, encontramos uma projeção expressa na construção verbal podemos destacar, na oração Entre os fatores que contribuíram para o bom desempenho do referido estágio, podemos destacar as experiências trocadas com nossos próprios colegas pelo Moodle disponibilizado no site da Universidade18. Nesta construção, apesar de preservar a força original em termos materiais, a projeção é representada metaforicamente, em termos de um processo mental cognitivo destacar, o que é possível em LSF, conforme aponta Thompson (2014, p.121, 252)19. Para o autor, muitos processos mentais de cognição são expressos em processos materiais. Neste exemplo, a projeção possui função de relato. Neste mesmo parágrafo, chamamos a atenção para o uso das seguintes projeções que acontecem por meio dos processos verbais: dialogar ([o] Moodle disponibilizado no site da Universidade, uma ferramenta que nos permitiu dialogar [...]) e contar ([o] Moodle disponibilizado no site da Universidade, uma ferramenta que nos permitiu contar [...]). Destacamos ainda o uso de uma projeção que pode ser recuperada na construção [o] Moodle [é] uma ferramenta que (...). Nesta construção, temos um processo relacional é, que aparece através de uma elipse ([o] Moodle disponibilizado no site da Universidade [é] uma ferramenta que [...]). Todas essas projeções possuem a função de relato e são formas de o aluno-mestre fazer uma intervenção autoral explícita, ao reconhecer como um software livre, de apoio à aprendizagem, executado num ambiente virtual, avaliado e intensificado por ele mesmo como instrumento enriquecedor, colaborou para o sucesso das atividades de observação. A própria expressão o bom desempenho do estágio, não é uma escolha aleatória, mas mesmo inconscientemente, o enunciador informa que o estágio foi um sucesso, sendo assim, o aluno-mestre pode ser bem avaliado. A plataforma Moodle, neste caso, serviu de suporte para a transposição didática interna e de desenvolvimento da deontologia, nos termos defendidos por Araújo e Dieb (2012), principalmente ao serem os alunos-mestres solidários entre si no momento de capitalizar e socializar experiências do momento de observação de aulas no contexto escolar. 19 (…) Similarly, many cognitive mental processes are expressed in material terms: for example, ‘grasp’, ‘take in’, ‘a thought crossed my mind’, ‘reach a decision’, ‘it struck me that’. hese are deal metaphors, but in comparison with ‘understand’, ‘think’, or ‘decide’ they still preserve some of their original material force, and allow a speaker to represent cognition as drama (THOMPSON, 2014, p. 121). 18 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 63 Universidade Federal da Grande Dourados No último parágrafo da passagem reproduzida, destacamos o uso de uma projeção que acontece numa circunstância de ângulo indicando fonte: as palavras de Rubem Alves, quando ele afirma que (...). Nesta situação, a projeção é identificada pelo processo verbal afirmar e possui função de citação. Aqui o recurso de projeção é utilizado para projetar uma citação direta da literatura não científica, um enunciado motivador sinalizado em aspas duplas. Esse enunciado de Rubem Alves ressoa o sentido de que o autor faz a distinção entre professor e educador. Para ele, o professor é aquele que possui uma profissão (titulação), mas não necessariamente amor pelo que faz; o educador, de forma diferente, é aquele que ama o que faz e possui vocação/dom para ensinar, por possuir esperança. A escolha esperança, possivelmente, refere-se ao potencial dos aprendizes que devem ser reconhecidas pelo docente ou, até mesmo, o crer em dias melhores para a educação. Em síntese, nesta passagem verificamos que o sistema de projeção empregado pelo aluno-mestre para projetar citações e relatos de vozes de referência, vozes que não são consideradas de referência, ou mesmo para projetar suas próprias vozes que perpassam os complexos oracionais, acontecem por meio dos seguintes recursos: processo mental cognitivo; processo verbal; circunstância de ângulo indicando fonte; processo relacional. A investigação mostrou ainda que, no Português brasileiro, o processo mental perceptivo, também pode projetar ideias de segunda ordem. Vimos ainda que o processo mental cognitivo destacado, presente metaforicamente em termos materiais, também projeta ideias. Compreendemos os recursos do sistema de projeção, apontados nesta passagem, como: estratégias utilizadas pelo aluno-mestre para apontar suas descobertas, crenças, introduzir pontos de vista, fazer intervenção autoral explícita. Ao contrário da passagem textual 01 exibida anteriormente, nesta passagem textual 02, o aluno-mestre assume mais diretamente seus dizeres (cf. tenhamos; nossas vidas; não fomos capazes de perceber; tivemos a oportunidade de conhecer e avaliar; O Estágio Supervisionado I nos permitiu; nos fazer acreditar que; podemos destacar; ferramenta que nos permitiu dialogar; contar nossas experiências; instrumento enriquecedor para todos nós; finalizamos o presente relatório). No entanto, este estabelece com o seu leitor um diálogo para atenuar o grau de compromisso com os dizeres e pensamentos enunciados, evitando impor seus pontos de vista. CONSIDERAÇÕES FINAIS Para o desenvolvimento desta pesquisa, assumimos a perspectiva transdisciplinar da LA. Buscamos aportes teórico-metodológicos do sistema lógico-semântico de projeção da LSF, dos estudos bakhtinianos acerca de vozes utilizadas para a elaboração do relatório de estágio, compreendido por nós como um evento de letramento dominante para a disciplina de estágio supervisionado na Universidade, além de considerações específicas a respeito dos letramentos desenvolvidos pelos estudos dos novos letramentos. 64 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Problematizamos a escrita utilizada pelos alunos-mestre nos relatórios de estágio e caracterizamo-la como de natureza reflexiva profissional, em virtude de esta ser utilizada para dialogar com a literatura acadêmica, quanto para dialogar com a não acadêmica e, neste caso, servir para desabafar, compartilhar opiniões, sugestões, etc.. Nas passagens analisadas, em que houve várias projeções com diferentes propósitos, há o discurso do relatório de estágio sendo compreendido como recurso essencial da formação inicial docente. No primeiro fragmento analisado, ocorre projeção em grupo nominal, identificada no processo verbal abordar; existe ainda projeção que ocorre por meio de um processo verbal no grupo nominal É importante ressaltar que. A escolha lexical reforça a prática de escrita como fator importante de profissionalização do docente, além da presença de uma citação com aspas duplas que vai na mesma direção das projeções anteriores. Concomitante a essas asserções, noutra passagem, ocorre ainda a presença do modalizador pode (também frequente no estrato 2) como elemento que atenua a força da escrita de relatórios para a formação inicial do professor. No segundo estrato, houve projeção sinalizada no processo mental perceptivo, no grupo nominal nos fazer acreditar que, no processo mental cognitivo acreditar, servindo para avaliar positivamente as experiências vivenciadas pelo aluno-mestre durante as atividades de estágio. No segundo estrato, ocorrem ainda no processo verbal disse duas circunstâncias de ângulo indicando fonte, com função de citação: a primeira apenas citando Roberto Leão; a segunda, atribuindo-se-lhe função atributiva, a partir da qual o aluno-mestre alinha sua posição à do Presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação. Além de outras projeções, também encontramos uma projeção metafórica, no processo mental cognitivo destacar, além de projeções dos processos verbais dialogar e contar, e um processo relacional é, de forma elíptica, na expressão [o] Moodle [é] uma ferramenta que (....). Por fim, aparece uma projeção de circunstância de ângulo ao indicar a fonte: as palavras de Rubem Alves (...). Nesse sentido é válido acentuar que a projeção é um sistema disperso, operado em mais de um lugar na GSF,20 sobretudo, não existem padrões definidos de ocorrências desse sistema, mas este é algo que para ser identificado depende do contexto de análise do registro, pois inúmeras possibilidades que adotem os subsídios da LSF são aceitáveis. No português brasileiro, apesar de ainda não termos uma GSF, já existem alguns estudos que focam os recursos do sistema de projeção, principalmente no nível da metafunção ideacional, especialmente no discurso jornalístico. (cf. ARAÚJO, 2007; OLIVEIRA, 2009; FUZER, 2012a e 2012b; CABRAL e BARBARA, 2012; SOUZA e MENDES, 2012; NININ e BARBARA, 2013; ). 20 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 65 Universidade Federal da Grande Dourados REFERÊNCIAS ARAÚJO, C. G. O sistema semântico de projeção e sua dispersão gramatical em português brasileiro: uma descrição sistêmico-funcional orientada para os estudos linguísticos da tradução. 2007. 133 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos) - Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, 2007. ARAÚJO, J. C.; DIEB, M. Autoria e deontologia: mediação de princípios éticos e práticas de letramento na escrita acadêmica em um fórum virtual. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, p. 83-104, 2013. BAKHTIN, M. (VOLOSHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 10ª ed. São Paulo: Editora HUCITEC, [1929] 2002. ______. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermentina Galvão. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, [1952-1953] 2000. ______. Speech Genres & Other Late Essays. Translated by Vern W. Mcgee. Austin: University of Texas Press, 1986. BARBARA, L.; MACEDO, C. M. M. de. Linguística Sistêmico-Funcional para a análise de discurso: um panorama introdutório. Cadernos de Linguagem e Sociedade. Brasília: UNB, v. 10, n. 1, p. 89-107, 2009. BARROS, E. M. D. Transposição didática externa: a modelização do gênero na pesquisa colaborativa. Revista Raído, Dourados, MS, v. 6, n. 11, p 11 - 35, jan./jun., 2012. ______.; HAMILTON, M. Local Literacy: reading and writing in one community. Routledge, New York, 2012. ______.; PAPEN, U. The anthropology of writing: understanding textually-mediated worlds. Continuum, New York, 2010. BAZERMAN, C. As ordens de documentos, as ordens de atividades e as ordens de informações. Fórum Linguístico, Florianópolis, v. 9, n. 4, p. 342-351, out./dez., 2012. BHATIA, V. K. Worlds of written discourse: a genre-based view. Continuum, London, 2004. CABRAL, S. R. S.; BARBARA, L. Processos verbais no discurso jornalístico: frequências e organização da mensagem. Revista de Documentação e Estudos em Linguística Teórica e Aplicada - DELTA, 28: Especial, p. 581-603, 2012. CHEVALLARD, Y. On didactic transposition theory: some introductory notes. 1989. Disponível em: <http://yves.chevallard.free.fr/spip/spip/rubrique.php3?id_rubrique=6>. Acesso em: 14/04/2013. FIAD, R. S.; SILVA, L. L. M. da. Escrita na formação docente: relatos de estágio. Revista Acta Scientiarum. Language and Culture. Maringá: EDUEM, v. 31, n. 2, p. 123-131, 2009. 66 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados FLICK, U. Introdução à pesquisa qualitativa. Porto Alegre, Artmed, 2009. FUZER, C. Realização de processos verbais em textos científicos da área de engenharia civil. Revista de Documentação e Estudos em Linguística Teórica e Aplicada - DELTA, 28: Especial, 2012 (473-494). 2012b ______. Vítimas e vilões em reality shows no Brasil: representações e avaliações com base em evidências léxico-gramaticais. ALFA: Revista de Linguística, São Paulo, 56 (2), p. 403-425, 2012a. GONÇALVES, A. V.; BARROS, E. M. D. Planejamento sequenciado da aprendizagem: modelos e sequências didáticas. Linguagem & Ensino, Pelotas, v.13, n.1, p.37-69, jan./jun. 2010. ______.; CAMARGO, M. L. G. Deontologia e letramento acadêmico. (no prelo), 2014. GOUVEIA, C. A. M. Texto e gramática: uma introdução à Linguística Sistémico-Funcional. Revista Matraga, Rio de Janeiro, v.16, n.24, jan./jun. p. 13-47, 2009. HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. M. An introduction to functional grammar. Britain: Hodder Education, 2004. ______.; ________. Construing Experience through Meaning: a language-based Approach to Cognition. New York: Continuum, 2006. _______.; _______. Halliday’s Introduction to Functional Grammar. 4th Edition. New York: Routledge, 2014. KALMAN, J.; STREET, B. (Orgs.). Literacy and Numeracy in Latin America: Local Perspectives and Beyond. New York: Routledge, 2013. KLEIMAN, A. B. Projetos dentro de projetos: ensino-aprendizagem da escrita na formação de professores de nível universitário e de outros agentes de letramento. Revista Scripta. Belo Horizonte: PUC/MG, v. 13, n. 24, p. 17-30, 2009. MARINHO, M. A escrita nas práticas de letramento acadêmico. Revista Brasileira de Linguística Aplicada – RBLA, Belo Horizonte, v. 10, n. 2, p. 363-386, 2010. MARTIN, J. R.; WHITE, P. R. R. The Language of Evaluation: Appraisal in English. New York: Palgrave Macmillan, 2005. MELO, L. C. Escrita acadêmica na profissionalização do professor de Língua Estrangeira. In: Wagner Rodrigues Silva (Org.). Letramento do professor em formação inicial: Interdisciplinaridade no Estágio supervisionado da Licenciatura. Campinas: Pontes Editores Editores, p. 181-206, 2012. _____.; ESPINDOLA, E. O sistema semântico de projeção em citações na escrita acadêmica de relatórios de estágios (no prelo), 2014. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 67 Universidade Federal da Grande Dourados ______.; GONÇALVES, A. V.; SILVA, W. R. Escrita acadêmica na escrita reflexiva profissional: citações de literatura científica em relatórios de estágio supervisionado. Revista Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, v. 8, p. 95-119, 2013. ______.; BRITO, C. C. P. Literatura (d)e (des)motivação: representações sobre o “bom professor” em relatórios de estágio supervisionado de Língua Inglesa. 2014 (no prelo). NININ, M. O. G.; BARBARA, L. Engajamento na perspectiva linguística sistêmico-funcional em trabalhos de conclusão de curso de letras. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas: São Paulo, n (52.1), p. 127-146, jan./jun. 2013. OLIVEIRA, A. M. Um estudo Linguístico Sistêmico-Funcional sobre um diário dialogado: Representações de experiência de professas de Língua Inglesa. 2009. 135 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Programa de Pós-graduação em Linguística do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, João Pessoa, PB, 2009. SADIO, F. Professional Deontology in Teacher Training. Report on a training experience. Publicaciones, vol. 41, p. 09-31, 2011. Disponível em : <http://digibug.ugr.es/ handle/10481/24740>. Acesso em 20/02/2014. SÁ-SILVA, R.; ALMEIDA, C. D. de.; GUINDANI, J. F. Pesquisa documental: pistas teóricas e metodológicas. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Ano I. n° I. Julho de 2009. SILVA, W. R.; ESPINDOLA, E. Afinal, o que é gênero textual na Linguística Sistêmico-Funcional? Revista da ANPOLL (Online), v.34, p.259-307, 2014. ______.; PEREIRA, B. G. Letramento acadêmico no estágio supervisionado da licenciatura. Revista Raído. Dourados, MS, v.7 n. 13. p. 37-59, jan./jun. 2013. SOUZA, M.; MENDES, W. V. Uma análise Sistêmico-Funcional do dizer em artigos científicos de graduandos. Revista de Documentação e Estudos em Linguística Teórica e Aplicada - DELTA, 28: Especial, 2012 (537-560) STREET, B. Perspectivas interculturais sobre letramento. Tradução de Marcos Bagno. In: Filol. linguíst. port., n. 8, p. 465-488, 2006. THOMPSON, G. Introducing Functional Grammar. 3rd ed. New York: Routledge, 2014. VIAN JR, O. O sistema de avaliatividade e os recursos para gradação em Língua Portuguesa: questões terminológicas e de instanciação. In: Revista de Documentação e Estudos em Linguística Teórica e Aplicada - DELTA, 25:1, p. 99-129, 2009. Recebido em 15/02/2014. Aprovado em 20/04/2014. 68 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados ANEXO Introdução completa do relatório 01: As atividades de estágio supervisionado são essenciais e de grande importância para complementar os estudos de profissionais em fase de formação. Na área da educação, faz se imprescindível a presença de tal etapa para que os futuros educadores estejam em contato com o lado prático da profissão, na maioria dos casos, é a primeira oportunidade do acadêmico de aplicar os conhecimentos teóricos adquiridos na universidade, à realidade apresentada pelo meio social e educacional em que vive. Assim, (...) é preciso que o estágio propicie ao estudante através de um conhecimento cientíico e teórico sólido oportunidades de vivenciar o cotidiano de uma escola pública e nesse momento buscar uma formação política, através de uma informação crítica, que o leve a buscar uma articulação com os seus interesses proissionais, que não permita mais a sua expropriação, nem a sua desvalorização. (GUERRA, texto digital, [s.d.]) As orientações para o estágio são recebidas na universidade por meio de aulas teóricas para que em seguida os acadêmicos realizem a parte prática em escolas que devem pertencer à rede pública. O Estágio Supervisionado é uma exigência da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) Lei número 9394, de 20 de dezembro de 1996 (LDB 9394/96). O Estagio Supervisionado I consiste em observação da prática pedagógica no ensino fundamental em escolas da rede pública, é uma preparação para a regência e possui uma carga horária de 15 horas aliadas a aulas teóricas que possuem carga horária de 30h. Com base nisso, este relatório é fruto de observações realizadas no primeiro semestre de 2012 em uma escola da rede estadual de Araguaína – TO, que oferece ensino fundamental (6° a 9° ano) nos turnos matutino e vespertino e a modalidade EJA (Educação de Jovens e Adultos) no noturno. Foi observada em grande parte da carga horária, uma turma de 8° ano, e com menor frequência, turmas de 6°, 7°, e 9° ano, todas no período vespertino. As aulas de língua inglesa nessa escola são oferecidas duas vezes por semana. Seguindo as recomendações teóricas que partiram da universidade, durante todas as observações foram escritos diários que abordavam os acontecimentos da aula, como o tema, o conteúdo ensinado pela professora, os métodos e recursos utilizados por ela, as formas de avaliação, o desempenho dos alunos, entre outras peculiaridades. Os diários são essenciais para uma observação eficaz, é o ponto de partida para a reflexão a respeito da prática pedagógica observada, além de propiciar um contato mais próximo entre o acadêmico e o meio educacional, é também uma forma de refletir sobre o contexto escolar e seus problemas. É importante ressaltar que a prática de escrever sobre o ambiente escolar não deve necessariamente se restringir ao estágio, mas também estar presente no decorrer da vida docente do educador, já que isso pode ajudá-lo a aperfei- Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 69 Universidade Federal da Grande Dourados çoar seus métodos, a respeito disso, “Zabalza, (1994) assume que o professor, ao escrever sobre sua prática, aprende e reconstrói, pela reflexão sua atividade profissional.” (ZABALZA, 1994 apud GALIAZZI e LINDEMANN, 2003, p. 137). É através do Estágio Supervisionado I que o acadêmico, em muitos casos, tem seu primeiro contato com as situações do contexto escolar, percebendo-as já com olhar de educador, é o ponto inicial para aliar o conhecimento teórico à pratica docente e uma preparação para a regência, onde se tem a oportunidade de fazer de forma diferente o que foi visto com olhar de reprovação durante as observações. (Informante 01 – Estágio em Ensino de Língua inglesa I, 2012.1 – introdução completa do relatório). Parágrafo introdutório da seção desenvolvimento do relatório 0221: “– Como você define o perfil da escola pública no Brasil?” “– É uma escola que passa por enormes dificuldades, e é frequentada, em sua maioria, por pessoas de poucas posses, de classe média baixa, isto é, pessoas que estão em situação econômica problemática. É a escola que o povo frequenta e que passa hoje por dificuldades de estrutura, de funcionamento, etc. A escola pública brasileira se sustenta hoje muito mais pela solidariedade dos profissionais da educação que atuam nela, do que por conta das políticas públicas que deveriam fazê-la funcionar direito”, disse Roberto Leão, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, em entrevista à IHU On-Line, revista produzida mensalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos. (Parágrafo introdutório da seção desenvolvimento do relatório - Informante 02, Estágio I, 2012.2 - LP). Apesar de alguns equívocos linguísticos na transcrição da entrevista, por parte do aluno-mestre, não realizamos correções no trecho reproduzido. Entrevista completa está disponibilizada em: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/23636-a-escola-publica-brasileira-uma-realidade-dura-entrevista-com-roberto-de-leao. Último acesso: 14/10/2013. 21 70 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA NA DOCÊNCIA UNIVERSITÁRIA: REESCRITA COMO UMA ATIVIDADE SUSTENTÁVEL NA LICENCIATURA SCIENTIFIC RESEARCH IN UNIVERSITY TEACHING: REWRITING AS A SUSTAINABLE ACTIVITY IN THE LICENTIATE COURSE Wagner Rodrigues Silva* Janete Silva dos Santos** Aliny Sousa Mendes*** RESUMO: Neste artigo, discutimos algumas demandas para o desenvolvimento de políticas de ensino e de pesquisa sustentáveis para cursos brasileiros de graduação e de pós-graduação que focalizam a formação do professor de língua. Nessa discussão, descrevemos uma experiência de reescrita acadêmica numa Licenciatura em Letras, ofertada no Estado do Tocantins. Alguns pressupostos teórico-metodológicos, originários de diferentes disciplinas, foram mobilizados e ajustados para desencadear práticas acadêmicas de ensino e de pesquisa mais significativas para o fortalecimento do letramento do professor em formação inicial. O olhar crítico da academia sobre as próprias práticas é caracterizado como uma atitude sustentável para a formação inicial do professor brasileiro. Palavras-chave: ensino; letramento; pesquisa; Sustentabilidade. ABSTRACT: In this paper, we discuss some demands for the development of sustainable teaching and research policies for Brazilian undergraduate and postgraduate courses that focus on the language teacher training. In this discussion, we describe an experience of academic rewriting in a Licentiate course in Languages offered in the state of Tocantins. Some theoretical and methodological assumptions, emerged from different disciplines, were mobilized and set to unlink more significant academic teaching and researching practices to strengthen the literacy of the initial training of the teacher. The critical eye of university on their own practices is characterized as a sustainable attitude for the initial training of the Brazilian professor Keywords: teaching; literacy; research; sustainability. Docente da Universidade Federal do Tocantins. E-mail: [email protected] Docente da Universidade Federal do Tocantins. E-mail: [email protected] *** Mestre em Ensino de Língua e Literatura pela Fundação Universidade Federal do Tocantins. E-mail: [email protected] * ** Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 71 Universidade Federal da Grande Dourados “essa Universidade incondicional não existe, de fato. Mas em princípio, e conforme sua vocação declarativa, em virtude de sua essência professada, ela deveria permanecer como um derradeiro lugar de resistência crítica – e mais que crítica – a todos os poderes de apropriação dogmáticos e injustos” (DERRIDA, 2003, p. 16) INTRODUÇÃO A epígrafe deste artigo remete-nos à autonomia universitária ameaçada na sociedade contemporânea. Essa autonomia pode ser descrita pela “ideia de um conhecimento guiado por sua própria lógica, por necessidades imanentes a ele, tanto do ponto de vista de sua invenção ou descoberta como de sua transmissão” (CHAUI, 2003, p. 5). Em oposição à autonomia idealizada, está a fragmentação competitiva das práticas sociais, em sintonia com demandas mercadológicas que afligem a universidade1. Quais seriam “os poderes de apropriação dogmáticos e injustos” que, de alguma forma, estariam desvirtuando a universidade das práticas para ela idealizadas? Uma resposta possível para o questionamento elaborado pode ser encontrada num outro questionamento, dessa vez, elaborado pelo próprio Derrida (2003, p. 21): “em que medida a organização da pesquisa e do ensino deve ser sustentada, ou seja, direta ou indiretamente controlada, digamos de maneira eufemística ‘patrocinada’, visando a interesses comerciais e industriais?”. O enfoque deste artigo recai mais diretamente sobre a prática de pesquisa na Linguística Aplicada (LA), concebendo o trabalho com a linguagem nos estágios supervisionados obrigatórios das licenciaturas brasileiras como contexto investigativo de interesse desse campo do conhecimento. Informada pela abordagem transdisciplinar de pesquisa, a construção de objetos investigativos complexos é apresentada como “resistência crítica” a pesquisas científicas informadas por práticas do tipo das contrapostas na epígrafe deste capítulo. O enfoque assumido sobre a pesquisa universitária alcança as atividades de ensino e extensão, considerando o tripé de atividades acadêmicas sobre o qual está alicerçada a universidade brasileira. Nessa lógica do fomento à pesquisa e, também, do reconhecimento pela comunidade acadêmica ou, até mesmo, não acadêmica, da relevância do trabalho científico produzido, inúmeras pesquisas desenvolvidas no âmbito dos estudos linguísticos parecem ganhar o rótulo de pesquisas aplicadas. A demanda social pela apresentação de produtos, resultados diretamente aplicáveis a problemas cotidianos, parece alcançar a ciência linguística, que, mais recentemente, vê-se coagida a apresentar respostas precisas, por exemplo, para os desafios do ensino de língua nas escolas brasileiras de educação básica. Este artigo contribui para as investigações cientíicas desenvolvidas dentro dos seguintes grupos de pesquisa: Linguagem, Educação e Sustentabilidade – LES (UFT/CNPq) e Práticas de Linguagens em Estágios Supervisionados – PLES (UFT/ CNPq), vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Letras: Ensino de Língua e Literatura (PPGL), na Universidade Federal do Tocantins (UFT), Campus de Araguaína. 1 72 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Essa demanda pela aplicação dos resultados também se configura como resposta ao paradigma positivista de pesquisa científica2. Nas humanidades, percebe-se um esforço entre os pesquisadores em se distanciar desse paradigma. Ao discutirem a construção de práticas de ensino e pesquisa interdisciplinares na pós-graduação em Letras, contexto de produção desta investigação, mais precisamente no Estado do Tocantins, onde funciona o único programa brasileiro de mestrado e doutorado da área de Letras/Linguística voltado diretamente para pesquisas sobre o ensino e a formação do professor de língua e literatura, Silva e Pinho (2011, p. 58) pontuam “dois desafios imbricados nas pesquisas desenvolvidas”: (i) “tensão entre o alcance teórico e a demanda da prática pedagógica”; (ii) “distância espacial, não necessariamente física, entre as instituições de ensino superior e básico”. Tais desafios são caracterizados pelos autores como respostas à “tradição positivista da prática científica”. Em função desses desafios, ainda nos termos de Silva e Pinho (2011, p. 58), resta, “quase que exclusivamente, à universidade, a responsabilidade pela produção do conhecimento científico, esperando-se dessa instituição, portanto, contribuições significativas para o aprimoramento dos diferentes níveis de ensino”. Esse cenário brevemente desenhado faz-nos retomar a tese trabalhada por Derrida (2003, p. 21), ao destacar que “as Humanidades são com frequência reféns dos departamentos de ciência pura ou aplicada que concentram os investimentos supostamente rentáveis de capitais estrangeiros no mundo acadêmico”. Nessa perspectiva, inúmeras perguntas sobre o fazer científico na LA nos sobrevêm, dentre as quais elencamos algumas: o caminho para a libertação das ciências humanas seria a assunção das práticas de pesquisa dos “departamentos de ciência pura ou aplicada” a que se refere Derrida (2003)? Haveria outros caminhos para as práticas científicas da LA, os quais não desvirtuariam esse campo de estudos do conhecimento da Universidade, diferentemente das “instituições de pesquisa que estão a serviço de finalidades e de interesses econômicos de todo tipo”, dispondo-se “da independência de princípio da Universidade”? Nas próximas seções deste artigo, elaboramos alguma resposta para as perguntas apresentadas, além de descrever um percurso investigativo sobre a prática de reescrita por professores em formação inicial, aqui denominados de alunos-mestre, numa Licenciatura em Letras, na Região do Norte do Brasil3. O olhar direcionado sobre as práticas de linguagem, desenvolvidas na universidade e orientadas pelos próprios docentes, que também são pesquisadores, configura-se como uma resposta alternaEm linhas gerais, o paradigma positivista de pesquisa cientíica, idealizado pelo ilósofo francês Auguste Comte, é caracterizado pelo aspecto observacional de investigação. Tem a objetividade como referência para análises preferencialmente quantitativas. Daí sua preocupação com a regularidade de dados estatísticos, anulando ou minimizando o peso de aspectos subjetivos envolvidos no processo de apreensão da realidade investigada (objeto de pesquisa). Qualquer realidade ou objeto investigado é visto como sempre o mesmo para qualquer observador-pesquisador. Nesse paradigma, predomina a crença na ideia de neutralidade por parte do investigador, ao delimitar e/ou ao analisar os fenômenos investigados. 3 Parte desta investigação recebeu a premiação de 1º lugar na grande área de Ciências Humanas, Sociais Aplicadas e Letras, no VIII Seminário de Iniciação Cientíica da Universidade Federal do Tocantins (UFT), realizado em dezembro de 2012, em Palmas – TO. O trabalho foi apresentado por Aliny Sousa Mendes, sob a orientação do Prof. Dr. Wagner Rodrigues Silva. Esta pesquisa contou com a colaboração do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientíico e Tecnológico – CNPq, a partir dos seguintes projetos: “Formação Inicial de professores mediada pela escrita” (CNPq/CAPES 400458/2010-1) e “Implicações dos relatórios de estágio supervisionado para a formação inicial de professores” (CNPq 501123/2009-1). 2 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 73 Universidade Federal da Grande Dourados tiva ao diligente trabalho realizado na LA para responder às demandas da educação linguística nas escolas brasileiras, em especial nos contextos desprestigiados. Como linguistas aplicados, não podemos abrir mão da nossa ‘atividade de casa’, em função da elaboração das desejadas respostas para as demandas da educação básica. Ou seja, não podemos ignorar o olhar crítico sobre as práticas pedagógicas desenvolvidas nos cursos superiores brasileiros de formação de professores, as denominadas licenciaturas, em função do enfoque, em nossas pesquisas, quase que exclusivo sobre a escola de educação básica com seus inúmeros atores. Tais práticas pedagógicas não podem ser ignoradas pelas pesquisas desenvolvidas na pós-graduação. ESTÁGIO SUPERVISIONADO DA LICENCIATURA COMO CONTEXTO DE INVESTIGAÇÃO Na LA, os esforços despendidos nas pesquisas sobre práticas escolares de linguagem (leitura, escrita e análise linguística), realizadas pelos alunos da educação básica (GONÇALVES, 2010; SILVA, 2012a, só para citar alguns), não podem invisibilizar práticas de linguagem propostas pelos próprios pesquisadores, docentes universitários, para os alunos-mestre. Os diversos enfoques e objetos de pesquisas, produzidas nas últimas décadas na LA, são relevantes para o campo transdisciplinar de estudos linguísticos. Porém, não podemos nos esquecer de direcionar nosso olhar crítico sobre a própria universidade, principalmente, quando se torna comum falar do espaço escolar como se inexistisse alguma conexão entre as ações aí produzidas e as do espaço acadêmico. O esforço em focalizar essa conexão pode ser conferido em pesquisas a respeito de questões locais, como a realizada por Santos (2012, p. 146), por exemplo. Ao refletir sobre ensino de leitura, na escola básica, numa perspectiva discursiva, a autora tece alguns questionamentos sobre como a universidade teria apresentado (ou vem apresentando), por meio da prática do docente da academia (e não apenas teoricamente), referenciais sobre leitura como produção de sentidos aos alunos-mestre. Esses alunos-mestre, hoje, assumem ou, amanhã, assumirão, efetivamente o trabalho no ensino básico. Como professores, precisam se esforçar para dar conta das mudanças de paradigmas, a fim de atender aos desafios no que tange ao ensino de leitura como produção de sentidos, desvinculado do mero trabalho de decodificação. Questionamos as práticas acadêmicas nas licenciaturas em função das demandas de pesquisa científica, instauradas para o fortalecimento do trabalho pedagógico sobre/com a linguagem, realizado na escola de educação básica. Nessa perspectiva, as disciplinas de estágio supervisionado obrigatório, preferencialmente, configuram-se como um campo fértil para as investigações realizadas na LA. Nesse momento da licenciatura, é inevitável o encontro entre a universidade e a escola de educação básica, conforme destacam recentes pesquisas que assumem o contexto das referidas disciplinas como campo de investigação científica (SILVA, 2008, 2012b, 2013; FIAD e 74 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados SILVA, 2009; CONCEIÇÃO, 2011; MELO, 2011; DINIZ, 2012; GUERRA, 2012; KLEIMAN e REICHMANN, 2012; TAVARES, 2011; só para citar alguns). Nosso interesse pelos estágios também se justifica pelos conflitos instaurados quando a articulação entre teoria e prática se torna inevitável, após alguns anos iniciais de protelação da articulação desejada pelos alunos-mestre. Ao investigar as operações linguísticas realizadas por alunos-mestre, no processo de (re)escrita de relatórios de estágio, Conceição (2011, p. 124), por exemplo, menciona a existência de proposições de diferentes formas de reflexão sobre a prática pedagógica nas licenciaturas, mesmo havendo fortes indícios de que “a reflexão tem sido realizada de forma dissociada da prática, de modo que o ponto de partida e o de chegada tem sido sempre a teoria”. Ainda nos termos da autora: quando a interação entre teoria e prática é relegada à responsabilidade dos alunos, icando apenas o professor de estágio com toda a responsabilidade de criar as condições e de garantir a interação entre as duas extremidades que caminham, ao longo da graduação, paralelamente, o resultado tende a ser problemático. Nas licenciaturas brasileiras, as disciplinas de estágio supervisionado devem proporcionar maior familiarização dos alunos-mestre com a sala de aula do ensino básico, em especial com a rede pública de ensino4. Na Licenciatura em Letras, na Universidade Federal do Tocantins (UFT), Campus de Araguaína, contexto de geração dos dados desta pesquisa, há quatro disciplinas de estágio supervisionado obrigatório por habilitação (Língua Portuguesa ou Língua Inglesa). Além de outras habilidades, assim como destacado por Conceição (2011) e nas investigações desenvolvidos no âmbito do grupo de pesquisa Práticas de Linguagens em Estágios Supervisionados – PLES (MELO, 2011; TAVARES, 2011; DINIZ, 2012; GUERRA, 2012; SILVA, 2012c; 2012d, 2013), em que está inserido o presente trabalho científico, os estágios também visam desenvolver nos acadêmicos a capacidade crítico-reflexiva sobre as práticas pedagógicas experienciadas no local de atuação profissional, o que precisa se perpetuar ao longo da carreira docente, como defendem os discursos sobre a sustentabilidade na educação linguística (ARAÚJO; SANTOS; DIFABIO, 2012, p. 10). Conforme as autoras mencionadas, “uma experiência é sustentável (...) quando as diversas forças que se mobilizaram para concretizá-la (em múltiplos aspectos) continuam ativas (mesmo que modificadas), depois de terminado o projeto inicial que lhe deu origem”. Nossa ênfase nas escolas públicas se justiica pelo nosso comprometimento político e, também, ético em fortalecer grupos menos favorecidos da sociedade por meio de ações desenvolvidas na universidade. Lamentavelmente, os alunos das escolas públicas continuam apresentando menor desempenho, quando comparados à clientela dos estabelecimentos privados de educação básica. Nessa perspectiva, não compartilhamos do seguinte “consenso tácito”, denunciado por Paiva (2005, p. 46) ao discutir algumas questões éticas na LA: “quem não ‘paga’ pelos seus estudos teria mais obrigação de aceitar a presença de um pesquisador em sua escola”. Ainda segundo a autora, “há, também, um preconceito generalizado contra as escolas públicas e um desejo de expor suas deiciências”. Não duvidamos que “apontar as falhas no ensino público sem trazer nenhum retorno para os pesquisados apenas contribui para desestabilizar o que já está fragilizado, o que é, no mínimo, irresponsável e não solidário”. 4 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 75 Universidade Federal da Grande Dourados Em função disso, os alunos-mestre produzem, como trabalho final das disciplinas de estágio, um relatório escrito, no qual deve constar uma análise crítica das atividades de observação e regência de aulas, realizadas em escolas de educação básica. Esse documento deve conter as atividades didáticas desenvolvidas (tanto pelo aluno-mestre, no período de regência de aulas, quanto pelo professor colaborador do estágio, responsável pela disciplina na escola pública de educação básica, no período de observação de aulas), bem como reflexões sobre essas atividades. Tais reflexões devem preferencialmente ser justificadas por pressupostos teóricos trabalhados durante as disciplinas de estágio supervisionado obrigatório na universidade. Os relatórios da licenciatura mencionada são objeto de investigação neste artigo. Após avaliação do formador, responsável pela disciplina, esses textos são arquivados e disponibilizados para pesquisa no Centro Interdisciplinar de Memória dos Estágios Supervisionados das Licenciaturas (CIMES), no campus universitário focalizado. Por espelhar o contexto de produção e circulação dos relatórios de estágio supervisionado, a escrita encapsula práticas sociais significativas para serem tomadas como dados de investigação na LA. A investigação sobre essa escrita contribui para responder os questionamentos elaborados neste artigo, aos quais acrescentamos mais um, elaborado por Conceição (2011, p. 135), a saber: “qual tipo de práxis as instituições de ensino superior estão proporcionando aos profissionais que formam?”5. Apresentamos os resultados de um estudo de caso sobre atividades de reescrita de relatórios de estágio supervisionado, produzidos como trabalhos finais das disciplinas Investigação da Prática Pedagógica e Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa: Língua e Literatura I e II. No primeiro momento desta investigação (SILVA e MENDES, 2012, p. 146), foi analisado o processo de reescrita dos relatórios, mediado pelo formador, produzidos ao final da primeira disciplina mencionada. Esse estágio se configura como o primeiro momento de contato dos alunos-mestre com a sala de aula da educação básica, porém, apenas para observação da prática pedagógica na unidade escolar. Nesse momento, o aluno-mestre é convidado a fazer uma leitura do trabalho realizado pelo professor colaborador do estágio, a partir das teorias estudadas na universidade. Identificamos quatro atividades linguísticas informando a prática de reescrita dos relatórios: (i) apagamento da informação apresentada; (ii) fuga da informação solicitada; (iii) expansão da informação apresentada; e (iv) reflexão sobre a prática observada. Neste segundo momento, quando investigamos relatórios que também tematizam aulas ministradas pelos próprios alunos-mestre, nas escolas de educação básica, fundimos as duas últimas categorizações e passamos a utilizar a nomenclatura expansão reflexiva da informação apresentada. Ao aprofundarmos a análise dos dados, tornou-se mais evidente que a expansão da informação apresentada ocorre inevitavelmente pela reflexão dos alunos-mestre sobre as práticas pedagógicas experienciadas nos estágios supervisionados obrigatórios. Compreendemos por práxis o trabalho contínuo de relexão sobre a e na ação (ação-relexão-ação), capaz de oxigenar, desestabilizar e/ou reorientar a rotina docente, ao abrir espaço para transformações necessárias, sonhadas ou, no mínimo, possíveis. 5 76 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Na avaliação do relatório, realizada pelo formador da disciplina, houve uma tentativa de se evitar a redução do processo avaliativo à mera atribuição de nota. Os alunos-mestre receberam a primeira versão dos relatórios com comentários escritos pelo formador, orientando a reescrita do texto, de maneira que o processo vivenciado pelos alunos-mestre pudesse modelar a prática pedagógica demandada para o futuro local de trabalho, na escola de educação básica. A reescrita contribuiu para o aprimoramento da escrita acadêmica dos alunos-mestre e, até mesmo, para melhor assimilação do conteúdo disciplinar dos estágios, uma vez que a atividade intensifica a prática de reflexão sobre a ação orientada por teorias de referência. Na licenciatura, a avaliação pode desencadear o estreitamento do diálogo entre formador e aluno-mestre, proporcionado a participação ativa desse último no processo de construção do conhecimento. Os equívocos pontuados e comentados nos textos devem ser vistos como ponto de partida para construção do conhecimento, o que não deveria ser diferente na educação básica. Destacamos a importância de o trabalho pedagógico nas licenciaturas servirem como modelo de avaliação a serviço da aprendizagem. De acordo com Hadji (2001, p. 20), denominamos essa atividade de avaliação formativa, a qual informa os dois principais atores do processo. O professor, que será informado dos efeitos reais de seu trabalho pedagógico, poderá regular sua ação a partir disso. O aluno, que não somente saberá onde anda, mas poderá tomar consciência das diiculdades que encontra e tornar-se-á capaz, na melhor das hipóteses, de reconhecer e corrigir ele próprio seus erros. Além do envolvimento dos alunos-mestre, participantes da pesquisa, no processo de (re)escrita dos relatórios, destacamos o compartilhamento dos resultados gerados na investigação com os alunos-mestre, durante as disciplinas de estágio supervisionado obrigatório. Estes demonstraram bastante satisfação com as análises críticas do processo de escrita acadêmica instaurado, configurando, do nosso ponto de vista, a situação de aprendizagem como um ganho para o letramento do professor em formação inicial. Ao discutir emancipação como um fim último da pesquisa em LA, Celani (2005, 111) afirma que os participantes de pesquisa “não podem ser excluídos da etapa final de apresentação de resultados da pesquisa”6. Neste momento de nossas reflexões, o leitor pode questionar se não estaríamos nos contradizendo. Por um lado, questionamos a função da universidade diante da sedução pelo financiamento ou reconhecimento das pesquisas aplicadas, com repostas imediatas para problemas sociais. Por outro lado, provocamos essa mesma instituição por ainda estar enredada numa tradição bacharelesca, caracterizada pela supervalorização das teorias acadêmicas, em detrimento das demandas da prática pedagógica na Ainda segundo a autora “na teoria crítica, a participação de todos não é apenas um meio, mas é respeitada como um im em si mesma, pois tem a emancipação como im último. É a pesquisa entendida como empoderamento (empowerment), sobre alguma coisa, para algum im ou para alguém e com alguém. (...) Uma maneira de partilhar conhecimento resultante de um esforço conjunto poderia ser, por exemplo, a recontextualização dos enunciados nos relatórios ou publicações por meio de reinterpretações, com a participação dos participantes” (CELANI, 2005, p. 111). 6 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 77 Universidade Federal da Grande Dourados formação inicial de professores. No tocante ao papel da pesquisa científica na universidade contemporânea, as demandas da prática de formação inicial de professores nas licenciaturas não teriam o mesmo peso das demandas das práticas pedagógicas na educação básica? Não estaríamos apenas reposicionando o enfoque investigativo, mas permanecendo refém dos mesmos interesses mercadológicos, muitas vezes, desprovidos da criticidade necessária? LINGUÍSTICA APLICADA NO CONTEXTO DA UNIVERSIDADE CONTEMPORÂNEA A LA concebe a linguagem como constituída por um (e num) jogo de forças, de relação de poder, cujo ator por ela construído e que dela faz uso é social, complexo, com identidade móvel, reconfigurando-se a cada tomada de posição, dependendo do espaço onde enuncia. Assim, a LA é um campo de investigação com fins de não apenas compreender problemas que envolvem a linguagem, mas de apontar soluções para problemas situados de linguagem (SIGNORINI, 1998), vista como ação prático-discursiva que implica mais ou menos oportunidades aos atores por ela constituídos. Isso porque o modo de circulação e de apropriação dos discursos de poder não é distribuído de maneira equitativa na sociedade, visto que a assimetria na relação de poder impede tal utopia. Atores com maior capital simbólico/linguístico, maior mobilidade social poderão desfrutar nos espaços de prestígio do meio em que vivem (SIGNORINI, 2006), mais condições terão de se fazer ouvir nos espaços de poder, de reivindicar direitos e deles usufruir, sendo o contrário, por sua vez, também verdadeiro. Daí a luta travada continuamente por pesquisadores e professores idôneos, para que, num esforço conjunto, democratizem-se o acesso e a apropriação, por parte dos cidadãos em maior desvantagens, seja via educação formal, seja via educação popular, aos gêneros discursivos que circulavam nas esferas de poder, e dos quais aqueles não deveriam ser privados. A universidade é um espaço privilegiado de discussão a respeito das implicações de como a linguagem, que nela circula, autoriza ou desautoriza determinados discursos com suas formas linguísticas peculiares, autorizando ou desautorizando, por conseguinte, os sujeitos que procuram se estabelecer por meio desses mesmos discursos. Chauí (2003, p. 5) resume em linhas gerais essas práticas e a legitimidade que constitui a universidade junto à sociedade, relacionando-as como entidades interdependentes: A universidade é uma instituição social e como tal exprime de maneira determinada a estrutura e o modo de funcionamento da sociedade como um todo. Tanto é assim que vemos no interior da instituição universitária a presença de opiniões, atitudes e projetos conflitantes que exprimem divisões e contradições da sociedade. 78 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados A filósofa discute ainda as concepções que separam uma instituição social de uma organização social. Contrapõe as duas perspectivas da seguinte maneira: A instituição social aspira à universalidade. A organização sabe que sua eicácia e seu sucesso dependem de sua particularidade. Isso signiica que a instituição tem a sociedade como seu princípio e sua referência normativa e valorativa, enquanto a organização tem apenas a si mesma como referência, num processo de competição com outras que ixaram os mesmos objetivos particulares. Em outras palavras, a instituição se percebe inserida na divisão social e política e busca deinir uma universalidade (imaginária ou desejável) que lhe permita responder às contradições, impostas pela divisão. Ao contrário, a organização pretende gerir seu espaço e tempo particulares aceitando como dado bruto sua inserção num dos pólos da divisão social, e seu alvo não é responder às contradições, e sim vencer a competição com seus supostos iguais (CHAUÍ, 2003, p. 6). A análise de Chauí, porém, vai apontar um quadro adverso ao propósito democrático que deveria dominar a ação universitária, uma vez que a tônica atual do fazer universitário, imposta pelos parâmetros instáveis das concepções mercadológicas correntes, configura um caráter organizacional à instituição, em que a competitividade do mercado impõe um trabalho ofegante aos intelectuais, dificultando a melhor e mais saudável contribuição destes ao social, pois a graduação está a serviço do mercado transitório e a pesquisa “não é conhecimento de alguma coisa, mas posse de instrumentos para intervir e controlar alguma coisa” (p.7). Essa forma de organização, salienta a autora, enfraquece a reflexão e a crítica. Para substanciar sua argumentação, Chauí aponta as imposições aos pesquisadores de quantitativos abusivos de publicações exigidos pelas agências de fomento à pesquisa; o curto tempo que as organizações governamentais oferecem aos programas de pós-graduação para se fazer mestrado e doutorado, ou seja, para se formar de fato um pesquisador crítico etc. Tais exigências impostas especialmente aos programas de pós-graduação ignoram situações adversas e particulares enfrentadas pelas universidades localizadas distantes dos grandes centros de pesquisa, como acontece com as instituições situadas na Região Norte, desprovidas de uma significativa política de sustentabilidade por parte do governo federal. De acordo com Baumgarten (2002, p. 37), “os centros universitários com melhores condições econômicas e culturais (infraestrutura e massa crítica) obtêm mais facilmente recursos”. Ainda segundo a autora, “consolidou-se um processo de seletividade como de regiões e de instituições, de equipes, de pesquisadores e de áreas prioritárias, o que provocou grande concentração das atividades de pesquisa na Região Sudeste”7. Como contraproposta a toda essa força que esgota o nobre sentido da universidade como espaço democrático para o pensar e o fazer do trabalho intelectual, Chauí (2003) aponta alguns caminhos. Dentre eles, estão o resgate da autonomia universitáAinda tematizando a ausência de um planejamento sustentável nas políticas públicas de inanciamento à pesquisa brasileira, Baumgarten (2002, p. 38) continua destacando a “concentração de instituições, grupos e recursos em uma região ao lado do progressivo enfraquecimento de universidades e instituições localizadas fora dos grandes centros e que, entretanto, pela inserção em suas comunidades, teriam, talvez, melhores para encontrar respostas para problemas locais, desde que fossem adequadamente qualiicadas em termos de infraestrutura e pessoal docente e técnico”. 7 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 79 Universidade Federal da Grande Dourados ria, a distinção entre democratização da educação superior de massificação, e a revalorização da “docência, que foi desprestigiada e negligenciada com a chamada ‘avaliação da produtividade’ quantitativa”. (CHAUÍ, 2003, p. 14). O outro ponto, inicialmente sugerido pela filósofa, na mesma obra, é fundamental para nossa discussão, pois é também preocupação inerente à perspectiva da LA contemporânea ao pensar o sujeito da linguagem, sendo função preponderante de quem almeja a democratização efetiva dos bens públicos. Chauí (2003, p. 12) instiga a comunidade acadêmico-científica a: Colocar-se claramente contra a exclusão como forma da relação social deinida pelo neoliberalismo e pela globalização: tomar a educação superior como um direito do cidadão (na qualidade de direito, ela deve ser universal); defesa da universidade pública tanto pela ampliação de sua capacidade de absorver sobretudo os membros das classes populares, quanto pela irme recusa da privatização dos conhecimentos, isto é, impedir que um bem público tenha apropriação privada. Romper, portanto, com o modelo proposto pelo Banco Mundial e implantado no Brasil com a pretensão de resolver os problemas da educação superior por meio da privatização das universidades públicas ou pelos incentivos inanceiros dados a grupos privados para criar estabelecimentos de ensino superior, que provocou não só o desprestígio das universidades públicas (porque boa parte dos recursos estatais foram dirigidos às empresas universitárias) como a queda do nível do ensino superior (cuja avaliação era feita por organismos ligados às próprias empresas). Desse modo, ao considerarmos as preocupações contemporâneas dos linguistas aplicados, para a presente época, a saber, de “olhar as relações de poder na formação do sujeito na linguagem e por meio dela” (DAMIANOVIC, 2005, p. 187). O trabalho dentro da universidade é um campo fértil para se investigar essas relações de força, especialmente em nosso caso específico: cursos de licenciatura. Nas licenciaturas, promove-se não apenas a formação inicial do futuro docente do ensino básico, mas também a emergência, mediante os estágios de observação, de atores críticos ao olhar o outro, à medida que finalizam a formação profissional inicial. Essa formação parece menos eficiente no exercício da criticidade quando olham para si mesmos, pois são capazes de apontar com certa “facilidade” pontos frágeis do trabalho do professor colaborador, no ensino básico, pouco dialogando, porém, com as fragilidades do formador na universidade, quer o de disciplinas referentes ao estágio supervisionado, quer o das demais disciplinas da licenciatura, chamadas teóricas. Há de se considerar que apontar problemas é bem mais fácil que sugerir encaminhamentos ou, até mesmo, possíveis soluções para tais. Consequentemente, em relação às suas próprias fragilidades, os alunos-mestre sugerem uma compreensão pouco crítica ao tecerem reflexões sobre si, como estagiário, e ao professor colaborador do ensino básico, pois parecerem evitar (ou mesmo parecem não enxergar) contraponto substancial. Estreitando as críticas feitas por Chauí (2003) à instituição universitária, ancorando-nos nas posturas críticas da LA, podemos destacar alguns conflitos (ou mesmo contradições). A linguagem, a prática e o espaço acadêmicos, em determinados mo- 80 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados mentos, revestem-se, de tal maneira, de autoridade pouco questionável, no imaginário de muitos que deles participam, que a dificuldade ao realizar o necessário e aprimorador trabalho de autorreflexão reverbera-se naturalmente na relação ofuscada que os alunos-mestres mantêm com o professor colaborador e com o formador. Semelhantemente, o mesmo ocorre em relação ao formador, no que concerne a seu próprio saber e à sua própria prática. A relação de poder pela qual tais alunos-mestre e tais formadores transitam favorece a percepção mais aguçada de problemas envolvendo a linguagem no nível escolar e uma visão mais obscura ao olhar os mesmos problemas no nível (ou trabalho) universitário. A desestabilização de tal conjuntura, ao atentarmos para questões éticas nela reclamadas, exige do grupo mais favorecido a convicção de que, conforme aponta Moita Lopes (2011, p. 22) e com o qual concordamos, exatamente por causa desses princípios norteadores do trabalho em LA, devemos “avaliar as vantagens que levamos em detrimento de outros, assim como nos devem fazer recusar significados que façam sofrer, um parâmetro do qual não devemos nos afastar”. Parâmetros como esses corroboram a defesa do autor para a assunção de uma LA indisciplinar, não no sentido de desordenada ou de rebelde pela rebeldia, mas no sentido de caminhar sempre predisposta a ir além de seus próprios limites disciplinares a fim de buscar soluções para problemas que envolvem a linguagem em toda sua complexidade, visto que não age no vazio, mas num emaranhado que flutua e ancora a cultura. A linguagem envolve, alarga o raio de ação, limita ou (des) favorece os sujeitos que por ela se constroem ou são construídos. Defende-se assim, uma LA predisposta a duvidar de suas próprias certezas, ainda que certezas momentâneas, como também propõem Santos e Pinto (2013), ao analisar relatórios de estágio e discurso de estagiários na licenciatura, gerado por entrevistas semiestruturadas. Nessa análise, a voz dos alunos-mestre procura dividir com o formador as responsabilidades por eventuais dificuldades na sua relação com o trabalho desenvolvido no ensino básico. Por conta do desafio desse trabalho indisciplinar em LA, Moita Lopes (2011, p. 22) salienta e questiona: Atravessar fronteiras no campo do conhecimento, assim como na vida, é expor-se a riscos. Mas um desaio que se deve encarar com humildade e com a alegria de quem quer entender o outro em sua perspectiva. A posição na fronteira é sempre perigosa, já que quem está além da fronteira é aquele que vai se apropriar de nosso conhecimento, vai falseá-lo ou usá-lo incorretamente. Mas ele pode ser também aquele que vai nos fazer reletir, pensar de outra forma ou ver o mundo com um outro olhar. Em sociedades que se constituem cada vez mais de força mestiça, nômade e híbrida, não seriam as epistemologias de fronteira essenciais para compreender tal mundo? [itálico nosso] Afunilando as reflexões do autor para as questões específicas discutidas no presente artigo, fazem-nos pensar a dificuldade que temos em ousar sair de nossas garantias disciplinares, pois são mais seguras para a comodidade de nossas rotinas/práticas, que Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 81 Universidade Federal da Grande Dourados sustentam nossas “matrizes fechadas” nas licenciaturas, fomentando, em nosso espaço específico, dificuldades inclusive de estabelecer diálogos efetivos – e, consequentemente, inibindo possibilidades de interação – entre disciplinas teóricas e práticas num trabalho interdisciplinar ou, até mesmo, transdisciplinar. A esse respeito, Celani (1998, p. 132) destaca que a transdisciplinaridade “envolve mais do que a justaposição de ramos do saber”. Justaposição de saberes por si só não promove a interação, e, como lembra a autora, a interação é “condição essencial para a transdisciplinaridade” (p. 133). O reconhecimento dessas implicações leva-nos a contrapor também nossas dificuldades às dos professores do ensino básico local, que vivem os conflitos entre seus saberes mais assentados e as exigências de novas opções teóricas e práticas, no seu fazer pedagógico como professor de língua materna (SILVA e MELO, 2009SANTOS, 2010; SILVA, 2010). Desse modo, reconhecer a necessidade e a contribuição do outro em nosso trabalho é reconhecer também nossas limitações. Entretanto, num mundo em que a competitividade prioriza o que se projeta como aquele que mais sabe, que mais acerta e que melhor e mais produz, como realça Chauí (2004), em detrimento do que falha e produz menos, a “humildade” de que fala Moita Lopes (2011), em excerto supracitado, posta-se como o nosso calcanhar de Aquiles. Todavia, reconhecemos que se nortear por uma postura como a defendida pelo autor é, sem dúvida, fundamental para o estabelecimento da solidariedade, tão necessária para a busca das soluções almejadas no trabalho com a linguagem, dentro e fora da universidade, inclusive em práticas de (re) escrita acadêmica. Tal solidariedade pode se dar mediante a interação de saberes e de agentes da promoção linguístico-discursiva socialmente mais valorizada. Nesse sentido, essa solidariedade, se também aplicada a uma divisão mais justa de recursos financeiros, em relação ao incentivo à pesquisa e ao ensino – cuja boa qualidade favorece o aparecimento de pesquisadores talentosos – entre os Estados da Região Norte, seria de grande contribuição ao combate às discrepâncias na produção e valorização do conhecimento científico entre as cinco Regiões brasileiras. Como comentado em seção anterior, tais discrepâncias proveem recursos de forma não igualitária, mantendo a zona de conforto de centros mais favorecidos no sentido de decidir inclusive sobre o conhecimento que melhor convém ser pesquisado nas regiões com menores fatias de recursos. Neste trabalho, ousamos sair de nossa zona de conforto, que indubitavelmente impera quando estamos engajados em apenas olhar o outro, mormente em direção a suas falhas, para flexionarmos nosso olhar sobre nós mesmos, a fim de contribuir para a reorientação de nossas próprias práticas acadêmicas. Isso poderá ser conferido mais substancialmente através da experiência na pesquisa apresentada nas próximas seções, quando o trabalho do formador é objeto de investigação, no empenho de criar condições ao aluno-mestre para se apropriar da escrita reflexiva e acadêmica, significativa para a atuação profissional sustentável no futuro local de trabalho. 82 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados GERAÇÃO DE DADOS NO ESTÁGIO SUPERVISIONADO Assim como realizado na primeira fase da investigação desenvolvida, focalizada em Silva e Mendes (2012), o formador encaminha a reescrita dos relatórios na disciplina Investigação da Prática Pedagógica e Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa: Língua e Literatura II, ministrada no semestre letivo posterior à primeira fase mencionada. Nesse último semestre letivo, a disciplina foi iniciada com o estudo de teorias linguísticas referentes ao ensino da língua materna. Posteriormente, os alunos-mestre se reuniram em duplas para realização de atividades na escola campo do estágio: observação de cinco aulas no Ensino Fundamental II, seguida pela elaboração de planos de aula para serem utilizados ao longo de 14 aulas ministradas por eles, após aprovação dos referidos planos pelo formador. Como avaliação final da disciplina, as duplas produziram relatórios escritos, os quais são aqui analisados neste segundo momento da investigação científica. Seguindo as mesmas estratégias do semestre letivo anterior, o formador recebeu e devolveu os relatórios por e-mail. Os textos foram corrigidos com auxílio da ferramenta de controle de alterações textuais do Word. Por sua vez, os alunos-mestre deveriam reescrever os relatórios, aceitando ou não as intervenções escritas realizadas pelo formador. Por fim, as duplas reescreveram os textos e entregaram a versão final do relatório gravado em CD-ROM. Analisamos o processo de reescrita dos relatórios, envolvendo a primeira e a segunda versão de 08 (oito) relatórios, totalizando 16 (dezesseis) documentos investigados. Destacamos um diferencial do segundo estágio supervisionado: os alunos-mestre ministraram aulas, ou seja, nesta segunda fase, deveriam se posicionar criticamente diante de suas próprias aulas ministradas, resultando na tematização diferenciada de conteúdos selecionados. A escrita reflexiva é concebida como instrumento de mediação na formação do aluno-mestre. Orientada pelas intervenções do formador, a interação pela escrita contribui para o processo avaliativo desencadeador do fortalecimento dos participantes da prática de linguagem. Há contribuições para o aluno-mestre, ao refletir sobre ação pedagógica vivenciada e, até mesmo, sobre o próprio exercício da escrita. Há também contribuições para o formador, ao avaliar o próprio trabalho realizado a partir do feedback possibilitado pelos textos escritos. PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS Os enunciados produzidos em diferentes modalidades linguísticas são produtos da interação pela linguagem, são proferidos por alguém e dirigidos a outras pessoas, numa cadeia enunciativa e dialógica ininterrupta (BAKHTIN, M./VOLOCHÍNOV, [1929] 2002). Tem-se então, como afirma Brait (1997, p. 98), “o dialogismo como o Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 83 Universidade Federal da Grande Dourados elemento que instaura a constitutiva natureza interdiscursiva da linguagem, diz respeito às relações que se estabelecem entre o eu e o outro nos processos discursivos instaurados historicamente pelos sujeitos”. As duas versões escritas dos relatórios ilustram de forma bastante significativa o referido princípio dialógico da linguagem. Os relatórios investigados apontam para outros enunciados orais e escritos mobilizados em diferentes práticas acadêmicas e, em especial, nas dos estágios supervisionados. O princípio do dialogismo demanda o posicionamento do formador como leitor interessado na escrita do aluno-mestre, assim como esperado para o tratamento das produções textuais nas escolas de educação básica. O interesse pela escrita do aluno resulta respostas ao enunciado escrito do aluno, evitando-se a quebra da cadeia enunciativa ‘originária’ do comando da atividade proposta pelo docente. De acordo com Conceição (2011, p. 140), ao se posicionar como leitor interessado pela produção escrita do discente, “o professor desempenha papel significativo na formação do educando, já que aponta caminhos que levam o aluno-autor a decidir sobre mudanças que podem enriquecer seu conhecimento, sua prática e a reflexão sobre seu próprio texto”. Nesta pesquisa, articulamos a perspectiva teórica do dialogismo bakhtiniano a uma abordagem de análise textual-discursiva, inspirada na proposta da Linguística Sistêmico-Funcional (LSF). Em outras palavras, a análise linguística dos relatórios tomados como dados de pesquisa, possibilita a identificação de marcas do contexto de situação na materialidade textual. As situações enunciativas pontuais estão inseridas em contextos de cultura, responsáveis por práticas sociais mais amplas produzidas na interação pela linguagem. O contexto de cultura está relacionado diretamente à categoria de gênero textual, o qual é aqui focalizado nos relatórios escritos investigados, produzidos no contexto acadêmico das licenciaturas brasileiras. Nessa perspectiva, apresentamos a indissociabilidade na relação texto e contexto como uma das premissas da LSF. Nas palavras de Eggins (2004, p. 10), “nenhum texto está ‘livre’ do contexto (registro ou gênero)” (tradução nossa). O discurso se constitui como resultado das escolhas linguísticas realizadas no sistema da língua e organizadas na materialidade textual. Nessa mesma perspectiva, a textualidade corresponde ao resultado da interação entre o funcionamento de mecanismos gramaticais e de contextos enunciativos. Os gêneros, por sua vez, são formas de ação, resultantes da configuração de atividades construídas socialmente, nas quais os falantes se engajam como membros de uma dada cultura (MARTIN, 1997). O gênero pode ser considerado como o caminho percorrido por um usuário da língua para se atingir objetivos específicos (EGGINS, 2004). As funções desempenhadas pelos relatórios de estágio, na formação inicial dos professores, ilustram esse caráter instrumental do gênero. Ainda conforme a autora, “os gêneros são sobre as expectativas, não sobre a determinação. O gênero é aberto, flexível e sensível às necessidades dos usuários”. Sendo os gêneros diferentes formas de usar a língua, encontramos 84 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados usuários que “fazem diferentes escolhas léxico-gramaticais de acordo com os diferentes propósitos que querem alcançar” (EGGINS, 2004, p. 84; tradução nossa). Os relatórios de estágio são ainda tomados como gêneros catalisadores, pois têm uma função significativa na formação inicial de professores8. Nessa perspectiva, utilizando-nos das palavras de Assis (2006, p. 14), podemos afirmar que a produtividade da atividade de reescrita mediada pelo trabalho com relatórios escritos, parece estreitamente vinculada “aos procedimentos de correção utilizados pelo professor, o que significa ver a correção de texto como estratégia metodológica de destaque para o processo de ensino e de aprendizagem da escrita acadêmica”. Para fins de análise dos dados, produzimos as seguintes categorizações para descrever as atividades linguísticas resultantes das intervenções realizadas pelo formador na primeira versão dos relatórios aqui focalizados: (i) apagamento da informação apresentada; (ii) fuga da informação solicitada; (iii) expansão reflexiva da informação apresentada. Tais intervenções se configuram como uma estratégia mediadora para contribuir com adequação do texto escrito ao gênero relatório de estágio supervisionado. O apagamento da informação apresentada corresponde à atividade em que, na segunda versão do texto, o aluno-mestre simplesmente omite a passagem textual da primeira versão, sobre a qual recaem solicitações de esclarecimento por parte do professor-orientador do estágio supervisionado. Tal tática se configura como a solução mais fácil encontrada pelo aluno-mestre para responder à indicação da reescrita textual. Na fuga da informação solicitada, o aluno-mestre parece não compreender o questionamento realizado na indicação de reescrita ou simplesmente ignora a orientação dada. Normalmente, o formador provoca o aluno-mestre para apresentar uma redação mais crítica ou reflexiva, não se restringindo a descrever ou narrar experiências vivenciadas nos estágios. Na segunda versão do relatório apresentado, ainda que o questionamento do formador seja retomado, o texto continua linguisticamente marcado pela narração e pela descrição. Ou seja, o aluno-mestre continua sem se posicionar criticamente sobre algo solicitado e a indicação de reescrita continua sem uma resposta esperada. A expansão reflexiva da informação apresentada corresponde ao resultado produtivo da indicação de reescrita. Normalmente, tal indicação demanda explicações adicionais sobre expressões utilizadas pelo aluno-mestre para rotular algum fato vivenciado durante o período estágio na escola de educação básica. O aluno-mestre reescreve o texto conforme solicitado nas indicações de reescrita, contribuindo para a formação do profissional crítico da própria prática profissional. Em outras palavras, a reflexão crítica sobre o conteúdo relatado se instaura explicitamente na própria materialidade linguística, configurando-se como resposta possível à intervenção do formador. Segundo Signorini (2006, p. 8), gêneros catalisadores são formas linguístico-discursivas que “favorecem o desencadeamento e a potencialização de ações e atitudes consideradas mais produtivas para o processo de formação, tanto do professor quanto de seus aprendizes”. 8 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 85 Universidade Federal da Grande Dourados Para corroborar a análise qualitativa dos dados, apresentamos adiante (Tabela 1) o número de ocorrências das intervenções para reescrita, realizadas nos dois semestres letivos consecutivos, focalizados neste artigo. Mesmo considerando a diferença no número de relatórios investigados por semestre letivo (onze relatórios no primeiro semestre e oito no segundo, totalizando trinta e oito textos analisados), a tabela indica redução do número das intervenções realizadas entre os dois semestres, permanecendo a reflexão crítica pela escrita como desafio para o aluno-mestre. Ao apresentarmos esse resultado não ignoramos alguns fatores que podem ter contribuído para o melhor aproveitamento da atividade de reescrita, como, por exemplo: (a) maior familiarização desenvolvida entre alunos-mestre e formador; e (b) conhecimento pelos alunos-mestre dos resultados produzidos na primeira fase da investigação realizada. No segundo semestre da pesquisa, uma aula da disciplina de estágio supervisionado obrigatório foi separada para socialização dos resultados produzidos, conforme mencionado na segunda seção deste artigo. Dado o exposto, têm-se indícios sobre a eficácia do processo de reescrita, como mostra a tabela a seguir: Tabela 1 - Quantiicação das Intervenções para Reescrita PERÍODO CATEGORIAS 1º semestre) 2º semestre Apagamento da Informação apresentada 12 03 Expansão reflexiva da Informação apresentada 37 27 Fuga da informação solicitada 08 00 Correções Linguísticas 55 25 REESCRITA COMO ATIVIDADE MEDIADORA DA FORMAÇÃO DO PROFESSOR Inicialmente, os alunos-mestre demonstram alguma resistência às orientações de reescrita dos relatórios, talvez, por não compreenderem o que lhes era proposto. Isso nos parece compreensível pela falta de familiaridade dos mesmos com a prática de reescrita. Conforme falas espontâneas de alguns alunos-mestre, mesmo ao final da Licenciatura em Letras, os acadêmicos escrevem muito pouco e, quando escrevem, dificilmente obtém alguma resposta apreciativa sobre a escrita apresentada. Infelizmente, a nota da atividade ainda se configura como única resposta para as poucas produções escritas solicitadas na licenciatura. Reproduzimos adiante alguns enunciados com intervenções mais gerais feitas pelo formador sobre as primeiras versões dos relatórios focalizados. A partir do Quadro 1, 86 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados comparamos dados gerados nas duas disciplinas de estágio supervisionado obrigatório. Assim como as demais passagens textuais, analisadas neste artigo, os textos reproduzidos são exemplares dos dados focalizados na investigação científica realizada. Quadro 1: Intervenções gerais 1ª FASE DA PESQUISA 2ª FASE DA PESQUISA 1. Não encontrei momentos significativos no Trazer a atividade de leitura do anexo para o relatório em que vocês discutissem ou ana- corpo do texto e analisar criticamente aqui. lisassem atividades, materiais didáticos ou aulas, focalizando conteúdos do ensino de língua portuguesa. Portanto, retomem as atividades didáticas, podem analisar inclusive as questões dos exercícios que aparecem no anexo, levando-os para o corpo do relatório. 2. TRAZER AS QUESTÕES PARA O CORPO DO SEU TEXTO ESTÁ MUITO DESCRITIVO. PRORELATÓRIO E ANALISÁ-LAS CUREM REFLETIR CRITICAMENTE SOBRE AS SITUAÇÕES VIVENCIADAS NO ESTÁGIO. 3. TRAZER A ATIVIDADE E ANALISAR AQUI. Apresentem exemplos de atividades produLEMBRE DO TEXTO SOBRE ENSINO DE GRAMÁ- zidas pelos alunos e analise-as aqui. TICA TRABALHADO NO LIVRO DO SEMINÁRIO E DOS PCN. 4. Vocês precisam apresentar alguma proposta ou exercício didático utilizado em sala de aula e analisar neste relatório! Quais são as contribuições do estágio para a formação de vocês como professores de língua materna? E quais as contribuições da produção deste relatório para a formação de vocês? SEJAM MAIS CRÍTICAS SOBRE AS AULAS DE VOCÊS. COMO AS AULAS PODERIAM SER MELHORADAS, VOCÊS FARIAM ALGO DIFERENTE HOJE? QUAIS AS EXPECTATIVAS PARA OS PRÓXIMOS ESTÁGIOS? No Quadro 1, são recorrentes intervenções demandando a necessidade de mais elaboração da escrita reflexiva. Tais intervenções se configuram como uma necessidade de adequação do texto ao gênero relatório de estágio. Nas duas disciplinas, o formador procura contribuir com a fixação das características do referido gênero. Apesar de os conteúdos das intervenções serem bastante parecidos nas duas fases da pesquisa, notamos uma significativa redução desses enunciados. Na segunda fase, o progresso observado na escrita dos relatórios se torna ainda mais evidente pela recorrência de enunciados em que o aluno-mestre é provocado a tematizar as expectativas para as atividades do estágio obrigatório a ser cursado no semestre letivo posterior. Tal provocação evidencia o esforço do formador em contribuir com o aprendizado do aluno-mestre, ainda que o relatório escrito responda às expectativas imediatas da disciplina. Entretanto, pode-se indagar, no exemplo acima, quando o formador solicita aos alunos-mestre mais criticidade, o que significaria ser crítico para estes sujeitos em for- Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 87 Universidade Federal da Grande Dourados mação inicial e em estágio de observação. Se considerarmos certos relatórios de alunos-mestre em períodos finais de estágio, a criticidade se manifesta, com mais incidência, na capacidade de apontar as fragilidades do trabalho docente no ensino básico. O que se almeja, porém, é que o aluno-mestre consiga, mais que identificar falhas, propor soluções, bem como identificar, na mesma medida se possível, os pontos louváveis no trabalho do professor do ensino básico, contribuindo, desse modo, para fortalecê-lo como profissional. Esse exercício compete ao formador fomentar a fim de que, nesse processo de fortalecimento do letramento do professor, este seja capaz também de exercitar a salutar crítica a seu próprio trabalho. Dando prosseguimento à análise dos dados, apresentamos alguns exemplos das intervenções para reescrita categorizadas nesta pesquisa. Neste artigo, deixamos de lado os casos de fuga da informação solicitada, pois não houve essa ocorrência na segunda fase da pesquisa. Nos exemplos reproduzidos, os destaques com sublinhados reproduzem a marcação textual realizada pelo formador, nos relatórios escritos. Os destaques para auxiliar a análise dos dados foram por nós realizados com itálico. Quadro 2: Apagamento de informação apresentada Exemplo Primeira Versão Sendo assim, o estágio constitui-se em importante instrumento de conhecimento e de inteExemplo 1 gração do aluno à realidade social, econômica e do trabalho em sua área profissional. Indicação de Reescrita Segunda Versão Seria bom discutir essas questões de forma situada no estágio que realizaram, não de forma genérica: teoria pela teoria. Sendo assim, o estágio constitui-se em importante instrumento de conhecimento e de integração do estágio à realidade social. A leitura do foi realiza- O que significa isso? da de maneira ampla. Exemplo 2 Primeiramente, fizemos uma leitura em voz alta, dando ênfase à historia... No primeiro momento fizemos uma leitura em voz alta, dando ênfase à historia... No Quadro 2, evidenciamos indícios de resistência dos alunos-mestre em relação à prática de reflexão pela escrita nos relatórios de estágio. No Exemplo 1, o formador parece provocar os alunos-mestre para evitar afirmações descontextualizadas da experiência vivenciada nos estágios obrigatórios. Tais afirmações limitam-se, normalmente, a ecoar discursos da literatura especializada sobre estágio supervisionado, a qual pouco tem contribuído para as especificidades das diferentes licenciaturas. No Exemplo 2, o formador provoca os alunos-mestre a esclarecer a forma adverbial de maneira ampla, a qual evidencia comprometimento dos produtores do texto com o conteúdo tematizado. 88 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados O fenômeno da expansão reflexiva da informação apresentada é exemplificado no Quadro 3, reproduzido adiante. Nos Exemplos 3 e 4, observamos que as próprias perguntas utilizadas pelo formador podem aguçar ainda mais a reflexão dos alunos-mestre sobre o relato apresentado, levando-os a se posicionarem mais criticamente diante dos fatos (Por que a reescrita não funcionou?; O que poderia ser feito?). Esse posicionamento se manifesta na versão reescrita do relatório, o que é perceptível, principalmente, pelas formas verbais (vimos; pudessem; Entendemos; deve; devem) e pelas formas adverbiais na função de modalizadores (talvez; provavelmente; bastante) destacadas em itálico. O uso de algumas formas verbais no pretérito imperfeito do subjuntivo, articuladas às formas em outros tempos e modo verbais, contribui para a construção de sequências textuais marcadamente argumentativas. Quadro 3: Expansão relexiva da Informação apresentada Exemplo Primeira Versão Indicação de Reescrita Nesse texto, apesar da Por que a reescrita aluna ter faltado no dia não funcionou? da pesquisa sobre o gênero musical preferido do aluno, achamos interessante a opinião dela em relação ao tema proposto. Contudo ela não soube conectar as ideias, Exemplo 3 mesmo utilizando-se de alguns conectores, até mesmo repetindo-os algumas vezes em um texto tão pequeno. Todavia podemos compreender o texto, embora apresente algumas lacunas. Segunda Versão Apesar de termos pedido aos alunos que reescrevessem os textos, não vimos mudança, talvez pelo fato dos alunos não estarem acostumados com esse tipo de trabalho. Por mais que nós os orientássemos e que a ideia deles em relação ao assunto fosse boa, eles não fizeram as mudanças necessárias para que os textos pudessem ter uma estrutura organizada do início ao fim. Talvez se esses alunos pudessem ter a oportunidade ou então pudessem trabalhar mais com produções textuais, provavelmente as produções deles melhorariam bastante. Depois de analisarmos O que poderia ser Quando analisamos nossa prinossa primeira aula com- feito? meira aula, compreendemos o preendemos o que podeque poderia ser feito para meria ser feito para melholhorar nas próximas aulas. EnExemplo 4 rar nas próximas aulas. tendemos que o texto deve ser bem explorado, e que perguntas relacionadas ao texto devem ser feitas depois da leitura. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 89 Universidade Federal da Grande Dourados Essa abordagem de reescrita, mesmo com algumas limitações, por conta dos naturais desencontros entre sentidos pretendidos e efetivados nas trocas enunciativas, mormente a distância como ocorre comumente na comunicação escrita, é uma forma eficaz de se contribuir para que o futuro professor se exercite em seu processo de escrita e aproprie-se de formas textual-discursivas prestigiadas na esfera em que atua. É também uma forma de vivenciar e de se apropriar de modos pedagógicos de agir, posteriormente efetivando-os, também, em sua atividade de sala de aula, como professor. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo, discutimos alguns pontos que se configuram como elementares para o fomento sustentável da pesquisa nas licenciaturas e na pós-graduação desenvolvida na Região Norte do Brasil, em consonância com o estatuto solidário dos princípios que norteiam as pesquisas em LA, bem como enfatizamos as reivindicações da perspectiva atual da LA quanto à conduta democrática e ética reclamada aos pesquisadores, ao lidarem com problemas situados de linguagem de modo a diminuir o peso da opressão vivida pelos mais desfavorecidos. Discutimos, outrossim, a relação do trabalho escolar e do trabalho acadêmico com a linguagem. Em outras palavras, analisamos o esforço de práticas pedagógicas que possibilitam ao aprendiz, seja o escolar, seja o acadêmico, apropriar-se de gêneros textuais que integram sua ação pela linguagem na vida social, visto que também a universidade espelha molduras da sociedade. Por fim, acreditamos que o caminho percorrido até aqui, iluminado pelas ressalvas de Derrida, transcritas na epígrafe deste artigo, possibilitou-nos marcar posição prático-discursiva em meio aos conflitos por que passa a universidade brasileira, hoje, quanto ao tripé que a sustenta: ensino, pesquisa e extensão, visto que a exigência por resultados de pesquisas e quantitativos excessivos de publicações em muito pouco tempo acaba relegando ao ensino status secundário, invertendo o peso e a ordem das colunas-base da instituição. Nas licenciaturas precisamos, sem dúvida, avançar nas pesquisas, mas sem desmerecer o impacto que carecemos de promover também no ensino para a formação robusta e sustentável do cidadão-profissional-crítico, apesar das maléficas imposições mercadológicas que a visão contemporânea vem fazendo sobre o trabalho intelectual. Na Região Norte, a sustentabilidade na promoção de pesquisas e no esforço de um trabalho relevante das licenciaturas, através dos estágios obrigatórios, pede não apenas o comprometimento dos profissionais com o desenvolvimento da região, mas a manutenção de políticas afirmativas que agreguem valor não apenas à pesquisa e à divulgação científica, como também e, com o mesmo impacto, ao ensino de qualidade, que se fortalece com a formação consistente de docentes para a atuação ainda na educação básica. 90 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados REFERÊNCIAS ARAÚJO, M. Z. F; SANTOS, J. S; DIFÁBIO, E. H. As distâncias entre as políticas linguísticas e práticas pedagógicas docentes: um olhar sob a ótica da sustentabilidade na educação. In: Anais do II CIDS Congresso Internacional de Dialetologia e Sociolinguística, Anais do II CIDS ( em itálico). tirar o itálico do restante. . UFPA, 2012. (prelo). ASSIS, J. A. Correção de textos, reescrita e formação de professores: diálogos do/no processo de ensino e de aprendizagem. Artigo apresentado no II Simpósio Internacional sobre práticas escritas na escola: letramento e representação. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006. Disponível em: <http://www.pucminas.br/seminarioprograd/documentos/prograd_seminario_documento_juliana.pdf>. Acesso em: 14 ago. 2012. BAKHTIN, M./VOLOCHÍNOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 9ª ed. São Paulo: Hucitec, [1929] 2002. BAUMGARTEN, M. Conhecimento, planificação e sustentabilidade. São Paulo em perspectiva. São Paulo: Fundação SEADE, 2002, v. 3, n.16, p. 31-41. BRAIT, B. Bakhtin e a natureza constitutiva dialógica da linguagem. In: Beth Brait (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas: UNICAMP, 1997, p. 91-104. CELANI, M. A. A. Questões de ética na pesquisa em linguística aplicada. Linguagem & ensino. Pelotas: UCPEL, v. 8, n. 1, p. 101-122, 2005. _____. Transdisciplinaridade na Linguística Aplicada no Brasil. In: Inês Signorini; Marilda C. Cavalcanti (Orgs.). Linguística Aplicada e transdisciplinaridade. Campinas: Mercado de Letras, 1998, p. 129-142. CHAUI, M. A universidade pública sob nova perspectiva. Revista brasileira de educação. Rio de Janeiro: ANPED, v. 24, p. 5-15, 2003. Disponível em: <http://www. scielo.br/pdf/rbedu/n24/ n24a02.pdf>. Acesso em: 25 nov. 2012. CONCEIÇÃO, R. I. S. Reescrita textual: um estudo das operações linguísticas em textos de professores em formação. Linguagem & Ensino: Pelotas, v.14, n.1, p. 115-143, 2011. DAMIANOVIC, M. CRISTINA. O linguista aplicado. Linguagem & ensino, Pelotas: UCPEL, v. 8, n. 2, p. 181-196,2005. DINIZ, A. L. S. Práticas de leitura propostas por professores na formação inicial em diferentes licenciaturas: investigando relatórios de estágio supervisionado. 2012. 183 f. Dissertação (Mestrado em Ensino de Língua e Literatura) – Universidade Federal do Tocantins, Araguaína, 2012. FIAD, R. S.; SILVA, L. L. M. da. Escrita na formação docente: relatos de estágio. Acta Scientiarum. Language and Culture. Maringá: EDUEM, v. 31, n. 2, p. 123-131, 2009. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 91 Universidade Federal da Grande Dourados GONÇALVES, A. V. Gêneros textuais e reescrita: uma proposta de intervenção para o ensino de língua materna. Linguagem em (Dis)curso. Palhoça (SC): UNISUL, v. 10, n. 1, p. 13-42, 2010. GUERRA, M. M. Percursos de professoras de línguas nos primeiros momentos do fazer no magistério – entre práticas de letramento, saberes e alguns entremeios. 2012. 160 f. Dissertação (Mestrado em Ensino de Língua e Literatura) – Universidade Federal do Tocantins, Araguaína, 2012. HADJI, Charles. Avaliação desmistificada. Porto Alegre: Artmed, 2001. KLEIMAN, A.; REICHMANN, C. L. …tive uma visão melhor da minha vida escolar: letramentos híbridos e o relato fotográfico no estágio supervisionado. Caderno de letras. Pelotas: UFEPel, p. 156-175, 2012. MARTIN, J. R. Analysing genre: functional parameters. In: Frances Christie; J. R. Martin. (Eds.). Genre and Institutions: Social Processes in the Workplace and School. London/Washignton: Cassel, p. 3-39,1997. MELO, L. C. de. Relatórios de estágio supervisionado em ensino de língua inglesa: práticas auto-reflexivas de escrita. 2011. 148 f. Dissertação (Mestrado em Ensino de Língua e Literatura) – Universidade Federal do Tocantins, Araguaína, 2011. PAIVA, V. L. M. de O. Reflexões sobre ética e pesquisa. Revista Brasileira de Linguística Aplicada. Belo Horizonte: 2005. v. 5, n. 1, p. 43-61. MOITA LOPES, L. P. Da aplicação de Linguística à Linguística Aplicada Indisciplinar. In: Regina C. Pereira; Pilar Roca. Linguística Aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2011, p.11-24. _____. Linguística aplicada e vida contemporânea: problematização dos construtos que têm orientado a pesquisa. In: Moita Lopes (Org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006, p. 85-107. SANTOS, J. S. Leitura numa perspectiva discursiva na formação docente: alguns questionamentos. Linguagem em (Dis)curso. Tubarão: UNISUL, v. 12, n. 1, p. 129153,2012. _____. Discurso sobre e de professores de língua materna no estado do Tocantins: modos de posicionamento do e em relação ao discurso oficial. 2010, 205 f. Tese. (Doutorado em Linguística Aplicada). Universidade de Campinas, 2010. SANTOS, J. S; PINTO, R. B. Formação docente inicial: problematizando referências sobre gramática e ensino. 2013. (no prelo). SIGNORINI, I. A questão da língua legítima na sociedade democrática: um desafio para a Linguística Aplicada contemporânea. In: Luiz P. Moita-Lopes (Org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006, p. 169-190. 92 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados _____. Do residual ao múltiplo e ao complexo: o objeto da pesquisa em Linguística Aplicada. In: Inês Signorini; Marilda C. Cavalcanti (Orgs.). Linguística Aplicada e transdisciplinaridade. Campinas: Mercado de Letras, 1998, p. 99-112. _____. Gêneros catalisadores: letramento e formação de professores. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. SILVA, W. R. Escrita do gênero relatório de estágio supervisionado na formação inicial do professor brasileiro. Revista Brasileira de Linguística Aplicada. Belo Horizonte: UFMG/ALAB, v. 13, n. 1, p. 171-195, 2013. _____. Letramento e fracasso escolar: o ensino da língua materna. Manaus: UEA Edições, 2012a. _____. Gêneros textuais em aulas de Língua Portuguesa no Ensino Médio brasileiro. Linguagem & ensino. Pelotas: UCPEL, v. 15, n. 2, p. 387-418, 2012b. _____. Letramento do professor em formação inicial: interdisciplinaridade no estágio supervisionado da licenciatura. Campinas: Pontes Editores, 2012c _____. Análise crítica de relatórios de estágio supervisionado: contribuições para a formação inicial do professor Documentação de Estudos em linguística teórica e aplicada – DELTA. São Paulo: PUC/SP, v. 28, n. 2, p. 281-305, 2012d. _____. Empoderamento de participantes de pesquisa em Linguística Aplicada. Raído. Dourados: UFGD/FACALE, v. 4, p. 119-139, 2010. _____. Construção e mistura de saberes em projetos de ensino produzidos por professores em formação inicial. In: Norma Lúcia da Silva. (Org.). Construindo saberes: o ensino por projetos nas licenciaturas - experiências docentes. Goiânia: Grafset - Gráfica e Editora Ltda., v. 1, p. 53-80, 2008. _____; MELO, L. C. de. Teoria acadêmica e prática docente. In: Wagner R. Silva; Lívia C. de Melo (Orgs.). Pesquisa & ensino de língua materna e literatura: diálogos entre formador e professor. Campinas: Mercado de Letras, 2009. p. 37-62. TAVARES, E. Práticas de escrita escolar propostas na formação inicial de professores de diferentes licenciaturas: investigando relatórios de estágio e diretrizes curriculares oficiais. 2011. 186 f. Dissertação (Mestrado em Ensino de Língua e Literatura) – Universidade Federal do Tocantins, Araguaína, 2011. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 93 PRÁTICA ESCOLAR DE LINGUAGEM Universidade Federal da Grande Dourados MOBILIZANDO OLHARES DE ESTAGIÁRIOS EM LETRAS SOBRE AS AULAS DE PORTUGUÊS E LITERATURA NA ESCOLA MOBILIZING THE VIEWS OF TRAINEES IN LANGUAGES ABOUT PORTUGUESE AND LITERATURE CLASSES AT SCHOOL Clara Dornelles* RESUMO: Este artigo traz resultados de uma discussão piloto, ainda em fase inicial de elaboração, organizada em torno da reflexão sobre as relações entre a abordagem etnográfica e o letramento profissional, e suas implicações para a formação de professores de língua portuguesa e de suas literaturas. Ao focalizar o texto de estagiários sobre a escola, buscamos produzir contextos para analisar um problema que nos tem preocupado há algum tempo no campo aplicado de estudos da linguagem: o da relação entre teoria e prática. Interessa-nos, pois, contribuir para a análise dos processos tensos e contraditórios imbricados nessa relação que consideramos ser chave na formação de professores. Os dados gerados provêm de artigo sobre a observação da prática docente, elaborado durante o componente de Estágio supervisionado I, no primeiro semestre de 2009, por duas estagiárias do curso de Letras de uma universidade pública no interior do Rio Grande do Sul. Palavras-chave: aulas de língua portuguesa e literatura; letramento profissional; perspectiva etnográfica. ABSTRACT: This paper brings results of a pilot discussion, still in early stages of drafting, organized around the reflection about the relations between the ethnographic approach and professional literacy, and its implications for the training of Portuguese teachers and its literatures. This article presents a pilot study, in its initial phase of elaboration, about the reflection on the relationship between the ethnographic approach and professional literacy, and its implications for the formation of Portuguese and literature teachers. When focusing on the text of the trainees about the school, we seek to produce contexts to analyze a problem that has been concerned for some time on the field of applied language studies: the relationship between theory and practice. It interests us, therefore, to contribute for the analysis of tense and contradictory processes imbricated on this relationship we believe to be the key in teacher training.As we focalize the text of trainee students about school, we try to produce contexts to analyze a problem that has worried us for some time in the field of applied linguistics: that of the relation between theory and practice. It is our inter* Docente da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). E-mail: [email protected] Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 97 Universidade Federal da Grande Dourados est to contribute for the analysis of contradictory and tense processes articulated in this relation that we consider central for teacher training. The generated data come from papers about the observation of teaching practice, drawn up during the Supervised traineeship I course component on the first semester of 2009, by two trainees from the Languages course of a public university in the countryside of Rio Grande do Sul. The data generated is from a paper written by two students trainee during a curricular component called Teacher Training I, in 2009. The paper focuses on teacher’s practice in school and the authors were students of the Letras course in a public university, in the interior of Rio Grande do Sul. Keywords: Portuguese and literature classes; professional literacy; ethnographic perspective. INTRODUÇÃO Na esteira das reformas curriculares, desde a década de 1970, o ensino de língua portuguesa tem sido alvo de críticas de estudiosos da linguagem, sob a alegação de que as práticas tradicionais dos professores de português não contribuem para a formação de sujeitos críticos e reflexivos (ANTUNES, 2003), ou para a promoção dos letramentos necessários para o exercício da cidadania (ROJO, 2009). Tratando o “ensino tradicional” como uma prática descontextualizada e ahistórica (ANGELO, 2005), os textos de referência sobre o ensino de língua portuguesa, e as próprias diretrizes oficiais, têm contribuído, nos cursos de Letras, para a produção de avaliações negativas e generalizantes a respeito do trabalho do professor. As práticas em que esses textos se inspiram são práticas abstratas, uma vez que a maioria de seus autores não apresenta dados empíricos para corroborar suas asserções. De caráter fortemente argumentativo, esses textos convencem o leitor pela ênfase que dão à necessidade de mudança de práticas “já ultrapassadas” (cf. PIETRI, 2003). Os estudantes de Letras e seus formadores são os leitores privilegiados dos textos de referência e das diretrizes oficiais e, não raro, aderem sem muitos questionamentos aos discursos que, de um lado, criticam práticas de ensino tradicionais e, de outro, propõem práticas inovadoras legitimadas pelos saberes da ciência (cf. DORNELLES, 2008). Entendemos que a adesão acrítica a esses discursos é prejudicial aos processos de letramento acadêmico e profissional do futuro professor, uma vez que promove a constituição de uma atitude prescritivista e cientificista a respeito do que se “deve” fazer na escola, obscurecendo a complexidade dos processos em andamento em situações específicas de uso da linguagem. Por assumirmos uma visão dialógica da linguagem (BAKHTIN, [1952-1953] 1992), discordamos de encaminhamentos metodológicos que subsidiam leituras que desconsideram os contextos em que as práticas pedagógicas se desenvolvem. Defendemos que a reflexão crítica no que tange ao ensino de língua portuguesa deve se dar 98 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados mediante análises de cunho aplicado que busquem apreender de maneira situada os processos e práticas constituintes da instituição escolar e, por conseguinte, da sala de aula. No texto que segue, argumentamos que a orientação etnográfica de pesquisa se apresenta como uma abordagem relevante para a formação de professores, pois mobiliza os olhares na esfera do cotidiano escolar e possibilita aos futuros professores desenvolver seu letramento profissional, isto é, as capacidades de participação em práticas e exigências específicas de letramento no local de trabalho (KLEIMAN, 2003; SILVA, 2012). Nossa análise focalizará os efeitos da orientação etnográfica na (re) textualização de observações e reflexões de estagiários em Letras acerca da prática docente em aulas de português e de literatura na educação básica. Este artigo traz resultados de uma discussão piloto, ainda em fase inicial de elaboração, organizada em torno da reflexão sobre as relações entre a abordagem etnográfica e o letramento profissional, e suas implicações para a formação de professores. Ao focalizar o texto de estagiários referindo-se à escola, buscamos produzir contextos para analisar um problema que nos tem preocupado há algum tempo no campo aplicado de estudos da linguagem: o da relação entre teoria e prática. Interessa-nos, pois, contribuir para a análise dos processos tensos e contraditórios imbricados nessa relação que consideramos ser chave no processo de formação de professores. Os dados gerados provêm de artigo elaborado a partir da observação da prática docente em uma escola pública, e foi produzido em conjunto, no primeiro semestre de 2009, por duas estagiárias do curso de Letras de uma universidade pública no interior do Rio Grande do Sul1. ABORDAGEM ETNOGRÁFICA E LETRAMENTO PROFISSIONAL A análise do processo de letramento profissional de professores requer a problematização do que se entende por discurso didático. O discurso didático envolve operações discursivas de reformulação (MATENCIO, 2001), categorização, especificação ou exemplificação e se distancia, em certa medida, das operações da conversa cotidiana (KLEIMAN, 2003). Seu principal objetivo seria o de “ajudar o aluno a construir conhecimento” (KLEIMAN, 2003, p. 52). Kleiman adverte que a ausência, na sala de aula, das operações características do discurso didático torna mais difícil para o aluno apropriar-se do conhecimento e generalizá-lo para outras situações. O artigo analisado faz parte das produções da primeira turma de estágio supervisionado em língua portuguesa e literatura na referida universidade e compõe o acervo em organização e análise pelo Grupo de Estudos Linguagem e Currículo (GELC/ CNPq), cujas pesquisas têm sido fomentadas com recursos da própria universidade e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS). Além de agradecer às instituições citadas pela concessão de bolsas a graduandos que participam do GELC, agradeço profundamente aos graduados do curso de Letras da Unipampa/Bagé, sobretudo às turmas formadas em 2012 e 2013, que não apenas foram provocadas pelas minhas relexões, mas me provocaram também com as suas. 1 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 99 Universidade Federal da Grande Dourados A assunção de uma concepção social da linguagem nos leva a compreender a aula como prática social coconstruída (JACOBY; OCHS, 1995) por professor e alunos e, como tal, como espaço que não se restringe à construção de conhecimentos em torno de um objeto de ensino, mas inclui a negociação de relações interpessoais, papéis e normas peculiares a esse contexto. As comunidades escolares estabelecem suas próprias rotinas didáticas e, embora a orientação principal se dê pelos professores, a ação dos alunos é constitutiva desse processo. Em conformidade com as políticas oficiais de ensino (BRASIL, 1998; 2006), as práticas didáticas incluem, idealmente, planejamentos que considerem os interesses do alunado, avaliações da aprendizagem que sejam processuais, além da condução dialógica das ações em sala de aula (cf. DORNELLES, 2012). Contudo, a análise das práticas em muitas escolas nos revela que o professor nem sempre planeja a aula, a avaliação se dá muitas vezes com foco no produto revelado em provas e, em muitos casos, a fala do professor se constrói como um discurso monológico que não se afeta por questionamentos ou dúvidas que os alunos possam expressar. Kleiman (2003) indica que muitos professores reproduzem em sala de aula estilos de comunicação cotidiana que poderiam impactar negativamente o discurso didático e que, justamente por isso, deveriam ser problematizados nos programas de formação de professores. Para a autora, a pedagogia culturalmente sensível (ERICKSON, 1987) aponta caminhos para explorar o letramento profissional de professores, porque torna possível compreender a sala de aula como espaço intercultural, em que se reconhecem as diferentes experiências de professores e alunos enquanto membros de uma sociedade letrada. Na visão de Kleiman (2007, p. 19), a orientação etnográfica possibilita a compreensão de que os alunos têm diferentes bagagens culturais, torna mais fácil para o professor permitir que os alunos ajam de forma diversificada e, assim, “criem táticas diferentes para lidar com suas limitações ou potencialidades”, “aportem compreensões diferentes”, devido às “suas aprendizagens extremamente variadas” e oriundas de espaços não necessariamente escolares. Como observa a autora: Fica mais difícil, para o professor que aprende e registra a cultura do outro, negar a existência de práticas culturais diferentes e rejeitá-las a priori, o que torna menos conlitiva a interação. Daí a pertinência da proposta de ensinar-se, no curso de formação inicial ou continuada, princípios e técnicas para fazer observações participantes e analisar as interações observadas, minimizando os iltros grafocêntricos que impomos nas nossas interpretações do mundo social (KLEIMAN, 2007, p. 19). A etnografia pode, assim, ser tomada como orientação aliada para o letramento profissional dos estudantes nos cursos de Letras. A inserção do graduando no mundo da escola envolve o reconhecimento das práticas sociais em que se articula o objeto de ensino das áreas específicas. Nossa trajetória de quinze anos com a formação inicial de professores2, bem como experiências recentes no Programa de Iniciação à Docência 2 Destes 15 anos, há 12 como orientadora de estágio supervisionado. 100 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados (PIBID) (cf. DORNELLES; IRALA 2013) nos permite afirmar que a tentativa de vivenciar as práticas sociais da comunidade escolar pode minimizar o distanciamento entre teoria e prática sobre/na sala de aula, já que, diferentemente das abordagens disciplinares prescritivistas focalizadas “no que deve ser ensinado”, visa à aproximação de perspectivas que “teorizam a prática” a partir do ponto de vista de quem a promove. Isso possibilita ao professor em formação desenvolver as capacidades de letramento relevantes para o exercício profissional, ou seja, para sua compreensão e participação das/nas ações levadas a cabo no cotidiano institucional da escola. Além de poder identificar o que é rotineiro nas práticas escolares, a orientação etnográfica permite apreender as ações “submersas”, isto é, aquelas que nem sempre são evidentes para os próprios atores que as desempenham, ou que não têm legitimidade para perderem a “invisibilidade” característica das ações marginais. Mas a orientação etnográfica não pode também ser tomada em uma acepção acrítica, que negligencia as hierarquias institucionais entre atores, práticas e conhecimentos e toma os achados etnográficos como “revelações”. É pressuposto básico da etnografia a necessidade de “triangular” fontes de dados e confrontar pontos de vista, o que faz do texto etnográfico uma construção discursiva e plurivocal. Como afirma Duranti (1997, p. 87): […] Escrever etnograia implica a compreensão de muitos pontos de vista, às vezes, contraditórios, às vezes complementares. Uma etnograia de sucesso, então, não é um método de escrita em que o observador assume uma perspectiva – seja ela “distante” ou “próxima” –, mas um estilo em que o pesquisador estabelece um diálogo entre diferentes pontos de vista e vozes, incluindo aquelas do grupo estudado, do etnógrafo e das suas preferências disciplinares e teóricas (nossa tradução)3. Ao trilhar o caminho entre as perspectivas identificadas nas escolas (ponto de vista “êmico”) e a sua própria, o estagiário mobiliza suas representações a respeito da prática pedagógica, trazendo à tona seus medos, anseios e experiências, que são verbalizados, muitas vezes, como “queixas” do distanciamento entre teoria e prática, ou entre o que se diz (na universidade) e o que se faz (na escola). Não raro, essas dicotomias direcionam o olhar do estagiário, que, muito em função da distância que reconhece entre as “inovações” universitárias e as “tradições” escolares, avalia negativamente a prática do professor. O rompimento dessas dicotomizações pode acontecer se as práticas de letramento do local de trabalho se tornarem objetos de discussão, o que, em nosso caso específico, remete à busca por novas textualizações acerca da “aula”, que permitam reconhecê-la, a partir de descrições calcadas no uso situado da linguagem, como gênero multimodal e prática inter/multi/cultural. Nossa análise focalizará os efeitos da orientação etnográfica na (re)textualização de observações e reflexões sobre a prática docente em aulas de português e de literatura na educação básica. Pautando-nos em Matencio (2003), compreendemos a textualiza[...] Writing ethnography implies the understanding of several, sometimes contradictory, sometimes complementary points of view. A successful ethnography, then, is not a method of writing in which the observer assumes one perspective – whether “distant” or “near” –, but a style in which the researcher establishes a dialogue between diferent viewpoints and voices, including those of the people studied, of the ethnographer, and of his disciplinary and theoretical preferences. 3 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 101 Universidade Federal da Grande Dourados ção como o agenciamento de recursos de uso da linguagem em operações linguísticas, textuais e discursivas e, a retextualização, a produção de um novo texto a partir de outro texto (ou textos) tomado como base. Nesse processo, “o sujeito trabalha sobre as estratégias linguísticas, textuais e discursivas identificadas no texto-base para, então, projetá-las tendo em vista uma nova situação de interação, portanto um novo enquadre e um novo quadro de referência” (MATENCIO, 2003, p. 4). CONTEXTO DE INVESTIGAÇÃO E DESENHO DA PESQUISA Nossos dados de pesquisa são oriundos de artigo produzido, em dupla, no ano de 2009, por duas estudantes de Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa e Respectivas Literaturas I da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), localizada no interior do RS. Segundo a ementa da disciplina, o Estágio I4 estava centrado em: “observação de aulas de português e/ou literatura em escolas de ensino fundamental e/ou médio. Reflexão sobre a prática pedagógica a partir da realidade local”. A disciplina voltava-se, especialmente, para a observação de aulas de português no ensino fundamental e de literatura no ensino médio, e os estagiários não realizavam nenhuma atividade didática em que se posicionassem como professores5. Orientamos a observação para os seguintes elementos: estrutura e funcionamento da escola; proposta pedagógica (concepções vigentes); contexto social em que está inserida a escola; história de formação da professora; papéis desempenhados, visões e ações de professoras e alunos. A observação deveria seguir o que chamamos de “trajetória etnográfica”, iniciando com o registro, em notas de campo e portfólio, gerados a partir de análise documental e entrevistas. As alunas também mantinham um diário de campo, que serviu de espaço para o diálogo com a orientadora de estágio e subsidiou a elaboração do produto final da disciplina, um artigo (o qual chamaremos de artigo final)6, em que os estagiários deveriam apresentar análise das ações observadas, e deveria organizar-se segundo a estrutura composicional a seguir: 1. Introdução 2. Referencial Teórico 3. Metodologia - 3.1 A escola e os participantes] Essa fora a primeira turma de estágio na área de Letras na universidade em questão. Nessa época, a disciplina introdutória de estágio fazia parte do 6º semestre. Com a reforma curricular, dois anos depois, o Estágio I foi antecipado para o 5º semestre. 5 Em função de nossa experiência com o estágio de observação, e, juntamente a outros docentes de estágio, ajustamos o currículo da graduação para que o estágio inicial em língua portuguesa e literatura incluísse o planejamento e desenvolvimento de uma atividade didática, com o intuito de tornar possível que os estagiários não apenas observassem os professores na escola, mas também se colocassem em seu lugar. Experiências posteriores nos mostraram o quanto esta vivência é relevante para o amadurecimento da identidade, autonomia e autocrítica docente dos professores em formação inicial (cf. DORNELLES, 2012). 6 Para a maioria dos alunos, este foi o primeiro artigo acadêmico produzido, o que talvez explique a diiculdade em expressar o relato das aulas observadas de uma forma mais analítica. A análise de fato acabou sendo incluída na parte chamada “Discussão”. 4 102 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados 4. As aulas observadas - 4.1 Planejamento didático; 4.2 Ação pedagógica (texto do diário7); 4.3 Discussão 5. Considerações Finais 6. Referências 7. Anexos Após os primeiros relatos sobre a prática (em exposição oral e debate sobre o relatório parcial8), observamos que os esforços para que as alunas olhassem ao mesmo tempo crítica e sensivelmente para as aulas parecia não ter muito efeito. Em função disso, pedimos que iniciassem a produção do artigo final enquanto a disciplina ainda estava em andamento e desenvolvemos um processo de mediação das reflexões, por meio da solicitação de explicitação de evidências para suas asserções (o que elas nem sempre conseguiam fazer). A partir desta orientação, os anexos, por exemplo, se tornaram uma parte importante do artigo, pois os alunos passaram a inserir nele imagens que justificavam muitas das asserções feitas no corpo principal do texto. Além disso, notamos que os estagiários tornaram-se mais detalhistas e seletivos nas escolhas das imagens para compor os anexos, que não eram elaborados de forma aleatória ou sem relação com o texto antecedente. Os excertos apresentados a seguir, na análise, constituem-se como sequências narrativo-argumentativas, como explicaremos adiante, e ilustram os recursos utilizados pelas estagiárias para construírem e justificarem, no artigo final, seu ponto de vista a respeito das aulas observadas. Foram selecionados e organizados nas seguintes categorias (elaboradas por nós): (i) explicitação de ponto de vista (excertos da introdução e das considerações finais) ; (ii) relato das aulas observadas (excertos do item “Ação pedagógica”); (iii) discussão tematizando a observação ou evidências para as asserções feitas (excertos dos itens “Discussão” e “Anexos”). Na seleção dos segmentos de explicitação de pontos de vista, focalizamos excertos em que as estagiárias (des)acomodam as contradições problematizadas no artigo final; em relato das aulas, focalizamos fragmentos em que eram reportadas ações das professoras e dos alunos, no intuito de identificar características do discurso didático; na discussão tematizando a observação e evidências, optamos pela seleção de fragmentos em que eram explicitados os pontos de vista dos participantes sobre o “outro” (da professora sobre os alunos, dos alunos sobre as estagiárias, das estagiárias sobre a ação pedagógica) ou dados para subsidiar o relato. Procuramos registrar o relato das ações dos participantes (excertos da “Ação pedagógica”) em uma estrutura que tornasse mais visível o caráter coconstruído e o contexto social dessas ações, por isso a sua apresentação em tabelas que as apresentam As alunas incluíram nesta parte o mesmo texto elaborado no diário de campo e que focalizava, essencialmente, o que acontecia na sala de aula, explicitando contexto institucional (por exemplo, mudança de horário da aula) e ações dos participantes. 8 Parece-nos que a intervenção da orientadora e discussão com o grupo de alunos sobre o andamento dos trabalhos foi bastante relevante para que se tivesse como resultado um processo de letramento proissional crítico, como aconteceu com as autoras do artigo analisado. Cabe mencionar que, em nota de rodapé no artigo inal, as alunas contextualizaram sua produção da seguinte forma: “Artigo produzido a partir de debates realizados em aula e da análise das observações realizadas em uma escola pública da rede estadual [...]”. 7 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 103 Universidade Federal da Grande Dourados ao mesmo tempo sequencial e paralelamente (cf. excertos 03 e 08). As ações são numeradas em ordem sequencial, e aquelas em relação direta de continuidade, isto é, que ocorreram como respostas a ações anteriores, são apontadas pelo uso do sinal de “subscrito”. Cabe observar que, embora para nossa análise tenhamos reorganizado a formatação de algumas partes do artigo final, não houve alteração no conteúdo, nem na escrita em nenhum dos excertos, permanecendo, em todos, sua forma original9. MOBILIZANDO OLHARES EM BUSCA DE OUTRAS VOZES NA FORMAÇÃO INICIAL Apresento abaixo um excerto da introdução do artigo final, em que as alunas explicitam o objetivo da observação realizada na escola. O fragmento em sublinhado reproduz parte da ementa da disciplina, exceto pelo fato de as alunas terem modificado o substantivo que iniciava o sintagma (“reflexão”) por um verbo (“pensar”): Excerto 1 – Objetivos do artigo final [Introdução] Nossa intenção foi observar o dia a dia do ambiente escolar, buscando identificar possíveis falhas, pensando sobre nossa prática futura e refletindo quanto as nossas possíveis colaborações para melhoria desta realidade. Dessa forma, nosso objetivo é pensar sobre a prática pedagógica a partir da realidade local, refletindo [sobre] as contradições presentes no conhecimento científico adquirido nas academias e as práticas pedagógicas desenvolvidas nas escolas locais. A modificação do item lexical “reflexão” para “pensar” permite retextualizar um dos itens no ementário da disciplina como um objetivo e estabelece uma relação coesiva com o verbo no gerúndio que inicia a oração subsequente (“refletindo”). A coesão indica uma associação entre as duas ações, mas situa o verbo “refletir” de forma encaixada nessa relação, indicando que a segunda oração torna mais específico o objetivo expresso na primeira: a prática pedagógica será objeto de reflexão, focalizando-se as “contradições” entre o conhecimento produzido na universidade e “as práticas pedagógicas desenvolvidas nas escolas locais”. Nesse mesmo movimento de especificação, a “realidade local” é retextualizada como “escolas locais”. Contudo, antes de apresentarem e retextualizarem os objetivos oficiais da disciplina, as alunas indicam qual foi sua “intenção” com a observação nas escolas. Os objetivos que aparecem nessa primeira textualização apontam para a busca por “identificar possíveis falhas” sobre as quais se pensará na relação com sua “prática futura” e se refletirá quanto a “possíveis colaborações para melhoria” da realidade vivenciada no ambiente escolar. Os termos sublinhados funcionam como recursos Alguns excertos apresentam problemas de ortograia, pontuação ou correção gramatical, porém optamos por manter a forma original. 9 104 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados modalizadores, no primeiro caso, minimizando a carga semântica negativa associada à prática docente realizada na escola (“possíveis falhas”) e, no segundo, assumindo que as “colaborações” das enunciadoras não foram ainda levadas a cabo (são “possíveis colaborações”) e que, portanto, não saíram da esfera de uma projeção que poderá se tornar realidade quando elas realizarem sua própria prática (“prática futura”). Comparando a natureza dos três sintagmas nominais que acabamos de focalizar entre parênteses, aquele que, apesar das estratégias de modalização, aparece como mais concreto é “possíveis falhas”, pois essas falhas puderam ser “identificadas”, enquanto as “possíveis colaborações” e a “prática futura” somente puderam ser tomadas, no discurso das alunas, como objetos de reflexão. Cabe ressaltar que o artigo das alunas se estrutura em associação a tensões já anunciadas em seu título: “Contradições entre conhecimento científico e prática pedagógica” e na textualização dos seus objetivos, conforme o excerto apresentado anteriormente. Ao falarem dos participantes na metodologia, a oposição reemerge no contraste que fazem entre as professoras de língua portuguesa e de literatura, que, segundo as estagiárias e seus relatos, planejam e conduzem a aula de maneira diferente e têm preocupações diferentes com a formação do aluno. A mesma oposição é feita pelas estagiárias a respeito de suas próprias experiências em sala de aula: a primeira é apresentada como “formada no curso Normal e por isso tem experiência pedagógica, fornecida principalmente pelo estágio de 4 meses realizados em uma escola pública da rede municipal de [...]” e, a segunda, “teve sua primeira experiência em sala de aula durante a observação exigida pela disciplina em Estágio em Língua Portuguesa I, do curso de Letras da [...]”. Essa estratégia de “oposição é estruturante do artigo, perpassando tanto o relato das aulas observadas (diferentes ações das duas professoras), quanto as discussões (diferentes implicações das ações de professores e alunos) e as considerações finais (contradições entre o que se diz e o que se faz). Importante mencionar que o relato das aulas observadas é feito, quase em sua totalidade, na primeira pessoa do singular, enquanto as demais partes do artigo foram textualizadas na primeira pessoa do plural. As alunas haviam realizado a observação conjuntamente e, embora cada uma tenha produzido seu próprio diário de campo, aparentemente, privilegiaram os olhares de uma delas, trazendo o seu relato para o corpo do artigo final. Na escuta da exposição oral e leitura do relatório parcial dessas alunas sobre as observações, portanto antes de produzirem o excerto 01, que faz parte do artigo final, notamos que suas análises enfatizavam a enumeração das “falhas” da ação pedagógica, apresentando uma leitura monológica da prática das professoras, não condizente com a abordagem etnográfica. Em função disso, orientamos as alunas para que justificassem sempre as suas asserções, através de descrições das ações de professora e alunos evidenciadas no detalhamento da observação. Na versão final do relato das aulas, chama nossa atenção a macroestrutura textual construída, predominantemente, pelo que denominamos de sequências narrativo-argumentativas, isto é, sequências narrativas que funcionam como argumentos para justificar as conclusões das estagiárias sobre o Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 105 Universidade Federal da Grande Dourados que aconteceu nas aulas observadas. O caráter argumentativo das sequências é marcado pelo uso de operadores argumentativos, conforme terminologia adotada por Koch (2004), a partir de Ducrot. As estagiárias argumentam que as aulas das duas professoras observadas são diferentes, o que se evidencia pela identificação das operações discursivas das quais as docentes lançam mão em situação pedagógica. A professora de língua portuguesa costuma pedir para uma aluna (sempre a mesma) passar atividades do livro no quadro para os demais alunos copiarem, assim, a maioria dos alunos participa copiando. Para evidenciar essas ações, as estagiárias apresentam, no artigo final, imagens do livro e do caderno de um aluno: Excerto 2: Livro didático e caderno de aluno [Anexos] 1) Leia estas palavras em voz alta e[responda] ao que se pede no caderno. casinha caseiro casebre casa O trabalho didático, neste caso, privilegia a cópia e o controle da participação dos alunos, embora eles façam tentativas de ampliar seus modos de ação. Para construir e evidenciar essa argumentação, as estagiárias utilizam operadores argumentativos que explicam ou justificam suas asserções (por isso, uma vez que), marcadores temporais que evidenciam a recorrência dos fatos (mais uma vez), termos modalizadores que demonstram a forma como o enunciador interpreta o que observa (simplesmente): 106 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Figura 1: Ações dos participantes na aula de português no ensino fundamental10 Data Ações da professora de português Ações dos alunos de 5ª série Contexto Institucional 1 Enquanto uma aluna passa a atividade no quadro, 2 outros se direcionam até ele para responderem._ 14/05 (Excerto 3) 3 _E quando não sabem a resposta, perguntam a pro- Os alunos encontravam-se na fessora_ semana de recuperações, por isso 4 _que (mais uma vez) sem estavam bastante exigir uma reflexão dos alualvoroçados, uma nos, dá a resposta espontavez que sairiam neamente mais cedo. [...] 5 um aluno querendo interagir com a titular, pergunta qual é o antônimo do antônimo_ 6 _e esta simplesmente o ignora. 21/05 (Excerto 4) [...] 7 Mais uma vez, os alunos praticamente imploram para participar da aula, _ 8_porém a professora avisa que “só é para opinar, quem ela designar” Em poucos momentos a professora dá aos alunos informações complementares, [...] DISCUSSÃO No período em que estive observando a aula o objetivo da professora foi (Excerto 5) apenas retomar os conteúdos já vistos, sendo que em mais de uma vez ela frisou que todos já sabiam bem tudo aquilo e que por isso deviam fazer os exercícios sem questionar. Ao chamarem a professora de “titular”, as alunas parecem se orientar para a sua própria identidade proissional, pois apontam para uma relação hierárquica entre a professora regente e as professoras em formação (elas próprias). Contudo, faltam-nos elementos para aprofundar a análise desta questão. 10 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 107 Universidade Federal da Grande Dourados É interessante também pensarmos a respeito das escolhas lexicais, pois há um leque de opções paradigmáticas, por exemplo, para referir-se à “titular” (por que não professora?)11 ou à ação da professora ao ser questionada sobre o “antônimo do antônimo” (ao invés de dizerem que a professora ignora o aluno, poderiam ter dito que ela não o responde ou desconsidera). Em relação ao discurso didático, o que se observa é que, quando os alunos perguntam, as ações da professora se estruturam como uma resposta sem desafios (ação 4), como desconsideração da pergunta feita (ação 6) ou explicitação das hierarquias de sala de aula (ação 8). Na ação 7, o índice de recorrência (mais uma vez) aparece associado a escolhas lexicais que elevam ao máximo o esforço dos alunos para participação (“os alunos praticamente imploram para participar”). A ação seguinte (ação 8) é introduzida por um operador que sinaliza uma ação contrária à esperada, que é justificada com o uso de discurso citado (embora esteja em terceira pessoa, há o uso das aspas), o que lhe confere mais poder de verossimilhança. A forma como o relato da aula se constrói nos apresenta um contexto em que a relação hierárquica entre participantes da sala de aula é fortemente marcada. Na discussão, as estagiárias apresentam informações relevantes no que se refere ao discurso didático: a professora não costuma apresentar “informações complementares” e deduz-se que, uma vez dado o conteúdo, ela o considera cumprido (e aprendido) e, portanto, sem necessidade de ser explicado ou exemplificado novamente. Isso pode justificar as ações da professora nas duas aulas relatadas (em que ocorreu muita cópia e pouca reflexão em torno do objeto de ensino), uma vez que, como apontam as estagiárias, era semana de recuperações e os alunos estavam “alvoroçados” por isso. Contudo, as estagiárias apresentam, no anexo do artigo final, cópia de duas provas: uma de uma aluno que tirou 8,0, e outra de um aluno que tirou 4,0, o que de certo modo evidencia que nem todos os alunos haviam compreendido bem a matéria. Abaixo, um fragmento contrastante nas duas provas, conforme recorte feito pelas estagiárias: Excerto 6: Caderno de aluno [Anexos] Ao chamarem a professora de “titular”, as alunas parecem se orientar para a sua própria identidade proissional, pois apontam para uma relação hierárquica entre a professora regente e as professoras em formação (elas próprias). Contudo, faltam-nos elementos para aprofundar a análise desta questão. 11 108 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Ao tratarem explicitamente dos pontos de vista dos alunos, ainda na discussão, as estagiárias contam que alguns deles são resistentes às proposições de cópia feitas pela professora, que para eles “a aula de português é um verdadeiro tormento, eles mesmos dizem que detestam português”. E para evidenciar o que dizem, as alunas recorrem ao discurso citado: “me perguntaram inclusive “porque eu resolvi estudar uma coisa tão chata””. No excerto abaixo, as estagiárias revelam o ponto de vista da professora sobre os alunos e a aula, além do seu próprio ponto de vista sobre as ações da professora: Excerto 7: Discussão [Subitem de “As aulas observadas”] A professora reconhece a capacidade dos alunos, elogia-os seguidamente, porém não aproveita essa sede de conhecimento que os discentes possuem. Acredita que sua maneia de dar aula está sendo realmente útil para os alunos e que o livro didático é fundamental para o desenvolvimento de suas aulas. É observado, também, que ela assume a visão de que o conteúdo da disciplina, pode ser visto como uma forma de punição para os alunos. O que mais chama a atenção é a premiação com pontos por atividades que não estão relacionadas à disciplina (como por exemplo levar materiais de limpeza, participação em eventos da escola) e aquisição de conhecimento. Quando falam da professora de literatura, as estagiárias produzem uma imagem antagônica à da professora de português, embora relembrem constantemente que as duas fazem uso do livro didático. Contudo, esse compartilhamento é parcial, porque o livro didático de literatura é tomado pelas estagiárias como muito bom (tipo de observação que não consta acerca do livro de português) e a professora de literatura o utiliza de forma “contextualizada”, promovendo um ensino “reflexivo”: Excerto 8: Discussão [Subitem de “As aulas observadas”] No que se refere a observação no ensino médio, pode-se dizer que embora siga o livro didático, a titular faz sempre uma contextualização do assunto que será abordado, ou seja, ela traz os conteúdos para o dia a dia dos alunos, é preciso ressaltar que este livro didático é realmente muito bom e atual (fotos em anexo). Ao trazer os conteúdos para o cotidiano dos alunos, a professora os incita a compreender as “entrelinhas” presentes nas escolas literárias, contribuindo assim para a formação crítica e reflexiva dos alunos, atendendo inclusive, as concepções de ensino apregoadas pelo P.P.P da escola. É notável o entusiasmo da professora ao ensinar, mais de uma vez ela expressa sua paixão pela profissão [...] E ao apresentarem o ponto de vista dos alunos que não gostam de literatura, as estagiárias o fazem pela da voz da professora. É ela quem lhes indica o perfil socioeconômico e a relação desses estudantes com a literatura: Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 109 Universidade Federal da Grande Dourados Excerto 9: Discussão [Subitem de “As aulas observadas”] É notável o entusiasmo da professora ao ensinar, mais de uma vez ela expressa sua paixão pela profissão e a satisfação que sente “ao fazer” com que alunos que não gostam de literatura, mudem de ideia, e ao mesmo tempo expressa aprofunda tristeza que sente ao vivenciar a dificuldade de mobilizar os alunos, que em sua maioria são adolescentes e estão na escola porque seus pais ou responsáveis os obrigam e veem literatura como uma disciplina chata, cansativa e que não terá utilidade futura. Por meio do quadro de excertos a seguir, podemos observar cenas das ações da professora de literatura e de seus alunos. Essas cenas se constituem como sequências narrativo-argumentativas, pois funcionam, no artigo final, como evidências para as asserções realizadas sobre a aula dessa disciplina na escola. Figura 2: Ações dos participantes na aula de literatura no ensino médio Data Ações da professora \ de literatura Ações dos alunos de 3º ano Contexto Institucional 1 […] ela começa falando sobre o que e como estudar literatura, contextualizando os períodos literários, isto é, ela traz para o cotidiano as características deles: romantismo, coisas que nos dão prazer, o que eu gosto de fazer; realismo, coisas que eu tenho que fazer mesmo sem gostar e modernismo características da atualidade, do agora. Para isso recorre a ações cotidianas: filmes, festas, novelas, músicas..._ 2 _Apesar da empolgação da professora os alunos estão desmotivados, realizando outras atividades_ 17/04 Excerto 10 3 _percebendo a situação, ela então resolve trabalhar com o livro didático 4 (...) é apresentada (no livro didático, p.443) uma tela ( “A jangada da Medusa” – 1819, de Théodore Gericault). Esta imagem foi muito bem explorada pela professora_ 5 _auxiliada pelos alunos, que a partir de então, todos passam a participar._ 110 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados 6 _A regente proporciona uma transposição dos alunos para a jangada e aí sim, a aula fica muito produtiva, porém_ 7 _enquanto ela faz indagações sobre a pirâmide da esperança, alguns alunos interpretam a música “I Will Survive”. 8 A professora fez esclarecimentos a respeito das provas de recuperação e_ 9 _logo após do inicio da aula com a participação de um aluno começam as discussões sobre o dadaísmo, todos opinam com bastante relevância, sendo que ele comenta “não sou ninguém, mas acho que foi um movimento idiota” e trabalham com o livro didático paginas 447, 448 e 449. 08/05 Excerto 11 10 [...] Durante a explicação sobre o Surrealismo (p.450),_ Os horários foram trocados, as aulas pas11 _alunos retraem-se em saram para as 08h40min. participar._ 12 _Para incentivar a participação, a regente aproxima a relação sentimental da arte, com as letras de músicas tradicionalistas._ 13 _Neste momento, um aluno sugere que tenham, um dia, aula na praça (que fica ao lado da escola), na qual um colega levaria o violão, outro o chimarrão e um terceiro cantaria._ 14 _A regente conversa com os alunos sobre a ideia sugerida e todos concordam. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 111 Universidade Federal da Grande Dourados ANEXOS Cópia escaneada das páginas do livro didático utilizadas nas aulas observadas, fotos da professora escrevendo no quadro. Os segmentos apresentados no quadro anterior demonstram que as estagiárias conseguiram mobilizar o olhar para articular as ações da professora com a dos alunos, e conseguiram identificar efeitos da coconstrução da interação em sala de aula. O relato da aula de literatura apresenta mais elementos para mostrar a relevância do discurso didático, que pode calar (como ocorre na aula de português relatada) ou provocar exacerbação de pontos de vista bastante particulares (tal como acontece na aula de literatura). Nesse caso, há descrição de ações verbais e não verbais da professora, por meio de verbos que expressam sua percepção (“percebe”) ou atitude (“recorre”; “incentiva”; “conversa”). Com a descrição das aulas de literatura como aulas produtivas e motivadoras, as estagiárias equilibram sua crítica à sala de aula, pois encontram evidências de que há professores que dão aulas “produtivas” e que “exploram bem” os conteúdos na escola. E, apesar de terem criatividade, esses professores muitas vezes recorrem ao livro didático por causa dos alunos e, ao contrário do que parecia ser a expectativa das estagiárias, dão aulas que promovem a participação efetiva dos alunos. As contradições se acomodam, assim, pela compreensão de que a sala de aula é um espaço complexo (SILVA, 2011), estruturado pelas ações de diferentes agentes, e que a teoria é apoio importante para a prática. No parágrafo final do artigo (excerto 12), as alunas ecoam a epígrafe escolhida, de Paulo Freire: “É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática”. Embora talvez expressem expectativa um pouco ingênua de que o saber teórico dê conta de tornar a prática “relevante e a aprendizagem dos alunos permanente”, elas se posicionam como corresponsáveis pela “melhoria do sistema educacional” e demonstram sensibilidade para o diálogo com o outro, o que é essencial na perspectiva etnográfica. Dessa forma, dão pistas de terem iniciado a constituição de suas próprias identidades profissionais docentes por meio da reflexão provocada pelos tensionamentos entre o que se diz em documentos, o que se faz nas escolas, o que se queremos enquanto professores, e não mais, apenas, a partir do que “o professor (um outro tão distante) deve fazer”: Excerto 12: Considerações Finais [...] Deste modo, indiscutivelmente para que os objetivos pré-definidos pelos PCN’s e presentes nos P.P.P’s das escolas, é preciso que todos nós alunos de graduação, professores, diretores, gestores e etc. paremos para refletir que tipos de profissionais queremos ser, que tipo de alunos queremos formar e como podemos contribuir significativa e relevantemente para melhoria do sistema educacional, uma vez que para mudar o mundo é necessário mudar as maneiras de fazer o mundo, a maneira como olhamos o mundo que não se restringe a nós mesmos. Definitivamente, não basta ser “inovador” se o professor não tiver um bom embasamento teórico como apoio para que a prática seja relevante e a aprendizagem dos alunos permanente. 112 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados CONSIDERAÇÕES FINAIS No presente trabalho, buscamos mostrar, a partir de dados gerados por meio de perspectiva etnográfica em contexto de estágio supervisionado, a relevância de fazer da prática de estágio um espaço de reflexão crítica e argumentativa. Ao buscarem evidências para suas asserções a respeito do ensino observado na escola, duas estagiárias em Letras mobilizaram seus olhares para as ações dos diferentes atores sociais e também para os diferentes artefatos socioculturais e práticas relevantes no contexto de seu mundo de trabalho, neste caso, a escola. Além disso, cruzaram sua experiência de observação com sua vivência na academia e conseguiram compreender a complexidade da sala de aula e o papel fundamental da teoria na visibilização e compreensão do discurso didático e das práticas de ensino. Nesse sentido, a perspectiva etnográfica não dialogou apenas com as práticas de ensino e pesquisa da professora orientadora, mas também foi importante para promover novas percepções das professoras em formação acerca da “aula”, um espaço tão conhecido, mas que era preciso estranhar para que o ponto de vista de alunas se articulasse ao de professoras. Notamos, ainda, o quanto foi importante a intervenção da orientadora no desafio a visões estereotipadas expressas nos primeiros relatos de observação de aulas na escola, e a relevância de aliar reflexão à argumentação, no que chamamos de sequências narrativo-argumentativas, durante o processo de (re)textualização das observações realizadas. Do mesmo modo, percebemos ser relevante orientar para a produção de instrumentos de geração de dados multimodais (anotações, fotografias, entrevistas) que não focalizem estritamente a construção do objeto de ensino disciplinar, mas a compreensão “do que acontece no aqui e agora” da sala de aula. Pesquisas futuras que visem articular letramento profissional docente e etnografia poderiam ampliar os instrumentos de geração de dados (incluindo, por exemplo, filmagens), bem como mobilizar olhares para outros aspectos culturais da sala de aula (questões de gênero, etnia, formação escolar, entre outras)12. Enquanto docente pesquisadora/orientadora, nosso intuito principal durante o período de supervisão de estágio foi contribuir para que as estagiárias lessem criticamente generalidades acadêmicas etnocêntricas sobre a escola e o professor. Ainda que nesse vai- e- vem entre diferentes perspectivas novas generalidades sejam construídas, acreditamos que estudos que visem mobilizar nossas crenças e confrontá-las com outras tragam uma modesta, porém relevante contribuição para a formação inicial e continuada de professores. Como docentes universitários, também precisamos (re) aprender constantemente o que é a escola, e os estudos acadêmicos ou produtos finais das disciplinas de estágio não podem ser nossa única fonte de conhecimento. Se assim for, contribuiremos para aumentar o abismo entre teoria e prática, entre universidade e escola, e para fazer do estágio supervisionado um lugar apenas para o cumprimento de uma exigência burocrática. Espero que este Estes não são temas novos e foram já discutidos em etnograias escolares publicadas no Brasil, porém não temos conhecimento de estudos em que a perspectiva etnográica tenha sido tomada como metodologia no desenvolvimento dos estágios supervisionados da forma como propomos no presente artigo. 12 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 113 Universidade Federal da Grande Dourados artigo possa dar pistas do que aprendem os docentes universitários com seus alunos estagiários, quando o estágio se materializa como espaço de construção colaborativa de conhecimento. E que essas pistas possam de algum modo incentivar a reflexão crítica sobre os modos de fazer diálogo (com a escola) na universidade. REFERÊNCIAS ANGELO, G. L. de. Revisitando o ensino tradicional de língua portuguesa. 2005. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2005. ANTUNES, I. Aula de português: encontro e interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, [1952-1953] 1992. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais – Língua Portuguesa – 5ª a 8ª série do ensino fundamental. Brasília: MEC/SEC, 1998. DORNELLES, C.; IRALA, V. B. O diário de formação em um programa de iniciação à docência: imaginário e dilemas dos escreventes. In: REICHMANN, C. L. (Org.). Diários reflexivos de professores de línguas: ensinar, escrever, refazer(-se). São Paulo: Pontes Editores Editores, 2013, p. 17-38. _____. Desafios da didatização da escrita e da gramática no estágio supervisionado em língua materna. In: SILVA, W. R. (Org.). Letramento do professor em formação inicial: interdisciplinaridade no estágio supervisionado da licenciatura. São Paulo: Pontes Editores Editores, 2012, p. 53-81. _____ . “A gente não quer ser tradicional, mas... Como é que faz, daí?” A inovação curricular e o debate popularizado sobre língua portuguesa e ensino. 2008. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008. DURANTI, A. Linguistic anthropology. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. ERICKSON, F. Transformation and school success: The politics and culture of educational achievement. Anthropology & Education Quarterly, 12, p. 335-356, 1987. JACOBY, S.; OCHS, E. Co-construction: an introduction. Research on Language and Social Interaction, 28(3), p. 171-183, 1995. KLEIMAN, A. B. Letramento e suas implicações para o ensino de língua materna. Signo. Santa Cruz do Sul, v. 32 n. 53, p. 1-25, dez, 2007. _____ . Letramento e formação do professor: quais as práticas e exigências no local de trabalho? In: KLEIMAN, A. (Org.). A formação do professor: perspectivas em linguística aplicada. Campinas: Mercado de Letras, 2001, p. 39-68. 114 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados KOCH, I. A inter-ação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 2004. MATENCIO, M. L. M. Estudo da língua falada e aula de língua materna: uma abordagem processual da interação professor/alunos. Campinas: Mercado de Letras, 2001. PIETRI, E. de. A constituição do discurso da mudança no ensino de língua materna no Brasil. 2003. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2003. ROJO, R. Letramentos múltiplos: escola e inclusão social. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. SILVA, W. R. (Org.). Letramento do professor em formação inicial: interdisciplinaridade no Estágio Supervisionado da Licenciatura. Campinas: Pontes Editores Editores, 2012. _____ . Construção da interdisciplinaridade no espaço complexo de ensino e pesquisa. Cadernos de Pesquisa (Fundação Carlos Chagas. Impresso), v. 41, p. 582-605, 2011. Recebido em 31/03/ 2014. Aprovado em 20/04/ 2014 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 115 Universidade Federal da Grande Dourados OLHARES SOBRE AS PRÁTICAS DE LINGUAGEM NA AULA DE LÍNGUA INGLESA EM CONTEXTO DE ESTÁGIO SUPERVISIONADO PERSPECTIVES ABOUT LANGUAGE PRACTICES IN THE ENGLISH CLASS IN THE CONTEXT OF SUPERVISED INTERNSHIP Cristiane Carvalho de Paula Brito* RESUMO: À luz do referencial teórico-metodológico da Análise do Discurso francesa em interface com os estudos da Linguística Aplicada, este artigo visa investigar representações de linguagem e de ensino-aprendizagem de língua inglesa, construídas por professores pré-serviço, em planos de aula, no contexto do estágio supervisionado. Ademais, propomo-nos a discutir o olhar desses professores acerca das atividades pedagógicas, com base nas percepções registradas em seus diários reflexivos. As análises empreendidas apontam a necessidade de se problematizarem, nos cursos de formação de professor, as concepções de (língua)gem, de ensino-aprendizagem e de sujeito, sob perspectivas que assumam sua dimensão social, ideológica, dialógica e política. Palavras-chave: representações discursivas; ensino-aprendizagem de língua inglesa; formação de professores; diários reflexivos. ABSTRACT: Guided by the theoretical and methodological framework of French Discourse Analysis interfacing with the study of Applied Linguistics, this paper aims to investigate language representations and English language teaching-learning as well, built by pre-service teachers, in class plans, in the context of supervised traineeship. Moreover, we propose to discuss the gaze of these teachers about the pedagogical activities, based on the perceptions recorded in their reflective diaries. Our analyzes suggest that langue (guage) is basically delineated sometimes as an abstract system of forms and vocabulary items, sometimes as a communication tool. The teaching-learning process is taken as controlled vocabulary and grammar exercises process or activities that open up more or less space for the construction / production of meanings. The undertaken analyzes indicate the need of problematizing, on teacher training courses, the conceptions of (langue)guage, teaching-learning and subject as well, beneath perspectives that assume their social, ideological, dialogical and political dimension. Keywords: discursive representations; English teaching and learning; teacher training; reflective diaries. * Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: [email protected] Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 117 Universidade Federal da Grande Dourados O discurso como que vive na fronteira do seu próprio contexto e daquele de outrem. (BAKHTIN, [1975] 2010, p. 92). INTRODUÇÃO Entendemos que investigar as práticas de linguagem propostas por professores em formação, em disciplinas de estágio supervisionado, pode permitir-nos repensá-las não apenas nesse contexto, mas também em outros ambientes de ensino-aprendizagem de línguas, uma vez que a formação abarca uma pluralidade de saberes, dizeres e memórias constituídas em múltiplos espaços sociais. Nesse sentido, este trabalho visa delinear representações de linguagem e de ensino-aprendizagem de língua inglesa (LI), construídas por professores em formação inicial, por meio da análise de atividades didáticas desenvolvidas em seus planos de aula, bem como discutir o olhar do professor acerca dessas atividades, com base nas percepções registradas em diários reflexivos. Nossas considerações são fruto dos trabalhos (BRITO, 2012a; 2012b; BRITO et al, 2012) que temos desenvolvido no grupo de pesquisa PLES (Práticas de Linguagens em Estágio Supervisionado)1, a partir de um lugar teórico que contempla a Linguística Aplicada em interface com a Análise do Discurso de linha francesa e em diálogo com a perspectiva bakhtiniana de linguagem. Esse entremeio nos possibilita pensar a formação de professores e os processos de ensino-aprendizagem de línguas, ancorados em uma noção de língua(gem) marcada pela incompletude e heterogeneidade e em uma visão de sujeito cindido, fragmentado, constituído sempre na relação com o(s) outro(s)/Outro. Sob esse viés, defendemos que ‘ser professor de línguas’ ou ‘saber uma língua’ é – mais do que um conjunto de saberes ou competências possuídos por um sujeito – um processo contínuo de (des) inscrição em discursos sócio-historicamente constituídos, de (des)identiicações com memórias discursivas, na e pela linguagem. Processo esse que se (des)atualiza na enunciação. Nesse sentido, a AD, por meio de conceitos, tais como os de sujeito, discurso, sentido, memória discursiva, dialogismo e polifonia – e, enim, sua própria noção de linguagem –, pode oferecer suporte às relexões sobre os processos de formação docente e de ensino-aprendizagem de línguas, áreas tão caras à LA. (BRITO e GUILHERME, 2013, p. 25-26). Salientamos, pois, que concebemos o estágio não como o momento de se colocar em prática as teorias aprendidas ao longo do curso, mas como espaço que permite ao professor em formação inicial a ressignificação dos saberes e das memórias que o constituem enquanto sujeito situado em um dado contexto histórico, político e social. Apesar da concepção dicotômica entre teoria e prática parecer superada, nos discursos e dizeres sobre a formação do professor, vê-se que a própria organização curricular das Licenciaturas em Letras ainda consolida tal relação, haja vista que as disciplinas de estágio, por uma ‘ordem’ quase naturalizada, tendem a serem ofertadas após as 1 O grupo está cadastrado no CNPq/UFT, sob a coordenação do Prof. Dr. Wagner Rodrigues Silva (UFT). 118 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados disciplinas de metodologia, didática geral, linguística aplicada, entre outras, as quais supostamente preparariam o aluno para o momento da prática2. Pressupomos que teoria e prática não estabelecem uma relação de natureza dicotômica tampouco de transposição, ou seja, a prática não é tida como momento em que um suposto conjunto fechado e estático de conhecimentos, adquiridos em um curso, passa a ser “aplicado”, “transposto” a um contexto de ensino. Antes, partimos da noção de revezamento (DELEUZE, em FOUCAULT, [1979] 1995) e postulamos que teoria e prática são duas instâncias distintas que precisam, ambas, ser ressignificadas pelo sujeito, por meio de relações que se estabelecem entre outros sujeitos, entre discursos, entre dizeres que dialogam, confrontam-se, sobrepõem-se. É, pois, na esteira de tais considerações que empreendemos nosso gesto de interpretação em relação às práticas de linguagem propostas em planos de aula de língua inglesa e às reflexões e relatos presentes nos diários reflexivos. Para isso, faremos, primeiramente, breve contextualização da disciplina de estágio supervisionado, no intuito de explicitarmos o contexto no qual os planos e diários foram elaborados. Em seguida, descreveremos as atividades didáticas e discutiremos algumas representações3 de linguagem e ensino-aprendizagem que as fundamentam, problematizando o posicionamento do professor estagiário concernente à aula em questão. Posteriormente, discutiremos o ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras, levando em conta o foco nas formas linguísticas. Finalmente, teceremos considerações sobre as implicações dessas representações na formação do professor e sobre a relevância dos diários reflexivos nesse processo. ALGUMAS PALAVRAS ACERCA DO ESTÁGIO SUPERVISIONADO DE LÍNGUA INGLESA Os planos de aula analisados foram produzidos na disciplina de Estágio Supervisionado de Língua Inglesa 2, sob nossa regência, em uma universidade federal no interior de Minas Gerais, no segundo semestre de 2012. A referida disciplina constitui-se de 90 horas, sendo 30 horas destinadas à parte teórica, em que os alunos têm a oportunidade de discutir e problematizar textos referentes à formação de professores, aos processos de ensino-aprendizagem, à produção de material didático, à constituição identitária dos sujeitos aluno e professor; e 60 horas destinadas à parte prática, em que os estagiários realizam observação de aulas em escolas públicas e regência. Como na disciplina anterior, Estágio Supervisionado de Língua Inglesa 1, os professores em formação tiveram a oportunidade de observar aulas de língua inglesa na Há de se ressaltar, todavia, que programas como o PIBID (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência) tentam suprir essa lacuna, promovendo a articulação teoria-prática, nas licenciaturas, ainda nos períodos iniciais. 3 Tomadas aqui no sentido de formações imaginárias, tais como formuladas por Pêcheux ([1969] 1997), a saber: como o jogo de representações que designam o lugar que os interlocutores atribuem a si mesmos e aos outros. 2 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 119 Universidade Federal da Grande Dourados escola pública, a fim de desenvolver um estudo de caso4 de um tópico previamente selecionado (como, por exemplo, ensino de leitura, gramática, vocabulário, aspectos motivacionais, dentre outros). O Estágio 2 destinou-se à parte prática ao desenvolvimento da regência. As horas de regência, na disciplina em questão, dividiram-se em aulas ministradas pelos estagiários na escola pública e supervisionadas pelos professores regentes dessas instituições, e em aulas ministradas, em um minicurso básico de língua inglesa, aberto à comunidade externa à universidade, e supervisionadas pela professora orientadora na IES5. Contamos, no período da pesquisa, com um grupo de 16 estagiários que, organizados em duplas ou trios, propuseram minicursos de língua inglesa de 20 horas, de nível básico, a partir de temas e perspectivas por eles selecionados. Como não havia um livro didático específico, cabia aos professores em formação decidir acerca da organização e da produção do material do minicurso, sempre em interlocução com a professora orientadora. O público desses minicursos é bastante heterogêneo e composto, em sua maioria, por alunos adolescentes oriundos de escolas públicas, universitários e pessoas interessadas na aprendizagem da língua inglesa. A primeira etapa da regência consistiu na definição dos temas e propósitos de cada minicurso e posterior elaboração de resumos, no intuito de divulgar ao público alvo. Nosso interesse de pesquisa recai justamente na análise das atividades propostas nos planos de aula para o ensino de língua inglesa nesse contexto, a fim de investigar as representações de linguagem e de ensino-aprendizagem aí construídas. Como nos inscrevemos em uma visão discursiva de linguagem, as discussões conduzidas em sala visaram problematizar os processos de ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras e de formação de professores, sob esse viés. Dessa forma, durante as aulas teóricas, orientamos os alunos a pensarem em minicursos, tendo em vista a concepção de linguagem como prática social, em que sujeitos, interpelados pela ideologia, se engajam para produzirem sentidos. Entendemos que, ao significar, o sujeito se significa, sendo que sujeito e sentido se constituem ao mesmo tempo, sem que haja possibilidade de ocupar posição de exterioridade em relação à linguagem (AUTHIER-REVUZ, 2004). Questionamentos, tais como: Em que concepção de linguagem fundamento minha prática pedagógica? Qual meu objetivo em propor determinada atividade na aula de LI? Que tipo de aluno quero formar com minha prática? Que relação com a língua estrangeira (LE) permitiu ao meu aluno experienciar na aula? O que significa ensinar O estágio de observação justiica-se pela oportunidade de inserir os professores em formação no contexto público de ensino e de promover a prática investigativa, já que eles precisam coletar, descrever e analisar dados, produzir um texto acadêmico, a im de discutirem o que vivenciaram nesse momento do estágio. 5 Ressaltamos que usaremos os termos ‘professor estagiário’ e ‘professor em formação’ para nos referirmos aos nossos alunos, e o termo ‘professora orientadora’, em referência ao nosso papel como professora da disciplina de estágio no ensino superior. Normalmente, utiliza-se o termo ‘professora supervisora’ para o regente que, na escola básica regular, orienta o trabalho dos estagiários. 4 120 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados inglês, considerando-se seu status de língua internacional?, balizaram as discussões teóricas, com vistas a ressaltar a questão das relações de poder que marcam a tomada da palavra, bem como sua natureza dialógica, polifônica e política. Além disso, foram trabalhados textos que abordavam aspectos da produção de materiais didáticos, concepções de erro, novas tecnologias e ensino, dentre outros. No semestre em questão, foram abertos seis minicursos básicos de língua inglesa à comunidade, com os seguintes nomes6: (i) (ii) (iii) (iv) (v) (vi) Aprendendo inglês através do cinema; Curso de inglês com foco na comunicação oral; Situações cotidianas; Luz, câmera e ação: cinema e literatura no ensino de língua inglesa; Aprendendo língua inglesa com gêneros orais e escritos; Culturas em diálogo. Os professores estagiários deveriam escrever diários reflexivos baseados em três aulas, por eles ministradas nos minicursos, levando em consideração aspectos e eventos relevantes de suas aulas, seu posicionamento e percepção sobre os fatos ocorridos na regência, o confronto entre o planejamento e a aula dada e a apresentação de sugestões. É importante dizer que trabalhamos um texto de nossa autoria acerca de diários reflexivos (BRITO, 2012a), com o propósito de chamar a atenção para o caráter do diário como espaço de problematização da prática pedagógica, e não como mera descrição de eventos. Nosso intento é compreender a forma pela qual esses sujeitos – em sua maioria, com pouca ou nenhuma experiência de docência – ressignificam, no momento da elaboração de seu plano de aula e na escritura dos diários, os saberes a que são expostos durante a disciplina de estágio supervisionado e das disciplinas do curso de Letras, de forma geral, a partir da memória de ensino-aprendizagem de LI que os constitui. PRÁTICAS DE LINGUAGEM NA AULA DE LI Ressaltamos que nossas análises tomam por base as propostas de atividades descritas nos planos e não as aulas, propriamente ditas. Isto é, interessa-nos compreender as representações de linguagem e de ensino-aprendizagem de LI, mobilizadas pelos professores em formação inicial, no momento do planejamento da aula e não a forma como esta de fato ocorreu. Para isso, selecionamos três planos de aula, dando prioridade àqueles que representassem, no geral, os tipos de atividades propostas pelos estagiários e que tivessem sido comentados nos diários reflexivos, integrantes do relatório final. 6 As informações referentes ao minicurso (resumo, período de matrícula, número de vagas etc) foram divulgados no site da Coordenação de Extensão e Educação Continuada em Letras (CECLE - http://www.cecle.ileel.ufu.br/). Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 121 Universidade Federal da Grande Dourados ANÁLISE DO PLANO DE AULA 1 O primeiro plano de aula que apresentamos para análise foi desenvolvido no minicurso intitulado ‘Aprendendo inglês através do cinema’, cujo objetivo era trabalhar situações comunicativas abordadas em segmentos de filmes e/ou de séries de televisão. Para a aula em questão, P17 propôs os seguintes objetivos: utilizar vocabulário de daily routine; falar da rotina em inglês; e falar da rotina do colega. P1 planeja iniciar a aula com um brainstorming, em que questiona seus alunos a respeito da história da Rapunzel. Em seguida, propõe passar um trecho do filme Tangled (releitura da história da Rapunzel) e pedir para que os alunos anotem, mesmo em língua materna, o que está sendo feito pela personagem do filme. P1, então, checa as respostas dos alunos, no intuito de estabelecer uma ligação com a ação da personagem e o tema Daily Routine, por meio da apresentação, no PowerPoint, de vocabulário específico do tema. Posteriormente, passa-se à explanação do Simple Present, em sua forma negativa e afirmativa, e os alunos fazem exercícios de fixação. Para finalizar, pede para que os alunos elaborem sentenças sobre as suas rotinas diárias. Apesar de ter feito uso do segmento do filme Tangled, pode-se perceber que a aula, tal como explicitada no plano, é organizada em torno do tópico gramatical, no caso o Simple Present. Não há, inclusive, menção, nos objetivos, a respeito do uso desse material. O filme aparece como pretexto para ensinar ou ilustrar uma forma verbal e seu uso se esvazia, sendo o foco apenas tomar notas de ações realizadas por um personagem, e não discutir, por exemplo, as implicações de tais ações dentro da trama da estória. A forma verbal em questão é, após a amostra da cena do filme, explicada e praticada por meio de exercícios estruturais e controlados. A solicitação para que os alunos escrevam frases sobre um tema trabalhado na aula é muito comum na prática de professores de línguas. Não diríamos que se trata de uma atividade irrelevante, que não possa engajar, motivar ou proporcionar aprendizagem – uma vez que não se podem controlar os processos de interpelação do sujeito em sua relação com a língua. Isto é, aprende-se uma LE, apesar dos métodos, dos materiais, da (falta de) didática dos professores ou de ‘boas estratégias’ etc., já que a aprendizagem é perpassada por movimentos de identificação que escapam aos sujeitos e aos métodos. Todavia, por acreditarmos que as representações do ensino-aprendizagem podem incidir nas práticas pedagógicas, cabe-nos problematizar a concepção de linguagem que subjaz a tais propostas. No caso do primeiro plano analisado, é justamente uma noção de língua como conjunto de formas e estruturas abstratas e, consequentemente, a aprendizagem como automação dessas formas. Ora, em que situação de prática de linguagem teríamos falantes escrevendo frases sobre suas rotinas? Na verdade, em várias: em um diário de viagem; em um diário pessoal, adotado por um aprendiz que quisesse registrar, na língua alvo, as ações de 7 P1, P2 e P3 correspondem, respectivamente, aos professores estagiários responsáveis pelos planos analisados. 122 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados seu dia; em uma publicação em uma rede social, dentre inúmeras outras. De qualquer forma, o que parece ser escamoteado, na proposta desse tipo de atividade, são as condições de produção de linguagem, as quais são, por sua vez, inevitavelmente marcadas por um contexto social. Nesse sentido, esvaziada de qualquer propósito de interação verbal, a atividade torna-se mero exercício escolar, em que o que interessa é mostrar ao outro (no caso, o professor) que se aprenderam as regras do jogo. Ao refletir acerca da aula ministrada, P1 aponta, no diário reflexivo presente no relatório de estágio supervisionado, que (Ex.1)8: em relação ao conteúdo da aula, acredito que as primeiras aulas fugiram um pouco do tema, um pouco focada na gramática ao invés do tema do minicurso, pois este estágio foi uma experiência diferente das outras, sendo que nunca havíamos trabalhado este tema e confesso que no começo foi muito trabalhoso. Vem à tona, em seu texto, a dificuldade de articular o conteúdo gramatical selecionado à proposta do minicurso e ao diálogo com a professora orientadora que, no momento de interlocução sobre o plano de aula, chamou a atenção para a necessidade de que fosse explorado mais o filme Rapunzel (sua temática, review, outras versões etc.), evitando, assim, que os excertos se tornassem apenas pretexto para a prática de exercícios meramente focados na forma. Tenta-se construir perante o interlocutor uma imagem positiva, justificando-se de supostas falhas que lhe pudessem ser atribuídas (confesso que no começo foi muito trabalhoso). Justificativa essa que se ‘resolve’ na avaliação da própria aula por P1, ao afirmar que (Ex. 2) esta atividade foi muito proveitosa porque todos os alunos independentemente da idade gostaram do ilme da Rapunzel “Tangled”, pois acredito que é um clássico. Dessa forma a aula foi de certa forma proveitosa e acredito que cresci como proissional. A nosso ver, ainda que o uso de segmento de um filme possa apontar para o desejo de se distanciar das práticas de ensino meramente estruturais, de modo a abrir espaço para que olhares outros sobre os textos e dizeres venham à tona, provocando desarranjos subjetivos e arranjos significantes (SERRANI-INFANTE, 1997), entendemos que P1 parece ter dificuldade de sustentar uma posição – teoricamente fundamentada – acerca de sua própria prática, utilizando-se de argumentos vagos, que pouco contribuem para problematizar o fazer docente, tais como os expressos nos sintagmas: atividade muito proveitosa, aula foi de certa forma proveitosa, cresci como profissional, e na suposta aprovação dos alunos em relação à aula. Essas expressões assumem o caráter de um discurso pronto – espécie de jargões pedagógicos – por meio do qual se tenta construir uma imagem positiva perante o interlocutor, associando o conceito de ‘boa aula’ (ou ‘aula proveitosa’) unicamente à satisfação pessoal dos alunos, sem consideração, por exemplo, pelo contexto mais amplo em que se realizam os complexos processos de ensino-aprendizagem. 8 ‘Ex.’ refere-se aos respectivos excertos retirados dos diários. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 123 Universidade Federal da Grande Dourados ANÁLISE DO PLANO DE AULA 2 O segundo plano foi proposto no minicurso intitulado ‘Curso de Inglês com foco na comunicação oral’, o qual visava desenvolver a habilidade oral da Língua Inglesa, através de músicas, vídeos, jogos e diálogos, dentro de contextos variados. Foram elencados os seguintes objetivos para a aula: (i) construir frases usando too + adjective; (ii) construir frases usando adjective + enough; (iii) usar adjetivos adequados em diferentes contextos. Para atingir os objetivos, P2 propõe: apresentar adjetivos “descontextualizados” (termo usado na seção dos ‘procedimentos’, em seu plano de aula), a partir de figuras; fazer repetições, em grupo e individualmente, para auxiliar na memorização do vocabulário. Em seguida, de acordo com o plano, apresentam-se slides com o uso de too + adjective e adjective + enough, com vários exemplos. Para que os alunos pratiquem, P2 propõe um exercício controlado em que os alunos devem completar frases. Propõe-se também uma atividade de produção, a partir da qual os alunos devem escrever duas frases a respeito de situações que julguem estar too old e old enough para fazer. Aprender a língua seria dominar estruturas gramaticais por meio de exercícios de automação e apresentação de palavras (cujo sentido seria unívoco) que possibilitariam a interação. Semelhantemente ao plano de P1, analisado anteriormente, a dificuldade parece recair na adequação do conteúdo a práticas de linguagem mais ‘reais’, ou seja, a situações em que a linguagem é tida como prática social, o que se pode perceber pela solicitação para que os alunos escrevam frases com as estruturas ensinadas na aula. Após o parecer da professora orientadora, chamando a atenção quanto à necessidade de se ater mais ao foco do minicurso (a saber, a comunicação oral), e a sugestão de que se pensasse em um contexto em que a estrutura gramatical fosse relevante, P2 acrescenta uma última atividade em seu plano. Propõe fazer perguntas em que os alunos devem expressar sua opinião de determinado assunto, utilizando as frases escritas na atividade anterior (por exemplo, what do you think about driving before 18 years old?, what’s your opinion on living alone?). Trata-se de uma tentativa de proporcionar uma dimensão comunicativa para a aula, ainda que seja pela produção controlada. No diário reflexivo dessa aula, P2 registra: (Ex. 3) Decidi destacar essa aula justamente pela diiculdade que tive com ela, o que me surpreendeu bastante. Inicialmente, escolhi esse conteúdo porque achei que adjetivos era uma matéria fácil e interessante de trabalhar em níveis iniciais, mas queria contextualizar esse tema com algum outro assunto que me possibilitasse fazer uma prática e que não fosse o verbo to be, então, foi quando vinculei as estruturas “too” e “enough”. Porém, quando fui montar a aula tive uma enorme diiculdade de fazer uma prática interessante para esse assunto, porque não conseguia fazer como tinha feito na aula anterior, na qual escolhi um contexto de uso para praticar as estruturas, nesse caso precisava de diferentes contextos e eu sentia que os alunos não conseguiriam. Foi quando a professora supervisora me deu algumas ideias e consegui trazer um pouco dessa prática contextualizada para sala de aula, mas mesmo assim, 124 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados senti que não teve o mesmo efeito, os alunos não conseguiram perceber facilmente que poderiam usar o que tinham aprendido na aula para fazer a discussão proposta. O excerto acima aponta o embate entre o desejo de P2 – de trabalhar com uma matéria fácil e que provavelmente lhe traria segurança – e o posicionamento da professora orientadora do estágio, ao emitir o parecer do plano de aula e tecer comentários posteriores à aula propriamente dita9, sugerindo-lhe que não esgotasse o conteúdo com aspectos apenas linguísticos. O embate é marcado na tentativa de construir, perante o interlocutor (que é também avaliador), a imagem de ‘boa aula’, justificando as supostas falhas (tive uma enorme dificuldade, não conseguia fazer como tinha feito na aula anterior), por meio da recusa de uma prática meramente estruturalista, metaforizada pelo verbo to be. Imagem essa corroborada pela oração adversativa mas mesmo assim, senti que não teve o mesmo efeito, que escamoteia o desconforto advindo da dificuldade – inerente ao fazer docente e provavelmente potencializada pela inexperiência de P2 – de planejar a aula e conduzi-la de forma a promover aprendizagem relevante. Vê-se que a ‘culpa’ de não corresponder à expectativa da professora orientadora é expurgada pelo advérbio facilmente, que atribui às dificuldades dos alunos o caráter de injustificadas (não conseguiram perceber facilmente que poderiam usar o que tinham aprendido na aula para fazer a discussão proposta). Dessa forma, a adversativa – mas mesmo assim – aponta para um lugar de resistência em relação à voz do outro (provavelmente à voz institucional, representada pela professora orientadora), fazendo do diário um espaço de negociação de sentidos, em que aquilo que se diz ou se silencia é determinado, sobretudo, pelas imagens de si e do(s) outro(s), colocadas em jogo na enunciação. Daí a necessidade de se problematizarem as representações de língua, de ensino-aprendizagem de língua, de professor e de aluno, na formação de professores, com vistas a possibilitar, mais do que um ‘tom de frustração’ com a dificuldade linguístico-comunicativa dos alunos, a compreensão de que a produção de sentidos não é controlada e que o engajamento discursivo do sujeito, em uma língua estrangeira (ou materna!), não é alcançado, ao final de uma aula, pelo simples fato de se ter feito uma série de exercícios. ANÁLISE DO PLANO DE AULA 3 O plano de aula 3 foi proposto no minicurso ‘Aprendendo língua inglesa com gêneros orais e escritos’, cujo objetivo era orientar os alunos na leitura, compreensão e produção de gêneros orais e escritos, comuns do nosso dia-a-dia e importantes no momento de se comunicar, a fim de auxiliar o aluno a desenvolver a leitura, escrita, audição e fala, por meio de assuntos e procedimentos do cotidiano. Como objetivo para esta aula, propôs-se que os alunos reconhecessem os traços que englobam o gênero cook recipe e o uso do how much/ how many e de conectivos nesse gênero e em outros contextos. 9 Cumpre ressaltar que estivemos presentes na aula em questão. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 125 Universidade Federal da Grande Dourados P3 propõe, no plano, iniciar a aula com uma breve revisão do conteúdo passado. Para introduzir o tema, propõe realizar um brainstorming, por meio das seguintes perguntas: Do you like food which contains chicken? Do you know any recipe of a food which has chicken as one of the ingredients? How do you prepare it?. P3 sugere, então: exibir um vídeo sobre duas receitas que utilizam carne de frango; pedir aos alunos que respondam perguntas de compreensão; e revisar alguns aspectos do gênero (características típicas da receita culinária e verbos no imperativo). Pela descrição do plano, P3 dá continuidade à aula com a explicação do vocabulário e, posteriormente, entrega o script das receitas aos alunos para que, em duplas, façam perguntas a respeito dos ingredientes da receita do colega, utilizando how much e how many. Passa-se à explanação, por meio de exemplos, dos conectivos típicos de uma receita culinária e pede-se que os alunos repitam uma receita em que tais conectivos são utilizados. Os alunos deverão fazer leitura da receita de um dos pratos favoritos do cantor Elvis Presley e associar as ações do texto a imagens. Para finalizar, propõe-se que realizem uma atividade em que têm de colocar frases em ordem, com base em uma receita de barbecued kebab, e acrescentar os conectivos correspondentes. Percebemos, pelo plano, a tentativa de P3 de promover o ensino da língua além da mera prática de exercícios estruturais, ainda que seja por meio de atividades mais ou menos diretivas e controladas. A língua aparece, pois, como instrumento de comunicação e o ensino-aprendizagem como processo de interação, no intuito de construir e produzir sentidos. Na releitura acerca da referida aula, no diário reflexivo, P3 registra: (Ex. 4) Na minha própria concepção, a aula 14 do minicurso foi uma das aulas mais interessantes que planejei durante o mesmo e foi a que mais tive o prazer de ministrar. (Ex. 5) Outro aspecto importante do meu planejamento foi o fato de que eu preparei uma aula menos estrutural: sem exposição de conteúdos gramaticais. Eu preparei mais exercícios práticos relacionados à parte da língua que eu queria explorar, que é justamente a questão do how much/how many e a questão dos conectivos. Acredito que essa aula fez parte das primeiras em que passei a mudar minha concepção de linguagem, deixando um pouco o lado estrutural de lado. Até mesmo nos exercícios não houve preenchimento de lacunas em frases descontextualizadas e quebradas, tal como já havia feito em lista de exercícios. (Ex. 6) Por im, acredito que foi uma aula crucial para mim, pois apresentou atitudes minhas mais amadurecidas como professora, pois modiiquei de certa forma meu modo de dar aulas. A ideia de trabalhar com gêneros, no minicurso, ofereceu algumas dificuldades aos professores estagiários do grupo, no que concerne à elaboração de material e ao planejamento das aulas. Pôde-se perceber, pela supervisão do estágio e pelos dizeres apresentados no relatório final, que essa proposta apareceu como um desafio, especialmente porque os professores não tinham quaisquer experiências como docentes. 126 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Pelo relato de P3, vê-se o desejo de corresponder às expectativas e orientações feitas durante toda a disciplina (foi uma das aulas mais interessantes, foi uma aula crucial para mim) e certo ‘amadurecimento’ no que diz respeito à sua concepção de linguagem (deixando um pouco o lado estrutural de lado). Abrimos aqui um parêntese para ressaltar que, de forma geral, os professores em formação, ao proporem o ensino da língua inglesa por meio de gêneros, comumente se restringem à explanação (às vezes, exaustiva!) dos aspectos característicos destes e à posterior proposta de atividades de produção escrita ou oral (como se a mera exposição a um modelo pudesse, ao final da aula, levar ao domínio dos gêneros textuais). Cremos que as dificuldades enfrentadas por esses professores em formação (e também por muitos professores em serviço) refletem os desafios que a própria proposta de ensino de LEs por meio de gêneros apresenta, tais como: a falta de proficiência linguístico-comunicativa dos alunos, a decisão no tocante à seleção dos gêneros relevantes aos diversos contextos pedagógicos, a forma de articular o ensino de aspectos gramaticais a atividades de compreensão e produção do gênero em questão etc. Isso acaba resultando na mera transposição da abordagem pautada na estrutura da língua para uma abordagem ancorada em uma ‘gramática do gênero’, sem que haja alterações nas concepções de linguagem. Continua-se, pois, corroborando uma noção homogênea de linguagem e de língua “como sistema gramatical abstrato de formas normativas, abstraída das percepções ideológicas concretas” dos falantes. (BAKHTIN, [1975] 2010, p. 96). Noção essa que provavelmente reflete e refrata os modelos de ensino-aprendizagem vivenciados por tais sujeitos. Voltemos aos excertos do diário. Sob uma perspectiva discursiva, que refuta a transparência da linguagem e leva em consideração as formações imaginárias colocadas em jogo em qualquer acontecimento discursivo, entendemos que P3 enuncia em um espaço de tensão (entre o que compreende ser, por exemplo, a imagem de um ensino tradicional de língua e a de um mais pautado por abordagens que levam em conta a dimensão social da linguagem), capaz de possibilitar ressignificações do fazer docente. Em outras palavras, vêm à tona, em seus dizeres, a interpelação advinda do encontro-confronto com o(s) outro(s), que pode desencadear processos de deslocamentos na/ da prática pedagógica. Assim, não se trata de defender que houve ‘mudança’ ou ‘ruptura’ nas concepções de linguagem e de ensino-aprendizagem, mas tão somente que a constituição do sujeito professor e sua relação com o objeto de ensino extrapolam a dimensão teórico-metodológica, frequentemente postulada em cursos de formação. Dito de outro modo, entendemos que a (trans-)formação do professor e de suas práticas se dá pela mobilização do sujeito por certos discursos – e não por outros; por meio de processos de identificação a certos sentidos – e não pelo simples ‘conhecimento’ de teorias. Concordamos com Coracini, quando afirma que Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 127 Universidade Federal da Grande Dourados ... nada se diz ou por nada nos interessamos que, de alguma maneira, já não esteja lá, no inconsciente, isto é, que não tenha sido internalizado; assim, só há identiicação possível com um fato, objeto exterior ou com outro sujeito, quando este encontra eco no inconsciente que o reconhece ou identiica sem necessariamente o consentimento do consciente. (CORACINI, 2003, p. 253). A formação de professores precisa, a nosso ver, constituir-se como espaço que permite a tomada de posição dos sujeitos diante da língua que aprendem-ensinam, por meio de deslocamentos discursivos advindos da problematização de dizeres, saberes e práticas naturalizadas nos meios social, acadêmico e institucional. ENSINO-APRENDIZAGEM DE LES E O FOCO NA(S) FORMA(S) LINGUÍSTICA(S) A análise dos planos de aula e dos diários reflexivos que refletem a prática pedagógica aponta que prevalece, nas propostas de atividades, o foco na forma da língua, o que advém, em grande parte, das próprias experiências de tais sujeitos com a aprendizagem de LI, apontando que o estudo do sistema linguístico – sobretudo a ênfase na gramática e no vocabulário, no ensino de línguas como disciplina escolar –, é prevalecente (CELANI, 2010). Assim, ensinar língua equivaleria a tomá-la como objeto, cuja descrição, sistematização e análise culminariam em seu domínio pelos falantes. Percebemos que boa parte das atividades propostas por professores em formação, no contexto de estágio supervisionado, segue o modelo PPP (Presentation – Practice – Production), amplamente utilizado no ensino de línguas estrangeiras (NASSAJI e FOTOS, 2011). No primeiro momento – presentation – apresenta-se um tópico ou regra gramatical, por meio de textos, diálogos, estórias etc., familiarizando os aprendizes com o novo conteúdo. No estágio da prática, apresentam-se exercícios mais ou menos controlados para automatizar, por meio de repetições, reproduções, atividades abertas, o tópico gramatical ensinado. Finalmente, propõem-se atividades que visam ao uso das regras apresentadas de forma mais espontânea10. Não queremos postular que não haja espaços para atividades voltadas às questões estruturais, mas problematizar a relação que os sujeitos estabelecem com a língua que aprendem-ensinam. Tampouco se trata de advogar por esse ou aquele método, como se houvesse um que fosse ideal. Qualquer método não é mais do que uma tentativa de sistematizar a relação do sujeito com a linguagem, como se esta fosse um objeto pronto e acabado, passível de ser manipulado, controlado e adquirido pelos falantes. 10 Dentre as inúmeras críticas ao modelo PPP, Ellis (2006 apud NASSAJI e FOTOS, 2011, p. 6) ressalta que há outras formas – além da apresentação e prática – de se ensinar gramática, tais como: apresentação de regras sem a prática controlada ou a prática sem a apresentação explícita; exposição dos aprendizes a amostras da língua em que ocorrem as formas gramaticais em questão; ou o ensino por meio do feedback aos erros cometidos por alunos durante tarefas comunicativas. 128 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Aliás, cumpre ressaltar que os métodos, longe de serem práticas/propostas neutras para o ensino-aprendizagem de línguas, constituem-se ideologicamente, podendo, inclusive desempenhar o papel de ‘forças colonizadoras’, tal como argumenta Phan Le Ha (20008). O autor aponta que a força colonizadora das abordagens comunicativas pode ser vista na forma pela qual elas são naturalizadas e propagadas na pedagogia do ensino de línguas, sem consideração pelos diferentes contextos sócio-culturais, ignorando, por exemplo, os distintos papéis atribuídos ao professor, ao aluno e aos processos de ensino-aprendizagem ao redor do mundo. Uma implicação da divulgação da crença de que apenas os métodos ditos comunicativos podem de fato promover comunicação é a desvalorização, por parte de muitos alunos e professores, de suas próprias práticas. Defendemos que é preciso que noções de linguagem sejam problematizadas, na formação, no intuito de possibilitar que os (futuros) professores sejam capazes de se posicionarem teórica e criticamente em relação aos processos de ensino-aprendizagem de línguas, propondo atividades pedagógicas que promovam um ensino socialmente relevante (KUMARAVADIVELU, 2003), ancorado na articulação do saber global e do saber local, tendo em vista o status do inglês como língua internacional (CANAGARAJAH, 2002) e a necessidade de se considerar a produção de conhecimentos e as práticas de linguagem, a partir do híbrido e do marginal (BOHN, 2005, MOITA LOPES, 2006), o que, por sua vez, perpassa pela compreensão de que a tomada da palavra, em língua materna ou estrangeira, não é jamais transparente ou puramente referencial. Nesse sentido, ainda que entendamos que atividades com ênfase na estrutura da língua se configurem como ‘lugar do controle’ ou ‘zona de conforto’ para o professor, auxiliando-o, por exemplo, a lidar com a insegurança de estar à frente de uma sala de aula, de não ter ‘todas’ as respostas, enfim de dar conta das representações de si mesmo enquanto professor de LI; do(s) outro(s) (alunos, professor formador para quem deve prestar contas de uma ‘boa aula’); de aula de LI etc.; também julgamos fundamental a compreensão da natureza dialógica e polifônica da linguagem. A compreensão de que “toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, [1929] 2002, p. 113. Grifos do autor). Em vista disso, aulas com foco nas formas linguísticas podem ser relevantes, se consideradas dentro da perspectiva de linguagem enquanto prática social (e não como mero instrumento de comunicação). Prática por meio da qual identidades são (des) construídas, memórias são evocadas, sentidos são colocados em movimento, enquanto relações de poder são inevitavelmente instauradas. Em outras palavras, trata-se de conceber um ensino relevante ao aluno não apenas como aprendiz, mas como pessoa (EDGE, 1993), o que implica, dentre outros aspectos, a apresentação da linguagem de forma significativa, uma vez que “ensinar uma língua estrangeira não pode se limitar a transmitir conhecimentos sobre a língua, isto é, descrevê-la como sistema de signos e estruturas” (CORACINI, 2003, p. 155). Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 129 Universidade Federal da Grande Dourados CONSIDERAÇÕES FINAIS Nosso gesto de leitura em relação aos planos de aula, propostos por professores estagiários, permitiu-nos entrever que a língua(gem) é basicamente delineada ora como sistema abstrato de formas e itens vocabulares, ora como instrumento de comunicação. O ensino-aprendizagem, por sua vez, é tido como processo controlado de exercícios de vocabulário e gramática ou de atividades que abrem mais ou menos espaço para a construção/produção de sentidos, supostamente culminando no engajamento do aprendiz em situações comunicativas, por meio da língua alvo. No que concerne às práticas de linguagem propostas nesse contexto específico de estágio supervisionado, achamos pertinente salientar dois pontos. O primeiro diz respeito à produção de materiais e o segundo se refere à formação do professor. A produção de materiais configurou-se como experiência nova tanto para os estagiários quanto para a professora orientadora, visto que, até então, eram adotados livros didáticos de língua inglesa, nos minicursos oferecidos à comunidade. Pode-se argumentar que os materiais sejam mais organizados do que os produzidos pelos estagiários, resultando um aglomerado de atividades ou propostas disponíveis em outras fontes. E nesse sentido seria até mais interessante fazer uso dos materiais já prontos e amplamente difundidos e aceitos no mercado de ensino de línguas. Todavia, esse processo de organização/ elaboração/adaptação, o qual demanda tempo significativo, apresenta-se como possibilidade de ressignificação e construção de saberes, representações e concepções acerca da prática pedagógica de ensino de línguas estrangeiras, abrindo espaços para deslocamentos discursivos. É um momento que exige do professor decisões, por exemplo, quanto ao que fazer ou não, no momento da aula, ou acerca de quanto tempo gastar em determinada atividade. Escolhas aparentemente banais, mas nem sempre simples para os que estão no início de sua vida profissional. Kumaravadivelu (2003), ao postular aquilo que denomina de ‘pedagogia pós-método’, argumenta que o conceito de método – entendido como um conjunto de princípios teóricos (oriundos de diversas disciplinas) e de um conjunto específico de procedimentos na sala de aula (técnicas de ensino e aprendizado) usados no intento de alcançar os objetivos do ensino/aprendizagem – parece ser central em cursos de formação de professores de LE. Para esse autor, tal conceito esbarra em limitações como a idealização, isto é, o fato de os métodos serem idealmente concebido para contextos idealizados e de serem inadequados e limitados para explicar satisfatoriamente a complexidade das operações de ensino de língua ao redor do mundo (relação entre conhecimento do professor, percepção do aluno, necessidades sociais, contextos culturais, demandas políticas, restrições econômicas e institucionais etc.). O autor propõe, então, que se pense em uma ‘pedagogia pós-método’, que consistiria não em um método alternativo, mas em uma 130 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados alternativa ao método, baseada em três parâmetros básicos (a saber, o parâmetro da particularidade, da praticalidade e da possibilidade)11. Fazemos coro às palavras de Kumaravadivelu; todavia, ao mesmo tempo em que defendemos que não se pode reduzir a formação de professores e os processos de ensino-aprendizagem de línguas a meras questões metodológicas – limitando-os ao treinamento/assimilação de métodos e abordagens de ensino já estabelecidos – entendemos também que, em sua prática pedagógica, o professor se depara com a imperiosa necessidade de decidir o quê e o como trabalhar a língua. O professor tem, por exemplo, que tomar decisões a respeito: do princípio organizador de seu curso (se por gêneros, temas, aspectos gramaticais); da forma pela qual a língua será apresentada ao aluno; da seleção e produção de material (o tipo de atividades e habilidades a serem enfatizadas, a sequência de atividades, o uso de textos autênticos), dentre outras (GRAVES, 2000). E, nesse sentido, ele não pode se esquivar de dar respostas para questões que, inevitavelmente, tangenciam os aspectos metodológicos do ensino. Portanto, paradoxalmente, o lugar do professor, para evocar Derrida, é o lugar da (in)decidibilidade, lugar que demanda de-cisões. No caso do professor de línguas, diríamos que há de se de-ci(n)dir por uma forma de ensino que se julga mais adequada, pelo modo que se compreende mais plausível para apresentar e explorar a linguagem, o que, inevitavelmente, implica priorizar alguns sentidos e silenciar outros. Responsabilizar-se, ao mesmo tempo, pelos sentidos que “escolhemos” e pelos que nos “esquecemos12”, mas que produzem efeitos. Tal paradoxo nos conduz ao segundo ponto a ser salientado, a saber, a necessidade de se problematizarem, nos cursos de formação de professor, as concepções de (língua) gem, de ensino-aprendizagem e de sujeito, sob perspectivas que assumam sua dimensão social, ideológica, heterogênea, dialógica, conflitiva e sempre política, o que passa pela compreensão de que a “linguagem tem de ser referida necessariamente à sua exterioridade, para que se apreenda seu funcionamento, enquanto processo significativo” (ORLANDI, 2004, p. 24). É a partir dessa problematização que se podem pensar os diários reflexivos como espaço de reflexões críticas (e não simples descrições dos eventos de uma aula), fruto de desestabilizações, ou seja, de deslocamentos frente ao(s) outro(s), que ocorrem de forma diferente e em momentos distintos para os sujeitos, levando-se em consideração sua singularidade. Para que se possa dizer ‘na minha própria concepção’13 (‘e não somente na da Em linhas gerais, os parâmetros são assim explicitados: o parâmetro da particularidade preconiza que qualquer pedagogia de línguas, para ser relevante, precisa ser sensível a um grupo particular de professores e de aprendizes, seguindo um conjunto particular de objetivos, dentro de um contexto institucional e sociocultural particular. O parâmetro da praticalidade envolve a produção de teoria, pelo professor, a partir da prática, por meio de contínua relexão e ação. E, inalmente, o parâmetro da possibilidade que objetiva desenvolver a consciência sócio-política que os participantes trazem consigo para a sala de aula, relacionando-se, pois, a identidades individuais e à transformação social. 12 Referimo-nos aqui não ao esquecimento voluntário, mas aos esquecimentos n.1 e n.2, tais como formulados por Pêcheux ([1975] 1997) e que se referem respectivamente à ilusão do sujeito de ser a fonte de seu dizer e à ilusão da naturalidade entre palavra e coisa. 13 No excerto 4, de P3. 11 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 131 Universidade Federal da Grande Dourados professora orientadora, na de meus alunos ou na de meus colegas’), é preciso que haja a ‘apropriação’ de um saber que é da ordem do não ensinável e que se dá sempre na relação de alteridade. É preciso um ‘investimento subjetivo’ que consiste em ser capturado por outro(s) olhar(es), outro(s) dizer(es), por uma prática outra, resultando na escritura (inscrição) de si e na enunciação de uma contrapalavra a outrem (BAKHTIN, [1929] 2002). Ao analisarmos as reflexões feitas nos diários, vê-se que a mobilização de um olhar significativo para a própria prática não ocorre como fruto de uma simples exigência institucional, como a solicitação, pela professora orientadora de estágio, de que sejam escritos diários reflexivos acerca das aulas ministradas. Ainda que tal exigência aconteça, cremos que ressignificações e deslocamentos passam antes pela relação que o sujeito estabelece com o(s) outro(s), seja com seu objeto de ensino, com os dizeres e desejos que o interpelam a constituir-se como professor (sendo ainda aluno), com os movimentos de identificação para com a língua, por exemplo. Relação essa que é da ordem do não-ensinável, do não controlável. É justamente o diálogo, no sentido bakhtiniano do termo, que parece faltar nas reflexões presentes nos diários que aqui analisamos. Os sujeitos, em termos gerais, não sustentam posições em um plano epistemológico, um discurso profissional docente (FAIRCHILD, 2010), isto é, um “discurso suficientemente específico para distingui-lo de outros profissionais (inclusive, os professores de outras áreas) e intervir sobre um campo específico (a escrita, o texto, o desempenho linguístico dos alunos) de maneira a produzir aí efeitos sensíveis” (p. 272). Ao evocarem memórias e dizeres naturalizados (sobre a prática, sobre representações de professor e aluno), os professores estagiários abafam os conflitos que se estabelecem pela/na alteridade, possibilitando que vozes outras venham à tona, que lugares outros sejam ocupados. Assim, defendemos que a formação e os processos de ensino-aprendizagem sejam pensados no entremeio, no espaço de contínua (in)decisão, para que os sujeitos tenham a possibilidade de serem interpelados a tomarem uma posição perante o objeto que ensinam-aprendem. Entremeio não como lugar no meio, ponto de equilíbrio. Antes como equívoco, contradição, fronteira, margem. As análises dos planos e dos diários apontam, a nosso ver, que a formação se dá justamente em um espaço de contradição, em que diferentes discursos incidem nos processos e práticas de ensino-aprendizagem. Há, por fim, de se ressaltar que as leituras que empreendemos dizem respeito ao corpus selecionado para análise. Não tivemos aqui a pretensão de estabelecer generalizações; antes defendemos, a partir de nossa experiência como professora orientadora, em disciplinas de estágio, e das pesquisas que temos desenvolvido nesses contextos, que a formação, e consequentemente a prática pedagógica, é marcada por vozes dissonantes, por discursos que ora dialogam, ora se contradizem, por posições que se ressignificam a cada aula, a cada enunciação, apontando que a tomada da palavra (e seu ensino) se dá sempre na fronteira – fluida, movediça – que se estabelece pelo desejo sempre adiado da completude dos sentidos, dos sujeitos, da palavra em si. 132 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados REFERÊNCIAS AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva: elementos para uma abordagem do outro no discurso. Tradução de Alda Scher; Elsa M.N. Ortiz. In: ______. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p. 11-80. BAKHTIN, M. (Volochinov). Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do Método Sociológico na Ciência da Linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 9ª ed. São Paulo: Hucitec, [1929] 2002. BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 6ª ed. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: Hucitec/Ed. da UNESP, [1975] 2010. BOHN, H. Linguística Aplicada e Contemporaneidade. In: FREIRE, M.; ABRAHÃO, M. H. V. e BARCELOS, A. M. F. (Orgs.). Linguística Aplicada e Contemporaneidade. Campinas: Pontes Editores. ALAB. 2005. p. 11- 23. BRITO, C. C. P. Diários reflexivos de professores de língua inglesa em formação inicial: o outro que (me) confessa. In: SILVA, W. R. (Org.). Letramento do professor em formação inicial: interdisciplinaridade no estágio supervisionado da licenciatura. Campinas: Pontes Editores Editores, 2012a. p. 139-163. ______. Entretecendo vozes na (re)escrita de diários reflexivos de professores de línguas em formação inicial. Signum. Estudos de Linguagem, v. 15, p. 65-83, 2012b. ______.; GUILHERME, M. F. F. Linguística Aplicada e Análise do Discurso: possíveis entrelaçamentos para a constituição de uma epistemologia. Cadernos Discursivos, Catalão, v.1, n. 1, p. 17-40, ago./dez. 2013. Disponível em <http://cadis_letras.catalao.ufg.br/pages/68523-2013-volume-1-n-1. Acesso em: 10/04/2014>. ______ SANTOS, A. R. ; VASCONCELOS, F. P. ; VIEIRA, L. A. Relatório de Estágio 2 - Licenciatura em Língua Inglesa. In: SILVA, W. R.; FARJADO-TURBIN, A. E. (Orgs.). Como fazer relatórios de estágio supervisionado: formação de professores nas licenciaturas. Brasília: Liber Livro, 2012. p. 87-126. CANAGARAJAH, S. Reconstructing local knowledge. Journal of Language, Identity and Education. Vol. 1(4), p. 243-260, 2002. CELANI, M. A. A. (Org.). Concepção de linguagem de professores de inglês e suas práticas em sala de aula. In: Reflexões e ações (trans)formadoras no ensino-aprendizagem de inglês. Campinas: Mercado de Letras, 2010. p. 129-140. CORACINI, M. J. R. F. (Org.). Subjetividade e identidade do(a) professor(a) de português. In: Identidade & Discurso: (des)construindo subjetividades. Campinas: Editora da Unicamp; Chapecó: Argos Editora Universitária, 2003. p. 239-255. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 133 Universidade Federal da Grande Dourados ______. Língua estrangeira e língua materna: uma questão de sujeito e identidade. In: Identidade & Discurso: (des)construindo subjetividades. Campinas: Editora da Unicamp; Chapecó: Argos Editora Universitária, 2003. p. 139-159. EDGE, J. Methodology 1: from language to communication. In: __________. Essentials of English language teaching. London: Longman, 1993. p. 77-90. FAIRCHILD, T. O professor no espelho: refletindo sobre a leitura de um relatório de estágio na graduação em Letras. Revista Brasileira de Linguística Aplicada- RBLA, v. 10, p. 271-288, 2010. FOUCAULT, M. (1979). Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1995. GRAVES, K. Developing materials. In: Designing language courses: a guide for teachers. Boston, MA: Heinle & Heinle, 2000. p. 149-171. KUMARAVADIVELU, B. Understanding Postmethod Pedagogy. In: Beyond Methods: macrostrategies for Language Teaching. New Heaven: Yale University Press, 2003. p. 23-43. MOITA LOPES, L. P. Lingüística Aplicada e vida contemporânea: problematização dos construtos que tem orientado a pesquisa. In: _____. (Org.). Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 85-107. NASSAJI, H. e FOTOS, S. The changing view of grammar instruction. In: Teaching grammar in second language classrooms: integrating form-focused instruction in communicative context. New York and London: Routledge, 2011. p. 1-16. ORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 4ª ed. Campinas: Pontes Editores, 2004. PÊCHEUX, M. Análise Automática do Discurso (AAD-69). In: GADET. F.: HAK, T. (Org.). Por uma Análise Automática do Discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Tradução de Eni Orlandi. Campinas: Unicamp, [1969] 1997, p 61-151. ______. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni Puccinelli Orlandi et al. Campinas: Ed. da UNICAMP. [1975] 1997. PHAN LE-HA. The Politics of English as an International Language and English Language Teaching. In: Teaching English as an International Language: Identity, Resistance and Negotiation. UK: Multilingual Matters Ltda, 2008. p. 71-103. SERRANI-INFANTE, S. Formações discursivas e processos identificatórios na aquisição de línguas. DELTA [online]. 1997, vol.13, n.1, p. 63-81. Disponível em <http:// dx.doi.org/10.1590/S0102-44501997000100004>. Acesso em: 27/11/2013. Recebido em 12/01/2014 Aprovado em 20/04/2014 134 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados ESTÁGIO DE DOCÊNCIA SUPERVISIONADO: UM CAMINHO PARA DESENVOLVIMENTO DA COMPREENSÃO LEITORA E DA CONSCIÊNCIA TEXTUAL SUPERVISED TEACHING PRACTICE: A WAY TO READING COMPREHENSION AND TEXTUAL CONSCIOUSNESS DEVELOPMENT Vera Wannmacher Pereira* Leandro Lemes do Prado** RESUMO: Neste artigo, apresentamos, a professores, pesquisadores e estagiários de Letras, uma proposta linguístico-pedagógica para desenvolvimento da compreensão leitora e da consciência textual de alunos de anos finais do Ensino Fundamental, com apoio em estudos teóricos da Psicolinguística em interface com a Linguística do Texto, pesquisas sobre o assunto e experiências desenvolvidas em ambientes escolares e em situações de Estágio Docente Supervisionado. Nessa perspectiva, são examinadas primeiramente a situação do ensino e do aprendizado da leitura dos escolares e as condições dos acadêmicos na realização do Estágio, posteriormente são expostos os fundamentos teóricos de apoio e, a seguir, é apresentado um caminho para desenvolvimento, pelos estagiários e pelos professores, da compreensão leitora e da consciência textual dos seus alunos. Nas considerações finais, são desenvolvidas reflexões sobre a produtividade do caminho exposto, considerando a aprendizagem dos alunos da escola, a preparação dos acadêmicos e o planejamento dos professores da escola e da academia. Palavras-chave: compreensão leitora; consciência textual; anos finais do Ensino Fundamental; Estágio de Docência Supervisionado; interfaces. ABSTRACT: In this article, we present to teachers, researchers and trainees of Languages Course, a linguistic and pedagogical path for reading comprehension and textual consciousness development for junior high school students, supported by theoretical studies of Psycholinguistics in interface with the Text Linguistic, researches about the subject and experiences developed in school settings and in Supervised Teaching Practice situations. From this perspective, at first it is examined the junior high school students teaching and reading situation as well as the academics performance among their practice. Then the authors present the theoretical basis in which they support their ideas. Hereafter a way to reading comprehension and textual consciousness development of the high school students is demonstrated in order to be followed by the trainee students and by the teachers. In the final considerations, reflections about the productivity of the foregoing way, considering the * Professor adjunto da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul , Brasil. E-mail: [email protected]. Mestre em Letras Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected] ** Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 135 Universidade Federal da Grande Dourados school students learning, the academic preparation and the school and academy teachers planning are developed. Keywords: reading comprehension; textual consciousness; final years of junior high school; supervised teaching practice; interfaces. COMENTÁRIOS INICIAIS Todos que de alguma forma estão próximos de estudantes do Ensino Fundamental reconhecem suas dificuldades em compreender textos, até mesmo dos que, frequentes no ambiente, evidenciam larga função social, portanto relevância nas interações. Esse reconhecimento, apesar de alguns avanços nas orientações oficiais e nas capacitações proporcionadas, tem mantido alguns desconfortos: os pais preocupados com o potencial competitivo dos filhos, aquém do desejável; os alunos com medo do fracasso; os professores confusos com as incompatibilidades entre alguns livros didáticos do mercado editorial, as determinações programáticas de algumas escolas, as orientações teóricas da academia e sua própria história como aprendizes; o poder público frustrado pelo insucesso de determinadas iniciativas; a academia perplexa diante da correlação negativa entre o esforço de ensino realizado e o benefício de aprendizado alcançado; e os acadêmicos, em seus momentos finais de curso, inseguros diante das responsabilidades com o Estágio Docente Supervisionado (EDS) que se avizinha. Com o objetivo de contribuir para o entendimento dessa situação e, se possível, para a redução desses desconfortos, o presente artigo elege como eixo o desenvolvimento da compreensão leitora e da consciência textual de alunos dos anos finais do Ensino Fundamental no contexto do EDS de Letras/Língua Portuguesa, na interação universidade/escola. Nessa escolha, os professores universitários, os professores das escolas, os acadêmicos de Letras e os alunos desses estagiários estão entrelaçados, desempenhando importantes papéis na construção de paradigmas de interfaces em que caminhos de ensino possam ser produtivos. Para isso, no presente artigo, é feita, primeiramente, uma análise dessa situação, a seguir, são desenvolvidos fundamentos relevantes para a perspectiva assumida, após, é apresentado um caminho construído no âmbito das relações com os estagiários e as escolas (professores e alunos de Língua Portuguesa dos anos finais do Ensino Fundamental) e, por último, são feitas considerações sobre a produtividade dessas construções. 136 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados A SITUAÇÃO DO ENSINO E DO APRENDIZADO DA LEITURA Uma vez que o objetivo deste artigo é disponibilizar um caminho de ensino da compreensão leitora e da consciência textual, é necessário antes que se observe como se encontra o panorama de ensino no Brasil. Assim, tem-se que analisar os resultados de avaliações feitas nos diversos níveis de ensino da Educação Básica com o intuito de examinar a qualidade da aprendizagem na escola. É possível observar que há mecanismos medidores da situação da aprendizagem no Brasil tais como: IDEB, Prova Brasil, PISA entre outros. Esses instrumentos indicam a necessidade de o ensino brasileiro passar por uma reorganização educacional que reavalie em todos os níveis de ensino o papel da escola como formadora de cidadãos capacitados. Não se pode negar que a origem social do estudante afeta o desempenho escolar, porém as políticas educacionais não podem ser feitas levando-se em conta somente os problemas sociais, até porque eles também são encargos de outros setores governamentais. Não se nega que a Educação seja o caminho para a libertação do indivíduo, mas, sozinha, não dá ao indivíduo todas as condições de subsistência. Hoje, discute-se a universalização do acesso ao ensino como uma forma de garantir a todos o acesso à escola e, por conseguinte, ao conhecimento. No entanto, há lacunas na Educação que suscitam discussões sobre os investimentos nessa área. A Educação precisa ser prioridade ao se pretender melhorar o desempenho na compreensão leitora dos estudantes na Educação Básica. No final da década de 70, a UNESCO sugeriu a adoção do conceito de alfabetismo funcional, competência atribuída à pessoa capaz de utilizar a leitura e a escrita para fazer frente às demandas de seu contexto social e de usar essas habilidades para continuar aprendendo e se desenvolvendo ao longo da vida (RIBEIRO et al., 2002). No entanto, deve-se levar em conta que, em todo o mundo, a modernização das sociedades, o desenvolvimento tecnológico, a ampliação da participação social e política colocam demandas cada vez maiores com relação às habilidades de leitura e escrita. No que diz respeito à leitura, Ribeiro et al. (2002) definem três níveis de alfabetismo além daquele que seria o analfabetismo absoluto. No nível 1 de alfabetismo, o leitor localiza uma informação simples em enunciados de uma só frase, um anúncio ou chamada de capa de revista, por exemplo. No nível 2, o leitor consegue localizar uma informação em textos curtos ou médios (uma carta ou notícia, por exemplo), mesmo que seja necessário realizar inferências simples. E, finalmente, no nível 3 de alfabetismo, é possível localizar mais de um item de informação em textos mais longos, comparar informação contida em diferentes textos, estabelecer relações entre informações (causa/efeito, regra geral/caso, opinião/fato) e reconhecer a informação textual mesmo que contradiga o senso comum. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 137 Universidade Federal da Grande Dourados O desempenho do aluno mediano das escolas públicas revela que os níveis de alfabetismo acima apresentados necessitam ser objeto de atenção dos professores, pois a competência leitora fica aquém de habilidades em leitura consideradas como fundamentais ao término do primeiro segmento do Ensino Fundamental, e o desempenho nas redes de ensino organizadas em ciclos é, em média, abaixo das redes de ensino organizadas em série (FRANCO et al., 2007). Portanto, considerando os níveis de alfabetismo e o desempenho do Brasil na Educação Básica, é preciso definir prioridades, sistematizar programas educacionais que, com avaliação em larga escala, consigam identificar o problema, propor solução e alterar positivamente essa realidade. A aposta na capacidade do aluno de aprender ao seu tempo vem mascarando a avaliação do rendimento dos alunos. Não é surpresa para ninguém um professor se manifestar dizendo que foi obrigado a aprovar um aluno por pressões de fontes diversas. Assim, têm-se índices elevados de aprovação e resultados preocupantes nas avaliações dos Indicadores da Educação Brasileira como o SAEB1. Os dados do INEP2 (2011) mostram que, apesar de as metas estabelecidas pelo governo estarem sendo atingidas, o IDEB3 (2011) brasileiro continua baixo e evidencia que, à medida que o aluno avança dos anos iniciais para os finais, a nota tende a baixar, pois o IDEB dos anos iniciais do Ensino Fundamental é 5,0, dos anos finais é 4,1 e do Ensino Médio é 3,7. Essas notas baixam ainda mais quando analisamos apenas alunos oriundos das escolas públicas. A Prova Brasil, avaliação feita pelo SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica), tem verificado o desempenho de alunos do 5º e 9º anos do Ensino Fundamental e do 3º ano do Ensino Médio. Os resultados também revelam índices abaixo dos desejados no desempenho em leitura. O Programa de Avaliação Internacional de Estudantes (PISA) desenvolvido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) pesquisa, a cada três anos, a competência em leitura de estudantes na faixa dos 15 anos de idade. Os resultados com os estudantes brasileiros colocam o Brasil nas últimas posições nas edições de 2003, 2006, 2009 e 2012. Em novembro de 2013, um documento intitulado Relatório de Monitoramento Global de Educação para Todos, divulgado pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura), revela que o Brasil ocupa a 72ª posição entre 127 países. Segundo o documento, falta conteúdo de qualidade ao ensino brasileiro. O Índice de Desenvolvimento Educacional (IDE), criado pela UNESCO, dá ao Brasil a nota de 0,899, colocando-o em uma posição considerada intermediária. Sistema da Avaliação da Educação Básica. Disponível em: http://portal.inep.gov.br/web/saeb/aneb-e-anresc>. Acesso em: 30/03/14. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas. Disponível em: http://ideb.inep.gov.br/resultado>. Acesso em: 30/03/14. 3 Índice de Desenvolvimento da Educação Básica. Disponível em: <http://ideb.inep.gov.br/resultado>. Acesso em: 30/03/14. 1 2 138 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Esse resultado é baseado em um indicador formado por 4 itens: taxa de analfabetismo, matrículas no Ensino Fundamental, paridade de gêneros – meninos e meninas – e permanência na escola depois da 4ª série do Ensino Fundamental. O item permanência na escola compromete a situação do Brasil. Na universalização do Ensino Fundamental, o Brasil ocupa a 32ª posição, mas em permanência, depois da 4ª série, ocupa um lugar nada honroso – 87º lugar, assinalando uma repetência muito alta e dificultando a permanência do aluno na escola. A colocação brasileira no IDE é inferior à do Peru e à do Equador. De acordo com o relatório, a educação obrigatória inicia-se na maioria dos países aos 5 e, em alguns, aos 6 anos, com desvantagem para o Brasil. A maior parte dos demais países da região leva a obrigatoriedade da educação até os 15 anos. No Brasil, ela termina aos 14 anos. Quanto ao número de horas diárias, segundo a UNESCO, são necessárias entre 4h e 25min e 5h para que os estudantes realmente aprendam. A média brasileira é de 4h e 15min e, em muitos Estados, não chega nem mesmo a 4 horas de ensino por dia. Embora diversas medidas de política educacional tenham potencial para contribuir com o aprimoramento da educação brasileira, a magnitude do desafio da qualidade está além do potencial das políticas que circulam. O Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) estabelece prazos e metas a serem cumpridos para melhorar sensivelmente o desempenho das escolas brasileiras. Resta-nos, agora, criar meios para que essas metas e esses prazos sejam cumpridos. Se, por um lado, temos essa realidade sobre a aprendizagem na escola, por outro, temos que estender esse olhar para a realidade da prática de ensino nas universidades e instituições formadoras de profissionais da Educação. A sociedade moderna tem exigido dos professores desempenhos cada vez mais qualificados e eficazes para conviver com as contradições e os problemas da sociedade, dita “globalizada”, que se refletem na escola (LIMA, 2008). Assim, a formação de professores para atuar nas redes de ensino tem que abranger, além do conhecimento sobre a língua propriamente dito, o conhecimento sobre a realidade do ensino. Um professor iniciante ou um estagiário enfrentam o desafio de ter que colocar em prática o que aprenderam na academia, mas para tal demanda ainda não têm experiência, considerando também as discrepâncias que a situação lhe apresenta: alunos em diferentes níveis de aprendizagem, salas de aulas muitas vezes excedendo o número de alunos desejável, problemas sociais, falta de material, violência de naturezas diversas. Enfim, a tarefa é imensa para esse profissional iniciante e a quem cabe colocar em prática as medidas acima discutidas para melhorar a qualidade da Educação. Como se não bastassem esses problemas, o estagiário encontra, muitas vezes, em sala de aula, um ensino de leitura com sua importância reduzida diante de um ensino que prioriza ainda o ensino de gramática de frases desconectado do texto. Depara-se Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 139 Universidade Federal da Grande Dourados também com um trabalho com gêneros textuais com pouca consistência e um certo abandono do texto literário. Encontra ainda um trabalho em que a leitura está dissociada das reflexões linguísticas e da produção escrita. Situações como essas são encontradas, embora a existência de iniciativas importantes como a do Programa Nacional do Livro Didático, que disponibiliza diretrizes para elaboração dos livros didáticos com perspectiva de ensino de língua mais atualizadas nas quais a gramática descontextualizada perde força, a diversidade textual é estimulada, o texto literário é valorizado e a análise e a reflexão linguística são recomendadas. O professor recém saído da academia ou em processo de saída se depara com uma escola desenvolvendo caminhos de ensino da leitura já vistos com reservas por essa academia. Cabe ressaltar que também os órgãos oficiais não preconizam esses caminhos. A prova disso é que os instrumentos que avaliam a Educação Básica são norteados por uma ênfase na compreensão da leitura e nos processos reflexivos sobre a linguagem. Os dados de insucesso acima descritos estão de certo modo vinculados a essa dissociação entre as recomendações baseadas na Linguística e as baseadas na prática escolar. Não é de se estranhar que, nesse quadro, haja uma redução da busca da profissão de professor, como mostra o relatório de 2006 da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Nele há um conjunto de dados de realidades de diferentes países, revelando duas grandes inquietações relacionadas à carreira docente: a escassez de professores, especialmente em algumas áreas; e o perfil do profissional em termos de conhecimentos e habilidades (TARTUCE et al., 2010). Além disso, não podemos esquecer que a preocupação não é só de atrair as pessoas para a carreira em licenciatura, mas também, e talvez a maior delas, manter os professores na profissão docente. Como é possível observar, com a discussão feita até este ponto do texto, a realidade do ensino no Brasil ainda demonstra a necessidade de se investir mais na qualidade do ensino, colocando a leitura efetivamente como foco, conforme demonstram pesquisas e instrumentos de avaliação nessa direção. Na próxima sessão, esse tópico é examinado mais detalhadamente, focalizando a compreensão leitora e seu processamento e a consciência textual. COMPREENSÃO LEITORA E CONSCIÊNCIA TEXTUAL Nesta seção do artigo, são analisadas a compreensão leitora e seu processamento e a consciência textual, dada a relevância desses tópicos para o acesso a todas as áreas do conhecimento, e mais especificamente para o domínio da Língua Portuguesa, de interesse central neste artigo, pois a Supervisão do Estágio Docente que o motiva está circunstanciada na Licenciatura em Letras – Língua Portuguesa. A perspectiva teórica aqui assumida é a da Psicolinguística em interface com a Linguística do Texto e as Neurociências. Nesse entendimento, o texto não deve ser 140 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados visto como um simples conjunto de elementos gramaticais, nem como um repositório de mensagens e de informações (KLEIMAN, 1996) e a leitura é vista como um processo cognitivo que pode ocorrer interativamente de forma ascendente – bottom-up e de forma descendente – top-down (SCLIAR-CABRAL, 2008). A combinação dessas formas está baseada num conjunto de variáveis: características do texto (gênero, tipo), objetivo da leitura, conhecimentos prévios do leitor e estilo cognitivo do mesmo. O processamento ascendente se realiza das unidades menores para as maiores, com a atenção do leitor se dirigindo para as pistas visuais do texto. De modo geral, esse processamento é utilizado em situações nas quais o leitor tem poucos conhecimentos prévios sobre o conteúdo ou a linguagem do texto, o objetivo da leitura exige uma abordagem minuciosa e o texto para ler é complexo, exigindo atenção cuidadosa. O processamento descendente se realiza das unidades maiores para as menores, com o leitor se apoiando nas informações extratextuais. De modo geral, esse processamento é utilizado quando o leitor tem conhecimentos prévios sobre o assunto e a linguagem do texto, seu objetivo exige uma leitura geral, e a densidade do texto não oferece dificuldades grandes de compreensão. De acordo com Soares (1991), a leitura não é uma atividade apenas de decodificação, em que o leitor apreende a “mensagem” do autor, mas é processo constitutivo do texto com base na interação autor-leitor. Ou seja: o texto não preexiste à sua leitura, pois esta é construção ativa de um leitor que, de certa forma, “reescreve” o texto, determinado por seu repertório de experiências individuais, sociais, culturais. Durante a leitura, o leitor utiliza estratégias de leitura (PEREIRA, 2010) como: skimming (leitura geral e rápida para uma aproximação inicial ao texto); scanning (leitura de busca de uma informação específica no texto); leitura detalhada (leitura minuciosa dirigindo a atenção para todos os detalhes); predição (antecipação do conteúdo do texto, com base nas pistas linguísticas e nos conhecimentos prévios); automonitoramento (observação, pelo leitor, do próprio processo de leitura); autoavaliação (verificação, pelo leitor, da adequação das hipóteses de leitura levantadas); autocorreção (alteração, pelo leitor, das hipóteses formuladas, caso constate inadequações). Com essas estratégias tem-se a ativação dos conhecimentos prévios, a seleção de informações, a realização de inferências, a antecipação e localização de informações no texto, ocorrem inferências e antecipações, relações textuais e contextuais se articulam, e também acontecem a construção e a generalização de informações. Nesse sentido, o uso de estratégias dá ao texto e à leitura a perspectiva da prática social, pois o leitor, ao estabelecer relações com o texto, interage com a sua própria realidade, ampliando-a, modificando-a, percebendo-a de maneira mais nítida. Além disso, a utilização dessas estratégias faz com que o leitor manipule os elementos linguísticos do texto e os elementos extratextuais. Os elementos linguísticos abrangem os fônicos (fonemas/letras, ritmo, entonação), os morfossintáticos (limites Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 141 Universidade Federal da Grande Dourados de palavra e frase, estrutura vocabular, elos gramaticais), os semânticos (léxico, significação vocabular, elos lexicais), os pragmáticos (situação de uso), os textuais (superestrutura, coerência, coesão). Os elementos extratextuais estão nos conhecimentos prévios do leitor, em seus arquivos de memória, e no contexto. Na reflexão sobre o uso desses elementos, o leitor está acionando a sua consciência (PEREIRA, 2010), o que contribui para a produtividade desse uso. Conforme Baars (1993), na teoria do espaço global da consciência (global workspace), os conteúdos conscientes estão contidos num espaço global: uma espécie de processador central usado para mediar a comunicação com um conjunto de processadores especializados não conscientes. De acordo com Teixeira (1997), quando esses processadores especializados precisam transmitir informação para o resto do sistema, eles o fazem mandando-a para o espaço global que atua como uma espécie de quadro comunitário, acessível a todos os outros processadores. Segundo Bächler (2006), a consciência é indispensável para compreender qualquer processo cognitivo, pois ela é o traço central da mente, é dinâmica, tem um ponto de vista, necessita de uma orientação e tem um foco, circundado por informações que proporcionam um contexto. De acordo com Dehaene (2007, 2009), a consciência consiste em componente significativo para a compreensão, que, conforme experimento realizado, a partir do tempo de 270-300 milissegundos é possível ver diferença entre o processamento consciente e o inconsciente. Nessas concepções sobre consciência, está o suporte necessário para tratar da consciência linguística que ativa, em sincronia, diversas áreas do cérebro, que tem um contexto linguístico específico e utiliza informações periféricas a esse foco, e, sobretudo, é intencional na busca da análise de algum ponto específico. Por essa perspectiva, podemos entender que a consciência linguística pode focalizar determinado plano linguístico, donde as denominações de consciência fonológica, morfológica, sintática, semântica, pragmática e textual emergem (GOMBERT, 1992). Neste artigo, o foco é o segmento textual, pois o caminho proposto na próxima seção se concentra na compreensão leitora e na consciência textual, que focaliza as relações textuais dos elementos linguísticos internamente e deles com o contexto: a coesão, envolvendo a lexical, que trata da repetição de palavras, da sinonímia, da hiperonímia/ hiponímia e da associação por contiguidade e a gramatical, que envolve a referenciação, a elipse e a conjunção (HALLIDAY, 1976); a coerência, incluindo a manutenção temática, a progressão temática e a ausência de contradição interna (CHAROLLES, 1978); e, por fim, a superestrutura, consistindo no esquema textual (GOMBERT, 1992). O uso e a reflexão sobre a linguagem do texto (SPINILLO et al., 2010), no que se refere à superestrutura, à coerência e à coesão, apoiam-se nas pistas linguísticas deixadas pelo autor no texto e acionam os conhecimentos prévios armazenados na memória declarativa (uso) e na memória procedural (reflexão), esta supondo a análise do próprio processo de leitura realizado. Nesses movimentos, estão a construção da compreensão da leitura e o seu processamento, profundamente vinculados à consciência textual (PEREIRA e SCLIAR-CABRAL, 2012). 142 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Os conhecimentos prévios armazenados na memória declarativa são acionados pelo leitor para a compreensão do texto. Isso significa que cabe ao professor, paralelamente ao trabalho de ensino da análise linguística, propor atividades que estimulem o aluno a acionar seus conhecimentos prévios, colocando-o diante de textos que têm maior ou menor correspondência com eles. A consciência textual resulta da atenção dirigida para a superestrutura, a coerência e a coesão do texto, com apoio nos elementos fônicos, morfossintáticos, léxico-semânticos, pragmáticos e textuais. Há que se considerar que, ao chegar à escola, os alunos já possuem muitos conhecimentos intuitivos sobre a língua. Um aprendizado produtivo exige, no entanto, o desenvolvimento da consciência sobre eles. É o que faz transformar os conhecimentos espontâneos em conhecimentos científicos, cabendo salientar que é para isso que as crianças vão para a escola. É, assim, tarefa do professor propor atividades de ensino da leitura em que a atenção do aluno seja dirigida para os elementos linguísticos do texto, não apenas no sentido de seu uso, mas no sentido de sua explicação, da justificação do seu funcionamento, sendo, para isso, de grande importância os dados já armazenados na memória declarativa. O processo de leitura prepara o processo de escrita. Desse modo, os estudos psicolinguísticos recomendam o uso de um mesmo gênero textual no desenvolvimento dos dois processos, de modo que a consciência textual na leitura encaminhe a consciência textual na escrita (SMITH, 1983). Daí a importância da ativação dos conhecimentos prévios, da observação dos traços linguísticos do texto e da reflexão sobre os procedimentos de compreensão utilizados, o que exige o uso da memória declarativa e da memória procedural. Para concluir, é importante salientar que o ensino de leitura deve se transformar em prática pedagógica eficaz que adota uma concepção de leitura que esteja de acordo com a realidade para a qual se pretende formar o aluno. O trabalho do professor deve ser pautado por uma concepção de leitura que considera o fato de que um sujeito, quando lê um texto, realiza uma prática social. Portanto, há nesse processo a complexidade das relações das diferentes esferas da sociedade que são articuladas e materializadas através da linguagem pelos mais diversos gêneros textuais. Assim, o processo de ensino e aprendizagem da Língua Portuguesa pode ser alvo de reflexão a partir de orientações que valorizem a consciência textual e possibilitem uma compreensão leitora produtiva. Para isso, há que considerar a importância de o estagiário e o professor da escola desenvolverem procedimentos nessa direção. Na próxima seção, é apresentado um caminho linguístico-pedagógico construído pelos autores do artigo no âmbito das relações do EDS. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 143 Universidade Federal da Grande Dourados CAMINHO LINGUÍSTICO-PEDAGÓGICO DE ENSINO DA LEITURA A perspectiva assumida neste artigo se evidencia já nos autores – um professor orientador de EDS de Letras/ Língua Portuguesa da PUCRS, e um professor de Língua Portuguesa de escola de Ensino Fundamental. O primeiro, coordenador de pesquisas sobre aprendizado e ensino da leitura e da escrita, e o segundo, participante de uma dessas pesquisas, como professor de escola, e orientando de doutorado do primeiro, desenvolvendo tese sobre as relações entre leitura e escrita. Assim, o texto busca, na especificidade de ângulos da escola e da universidade, o liame entre essas duas instituições, constituindo-se o EDS em momento privilegiado para esse propósito. O caminho linguístico-pedagógico é proposto neste tópico com base nessa perspectiva e nos fundamentos expostos, construído na prática dessa disciplina do Currículo de Letras, que se desenvolve sucessivamente nos seguintes momentos: • debate sobre o plano de trabalho, as normas administrativas e a documentação comprobatória do estágio; • aprofundamento dos fundamentos teóricos sobre compreensão e processamento da leitura, produção escrita e suas relações com a leitura, organização e funcionamento da linguagem e consciência textual; • discussão do paradigma linguístico-pedagógico; • demonstração das possibilidades de transposição didática do paradigma; • definição e busca das escolas; • orientações para o planejamento das aulas e as relações com as escolas; • realização e registro de observações das aulas da turma da docência; • elaboração dos planos de aula (seleção dos textos e organização das atividades de ensino e avaliação); • realização da pré-avaliação dos alunos; • desenvolvimento da docência; • realização da pós-avaliação dos alunos; • análise dos dados das avaliações; • elaboração do relatório das ações de ensino e avaliação; • elaboração de um ensaio sobre tópico relevante identificado ao logo do EDS; • apresentação do trabalho desenvolvido em seminário da turma. O paradigma de ensino da leitura construído no âmbito do EDS, apresentado a seguir, é constituído de um conjunto de concepções que têm apoio nos fundamentos anteriormente expostos. 144 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados a. A compreensão textual e o seu processamento cognitivo são marcados pela situação de leitura. Daí a importância de o estagiário/professor ter critérios claros para a seleção do texto, considerando suas características como gênero (BAZERMAN, 2009) e as da situação em que está imerso, os propósitos pedagógicos do ano escolar, considerando a hierarquização definida pela escola, os objetivos de leitura e os conhecimentos prévios dos alunos. Considerando essas concepções, se a turma de docência for de 8º/9ºano, poderá ser selecionada uma crônica com sequências argumentativas dominantes (ADAM, 2008). É importante que seja estabelecido claramente o objetivo de leitura (por exemplo, resumir o texto), de modo que os alunos possam selecionar procedimentos de leitura adequados, usá-los e explicitá-los, e sejam considerados os conhecimentos prévios dos alunos no que se refere à linguagem e ao conteúdo do texto. b. A compreensão do texto tem suporte nos seus elementos linguísticos, isto é, nos constituintes fônicos (ritmo, rima, aliteração...), morfológicos (limite e estrutura dos vocábulos, classes gramaticais, flexões...), sintáticos (limite e estrutura das frases/versos, paralelismo, combinações entre os segmentos...), léxico-semânticos (vocábulos e seus significados, paralelismo...), pragmáticos (relações entre o texto e a situação comunicativa) e textuais (superestrutura, coerência e coesão). Desse modo, cabe ao estagiário/professor propor atividades de análise linguística cuidadosa do texto, pois essa alavanca seu entendimento e alicerça a compreensão. Esse trabalho deve ser simultâneo à compreensão, pois lhe dá condições de acontecer. Considerando a mesma turma e a mesma situação de leitura, a análise linguística deve ser constituída de atividades que direcionem a atenção dos alunos para a organização do texto em seus elementos constitutivos: os elementos coesivos lexicais relevantes para o sentido do texto - seus significados e estruturas, suas repetições, seus modos de agrupamentos, suas substituições; os elementos gramaticais – os processos de retomada linguística, os nexos, as relações entre os vocábulos, as elipses; os traços da superestrutura – formato, moldura, esquema, suporte, sequências dominantes; os traços de coerência – tema, tópicos de desenvolvimento, relações entre os tópicos e entre esses e o tema; as marcas da situação de produção (autor, propósito, fonte, suporte) e de recepção do texto (objetivo da leitura, elementos linguísticos e tópicos que integram e que não integram os conhecimentos prévios dos alunos). Quanto à compreensão do texto, como já referido, ela é apoiada pela análise linguística, pois assim favorece a compreensão dos fatos e dos argumentos utilizados. Isso significa ainda que, paralelamente à análise dos elementos linguísticos, cabe a proposição de atividades sobre conteúdo do texto – o tema e seus tópicos, os fatos e suas relações e os argumentos e seus vínculos com a tese em desenvolvimento (ADAM, 2008). Na situação acima referida, considerando a natureza da crônica, a escolaridade dos alunos e o objetivo de leitura, pode ser muito importante a exploração do tema e Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 145 Universidade Federal da Grande Dourados de sua progressão, do léxico em suas associações por contiguidade, dos argumentos e suas relações com a tese e o propósito do autor, das referenciações, dos tempos e pessoas verbais e dos conectores. c. Os conhecimentos prévios armazenados na memória declarativa são acionados pelo leitor para a compreensão do texto. Isso significa que cabe ao estagiário/professor, paralelamente ao trabalho de ensino da análise linguística, propor atividades que estimulem o aluno a acionar seus conhecimentos prévios, colocando-o diante de textos que têm maior ou menor correspondência com eles. Nesse sentido, a seleção dos textos deve apresentar a diversidade necessária de modo a exigir a ativação de conhecimentos que já possui e a busca de conhecimentos que não estão ainda armazenados em sua memória declarativa, de modo a contribuir para o desenvolvimento cognitivo e a aprendizagem. Na situação sugerida, caso o tópico central seja conhecido por apenas parte da turma, cabe oportunizar a leitura prévia de textos que o abordem e estimular o intercâmbio de conhecimentos entre os alunos, de modo a fortalecer as condições para a compreensão da crônica selecionada. d. A consciência textual resulta da atenção dirigida para a superestrutura, a coerência e a coesão do texto, com apoio nos elementos fônicos, morfossintáticos, léxico-semânticos, pragmáticos e textuais. É importante considerar que, ao chegar à escola, os alunos já possuem muitos conhecimentos intuitivos sobre a língua. Um aprendizado produtivo exige, no entanto, o desenvolvimento da consciência sobre eles. É o que faz transformar os conhecimentos espontâneos em conhecimentos científicos, cabendo salientar que é para isso que as crianças vão para a escola. É, assim, tarefa do estagiário/professor propor atividades de ensino da leitura em que a atenção do aluno seja dirigida para os elementos linguísticos do texto, não apenas no sentido de seu uso, mas no sentido de sua explicação, da justificação do seu funcionamento, sendo, para isso, de grande importância os dados já armazenados na memória declarativa. Considerando a situação proposta, é necessário que os alunos observem a crônica em suas características superestruturais e em suas relações morfossintáticas e semântico-pragmáticas e as explicitem. Estarão assim desenvolvendo a consciência sobre a organização linguística desse gênero textual, tendo assim favorecidas as condições para sua compreensão. e. A consciência textual necessita também, para sua plenitude, do direcionamento da atenção para o processo de compreensão desenvolvido pelo leitor. Nesse sentido, é necessário que o estagiário/professor proponha atividades que exijam do aluno a observação e a explicitação dos procedi- 146 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados mentos de compreensão por ele utilizados, sendo para isso importante o uso da memória procedural. Desse modo, não basta fazer a leitura do texto e responder às questões de compreensão propostas, pois, para desenvolvimento da consciência textual, é necessário que os alunos reflitam sobre os procedimentos realizados, façam relato desses procedimentos, explicitem as estratégias de leitura utilizadas, avaliem os resultados e redimensionem seus caminhos, se for o caso. Nesse sentido, no caso da situação prevista, é importante que a cada exploração linguística da crônica, os alunos sejam estimulados à observação e à verbalização dos procedimentos por eles realizados. Esse encaminhamento lhes oportunizará o desenvolvimento da consciência sobre o funcionamento da crônica e sobre o seu próprio funcionamento cognitivo a esse respeito. Tal processo reflexivo deve ocorrer em todas as etapas do paradigma aqui apresentado, pois assim haverá compreensão e consciência textual, com benefícios para ambas. f. O processo de leitura prepara o processo de escrita. A escrita deve então ser realizada no mesmo gênero textual lido, uma vez que as atividades de desenvolvimento da consciência textual, se realizadas no texto do gênero A, devem encaminhar para a escrita de texto do gênero A (FLÔRES e PEREIRA, 2012). Cabe então ao estagiário/professor propor atividades de ensino da leitura em que o exame das marcas linguísticas do texto seja favorecedor do desenvolvimento da consciência textual do leitor (SMITH, 2003). No exemplo aqui sugerido, é importante que, após todo o trabalho de leitura da crônica, os alunos sejam orientados para a elaboração de um resumo dessa crônica e para a produção de uma outra crônica também com sequências argumentativas dominantes. A seguir, cabe uma reflexão sobre as marcas desse gênero na crônica lida, no resumo elaborado e na nova crônica produzida. O paradigma aqui exposto consiste na base de um caminho linguístico-pedagógico para desenvolvimento da compreensão e da consciência textual, definido com apoio na Psicolinguística e suas interfaces com a Linguística do Texto e as Neurociências e construído nas experiências que vêm sendo realizadas no âmbito do EDS da FALE/ PUCRS, nas relações desenvolvidas entre a professora da disciplina, os professores das escolas e os estagiários de Letras/Língua Portuguesa. No tópico a seguir, são feitas considerações finais sobre essas relações e a produtividade desse caminho construído. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 147 Universidade Federal da Grande Dourados COMENTÁRIOS FINAIS Ao fechar este artigo, cabe a realização de alguns comentários sobre o tema que o norteou – compreensão leitora e consciência textual nos anos finais do Ensino Fundamental no ambiente das relações entre universidade e escola no ESD de Letras/Língua Portuguesa. Esses comentários abrangem o contexto pedagógico, a escolha teórica e a perspectiva de ensino proposta, em seus pontos essenciais. A observação do momento atual do ponto de vista pedagógico, conforme exposto anteriormente, evidencia a existência de variáveis políticas e econômicas no ensino, constituindo um corpo de condições pouco favoráveis ao aprendizado dos estudantes. No caso do desempenho em leitura, especificamente, a análise dos dados decorrentes da aplicação das provas oficiais coloca os jovens estudantes de anos finais do Ensino Fundamental em situação de desvantagem devido à baixa competitividade tanto na dimensão nacional como na internacional. Essa situação, de complexa influência no que se refere aos aspectos globais, vem contando para sua alteração com a preparação dos professores e com a contribuição dos pesquisadores para isso. Nesse quadro, as relações entre a universidade e a escola ganham importância e o ESD de Letras/ Língua Portuguesa, com seus estagiários, constitui-se numa porta aberta promissora, na medida em que paradigmas consistentes criados nesse âmbito são discutidos e socializados. No caso do aqui exposto, apresenta por si uma possibilidade teórica e metodológica a mais por ter seu nascedouro em áreas da Linguística vocacionadas para o aprendizado e o ensino – a Psicolinguística em suas interfaces com a Linguística do Texto e as Neurociências. Os fundamentos desse paradigma constituem-se numa seleção dos tópicos que explicitam o aprendizado da leitura e possibilitam a proposição de caminhos para o seu ensino. Os fundamentos teóricos utilizados indicam a existência de relações entre a compreensão da leitura de texto e a consciência textual. A primeira se realiza como processamento cognitivo, que, por sua vez, conta com o uso de estratégias cognitivas e metacognitivas de leitura. A segunda consiste no direcionamento da atenção do leitor para os constituintes linguísticos do texto e para o processo de compreensão por ele realizado, com vistas ao sucesso no entendimento e à explicitação dos procedimentos utilizados. A consciência textual focaliza a superestrutura do texto, a coerência e a coesão. Há que ressaltar, no entanto, que esse nível de consciência, por ter o texto como objeto de observação e reflexão, necessita transitar por todos os planos linguísticos e suas correspondentes unidades constituintes. Isso significa que, para o desenvolvimento da consciência textual e da compreensão leitora nos anos finais, é necessário que o estagiário/professor encaminhe ativida- 148 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados des de observação da superestrutura, da coerência e da coesão do texto, considerando os entrelaçamentos com os elementos constitutivos fonológicos, morfológicos, sintáticos, semânticos, pragmáticos e textuais. Ao mesmo tempo deve propor a observação, pelos alunos, dos seus próprios processos realizados no trajeto da compreensão textual. A perspectiva teórica e metodológica assumida como apoio neste artigo consiste numa contribuição para o desenvolvimento da compreensão leitora e da consciência textual de alunos dos anos finais do Ensino Fundamental e, desse modo, para a alteração da situação evidenciada pelas provas oficiais de avaliação, no que se refere às condições de leitura desses estudantes. Considerando o ESD, os estagiários, os professores das escolas e os professores universitários supervisores, tais parceiros constituem-se numa relação de oportunidade positiva, exercendo cada um suas funções específicas e realizando trocas produtivas – os estagiários, ao buscarem convergências entre a aprendizagem na academia e o ensino na escola; os professores das turmas, ao dividirem seus conhecimentos com os estagiários e acolherem os disponibilizados pela universidade; os professores supervisores dos estagiários, ao disponibilizarem seus estudos e pesquisas e terem a possibilidade de redimensioná-los e reconstruírem processos acadêmicos. Nesse entendimento, o caminho de ensino da leitura construído no âmbito dessas relações e apresentado neste artigo traz consigo possibilidades de ser produtivo, cabendo reconhecê-las, valorizá-las e assumi-las como porta preciosa de entrada na escola e na universidade e, assim, no sistema de ensino. REFERÊNCIAS ADAM, Jean-Michel. A Linguística: introdução à análise textual dos discursos. São Paulo: Cortez, 2008. BAARS, Bernard J. A cognitive theory of consciousness. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. BÄCHLER, Rodolfo. Conciencia y lenguaje: análisis del vínculo proyectado a través de la intencionalidad. Chile: Universidad de Chile. Revista Gaceta Universitaria, v.4, n.2 p. 432-438, 2006. BAZERMAN, Charles; Dionísio, Ângela Paiva; Hoffnagel, Judith Chambliss. (Orgs.). Gêneros textuais, tipificação e interação. São Paulo: Cortez, 2009. CHAROLLES, Michel. Introduction aux problèmes de la cohérence des textes. Langue Française. Paris: Larousse, n.38, p.7-41, 1978. DEHAENE, Stanislas. Les neurones de la lecture. Paris: Odile Jacob, 2007. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 149 Universidade Federal da Grande Dourados ______. Signatures of consciousness – a talk by Stanislas Dehaene. Edge in Paris, 2009. Entrevista concedida a Edge Foundation, Inc. Disponível em: <http://www.edge. org/3rd_culture/dehaene09/dehaene09_index.html>. Acesso em: 15 de julho de 2010. FLÔRES, Onici; PEREIRA, Vera Wannmacher. As marcas da leitura na escrita. Anais Eletrônicos do 2º Colóquio Internacional de Estudos Linguísticos e Literários. Maringá: Universidade Estadual de Maringá. p.1-12, jun.2012. FRANCO, Creso et al.. Qualidade do Ensino Fundamental: políticas, suas possibilidades, seus limites. Campinas: UNICAMP. Educação e Sociedade, v. 28, n. 100 - Especial, p. 989-1014, 2007. Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br>. Acesso em: 25 de março de 2014. GOMBERT, Jean Émile. Metalinguistic development. Chicago: The University of Chicago Press: 1992. HALLIDAY, Michael Alexander Kirkwood & HASAN, Ruqaiya. Cohesion in English. London: Longman, 1976. KLEIMAN, Ângela. Oficina de leitura: teoria e prática. Campinas: Pontes Editores, 1996 LIMA, Maria Socorro Lucena. Reflexões sobre o estágio/prática de ensino na formação de professores. Curitiba: UFPR. Revista Diálogo Educacional, v. 8, n. 23, p. 195-205, 2008. PEREIRA, Vera Wannmacher. Aprendizado da leitura e consciência linguística. Anais do IX Encontro do CELSUL. Palhoça, SC, 2010. Universidade do Sul de Santa Catarina, p. 1-11, 2010. ______; SCLIAR-CABRAL, Leonor. Compreensão de textos e consciência textual: caminhos para o ensino nos anos iniciais. Florianópolis: Insular, 2012. RIBEIRO, Vera Masagão et al.. Letramento no Brasil: alguns resultados do indicador nacional de alfabetismo funcional. Campinas: UNICAMP. Educação e Sociedade, v.23, n.81, p.49-70, 2002. Disponível em < http://www.cedes.unicamp.br>. Acesso em: 10 de março 2014. SCLIAR-CABRAL, Leonor. Processamento bottom-up na leitura. Veredas on-line – Psicolinguística– Juiz de Fora: PPG Linguística/UFJF, v.1, n.2, p. 24-33, 2008. Disponível em: <http://www.ufjf.br/revistaveredas/files/2009/12/artigo02.pdf>. Acesso em: 22 de maio de 2012. SMITH Frank. Reading like a writer. Language Arts. v. 60. n. 5, p.555-67, 1983. ______. Compreendendo a leitura. : uma análise psicolinguística da leitura e do aprender a ler. Porto Alegre: Artes Médicas, 2003. SOARES, M. Prefácio. In: DELL’ISOLA, R. L. P. Leitura: inferências e contexto sociocultural. Belo Horizonte: Imprensa Universitária, 1991. 150 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados SPINILLO, A. G. et al. Consciência metalinguística e compreensão da leitura: diferentes facetas de uma relação complexa. Educar em Revista. Curitiba: Ed. UFPR, n. 38, p. 157-171, 2010. TARTUCE, Gisela Lobo et al. Alunos do ensino médio e atratividade da carreira docente no Brasil. Cadernos de Pesquisa, v.40, n.140, p. 445-477, 2010. TEIXEIRA, João Fernandes. A Teoria da Consciência de David Chalmers. Psicologia. São Paulo: USP, v.8, n.2, 1997. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo. php?pid=S0103-641997000200006&script=sci_arttext>. Acesso em: 23 de 05 de 2011. Recebido em 31/03/2014. Aprovado em 20/04/2014. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 151 POLÍTICA DE FORMAÇÃO INICIAL Universidade Federal da Grande Dourados DIÁLOGO ENTRE TEORIA E PRÁTICA: A PESQUISA EM ESTÁGIO DIALOGUE BETWEEN THEORY AND PRACTICE: THE RESEARCH IN TRAINEESHIP Antonio Francisco de Andrade Júnior* RESUMO: Este artigo pretende descrever e discutir propostas de pesquisa em estágio desenvolvidas por licenciandos da Prática de Ensino de Português-Espanhol do curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Seu objetivo é, a partir da análise dos aspectos implicados na escolha inicial dos discentes por temas e linhas de investigação, avaliar a contribuição desse trabalho para a formação inicial do professor de língua espanhola. Serão explicitados diferentes caminhos de elaboração das pesquisas, distintas formas de relação que estabeleceram com os campos de estágio, limites e contribuições desse tipo de atividade para os propósitos principais da Prática de Ensino, quais sejam, o incentivo à formação da identidade profissional docente e a promoção de um diálogo mais efetivo e consciente entre teoria e prática. Palavras-chave: formação de professores; relação teoria-prática; pesquisa em estágio. ABSTRACT: This article aims to describe and discuss research proposals in traineeship developed by licentiate students of the Practice of Teaching of Portuguese-Spanish from the course of Languages of the Federal University of Rio de Janeiro. Its goal is, based on the analysis of the aspects involved in the initial choice of the students by themes and lines of inquiry, to assess the contribution of this study for initial Spanish teacher training. Different ways of preparing the research will be detailed, such as different forms of relationship established with the training field, also limitations and contributions of this type of activity for the main purposes of the Teaching Practice, whatever they be, the encouragement to the formation of the professional identity of the teacher and, finally, the promotion of a more effective and conscious dialogue between theory and practice. Keywords: teacher training; theory-practice relationship; research in traineeship. ESTÁGIO E PESQUISA O curso de Letras Português-Espanhol da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) tem se dividido, classicamente, em duas modalidades – bacharelado e licen* Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 155 Universidade Federal da Grande Dourados ciatura –, separadas física e administrativamente na medida em que, até a implantação em 2010 do novo currículo, a formação acadêmico-científica nas áreas de línguas e literaturas ficava sob a responsabilidade “exclusiva” da Faculdade de Letras, localizada no campus do Fundão, e a formação de professores com suas disciplinas de fundamentação pedagógica, didática e prática de ensino, sob a responsabilidade, igualmente “exclusiva”, da Faculdade de Educação, localizada no campus da Praia Vermelha1. Este trabalho não tratará dos novos caminhos a serem adotados a partir da reforma dos cursos de licenciatura da universidade, que pressupõem mais integração pedagógica e administrativa entre as unidades de origem dos estudantes e a Faculdade de Educação, mas sim dos resultados dessa tradição separatista ainda sentidos nas turmas de Prática de Ensino de Português-Espanhol, bem como dos esforços empreendidos pelo setor de Didática Especial e Prática de Ensino desta habilitação, nos últimos anos, no sentido de desfazer tal dicotomia. Alguns dados relativos às Práticas de Ensino da licenciatura em Letras da UFRJ precisam ser expostos previamente para que o leitor possa ter um panorama geral do trabalho que se vem realizando. Até o presente momento, a Prática de Ensino de Português-Espanhol conta com uma carga horária de 4 tempos semanais de aulas e 2 tempos de orientações, divididos em dois semestres, que devem ser cursados concomitantemente às 300 horas de estágio supervisionado (para o currículo antigo) e 400 horas (para o currículo novo), cumpridas em escolas públicas do Rio de Janeiro e de alguns municípios vizinhos, divididas de maneira equânime entre as disciplinas Língua Portuguesa e Língua Espanhola, presentes na grade curricular do segundo segmento do ensino fundamental e do ensino médio. Trata-se, assim, de uma matéria de abrangência teórica e prática cujo papel principal é não apenas inserir os licenciandos em campos de estágio curricular obrigatório, mas também promover a reflexão crítica sobre a prática docente a partir da articulação entre saberes relativos aos domínios dos estudos de linguagem – linguística e línguas materna e estrangeira –, de literatura – teoria literária, literatura comparada, literaturas de língua portuguesa e espanhola – e de educação – formação de professores, processos de ensino/aprendizagem, metodologias de ensino, contexto sócio-histórico e diretrizes políticas do ensino de línguas e literaturas no Brasil. Tendo em vista a justaposição entre estágio e didática especial de língua materna e estrangeira, por um lado, e a fragmentação da disciplina em semestres I e II, por outro, optou-se a partir de 2011 por um processo de avaliação que considerasse, simultaneamente, em cada período, o desenvolvimento das discussões teóricas em torno da docência e a inserção reflexiva e participativa dos licenciandos nas escolas em que eles realizam os estágios. Obedecendo à organização curricular seguida por todos os setores de didática e prática de ensino de português/línguas estrangeiras da Faculdade de O curso de Letras da UFRJ, na modalidade bacharelado, foi criado em 1931 e reconhecido em 1939. No entanto, a licenciatura desse curso só passou a ser coordenada pela Faculdade de Letras da instituição a partir das reformas, aprovadas pelo seu Conselho Universitário em 25 de junho de 2009. 1 156 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Educação da UFRJ, as aulas teóricas enfatizaram, no primeiro semestre, os conteúdos relativos à formação do professor de Espanhol/LE e, no segundo, os que concernem à formação do professor de Português. No entanto, é importante frisar que os estágios supervisionados e as orientações da prática de ensino de ambas as línguas se desenvolvem ao longo de todo o ano. Por isso, juntamente aos trabalhos e exames vinculados aos textos discutidos em sala, a reflexão a respeito do estágio se dá em cada momento de uma forma: no 1º semestre, através da elaboração de uma pesquisa em estágio – processo investigativo individual levado a cabo pelos licenciandos, com a orientação do professor da Prática de Ensino e, em alguns casos, com a co-orientação dos professores regentes das escolas onde ocorre o estágio, e cujos resultados foram apresentados na forma de artigo monográfico ao final do período –; e no 2º semestre, por meio da preparação das provas de regência de Português e Espanhol, aplicadas pelos licenciandos em turmas acompanhadas por eles ao longo do ano letivo escolar. Veja-se no quadro abaixo o resumo deste procedimento de organização da Prática de Ensino: 1º semestre 2º semestre Didática de Espanhol Didática de Português Estágio Supervisionado de Port./Esp. Estágio Supervisionado de Port./Esp. Pesquisa em Estágio Regências de Port./Esp. Como se pôde perceber, a proposta de pesquisa em estágio – foco de interesse deste capítulo –, trabalho que vem sendo realizado continuamente nos últimos quatro anos, partiu do intuito de incorporar ao currículo desses licenciandos uma dimensão teórico-reflexiva fundamental para seu deslocamento dos papéis tradicionais de observadores passivos da prática docente ou de críticos radicais da instituição escolar e das atitudes profissionais habitualmente adotadas pelos professores. Evidentemente, tal proposta não constitui uma novidade no campo de investigação sobre a formação de professores no Brasil e no exterior. Pimenta e Lima (2008, p. 46-47) apresentam sucintamente o histórico do desenvolvimento dessa estratégia de formação, dizendo que O movimento de valorização da pesquisa no estágio no Brasil tem suas origens no início dos anos 1990, a partir do questionamento que então se fazia, no campo da didática e da formação de professores, sobre a indissociabilidade entre teoria e prática. Assim, a formulação do estágio como atividade teórica instrumentalizadora da práxis [...], tendo por base a concepção do professor (ou futuro professor) como intelectual em processo de formação e a educação como um processo dialético de desenvolvimento do homem historicamente situado, abriu espaço para um início de compreensão do estágio como uma investigação das práticas pedagógicas nas instituições educativas. Essa visão mais abrangente e contextualizada do estágio indica, para além da instrumentalização técnica da função docente, um proissional pensante, que vive num determinado espaço e num certo tempo histórico, capaz de vislumbrar o caráter coletivo e social de sua proissão [...]. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 157 Universidade Federal da Grande Dourados Esse trabalho de pesquisa em estágio baseia-se, portanto, nas concepções do professor como pesquisador da sua própria prática (PIMENTA et al., 2006) e da pesquisa em Ciências Humanas como forma de construção de redes dialógicas (AMORIM, 2004) entre sujeito e alteridade, universidade e escola, licenciando em formação inicial e professores em formação continuada. Tal proposta consiste na elaboração de um projeto de pesquisa, a partir de dados empíricos coletados em situação de estágio e com vistas à redação final de um artigo, centrado em uma das cinco linhas de investigação, traçadas pelo docente responsável pela disciplina2, como eixos possíveis para o seu desenvolvimento, a saber: (1) ensino-aprendizagem de língua materna; (2) ensino-aprendizagem de língua estrangeira; (3) literatura/cultura e ensino-aprendizagem de língua materna; (4) literatura/cultura e ensino-aprendizagem de língua estrangeira; (5) relações entre ensino-aprendizagem de língua materna e estrangeira. Tais eixos, como se vê, buscam estabelecer uma ponte entre as áreas de interesse dos licenciandos (estudos linguísticos e literários), classicamente concebidas pela organização curricular dos cursos de Letras no Brasil, e as problemáticas específicas da prática docente. Essa relação configura-se fundamental para o bom desenvolvimento da formação de professores de línguas e literaturas. A apresentação de alguns números é importante para o prosseguimento desta análise. Focaremos este estudo nos dados coletados durante o ano letivo de 2011, quando a disciplina Prática de Ensino de Português-Espanhol I, após processo de pré-inscrição dos alunos em vias de conclusão ou que já tivessem concluído o bacharelado no final de 2010, teve inscrição efetiva de 21 estudantes, 1 trancamento e 3 desistências, sob a alegação de impossibilidade de cumprimento da carga horária de estágio supervisionado. Dos 17 alunos que realmente frequentaram o curso, 2 apenas não apresentaram a versão final do trabalho de pesquisa em estágio. Dentre os 15 trabalhos desenvolvidos em várias versões ao longo do período – advirta-se que o processo integral de escrita e reescrita do texto até sua versão final valia 50% da média do primeiro semestre –, 7 situavam-se na linha de ensino-aprendizagem de língua estrangeira, 5 na de ensino-aprendizagem de língua materna, 2 na de relações entre ensino-aprendizagem de língua materna e estrangeira, 1 na de literatura/cultura e ensino-aprendizagem de língua estrangeira e nenhum na de literatura/cultura e ensino-aprendizagem de língua materna. Embora, decerto, esse reduzido universo de sujeitos investigados não sirva como base para nenhum tipo de generalização sobre os horizontes formativos em nível nacional, não se pode abrir mão de uma mínima interpretação qualitativa dessas escolhas e dos rumos de desenvolvimento dessas pesquisas – questões que serão analisadas a seguir. O próprio autor deste texto é o docente responsável pelas disciplinas Didática Especial e Prática de Ensino de Português/ Espanhol da Faculdade de Educação da UFRJ desde o primeiro semestre de 2010. 2 158 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados O QUE SIGNIFICA FAZER UMA ESCOLHA? Antes de iniciar a análise, leiam-se abaixo as versões finais dos títulos dados aos trabalhos para que seja possível ter uma aproximação mais concreta em relação à produção discente3: Linha – ensino-aprendizagem de língua estrangeira: • Trabalho 1: “O ensino de línguas estrangeiras no Brasil” • Trabalho 2: “O ensino de língua estrangeira além da gramática: aprendizagem e uso de técnicas de estudo” • Trabalho 3: “O ‘potunhol’ (sic): erro ou início do processo de aquisição do Espanhol/LE” • Trabalho 4: “O uso do pós-método em E/LE no ensino médio” • Trabalho 5: “La adquisición lexical y la comprensión lectora en lengua española en el sistema estadual de enseñanza media” • Trabalho 6: “La oralidad en las clases de Español/LE” • Trabalho 7: “Cómo las tecnologías de la información y de la comunicación (TIC) influencian las clases de E/LE” Linha – ensino-aprendizagem de língua materna: • Trabalho 8: “A abordagem da subjetividade nas questões de linguagens, códigos e suas tecnologias do Enem” • Trabalho 9: “A problemática da evasão escolar no Ensino Médio” • Trabalho 10: “A posição discursiva do estagiário no CAp-UFRJ” • Trabalho 11: “As tecnologias da informação e da comunicação (TIC) no processo de ensino-aprendizagem” • Trabalho 12: “Variação linguística no ensino fundamental” Linha – relações entre ensino-aprendizagem de língua materna e estrangeira: • Trabalho 13: “Relação entre Língua Materna e Língua Estrangeira: uma análise da interlíngua gerada pelo contato Português-Espanhol em turmas de Ensino Médio” • Trabalho 14: “Relações entre ensino-aprendizagem de língua materna e estrangeira: Como a LM participa no ensino-aprendizagem da LE – uma análise diagnóstica em sala de aula de E/LE” 3 Todos os estudantes que participaram desta atividade autorizaram a utilização de suas produções manuscritas, impressas ou digitais para ins de pesquisa. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 159 Universidade Federal da Grande Dourados Linha – literatura/cultura e ensino-aprendizagem de língua estrangeira: • Trabalho 15: “Lengua, cultura y literatura a partir de cuentos” A partir dos títulos dos trabalhos, pode-se perceber a complexidade da análise desses dados. Investigando com mais atenção os artigos cujos títulos apresentavam questões não específicas ou não vinculadas adequadamente à linha de pesquisa indicada, verificou-se que os trabalhos (9), (10) e (11) realmente constituíam interessantes investigações de problemáticas escolares, de uma maneira geral, ou relacionadas à inserção dos licenciandos no contexto do colégio de aplicação4, direcionado ao desenvolvimento da formação profissional dos futuros docentes. Nada nessas pesquisas aponta aspectos específicos do ensino/aprendizagem de língua portuguesa – linha em que se encaixaram –, o que evidencia que o campo de pesquisas em língua materna representou para alguns estudantes uma espécie de espaço neutro para a investigação de questões pedagógicas gerais observadas em situação de estágio. E isso, de certo modo, foi sendo permitido e ratificado pelo processo de orientação ao longo do período. Essa constatação soma-se ao fato de o trabalho (8), que faz uma análise da presença de marcas enunciativas de subjetividade em enunciados de questões do ENEM 2009, ter sido apresentado fora do modelo de gênero discursivo científico proposto em aula para a condução da metodologia de investigação e para a produção dos textos de apresentação da pesquisa. Tal inadequação ao gênero proposto é notada aí, sobretudo, pela ausência de relação com o campo de estágio no projeto investigativo levado a cabo pela licencianda. Além disso, os trabalhos (13) e (14), pertencentes à linha de pesquisa sobre as relações entre ensino-aprendizagem de língua materna e estrangeira, foram realizados a partir de dados coletados e de observações realizadas pelas estagiárias em turmas de ensino médio da disciplina Espanhol. Portanto, as reflexões desenvolvidas neles a propósito da interface com a língua materna partiram de diferentes perspectivas de investigação situadas, prioritariamente, no campo da pesquisa em língua estrangeira. Sendo assim, apenas um trabalho – o (12) – abordou, apesar de seu título estar um tanto ou quanto indefinido e de seu desenvolvimento não ter avançado o quanto poderia, uma problemática de pesquisa em estágio específica e adequada à linha de investigação sobre o ensino/aprendizagem de língua portuguesa. Isso representaria, então, falta de estímulo dos estudantes para a reflexão em torno das questões pertinentes às diferentes correntes de investigação ligadas ao domínio da língua materna? Ou uma ampla inclinação desses licenciandos para a profissionalização como docentes de Espanhol/LE? Uma e outra hipótese parecem não se sustentar se se contrastarem essas escolhas de investigação com dados extraídos de falas espontâneas dos estudantes em sala de aula e em locais de estágio a respeito de suas preferências pelas áreas de Língua Portuguesa ou de Língua Espanhola. Ao final de É preciso ressaltar que o CAp-UFRJ não é o único campo de estágio dos estudantes da Prática de Ensino de Português-Espanhol desta universidade e que, até o ano letivo de 2012, o colégio não oferecia a disciplina Língua Espanhola em suas grades curriculares dos ensinos fundamental e médio. 4 160 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados um ano de convivência semanal, é possível afirmar que, num total de 17 estudantes, apenas 3 explicitaram sua inserção no mercado de trabalho – mais precisamente em curso livres, pré-vestibulares e escolas privadas – como docentes de Espanhol, assim como seu desejo de permanecerem e continuarem se especializando na área; 1 integra o mercado de trabalho de cursos livres e já faz parte do curso de mestrado de um programa de pós-graduação em Língua Espanhola; 3 não se encontram empregados na área de Espanhol, mas gostariam de integrar esse mercado de trabalho após a licenciatura; 3 já atuam no mercado de trabalho de Português e explicitam vontade de se manterem e de se especializarem nesta área; 3 não atuam no mercado de trabalho de Língua Portuguesa, mas afirmaram desejo de ingressar neste campo de docência após a licenciatura; 2 lecionam majoritariamente Língua Espanhola no mercado de trabalho, mas já se encontram engajados em pesquisas de iniciação científica em língua materna; 1 leciona majoritariamente Língua Espanhola no mercado de trabalho, mas almeja ingressar na pós-graduação na área de língua materna; 1 encontra-se temporariamente fora do mercado de trabalho docente e almeja ingressar na pós-graduação em Literatura Portuguesa. Nota-se, assim, ao contrário do que ocorreu nas escolhas pelas linhas de pesquisa, uma predominância de estudantes – 9 no total – que se identificam com a área de estudos de língua materna, embora alguns deles tenham alcançado seus primeiros postos profissionais no mercado de trabalho de língua estrangeira. Além disso, tanto no ambiente interno da universidade quanto no contexto nacional da área de Letras e Linguística, são amplamente reconhecidos o protagonismo, a tradição e a qualidade acadêmica do setor de ensino de Língua Portuguesa e dos grupos de pesquisa sobre questões ligadas à língua materna da Faculdade de Letras da UFRJ. Outro fator importante a ser destacado, e que vem a tornar mais intrincada a análise das escolhas de temas de investigação realizadas pelos licenciandos da Prática de Ensino de Português-Espanhol, é o desempenho mais positivo em Língua Portuguesa que a maioria dos licenciandos que optaram pela realização de suas pesquisas em situações de estágio em Língua Espanhola obteve nas provas de regência do segundo semestre desse ano letivo. Desse modo, é preciso buscar outras hipóteses que expliquem essas escolhas e que principalmente ofereçam uma base para o entendimento da opção majoritária pela língua estrangeira nos trabalhos de investigação discente. Talvez seja possível elencar algumas delas, a partir de discussões realizadas em aula a respeito do histórico de formação dos estudantes nos cursos de bacharelado e licenciatura, bem como a partir do conhecimento compartilhado pelo docente da disciplina em relação às diferentes realidades de estágio: a. inserção dos professores regentes das instituições de estágio no meio acadêmico de língua estrangeira – este fator parece ser numericamente preponderante em relação às demais hipóteses, pois a grande maioria dos estagiários de língua espanhola estava sob a responsabilidade de um professor regente que possui doutorado na área de Letras e que está ativa e produtivamente en- Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 161 Universidade Federal da Grande Dourados gajado em pesquisas relevantes para a formação de professores de Espanhol/ LE – note-se que dos 7 estagiários que acompanharam esse docente em uma instituição pública federal de ensino do Rio de Janeiro, 3 optaram pela linha de pesquisa ensino/aprendizagem de língua estrangeira, 1 optou pela linha relações entre ensino/aprendizagem de língua materna e estrangeira e 1 pela linha literatura/cultura e ensino/aprendizagem de língua estrangeira; b. influência da cultura institucional em vigor no campo de estágio – foi visível o fato de que colégios que valorizam as experimentações e realizações de práticas investigativas e reflexivas ao longo do processo de estágio e, sobretudo, que se mostram abertos ao diálogo com a universidade e assumem uma posição efetiva de co-orientação dos estagiários, acabaram influenciando positivamente na escolha das linhas de pesquisa – não à toa, os 3 estagiários de Português do CAp-UFRJ, instituição tradicionalmente incorporadora de diferentes propostas de desenvolvimento reflexivo do estágio e institucionalmente co-responsável pela formação de professores no âmbito universitário, realizaram pesquisas sobre ensino/aprendizagem de língua materna a partir de dados coletados nessa instituição; c. o fato de o primeiro semestre da Prática de Ensino ser dedicado à discussão de aspectos teórico-práticos relativos ao ensino de Espanhol/LE – este aspecto torna-se mais claro a partir de casos como os dos estudantes que realizaram os trabalhos (5) e (14), que apesar de demonstrarem intimidade ou prévio engajamento com a área de estudos de língua materna, optaram por desenvolver seus projetos de pesquisa a partir de dados coletados em turmas de estágio de língua estrangeira, utilizando inclusive bibliografia estudada na didática especial de Espanhol ou indicada pelo professor da Prática de Ensino – pesquisador ligado às áreas de pesquisa em Estudos Hispânicos e formação de professores de Espanhol/LE; d. falta de autonomia dos estudantes de fim de graduação em tarefas de pesquisa em geral – tal hipótese, possivelmente, soma-se às dos itens (a) e (c), na grande maioria dos casos, e poderia ser entendida como um dos fatores que aumentaram a motivação para que um grande número de estudantes optasse por temas de língua estrangeira em suas pesquisas, tendo em vista, logo, que o auxílio da bibliografia estudada no primeiro semestre e fornecida pelo professor da Prática de Ensino lhes pudesse servir como fundamentação teórica para os trabalhos de investigação – essa insuficiência de base epistemológica, perceptível pela dificuldade de apropriação do discurso acadêmico e de desenvolvimento do texto escrito dentro das regras do gênero científico por parte de alguns estudantes, fica visível nos resultados finais dos trabalhos (2) e (3); e. pouca relação entre as bases teóricas da formação inicial e a prática docente – vê-se aqui outro fator que pode estar ligado a todos os anteriores como um dos condicionantes principais para as escolhas não só das linhas como 162 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados também dos temas de investigação definidos ao longo do processo – veja-se que, entre todos os trabalhos, apenas os de números (5), (6), (8), (12), (13) e (15) focalizam já em seus títulos tópicos teóricos abordados nas disciplinas da Faculdade de Letras5, no entanto, após exame atento das referências bibliográficas expostas nessas produções discentes, chegou-se à constatação de que somente (6), (8) e (12) realmente utilizaram referencial teórico advindo da formação oferecida nos cursos de línguas e linguística, embora houvesse total abertura e incentivo para que os licenciandos/pesquisadores realizassem essa ponte entre as disciplinas do bacharelado e da licenciatura. Todos os outros trabalhos abordaram tópicos tradicionalmente discutidos pelas disciplinas da Faculdade de Educação e utilizaram bibliografia indicada pelo professor da Prática de Ensino e, em alguns casos, pelos professores regentes do estágio. AINDA A ARTICULAÇÃO ENTRE TEORIA E PRÁTICA Como se viu acima, a falta de articulação entre os eixos teóricos da formação acadêmica inicial nos campos dos estudos linguísticos, literários e culturais e os contextos e saberes da prática docente em língua materna e estrangeira parece estar no centro, ao fim e ao cabo, da maior parte das problemáticas examinadas até aqui, no que concerne às escolhas e aos caminhos de desenvolvimento das pesquisas em estágio realizadas pelos licenciandos da disciplina Prática de Ensino de Português-Espanhol da UFRJ. Não se pode deixar de notar, a título de exemplo, além das questões elencadas acima, a baixíssima incidência, nesta turma, de trabalhos que trouxessem questões relacionadas aos estudos de literatura e cultura, que constituíam duas linhas de pesquisa no início do processo, mas que acabaram contando com a realização de apenas um trabalho. Ao que parece, tanto a tradição acadêmica quanto a escolar vêm afastando, com muita intensidade, as problemáticas dos estudos literários, sobretudo, das políticas curriculares para o ensino de línguas materna e estrangeira adotadas no Estado do Rio – situação esta similar à de muitas outras localidades do país. Tal inconsistência na articulação entre reflexão teórica sobre linguagem e literatura e o campo da prática docente revela-se ainda, por um lado, na falta de domínio do discurso acadêmico já apontada, refletida nos casos mais graves pela incompreensão de alguns estudantes em relação aos limites e à relevância de itens clássicos do desenvolvimento de textos monográficos; e, por outro, na falta de resistência, mesmo dos licenciandos cujo grau de letramento acadêmico e de inserção na pesquisa científica é mais alto, em relação aos aspectos normativos sugeridos pelo docente da Prática de Ensino para a elaboração do texto final da pesquisa. Para que se entenda melhor essa 5 Para facilitar a leitura, repito a seguir os títulos dos trabalhos referidos e destaco em negrito palavras-chave que indicam aí conhecidos tópicos teóricos abordados em disciplinas do curso de Letras: (5) “La adquisición lexical y la comprensión lectora en lengua española en el sistema estadual de enseñanza media”, (6) “La oralidad en las clases de Español/LE”, (8) “A abordagem da subjetividade nas questões de linguagens, códigos e suas tecnologias do Enem”, (12) “Variação linguística no Ensino Fundamental”, (13) “Relação entre Língua Materna e Língua Estrangeira: uma análise da interlíngua gerada pelo contato do Português-Espanhol em turmas de Ensino Médio” e (15) “Lengua, cultura y literatura a partir de cuentos”. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 163 Universidade Federal da Grande Dourados colocação, é importante relembrar a vinculação desenvolvida por Marcuschi (2002) entre gêneros, tipos, esferas e suportes, pois embora tenhamos, neste caso, o suporte impresso como um fator de equivalência para todos os trabalhos, sabemos que a esfera (ou o domínio) de circulação dos textos científicos é muito ampla e fragmentada. Com isso, conceber o “artigo” como gênero possivelmente endereçado a distintas comunidades acadêmicas – formadas historicamente dentro das grandes áreas Educação e Letras, Linguística e Artes – é reconhecer a diferenciação de suas marcas linguísticas e enunciativas e de suas articulações tipológicas, de acordo com cada tradição discursiva. Um forte exemplo dessa flexibilidade genérica, que reforça a noção de que os gêneros “são formas verbais de ação social relativamente estáveis realizadas em textos situados em comunidades de práticas sociais e em domínios discursivos específicos” (ibid., p. 25 – grifos nossos), é a aceitação do ensaio – gênero que permite mais liberdade de estilo, expressão subjetiva e recriação/hibridação dos modos de organização textual – como produto acadêmico legítimo (muitas vezes sinônimo de artigo) para pesquisadores de diferentes subáreas, tais como literaturas, estudos culturais, políticas educacionais, teoria e análise do currículo, análise do discurso, linguística aplicada etc., muitas das quais serviram de parâmetro teórico, inclusive, para diversos trabalhos elaborados nas pesquisas em estágio. Era de se esperar, portanto, um maior movimento de renegociação do formato de gênero apresentado à turma devido à influência de distintos domínios acadêmicos que constituem os horizontes de formação desses estagiários, o que praticamente não ocorreu. Reproduzir-se-á abaixo, a título de esclarecimento, o guia de trabalho distribuído aos alunos: Roteiro de trabalho: Pesquisa em Estágio 1- Capa: deve conter cabeçalho (UFRJ / FE / FL), título, aluno, menção ao tipo de avaliação desenvolvida como critério parcial de aprovação na disciplina Prática de Ensino de Português/ Espanhol, professor, data (semestre e ano); 2- Introdução: deve conter a delimitação do tema e do problema da pesquisa. É aconselhável destacar uma pergunta que sirva como guia de desenvolvimento do trabalho; 3- Justificativa: deve explicitar o motivo que levou o estudante/pesquisador a escolher o tema e o enfoque de investigação; 4- Objetivos: devem delimitar com clareza o objetivo geral e os objetivos específicos da pesquisa, lembrando que o geral é o foco da investigação e os específicos constituem questões adjacentes ao problema principal que não podem ser ignoradas pelo pesquisador ao longo da sua trajetória de análise. Atenção: tais questões só devem ser formuladas como objetivos específicos na medida em que auxiliem a reflexão sobre o objetivo geral; 5- Fundamentação teórica: deve desenvolver conceitos teóricos que permitirão o aprofundamento da reflexão sobre o(s) objeto(s) de pesquisa. É importante neste ponto demonstrar, de maneira clara e coerente, a filiação a uma determinada linha teórica ou o modo como o projeto quer relacionar autores e questões teóricas de bases diferenciadas. Atenção: a fundamentação teórica deve ser adequada ao objetivo central da pesquisa; 164 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados 6- Metodologia: deve descrever, primeiramente, o método utilizado para a geração e coleta de dados e o resultado quantitativo desta coleta, evidenciando a adequação deste método com o marco teórico e com os objetivos da pesquisa. Em seguida, deve indicar os procedimentos utilizados na interpretação qualitativa desses dados. Atenção: os dados devem ser gerados e coletados em situação de estágio e essa coleta pode estar ligada a alguma proposta de co-participação do estagiário na escola, caso isto seja previamente negociado com o professor regente; 7- Análise de dados: deve apresentar a análise qualitativa dos dados gerados e coletados em situação de estágio, a partir da fundamentação teórica e da metodologia escolhidas; 8- Resultados/Considerações finais: deve indicar os principais resultados obtidos com a pesquisa, propiciando uma discussão sobre as implicações desses resultados para a reflexão sobre a prática docente no ensino de línguas. Atenção: é aconselhável neste fechamento uma retomada dos pontos positivos e/ou dos limites da teoria escolhida no desenvolvimento da reflexão. Tente indicar com clareza a contribuição do seu trabalho para o campo da Prática de Ensino de Português/Espanhol; 9- Referências: lista de bibliografia (dentro das normas da ABNT) utilizada na investigação. Não deve incluir itens que não estejam claramente referidos no texto; 10- Anexos: materiais utilizados como corpora; se possível e necessário, cópia dos dados obtidos. OBS 1: O texto deve ter no mínimo 7 laudas. A capa, a bibliografia e os anexos não entram nesta contagem de laudas. Formatação: Times New Roman, 12, entre linhas 1.5, papel A4, margens (superior/inferior/esquerda/direita) de 2,5 cm. As páginas devem estar numeradas a partir da introdução. OBS 2: As referências feitas no corpo do texto devem vir entre parênteses, com o sobrenome do autor, ano da publicação e página. É interessante notar que, de todos os trabalhos, o único que apresenta marcas enunciativas mais visíveis de resistência à incorporação deste modelo genérico foi o da linha de pesquisa literatura/cultura e ensino-aprendizagem de língua estrangeira, cuja autora possuía realmente uma prévia inserção no campo da pesquisa literária. Nos outros trabalhos, em lugar de resistência ao protótipo textual ligado a uma determinada concepção monográfica de escrita acadêmica, que poderia logicamente ser percebido como inadequado e renegociado através do processo individual de orientação conduzido pelo professor da Prática de Ensino de acordo com os distintos interesses e caminhos encontrados pelos licenciandos/pesquisadores, o que se viu, frequentemente, foi a ampliação – por vezes exagerada e incoerente – da parte de fundamentação teórica em detrimento dos itens metodologia, análise de dados e resultados, ou vice-versa. Isso demonstra graus maiores e menores de intimidade com a leitura teórica ou de engajamento reflexivo na prática de estágio, qualidades que, quando combinadas, são capazes de reposicionar o estagiário para o lugar de pesquisador do processo educacional de que também faz parte, ainda que indiretamente na maior parte do tempo. Nos casos em que tal combinação não se deu, a escapatória dos alunos foi ora o investi- Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 165 Universidade Federal da Grande Dourados mento na teoria sem considerar sua pertinência para a análise de contextos específicos vivenciados na sala de aula, ora o estabelecimento de estatísticas ou o alongamento de relatos das situações de estágio – no intuito de manter a “objetividade” da pesquisa – desprovidos, contudo, de uma base teórica que os auxiliasse na percepção de aspectos que fossem além do senso comum. Por isso, seria interessante destacar aqui os resultados obtidos por alguns trabalhos desenvolvidos no estágio da licenciatura em Espanhol, os quais demonstraram mais abertura às questões específicas da língua e da cultura estrangeiras, em suas distintas (e às vezes problemáticas) inserções no contexto real dos processos de ensino-aprendizagem ocorridos na escola pública, e que assim puderam suscitar, ao longo do processo de investigação e de (re)escrita, formas produtivas de reposicionamento discursivo de seus autores: que, não sem atropelos e tensões, se moveram do lugar de espectadores passivos da prática docente ou de pesquisadores objetivos e distanciados em direção ao de participantes ativos do cotidiano escolar – professores em formação que, ao mesmo tempo, estavam aprendendo a ser pesquisadores da atividade pedagógica. Tal movimento exige, ou deveria exigir, evidentemente, a reapropriação/reconformação de certas tradições investigativas e, consequentemente, dos modelos genéricos de configuração de pesquisa vigentes. No trabalho “O ensino de línguas estrangeiras no Brasil”, por exemplo, o processo de desenvolvimento da pesquisa passou por uma nítida evolução qualitativa, obtida através do esforço de orientação, que respondeu criticamente ao tom prescritivo e generalizante mantido pelo licenciando nas primeiras versões do trabalho. Veja-se o seguinte fragmento: O presente trabalho visa mostrar as diferentes formas de ensino de língua estrangeira (espanhol) nas escolas públicas do Estado do Rio de Janeiro [...]. Buscaremos as diferentes abordagens em relação ao material didático para que possamos incluir ou excluir opções para um melhor aproveitamento dos mesmos. (Trabalho 1 - 2ª versão)6. Além de prescritiva, tal colocação se apresenta como problemática por sinalizar determinada crença dos professores em formação inicial de que as possibilidades de intervenção docente nos processos educativos se esgotam nos procedimentos de montagem ou produção de materiais didáticos. É interessante notar que, no caso desse estagiário, a substituição do tom prescritivo pela perspectiva crítico-colaborativa (PIMENTA et al., 2006) foi paralela ao aprofundamento da base teórica da análise. Ao se aproximar da crítica desenvolvida por Grigoletto (2002, p. 103) em relação ao “uso que o professor faz, ainda que de forma inconsciente, de seu papel de sujeito detentor de um saber que lhe é conferido Todos os trabalhos de alunos citados doravante estão identiicados apenas pela numeração entre parênteses – com vistas a manter o anonimato dos colaboradores –, encontram-se inéditos e foram cedidos ao banco de dados do Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão em Formação de Professores de Línguas (FORPROLI), da Faculdade de Educação da UFRJ, o qual o autor do presente artigo integra na qualidade de pesquisador. Devido a isso, os textos não constam da lista de referências bibliográicas. 6 166 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados institucionalmente”, atitude esta que cultiva “uma postura passiva no aluno”, visto como receptor de conhecimentos inquestionáveis, o licenciando começou a problematizar o seu próprio lugar de observador distanciado que não se envolve com os sujeitos participantes da pesquisa e que aparentemente contém a receita para a melhoria do trabalho pedagógico. Essa posição assumida pelo pesquisador seria igualmente responsável pela manutenção da figura do professor da escola num lugar de passividade em relação às estratégias didáticas renovadoras. Por isso, na última versão do trabalho, o autor modaliza seu discurso e se reposiciona, entendendo-se agora como o agente propiciador de uma reflexão cujo coenunciador principal são os profissionais da escola campo de estágio, ainda que nutra a ambição de pintar um panorama totalizante de modo a alcançar a figura abstrata de uma certa comunidade acadêmica: [...] este trabalho tem como objetivos entender como é realizado o processo de ensino de língua espanhola em turmas do ensino médio de um colégio estadual da cidade do Rio de Janeiro [...], compreender as diiculdades encontradas e mostrá-las aqui. A professora e os alunos serão nossa fonte de pesquisa e por intermédio dos mesmos buscaremos os fatores que inluenciam positiva ou negativamente o ensino do Espanhol como língua estrangeira no Brasil. (Trabalho 1 - 5ª versão) Já na pesquisa intitulada “La adquisición lexical y la comprensión lectora en lengua española en el sistema estadual de enseñanza media”7, a perspectiva etnográfica do trabalho faz o pesquisador perceber, desde a introdução, a necessidade de investigar questões socioculturais relacionadas ao processo de ensino-aprendizagem de LE numa escola pública da rede estadual do Rio de Janeiro: “O sucesso de um processo de ensino/aprendizagem, de um modo geral, depende de circunstâncias adequadas, não só no ambiente da sala de aula, mas também na estrutura extraclasse”8 (Trabalho 5 - 2ª versão - tradução livre). Isso o fez reduzir demasiadamente o quadro teórico do trabalho, sobretudo no que diz respeito às problemáticas linguísticas relativas à aquisição lexical e à compreensão leitora. A consequência disso é a não problematização do autor em relação à concepção estabilizada de léxico como um conjunto de formas e significados dotado de “autonomia” perante o contexto linguístico e discursivo. Tal concepção acompanha a ideia de língua como sistema abstrato, desconectado da atividade enunciativa concreta, e tem consequências para a didática de LE, na medida em que leva o docente a reproduzir métodos tradicionais de ensino calcados na apresentação de listas de vocabulário que desconsideram, muitas vezes, a variação linguística, a diferença de sentido que uma palavra pode ter em distintas construções sintáticas, a mudança pragmática, os diferentes valores ideológicos sócio-historicamente construídos, a evolução diacrônica da língua etc. Desse modo, o critério docente de separação dos padrões de avaliação de leitura e vocabulário – que pode levar equivocadamente o aluno da escola a conceber a noção de sentido como Os alunos que optaram pelas linhas de pesquisa (2) “ensino-aprendizagem de língua estrangeira”, (4) “literatura/cultura e ensino-aprendizagem de língua estrangeira” e (5) “relações entre ensino-aprendizagem de língua materna e estrangeira” puderam escolher o idioma (português ou espanhol) em que desenvolveriam os seus trabalhos. 8 Texto original escrito em espanhol: “El éxito de un proceso de enseñanza/aprendizaje, de un modo general, depende de adecuadas circunstancias, no sólo en el ambiente de clase, sino también en la estructura extra clase”. 7 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 167 Universidade Federal da Grande Dourados algo infinitamente repetível nos mais diversos gêneros e textos –, ratificado pela análise do licenciando, diminui, em parte, a abrangência crítica de sua discussão.9 Apesar disso, os resultados obtidos não deixam de considerar a relação entre os problemas socioeducacionais e as habilidades linguísticas, o que demonstrou ser um viés de reflexão profícuo para as discussões empreendidas na turma de Prática de Ensino. Ao estabelecer, por exemplo, a relação entre os índices de assiduidade e de desempenho, em questões da avaliação bimestral do colégio relativas à compreensão textual e ao conhecimento dos itens lexicais, de turmas dos turnos da tarde e da noite de uma escola estadual da zona sul do Rio de Janeiro, o estagiário chegou ao seguinte resultado: [...] salta à vista a média de frequência muito reduzida no horário noturno, em que só 1/4 dos aprendizes apresentam mais de 60% de frequência às aulas. Comparando à média de frequência no horário da tarde, em que 2/3 dos aprendizes frequentaram mais de 80% das aulas do semestre, e também ao desempenho em ambos os horários, se vê como algo proporcional a frequência às aulas e o desempenho efetivo nas habilidades de compreensão leitora e lexical de LE.10 (Ibid. - tradução livre). Essa experiência foi interessante, sobretudo porque mostrou um avanço e um limite simultaneamente presentes na pesquisa em situação de estágio, tarefa que, por um lado, sinaliza questões fundamentais que emergem a partir da observação dos processos de ensino-aprendizagem vivenciados no ambiente escolar, mas que, por outro, não deixa de reiterar/assimilar lugares-comuns e/ou procedimentos metodológicos pouco significativos. Neste caso específico, isto se deve, sem dúvida, à superficialidade do diálogo empreendido pelo licenciando com a bibliografia pertinente à sua discussão. Entretanto, vale ressaltar que, mesmo em trabalhos com mais aprofundamento dos quadros teóricos, notou-se que, em geral, os textos das pesquisas em estágio, ainda que tangenciem o oposto, reafirmam uma crítica já feita por Authier-Revuz (1998, p. 123) em relação à “encarnação” do discurso científico em gêneros textuais responsáveis pela sua divulgação, os quais não realizam, segundo ela, uma salutar relativização da Ciência por meio da “consideração da história e das pessoas no processo de produção de conhecimentos”. Outra pesquisa significativa intitula-se “La oralidad en las clases de Español/LE”. O trabalho partiu da comparação de dados empíricos obtidos através da transcrição 9 É interessante recordar aqui uma consideração de Bakhtin ([1929] 2002, p. 94) a respeito do processo de assimilação de palavras no estudo de línguas estrangeiras: “O essencial desses métodos [de línguas estrangeiras vivas] é familiarizar o aprendiz com cada forma da língua inserida num contexto e numa situação concretas. [...] Em suma, um método eicaz e correto de ensino prático exige que a forma seja assimilada não no sistema abstrato da língua, isto é, como uma forma sempre idêntica a si mesma, mas na estrutura concreta da enunciação, como signo lexível e variável”. Ao reletir sobre a experiência de fazer um dicionário Espanhol-Português/Português-Espanhol, González (2006, p. 51-52) parte de um ponto de vista teórico que conirma essa crítica acerca da hipótese de apreensão absoluta dos sentidos por meio da sistematização lexical: “Un diccionario, cualquiera que sea, siempre será, en la mejor de las hipótesis, una instantánea [...] de algo que no deja nunca de moverse como la lengua, que funciona en discursos, se concreta en textos y, además, es constitutivamente heterogénea”. 10 Texto original escrito em espanhol: “[...] salta a la vista la media de frecuencia demasiado reducida en el horario nocturno, donde sólo 1/4 de los aprendices presentan más que el 60% de frecuencia a las clases. Comparándose esta a la media de frecuencia en el horario de la tarde, donde 2/3 de los aprendices frecuentaron más del 80% de las clases del semestre, y también al desempeño en ambos horarios, se ve como algo proporcional la frecuencia a las clases y el desempeño efectivo en las habilidades de comprensión lectora y léxica de LE.” 168 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados de aulas gravadas em turmas de um conceituado curso livre de espanhol e numa turma de ensino médio de uma escola técnica federal do Rio de Janeiro (campo de estágio da autora). Nele, realiza-se uma interessante defesa da incorporação de estratégias didáticas voltadas para a aquisição das habilidades orais, não só em salas de aula de cursos livres, mas também nas escolas de educação básica. Leia-se o seguinte fragmento a título de exemplificação: As atividades de produção oral são possíveis em todos os ambientes de ensino de língua estrangeira e suas relações com a língua materna são consideradas normais nos lugares analisados. Pode-se perceber que no ensino médio, embora os alunos possuam menos luência na língua espanhola, com apenas 6 meses de aulas de espanhol são capazes de compreender e argumentar sobre um tema, ainda que seja em sua língua materna. Algo que em um centro de idiomas demora um pouco mais para ocorrer, pois estas atividades ocorrerão aí exclusivamente em língua espanhola.11 (Trabalho 6 - 4ª versão - tradução livre). Embora a reflexão da estudante não chegue a contestar dinâmicas pedagógicas levadas a cabo em nenhum dos espaços educacionais pesquisados, a produtividade de sua análise consiste no fato de, nela, a leitura e a utilização da bibliografia teórica estarem atreladas ao grupo de pesquisa de que a aluna faz parte desde o bacharelado12. Isso representa uma profícua relação entre distintos níveis de reflexão teórico-prática que se desenvolvem tanto nos ambientes do bacharelado e da pós-graduação quanto no do curso de licenciatura da mesma instituição. Para finalizar esta célere descrição de resultados de pesquisas em estágio, é fundamental também destacar a ótima relação entre teoria e análise de dados desenvolvida pelo trabalho “Relação entre Língua Materna e Língua Estrangeira: uma análise da interlíngua gerada pelo contato Português-Espanhol em turmas de Ensino Médio”. A partir do pensamento de Bakhtin ([1929] 2002, p. 87), segundo o qual, na língua materna, ao contrário do que ocorre na língua estrangeira, “o sinal e o reconhecimento estão dialeticamente apagados”, a autora desenvolve um estudo que coteja enunciados – recolhidos através da transcrição de entrevistas orais gravadas com alunos da escola de estágio – que projetam, de maneira paradigmática, o discurso escolar em torno da relação entre português e espanhol, com trechos de produções escritas dos estudantes 11 Texto original escrito em espanhol: “Las actividades de producción oral son posibles en todos los ambientes de enseñanza de lengua extranjera y sus relaciones con la lengua materna son consideradas normales en los lugares analizados. Se puede percibir que en la enseñanza media, aunque poseen menos luidez en la lengua española los alumnos con apenas 6 meses de clases de español son capaces de comprender y argumentar sobre un tema, aunque sea en su lengua materna. Algo que en un centro de idiomas tarda un poco más para que ocurra, pues estas actividades ocurrirán exclusivamente en lengua española”. 12 Como forma de exemplo, veja-se uma das citações em que a licencianda demonstra empenho de articulação de seu trabalho para a Prática de Ensino com produções acadêmicas relevantes desenvolvidas por seu grupo de pesquisa: “De acordo com a proposta apresentada na tese de Pinto (2009) – Transferências prosódicas do PB/LM na aprendizagem do E/LE: enunciados assertivos e interrogativos totais – a língua materna dos alunos apresenta um importante papel no processo de aprendizagem, pois se recorre à mesma como estratégia de comunicação, sobretudo se pensarmos na proximidade que existe entre o português y e espanhol: ‘É a interação entre os interlocutores o que faz com que a informação do entorno interaja com o dispositivo de aprender línguas, convertendo-se assim na língua que o aprendiz pode chegar a compreender e a assimilar em sua estrutura cognitiva para ser recuperada e usada, quando necessário, em outra ocasião (PINTO, 2009, p. 8)’” (Trabalho 6 - 4ª versão - tradução livre). A referida tese utilizada pela estudante (ver referências bibliográicas) foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2009. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 169 Universidade Federal da Grande Dourados do ensino médio em avaliação bimestral da disciplina Espanhol. Tais elementos servem de subsídio para a estagiária afirmar que [...] ao entrar em contato com a LE, o aluno involuntariamente tende a utilizar sua LM, já que esta se encontra tão fortemente internalizada, constituindo sua “roupa familiar”, e por isso, por estar tão incorporada à sua consciência, o sinal e o reconhecimento estão apagados para o indivíduo. Assim, em estágio inicial de LE, os alunos procuram encontrar para cada palavra uma palavra equivalente na própria língua. Dessa maneira, geram-se situações [...] em que os alunos, na tentativa de escreverem na LE, introduzem muitas palavras da LM [...]. (Trabalho 13 - 5ª versão). Aproveita-se para assinalar, a partir desse trabalho, que uma das marcas dos artigos produzidos no âmbito do curso de Prática de Ensino é a incorporação das políticas públicas de ensino de Línguas Estrangeiras no Brasil como justificativa fundamental para a formulação de problemas pertinentes à pesquisa em estágio. Tal inter-relação, em diversas outras esferas da pesquisa acadêmica em Letras e Linguística, não se faz necessária devido aos próprios recortes e enquadramentos teóricos adotados pela tradição científica da área – responsável, em grande parte, pelo silenciamento das discussões sobre a profissionalização docente: É sabido que ao entrar em contato com a língua estrangeira, o aluno percorrerá novamente o processo sociointeracional de construir conhecimento linguístico e aprender a usá-lo, percurso que já foi experienciado no desaio de aprender sua língua. De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais, a aprendizagem de uma língua estrangeira proporcionará, em linhas gerais: I) aumento do conhecimento sobre a linguagem que o aluno construiu sobre sua língua materna, por meio de comparações com a língua estrangeira em vários níveis; e II) possibilidade de o aluno, ao se envolver nos processos de construção de signiicados nessa língua, constituir-se em um ser discursivo no uso de uma língua estrangeira. Assim a partir do tema proposto pretende-se analisar como se dá essa relação entre língua materna e estrangeira, observando até que ponto aquela pode contribuir como uma experiência enriquecedora no processo de aprendizagem desta, e/ou em que medida a LM pode “ofuscar” a LE, desde que o papel desta não esteja bem esclarecido/ deinido para o aluno, ou seja, se o mesmo ainda a vê como uma mera conversão de palavras à sua LM [...] ou se já a vê como um sistema linguístico próprio. Entende-se, dessa forma, a aprendizagem de uma LE como expansão da capacidade discursiva do aluno [...]. (Ibid.) Como se percebe neste trabalho, ao que parece, nas melhores produções resultantes da experiência de pesquisa em estágio, nota-se não só uma consistente apropriação do discurso político-pedagógico contemporâneo, mas também o desdobramento argumentativo desse discurso – o que não deveria excluir, é claro, a possibilidade de sua relativização crítica – em um trajeto equilibrado de constituição de recortes, problemas e corpora, de eleição de estratégias metodológicas significativas, de aprofundamento das bases teóricas da reflexão em paralelo ao cuidado com as análises de dados e à produção de conclusões. 170 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados CONCLUSÃO Para finalizar a presente reflexão, ressalta-se a importância de se adotar a pesquisa em estágio, no formato de estudos etnográficos de cunho qualitativo, como uma estratégia simultânea de avaliação e acompanhamento de professores em formação inicial, pelo fato de a perspectiva etnográfica servir como instrumento para se compreender práticas escolares rotineiras e, por isso mesmo, já muito naturalizadas, o que pode indicar com mais clareza para os licenciandos necessidades reais de mudanças no que diz respeito às atividades docentes e aos processos educacionais. No prefácio ao livro Etnografia e educação: relatos de pesquisa, Erickson confirma, por exemplo, a produtividade da leitura de textos resultantes de pesquisas etnográficas realizadas no espaço da escola, uma forma de, segundo ele, começarmos a desvendar problemas silenciados ou vistos como um “beco sem saída”, seja por professores, alunos ou gestores: Por meio da atenção à pesquisa observacional e à descrição os autores são capazes de nos mostrar as práticas cotidianas que produzem resultados educacionais. Marx, ao falar sobre a pesquisa acadêmica, airmou que “o problema não é o de compreender o mundo, mas mudá-lo.” No entanto, antes que possamos mudar um aspecto do mundo, primeiro temos de ser capazes de vê-lo. A etnograia em ambientes educacionais, tornando visível a conduta habitual dos “procedimentos operacionais padrão”, mostra-nos os pontos estruturais dos processos educacionais que precisam mudar.13 (ERICKSON, 2009, p. 8 - tradução livre). Defendem-se aqui as vantagens da pesquisa em estágio por ela constituir uma importante articulação entre os saberes teóricos e os saberes da prática, trazendo para o interior do discurso acadêmico dados habitualmente ignorados pela tradição científica que constitui o currículo de formação inicial em Letras. Esta reflexão coincide com a crítica de Demo (2007, p. 60) à “má consciência” da instituição universitária, que, segundo ele, Esconde sobretudo dois vazios clamorosos: a proissionalização deiciente, já que é comum aceitar-se a idéia de que, ao sair da universidade e assumir um emprego, será mister aprender tudo de novo; a alienação da prática, espargindo a expectativa também comum de que educação superior é um entupimento teórico sistemático. Por isso, destacam-se como produtivos os exemplos de pesquisa em estágio em que a articulação entre teoria e prática tenha se dado de uma maneira efetiva ou pelo menos instigante. Acredita-se que o próprio texto de apresentação da pesquisa seja o instrumento mais adequado para medir a efetividade de tal articulação. Guardando, é claro, as devidas ressalvas em relação aos distintos graus de intimidade dos alunos de final de graduação com os gêneros do domínio acadêmico, concorda-se aqui com Texto original escrito em inglês: “hrough close observational research and description the authors are able to show us the everyday practices that produce educational outcomes. Marx said of scholarly inquiry “the problem is not to understand the world but to change it”. However, before we can change an aspect of the world we irst have to be able to see it. Ethnography in educational settings, by making visible the habitual conduct of “standard operating procedures”, shows us the structure points in educational processes that need change”. 13 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 171 Universidade Federal da Grande Dourados Amorim (2004, p. 93-94), ensaísta que assinala, em “Enunciado científico e texto polifônico”, capítulo da obra O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas Ciências Humanas, que “Uma escrita crítica deve revelar não somente o contexto de enunciação em que esse texto se produziu, mas também a presença do olhar teórico através do qual fatos e descrições podem emergir de um determinado contexto”. Tal colocação comprova a necessidade de aproximação dos estudantes dos cursos de formação de professores não a uma prática avessa à teoria e à pesquisa, infelizmente, frequente em um grande número de escolas públicas de educação básica, e sim a uma proposta de reflexão teórica sobre a prática (ou paralela à prática) por meio da qual os problemas e os efeitos dos modos de ensinar línguas e literaturas possam se transformar em objetos de interesse para o licenciando/pesquisador – experiência esta inicial e amadora, em alguns casos, mas que talvez possa despertar nas futuras gerações de professores a consciência dos benefícios que a perspectiva crítico-teórica pode trazer para a prática docente. Como se pôde perceber, este artigo não se deteve, intencionalmente, na explanação de uma “solução” didática que sirva como modelo para a melhoria dos cursos de formação de professores em nível nacional. A defesa da pesquisa em estágio, no contexto específico do curso de Português-Espanhol da UFRJ, liga-se à necessidade institucional de enfrentamento da dicotomia entre bacharelado e licenciatura, responsável aí, em muitos sentidos, pelo esvaziamento da relação entre teoria e prática, ainda presente na ótica dos licenciandos que chegam aos períodos de Prática de Ensino. Desse modo, a recontextualização da ideia de pesquisa embutida nesta proposta não escapa às tensões e problemáticas advindas da falta de tradição de se pensar teoricamente o exercício da prática profissional docente. Por isso, a “contribuição” sinalizada vem aqui acompanhada da (auto)crítica. O possível “avanço” caminha ao lado do movimento inevitável de resistência. Mas aquilo que resiste, é claro, não funciona como um elemento unicamente negativo; ao contrário, fomenta o desenvolvimento de diálogos mais significativos com o hibridismo curricular que constitui a formação inicial em Letras. Os resultados positivos e negativos obtidos com essa experiência relatada, por exemplo, demonstram que as bases epistemológicas, os instrumentos de análise e os padrões genéricos fetichizados pelo discurso bacharelesco são, amiúde, insuficientes para o aprofundamento de vários aspectos da reflexão sobre o processo pedagógico, mas ao mesmo tempo evidenciam que apenas pelo esforço de interpenetração do saber teórico com o prático é possível desnaturalizar problemas cristalizados no cotidiano escolar, fazendo com que o professor em formação se perceba paulatinamente como um profissional capaz de buscar e analisar alternativas relevantes para o seu contexto de atuação. 172 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados REFERÊNCIAS: AMORIM, Marilia. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas Ciências Humanas. São Paulo: Musa, 2004. AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. A encenação da comunicação no discurso de divulgação científica. In: ___________. Palavras incertas. Campinas: Ed. Unicamp, 1998, p. 107-131. BAKHTIN, Mikhail (VOLOCHÍNOV, V. N.). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, [1929] 2002. DEMO, Pedro. Educar pela pesquisa. Campinas, SP: Autores Associados, 2007. ERICKSON, Frederick. Foreword. In: MATTOS, Carmen Lúcia Guimarães de e FONTOURA, Helena Amaral da (Org.). Etnografia e educação: relatos de pesquisa. Rio de Janeiro: Eduerj, 2009, p. 7-8. GONZÁLEZ, Neide Maia. Reflexiones en torno a la experiencia de haber hecho un diccionario. Hispanismo 2004: Língua Espanhola. ABH/UFSC, Florianópolis/SC, 2006, p. 51-61. GRIGOLETTO, Marisa. Processos de significação na aula de leitura em língua estrangeira. In: CORACINI, Maria José (Org.). O jogo discursivo na aula de leitura: língua materna e língua estrangeira. Campinas, SP: Pontes Editores, 2002, p. 103-111. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, Ângela Paiva et al. (Org.). Gêneros textuais & Ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002, p. 19-36. PIMENTA, Selma Garrido et al. (Org.). Pesquisa em educação: alternativas investigativas com objetos complexos. São Paulo: Loyola, 2006. _____ .; LIMA, Maria Socorro Lucena. Estágio e docência. São Paulo: Cortez, 2008. PINTO, Maristela da Silva. Transferências prosódicas do Português do Brasil/LM na aprendizagem do Espanhol/LE: enunciados assertivos e interrogativos totais. 2009. Tese. (Doutorado em Letras Neolatinas). Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2009. Recebido em 29/03/2014. Aprovado em 20/04/2014. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 173 Universidade Federal da Grande Dourados ESTABELECENDO PARÂMETROS ENUNCIATIVOS PARA A AVALIAÇÃO DE RELATÓRIOS DE ESTÁGIO SUPERVISIONADO EM LÍNGUA PORTUGUESA ESTABLISHING ENUNCIATIVE PARAMETERS FOR EVALUATION OF PORTUGUESE SUPERVISED TRAINEESHIP REPORTS Silvana Silva* RESUMO: Constatamos que não há o estabelecimento de critérios de avaliação de estágios supervisionados em âmbito nacional. Cumpre a nós pensá-los a partir de pesquisas situadas em âmbitos regionais (DORNELLES, 2012). Este artigo tem como objetivo elaborar categorias analíticas para a avaliação de relatórios de Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa. Para realizar tal propósito, valemo-nos do aporte teórico da Linguística da Enunciação (FLORES e TEIXEIRA, 2005; FLORES et. al., 2009). Elencamos as categorias enunciativas que permitam demonstrar que o aluno se apropria do seu próprio planejamento durante a prática docente. Considera-se, portanto, o aspecto operacional da enunciação (ONO, 2007). Tomando os conceitos de Benveniste de índices essenciais e procedimentos acessórios de indicação de subjetividade (demonstrados em ARESI, 2011) e os conceitos agenciamento, apropriação, compreensão, reconhecimento (FLORES et. al, 2009), elaboramos uma reflexão metodológica. Apresentamos a análise de excerto da Apresentação de um (1) Relatório de Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa, orientado por mim no segundo semestre de 2012 na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), Bagé, RS. Temos como resultado que a Apresentação prima por uma progressiva ampliação do interlocutor, ‘tu-alunos’ para ‘vocês-alunos de EJA’, revelando então uma Apresentação bem-sucedida do Projeto de Ensino do Estágio. Palavras-chave: linguística da enunciação; indicação de subjetividade; estágio supervisionado em língua portuguesa; avaliação. ABSTRACT: We verified that there is no establishment of evaluation criteria of supervised traineeships nationwide. It behooves us to think of them departing from researches situated in regional areas (DORNELLES 2012). This paper aims to develop analytical categories for the evaluation of Portuguese supervised traineeship reports. To accomplish this purpose, we make use of the theoretical framework from the Enunciation Linguistics (FLORES and TEIXEIRA, 2005; FLORES et all, 2009.) We listed the enunciative categories that permit to demonstrate that the student appropriates of its own planning during the teaching practice. Therefore, it is considered the operational * Professora na Universidade Federal do Pampa/UNIPAMPA. E-mail: [email protected] Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 175 Universidade Federal da Grande Dourados aspect of enunciation (ONO, 2007). Taking Benveniste’s concepts of essential indices and accessories nominating procedures of subjectivity (demonstrated on ARESI, 2011) and the following concepts: agency, appropriation, understanding, recognition (FLORES et. all, 2009), we developed a methodological reflection. Here is the analysis of an excerpt from the presentation of one (1) report of Portuguese Supervised Traineeship, advised by me on the second semester of 2012 at the Federal University of Pampa (UNIPAMPA), in Bagé, RS. We have as a result that the presentation excels for a progressive magnification of the speaker, ‘thou- pupils’ to ‘you-YAE students’, thus revealing a successful presentation of the Traineeship’s Teaching Project. Keywords: linguistics of enunciation; indication of subjectivity; supervised traineeship in English; evaluation. CONTEXTUALIZAÇÃO: A NECESSIDADE DE PARÂMETROS PARA A AVALIAÇÃO EM EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA Avaliar é, desde sempre, uma das tarefas mais árduas do campo da Educação. Para agravar mais esse quadro, não encontramos documentos que estabeleçam parâmetros de avaliação para os discentes em conclusão do Curso Superior, em nosso caso, parâmetros gerais para avaliar o aluno durante a realização dos estágios supervisionados obrigatórios às licenciaturas1. A questão que nos move é a seguinte: como estabelecer critérios para avaliar a conversão do aluno-estagiário em professor? Dada a ausência de critérios gerais para tal questão, valemo-nos de princípios de ordem linguística para responder a tal questão. Tais princípios serão elaborados a partir da contribuição da Linguística da Enunciação, em especial o aspecto operacional da Enunciação (ONO, 2007). Por ora, apresentaremos uma revisão bibliográfica de alguns trabalhos sobre estágio supervisionado em ensino de línguas, procurando entrever neles critérios de avaliação (DORNELLES, 2012 e outros). O PROFESSOR EM FORMAÇÃO: AVALIANDO ANÁLISES DE RELATÓRIOS DE ESTÁGIO Silva (2012), organizador da obra ‘Letramento do professor em formação inicial: interdisciplinaridade no Estágio Supervisionado da Licenciatura’, nos apresenta onze (11) pesquisas sobre as narrativas escritas dos estagiários de diversos cursos de Licenciatura O SINAES/2003 (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior) visa à avaliação das instituições federais cuja principal política é a aplicação do ENC (Exame Nacional de Cursos). Veriique-se mais detalhes em: <http://portal.mec.gov. br/arquivos/pdf/sinaes.pdf>. O ENADE (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes), que integra o SINAES, tem o objetivo de aferir o rendimento dos alunos dos cursos de graduação em relação aos conteúdos programáticos, suas habilidades e competências. Em um exame do ENADE/LETRAS (2011), não constatamos a presença de nenhuma questão que versasse sobre a experiência do estágio supervisionado em língua portuguesa. Em linhas gerais, as questões centram-se em aspectos gerais de didática, teorias linguísticas e teorias literárias, isto é, o ENADE parece restringir a avaliação somente à formação dos primeiros anos do Curso de Letras. Mais detalhes, podem-se consultar as provas em: < http://portal.inep.gov.br/web/ guest/provas-e-gabaritos-2011>. 1 176 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados (Letras, língua portuguesa; Letras, literatura; Letras, língua inglesa, Matemática, História e Geografia) em universidades de diversos Estados do Brasil (Tocantins, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul). Dentre estes onze trabalhos, interessa-nos mais detidamente aqueles em que entrevemos critérios de avaliação do supervisor de estágio e que estejam mais voltados para a área de linguagem/ensino de língua(s). Selecionamos três artigos: Dornelles (2012); Gonçalves e Ferraz (2012) e Brito (2012). Os artigos serão apresentados de forma a que se tente responder às seguinte questão: 1) como distinguir experiências de estágio bem e mal-sucedidas?; 2) que critérios de avaliação subjazem a esta distinção? No capítulo ‘Desafios da Didatização da Escrita e da Gramática no Estágio Supervisionado em Língua Materna’, de Clara Dornelles, pretende-se investigar o modo como uma estagiária de Língua Portuguesa, na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) didatiza a escrita e a gramática em aulas do 9º ano do Ensino Fundamental. Conclui a autora, também supervisora de estágio, que “os resultados indicam que a principal dificuldade enfrentada pela aluna foi de ordem metodológica e ocorreu no momento de orientação dos alunos para a reescrita”. (2012, p. 79). Observa, além disso, que a estagiária reproduziu algumas formas tradicionais de ensino de escrita, tais como o recurso do sublinhado nos textos, bem como também tentou algumas novas formas de ensino de gramática e escrita, a saber, valorização dos debates orais previamente às atividades de escrita e percepção de que o conteúdo gramatical estava sendo aprendido paulatinamente nas atividades de escrita e não somente nas atividades de análise linguística. Uma citação é importante, pois indica, para nós, claramente, o método de leitura de Dorneles do relatório de estágio da aluna: Encontramos, no relatório da estagiária, alguns ‘sinais’ que demonstram que ela apreende a complexidade da escola; por exemplo, após as aulas de observação que precederam a regência, percebeu que muito do que planejara, ‘em teorias’, precisaria ser ‘modiicado e adequado às novas realidades’ (p.5) Essas novas realidades se referem ao (re)conhecimento da sua turma e das dinâmicas desse universo escolar especíico: os alunos têm diferentes níveis de maturidade, interessam-se por diferentes temas típicos da faixa etária; gostam de falar em situações espontâneas; estão acostumados com práticas e objetos tradicionais de ensino na aula de Língua Portuguesa; sua maior diiculdade na escrita é começar a escrever; tem diiculdade na leitura de textos longos; a leitura de textos com temáticas sociais pode suscitar a emergência de situações delicadas em sala de aula; (...) Reconhecendo esta complexidade da escola/sala de aula, a estagiária reconhece também que há outros elementos estruturantes da prática de ensino além da competência técnica. (DORNELLES, 2012, p. 69, grifos nossos). Para Dornelles (2012), além do par conceitual tradição/inovação metodológicas, o par conceitual tecnicidade/complexidade da realidade escolar influenciam sua avaliação do desempenho da estagiária. Logo, se o estagiário, durante sua prática, procurou mais inovar do que reproduzir e mais lidar com a complexidade do que se ater a técnicas, logo está apto a ser aprovado no estágio. Observamos que a capacidade de reconheciRaído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 177 Universidade Federal da Grande Dourados mento e (re) conhecimento de ‘sinais’ por parte do estagiário da realidade escolar bem como de reconhecimento e (re)conhecimento de ‘sinais’ do supervisor no relatório de estágio são características que conduzem positivamente à reflexão avaliativa da prática do estágio. No entanto, não percebemos no texto de Dornelles (2012) critérios linguísticos para o que chama de ‘sinais’. No capítulo ‘Teoria acadêmica e prática profissional na Licenciatura em Letras’, de Adair Vieira Gonçalves e Mariolinda Romera Ferraz, é analisada a relação entre o Estágio Supervisionado e a Grade do Currículo do Curso de Letras da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Constata-se que o ‘ensino’ é muito pouco abordado na grade teórico-prática do curso. A seguir, analisam relatórios de estágio. Para analisar os relatórios, os autores partem do referencial teórico do interacionismo sociodiscursivo postulado por Bronckart (2006). As categorias analíticas fundamentais do relatório são as seguintes: “1) autor: pessoa física – aluno-mestre da licenciatura em letras; 2) enunciador: pessoa social – aluno-mestre concludente da licenciatura em letras/professor em formação inicial; 3) destinatário: pessoa física – formador responsável pela disciplina de estágio supervisionado; 4) interlocutor: pessoa social – formador responsável pelo estágio supervisionado; 5) objetivo do texto: relatar ações desenvolvidas durante o estágio de observação e de regência, na educação básica. Comprovar o cumprimento do regulamento do estágio para obtenção do título de licenciado em letras. 6) circulação: esfera acadêmica; 7) conteúdo temático: exposição de aspectos teórico-metodológicos do estágio”. Observamos que Gonçalves e Ferraz são mais objetivos do que Dornelles (2012) no reconhecimento de ‘sinais’ que conduzem à avaliação do trabalho estagiário. A seguir, os autores analisam uma atividade de transposição didática em três (3) relatórios de estágio. Vejamos a forma como os autores analisam duas atividades práticas de um dos relatórios: “Encontramos a seguinte situação no relatório de estágio. Hoje explicamos para eles o que são ‘tipos e gêneros textuais”, e trouxemos de exemplos um texto informativo. Foi explicado o que é um acróstico e pedimos para ele produzir um com a Copa do Mundo com Exemplo (relatório 1) Entendemos que o conhecimento da distinção entre tipos e gêneros textuais nem sempre seja um conteúdo necessário ao aluno da educação básica. A nosso ver, enfatizar essa diferença é, na verdade, a manutenção de um ensino tradicional em que conceitos são mais importantes que o uso em si. Outra situação destacada no Relatório 1 foi o trabalho realizado com o gênero Charge. Apresentamos o relato: Hoje trabalhamos com o gênero Charge, explicamos o que é, o que aborda e para fazer interpretação de uma. Depois para descontrair, trouxemos uma Cruzadinha sobre a Copa do Mundo (Relatório 1) Do relato depreende-se que as atividades realizadas com o gênero Charge enfatizam o contexto de produção. Elas desenvolvem a capacidade de ação dos alunos; estes passam a ter domínio de situações comunicativas em que a charge se torna um gênero producente: contexto de crítica, de sátira, relativas a situações sociopolíticas; por exemplo, as quais, para produzirem efeito, precisam estar no conhecimento prévio 178 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados do leitor. Logo, pensamos, uma atividade adequada após a leitura de uma charge seria a produção de um texto do gênero argumentativo (artigo de opinião, carta argumentativa, por exemplo), em que o aluno pudesse expor sua opinião sobre o tema da charge. Todavia, os alunos-mestre utilizaram, em seguida, uma cruzadinha, gênero que, potencialmente, não contribui para a relexão/argumentação provocada pelo primeiro gênero. Portanto, revela-se, na transposição didática, uma deiciência no entendimento dos objetivos do gênero bem como do trabalho nessa perspectiva”. (GONÇALVES e FERRAZ, 2012, p. 124-125). Percebemos que, na avaliação do trabalho discente, além do par conceitual tradição/ inovação metodológicas, também presentes em Dornelles (2012), encontramos a díade coerência/incoerência entre proposta e desenvolvimento da atividade bem como atendimento ou não atendimento das expectativas do supervisor/destinatário do estágio. Entendemos que este último é de ordem eminentemente enunciativa, uma vez que enfatiza a relação intersubjetiva entre os interlocutores. É importante lembrar que a dimensão enunciativa é englobada já na própria teorização de Bronckart. Esta dimensão nos encoraja a buscar a proposição de critérios de ordem enunciativa para a avaliação de estágios supervisionados em língua portuguesa. A pergunta que de imediato surge é a seguinte: como se organizou esta relação de orientação? O supervisor estabeleceu critérios claros antes da prática de ensino propriamente dita ou esperou que o aluno já os tivesse em sua caminhada teórico-metodológico como aluno do Curso de Letras? Concluem Gonçalves e Ferraz que: “há absorção da teoria de gêneros textuais e dos documentos oficiais nos relatórios. Entretanto, é frágil a transposição didática”. (2012, p. 135). No capítulo ‘Diários reflexivos de professores de Língua Inglesa em formação inicial: o outro que (me) confessa’, de Cristiane de Paula Brito, são colocadas as seguintes questões: “que dizeres/saberes vem à tona no discurso dos estagiários? Como os estagiários concebem o ensino/aprendizagem de língua estrangeira? Qual é a imagem de língua e de professor de língua estrangeira construída pelo sujeito professor de línguas em formação inicial, ao tomar a palavra para refletir sobre sua própria experiência de regência?” (2012, p. 139). Baseando-se em teóricos da Análise do Discurso, como Pêcheux e Orlandi, a autora investiga a(s) memória(s) discursiva(s) que sustenta(m) a tomada de posição do discurso. Toma um corpus composto de 87 diários reflexivos de Estágio Supervisionado em Língua Inglesa produzidos por 28 estagiários. Observa que, em tais diários, o estagiário toma o ‘outro’ como confidente, alguém com que pode desabafar sentimentos de descobertas e decisões. Nesta posição discursiva, o estagiário pode se eximir de responsabilidades sobre a aula. (2012, p. 148). Além disso, observa o ‘apego excessivo’ dos estagiários ao plano de aula, esse ‘lugar de completude’. Vejamos, mais de perto, a avaliação de um dos relatórios: “Meu gesto de leitura se delineia no sentido de pensar a representação de interlocutor construída a partir da relação com o imaginário acerca do que considera apropriado, em termos de linguagem, em um diário relexivo. Eis alguns recortes: Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 179 Universidade Federal da Grande Dourados Então chegara o dia de dar aula sozinha.... e ainda dar aula de inglês! E para completar a professora avaliando. Com certeza não é uma situação tão confortável né? Os slides icarão tão lindos! Como uma boa teacher também pensei no homework! rsrsrs (Diário 2) Hoje darei minha primeira aula. Tudo certo com a preparação, a unidade é fácil, os exercícios também. Preparei atividades extras e para casa. Tecnicamente estou pronto exceto pelo fato de estar super nervoso e ansioso com a situação. Acho que é por que ica aquela preocupação de ‘será que vão gostar da aula?’, ‘cumpri os objetivos e fui bem?’ (diário 1). O outro parece ser representado por alguém próximo, familiar, com quem se teria intimidade suiciente para não usar uma linguagem formal. Ocorre, portanto, o apagamento da imagem do outro avaliador, que exerce poder sobre o professor em formação inicial e o coloca numa situação não ‘tão confortável’, já que, ainal, está ali para ensinar o que é ser uma boa teacher. Apaga-se o outro avaliador e se projeta um outro ‘eu’ do sujeito, como se o professor estagiário falasse consigo mesmo (à semelhança dos diários pessoais, por exemplo). Assim, o interlocutor é o outro do eu”. (BRITO, 2012, p. 146-147). Observa-se que as categorias avaliativas são as seguintes: dependência/autonomia do olhar do supervisor e formalidade/informalidade do relatório de estágio. Para Brito (2012), um estágio bem-sucedido depende da constituição de um ponto de vista ou posição discursiva por parte do estagiário de relativo distanciamento em relação ao supervisor e à universidade ou, de outra, forma, pela constituição de um ‘outro’ que não seja simplesmente da ordem da ‘confissão’. Conclui: “as análises apontam a necessidade de instigar o professor em formação inicial a tomar uma posição discursiva. (...) Não nego que o diário possa ser espaço de confissão. Há de haver uma confissão, mas trata-se daquela que (re) vela (a)o sujeito, que se lhe escapa, que resvala no momento mesmo do acontecimento, declarando que é sempre o outro que falta em mim”. (p. 162). Constatamos que, assim como no texto de Dornelles (2012), Brito (2012) também não explicita objetivamente quais foram os critérios discursivos utilizados para demarcar, delimitar os diários reflexivos e propor sua análise. A partir dessa revisão da literatura, podemos elencar os critérios de avaliação dos quais o supervisor pode se valer em sua avaliação dos estagiários: 1. 2. 3. 4. tradição/inovação metodológicas; percepção técnica/complexa da realidade escolar; coerência/incoerência entre proposta e desenvolvimento da atividade; atendimento ou não atendimento das expectativas do supervisor/destinatário do estágio; 5. dependência/independência do olhar do supervisor; 6. formalidade/informalidade do relatório. 180 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados No item a seguir, a partir da Linguística da Enunciação, procuramos elaborar critérios de avaliação que incidam diretamente sobre os relatórios de estágio, de forma a avaliar objetivamente o trabalho do estagiário, isto é, o professor em formação inicial. APORTE TEÓRICO-ANALÍTICO: A CONTRIBUIÇÃO DA LINGUÍSTICA DA ENUNCIAÇÃO PARA A AVALIAÇÃO DOS RELATÓRIOS ESCRITOS DE ESTAGIÁRIOS A Linguística da Enunciação tem, entre outras possibilidades, no dizer de Flores e Teixeira (2005, p. 93), “a vocação descritivista das teorias da enunciação, herdada de Saussure”. Além disso, a leitura elaborada por Ono (2007) para a noção de ‘enunciação’ em Benveniste revela a fertilidade da teoria enunciativa elaborada pelo autor, uma vez que é possível depreender cinco (5) aspectos dessa complexa noção teórica, quais sejam, aspecto vocal, aspecto operacional da conversão da língua em discurso, aspecto dialógico, aspecto da temporalidade, aspecto referencial. Para este trabalho, é relevante explorar o aspecto operacional, isto é, a passagem de critérios gerais, comuns aos estagiários (critérios de ordem linguística, do semiótico) à discursivização de tais critérios nos relatórios particulares de cada um dos professores em formação inicial (critérios de ordem semântica). Inicialmente, faremos uma leitura de dois artigos de Benveniste, a saber, ‘A natureza dos pronomes’ (Problemas de Linguística Geral I), onde está posta a noção de ‘operacionalização da língua’, por meio da noção de dêixis ou indicador de subjetividade e o texto a ‘Forma e sentido na linguagem’ (Problemas de Linguística Geral II), onde estão explicitadas as relações entre a ordem semiótica e a ordem semântica da língua. Em seguida, apresentaremos as definições de agenciamento, apropriação, apresentadas no Dicionário de Linguística da Enunciação (2009), as quais complementam o arcabouço teórico para a constituição da metodologia de análise. Em ‘A natureza dos pronomes’, Benveniste mostra que a língua apresenta dois planos: 1) o plano da sintaxe, que contempla os signos nominais, referenciais, e o paradigma da terceira pessoa, a chamada não pessoa; 2) o plano do discurso, que contempla signos ‘vazios’, auto-referenciais. A este segundo plano, pertencem uma série de signos cuja ‘realidade’ é algo de muito singular. Nas palavras do autor, “Eu só pode se definir em termos de ‘locução’, não em termos de objetos, como um signo nominal.” (PLG I, p. 278). Esta série de signos, que refere exclusiva e unicamente à instância de discurso, é chamada de ‘indicadores’ e inclui várias classes, tais como pronomes pessoais, advérbios e locuções adverbiais. O Dicionário de Linguística da Enunciação (2009) assim define os indicadores de subjetividade: deinição. Formas disponíveis na língua utilizadas para convertê-la em discurso, cujo emprego remete à enunciação. Nota explicativa. Os indicadores de subjetividade são formulados a partir da discussão de dêixis, redeinida por Benveniste como Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 181 Universidade Federal da Grande Dourados contemporânea da situação de discurso. Esses indicadores pertencem a várias classes de palavras – pronomes, verbos, advérbios, etc. – podendo ser divididos, de acordo com a noção que expressam, em indicadores de pessoa, tempo, lugar, objeto mostrado, etc. Sua condição de autorreferenciação deve-se ao fato de sua existência estar ligada à tomada da palavra, cuja realidade é a realidade do discurso” (FLORES et. al, 2009, p. 140). Aresi (2011), em estudo sobre a noção de indicador na obra benvenisteana, observa que há ampliação da concepção de indicador de subjetividade, desde o texto ‘A natureza dos pronomes’ (1956), passando por ‘A forma e o sentido da linguagem’ (1967), e culminando em ‘O aparelho formal da enunciação’ (1970). O autor pergunta-se: a que se refere a ideia de índices específicos e procedimentos acessórios da conversão da língua em discurso? Se os índices específicos incluem as clássicas designações de locutor/ interlocutor, tempo e espaço, os procedimentos acesssórios incluem todos os recursos da língua que passam pela atualização da língua pelo locutor. Conclui: É o todo da instância de discurso que está em jogo: o ato, com referência aos interlocutores e à situação em que ele ocorreu, bem como os caracteres formais do enunciado e seu agenciamento, sua sintagmatização. Nesse todo estão incluídos todos os níveis da análise linguística (entonação, escolha e formação lexical, organização sintática etc.), o que revela o peril radicalmente transversal da enunciação em relação aos níveis da língua. Perceber isso, portanto, é levar em conta não só os índices especíicos, mas também (e sobretudo) os procedimentos acessórios da enunciação. É levando todos estes aspectos em consideração na análise que podemos ver o sentido de cada ato enunciativo. (ARESI, 2011, p. 275). Oferecendo uma resposta provisória para a questão inicial deste item, qual seja, como os estagiários singularizam suas escritas dos relatórios de estágio convertendo-se em professores em formação inicial ou como ‘banalizam’ suas escritas permanecendo na condição de ‘estagiários’?, é possível dizer que devemos localizar os índices específicos de pessoa, tempo e lugar e os procedimentos específicos de recursos sintáticos em cada ato enunciativo que constitui os relatórios de estágio e reconhecer, nesse sistema de indicação, se eles apontam tal escrita no sentido de um relatório autônomo, coerente, formal, inovador ou no sentido de um relatório dependente, incoerente, informal e tradicional, ou na direção da mescla de algumas dessas características. Com o objetivo de esclarecer a delimitação de unidades de análise e a relação entre indicação de subjetividade e domínio de aplicação, apresentamos breve retomada do artigo ‘A forma e o sentido na linguagem’ (Problemas de Linguística Geral I). Como Benveniste percebe a noção de ‘forma’? Em A forma e o sentido da linguagem (Problemas de Linguística Geral II), atribui um ‘duplo sentido’ ao termo (no sentido mais literal de ‘duplo sentido’, qual seja, o de indecibilidade de único posicionamento): 1) forma no sistema semiótico; b) forma no sistema semântico. Benveniste (1989, p. 221) faz um alerta: “ a presente exposição é um esboço para situar e organizar estas noções gêmeas de sentido e forma, e para analisar suas funções fora de qualquer pres- 182 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados suposto filosófico”. Para o autor, ‘forma e sentido são noções gêmeas’, isto é, noções que nascem juntas mas que percorrem caminhos diferentes. Em virtude da impossibilidade de enumerar, a priori, as funções da linguagem, Benveniste parte da noção de signo. Considerando a forma do signo, a saber, o significante, Benveniste distingue dois planos: a análise fonêmica (significante) e a análise semiótica (significante em relação ao significado). Sobre a análise semiótica, atrelada ao plano do significado, basta dizer que a língua está sujeita a análises da estrutura formal do significante. Interessa-nos sobretudo o signo no plano do significado, “é no uso da língua que um signo tem existência; o que não é usado não é signo; e fora do uso o signo não existe. Não há estágio intermediário; ou está na língua, ou está fora da língua” (PLG II, 1989, p. 227). Logo, no sistema semiótico, é suficiente dizer que a ‘forma’ do signo está sujeita à análise de sua estrutura formal e que o ‘sentido’ do signo é determinado por sua existência ou inexistência no uso feito ou ignorado pela comunidade falante. Considerando que ‘forma e sentido’ são noções gêmeas, Benveniste parece nos informar que uma análise da estrutura formal só tem sentido quando determinados signos são aceitos pela comunidade falante. Em nosso caso específico, a relação interlocutiva entre professor e aluno em situação de ensino de escrita, as ‘palavras’ ou ‘signos’ utilizados pelo professor só fazem sentido de serem analisados se estiverem sendo usados para estabelecer uma alocução com os alunos. Benveniste, a seguir, afirma que “há para a língua duas formas de ser língua no sentido e na forma. Acabamos de definir uma delas: a língua como semiótica; é necessário justificar a segunda, que chamamos de língua como semântica”. (PLG II, p. 229). Essas duas formas indicam as “modalidades fundamentais da função linguística, aquela de significar para a semiótica, aquela de comunicar para a semântica”. (PLG II, p. 229). Assim, embora seja impossível definir a priori as funções da linguagem, é possível dizer que as duas modalidades fundamentais, significar e comunicar, são ambas imprescindíveis para o emprego da língua. Para o autor, é apenas no nível semântico que se pode pensar a sociedade, pois “o funcionamento semântico da língua permite a integração da sociedade e a adequação ao mundo, e por consequência a normalização do pensamento e o desenvolvimento da consciência”. (PLG II, p. 229). Se é no âmbito da semiótica que a indicação da subjetividade deve ser analisada, descrita; é somente no âmbito da semântica que ela pode servir para orientar o desenvolvimento da escrita. Se a unidade do semiótico é o signo, qual é a unidade da semântica? A frase. Segundo Benveniste (1989, p. 229), trata-se do ‘intencionado, do que o locutor quer dizer, da atualização linguística do pensamento (...) a semântica resulta da atividade do locutor que coloca a língua em ação”. (Benveniste, 1989, p. 229-30). Ono (2007, p. 70), ao fazer um estudo da palavra ‘frase’ em diversos textos de Benveniste, constata que há três ‘noções associadas’ a ela, a saber, atualização, predicação e realização. Esclarece, com base no artigo de 1966, ‘A forma e o sentido na linguagem’, ora em exame, que sintagmatização, predicação e atualização são operações realizadas ao mesmo tempo Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 183 Universidade Federal da Grande Dourados pelo locutor (ONO, 2007, p. 70). A realização depende do tempo linguístico, isto é, é da conversão da língua em discurso; logo, sintagmatização, predicação e atualização são operações necessárias para a realização da frase. A partir dessas afirmações, é possível fazer uma reflexão sobre as noções de ‘forma’ e ‘sentido’. A forma da frase é o sintagma; o sentido da frase é a ideia que exprime, ou seja, “a frase é cada vez um acontecimento diferente (...) ela não pode, sem contradição de termos, comportar emprego; ao contrário, as palavras que estão dispostas na cadeia e cujo sentido resulta precisamente da maneira em que são combinadas não tem senão empregos”. (BENVENISTE, 1989, p. 231). Daí constatamos que a ‘forma’ da frase está a serviço do ‘sentido’ da frase, ou, em outras palavras, que a ‘forma’ da frase é o ‘sentido’ da frase. Como apreender o ‘sentido’ da frase, esta unidade de análise semântica? É importante explicitar dois conceitos correlatos: agenciamento e apropriação. Após a explicitação destes dois conceitos, acreditamos ter estabelecido um arcabouço teórico suficiente para compor a metodologia de análise de relatórios de estágio. Vejamos: Agenciamento. Deinição: processo de organização sintagmática pelo sujeito. Nota explicativa: Através do agenciamento, o sujeito organiza as formas da língua para transmitir a ideia a ser expressa em seu enunciado. Termos relacionados: apropriação, referência, sintagmatização. (FLORES et. al, 2009, p. 47) Apropriação. Deinição: processo de uso da língua pelo sujeito por meio da enunciação. Nota explicativa: Benveniste ressalta que o processo de apropriação ocorre com a tomada, por inteiro, da língua. É o estabelecimento pelo sujeito de relações com as formas da língua, de modo a selecionar aquelas que forem compatíveis com a ideia a ser expressa. (...) Termos relacionados: atualização, língua, subjetividade. (FLORES et. al, 2009, p. 49) Constatamos que a apropriação do estagiário das orientações do supervisor culmina no agenciamento de ideias marcadas no relatório de estágio. Reconhecer, então, a relação entre orientação e prática revelada na escrita constitui parte do trabalho para o estabelecimento de uma avaliação justa do trabalho do professor em formação inicial. No item abaixo, apresentamos as categorias metodológicas para a análise de um relatório de estágio. 184 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados METODOLOGIA DE ANÁLISE: ELEMENTOS PARA A ANÁLISE DA ESTRUTURA DO RELATÓRIO E RELATÓRIO DE ESTÁGIO Tomando a ideia de ‘signo’ como unidade semiótica e a ideia de ‘frase’ como unidade semântica, entendemos que tais conceitos se concretizam no relatório de estágio supervisionado, respectivamente, pela estrutura do relatório de estágio, isto é, as seções exigidas pelo supervisor do trabalho e pelo enunciado efetivamente escrito pelo estagiário em relação ao universo discursivo da escola (dimensão referencial da frase) e a seu próprio desempenho (dimensão auto-referencial da frase). É na ‘frase’ que reconhecemos a indicação de subjetividade por meio dos índices essenciais de pessoa (eu-tu, em que ‘eu’ designa o estagiário e ‘tu’ a imagem do supervisor projetada no relatório), tempo e espaço e os procedimentos acessórios de funções sintáticas, os quais podem se organizar de forma a atender ou não os quatro entre os seis2 critérios de avaliação do relatório de estágio (a saber, inovação metodológica, percepção da complexidade da escola, coerência entre planejamento e desenvolvimento das atividades). Em sua plenitude, esses quatro critérios revelam que o ‘eu’ projetam para além de ‘tu’ que deve ser ‘agradado’, um ‘ele’, isto é, um terceiro ‘eu/tu’ que avaliaria o trabalho como inovador, coerente, formal e independente. Dessa forma, a indicação de subjetividade é o fator que garante precisão linguística na avaliação da prática do estagiário, marcada no relatório de estágio. A questão central a ser respondida é a seguinte: a) em que medida o ‘eu’ agencia signos que atendem às expectativas gerais do supervisor marcadas na estrutura do relatório e que revelam apropriação plena de inovação metodológica? ANÁLISE O relatório de Estágio Supervisionado em análise refere-se ao componente curricular chamado Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa II e pertence à Gabrielli Dias3, aluna da Universidade Federal do Pampa, campus Bagé, Rio Grande do Sul. A aluna realizou seu Estágio na cidade de Pinheiro Machado, Rio Grande do Sul, em turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA) no turno da noite. O relatório contém 93 páginas (incluindo anexos), intitula-se O valor das raízes: gramática, língua e cultura do Rio Grande do Sul e apresenta a seguinte estrutura: 1) Conteúdo/Assunto; 2) Eixos articuladores; 3) Apresentação; 4) Objetivos gerais do Projeto de Ensino; 5) Série; 6) Materiais; 7) Dinâmica; 8) Possibilidades de modificação no plano inicial; 6) Referências bibliográficas; 7) Diários reflexivos das observações das aulas da professora regente; 8) Descrição da escola com fotos; 9) Planos de aula (contendo data, escola, série, O segundo, terceiro, quarto, quinto e sexto critérios, a saber, percepção da complexidade da escola, formalidade da escrita, coerência entre plano e aula, independência do supervisor e atendimento das expectativas do supervisor não serão analisados neste texto. 3 A aluna assinou Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. De qualquer forma, o nome apresentado é de caráter ictício. 2 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 185 Universidade Federal da Grande Dourados nome do estagiário, conteúdo, objetivo geral, objetivos específicos, estratégias, recursos, avaliação, observações, anexos com exercícios e textos); 10) Diários Reflexivos das Práticas de Sala de Aula; 11) Anexos (documentos comprobatórios do estágio e fotos das atividades). É necessário informar ainda que por ocasião do término do Estágio Supervisionado, isto é, em dezembro de 2012, a nota auferida ao trabalho da aluna Gabrielli foi 9,0. A nota do Estágio Supervisionado é composta de três elementos: 1) Pertinência teórica e adequação escolar do Projeto de Ensino (4 pontos); 2) Qualidade de uma atividade de Prática de Sala de aula supervisionada pela professora em visita técnica à escola (2 pontos); 3) Completude, Pontualidade de Entrega e Adequação do Relatório de Estágio Supervisionado (4 pontos). Deste relatório de estágio, selecionamos uma seção. Selecionamos o item ‘Apresentação’ para verificar o critério inovação metodológica. Tal seção foi escolhida em função de acreditarmos ser possível nela vislumbrar uma espécie de ‘resumo’ da proposta global de ensino elaborada pela estagiária. O percurso metodológico será o seguinte: 1º) destaque das frases, no sentido de frase presente em Benveniste (PLG I, referido acima); 2) identificação e análise dos índices essenciais de pessoa-tempo-espaço e dos procedimentos acessórios das funções sintáticas (ARESI, 2011, referido acima); 3) análise global da relação entre frase e texto (considerando a relação entre frase e discurso, presente em ‘A semiologia da língua, Benveniste, PLG II). A INDICAÇÃO DA SUBJETIVIDADE NA ‘APRESENTAÇÃO’ DO RELATÓRIO: AVALIANDO A PRESENÇA DA INOVAÇÃO METODOLÓGICA Vejamos a ‘Apresentação’ do Relatório. Excluímos trechos de identificação precisa da escola. 1. Perceber que não é a língua que muda com o tempo é os falantes que em sociedade que mudam a língua com o passar do tempo. (Marcos Bagno) 2. A língua varia por isso muda. Tanto em relação com a língua falada como com a língua escrita bem como a língua no regionalismo que será o foco dos textos a serem explorados durante o Estágio II. Por isso a linguagem terá uma atenção especial, mas com uma abordagem simples para um maior entendimento da turma. 3. O gênero abordado será música, poesia nas letras das canções nativistas e tchê music. Introduzir a diferença e a interligação entre o que é: tradição, tradicionalismo, nativismo e regionalismo e a diferença nas músicas também entre nativistas e tradicionalistas. 4. A proposta do Projeto Cultural é desenvolver a oralidade, a partir da exploração da cultura do Sul, com base em parte do histórico da Califórnia da Canção Nativa, que ao longo dos anos, desde 1971, envolve a cultura e a 186 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados historia do Sul do Brasil, por temas ao longo dos anos. A sequencia didática será apresentada aos alunos no primeiro dia de aula. 5. A poesia das letras servirão para explorar os Verbos na Música e poesia e em contra partida da cultura, as rixas entre nativismo e Tchê Music e observação na linguagem regional das letras das canções. 6. Ensaiar e apresentar trovas a comunidade escolar do noturno como produto final da valorização da cultura do sul, desenvolvendo a oralidade do grupo da turma de EJA. Neste texto, localizamos 6 frases. Em cada uma delas, localizamos índices específicos de pessoa-tempo-espaço bem como procedimentos sintáticos específicos. Na primeira frase, os índices de pessoa são apresentados ‘em ausência’, trazendo um enquadre da ordem da não pessoa, no caso, o sociolinguista Marcos Bagno. Nesta frase, há o procedimento sintático da negação (Perceber que não é a língua que muda com o tempo) seguido da afirmação (é os falantes que em sociedade que mudam a língua com o passar do tempo). Logo, o sintagma ‘os falantes’ é colocado em destaque. Na segunda frase, há alguns índices de pessoa-tempo- espaço, ao longo da frase: ‘Estágio II’, ‘atenção especial’, ‘abordagem simples’ e ‘maior entendimento da turma’. Observamos que há, na linearidade sintagmática da frase, uma progressiva aproximação do redator do relatório com seu próprio dizer (passagem do ‘ele’ ao ‘eu’). Quanto aos procedimentos sintáticos, observa-se que os dois primeiros períodos são constituídos de frases asseverativas curtas e o terceiro período é constituído de duas frases com o conector mas, cuja presença assegura a presença do ‘eu’. Na terceira frase, há um retorno às formas ‘em ausência’, trazendo enquadre da ordem da não pessoa. Nessa posição, o estagiário, que já revelara uma preocupação com ‘a turma’, neste momento, volta sua preocupação para o ‘conteúdo’. Esta preocupação transparece até o final da ‘Apresentação’, na quarta, quinta e sexta frases. No final da quarta frase, observamos um movimento de aproximação ao ‘eu-tu’, no seguinte trecho “A sequência didática será apresentada aos alunos no primeiro dia de aula”. No final da frase seis, há uma ampliação do ‘tu’, isto é, o interlocutor, pois se observa a passagem da denominação ‘alunos’/’turma’ para ‘turma de EJA’. Além disso, há um desdobramento na frase seis da díade eu-tu em duas díades, que passa da relação professor-alunos da turma para alunos da turma-alunos de outra turma. Neste desdobramento, o ‘tu’ inverte-se em ‘eu’. Quanto aos procedimentos acessórios, relativos às funções sintáticas, observamos o uso de frases asseverativas curtas. Em especial nas frases cinco e seis, há um esforço de concisão e objetividade ainda maior, chegando quase ao uso da frase nominal, por meio de um sujeito marcado por verbo na forma infinitiva impessoal. Segundo Flores et. al (2008, p. 98-99, grifos nossos), “diz Benveniste que a frase nominal: 1) liga-se sempre ao discurso direto; 2) serve sempre a asserções de caráter geral, sentenciosas. A Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 187 Universidade Federal da Grande Dourados frase nominal quer convencer, propõe uma relação intemporal, por isso permanente, agindo com um argumento por autoridade; supõe o discurso e o diálogo, mas não comunica um dado de fato”. Ainda que se tenha como resultado a construção sintática de ‘frase fragmentada’, o efeito enunciativo gerado é o da preocupação de mostrar que se está trabalhando com ‘a linguagem regional’ (frase 5) com consequente ‘valorização da cultura do sul’ (frase 6), conforme enunciado na frase 1. Assim, a ‘quase’ frase nominal (frase 6) está vinculada a um ‘suposto’ discurso direto tal como enunciado na frase 1 (citação do sociolinguista Marcos Bagno). A estagiária coloca sob a forma de premissa impessoal, inquestionável o aparato teórico da sociolinguística, marca da qualidade de inovação metodológica. Os mecanismos de enunciação de não pessoa (‘ele’) marcados de forma alternante e mais enfática do que os mecanismos de enunciação de pessoa subjetiva (‘eu’) servem para um duplo propósito: 1º) garantir a presença do elemento ‘terceiro’, qual seja, a aula, a apresentação, a cultura; 2º) servir de lastro para a ampliação da dimensão do interlocutor, que parte de um ‘tu’ restrito à presença do ‘eu-estagiário’ passando a ‘vocês, turma do EJA’. Em linhas gerais, a ‘Apresentação do Relatório de Estágio II’ garante a característica da inovação metodológica, pois, como sabemos, as práticas tradicionais de ensino de língua são voltadas para uma relação restrita de ‘aprendizagem’ da língua baseada na relação restrita eu-tu. De certa forma, a aluna compreende que trabalhar em perspectiva sociolinguística também é uma forma de atingir a inovação metodológica. No entanto, para que se possa ratificar a qualidade de inovação metodológica far-se-ia necessário analisar outras seções do Relatório de Estágio, em especial os Diários Reflexivos das Observações e os Diários Reflexivos das Práticas4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: CATEGORIAS ANALÍTICAS DE ORDEM ENUNCIATIVA PERTINENTES AO RELATÓRIO DE ESTÁGIO Concluída a análise, é hora de verificar que categoria ou categorias analítico-enunciativas são pertinentes para a avaliação do Relatório de Estágio. Como vimos, a literatura especializada em Letramento do Professor já nos indicara seis (6) características de um Relatório de boa qualidade. Nesse sentido, acreditamos que a Linguística da Enunciação de Émile Benveniste, em especial o conceito de indicação de subjetividade, possa nos oferecer mais parâmetros avaliativos. Na análise da ‘Apresentação’, chama-nos atenção o fato da ampliação da instância do ‘tu’ (interlocutor) de ‘tu-alunos’ para ‘vocês-turma de EJA’. Assim, a ampliação - ou redução - da presença do tu no Relatório pode se constituir, a nosso ver, em um sétimo critério de aferição da qualidade do Relatório de Estágio. Este critério diz respeito aos índices essenciais da indicação de subjetividade. Quanto aos procedimentos acessórios, re4 Para a pesquisa sobre os Diários Relexivos, sugere-se ao leitor a consulta de Zabalza (2004). 188 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados lativos às funções sintáticas, cremos ser prematuro fazer qualquer afirmação de natureza categórica. Seria necessário analisar outras seções do Relatório de Estágio, tarefa que deve ser executada posteriormente. De qualquer forma, considerando as grandes funções sintáticas, a saber: asseveração, injunção e interrogação, percebemos que a forte presença da asseveração, alternando movimentos de expansão em frases com conectores e de redução em frases nominais é um indicativo de qualidade do Relatório de Estágio. Gostaria de encerrar este artigo dizendo que as relações entre as áreas da Linguística da Enunciação e da Linguística Aplicada/Letramento do Professor estão em fase de criação. Nossa tese de doutoramento (Silva, em preparação), em fase de finalização, será, talvez, um dos frutos dessa articulação que, a nosso ver, está apenas começando. REFERÊNCIAS: ARESI, F. Os índices específicos e os procedimentos acessórios da enunciação. ReVel, v. 9, n. 16, 2011, p. 262-275. Disponível em: <http://www.revel.inf.br/files/artigos/ revel_16_os_indices_especificos.pdf>. Acesso em: 01/09/2013. BENVENISTE, E. Problemas de Linguística Geral I. Campinas, SP: Pontes Editores, 1988. ______. Problemas de Linguística Geral II. Campinas, SP: Pontes Editores, 1990. BRITO, C.C. P. Diários reflexivos de professores de língua inglesa em formação inicial: o outro que me confessa. In: SILVA, W. R. Letramento do professor em formação inicial: interdisciplinaridade no Estágio Supervisionado da Licenciatura. Campinas, SP: Pontes Editores, 2012, p. 139-164. DORNELLES, C. Desafios da didatização da escrita e da gramática no estágio supervisionado em língua materna. In: SILVA, W. R. Letramento do professor em formação inicial: interdisciplinaridade no Estágio Supervisionado da Licenciatura. Campinas, SP: Pontes Editores, 2012, p. 53-82. FLORES, V.; SILVA, S.; LICHTENBERG, S. WEIGERT, T. Enunciação e gramática. São Paulo: Contexto, 2008. ______.; BARBISAN, L.; FINATTO, M.J.; TEIXEIRA, M. Dicionário de Linguística da Enunciação. São Paulo: Contexto, 2009. ______.; TEIXEIRA, M. Introdução à Linguística da Enunciação. São Paulo: Contexto, 2005. GONÇALVES, A.V.; FERRAZ, M. R.R. Teoria acadêmica e prática profissional na licenciatura em Letras. In: SILVA, W. R. Letramento do professor em formação inicial: interdisciplinaridade no Estágio Supervisionado da Licenciatura. Campinas, SP: Pontes Editores, 2012, p. 109-138. ONO, A. La notion d’énonciation chez Benveniste. Paris: Limoges, 2007. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 189 Universidade Federal da Grande Dourados SILVA, S. Língua, homem e cultura: uma visão antropológica da enunciação para o ensino de escrita. Tese. (Doutorado em Estudos da Linguagem). Instituto de Letras. Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem. UFRGS. (em preparação). ZABALZA, M. Diários de aula: um instrumento de pesquisa e desenvolvimento profissional. Porto Alegre: Artmed, 2004. Recebido em 19/11/2014. Aprovado em 19/04/2014 190 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados TEXTOS DE ESTAGIÁRIOS E O PROFESSOR OBSERVADO: RELAÇÕES ENTRE UM SER GENÉRICO E UM PROFISSIONAL EFETIVO TRAINEES TEXT AND THE TEACHER OBSERVED: RELATIONS BETWEEN AN IDEALISTIC AND AN EFFECTIVE PROFESSIONAL Luzia Bueno* RESUMO: Este artigo tem como objetivo discutir como o professor observado aparece em diferentes textos produzidos por estagiários e refletir sobre a validade do emprego de diferentes gêneros no processo de formação do futuro professor. Essas produções foram coletadas para a pesquisa de doutorado, de 2004 a 2007, e para uma pesquisa institucional que dava continuação à anterior, realizada no período de 2008 a 2012, em uma universidade particular do interior do estado de São Paulo. Para a fundamentação teórica, baseamo-nos no quadro teórico do Interacionismo Sociodiscursivo (BRONCKART, 1999, 2004, 2008) e na análise das figuras interpretativas do agir, conforme Bulea e Fristalon (2004) e também de acordo com pesquisas do Grupo ALTER (MAZZILO, 2006, BUENO, 2009). Como resultados, constatamos que cada gênero apresenta um conjunto de figuras, possibilitando ao estagiário construir diferentes representações do professor que ora aparece de modo idealizado e ora de modo mais próximo ao observado nas práticas de estágio. Esses resultados permitiram reflexões que geraram alterações no modo de conduzir o trabalho de formação de professores. Palavras-chave: figuras interpretativas do agir; trabalho do professor; textos de estagiários. ABSTRACT: This paper aims to discuss how the observed teacher appears in different texts produced by trainees and reflect upon the validity of the use of different genres in the training of future teachers’ process. These productions were collected for doctoral research, from 2004 to 2007, and an institutional research that led to the previous sequel, conducted from 2008 to 2012, in a private university in the state of São Paulo.. For the theoretical grounds, we base ourselves on the theoretical framework of sociodiscursive interactionism (BRONCKART, 1999, 2004, 2008) and on the analysis of acting interpretive figures, according to Bulea and Fristalon (2006) and also according to researches from ALTER Group (MAZZILO, 2006 BUENO, 2009). As results, we verified that each genre shows a set of figures, making possible to the trainee to build different representations of the teacher who sometimes appears in an idealized mode and sometimes in a closest mode to the observed in the practices training These results allowed reflections which generated changes in the mode of conducting the work of teachers training. * Docente da Universidade São Francisco. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 191 Universidade Federal da Grande Dourados Keywords: acting’s interpretative figures; teacher’s work; trainees texts. INTRODUÇÃO Este artigo tem como objetivo discutir alguns resultados de uma pesquisa1 maior sobre trabalho docente e produção textual em disciplinas de estágios, grupos de formação de professores e atividades do PIBID, no período de 2010 a 2012. Neste artigo, nos centraremos nas representações do trabalho docente construídas em textos de diferentes gêneros empregados na disciplina de Estágio Supervisionado para os cursos de Letras e Pedagogia em uma faculdade particular do interior de São Paulo. Essa pesquisa vem sendo realizada a fim de que possamos refletir sobre os diferentes gêneros empregados na formação docente e sobre como podemos tratá-los para conseguirmos contribuir com uma formação cada vez melhor de nossos alunos de licenciatura. Para isso, em nossa análise, procuramos depreender como o professor aparece, em textos de estagiários, nas diferentes figuras interpretativas do agir, as quais mobilizam elementos do agir humano e criam, assim, “cenas” nas quais os profissionais são postos atuando com elementos diversos ora de modo ativo e ora de modo passivo, como poderemos observar na exposição que faremos. Nossa exposição está organizada em três seções: na primeira, explicitamos a concepção de trabalho docente e de estágio que adotamos; na segunda, retomaremos brevemente a nossa fundamentação teórica alicerçada no Interacionismo Sociodiscursivo (doravante ISD), conforme Bronckart (1999, 2004, 2008) e na discussão das figuras interpretativas do agir; na terceira, apresentaremos os textos que selecionamos e os resultados da análise realizada; finalizando, com a quarta seção, em que teceremos nossas considerações finais. O TRABALHO DOCENTE COMO UMA ATIVIDADE COMPLEXA Em nossa pesquisa, adotamos a concepção de trabalho docente de Machado (2007) que, apoiando-se em Clot (1999), defende que esse trabalho se realiza: a partir de uma série de prescrições: do sistema educacional, do sistema de ensino, do sistema didático, da instituição (escola) em que se encontra etc; mobiliza o uso de inúmeros artefatos disponíveis no coletivo de trabalho que podem ou não se transformarem em instrumentos para sua ação; é dirigido a “outrem” que não é apenas o aluno, mas também seus pais, a sociedade e mesmo o próprio professor; é um trabalho contínuo de reconcepção das prescrições em função do contexto particular de ensino e se realiza dentro da sala de aula (o que é visível) e fora da sala de aula, o que muitas vezes é invisível (BUENO e MACHADO, p. 305). 1 Os resultados dessa pesquisa foram apresentados em diferentes eventos cientíicos e publicados em diferentes anais de Congressos. 192 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados E esse trabalho comporta vários níveis, de acordo com as pesquisas da Ergonomia da Atividade e da Clínica de Atividade, conforme Clot (2010). Nessa perspectiva, temos na análise do trabalho a possibilidade de tratar de uma atividade prescrita, uma realizada e o real da atividade. De acordo com Bueno & Machado, podemos defini-las como: a) atividade prescrita: é a tarefa, o que deve ser feito; b) atividade realizada: é a atividade efetivamente feita, realizada, em uma situação, que pode ser observada; c) o real da atividade: é tanto o que se faz como aquilo que não se faz, que se procura fazer sem conseguir, aquilo que tenhamos querido ou podido fazer, aquilo que pensamos que podemos fazer em outro lugar, ou seja, tudo o que foi feito, mas também tudo o que icou impedido de ser realizado.” (BUENO; MACHADO, p. 305). Partindo dessa visão que contempla a complexidade do trabalho docente e nos apoiando em Bueno, Grando e Magalhães (2011), defendemos o estágio como um espaço em que o estagiário possa articular uma postura crítica frente ao trabalho observado, mas também construa uma relação de parceria para que possa fazer trocas com o profissional mais experiente e consiga, na convivência com este, ir descobrindo o real da atividade do professor. Não será possível ao professor supervisor acompanhar diariamente o estagiário em suas atividades na escola, no entanto, por meio dos textos que este produz, é possível encontrar pistas que nos ajudam a compreender melhor como o trabalho docente está sendo visto por esse futuro profissional. Defendemos que a análise das figuras interpretativas do agir, que serão apresentadas na próxima seção, podem ser um bom instrumento para isso. AS FIGURAS INTERPRETATIVAS DO AGIR E A SUA DEPREENSÃO Na análise dos textos dos estagiários, procuramos seguir o modelo de análise de textos do ISD, conforme Bronckart (1999, 2004, 2008), verificando os parâmetros da situação de produção do texto e sua arquitetura interna composta pela infraestrutura textual (plano global do conteúdo temático, tipos de discurso e tipos de sequência), pelos mecanismos de textualização (coesão nominal, coesão verbal, conexão) e pelos mecanismos enunciativos (modalização e vozes). Partindo dessa análise, procuramos verificar os modos empregados pelos estagiários para representar o trabalho docente em seu texto, construindo, desse modo, diferentes figuras interpretativas do agir. Alguns pesquisadores dos grupos2 LAF (langage, 2 O grupo LAF é um grupo de pesquisa da Universidade de Genebra, coordenado pelo professor Jean-Paul Bronckart. O grupo ALTER, no período de 2002 a 2012, foi coordenado pela professora Anna Rachel Machado; a partir de 2013, como o falecimento desta professora, passou a ser coordenado pela professora Eliane Lousada, continuando a atuar em parceria com o grupo LAF. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 193 Universidade Federal da Grande Dourados action et formation) e do ALTER (Análise da Linguagem, Trabalho Educacional e suas Relações) desenvolveram estudos que possibilitaram refinar e classificar as figuras interpretativas do agir em dois grupos, como foi apresentado por Bueno (2009): as figuras de ação que indicam modos de dizer o agir construídos em diferentes tipos de discurso e as figuras do agir que indicam modos de agir evidenciados nos predicados construídos nas orações produzidas. Os dois grupos de figuras se somam e permitem uma detecção mais aprofundada do modo e do conteúdo que foi exposto em um texto. Apresentaremos, a seguir, um breve resumo desses dois grupos de figuras. Bulea e Fristalon (2004), pesquisadoras do grupo LAF, analisaram entrevistas com enfermeiras que tematizaram os cuidados adotados para se fazer curativos em pacientes. Na análise da transcrição destas, as autoras constataram que as enfermeiras constroem quatro tipos de figuras de ação3 diferentes, as quais foram qualificadas como: “ação ocorrência” (inicialmente chamada de ação situada), “ação evento passado”, “ação experiência” e “ação canônica”. Em Bulea (2006 e 2011), procedeu-se à continuação da análise dessas entrevistas e encontrou-se outra figura: “ação definição”. O estudo dessas figuras permitiu chegar a modos de dizer o agir no trabalho empregado por enfermeiras. Essas figuras também foram encontradas nas pesquisas do Grupo ALTER sobre o trabalho educacional em EAD (ABREU-TARDELLI, 2006), no ensino de língua estrangeira (LOUSADA, 2006), na análise de diários de leituras sobre o ensino de língua estrangeira (MAZZILLO, 2006) e na análise de textos de prescrição do trabalho docente e textos de estagiários sobre os professores (BUENO, 2007). Vejamos essas figuras de ação: • Ação ocorrência: construída em Discurso Interativo, caracteriza-se por apresentar uma forte contextualização (tal agente, tal situação). Ex.: “Para as 5 aulas, em que aplicarei o projeto de regência, usarei contos de suspense de diferentes autores” (BUENO, 2007, p.70). • Ação Evento Passado: constituindo-se na história de um evento, um incidente, é organizada em forma de relato interativo. Ex.: “AR57: Achei meio difícil no começo. Não engrenava nada!!! É difícil encaminhar discussão se as pessoas não leram os textos, vc não acha?” (ABREU-TARDELLI, 2006, p. 63). • Ação Experiência: apresenta-se na forma de discurso interativo ou teórico e constitui uma forma de cristalização pessoal das experiências vividas por um profissional ou por outras pessoas. Ex.: S23: Por que professor tem que ter tanto papel? Vocês precisam ver minha mesa como está? (ABREU-TARDELLI, 2006, p. 63). • Ação Canônica: é a figura que expõe a regra, a prescrição, construída por alguém externo ao actante, empregando o discurso teórico, com a presença de modalização deôntica. Ex.: S42: O papel do professor é mostrar que existem caminhos a serem seguidos. É preciso que o aluno tenha conhecimento do que é preciso ler, é preciso estar atualizado com o mundo ...”(ABREU-TARDELLI, 2006, p. 62). 3 Nesse texto, essas formas interpretativas foram chamadas de “registros de agir”, mas atualmente se usa o termo “iguras de ação”. 194 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados • Ação Definição (BULEA, 2006): expõe a tentativa de se definir o agir, aparecendo em segmentos do discurso teórico, havendo a predominância de verbos no presente genérico e as frases apresentam a estrutura “É + grupo nominal”. Ex.: « É o primeiro contato do dia, então é uma aproximação para // como se passou a noite » (Bulea, 2006)4. Vejamos as figuras do agir, conforme detectadas por Mazzillo (2006), que ressaltou que as figuras interpretativas do agir, além de expor um modo de dizer, podem mostrar os modos de agir típicos de uma dada categoria profissional. Para verificar esses modos de agir, é preciso atentar-se aos predicados e, assim, chega-se a três tipos de agir: um agir linguageiro, um agir com instrumentos e um agir cognitivo. O agir linguageiro foi identificado nos predicados que apresentavam verbos de dizer. Ex.: “Solicitou a participação” ou “A professora chamou sua atenção”; O agir com instrumentos foi verificado quando há o emprego de verbos que trazem embutidos em si mesmos a ideia de instrumento (projetar, escrever, etc.) e verbos que implicam o uso de um instrumento simbólico ou material (ler, separar, etc.). Ex.: “colava no quadro uma foto”; “fez uma transparência de leitura” (grifos de MAZZILLO, 2006, p. 113); O agir cognitivo envolve atividade mental ou capacidade das professoras. Exemplo de agir cognitivo: “A professora se surpreendeu”; “A Luci se preocupou em trazer mais explicações”. Exemplo de capacidade: “A professora não cria, não oferece nenhuma atividade interessante”; “Tem mais técnica para ensinar”. A junção dos dois tipos de figuras, figuras de ação e figuras do agir, pode nos apontar mais detalhes da análise do trabalho do professor pelo estagiário, já que a identificação dessas figuras pode nos ajudar a compreender tanto o modo de dizer o agir utilizado pelo enunciador quanto o modo de agir de um actante de uma dada categoria profissional, contribuindo, dessa forma, para que possamos depreender melhor os modelos de agir, como poderemos ver na análise a seguir que fizemos de quatro grupos de textos produzidos por estagiários. OS TEXTOS DE ESTAGIÁRIOS ANALISADOS: PROJETOS, DIÁRIOS, DECÁLOGOS E RELATÓRIOS Neste artigo, apresentamos o resultado da análise de quatro grupos de textos. O grupo I é constituído de projetos de intervenção, ou seja, textos produzidos pelos estagiários, analisando o trabalho de um professor observado no estágio, e com proposta de um trabalho a ser feito pelo estagiário. Esses projetos seguem uma prescrição oficial dada pela universidade e recebem nota na disciplina de estágio supervisionado. O Original: “C’est + grupo nominal”. Ex.: « c’est le premier contact de la journée en fait donc heu c’est une approche pour // comment s’est passée la nuit pour. » 4 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 195 Universidade Federal da Grande Dourados grupo II é constituído de diários produzidos por estagiários no decorrer de suas observações durante o estágio, eles não seguem uma prescrição oficial e não recebem notas. Os estagiários selecionam as partes que o professor-supervisor pode ler. O grupo III é formado por decálogos, textos produzidos por grupos de estagiários no decorrer de suas observações do estágio visando a construir 10 mandamentos que um professor deveria seguir. Esses textos também não seguem uma prescrição oficial e não recebem notas. Os estagiários apresentam e discutem o decálogo com os colegas da sala. O grupo IV é formado por relatórios de estágios, que são construídos a partir de uma prescrição formal da universidade e recebem uma nota. GRUPO I: OS PROJETOS Analisamos 10 projetos de intervenção5 produzidos por estagiários de um curso de Letras. Nestes, havia um estagiário escrevendo para o seu professor-supervisor com o objetivo de cumprir a sua tarefa de estágio e, consequentemente, ser bem avaliado. Os textos tinham em média 8 páginas e constatamos que eles seguiam as prescrições da universidade, apresentando a formatação pedida (capa, tamanho de letras, seções internas, etc.) e procurando utilizar-se de uma linguagem científica, predominando o discurso teórico em quase todos os textos, fato esperado já que estávamos em um ambiente universitário, produzindo textos que seriam avaliados. Mas um fato que nos surpreendeu ocorreu ao verificarmos os actantes colocados em cena nos projetos, pois em vez de encontrarmos o professor observado pelos estagiários, vimo-nos diante de um professor genérico, retomado de teorias ou discussões de aulas, dominando todos os projetos de intervenção. Nesses textos, encontramos o professor observado rapidamente em 8 projetos, e o professor genérico, os alunos, os estagiários em todos os textos. Nos poucos momentos em que se trata do professor observado, não há a recorrência a uma das figuras de ação, dessa forma, notamos que nos projetos não há um modo típico de dizer o agir desse professor. No entanto, fica clara uma crítica ao agir linguageiro dirigido ao aluno e ao agir com instrumentos, demonstrados nos predicados sobre esse professor, que é visto sempre a partir do que pode causar nos alunos: Eles só fazem a leitura do que o professor indica e que, conseqüentemente, será cobrado na prova. Após a leitura de um texto, os alunos não conseguem contar para alguém de que se trata o material lido e não apresentam argumentos para discutir sobre o tema. (projeto 2, Introdução) O professor genérico aparece nos projetos de duas formas diferentes: em segmentos de figura de ação experiência e em outros de ação canônica. Nos segmentos de ação experiência, procura-se criticar o agir com instrumentos desse professor: 5 A análise completa dos 10 projetos de intervenção pode ser vista em Bueno (2007), pesquisa de doutorado desenvolvida na PUC-SP e inanciada pela CAPES. 196 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Deste modo, percebe-se que é o professor que impõe o que todos os alunos lerão e estes têm que aceitar a visão do professor sobre o texto, concordando ou não com a mesma. (Projeto 2, Introdução) Na figura de ação canônica, o professor genérico aparece como o profissional que será bem sucedido ao seguir as instruções prescritas em relação ao seu agir com instrumentos. Esse agir é o mesmo já prefigurado em textos teóricos e documentos oficiais do governo federal: Por esse motivo, é necessário que o professor esteja presente para mediar e orientar a leitura polissêmica, a qual visa valorizar os muitos sentidos que o texto poderá oferecer ao aluno-leitor. (Projeto 3, Introdução) Nota-se, assim, que o professor genérico aparece com dois diferentes estatutos: o de um professor existente e merecedor de críticas e o de um professor idealizado a ser imitado. Partindo das críticas e idealizações, ao autoprescrever um conjunto de aulas a serem desenvolvidas na regência, o estagiário, usando as figuras de ação ocorrência e ação canônica, evita o agir dos professores observado e genérico existente, preferindo adotar o agir prefigurado para o genérico idealizado. Com esses resultados, verificamos que nos projetos, mais que procurar trazer a sua visão sobre o trabalho do professor observado nas horas práticas do estágio, o estagiário procura reproduzir o que dizem os teóricos. Essa situação nos obriga, enquanto professores-supervisores de estágio, a repensar que modelos de agir estamos oferecendo aos nossos estagiários, pois, de acordo com os projetos, parece-nos que nossos alunos estão tomando a disciplina de estágio e os textos nela produzidos como meros e tradicionais exercícios escolares de avaliação, nos quais o importante é satisfazer o professor, reproduzindo o que se leu nos teóricos a fim de ser bem avaliado. A análise desses projetos realizada durante o nosso doutorado nos levou a inserir outros gêneros textuais na disciplina de Estágio Supervisionado a fim de que pudéssemos ter outras instâncias de diálogos com os estagiários e também mais possibilidades de contribuir para a sua formação enquanto professor. Para isso, seria necessário trazer gêneros que exigissem que o estagiário trouxesse mais a sua experiência frente ao estágio que a reprodução dos teóricos lidos. Foi com essa expectativa que introduzimos os diários e os decálogos, dos quais passaremos a tratar nas próximas seções. GRUPO II: OS DIÁRIOS Os diários de estágio analisados nesta pesquisa foram produzidos no primeiro semestre de 2007 pelos estagiários e tinham como leitores os próprios autores, além dos professores-supervisores. Continuamos com os diários, em outros anos, principalmente, no período de 2010 a 2012, durante o qual trabalhamos com os alunos também no PIBID (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência) promovido pela CAPES. Os resultados no conjunto são muito semelhantes. Aqui vamos tratar Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 197 Universidade Federal da Grande Dourados dos primeiros diários com que trabalhamos em 2007. No total, foram produzidos 17 diários, em 2007, mas somente 6 alunos permitiram que usássemos os seus textos em nossa pesquisa, apesar de terem deixado o professor-supervisor de estágios lerem-nos na íntegra no decorrer da disciplina de Estágio Supervisionado. Os diários foram escritos em cadernos, em sua maioria, havendo dois deles que foram digitados. No PIBID, todos fizeram os diários em cadernos. Os textos estavam organizados por datas e traziam tanto relatos do estágio quanto anotações sobre as leituras feitas na disciplina de estágio, relacionando-as com as observações que estavam sendo feitas nas aulas na universidade e nas aulas do professor observado. Dessa forma, verificamos nos diários o emprego das figuras de ação evento passado, tratando do que foi visto na sala, e ação ocorrência, enfatizando as reflexões do estagiário no tempo presente. Com ambas as figuras, o foco é o actante principal desses textos: o professor observado. Em relação ao agir desse professor, há uma ênfase na observação do seu agir linguageiro e do seu agir com instrumentos: A professora começou um trabalho com o gênero árvore genealógica, onde ela propunha a classe uma busca das origens dos seus descendentes estrangeiros principalmente. (Diário 1, meio do estágio) Nesses diários, é possível perceber que elementos do trabalho do professor são vistos como mais relevantes pelo estagiário: a relação com o aluno e os materiais empregados no espaço da sala de aula. Não se encontram nos diários registros que busquem compreender o trabalho do professor fora desse espaço. Logo, esses resultados precisam ser discutidos com os estagiários para que redimensionem a atividade docente. A leitura e análise cuidadosas dos diários contribuem para que o professor-supervisor possa interferir e tornar mais produtivas as discussões que são feitas com os estagiários sobre as suas observações, além de poder também levantar os medos e ansiedades pelas quais passa o estagiário, uma vez que os diários funcionam muitas vezes como espaço de confissões, como se pode observar no seguinte trecho de um dos relatos: Ufa...Depois desse turbilhão de reclamações iquei mais ainda preocupada de como conseguirei fazer uma intervenção. Parece IMPOSSÍVEL! (Diário 5, meio do estágio) Constata-se, assim, que os diários recuperam um espaço para o professor observado que os projetos de intervenção não estavam dando, uma vez que as prescrições direcionavam para uma produção muito centrada em aspectos formais do texto. Vejamos como funcionam os decálogos. GRUPO III: OS DECÁLOGOS Os três decálogos de nossa análise foram produzidos no segundo semestre de 2008 por grupos de estagiários que, após discussões e trocas de experiências, elencaram um conjunto de pontos que viam como muito importantes no trabalho docente. A partir 198 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados disso, escreveram os decálogos em que apresentavam 10 regras que os professores deveriam seguir e as expuseram para os demais colegas de sala, que puderam discutir as regras, contestando-as ou corroborando-as. Na análise dos textos do decálogo, encontramos, como já esperávamos, figura de ação canônica na apresentação das regras, com as expressões “é preciso que” ou “o professor deve”, mas também nos deparamos com a figura de ação experiência, resgatando um saber do grupo, como observamos nas regras “O professor está sempre alerta para fazer uma boa explicação” e “O bom professor está sempre disposto a colaborar com alunos e demais pessoas.” Nessas regras do decálogo, havia uma predominância de normas sobre o agir linguageiro em relação aos alunos e sobre o agir cognitivo dos professores (“Buscar força interior e discernimento para saber lidar com situações problemas”), indicando que esses grupos constroem uma representação de que o trabalho docente tem como elementos principais a relação do professor com o aluno e a capacidade cognitiva, desprezando outros pontos que os projetos e os diários haviam apontado anteriormente, como a relação com os instrumentos. Devido a isso, nos últimos anos preferimos não utilizar os decálogos. GRUPO IV: OS RELATÓRIOS Os relatórios aqui analisados foram produzidos no período de 2007 a 2012. No total, analisamos 12 relatórios de diferentes alunos de Letras e de Pedagogia que gentilmente nos cederam seus textos para a análise. Nesses textos, devido às prescrições oficiais da universidade, os alunos fazem um texto de formatação bem semelhante entre si, com capa, folha de rosto, texto dividido em seções de Observação, Participação e Regência. Nesses textos, notamos, no decorrer dos anos, devido às discussões que fomos fazendo dos resultados da própria pesquisa, alterações nos textos produzidos pelos alunos. Inicialmente, de 2007 a 2010, predominavam nos textos, em todas as seções, a figura de um professor genérico que aparecia em segmentos de ação canônica, ou seja, da ordem ou ação experiência, como víamos nos projetos de intervenção. Nos relatórios produzidos, a partir de 2011, o professor genérico continuou a aparecer, mas dividindo espaço com o professor observado nas salas e como o estagiário que também passou a aparecer no texto inteiro. Com isso, a figura evento passado, em que se reconta o que aconteceu, passou a predominar no texto, mesmo que ainda continue a haver momentos, em discurso teórico, em que se olha o trabalho do docente a partir de uma teoria, mas são bem poucos e parecem indicar a necessidade de o estagiário mostrar ao professor-supervisor de estágio que domina as teorias estudadas em outra disciplina. É interessante notar também que passamos de textos escritos quase inteiros em terceira pessoa para aqueles em que fica claro desde o princípio um “eu” olhando o Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 199 Universidade Federal da Grande Dourados trabalho do professor. Esse “eu” olha, questiona e conversa com o professor, ora concordando, ora discordando de suas posições, seja em relação à organização da sala para uma dada atividade, seja em relação aos conteúdos e atividades desenvolvidas. Nessas ações, o estagiário vai refletindo sobre o seu agir e o do professor que está observando: Depois disso, na organização da rotina, no primeiro item da pauta, a professora escolhe, com as crianças, o ajudante do dia. O critério é a ordem alfabética, e quem mais uma vez, tem a tarefa de descobrir quem é, são os alunos. Kate perguntou qual a letra do ajudante e as crianças recordaram que era o M, com isso disseram todos os nomes que começam com M na sala enquanto a professora os escrevia na lousa (a maioria são Maria, Maria Eduarda, Maria Heloisa, etc), depois solicitou que deinissem, de acordo com a ordem alfabética. Foi bastante demorada a escolha pois as crianças entravam em conlito sobre qual era a próxima letra e a professora não dava a resposta imediatamente, deixava-os entrarem em um acordo antes de intervir. Pra ser sincera, a paciência dela com toda essa espera estava me angustiando, mas conclui que dessa forma, as crianças raciocinam mais do que simplesmente dar a resposta. (Como eu estava prestes a fazer). Nos relatórios iniciais de 2007 a 2010, o professor era posto, predominantemente, em um agir linguageiro voltado aos alunos ou em um agir com instrumentos. Nos últimos, de 2011 a 2013, ainda que o linguageiro e o com instrumentos continuem como predominantes, o professor aparece nos diferentes modos de agir como um ser que pensa, age, reage. CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise dos quatro grupos de textos, produzidos em momentos e por grupos diferentes, permitiram- nos constatar que cada gênero parece encerrar modos de dizer diferentes, já que as figuras de ação mudam conforme os gêneros. Cada um dos gêneros possibilitou a construção de textos que apresentaram diferentes representações sobre o trabalho docente e simultaneamente diferentes vozes gerenciando o agir do professor que foi apresentado. Assim, nos projetos, houve a reprodução da voz dos teóricos e/ou documentos oficiais expondo a representação de professores generalizados ou idealizados; nos diários, decálogos e relatórios mais recentes, houve a voz dos estagiários e a tematização do que foi observado na prática, expondo professores ativos com suas singularidades, ou seja, representaram-se nos textos seres que poderíamos encontrar em uma sala de aula. A produção de diferentes gêneros textuais no estágio obriga o estagiário a olhar para o trabalho docente de diferentes ângulos, saindo de uma posição passiva de aluno que elabora textos apenas para ser avaliado. A diversificação dos textos leva a ver, a pensar e a registrar o trabalho docente, tendo em vista várias formas e destinatários: ora, ele próprio; ora, o professor-supervisor; ora, os colegas estagiários. Esse outro, conforme Vigotski, nos ajuda a nos construir, enquanto seres humanos; no espaço do estágio, nos ajuda a nos tornarmos professores reais. 200 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Desse modo, apesar de diferentes, os quatro gêneros têm as suas contribuições no processo de formação de professores, desde que, é claro, sejam lidos e analisados pelo professor-supervisor a fim de servirem, prioritariamente, de ponto de partida para novas e constantes discussões sobre as experiências de estágio e sobre o trabalho docente, em vez de serem tomados apenas como textos a serem avaliados. REFERÊNCIAS ABREU-TARDELLI, L. [email protected]: aportes para compreender o trabalho do professor iniciante em EAD. 2006. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006. BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos. Por um Interacionismo Sociodiscursivo. Tradução de Anna Rachel Machado. São Paulo: EDUC, 1999. ________. (2004). Pourquoi et comment analyser l’agir verbal et non verbal en situation de travail? In: BRONCKART, Jean-Paul et Groupe LAF (Ed.). Agir et discours en situation de travail. Cahier de la Section des Sciences de l’Education, Genève, n. 103, 2004. ________. L’analyse des pratiques comme technique du développement humain. Ive Jornadas de Desarollo Humano y Education, Alcala, 2005. (Texto para Conferência). ______.; MACHADO, Anna Rachel. En quoi et comment les “textes prescriptifs” prescrivent-ils? Analyse comparative de documents éducatifs brésiliens et genevois. Documento de trabalho para comunicação no Simpósio L’analyse des actions et des discours en situation de travail. 8th INTERNATIONAL PRAGMATICS CONFERENCE, Toronto, 2003. _________. Procedimentos de análise de textos sobre o trabalho educacional. In: MACHADO, Anna Rachel (Org.). O ensino como trabalho: uma abordagem discursiva. São Paulo: Contexto, 2004. _________. En quoi et comment les “textes prescriptifs” prescrivent-ils? Analyse comparative de documents éducatifs brésiliens et genevois. In: FILLIETAZ, Laurent; BRONCKART, Jean-Paul (Org.). L’analyse des actions et des discours en situation de travail. Concepts, méthodes et applications. Louvain: Peeters, 2005. (Bibliothèque des Cahiers de l’Institut de Linguistique de Louvain). BUENO, L. A construção de representações sobre o trabalho docente: o papel do estágio. 2007. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem) –, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007. _______ e Machado, Anna Rachel. A prescrição da produção textual do aluno: orientação para o trabalho de aluno ou restrição do seu agir?304. Scripta, Belo Horizonte, v. 15, n. 28, p. 303-319, 2011. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 201 Universidade Federal da Grande Dourados _______.; GRANDO, R.C; MAGALHÃES, M.F. O Pibid e as possibilidades de uma nova formação de professores6: algumas reflexões. Anais da Anpedinha Sudeste, 2011. BULEA, Ecaterina. Linguagem e Efeitos. Desenvolvimentais da interpretação da atividade. Campinas, Mercado de letras, 2011. BULEA, Ecaterina. Le soin infirmier: du texte au signe et du signe au-delà du texte. In: CANELAS, S. (Ed.). Langage, objets enseignés et travail enseignant en didactique du français. Ellug, Grenoble, 2006. BULEA, Ecaterina; FRISTALON, Isabelle. Agir, agentivité et temporalité dans des entretiens sur le travail infirmier. In: BRONCKART, Jean-Paul et Groupe LAF (Ed.). Agir et discours en situation de travail. Cahier de la Section des Sciences de l’Education, Genève, n. 103, 2004. LOUSADA, E. Entre trabalho prefigurado e realizado: um espaço para a emergência do trabalho real do professor. 2006. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006. MAZZILLO, Tânia. O trabalho do professor de língua estrangeira representado e avaliado em diários de aprendizagem.2006. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006. VIGOTSKI, Lev S. Manuscrito de 1929. Educação e Sociedade. Campinas, n. 71, 2000 p. 21-44. 6 O PIBID na USF é realizado a partir de um projeto apresentado à CAPES e inanciado por essa instituição. 202 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 TECNOLOGIA NO ENSINO Universidade Federal da Grande Dourados ESTÁGIO SUPERVISIONADO E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA: REFLEXÕES NO CURSO DE LETRAS/ PORTUGUÊS DA UFPB SUPERVISED TRAINEESHIP AND PORTUGUESE LANGUAGE TEACHING: REFLECTIONS ON UFPB’S PORTUGUESE LANGUAGE COURSE Socorro Cláudia Tavares de Sousa* Josete Marinho de Lucena** Daniela Segabinaz*** RESUMO: O presente artigo tem como objetivo discutir a relação entre Estágio Supervisionado e ensino de Língua Portuguesa no curso de Letras/Português da Universidade Federal da Paraíba. Para a realização deste objetivo, empreendemos uma análise qualitativa no Projeto Político Pedagógico do curso e em relatórios de estágio. Constatamos que o estágio supervisionado não é apenas o locus para identificarmos dificuldades no ensino da Língua Portuguesa, mas tem o potencial de registrar o percurso formativo do futuro professor de português. Palavras-chave: estágio supervisionado; ensino de língua portuguesa; curso de Letras. ABSTRACT: This paper aims to discuss the relationship between Supervised Traineeship and teaching of Portuguese language in the course of Languages/Portuguese from the Federal University of Paraíba. To accomplish this goal, we undertook a qualitative analysis on the Political Pedagogical Project of the course and in traineeship reports. We verified that the supervised traineeship is not only the locus to identify difficulties in the teaching of Portuguese, but it also has the potential to register the formative path of the future teacher of Portuguese Keywords: supervised traineeship; portuguese language teaching; languages course. <?> Professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba. E-mail: [email protected]. <?> Professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba. E-mail: [email protected] <?> Professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba. E-mail: [email protected] Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 205 Universidade Federal da Grande Dourados Ser professor não é fácil, mas ir às escolas depois de quase dois anos de teoria torna a missão ainda mais difícil. Os estágios são importantes para uma única função: identificar (julgar diversas vezes), pois o que vamos fazer em sala é o que nos foi imposto, porque a escola quer, e se queremos “comer”, obedecemos. (Graduanda de Letras/ Português UFPB, turno manhã) CONSIDERAÇÕES INICIAIS A epígrafe acima revela algumas das problemáticas vivenciadas pelos graduandos dos cursos de licenciatura em Letras quando se deparam com a realidade da “prática de ensino”, dentre elas: ausência de relação entre teoria e prática no currículo do curso, estágios como espaços apenas para a prática de um “criticismo vazio”, falta de parceria entre universidade e escola, dentre outros. Na academia, o estágio supervisionado tem se constituído campo de investigação para muitas pesquisas. Especificamente em Linguística Aplicada, identificamos estudos como o de Silva (2012) que descreveu o gênero textual relatório de estágio supervisionado em diferentes licenciaturas, o de Reichman (2012) que discutiu a relação entre as práticas de letramento e a formação identitária no estágio supervisionado em ensino de língua inglesa, o de Silva e Melo (2008) que investigaram o processo de formação do professor e a construção de objetos de ensino na disciplina de Estágio Supervisionado em ensino de Língua Portuguesa, dentre outros. Dando continuidade a esse veio de pesquisas, o presente trabalho tem como objetivo discutir a relação entre Estágio Supervisionado e ensino de Língua Portuguesa no curso de Letras/Português da Universidade Federal da Paraíba (doravante UFPB), explorando os limites e possibilidades deste componente curricular em nossa realidade. Nesse sentido, partimos dos seguintes questionamentos: qual o papel desempenhado pelos componentes curriculares do Estágio Supervisionado no curso de Letras/Português da UFPB e que tipo de relações tem sido estabelecido entre o Estágio Supervisionado e o ensino de Língua Portuguesa? Para atingirmos o objetivo pretendido, inicialmente, realizamos uma discussão a respeito das concepções de estágio supervisionado, fundamentando-nos em Leahy-Dios (2001) e Pimenta e Lima (2012); em seguida, defendemos a tese de que o estágio supervisionado se constitui em espaço para o conhecimento e transformação da realidade do ensino de Língua Portuguesa; depois, descrevemos e analisamos como se constituem os estágios no Projeto Político Pedagógico (doravante PPP) do curso de Letras/Português na UFPB; por fim, examinamos a relação entre estágio supervisionado e ensino de Língua Portuguesa a partir de relatórios de estágio supervisionado elaborados no período de 2009 a 2011. Afora as considerações iniciais e finais, a discussão teórica deste trabalho foi desenvolvida na primeira e segunda seções deste artigo, enquanto as discussões sobre a prática dos estágios supervisionados foram realizadas na terceira e na quarta seções. 206 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados ESTÁGIO SUPERVISIONADO: O QUE É? PARA QUE SERVE? O estágio supervisionado nos cursos de licenciatura, ao longo dos anos, tem sofrido com a posição que ocupa, ora por terem sido ministrados por professores do Centro de Educação e, portanto, não apresentavam grau de proximidade e experiência com as disciplinas específicas do curso de origem da formação docente, ora porque parte dos alunos e dos professores, da própria graduação, parecem não compreender a importância do estágio para a formação do professor, o que é mais grave, já que são diretamente interessados e responsáveis pela habilitação que o curso prevê em seu Projeto Político: a docência. Não obstante os problemas acima destacados que, parcialmente, já foram sanados com a nova diretriz curricular para a formação de professores da Educação Básica (Resolução Conselho Nacional de Educação - CNE /Conselho Pleno - CP 01/2002) e com a resolução que institui a duração e a carga horária dos cursos de licenciatura, de graduação plena (CNE/CP 02/2002), temos que enfrentar o campo de estágio, a escola, para construir convênios e, principalmente, constituir laços de estreita ligação entre a orientação e a supervisão realizada na universidade e o acompanhamento e necessidades do professor e da instituição de ensino a que ele está atrelado. Enfim, podemos dizer que ministrar aulas na disciplina de Estágio, na licenciatura, tem se mostrado um enorme desafio para os professores que atuam nessa área. De modo geral, encontramos dificuldades que emperram o bom andamento e a qualificação dos nossos futuros docentes. Acreditamos que pensar no estágio, compreender seu lugar e sua relevância em cursos que habilitam a profissão docente é vital para essa formação, pois o estágio é “a espinha dorsal” que ampara, dá suporte e encadeia todas as disciplinas do currículo do curso, estabelecendo convergências e diálogos entre todos os conhecimentos difundidos e discutidos ao longo da licenciatura. Contudo, por muito tempo O estágio sempre foi identiicado como a parte prática dos cursos de formação de proissionais, em contraposição à teoria. Não é raro ouvir, a respeito dos alunos que concluem seus cursos, referências como “teóricos”, que a proissão se aprende “na prática”, que certos professores e disciplinas são por demais “teóricos”. Que “na prática a teoria é outra”. (PIMENTA e LIMA, 2012, p. 33). Esses e outros discursos têm construído uma imagem negativa dos estágios; por isso, precisamos entender e estender o conceito desse componente curricular para uma visão que esteja em convergência com a concepção sociointeracionista do ensino de Língua Portuguesa. Assim, emprestaremos algumas concepções do que é o campo de estágio, das autoras Pimenta e Lima (2012, p. 55-56), as quais, após longa discussão e reflexão, apoiadas em demais teóricos, concluem: Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 207 Universidade Federal da Grande Dourados Esse conhecimento envolve o estudo, a análise, a problematização, a relexão e a proposição de soluções às situações de ensinar e aprender. Envolve experimentar situações de ensinar, aprender a elaborar, executar e avaliar projetos de ensino não apenas nas salas de aula, mas também nos diferentes espaços da escola. [...] Envolve o conhecimento, a utilização e a avaliação de técnicas, métodos e estratégias de ensinar em situações diversas. Envolve a habilidade de leitura e reconhecimento das teorias presentes nas práticas pedagógicas das instituições escolares. Ou seja, o estágio assim realizado permite que se traga a contribuição de pesquisas e o desenvolvimento das habilidades de pesquisar. Essa postura investigativa favorece a construção de projetos de pesquisa a partir do estágio. Considerando a definição acima, na qual as autoras reafirmam a importância e a abrangência do estágio e, principalmente, mostram todas as atividades que envolvem esse componente, apresentamos algumas reflexões que permeiam nossa compreensão a respeito do tema. As questões postas são inúmeras e nos remetem a perceber que o estágio é a congregação de todos os conhecimentos construídos ao longo da graduação; é a culminância dos conteúdos, conceitos e teorias que foram apresentados, abordados, debatidos e aplicados ao longo do curso. Neste caso, o aluno deve recobrar os estudos adquiridos até o momento e propor uma intervenção pedagógica que tenha como pressuposto a teoria e a pesquisa, logrando uma nova visão do estágio, isto é, campo de estudo que vai muito além das simples aplicação prática de um plano de aula. Embora o foco do estágio sejam ações de execução de projetos pedagógicos ou práticas de ensino em sala de aula, envolvem muitos outros movimentos por parte dos alunos, professores e escola como um todo. Nas ações de observar e realizar o diagnóstico de uma turma, por exemplo, estão implicadas várias questões conceituais da didática, do planejamento, da avaliação e do ensino de língua específicas ao objetivo daquela intervenção. Certamente, o discente necessitará retomar estudos anteriores para analisar a situação-problema a sua frente e refletir sobre as possíveis soluções, o que, posteriormente, o conduzirá a formular propostas de mediação do ensino-aprendizagem de determinado objeto de estudo. Outro momento importante, durante as atividades do estágio, que evidencia a postura investigativa do discente, é a proposição da prática pedagógica implementada através da elaboração dos projetos de trabalho que conjuguem conhecimentos específicos da área e do campo da educação. Assim, o aluno precisará apresentar concepções de propostas metodológicas, selecioná-las e utilizá-las no seu projeto, bem como deverá mostrar os fundamentos a respeito do objeto de estudo e sua familiaridade com a temática. Nesta perspectiva, o estágio passa a ter uma responsabilidade imensa nos cursos de formação de professores da educação básica. Certamente, ao absorvermos essa concepção, passamos a compreender que o componente deve propor situações de abordagem teórico-prática e não somente “prática”, de aplicação de conhecimentos, como vemos nos discursos correntes de alunos e de colegas professores. No tocante, aos cursos de Letras, isso não tem sido muito diferente, 208 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados A atual prática de ensino da licenciatura em Letras, estágio inal da formação de docentes de língua e literatura nacionais, é um indicador preciso das lacunas, falhas e dos dilemas encontrados na precária integração entre teoria e prática, entre o processo pedagógico e o produto proissional inal, entre os objetivos de um curso dirigido à formação de pesquisadores, de um lado, e a ação político-educacional de uma maioria de futuros professores de escolas estaduais, de outro. (LEAHY-DIOS, 2001, p. 19). Em pesquisa mais recente, Segabinazi (2011) destaca que, apesar das alterações do novo Projeto Político Pedagógico dos cursos de Letras, que ampliou a carga horária dos estágios para 400 (quatrocentas) horas, subsistem as contradições e falhas nesse componente curricular. Inclusive, em sua tese, a autora demonstra que os estágios no curso de Letras da UFPB separam-se, entre teóricos e práticos, ou seja, o próprio PPP viabiliza a ruptura entre esses conhecimentos que deveriam associar-se. Isso porque estão definidos sete estágios, sendo os três primeiros com ementas que preveem conteúdos teóricos e os quatro últimos de conteúdos práticos. Entretanto, apesar do descompasso, das lacunas existentes na formação docente de Letras, parece-nos que estamos em busca de alternativas para encontrar possibilidades de corrigir o problema; já constatamos em algumas publicações a presença de discussões e sugestões para equacionar a situação (cf. LEAHY-DIOS, 2001; PAIVA, 2005; FARIA, 2008), o que indica a preocupação de um processo de formação mais integrado. ESTÁGIO SUPERVISIONADO E O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA Como foi apresentado na seção anterior, nos distanciamos de uma visão dicotômica entre teoria e prática na qual teorias são colocadas no início do currículo das licenciaturas em Letras e práticas são apresentadas no final, em geral, materializadas por meio do componente curricular Estágio Supervisionado. Partindo dessa perspectiva, é que iremos discutir as relações entre o estágio supervisionado e o ensino de Língua Portuguesa, advogando a ideia de que o estágio pode se constituir um espaço para o conhecimento e a transformação da realidade da prática de ensino. Para desenvolvermos este ponto de vista, é necessário destacar que o estudo do português como disciplina curricular vem assumindo diferentes denominações e feições desde sua inserção na instituição escolar. E não é absurdo afirmar que as abordagens dadas à “prática de ensino” também sofreram alterações. Considerando que o conhecimento desse percurso, é fundamental em nossa discussão, apresentamos sucintamente a história da construção da disciplina de Língua Portuguesa. Segundo Soares (2004), do império até os anos 40 do século XX, o ensino de português se constituiu da Retórica, Poética e Gramática, já nos anos 50 passa por uma modificação no conteúdo e essas disciplinas são substituídas por gramática e texto. Para a autora: Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 209 Universidade Federal da Grande Dourados A fusão gramática e texto deu-se de forma progressiva, nesse período, como não poderia deixar de ser, se se considera que ela vinha alterar uma tradição que datava, na verdade, do sistema jesuítico. É uma progressão que pode ser claramente identiicada nos livros didáticos publicados nos anos 1950 e 1960. Assim, é que, nos anos 1950, já não se tem mais a conveniência com autonomia de dois manuais, uma gramática e uma seleta de textos, nas aulas de português: agora, gramática e textos passam a constituir um só livro. Entretanto, guardam ainda, nesses anos 1950, uma relativa autonomia: em geral, estão graicamente separados, a gramática apresentada numa metade do livro, os textos na outra metade [...]. (SOARES, 2004, p. 168). Soares (2004) ainda destaca que houve uma primazia da gramática em relação ao texto. Diferentemente, nos anos 70, sob a égide da ideologia do regime militar, o estudo da Língua Portuguesa é visto como um instrumento de comunicação a serviço do desenvolvimento. Há, portanto, uma mudança na denominação e no conteúdo da disciplina que passa a ser chamada de Comunicação e Expressão nas séries iniciais e Comunicação em Língua Portuguesa nas séries terminais. Essa alteração se explica pela influência da teoria da comunicação no ensino de língua materna. Para Soares (2004, p. 169), “já não se trata mais do estudo sobre a língua ou estudo da língua, mas de desenvolvimento do uso da língua”. Os textos não são mais selecionados pelo critério literário, mas pela sua presença nas práticas sociais. Na segunda metade da década de 80, por sua vez, há um retorno à denominação “Português”, já que houve questionamentos sobre os resultados obtidos no desempenho dos alunos no período anterior e ausência de respaldo da concepção de língua como instrumento tanto no contexto político e ideológico quanto no contexto científico. Nesse período, as teorias desenvolvidas na Linguística começam a adentrar as salas de aula de Língua Portuguesa da educação básica, embora nos cursos de Letras essas teorias já tenham sido introduzidas desde os anos 60. O desenvolvimento de teorias linguísticas promoveu mudanças nas concepções de ensino de língua e fomentou a necessidade de uma política linguística oficial que embasasse essa nova visão. A publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, em 1997, é um exemplo da presença das teorias linguísticas nesse “discurso de mudança” sobre o ensino de português. Segundo Marcuschi (2001), é possível identificar conteúdos linguísticos nos parâmetros, tais como: o acolhimento da noção de variedade linguística e de gêneros textuais, a adoção de uma concepção de língua que privilegia os aspectos sociais e históricos, a definição do texto como unidade básica de ensino, dentre outros. Considerando as transformações pelas quais passou a disciplina de português, é crível supor que as concepções de língua, sujeito, leitura e escrita, por exemplo, vigentes em cada uma das diferentes etapas acima destacadas interfiram na forma de compreender e intervir na realidade de ensino de língua. Como ilustração, quando houve um predomínio da perspectiva formalista no ensino de português, a “prática de ensino” fundamentava-se, por exemplo, nas didáticas e nas metodologias de ensino de língua. 210 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Essa percepção deixa claro que a realidade do ensino de Língua Portuguesa não é imutável e sofre influências decisivas de fatores macro sociopolíticos e epistemológicos. Sobre essa questão, Surdi da Luz (2009) dá um passo adiante quando afirma que há uma conjunção entre os saberes da Linguística e os saberes do ensino ao analisar a presença da Linguística em um curso de Letras, voltado à formação de professores. Para a autora: O contexto sócio-histórico em que é construído o projeto do Curso de Letras é determinante para que se compreendam suas especiicidades, uma vez que ele será afetado pela constituição do discurso da mudança no ensino de língua (Pietri, 2003) que emerge nos anos inais da década de 70 e início da década de 80. Nessa época, tomam corpo os discursos sobre a necessidade de se repensar os rumos do ensino de língua materna e do papel da Linguística nessa reformulação. E é após essa emergência que o curso se conigura, sendo, pois, afetado e determinado por tal contexto ou, nos termos da AD1, pelas condições de produção. (SURDI DA LUZ, 2009, p. 180). (Grifo nosso). Nessa perspectiva, podemos concluir que o “discurso de mudança” no ensino de língua materna interfere decisivamente tanto na constituição da disciplina de Língua Portuguesa quanto nos currículos dos cursos de Letras. Consequentemente, a visão de estágio supervisionado e a observação e a intervenção dos graduandos na sala de aula de Língua Portuguesa seguiram o curso dessas transformações. Dessa forma, considerando a “conjunção de saberes” proposta por Surdi da Luz (2009), o acesso dos estudantes a uma visão sócio-histórico discursiva de língua não os possibilitaria o exercício de uma prática pedagógica que refletisse esta concepção? Em tese, supomos que sim. Mas a ideia a que nos propomos defender precisa ser destrinçada: o Estágio Supervisionado pode se constituir em espaço de conhecimento e transformação da realidade? Em primeiro lugar, o estágio não pode ser visto em uma perspectiva instrumental, um empirismo desconexo, sem uma relação dialógica com diferentes teorias (da Linguística e de outros campos do conhecimento). Anteriormente, fizemos menção à aproximação entre Linguística e ensino, ilustrações não faltam na literatura discutindo as contribuições de diferentes áreas, tais como: a Linguística de Texto (cf. KOCK, 1999), a Sociolinguística (cf. CARVALHO, 2010), a Psicolinguística (cf. MONTEIRO, 1997), dentre outras. Especificamente em relação à Linguística Aplicada ao ensino de línguas são grandes as contribuições visto que um dos objetivos da área é resolver problemas da prática de uso da língua, ao mesmo tempo em que dialoga com teorias e métodos de diferentes áreas disciplinares (cf. MOITA LOPES, 2009). Por outro lado, em relação às outras áreas do conhecimento, temos consciência de que apenas o conhecimento de teorias e, em especial de teorias linguísticas, não é suficiente para mudar a realidade do ensino do português, mas acreditamos que sem esses fundamentos é muito mais difícil pensar a prática. 1 A autora se refere à Análise do Discurso. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 211 Universidade Federal da Grande Dourados Em segundo lugar, o estágio deve se constituir em espaço de reflexão sobre a prática, seja a dos professores, seja a dos graduandos. Em relação ao primeiro aspecto, não importa se o aluno de Estágio Supervisionado observa “boas” aulas, o que interessa é que saiba abstrair os elementos subjacentes a esta aula e consiga perceber criticamente os problemas e as experiências positivas que atravessam as práticas pedagógicas. Destacamos, outrossim, que essa reflexão não pode ser compreendida como “criticismo vazio” que serve apenas para “[...] rotular as escolas e seus profissionais como ‘tradicionais’ e ‘autoritários’ [...]” (PIMENTA e LIMA, 2012, p. 40). Uma atividade mais produtiva seria o exercício de compreensão e de significação das diferentes práticas observadas e vivenciadas. Por exemplo, em vez de criticar a aula de produção textual que foi desenvolvida em uma perspectiva de produto, por que não refletir a respeito dos significados dessa prática em conexão com o processo de formação do professor, com as diferentes visões de língua deste, com os materiais didáticos utilizados? Em relação ao segundo aspecto, nos referimos a uma reflexão sobre a atuação dos graduandos nas salas de aula de português instaurando o ciclo ação-reflexão-ação. Várias são as contribuições para o ensino da Língua Portuguesa que podem advir dessa postura crítica, tais como: conduzir ao aprimoramento da prática, a partir do refazimento do caminho percorrido e da identificação dos pontos positivos e negativos; permitir novas releituras sobre a sala de aula de português, por meio da ressignificação de crenças e/ou conhecimentos já adquiridos; e construir ou desconstruir identidades enquanto professor de português. Em relação às crenças, fazemos remissão ao que Almeida Filho (2009) denomina competência implícita do professor de línguas que são as crenças de como ensinar e aprender línguas advindas de experiências anteriores. Em nossa perspectiva, a reflexão propiciaria a passagem da prática pedagógica embasada no conhecimento implícito para a prática pedagógica fundamentada no conhecimento explícito. Como ilustração, a crença de que o ensino da gramática normativa levará os estudantes a produzirem textos coerentes e coesos (SOUSA e VAGO, 2008) poderia ser alterada diante do processo de ação-reflexão-ação dos estudantes de Letras. Já em relação à ação-reflexão-ação e a des(construção) de identidades, nós partimos do princípio de que a identidade não é imutável e as práticas reflexivas vivenciadas no Estágio Supervisionado contribuem para que os graduandos possam construir novas identidades pedagógicas ancoradas em uma visão de língua sociointeracionista. Sobre essa questão, Oliveira (2006, p. 109) traz à tona a relação com o currículo do curso de Letras: [...] a discussão da relação teoria e prática não pode dispensar uma discussão sobre a organização curricular dos saberes de referência, os saberes disciplinares, que subjazem aos cursos de licenciatura em Letras, entendendo os currículos como instrumentos de viabilização de políticas públicas, lugar onde são processados, produzidos e transmitidos conhecimentos, construindo subjetividades e identidades, espaços privilegiados de seleção dos conhecimentos. Em outras palavras, signiica 212 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados pensar o currículo de cursos de formação de professores comprometidos com uma “metaformação”, uma formação consciente, a partir de uma visão de educação que questione o “fazer” pedagógico, no caso especíico dos professores de língua materna, formando proissionais comprometidos não apenas com o ensino da estrutura de línguas, mas também com o entendimento do funcionamento da linguagem como uma prática discursiva de natureza social. (Grifo nosso). Acatar a afirmação de Oliveira (2006) de que as identidades dos graduandos são constituídas a partir de saberes curriculares é reafirmar a imbricada relação entre teoria e prática, visto que alguns conhecimentos que são discutidos nos bancos acadêmicos não deveriam transformar-se em conhecimento abstrato e sim incorporar-se nos fazeres pedagógicos. E, por último, o estágio pode se constituir um espaço para a construção de saberes que permitem alimentar a simbiótica relação teoria e prática. É o que Pimenta e Lima (2012, p. 48) denominam “epistemologia da prática docente”, e que consiste [...] na valorização da prática proissional como momento de construção de conhecimento por meio da relexão, análise e problematização dessa prática e a consideração do conhecimento tácito, presente nas soluções que os proissionais encontram em ato. Por outro lado, não estamos defendendo a hegemonia de uma “epistemologia da prática” em detrimento de uma “epistemologia dos conteúdos”, ao contrário, reafirmamos a complementariedade desses saberes. A nosso ver, a conjunção dessas epistemologias pode conduzir a proposição de um “professor pesquisador”, ou seja, de um professor que seja capaz de analisar a realidade e trazer contribuições para a prática docente. Em relação ao ensino da Língua Portuguesa, Bagno (2001, p. 66) propõe um ensino crítico da norma padrão pautado na investigação das manifestações linguísticas materializadas em diferentes gêneros textuais e de variedades de língua. Ainda, segundo o autor, [...] é fundamental e indispensável que o estudante de Letras, o futuro professor de língua, conheça profundamente essa tradição gramatical, bem como as teorias linguísticas que vêm se desenvolvendo em épocas mais recentes. Ainal, o professor de língua tem de ser um linguista, um pesquisador, um proissional do seu campo de interesse, um especialista na sua área de atuação [...] Embora a identidade do professor de português, proposta por Bagno (2001), não corresponda ainda ao perfil dos graduandos em Licenciatura em Letras, pelas deficiências de leitura de escrita que trazem da educação básica, acreditamos na necessidade de persistir na formação de docentes que apresente essas competências. Afinal, qual seria o papel da formação inicial se não tentar conjugar conhecimentos do campo da língua e sua interfaces com a pesquisa e o fazer pedagógico? Nesta seção, apresentamos três concepções de estágio, enquanto perspectiva não instrumental, enquanto espaço de reflexão sobre a prática e enquanto espaço de construção de saberes, que possibilitam o conhecimento e a transformação da realidade da sala de aula de português. Observamos que essas visões se interconectam visto, que em Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 213 Universidade Federal da Grande Dourados todas elas está subjacente a concepção de que teoria e prática estão umbilicalmente ligadas. Nesse sentido, fazemos nossas as palavras de Pimenta e Lima (2012, p. 45) que afirmam: “[...] o estágio curricular é atividade teórica de conhecimento, fundamentação, diálogo e intervenção na realidade, esta, sim, objeto da práxis”. Em outras palavras, é o contexto da sala de aula de português o locus onde a prática se realiza e não o Estágio Supervisionado. Considerando essa discussão teórica entre estágio supervisionado e ensino de Língua Portuguesa, na seção a seguir, abordaremos tal questão a partir da análise do Projeto Político Pedagógico do curso de Letras/Português e de relatórios de estágio elaborados pelos estudantes, buscando responder as seguintes questões: qual o papel desempenhado pelos componentes curriculares do Estágio Supervisionado no curso de Letras/Português da UFPB e que tipo de relações os alunos estabelecem entre o Estágio Supervisionado e o ensino de Língua Portuguesa? O ESTÁGIO SUPERVISIONADO NO PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO DO CURSO DE LETRAS DA UFPB O Projeto Político Pedagógico do Curso de Licenciatura em Letras da UFPB, Campus I, foi publicado em maio de 2006, após sete anos de discussões, ajustes às realidades a que deveria adequar-se o curso de Letras, em suas cinco habilitações, a saber: em Língua Portuguesa, sob a responsabilidade do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (doravante DLCV) e as habilitações em línguas estrangeiras modernas (Inglês, Francês, Espanhol e Alemão), sob a responsabilidade do Departamento de Letras Estrangerias Modernas (doravante DLEM). Aliada à necessidade de rever a estrutura do curso, sua elaboração teve início em 1999, por exigência do Edital do MEC 04/97, que convocava as Instituições de Ensino Superior a revisarem seus currículos e elaborarem os seus Projetos Políticos Pedagógicos, com a finalidade de se adequarem à nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB/96), como se encontra justificado no próprio Projeto Político Pedagógico de maio de 2006 (doravante PPP). Participaram das primeiras discussões, professores dos dois departamentos (DLCV e DLEM) que formaram uma comissão responsável pelas discussões e elaborações do documento que nortearia o trabalho pedagógico nessa instância da UFPB. Nesses longos sete anos, novas resoluções surgiram e a realidade social a que foi submetido o Curso de Letras passou por muitas transformações, que levaram a elaboração do PPP ser prorrogada e sua publicação ser postergada. Uma dessas alterações deu-se exatamente nos pontos nevrálgicos da então Prática de Ensino, disciplina do currículo antigo, responsável por formar ou formatar o fazer pedagógico. Essa disciplina, de um modo geral, era ministrada por docentes dos cursos de Educação, que não tinham formação específica na área de língua e que trabalhavam a visão didático-metodológica. Nesse modelo, o licenciando ia às escolas de ensino básico apenas para observar aulas, 214 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados fazer algumas intervenções e relatar depois essa prática. Não havia, portanto, de certo modo, relação dessa prática com as disciplinas teórico-práticas do curso. Em decorrência das mudanças sociais e das novas perspectivas do ensino básico, implementadas, sobretudo, pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a necessidade de uma formação continuada para os professores em exercício, urgia uma reformulação principalmente no tocante a novas atribuições que o futuro docente precisa ter para se inserir no contexto escolar. Como afirma Segabinazi (2011, p.183), [...] o peril indica que a formação deve proporcionar ao futuro docente, além da proissionalização, o compromisso com a cidadania e com a ética, exigindo uma atuação social que se estenda para além dos muros escolares. Ou seja, não podemos mais constituir currículos que atendam apenas a conteúdos mínimos para a formação teórica e cientíica dos nossos professores. São necessárias atitudes e atividades que desenvolvam ações de crescimento pessoal e social, que conscientizem nosso aluno a pensar e tomar para si a responsabilidade de participação e compromisso com a sociedade em que está inserido. Nesse sentido, abrem-se novas possibilidades de compreender as licenciaturas também em decorrência do profissional e cidadão que se deve formar para que, tanto as disciplinas “teóricas’’ quanto as consideradas “práticas” façam um novo sentido na formação inicial. Ao lado dessa necessidade de formar o docente capaz de exercer a sua cidadania nas escolas e, consequentemente apto a formar cidadãos éticos e críticos, é que a elaboração do PPP ajusta-se para cumprir a Lei Federal nº 11.788, de 25/09/2008, que regulamenta 400 horas para a realização do Estágio Curricular obrigatório, nos cursos de graduação. Em consonância, o PPP do curso de Letras/ Português determina o cumprimento da carga horária de 420 horas, distribuídas em sete componentes curriculares de Estágio Supervisionado, todas com carga horária de 60 horas, iniciando a partir do 5º período letivo do curso. Esses componentes curriculares de Estágio no DLCV encontram-se separados com abordagens literárias e linguísticas, como podemos ver ilustradas no quadro a seguir. Quadro 1: Estágio Supervisionado no currículo do Curso de Letras/Português da UFPB. Língua Literatura Estágio Supervisionado III Estágio Supervisionado I (Para (Para o Ensino Fundamental II o Ensino Fundamental II) e Médio) Estágio Supervisionado II Sem intervenção na sala de aula. Sem intervenção na sala de aula. (Para o Ensino Médio) Estágio Supervisionado IV Estágio Supervisionado V (Para (Para o Ensino Fundamental II) o Ensino Fundamental II) Estágio Supervisionado VI (Para o Ensino Médio) Modalidade do Estágio Estágio Supervisionado VII (Para o Ensino Médio) Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Com intervenção na sala de aula. Com intervenção na sala de aula. 215 Universidade Federal da Grande Dourados No presente artigo, debruçamo-nos na situação do Estágio Supervisionado IV que tem em sua ementa a abordagem focada na “aplicação” de conteúdos voltados para a análise linguística, leitura e produção textual, com foco na intervenção em sala de aula do Ensino Fundamental II como encontra-se descrita a seguir (PPP, 2006, p. 65). ESTÁGIO SUPERVISIONADO IV Ementa: Iniciação à docência e intervenção no cotidiano escolar: aplicação de conteúdos básicos de Língua Portuguesa em sala de aula do Ensino Fundamental (leitura, produção de texto e análise linguística). Pela ementa descrita acima, podemos observar o viés prático imputado a esse componente curricular, descrito, sobretudo, por meio da palavra “aplicação”, o que significa dizer que o graduando vai à sala de aula como o propósito apenas de levar as teorias linguísticas para sua prática em sala. Aspecto este já questionado há muito tempo pelos estudiosos da Linguística Aplicada (MOITA LOPES, 2006; PAIVA, SILVA e GOMES, 2009). Em 2009.2, tivemos as primeiras turmas do novo currículo, o qual trazia em sua composição os componentes curriculares de Estágio Supervisionado IV e V, que têm em suas ementas a exigência de realizar a prática em Língua e Literatura na sala de aula de Ensino Fundamental II, o que não ocorria nos estágios anteriores. Com o início dessas novas atividades curriculares no DLCV, começam outros desafios, pois a inserção do graduando nas escolas do ensino básico requer não só o cumprimento das leis, mas a tarefa de relacionar as teorias vivenciadas à época no curso à realidade encontrada nas escolas do Ensino Fundamental. Aliada a essas dificuldades, acrescenta-se a aceitação do graduando nas escolas municipais que, em sua maioria, já contam com um número expressivo de estagiários do Apoio Pedagógico às Atividades de Língua Portuguesa (Leitura e Escrita), Matemática, Ciências e Inglês2. Além desse aspecto, aparecem questões relacionadas à concepção desse estágio obrigatório e não remunerado para a comunidade escolar, bem como para os professores da graduação em Letras/Português e, consequentemente, o próprio graduando que considera os componentes curriculares de Estágio Supervisionado pouco relevantes para a sua atuação profissional. Projeto de parceria entre a Secretaria Municipal de João Pessoa e a UFPB, através do qual os graduandos de Letras/Português podiam realizar o estágio remunerado e não obrigatório e atuar como monitores na disciplina de Língua Portuguesa nas escolas municipais. Esse projeto teve vigência até o ano de 2012. 2 216 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados ESTÁGIO SUPERVISIONADO: LIMITES E POSSIBILIDADES Nas salas de aula de Estágio Supervisionado, ouvimos com muita frequência os graduandos dizerem que são muitas horas de Estágio, que seria mais proveitoso se essas horas fossem usadas no ensino da gramática normativa. Neste sentido, a concepção de ensino de Língua Portuguesa restringe-se a ensinar gramática normativa e, por isso, as disciplinas da licenciatura em Letras/Português, no seu novo currículo, de 2006, segundo declarações dos próprios graduandos em relatório de estágio, “não preparam o graduando para enfrentar a sala de aula do Ensino Fundamental, porque a gramática não é ensinada no curso e por este motivo, vamos para as escolas meio perdidos e com muitas dificuldades de entrar em sala de aula” (Relatório de Estágio Supervisionado IV, 2009.2). Apesar das inúmeras discussões e estudos realizados na academia, que enfatizam o ensino de língua a partir do texto, estes parecem insuficientes para que o estagiário utilize o texto como objeto de ensino e aprendizagem. Opondo-se à preponderância do texto no ensino da Língua Portuguesa, temos a realidade vivenciada pelo estagiário que permite refletirmos sobre o que se efetiva como objeto de ensino. Após as observações de aulas do professor de português na escola dos Ensinos Fundamental e Médio, o graduando deverá ministrar sua aula, respeitando o programa do professor e, logo, deverá seguir o que lhe foi proposto como descrito no excerto do relatório abaixo. [...] fomos até a professora e ela nos orientou no assunto a ser abordado: tipos de predicado (verbal e nominal) - que está inserido no tema sintaxe. Ela disse que não aprofundasse muito o assunto, que icasse num nível supericial, para que os alunos não sentissem muitas diiculdades. Em seguida, nos indicou o livro didático utilizado pela escola: Português linguagens, de Cereja e Magalhães. (Relatório de Estágio Supervisionado IV, 2009.2). Observamos, portanto, que a preocupação do ensino de Língua Portuguesa encontra-se totalmente voltado para o trabalho com classificações, como prevê Antunes (2003); contudo, a autora também afirma que dar aulas de português é auxiliar o educando no aperfeiçoamento do falar, ouvir, ler e escrever textos em Língua Portuguesa. Perguntamo-nos então: ensinar Língua Portuguesa é insistir na classificação dos termos da oração em detrimento de seu uso para realizarmos a fala, a escuta, a leitura e a escrita ou produção de textos? Por conseguinte, todas as competências enumeradas no questionamento acima se realizam por meio do texto. Nessa perspectiva, Antunes (2003, p. 110) considera que o texto é o objeto de estudo e ensino da língua, portanto, é responsável por “[...] condicionar a escolha dos itens, os objetivos com que os abordamos e as atividades pedagógicas”. Em outras palavras, não deve o texto ser meramente usado para servir ao estudo gramatical; ao contrário, deve aparecer como objeto que serve para refletir os usos da gramática e todos os demais aspectos que ajudem a compreendê-lo e produzi-lo. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 217 Universidade Federal da Grande Dourados As experiências recentes nos mostram que prevalece a gramática normativa como objeto de ensino nas salas de estágio, por exemplo, nas microaulas propostas nos componentes curriculares de Estágio Supervisionado. Mesmo mediante das orientações de alguns professores de estágio que tentam implementar conteúdos de análise linguística para a realização da leitura e da produção textual, o graduando só consegue, em sua maioria, trabalhar a gramática normativa. Ou seja, nessa concepção de ensino de língua materna, para nós, o português, a aula de português parece servir apenas para ensinar e aprender gramática normativa e essa é o único tipo de gramática existente. Para alguns graduandos, a sua ida às escolas para a realização do estágio reforça a necessidade de ter o texto apenas como pretexto para a exploração gramatical. É o que se confirma nos relatórios: [...] utilizando exemplos extraídos dos textos apresentados inicialmente, foi explicado aos alunos noções de predicado verbal e nominal. Com base no texto de Maria Eugênia Duarte, “Termos da oração’’, realizamos nosso embasamento para ministrar a aula. Dessa forma, pretendemos evitar incertezas e palavras contraditórias com a explicação gramatical. Por im, com base na nossa intervenção, alcançamos um debate sobre como aplicar as teorias vistas na graduação na realidade escolar. Durante todo o estudo na universidade, somos advertidos da ineicácia do ensino de gramática tradicional, contudo, ao chegar à escola, vemos que não há oportunidade para colocar tais teorias em prática. A escola parece não estar preparada para novos ensinos e conteúdos. Logo, houve uma certa distância entre aquilo que vimos nas salas de aula da academia, as teorias de linguística aplicada, e o que vivenciamos na escola, através da professora titular. (Relatório de Estágio Supervisionado IV, 2009.2). Esse fato nos faz visualizar o afastamento entre universidade e escola, mesmo diante da possível parceria que é feita entre essas instituições na formação inicial. Desta forma, a inserção da universidade ainda não é suficiente para favorecer a compreensão necessária à visão mais ampla do ensino de Língua Portuguesa. Podemos também atribuir essa dependência ao ensino de gramática normativa, ao fato de a proposta sociointeracionista, na educação brasileira, tão presente em geral nos Projetos Políticos Pedagógicos das escolas, ainda não ter sido realmente entendida. O que observamos é que parece haver um desencontro entre os discursos da universidade, dos documentos oficiais e da escola. Nessa perspectiva, até que ponto os componentes curriculares do curso de Letras/Português, eminentemente teóricos, têm dialogado com a prática na sala de aula de português e de literatura? Retomando a questão da supremacia da gramática normativa em detrimento do ensino voltado ao texto, remetemo-nos ao currículo atual da nossa licenciatura em Letras. Segundo o PPP de 2006, a licenciatura em Letras/Português tem o seu currículo composto de 2880 horas como está descrito no quadro 02. 218 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Quadro 2: Composição curricular do curso de Letras/Português da UFPB. Conteúdos curriculares Carga horária Créditos 1 Conteúdos básicos profissionais 1800 120 Conteúdos básicos de língua e literatura 1080 72 Formação pedagógica 300 20 Estágio supervisionado 420 28 2 Conteúdos complementares 1080 72 2.1 Conteúdos complementares obrigatórios 720 48 2.2.1 Gerais 120 08 2.2.2 Da formação pedagógica 120 08 120 08 2880 192 2.2 Conteúdos complementares optativos 2.3 Conteúdos complementares flexíveis TOTAL Nos grupos de conteúdos básicos profissionais de língua e literatura, há componentes curriculares que têm como objetivo preparar o aluno para trabalhar com conteúdos relacionados à estrutura da língua, ou seja, conteúdos considerados do núcleo rígido como é o caso da Morfologia, Sintaxe, Fonética e Fonologia, entre outras, e componentes curriculares voltados para o estudo e a reflexão sobre leitura e produção textual. Mesmo com todas essas distinções, todos os componentes curriculares deveriam possuir implícita ou explicitamente uma relação com a formação docente por tratar-se de licenciatura como temos discutido neste artigo. Perguntamo-nos, no entanto, por que o graduando não consegue fazer essa ligação entre estágio e os demais componentes curriculares do curso? O que o impede de fazer essa relação? Há duas disciplinas de Leitura e Produção de Texto, com ementas que se diferenciam apenas pelo fato de a primeira ser voltada para o trabalho com a leitura e a segunda com a escrita de texto, porém, ambas buscam reunir teoria e prática para a produção e leitura de textos, permitindo que o graduando tanto realize a reflexão e a prática na universidade como no espaço escolar onde fará o estágio. Vejamos a ementa das disciplinas Leitura e Produção de Texto I e II para discutirmos como seria possível esse diálogo. LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTO I Ementa: Concepções de leitura. A relação leitor, texto e autor. Reflexões teórico-práticas: abordagem de diferentes gêneros textuais/discursivos. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 219 Universidade Federal da Grande Dourados LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTO II Ementa: Concepções de escrita. Papel da escrita e o lugar do escritor na sociedade. Reflexões teórico-práticas: produção de textos, pertencentes a diferentes gêneros textuais/discursivos. Como podemos observar, as ementas contemplam a relação teoria e prática, aspecto já legalizado por meio do Parecer do CNE/Câmara de Educação Superior (CES) 492 de 2001 e que não encontramos referendado nas demais ementas dos conteúdos básicos obrigatórios3 do PPP, o que nos faz constatar que a ausência dessa relação não contribui para a formação do futuro professor de português. Por outro lado, temos consciência de que ementas dessa natureza não são suficientes se os docentes do curso não vivenciarem a imbricada relação teoria e prática. Ao nos reportarmos precisamente à relação dos demais componentes curriculares do PPP com o estágio, podemos vislumbrar a frequência de situações em que o graduando prepara seu projeto de estágio utilizando a teoria e a prática do estágio com base no que foi trabalhado precisamente nessas disciplinas; porém, em geral, há resistência por parte das escolas em compreender a proposta que o graduando tem em mãos por conta do conteúdo que a disciplina de Língua Portuguesa se propõe a cumprir e da necessidade que tem de “vencer o livro didático”. Entretanto, em situações em que a escola dá a abertura ao graduando, ao mesmo tempo em que este se propõe a vivenciar a prática e a teoria, usando a relação com os demais componentes curriculares do curso, vemos reflexões que o fazem entender também que é a oportunidade de colocar à prova os conhecimentos apreendidos nas salas da universidade. Conhecimentos estes construídos nos estágios passados, nas disciplinas de Didática e da Pesquisa Aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa, como menciona uma graduanda do Estágio Supervisionado IV, ao refletir sobre a relação teoria e prática em salas de aula. Muita coisa já foi feita para que o ensino de língua seja uma atividade mais fácil de ser executada, porém nem sempre o que se diz na teoria é colocado em prática de forma correta e com os objetivos bem estipulados. Com isso o que percebemos é que talvez o problema seja na forma como as teorias estão sendo praticadas desse modo nos levando a pensar se o melhor não é fazer um aprofundamento junto aos professores [das escolas] dessa disciplina para que os mesmos entendam o “como fazer” e inalmente os alunos entendam e compreendam o aprender língua portuguesa. (Relatório 2011.1; Estágio Supervisionado IV). Por outro lado, mesmo diante das dificuldades, é possível levar o graduando a perceber elos que integram os componentes curriculares do curso de Letras com a sua prática em sala de aula. Dessa forma, o licenciando em Letras tem oportunidade durante o curso de vivenciar componentes curriculares que o auxiliam na estruturação do Disciplinas de conteúdos básicos proissionais: Língua Latina I, História da Língua Portuguesa, Fonética e Fonologia da Língua Portuguesa, Morfologia da Língua Portuguesa, Sintaxe da Língua Portuguesa, Semântica, Leitura e Produção de Texto I, Leitura e Produção de Texto II e Pragmática. 3 220 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados estágio, sobretudo, no que se refere ao ensino de Língua Portuguesa, às concepções de língua, texto, leitura, produção textual, dos componentes curriculares do considerado “núcleo rígido’’, da análise linguística e de tantos outros aspectos que auxiliam na formação de um docente de Língua Portuguesa, capaz não só de lecionar a disciplina, mas de ver a sala de aula como um amplo e vasto campo de pesquisa. O excerto a seguir comprova essa afirmação. Retomando toda a trajetória realizada desde as disciplinas Estágio Supervisionado I, Estágio Supervisionado II até chegar ao Estágio Supervisionado IV, observamos que a junção das referidas disciplinas renderam bons frutos, resultantes de um diálogo entre as teorias vistas no decorrer de tais disciplinas que abrangem o currículo do Curso de Letras com as experiências vivenciadas na sala de aula a partir dessa articulação entre teoria e prática, tornou-se possível uma análise crítica do que signiica ser professor de língua materna. (Relatório 2010.1; Estágio Supervisionado IV). De posse da reflexão sobre a relação entre os componentes curriculares do curso Letras/Português, faz-se necessário avançarmos na discussão trazendo um questionamento sobre teoria e prática dentro do Estágio Supervisionado e dentro da própria escola. Há quem entenda o Estágio Supervisionado como uma disciplina eminentemente prática, talvez pela maneira como fora encarada antes da reforma curricular, quando ainda se chamava Prática de Ensino. Entretanto é plausível observarmos que a prática deve advir de uma teoria e, indubitavelmente, leva a construção de novas teorias e renovação de outras já existentes. Com o Estágio Supervisionado não é diferente, principalmente por oportunizar a pesquisa relacionada ao ensino, campo vasto para detectarmos situações-problema que promovam a constante mudança no fazer pedagógico. E, em se tratando do ensino de língua materna isso se torna mais instigante. Nos componentes curriculares de Estágio Supervisionado da UFPB, é possível buscar uma realização teórico-prática. Ao cumprir as ementas dos Estágios I e II, o professor da disciplina na UFPB é impelido a trabalhar com documentos oficiais que trazem discussões sobre teorias vistas nos demais componentes curriculares do curso e nas teorias que embasam esses documentos, bem como é impelido a trabalhar com a avaliação de materiais didáticos. Antes de ir às escolas-campo, professores que ministram os Estágios IV e VI podem levar o graduando a repensar as concepções de ensino de língua e suas respectivas metodologias, bem como concepções que norteiam os materiais didáticos a serem aplicados em situação de ensino. De posse dos conhecimentos teóricos, o graduando elabora material para sua futura intervenção em sala de aula, quer por meio de sequências ou projetos didáticos de ensino, quer por meio de atividades a serem realizadas nas escolas (minicursos). Portanto, ao elaborar esses materiais e ao pensar em sua prática, o licenciando necessita de embasamento teórico, tanto para refutar os conhecimentos que considera desnecessários à sua prática com o ensino do português, quanto para justificar a escolha de conhecimentos e métodos a serem contemplados na prática. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 221 Universidade Federal da Grande Dourados Dessa forma, teoria e prática no estágio é completamente indissociável por tudo já aqui colocado e pelas possibilidades de diálogo e reflexão que estão presentes no fazer pedagógico que esse componente curricular impõe, sobretudo, quando se refere ao tratamento que precisa ser dado à língua nos dias atuais, não mais de uma língua desconexa da realidade. Apesar das inúmeras dificuldades pelas quais parecem passar o licenciando de Letras/Português no tocante ao estágio, observamos também que o futuro professor consegue atingir objetivos propostos nesses componentes curriculares que lhes dão a oportunidade de vivenciar o ensino de língua na escola básica, alavancando assim reflexões teóricas do próprio estágio. Pode ser o estágio também esse momento, tanto para o graduando quanto para o professor da escola, o momento de refletir sobre sua prática e tomar consciência de quão pesquisadores esses sujeitos precisam ser. Além desses atores, é fundamental que o professor formador reflita sobre sua prática e torne-se partícipe no processo de construção pedagógica nas escolas-campo em que estão envolvidos estagiário e docente. Isso porque nos parece que o professor formador assume apenas a postura de observador dessa realidade. Nessa perspectiva, os componentes curriculares de estágio podem proporcionar ao graduando o estabelecimento de elos entre a pesquisa e a prática docente como é possível constatar no excerto a seguir. Devido à falta de pesquisas como essa que realizamos na disciplina de estágio supervisionado IV, os professores quando acabam a graduação icam perdidos sem saber o que fazer e como agir na sala de aula, essas práticas de pesquisa são muito relevantes para o aluno/professor de letras, pois faz com que esse aluno tenha relexões e experiências em relação ao contexto educacional. (Relatório de Estágio Supervisionado IV, 2010.2). Nesse sentido, é importante observar que o trabalho do estágio não é apenas colocar o graduando na escola-campo e fazê-lo pensar na docência. O papel que o Estágio desempenha nas licenciaturas vai além da prática em sala de aula, pois permite que o graduando reflita sobre o papel do docente na sociedade atual e sobre as competências necessárias para atuar como professor. O excerto a seguir é uma demonstração do lugar do estágio no processo de formação profissional dos futuros professores de Língua Portuguesa. Os momentos de observação, ministração e reflexão da prática docente que constituem a disciplina de Estágio Supervisionado IV são, enfim, um momento essencial para o futuro professor, pois é nesse confronto com as peculiaridades da sala de aula que o professor vai se formando, repensando seus conceitos, elaborando suas ações [...] Em suma, avaliar uma disciplina tão decisiva para a formação do aluno do curso de Letras implica realizar uma avaliação maior dos conhecimentos adquiridos ao longo da graduação. O estágio, na verdade, vem a ser um momento importante e como este vem dividido em diferentes disciplinas até chegar à prática docente faz com que o 222 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados estagiário consiga aplicar uso e reflexão de tudo o que vem/foi trabalhado ao longo da graduação. (Relatório de Estágio Supervisionado IV, 2010.1). Embora tenhamos observado entraves e lacunas que podem obliterar as funções do Estágio Supervisionado na licenciatura em Letras, a análise ainda nos permitiu identificar que o papel desempenhado pelo estágio é fundamental para ampliar o diálogo, a troca de ideias, informações e experiências entre docentes do ensino superior e básico e graduandos na perspectiva de criar possibilidades para o desenvolvimento de um trabalho pedagógico e de pesquisa. Por fim, o Estágio Supervisionado se constitui em espaço para o fortalecimento da ressignificação das práticas docentes na área de Língua Portuguesa. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho se propôs a refletir a relação entre Estágio Supervisionado e ensino de Língua Portuguesa no curso de Letras/Português da UFPB, explorando os limites e as possibilidades deste componente curricular em nossa realidade. Para a realização deste objetivo, inicialmente apresentamos uma concepção de estágio supervisionado que se caracteriza por possibilitar ao graduando uma formação integral, em que as discussões teórico-práticas realizadas ao longo do curso estejam em consonância com a proposta de intervenção pedagógica que se pretende realizar na escola. Essa intervenção, por sua vez, deve ter um cunho investigativo de ação-reflexão-ação, ou seja, durante a práxis do estágio se retorne a teoria e se revejam novas ações. Em seguida, defendemos a ideia de que o estágio pode se constituir em espaço para o conhecimento e transformação da realidade da prática de ensino de Língua Portuguesa. Fundamentamo-nos nos argumentos de que o estágio supervisionado deveria apresentar uma relação dialógica com diferentes componentes curriculares, constituindo-se momento de reflexão sobre a prática pedagógica dos professores da escola e da universidade e dos graduandos e momento de construção de saberes teóricos e práticos. A análise do Projeto Político Pedagógico do Curso nos permitiu observar que a almejada relação entre a teoria e prática na formação docente esbarra na própria estrutura curricular do curso, que divide esses campos, conforme a leitura das ementas das disciplinas. Também foi possível observar os entraves dessa relação nos relatórios dos graduandos, na crença de que a gramática normativa representa o universo do ensino de Língua Portuguesa, seja por parte da escola e de seus professores, seja por parte dos próprios estudantes de Letras. Com base nas análises realizadas, podemos afirmar que o Estágio Supervisionado não é apenas o locus para identificarmos dificuldades, seja em relação à desvalorização desse componente curricular por parte de alunos e de professores da própria gradua- Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 223 Universidade Federal da Grande Dourados ção, seja pela falta de articulação entre o estágio e as outras disciplinas do curso. Por outro lado, o Estágio Supervisionado tem o potencial de fotografar o percurso formativo do futuro professor de português, avaliando a adequação ou inadequação do currículo do curso de Letras, indicando percursos teóricos e práticos que precisam ser abandonados, fortalecidos e/ou construídos. Dentre os limites e desafios identificados, acreditamos que as discussões teóricas e empíricas realizadas neste artigo fomentaram as reflexões sobre o currículo dos cursos de Letras, o processo de formação para a docência e a prática pedagógica de Língua Portuguesa. REFERÊNCIAS ALMEIDA FILHO, J. C. P. Análise de abordagem como procedimento fundador de auto-conhecimento e mudança para o professor de língua estrangeira. In.: ______. (Org.). O professor de língua estrangeira em formação. 3ª ed. Campinas: Pontes Editores, 2009. ANTUNES, I. Aula de Português: encontro e interação. 8ª ed. São Paulo: Parábola editorial, 2003. BAGNO, M. Português ou brasileiro: um convite à pesquisa. 2ª ed. São Paulo: Parábola, 2001. BRASIL. Resolução CNE/CP 01/2002. Institui Diretrizes Curriculares para a formação de professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, graduação plena. Disponível em: <www.mec.gov.br/cne/pdf>. Acesso em: 26 fev. 2013. ______. Resolução CNE/CP 02/2002. Institui a duração e a carga horária dos cursos de licenciatura, de graduação plena, de formação de professores de Educação Básica em nível superior. Disponível em: <www.mec.gov.br/cne/pdf>. Acesso em: 26 fev. 2013 ______. Parecer CNE/CES 492/2001. Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de Filosofia, História, Geografia, Serviço Social, Comunicação Social, Ciências Sociais, Letras, Biblioteconomia, Arquivologia e Museologia. Disponível em: <http:// portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES0492.pdf>. Acesso em: 26 fev. 2013 CARVALHO, A. M. Contribuições da Sociolinguística ao ensino do português em comunidades bilíngues do norte do Uruguai. Pro-Posições. Campinas, v. 21, n. 3 (63), p. 45-65, set./dez. 2010. DLCV/DLEM. Projeto Político Pedagógico do Curso de Letras. João Pessoa: UFPB, 2006. FARIA, V. Ensino de literatura e orientações oficiais: a prática entre a teoria e o saber docente. Revista Horizontes. v. 26, n. 1, p. 63-77, jan./jun. 2008. KOCH, I. G. V. Contribuições da linguística textual para o ensino de língua portuguesa na escola média: a análise de textos. Revista do Gelne. ano 1, n. 1, p. 16-20, 1999. LEAHY-DIOS, C. Língua e literatura: uma questão de educação? Campinas: Papirus, 2001. 224 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados MARCUSCHI, L. A. O papel da lingüística no ensino de línguas. Investigações Lingüística e Teoria Literária. Recife, v.13/14, 2001. MOITA LOPES, L. P. Uma linguística aplicada mestiça e ideológica: interrogando o campo como linguista aplicado. In: ______. (Org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p.13-44. ______. Da aplicação de Linguística à Linguística Aplicada indisciplinar. In: PEREIRA, R. C.; ROCA, P. Linguística Aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2009. p. 11-24. MONTEIRO, R. S. Contribuições psicolinguísticas para o ensino de língua portuguesa. Revista de Letras. Fortaleza, v. 19, n. 1/2, p. 60-63, jan./dez, 1997. OLIVEIRA, M. B. F. Revisitando a formação de professores de língua materna: teoria, prática e construção de identidades. Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 6, n. 1, p. 101-117, jan./abr. 2006. PAIVA, V. L. M. O. O novo perfil dos cursos de licenciatura em Letras. In: TOMITCH, L. M. B.; ABRAHÃO, M. H. V.; DAGHLIAN, C.; RISTOFF, D. I. (Orgs.). Advanced research in English Series: a interculturalidade no ensino de inglês. Florianópolis: UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina, 2005, v. 8, p. 345-363. ______; SILVA, M. M.; GOMES, I. F. Sessenta anos de Linguística Aplicada: de onde viemos e para onde vamos. In.: PEREIRA, R. C.; ROCA, P. Linguística Aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2009. p. 25-50. PIMENTA, S. G.; LIMA, M. S. L. Estágio e docência. 7ª ed. São Paulo: Cortez, 2012. REICHMANN, C. L. Práticas de letramento docente no estágio supervisionado de letras estrangeiras. Revista Brasileira de Linguística Aplicada. Belo Horizonte, p. 954 2012. SEGABINAZI, D. M. Educação literária e formação docente: encontros e desencontros do ensino de literatura na escola e na Universidade do século XXI. 2011. 299f. Tese (Doutorado em Letras), Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2011. SILVA, W. R. Escrita do gênero relatório de estágio supervisionado na formação inicial do professor brasileiro. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v.13, n.1, p.171195. mar. 2013. ______; MELO, L. C. Relatório de estágio supervisionado como gênero discursivo mediador da formação do professor de língua materna. Trabalhos de Linguística Aplicada. Campinas, v. 47, n. 1, p. 131-149, jan./jul. 2008. SURDI DA LUZ, M. N. Um olhar sobre o ensino de linguística na formação de professores de língua portuguesa. In: SCHERES, A. E.; PETRI, V. (Orgs.). Tecnologias de linguagem e produção do conhecimento. Santa Maria: Laboratório Corpus (PPGL-UFSM) e Labeurb (Nudecri-Unicamp), v. II, 2009, p. 172-181. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 225 Universidade Federal da Grande Dourados SOARES, M. Português na escola: história de uma disciplina escolar. In.: BAGNO, M. (Org.). Linguística da norma. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2004. SOUSA, S. C. T.; VAGO, R. M. A. Crenças dos professores sobre o ensino de gramática e formação linguística: uma interseção necessária. In: PONTES, A. L.; COSTA, M. A. R. (Orgs.). Ensino de língua materna na perspectiva do discurso: uma contribuição para o professor. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, v. 2, 2008. p. 129-157. Recebido em 30/03/2014. Aprovado em 20/04/2014. 226 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados O MUNDO LÁ FORA, O DA ESCOLA: INTERAÇÃO EM FÓRUM DIGITAL NO ESTÁGIO SUPERVISIONADO SOB A PERSPECTIVA DA SOCIOSSEMIÓTICA THE WORLD OUT THERE, THE SCHOOL’S ONE: INTERACTION IN DIGITAL FORUM ON SUPERVISED TRAINEESHIP THROUGH THE PERSPECTIVE OF SOCIOSEMIOTICS Luiza Helena Oliveira da Silva* “Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta.” Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico, diferente do que se encontra fora, tão diferente, que parece o poema dos cuidados maternos um artifício sentimental, com a vantagem única de fazer mais sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca da vitalidade na influência de um novo clima rigoroso”. Raul Pompéia, O Ateneu. RESUMO: Este trabalho tematiza a interação em um gênero da esfera digital, o fórum, empregado em situação de ensino-aprendizagem, como apoio a atividades de uma turma de estágio supervisionado de uma licenciatura em Letras. Apresenta uma análise das postagens dos acadêmicos, mobilizando como ferramenta teórica a sociossemiótica, a partir das questões que suscita com relação aos regimes de interação e de sentido e, ainda, à noção de prática. A concepção de saber que orientou a atividade é a de que o saber, mais do que um objeto valor, tal como o concebe a semiótica standard, pode ser pensando na perspectiva do ajustamento e, desse modo, como resultante de partilha e construção conjunta. Muitas vezes partindo de imagens idealizadas da escola, o que o estágio permite aos acadêmicos é o aprendizado por uma vivência que o obriga a refletir sobre a reorganizar os sentidos anteriormente assentados. Parte-se, pois, da significação estanque e preestabelecida, para o sentido ainda por ser produzido, movimento que se faz solitária ou dialogicamente. Palavras-chave: fórum digital; estágio supervisionado; sociossemiótica; ajustamento. ABSTRACT: This work thematizes the interaction in a genre of digital sphere, the forum, employed in teaching-learning situation, as a backup to a class of supervised * Professora do Programa de Pós-graduação em Letras: Ensino de Língua e Literatura da Universidade Federal do Tocantins E-mail: [email protected]. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 227 Universidade Federal da Grande Dourados traineeship activities of a Licentiate degree in Languages. It presents an analysis of academic posts, mobilizing as a theoretical tool the sociosemiotics theory, departing from the issues it raises with respect to interaction and meaning regimens ,and also, to the notion of practice. The conception of knowing that guided the activity is that knowing, more than one value object, such as standard semiotics conceives, can be thought on the perspective of adjustment and, in this way, as resulting of sharing and joint construction. Quite often departing from idealized images of the school, what the traineeship allows to academics is the learning through an experience that forces them to think about reorganizing the senses previously settled. It departs, therefore, from the prearranged and sealed significance, to the sense yet to be produced, movement that it makes solitary or dialogically. Keywords: digital forum; supervised; traineeship; sociosemiotics; adjustment. INTRODUÇÃO Nas frases iniciais do romance “O Ateneu”, temos anunciada a narrativa dos muitos dissabores que enfrentará o narrador Sérgio. Afastado bem jovem do convívio da família para ingressar num colégio interno, o que o personagem anuncia é o sofrimento que se seguiria à despedida do lar, do amor e dos cuidados até então experimentados. Os mimos maternos só fariam com que a dor da solidão e do abandono diante do mundo que se abria à sua experiência fosse mais intensamente sentida, tornando-o mais sensivelmente vulnerável “à impressão do primeiro ensinamento”. Por estranha que possa parecer a relação, essa preciosa passagem do romance de Raul Pompéia serve de mote para nossas reflexões sobre as vivências do estágio supervisionado em uma licenciatura. De certo modo, os acadêmicos que se lançam ao universo escolar, principiando sua experiência docente, poderiam se aproximar do jovem Sérgio. Tendo nas mãos (ou nas mentes) um tanto de teorias, advindas de disciplinas que muitas vezes pouco ou nada dizem respeito diretamente a implicações para o ensino, ou ainda dotados de saberes de ordem prática como a elaboração de planos de aula do ponto de vista estritamente formal, o que o acadêmico então encontra pela frente é um universo que amedronta e diante do qual muitas vezes se vê como que a deriva, no mar revolto das dinâmicas da vida profissional. “Vais encontrar o mundo”, dizemos aos nossos alunos. “Coragem para a luta”. Se tal realidade angustia os mais experientes e audazes, esses novos marinheiros parecem impotentes para manusear as bússolas e as cartas, interpretar as correntes, ler os astros. É sempre pouco, aquém do necessário, o que a teoria obtida na academia fornece como instrumento. Trata-se de um saber que é de ordem prática: há antecipações, preparações, cuidados, atenções, mas é necessário, enfim, lançar-se ao mar, com um aprendizado só possível nesse exercício, com os riscos de dor e a alegria que isso implica. 228 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Neste artigo, é essa práxis que é tematizada, esse saber que se adquire na medida em que se vive o fazer docente, no que ele tem de precisão e de acaso. Para isso, tomamos como objeto de análise postagens de acadêmicos estagiários em um fórum digital abrigado na plataforma Moodle (Modular Object-Oriented Dynamic Learning Environment), utilizada como recurso para diferentes atividades num curso de licenciatura em Letras, em regime presencial. No referido curso, atuamos como docente de disciplinas teóricas da área da linguística, em alguns momentos, dedicando-nos à orientação de estágios. O fórum em questão relaciona-se a uma das atividades que propusemos a uma das turmas em 2012, tendo como principal objetivo a criação de um espaço no qual fossem compartilhadas e problematizadas as experiências dos acadêmicos na sua primeira etapa de estágio1. Essa fase, conforme previsto no projeto pedagógico do curso (TOCANTINS, 2009), destina-se à observação de aulas nas escolas-campo, realização de registros diversos, elaboração de projetos de docência, além de estudos sobre diferentes aspectos vinculados ao ensino da língua e literatura, que vão sendo recortados pelos professores orientadores. Além da criação desse espaço de reflexão, a proposta do fórum orientou-se por razões como a de buscar garantir que fossem vivenciados usos de recursos digitais em práticas de ensino, familiarizando os alunos com usos e potencialidades. Como um dos conteúdos tematizados nas aulas teóricas no âmbito da universidade dizia respeito ao letramento digital, os usos do fórum forneceriam elementos para pensar o lugar da interação mediada por computadores na prática pedagógica. A isso se somava nosso interesse em observar em que sentido nossas hipóteses iniciais a respeito da interação encontrariam relevantes ou inexpressivos resultados. Em princípio, as impressões sobre a vivência nas escolas, do ponto de vista de registros escritos, restringia-se aos diários de campo ou ao relatório final, ambos servindo para atestar a realização dos estágios e possibilitar a aferição de nota pelo professor orientador, leitor privilegiado dessas produções. Ainda que disponibilizados para consulta e pesquisa no CIMES2, trata-se de produções precariamente partilhadas pelos docentes em formação e, em muitos desses relatos, nem sempre encontram-se elementos que ultrapassem a descrição. Não há, enfim, resposta ao que ali se diz, a não ser as considerações do professor orientador. O fórum possibilitaria, assim, que a dinâmica de ida às escolas fosse sendo acompanhada, que tanto o orientador como os demais colegas da turma discutissem a prática que ia ganhando forma, negociando sentidos para o que se percebe e se interpreta. Diferente do efeito de acabamento do relatório final, o fórum se abriria a reflexões sobre o processo, possibilitando que os sentidos pudessem ser negociados, que perspectivas pudessem ser revistas, ganhando em densidade na medida em que o dizer se abre a questionamentos advindos dos interlocuO fórum se organizou em dois momentos, no início das atividades de observação e, posteriormente, ao inal. Em função de uma greve dos professores federais, houve uma interrupção nas discussões, com um intervalo de aproximadamente três meses. Acreditamos que essa interrupção teve efeito sobre os resultados, caracterizando uma quebra no debate inicialmente proposto. 2 A sigla refere-se ao Centro de Memória dos Estágios Supervisionados, da Universidade Federal do Tocantins, campus de Araguaína. Pesquisas de iniciação cientíica, dissertações e teses têm tomado os documentos ali organizados como objeto de investigação. 1 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 229 Universidade Federal da Grande Dourados tores. A maior informalidade prevista pelo gênero também contribuiria para que não se reproduzisse ali o efeito de objetividade e distanciamento que podem acentuar uma certa inexpressividade e alheamento diante do que se diz que, embora possam ser até previstos pelo gênero relatório, silenciam ou obscurecem outras possibilidades. Partimos do pressuposto de que há conhecimentos que podem ser coletivamente produzidos, não estando dados em algum lugar de antemão como um objeto a ser adquirido em sua totalidade. Há certamente conteúdos que vão sendo apreendidos pela repetição, saberes adquiridos na leitura de um manual, construídos pelo emprego de processos já considerados irrefutáveis, seguindo o passo a passo como no caso de uma receita de bolo. Mas há conhecimentos que resistem a certezas, que estão por ser construídos e, dentre eles, está o saber que se liga à docência, dadas as complexidades que envolve e a diversidade de perspectivas com que pode ser analisado, compreendido, atualizado. A sala de aula da licenciatura e os espaços como o de um fórum na Internet são lugares que favorecem, assim, essa construção coletiva. Não há verdades absolutas e as verdades provisórias não se edificariam apenas por assumir de modo competente as referências teóricas e aplicações relativas a aspectos metodológicos do como ensinar, ainda que muito solidamente alicerçadas. Como fundamentação teórica para guiar a análise do corpus, mobilizamos as contribuições da semiótica, considerando sobretudo as produções da sociossemiótica, com os trabalhos de Eric Landowski. Dedicada à problemática geral da significação, não se limita a uma orientação para leitura de textos, mas, atendendo a uma formulação primeira da semiótica, indaga-se sobre o “sentido da vida” (GREIMAS, 1971, p.12; LANDOWSKI, 2012, p 129). Nos últimos anos, a sociossemiótica elegeu como um de seus principais objetos de investigação as questões relativas aos regimes de interação e de sentido deles decorrentes. Interessam-nos aqui mais de perto as questões que o sociossemioticista preconiza em relação às práticas como instâncias produtoras de sentido, seja o caso dos usos e práticas dos objetos, seja no que diz respeito à relação intersubjetiva, consideradas as “práticas do outro” (LANDOWSKI, 2005, 2009). A isso se somam suas reflexões sobre o imaginário (LANDOWSKI, 2011). Inicialmente, serão discutidas aqui questões relativas aos regimes de interação na perspectiva da sociossemiótica. Na segunda parte, após as reflexões sobre o conceito de imaginário, apresentamos nossa análise referente ao fórum com os acadêmicos. PRÁTICAS DO OUTRO Em março de 2014, Landowski apresentou uma conferência no seminário intitulado “La représentation de l’autre”, jornada temática realizada na Université de Limoges (França). Sua comunicação intitulou-se “Représentations de l’un, pratiques de l’autre” e, já num primeiro momento, suas discussões se deram no sentido da rejeição ao termo “representação”, pelo que implica enquanto alusão a um referente encontra- 230 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados do no mundo natural – perspectiva ontologista – e na fixidez que o termo comporta. Assim, à noção de “representação” e sua singularidade, Landowski propõe o termo “práticas”, plural. Conforme anuncia no resumo de sua conferência, “na maioria dos discursos sociais e políticos, o ‘outro’, enquanto objeto de ‘representação’, aparece como um simulacro, geralmente de forte componente figurativo, construído sobre estereótipos que vão servir para estigmatizar a diferença, a alteridade mesma do outro” (LANDOWSKI, 2014, p. 12). Caberia, então, ao “sociossemioticista politicamente engajado” promover modelos dinâmicos que permitam ultrapassar o que o teórico designa como “representações em espelho” (LANDOWSKI, 2002; 2014), considerando a possibilidade de dar conta de outras relações de sentido com o outro e o mundo em geral, sendo o outro tomado como um verdadeiro “parceiro” que não se reduz ao “uso”, mas com o que se empreende uma prática. Quer se trate de objetos, quer se trate de pessoas, o que se propõe é que o outro não seja reduzido a sua função, ao seu estereótipo, ou a sua “etiqueta”. É apenas na medida em que se reconhece a positividade da alteridade que é possível abrir-se a uma verdadeira e significativa interação, com os riscos que implica. O que Landowski traz é uma proposição de problemática da interação que ultrapassa a do modelo sintáxico canônico previsto pela semiótica standard. Não se limita ao que designa como “seres de papel”, mas remete a sujeitos “encarnados”, que interagem entre si e com os objetos dotados de qualidades sensíveis e estésicas (LANDOWSKI, 2009). O ponto de partida é o de que os sentidos não se encontram dados nos objetos (ou nos sujeitos), nem se limitam a grades culturais, mas são resultados do uso, ou de suas práticas. Um exemplo que fornece para explicar do que trata sua proposição é o da relação com os objetos num museu. Quando visitamos uma exposição, somos certamente informados sobre valor das obras lá expostas e a própria eleição do objeto para ser lá apreciado já nos é suficiente para saber de que se trata de algo que tem um valor culturalmente (e também economicamente) reconhecido que nossa presença poderia apenas confirmar, mesmo diante de uma absoluta indiferença, como muitas vezes testemunhamos em visitações desse tipo. Podemos, então, limitarmo-nos a observá-lo como quem o consome enquanto produto cultural, necessário ao nosso repertório de informações, confirmando a sua “artisticidade”. Mas podemos, também, ultrapassar essa dimensão consumista, abrindo-nos efetivamente à percepção dos objetos a nossa frente, fruindo-os, interagindo-nos com o que apresentam potencialmente por suas qualidades sensíveis. A relação, portanto, estaria além de uma atitude pragmática, orientando-se para aquela que é da ordem da sensibilidade. Do ponto de vista das interações, Landowski organiza quatro regimes que, obviamente, não se encontram estanques, mas preveem imbricamentos e gradações. O primeiro deles refere-se ao que designa como regime de “programação”. Neste, como o nome já anuncia, as relações e os papéis actanciais encontram-se previamente fixa- Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 231 Universidade Federal da Grande Dourados dos, o que resulta num grau de absoluta previsibilidade quanto ao que pode advir na relação. Os sujeitos, nesse caso, encontram-se a tal modo condicionados que o risco de que algo perturbe a ordem estabelecida parece praticamente ausente. Remete, assim, a relações expressamente controladas, que podem resultar, em caso extremo, no esvaziamento do sujeito enquanto tal. Do ponto de vista dos objetos, é o que nos permite usá-los, certos de seu funcionamento previamente fixado. A programação da ação, contrária às práticas de sentido, permite que interajamos com as coisas com conhecimento de causa, indispensável, portanto, na medida em que não podemos reinventar tudo o tempo todo. O fazer, assim, se equilibra entre o dado e o novo, entre o estabilizado e o instável, sendo este o criador de novas relações. O dado é o lugar da segurança e do conforto, enquanto o novo é o chamamento para a experimentação. O dado permite o planejamento das ações com resultados mais precisos; o novo é o lugar do risco e da possibilidade do equívoco. É o que prevê uma interação sem surpresas de qualquer tipo, como lugar da segurança. Pelo grau de previsibilidade, pela noção de repetição que encerra, a programação age na direção da dessensibilização. Ganhamos em termos de segurança, de tranquilidade em relação a imprevistos, protegidos pela previsibilidade, mas perdemos em termos de sentido (LANDOWSKI, 2005). Por mais estranho que possa ser, uma aula pode ser reduzida a uma programação, o que poderia acontecer por sua extrema ritualização e pelo controle. É o que prevalece nos regimes totalitários, nos quais a liberdade ou a divergência não são permitidos e, por isso mesmo, há mecanismos que os tornariam impensáveis. Não se pode, contudo, considerá-los quando se trata de interação efetiva, uma vez que o docente, que não pode se restringir a um pleno programador, necessita do outro, o aluno, abrindo-lhe espaço para ser, agir, pensar, concordar, divergir. Desse modo, por mais rigoroso que seja o plano de aula, a interação permite sua deriva. O regime seguinte seria o da manipulação, privilegiado pela sintaxe narrativa canônica. Na semiótica standard, as relações entre sujeitos se dão sempre mediante troca de objetos. Para que um sujeito entre em conjunção com um dado objeto, é necessário que um outro seja dele despossuído. Essa visão “econômica” das interações reduz toda intersubjetividade a um dar e a um receber, enquanto a relação com os objetos se definiria por uma forma de posse (junção). Analisemos esses dois aspectos e os problemas que suscitam. Um primeiro, relativo aos objetos, refere-se à noção de conjunção. Mesmo no momento anterior ao da conjunção, o da disjunção, sujeito e objeto se acham relacionados, de algum modo predestinados um ao outro por suas características particulares ou desejos mútuos, tendo estabelecidas entre si uma forma de “prise” (LANDOWSKI, 2009, p. 13). O termo de difícil tradução fala de uma espécie de abertura para o outro. Sob a perspectiva da “prise”, sujeito e objeto se movem um em direção ao outro, não estando limitados a uma mera justaposição. A outra questão, relativa à intersubjetividade, é a redução à mediação pelos objetos, edificada pela sintaxe narrativa tradicional. Para Landowski, as relações entre sujeitos devem ser pensadas fora dos quadros da troca, dessa mediação, o que expande a 232 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados noção para outros modos de conceber a intersubjetividade. Na manipulação, estamos diante de uma assimetria de papéis actanciais: de um lado, encontra-se o sujeito destinador manipulador, que empreende estratégias para levar um outro, o destinatário manipulado, a fazer algo. Para levá-lo a fazer, não conta com as certezas da programação, mas com os maiores riscos que implicam seu convencimento, seja pelo querer (sedução ou tentação), seja pelo dever (intimidação ou provocação). Para convencer, mudar a disposição do outro, é necessário ao menos considerá-lo como sujeito, ainda que para assujeitá-lo. O outro, porém, pode resistir, negar-se a desenvolver a performance pretendida, o que resultará, de acordo com o que prevê a sintaxe, na sua sanção negativa. Como nesse regime há brechas, prevista a resistência e a insubordinação, não há o mesmo nível de previsibilidade da programação. Mas há aqui uma assimetria de poderes: o destinador, de algum modo, qualifica-se com o poder de manipular, orientar para uma dada direção e, ao final, avaliar, sancionando o segundo, positiva ou negativamente, punindo-o ou gratificando-o. Se pensarmos, sob essa perspectiva, um aula como narrativa, teríamos o professor, o destinador, que deve levar o aluno a entrar em conjunção com o saber, objeto valor. Para isso, pode se valer de diferentes estratégias, como a da sedução, apresentando o conteúdo a ser aprendido de tal forma que o outro, o aluno, se permita seduzir, levado a querer o que lhe é ofertado, um dado saber. Ou, ainda, teríamos a intimidação, quando o docente ameaça o aluno, com a reprovação, com uma carta aos pais, com a expulsão da sala etc. De uma ou outra forma, o saber é um bem que se pode doar, o que pressupõe que o doador, o professor destinador manipulador, o tem em suas mãos, como um objeto acabado, que possa então ser transmitido, doado. Landowski (2005), porém, acrescenta um terceiro regime, o do ajustamento, que nos parece mais promissor, se pensarmos em outro modo de compreender a relação ensino-aprendizagem. No ajustamento, não há assimetria do regime de manipulação nem o grau de previsibilidade da programação. Para o ajustamento, os sujeitos encontram-se como parceiros, sem que um defina necessariamente o caminho que o outro, ou ambos, devam seguir, nem se pode prever de antemão aonde se pode chegar. Há aí uma maior abertura para o imprevisível, porque tudo está por ser construído, conjuntamente. Landowski defende, então, que se trata de um regime de co presença, que implica não apenas uma configuração de natureza cognitiva, mas, principalmente, aquela da ordem dos afetos ou da sensibilidade. Não se refere a uma relação mediada por objetos (junção), mas construída pela união sujeito-sujeito ou, ainda, sujeito-objeto. Landowski, portanto, recusa que haja uma semiótica subjetal e outra objetal (2009): o que propõe é que se reconheça no outro, qualquer que seja seu estatuto, sua efetiva alteridade, sem reduzi-lo a algo que se possa programar ou manipular, não limitado a um papel ou a uma função. Esse novo regime nos possibilita pensar que a sala de aula possa ter uma configuração distinta que as apresentadas anteriormente, pressupondo também um outro modo de conceber o conhecimento. Se não há mais doação de saber, este pode emergir Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 233 Universidade Federal da Grande Dourados como produto das relações entre os sujeitos, que conjuntamente o constroem (SILVA, 2013). Desse modo, há um saber que emerge na prática, nas práticas do outro, com o outro, o parceiro. É, para nós, o que mais pode produzir sentido para os sujeitos envolvidos e mais promissor quando se pensa a sala de aula, ou outros espaços de interação, como os da esfera virtual, chat ou fórum, em que podem servir de locus para uma troca significativa que resulte num saber em processo de construção, não apenas apreendido, memorizado, repetido e dessubstancializado, nas práticas que, no limite, esvaziam toda significação e gosto por aprender. O quarto dos regimes propostos por Landowski é o do acidente, o do risco e da imprevisibilidade absolutos. Pode tratar-se de uma bem-aventurança, de um acontecimento feliz, como os acidentes estéticos, sobre os quais discorre Greimas (2003), mas também os relativos a um acaso infeliz, para infortúnio do sujeito que o sofre. Não há, aqui, possibilidade de controle: diz respeito ao acaso: a interação é imprevista, surpreendendo o sujeito a ponto de lhe causar modificações sensíveis que podem alterar seu modo de ser no mundo. Como uma espécie de ruptura, do encontro com o inusitado da vida, é rico de sentidos. Remetendo ao máximo de risco, é o que encerra a possibilidade última de relação com o outro, no limite da surpresa do encontro. No âmbito da escola, diria respeito ao que escapa ao planejamento, ao que pode ser previsto e que pode ir fazendo com que, na prática da docência, o inusitado nos inquiete e lance novos desafios. O outro, afinal, resiste, na sua diferença. Partindo do que vimos apresentando, a proposta do fórum atende ao princípio do ajustamento. Ainda que a assimetria professor-aluno não se dilua, a pluralidade de vozes que se somam ao dizer muitas vezes solitário do professor em classe favoreceria uma construção conjunta, até porque o que estaria em questão seria a experiência de cada um a ser compartilhada. São os estagiários que partem para o enfrentamento do mundo, o da escola, enquanto nós, aguardamos seu retorno e suas impressões. Nesse sentido, nós discutimos as perspectivas que foram sendo assumidas diante do vivido, problematizando-as conforme discorremos a seguir. ANTECIPAÇÕES DA SIGNIFICAÇÃO; A EXPERIÊNCIA DO SENTIDO Quando o pai se despede do personagem Sérgio à porta de casa, dizendo-lhe que iria encontrar o mundo, apresentam-se pelo menos dois aspectos a merecer atenção. Há inicialmente uma objeção que pode ser feita, tendo em vista que o lar se situa no mundo, participando de sua historicidade, não alheio nem independente a ele. Ao mesmo tempo, podemos concluir, pelo que anuncia logo em seguida o narrador-personagem nessa primeira passagem do romance, que o lar se constituía como um universo particular, com especificidades que garantiam uma certa configuração capaz de blindá-lo às ameaças da exterioridade, traduzido como “estufa de carinho que é o regime do amor doméstico”. Há ainda a segunda questão: a da promessa de sentido. 234 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados O pai adverte que haverá luta, para a qual é necessário munir-se de coragem. O modo como o sujeito parte, então, para o enfrentamento do mundo é feito mediante advertências, que antecipam a certeza dos riscos, ainda que de modo impreciso. Se tomarmos a referida passagem do texto literário como uma espécie de metáfora do momento de estágio, podemos encontrar algumas semelhanças. Assim como a casa parecia uma estufa a proteger a infância de Sérgio, também a universidade, ainda que ligada ao mundo e inserida nas suas dinâmicas, configura-se como um sistema que, como tal, guarda suas especificidades, sua dinâmica de funcionamento, como uma totalidade que de algum modo a distingue da exterioridade. Dela deve migrar o estudante para o enfrentamento do que está além de seus muros: o mercado de trabalho, a docência, as exigências da vida profissional. Do mesmo modo ainda, há antecipações como significações previamente dadas, promessas quanto ao que há de vir, relativas à “luta” que se anuncia. Estas se constituem como que direções que o estudante leva consigo, imagens sobre o universo escolar construídas mediante sua experiência como aluno, atravessadas pelas reflexões teóricas da vida acadêmica e ainda figurativizações socialmente construídas e partilhadas sobre o que é ser professor. A questão que se apresenta, pois, é partir da significação para o sentido. A significação prende-se ao previsto, às etiquetas, a uma estabilização, enformada, categorizada, previamente dada. O sentido, ao contrário, constrói-se nas relações, na experiência do vivido, estando, pois, em aberto, a ser construído pelo sujeito nas relações com o outro, com o mundo, nas práticas que não se encerram na realização do já previsto, mas na potência da sua perpétua reinvenção, como “práxis heurística” (LANDOWSKI, 2009). Inicialmente, vamos nos ater a essas figurativizações3, que remetem ao plano da significação, contrapondo-as aos sentidos que vão emergindo. A) IMAGENS – DA ESTABILIZAÇÃO AO MOVIMENTO Eni Orlandi (1999), discutindo a concepção de imaginário para a análise do discurso, exemplifica fazendo uso da figura do professor. Para essa teoria, as relações entre os sujeitos são mediadas pelas imagens que estes constroem sobre o outro, o que não remete a uma lógica da ordem da subjetividade, mas a uma espécie de aprendizagem cultural e ideológica. Conforme a analista, há um imaginário socialmente produzido e partilhado que faz com que todo mundo saiba o que é um professor. No caso da figura do professor, essa imagem que parece fixar-se como “real” aponta para a noção semiótica de papel temático que, entre outros aspectos que poderiam ser considerados, atua na naturalização de uma direção de sentido, estabilizando-o. As igurativizações correspondem a modos de remeter ao mundo natural por meio de iguras. Não se trata de representação, no sentido de reconhecimento do que existe naturalmente, mas de efeitos de sentido produzidos pela linguagem e que produzem nos discursos imagens do mundo. Incorpora a dimensão do corpo sensível, as relações do sujeito sensível diante do mundo, suas impressões, estendendo-se a todas as linguagens, tanto verbais quanto não verbais, para designar a propriedade que as linguagens possuem de restituir signiicações análogas às experiências perceptivas: “A iguratividade permite, assim, localizar no discurso este efeito de sentido particular que consiste em tornar sensível a realidade sensível” (BERTRAND, 2003, p. 154). 3 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 235 Universidade Federal da Grande Dourados Conforme Greimas e Courtés (2008), o papel temático se produz por uma redução a um único percurso figurativo, relacionado a um agente, o ator, fixando uma isotopia na qual se inscreve, a despeito de outras possíveis. Analisando as implicações do papel temático, Landowski exemplifica com as narrativas em que um rei é tão e somente um rei, não fazendo senão governar, não se constituindo jamais como um sujeito na sua totalidade e complexidade; ou o pescador que, cumprindo sua missão, pesca. papéis temáticos que não apenas delimitam semanticamente esferas de ação particulares, mas, ademais, em certos contextos, são também capazes de antecipar detalhadamente os comportamentos que se podem esperar dos atores (humanos ou não) que se encontram deles investidos. Assim ocorre em particular no universo do conto popular, onde a identidade de todo ator, concebida de maneira radicalmente substancialista, se reduz à deinição de um papel temático-funcional do qual, por construção, quer se trate de uma coisa ou de uma pessoa, não poderá escapar de modo algum. Se um personagem é deinido como “pescador”, apenas pescará; se outro é “rei”, atuará sempre como rei: cada qual se limita, em suma, a “recitar sua lição”. (LANDOWSKI, 2005, p. 17)4. Se essas formas de definir sujeitos se prestam bem aos contos populares, certamente não servem à complexidade dos sujeitos de carne e osso. Há, contudo, por força do imaginário social, uma orientação para o que é um professor, a ponto de “todo mundo” parecer já saber, como algo que não se põe em questão, o que cabe a ele fazer ou ser, como se o sujeito então se reduzisse à realização de um dado papel, já estabelecido e aceito consensualmente. O professor é então o que ensina, porque domina o conhecimento (1), figura de autoridade. Por isso mesmo, se considerada a aula na perspectiva de uma narrativa, impondo-se como uma espécie de destinador, na medida em que determina, orienta, controla, fazendo com que todos queiram fazer o que se deve: aprender o que este pretende ensinar, motivando os desinteressados, comandando o tempo, inovando para atrair os desatentos (2): (1) Tamara5 É realmente complicado, pois os alunos icam nos testando o tempo, todo nos enchendo de perguntas quando a professora sai da sala! Aí ica complicado quando a gente não tem certeza da resposta. Kkk Quando essa situação chega a mim e se eu tô confusa, ou não tenho certeza da resposta, eu falo que não posso icar dando respostas ainda, só no próximo estágio! (2) Alana Observei também vários pontos negativos a começar pelo desperdício de tempo nas aulas. Todas as aulas que tive a oportunidade de observar tiveram inicio com atraso muitas vezes pequeno e inúmeras vezes absurdos sem restar quase tempo algum para o mais importante a aula em si. Falta de controle da turma também era bem freqüente e a falta de novidades nas atividades propostas. Tudo era bem repetitivo sempre o texto era trabalhado da mesma maneira seguido de um exercício de interpretação ( coisa que para o aluno é bem chato e cansativo) nada de atrativo para o aluno era levado para sala. 4 5 As citações de textos franceses contam com nossa tradução. Utilizamos aqui pseudônimos, preservando a identidade dos acadêmicos envolvidos na pesquisa. 236 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Compartilhando suas inseguranças, os estagiários falam do medo de não saberem dar as respostas, como que pressupondo que, para qualificarem-se como docentes, devem “dominar” o saber, ou, pelo menos, o que diz respeito a um universo, o da disciplina. Por se verem “testados”, como escreve Tamara (1), depreende-se que tal modo de conceber a figura do docente é compartilhada pelos alunos, os “testadores” que, nesse caso, parecem impor-se assimetricamente aos estagiários, sancionando-os positiva ou negativamente na medida em que reconhecem ou não a imagem esperada. Enquanto na postagem de Tamara (1), vemos o estagiário fragilizado, na fala de Alana (2), ao analisar e avaliar a fase da observação concluída, é assumida uma outra posição, sendo aqui “julgado” o professor. Este não corresponde à imagem que deveria apresentar: desperdiça o tempo, não controla a turma, não inova, não produz interesse nos alunos, enfim, não ensina como “deve”. Uma vez não correspondendo, pois, ao imaginário previsto, os docentes das escolas são avaliados negativamente e, em vez de parceiros com os quais os estagiários aprenderiam, são os destinatários de uma performance que é recusada (LIMA e SILVA, 2014). Conforme Landowski (2011), o termo imaginário não se encontra no Dicionário de Semiótica (GREIMAS e COURTÉS, 2008) e, pelos seus múltiplos usos, atendendo a uma certa “facilidade de linguagem”, é excessivamente vago quanto ao que designa. Depois de analisar um corpus constituído de textos extraídos de jornais franceses, o semioticista organiza dois sentidos que englobariam esses múltiplos usos para o termo: um primeiro, que designa como “imaginário-cultura” (Iq), e um segundo, que denomina “imaginário-imaginação” (Ii). O primeiro, Iq, se definiria como conjunto de “macrounidades figurativas fixadas”, “patrimônio icônico” ou “repertório de clichês e de motivos”, pressupondo uma “instância propriamente semiótica, como uma instituição difusa a cargo do universo do sentido socialmente aceito, de sua gestão, de seu formato, e de sua propagação como sentido comum” (LANDOWSKI, 2011, p. 92). Trata-se, pois, de um repertório que se inscreve na memória social, como um saber coletivo, e que remete a figurativizações que se naturalizam, capazes de produzir o efeito de evidência do real, ou de sua representação. O segundo, Ii, remete à possibilidade de ruptura com essa memória figurativa, tendo em vista inserir-se como invenção, criação do novo, de um outro mundo e, pelo modo como se põe à parte, pode sugerir a ideia de que nasça por força de graça divina ou no interior do próprio sujeito (LANDOWSKI, 2011). Como novidade, supõe, então, a capacidade de enriquecer ou subverter os sentidos já assentados na memória social. Seria esse Ii saudado como a novidade que areja os sentidos adormecidos, encontrando nos textos analisados uma avaliação especialmente positiva, euforizante, mesmo que, conforme alerta o sociossemioticista, tal criação não possa se dar senão como “trabalho” sobre o imaginário cultura, Iq. Assim, de um lado, evidenciam-se os usos do termo imaginário que encontram lugar nos textos “realistas” (da esfera da política, da economia etc.), enquanto os outros circunscrevem-se aos textos que remetem a uma espécie de subversão da realidade, os da arte, dos poetas, dos utopistas. Não se trata, contudo, de pensar a existência de dois Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 237 Universidade Federal da Grande Dourados mundos em confronto, mas de duas diferentes formas de criar ou recriar o real, haja vista que, para a semiótica, o real não entra como causa em questão, uma vez que não se filia a uma perspectiva ontológica. São, portanto, duas formas de falar do mundo, acolhendo distintas figurativizações que produzem efeitos sentidos distintos. Ao final, Landowski declara que propor uma semiótica do imaginário seria, certamente, uma tautologia, a remeter à totalidade da cultura, não se distinguindo o projeto assumido até aqui pela teoria. O que cabe, enfim, ao trabalho do semioticista está no cuidado de não tomar as figuras isoladamente, mas por suas relações, não por sua relação com alguma “realidade” supostamente unívoca e tomada como critério de avaliação do grau de racionalidade ou de irracionalidade de construções do espírito, mas pelas relações internas que as unem e a maneira pela qual essas relações fazem sentido por si mesmas: em poucas palavra, ele se esforçaria por compreender a lógica que, articulando em profundidade todos esses elementos, produz uma visão de mundo que tem sua coerência e sua razão próprias. (LANDOWSKI, 2011, p. 75). Toda essa discussão visa apontar para o fato de que o acadêmico que parte para a escola não chega a seu destino desprovido de antecipações, como a de um dado imaginário (ou figurativização, se rejeitarmos o termo) de professor que o atravessa. A experiência, o vivível não se aparta de uma grade cultural que se interpõe. Mas entre a crença e a experiência, há movimentos e possibilidades. Visando atender ao que orienta Landowski, não nos interessa fazer uma caracterização da figura do professor espalhada aqui e ali nos textos, mas considerar suas implicações, a lógica na qual se assenta. Se o imaginário parece congelar os sentidos, a experiência pode ressignificá-los. Quando diferentes percepções entram em jogo, a complexidade vai se sucedendo ao que antes poderia ser apenas simplificação e redução: (3) Lindinalva Antes de darmos início às observações, não sei por que, eu tinha uma visão meio que utópica sobre o ensino público, achando que tudo seria maravilhoso e que dependeria apenas do meu esforço para que as aulas pudessem render, MAS percebi que o descaso dos alunos desestimula muito o professor. Se ele não tiver pulso irme para lidar com eles, torna-se impossível iniciar a aula. Em uma aula de apenas 50 minutos, o professor passa 30 chamando atenção de alunos desordeiros. É por isso que muitos acadêmicos comentam que o estágio é como uma peneira do curso, pois, ao se deparar com a realidade do ensino público, muitos acabam desistindo, e só conclui quem realmente deseja lutar por uma melhoria. (4) Lívia Toda vez que as meninas falam das suas experiencias nos estágios, ico pensando nas minhas alternativas: me deparar com uma excelente proissional, na qual poderei me inspirar... ou uma pessoa que vou sempre questionar: o que ela esta fazendo lá?... então, espero.... que seja a primeira... Sei que ninguém é perfeito, mas espero encontrar alguém que pelo menos se esforce.... Isso é que eu espero... Alguém que tente, no minimo, se esforçar... ainal, ninguém sabe de tudo. Mas, se esforçar não é impossível. Esse é o tipo de professor que quero encontrar... 238 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Em (3), encontramos a fala de Lindinalva, discorrendo acerca do que seria uma revisão de suas expectativas. Depois das observações, aquelas lhe parecem, então, “utópicas”. Essa idealização remete à noção de que dependeria apenas do professor o resultado das aulas, como um destinador, que controla e domina todo o processo. Lindinalva passa a considerar que há fatores que escapam ao “esforço” do professor, como o da resistência de parte dos alunos, os “desordeiros”. O texto de Lívia (4) também traz uma expectativa caracterizada por uma forma de idealização. Sem ter dado início às observações, avalia as postagens dos colegas da turma e, de certo modo, sabe que não há apenas um modelo de docente a encontrar na sala de aula. Se a universidade se fixa nos conteúdos e metodologias, parece pouco contribuir para a compreensão de que há aspectos que não se concentram apenas no docente e que merecem atenção. Ensinar é ensinar para um outro, que quer aprender ou que deve crer que deve aprender. Mas as imagens das salas de aula das postagens falam de que ora não há quem queira ensinar, ora não há quem queira aprender: (4) Antônia Eu, Antônia, quando cheguei à escola, pensei que ia encontrar uma turma mais compreensiva, pois devido ao fato de ser à noite, eu achava que os alunos estariam todos cansados e seriam mais responsáveis, e outra razão seria a de serem todos de maior idade. Mas me enganei: os alunos não estão nem aí para a professora, nem fazem o que ela pede. As idealizações anteriores à experiência se deparam com as dinâmicas escolares que são traduzidas muitas vezes disforicamente6. Quando não se colam ao esperado, há gestos de recusa, mas, ao longo das discussões no fórum, as certezas do julgamento vão sendo reorganizadas, mediante as intervenções, umas que confirmam as impressões expostas, outras que problematizam, apresentando divergências e novas interpretações. Um dos exemplos das divergências, que apontam para outros sentidos, dá-se quando dois estagiários falam de aulas em turmas do ensino noturno, no EJA (Educação de Jovens e Adultos). A primeira acadêmica, Antônia (4), tece comentários negativos sobre o que lá presenciou. Um outro, porém, Wilson (5), traz diferentes impressões, o que leva os demais colegas a produzirem algumas conclusões sobre a necessidade de evitar generalizações (6), (7) e (8): (5) Wilson No E.J.A. (Educação de Jovens e Adultos) do 9º ano A, a professora Ana trabalhou com seus alunos a música Brasil de Cazuza, no intuito de associá-la com Brasil, que pais é esse?, do Renato Russo. Seu objetivo com essas duas músicas foi relacioná-las com a realidade do Brasil quando falamos em problemas econômicos e políticos. A aula foi um sucesso, os educandos entenderam e participaram ativamente da aula. Os alunos do E.J.A. são mais calmos e sabem que precisam aprender para poder concluir o ensino básico, por isso são, na maioria, esforçados. 6 O termo relativo à metalinguagem da semiótica remete a uma avaliação negativa. “Disfórico” contrapõe-se a “eufórico” (positivo). Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 239 Universidade Federal da Grande Dourados (6) Laura Wilson, viu como você e a Aparecida têm visões diferentes do mesmo grupo? Mas é mais fácil para as pessoas generalizarem tudo e dizer que à noite ninguém quer nada e deixar por isso mesmo. Pretexto. (7) Bianca Exatamente! Tb7 percebi que os dois têm pontos de vista diferentes sobre o mesmo tipo de turma...daí podemos concluir que cada um tem uma maneira de ver a sala de aula e de lidar com ela...apesar dessa generalização que vc disse, Laura. (8) Maura Gente, é impressionante como cada experiência é única, cada escola, cada turma, cada professor....Esse desaio é maravilhoso. Adooooro!!!!! Quando se enriquece com as postagens, o que antes apontava para a existência de um consenso encontra novas direções de sentido, que ampliam, na medida em que modificam, as certezas anteriores. Em fóruns de Internet nos que se opina sobre o conteúdo de matérias de jornal, por exemplo, muitas vezes temos a impressão de que a “interação” pretendida não se efetiva, como se o que é dito antes fosse ignorado pelos enunciados que se sucedem. Vistas na sua continuidade de texto polifônico, as postagens só podem ser pensadas como diálogo pelas reiterações e paráfrases, sendo comum estarem ausentes outras marcas linguísticas que evidenciem que o dizer alheio é retomado ou considerado: muitos falam, mas não surgem traços de concordância ou discordância e apenas a temática do texto inicial, o da matéria, parece ser levada em conta, expandida por cada novo enunciador (SILVA e REIS, 2013). Há, contudo, no fórum que aqui analisamos, um esforço comum, que vai se evidenciando quando o enunciador convoca o outro, interpelando-o, convocando-o para o debate, pondo em questão o que diz. Essa partilha vai então produzindo os efeitos pretendidos em nome de um conhecimento que se constrói coletivamente, mediante o que em sociossemiótica se designa como ajustamento (LANDOWSKI, 2005). Não se trata de garantir novo consenso, mas de construir junto um conhecimento que pressupõe, também, o lugar da dissidência. B) REPETIR O JÁ SABIDO Um risco que poderia esvaziar a proposta do fórum é de que o diálogo fosse desqualificado, o que ocorre, por exemplo, quando o estagiário apenas se limita a dizer o que já seria supostamente tomado como verdade, não se afastando de uma certa obviedade. Isso se dá seja pela citação de autores que falam da docência, mas sem maior criticidade nessa incorporação, seja pelo grau de generalidade das afirmações. Ocorrências dessa natureza foram identificadas quando solicitamos que, tendo sido realizadas as atividades na escola, fossem apresentadas as conclusões, aquelas que levariam para o relatório final. Assumindo, então, características do outro gênero (o relatório), surgem citações que produziriam efeitos de autoridade para os argumentos apresentados (9): 7 Mantivemos na transcrição as abreviaturas comuns à escrita em diferentes gêneros da esfera digital. 240 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados (9) Maria Bom dia a todos. Durante o período de estágio, pude perceber que a interação entre professor-aluno não foi satisfatória, pois, infelizmente, a turma não permitia esse contato mais próximo. Pretendo fazer o melhor possível para os meus futuros alunos. Segundo Simões (2003), a atividade de docente é magnânima. Do professor do terceiro milênio exige-se muito mais do que em qualquer época: vocação, competência e aptidões emocionais, habilidade e consciência pessoal e relacional para possibilitar o desenvolvimento cognitivo de seus alunos. Espero que eu consiga ser uma boa professora. A postagem de Maria (9) nos fornece muitos elementos para reflexão, mas nos ateremos a alguns aspectos. A primeira observação que fazemos é de que há uma quebra entre os enunciados. O efeito de subjetividade produzido pelas projeções de 1ª pessoa (pude, pretendo, espero) pela saudação inicial (bom dia a todos) é interrompido pela citação de um possível teórico da educação, “Simões”. O dizer alheio, nesse sentido, parece estar apenas justaposto, como uma necessidade de caráter argumentativo, mas pouco incorporada ao todo do texto, com ausência de elementos que garantiriam a coesão. A informalidade e o efeito de subjetividade abrem e fecham a postagem, e a afirmação tomada como verdadeira (em terceira pessoa e com um vocabulário mais técnico) fica um tanto à deriva, com suas afirmações que exageram as capacidades que seriam “exigidas” para o referido “professor do terceiro milênio”. Essa caracterização idealizada e recorrente em textos que tematizam educação contemporânea aponta uma direção precisa, dada pela mudança de paradigma educacional em função de um mundo outro, com novos paradigmas, à espera de um professor que a ele se adéque. Não vamos aqui discutir as implicações dessa concepção, mas, a despeito de tudo o que as postagens vinham trazendo de elementos, esse professor se apresenta com uma caracterização alheia a do vivido durante as observações; ideal, imaginada, ainda que construída como evidente pelos que a defendem. Assim, ao se buscar aproximação com a noção de relatório, o dizer, rico com relação a angústias e impressões, vai sendo esvaziado. Um outro caso desse esvaziamento encontramos em (10), também relativo à fase final do estágio, quando a acadêmica faz uma espécie de síntese que pouco traz do que foi discutido anteriormente. O gênero fórum prevê enunciados curtos, mas aqui a síntese pretendida atua no sentido da generalização, em pouco atestando para a riqueza das experiências anteriormente partilhadas: (10) Tamara Observando as aulas, pude perceber o quanto é árdua a carreira do professor. Estive analisando como as turmas se comportavam e a metodologia usada pela professora. Os conteúdos ministrados e sua sequência a cada aula. Observei ainda, de uma forma geral, o comportamento de todos dentro do ambiente escolar. Para mim, foi uma experiência muito válida, pois tudo que pude ver durante o estágio serviu muito e ainda vai servir para a carreira docente. Foi o momento das descobertas, o primeiro contanto direto com uma sala de aula como futura professora. Considero como o momento crucial do curso. É exatamente neste período que o aluno descobre Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 241 Universidade Federal da Grande Dourados se realmente quer seguir a carreira de educador, pois as diiculdades são inúmeras e sempre terão no dia a dia do professor. Concluindo, as experiências são o que mais nos importa, pois é a partir delas que poderemos executar um bom trabalho no futuro. O estágio supervisionado é onde vamos à prática com base nas teorias obtidas durante o nosso aprendizado acadêmico. Tamara foi uma das mais presentes no fórum, mas, nesse momento, escreve de um modo que o resultado seria possível mesmo para quem não tivesse vivenciado experiência alguma, apenas repetindo o já pressuposto: que o momento é relevante para a formação do futuro professor etc. Isso possivelmente se explique pela contaminação do gênero, pressupondo que um relatório deva necessariamente ter um tom mais generalizante e impessoal. Essa impessoalidade não sofre danos mesmo pelo emprego da projeção de 1ª pessoa (pude, estive etc.) a que se somam outras projeções, a de 3ª pessoa (É exatamente neste período...) ou de 1ª pessoa do plural (vamos), que concorrem para o efeito de generalização. Afastando-se disso, também nessa fase de finalização das discussões, encontramos o texto de Luís (11): (11) Luís Tive minha experiencia de observação no mesmo colégio em que minha mãe é professora. Antes de iniciar, ela me avisou sobre o que estava por vir em relação aos alunos. As reações e fatos ocorridos na sequência não me surpreenderam, pois eu já esperava aquilo dos alunos que tinham como maiores diiculdades: A DESMOTIVAÇÃO, A FALTA DE INTERESSE DAS FAMÍLIAS DOS ALUNOS E A FALTA DE ESTRUTURA DO COLÉGIO. Minha única surpresa foi quanto à desvalorização dos professores que tinham de se esforçar para planejar e executar as aulas, lidar com as situações desfavoráveis em termos de estrutura e muitas vezes fazer o papel dos próprios pais dos alunos. Algumas vezes tive de tomar a frente das aulas enquanto a professora tinha de subir aula em outras salas e notei que os alunos não se importavam, principalmente por saberem que se a professora não os aprovasse eles seriam aprovados pela secretaria de educação ou algum pedagogo iria até o colégio para reclamar e obrigar o colégio a aprová-los. Como todos sabem, não tenho intenção de ser professor e não serei, estou aqui apenas para ter um diploma, mas devo confessar que são totalmente absurdas as condições de trabalho dos professores que têm de trabalhar na escola e em casa e muitas vezes exercer funções que não correspondem a suas habilidades. No exemplo de Luís (11), encontramos as antecipações a que nos referimos. Outras postagens trazem dados como esse: a universidade tematiza o universo escolar, “sabe-se” o que é a realidade da sala de aula pelo que se diz aqui e ali. No caso acima, é a mãe professora que alerta o estagiário, que, portanto não se “surpreende” por já esperar que encontrasse “desmotivação, falta de interesse das famílias dos alunos e falta de estrutura do colégio”. As antecipações, portanto, preparariam o docente em formação para aspectos críticos da docência, relativos a problemas diversos. Mas, apesar desse já sabido e anunciado, a surpresa se dá pela constatação da “desvalorização dos professores” atribuída aos alunos (que saberiam de antemão da aprovação garantida) e a outros 242 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados sujeitos externos à sala de aula, mas cujo poder terminaria por incidir sobre a perda de autoridade do professor (“secretaria de educação”, “pedagogos”). A isso se acresce a necessidade de que os docentes realizem ações que ultrapassam o previsto para seu “papel” profissional, “exercendo funções que não correspondem a suas habilidades”. Luís aqui toma partido dos docentes, relacionando os problemas inerentes às escolas (anunciados pela mãe) e os vividos no momento do estágio (desvalorização). Outras postagens, no entanto, reduzem-se a concentrar suas críticas na figura do professor, ignorando aspectos contextuais que relativizariam a autonomia do docente frente a sua performance. Nesse caso, a motivação, atendendo a uma lógica interna do sujeito, seria do âmbito de uma decisão que parte da sua interioridade, de um querer que não precisa de uma causa exterior, mas nasceria naturalmente, por um esforço individual. A desvalorização, ao contrário, situa o olhar sob uma dimensão social, política, observando a existência de outros atores em cena. Para tornar mais clara essa oposição, vejamos um fragmento das postagens a seguir: (12) Marisa Minha experiência com o estágio está sendo bastante proveitosa, mas rodeada de problemas também. Percebo que colégio em que eu estou estagiando não é diferentes dos outros. A professora aparenta estar muito cansada e desmotivada. Isso faz com que os alunos se desmotivem. Mas, para mim ainda existe um motivo a mais para queremos mudar essa realidade. Se observamos mais os nossos alunos, aguçá-los a aprender de forma satisfatória eles vão querer sim aprender. (...) (13) Bianca Chego em casa triste mesmo, com o coração doendo...pensando em como a realidade é triste... Fico me lembrando da carinha dos alunos, tentando imaginar algum futuro para eles... Não sei qual a história da professora, não sei o que ela já enfrentou na vida, mas, neste momento, ela é completamente ausente, não faz questão alguma de tentar ao menos dar aula! Acreditem...ela praticamente não dá aula! (14) Tamara Tudo isso é relexo da escolha de uma proissão não desejada. Marisa (12), Bianca (13) e Tamara (14) analisam aqui o comprometimento dos docentes na escola. Conforme defendem, os alunos se desmotivam pelo aprendizado por encontrar o docente também desmotivado para ensinar. Marisa reconhece o cansaço da docente e a consequente desmotivação, mas não problematiza razões que poderiam tê-la levado a esse estado. Avalia as consequências e declara querer ser diferente, propondo-se a agir para “mudar essa realidade”. Tudo estaria, nesse sentido, nas mãos do professor, no seu querer: “Se observamos mais os nossos alunos, aguçá-los a aprender de forma satisfatória eles vão querer sim aprender”. Assume, então, que quer, o que resultará em bons resultados quando assumir a sala de aula. Bianca reage com certa indignação e considera que pode haver uma história por trás do quadro que presencia, mas que também desconhece: “Não sei qual a história da professora, não sei o que ela já enfrentou na vida, mas, neste momento, ela é completamente Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 243 Universidade Federal da Grande Dourados ausente”. A história, portanto, não justificaria o presente e as ações empreendidas. Aí também fica claro que tudo se inscreve na ordem de um querer. A docente em questão não quer, por isso “não faz questão” de ensinar. Tamara, enfim, acrescenta numa única frase o que vê como causa primeira: “a escolha de uma profissão indesejada”. O termo “escolha” também remete às instâncias do querer. A profissão surge no âmbito de uma vontade, pressupostas outras possibilidades. O equívoco, portanto, estaria na opção imprudente. Assim, ainda que sejam pensadas razões contextuais, “a história” do professor, a desmotivação dos alunos, problemas relativos à escolha profissional, a motivação é da ordem interna do sujeito e fundamental para desencadear o processo de querer aprender nos alunos. Haveria aqui uma relação por contágio, construída na interação, não por força de um fazer cognitivo, mas por uma relação de ordem passional (LANDOWSKI, 2005a)8. Ausente esse desejo inicial (intrínseco, particular, nascido na subjetividade), o ensino não se efetivaria. Os aspectos exteriores, contextuais, não interessam, afinal, ou poderiam ser combatidos com a resistência individual. Desvalorização e desmotivação reiteram-se ao longo das postagens e, seriam, enfim, faces de uma mesma moeda. A imagem da autoridade do professor, aquela que corresponderia ao ideal, segundo uma dada figurativização, é esvaziada pela desvalorização, seja ela por questões de ordem da remuneração insuficiente, seja porque o saber do docente seja desqualificado (não correspondendo ao que se exige do “professor do terceiro milênio”), seja porque sua autonomia é relativizada ou esgotada por ações diversas. Há histórias, enfim, que levariam a esse estado de coisas. Do outro lado, está o docente fragilizado, desmotivado, mas responsabilizado pelos caminhos que deverá encontrar, para mudar por sua conta e risco, o cenário da educação. Os acadêmicos, desse modo, falam do lugar de suas certezas, denunciando sua decepção, mas, ao mesmo tempo, expressando vontade de prosseguir. A exceção é Luís (11), que declara não querer ser professor, buscar apenas um diploma do ensino superior, mas é um dos mais atentos a limitações de natureza social e sua indignação não se resume a culpabilizar o docente, mas em ampliar o horizonte para outras perspectivas. O fórum, assim, configura-se como lugar de confronto e divergência de perspectivas, que foram sendo levadas para a sala de aula da licenciatura, para que se ampliasse o debate. O olhar que vê já interpreta, não sendo inocente. São muitos os olhares, mas talvez poucos os sentidos e alguns já estejam traçados como verdades de antemão. O diálogo e a experiência poderiam, contudo, pô-los em movimento. A referência a Landowski aqui se dá unicamente pela apropriação do termo “contágio”, não porque esse teórico discuta as problemáticas da ação pedagógica ou porque a visão aqui comentada fosse justiicada. 8 244 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados CONSIDERAÇÕES FINAIS Não discutimos aqui nossas intervenções no fórum, realizadas ainda por um mestrando que atuava conosco como um monitor, também tomando como objeto de pesquisa de sua dissertação o mesmo fórum (COELHO, 2013). Nossa atuação se dava no sentido de provocar os estagiários a serem mais específicos, a repensarem suas conclusões e, sobretudo, de um modo mais geral, para que se evitasse a pressa em culpabilizar os docentes pelos possíveis insucessos considerados. Ressaltamos ainda que não nos ativemos a considerar aspectos específicos relativos ao ensino que foram tematizados no fórum (o trabalho com a leitura, os gêneros textuais, as aulas de gramática, etc.), restringindo-nos a questões da interação e suas implicações para o ensino-aprendizagem. Como já vimos analisando em relatórios em anos anteriores, há fatores na universidade que parecem favorecer um olhar sancionador, na medida em que a prática (escola) não atende ao que prevê a teoria (universidade) (LIMA, 2011). Tanto nas aulas presenciais quanto no fórum, insistimos que entre teoria e prática há intersecções e lacunas e tanto prática quanto teoria se encontram dos dois lados, ainda que cada uma das esferas privilegie uma ou outra. O que temos aqui são, enfim, relatos de um processo de construção de conhecimento que se orienta para a prática. Os sujeitos da pesquisa, então estagiários e agora licenciados, partem nesse momento efetivamente para o exercício da docência. Vão certamente assumir outras vozes, outras perspectivas, não estando prontos, na medida em que o sujeito vai se constituindo como tal ao longo da vida. Nossa intervenção se deu no sentido de que experimentassem a lógica de que o saber se pode construir mediante diálogo e reflexão, em constante inacabamento, como partilha e troca. Ao mesmo tempo, reiteramos que universidade e escola não estão apartadas, que podem e devem seguir juntas, tendo em vista objetivos comuns. Não há uma instância que sabe tudo e determina o fazer (destinador) sobre uma outra que deve assumir cegamente o que deve fazer (destinatário). Podem ser parceiros, fazendo juntas, por negociações e ajustamentos. Inicialmente resistindo ao interesse pelo fórum, os estagiários aos poucos a ele se dedicam e, ao final, os relatórios que tivemos em mãos mostraram-se mais ricos do que os de semestres anteriores, a despeito de se limitarem apenas ao que foi vivenciando como observação, cumprindo as orientações da referida etapa de estágio. Como um texto coletivo, aberto, em movimento, o fórum possibilitou que muitos que estariam silentes nas discussões da sala de aula aí encontrassem lugar de se expor, confirmando, contestando ou reconfigurando pontos de vistas dos demais. Se acreditamos que há um aprendizado que se faz com o outro, o recurso do fórum pode, portanto, mostrar-se produtivo nesse sentido. Não temos aqui indicadores de uma complexa construção de natureza cognitiva, mas uma experiência de partilha. Não foram discutidas no fórum teorias sobre o ensino, não havendo ao final um resultado que se caracterizasse Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 245 Universidade Federal da Grande Dourados por um sólida ou inédita produção coletiva, mas uma orientação para um modo de ensinar e aprender. Finalizando, retomamos uma das questões que aqui mereceram atenção. Longe de reduzir os docentes a performances encerradas num papel, pensemos que, como sujeitos, resistem a figurativizações e imagens congeladas, ainda que não desprezemos seu pertencimento a um grupo profissional, os condicionamentos históricos, as obrigações contratuais, as orientações metodológicas. Há muito para considerar do ponto de vista das associações e semelhanças, mas, como diz o poeta Carlos Drummond de Andrade, em “Igual-Desigual”, num aparente paradoxo diante de todas as experiências que relaciona como “igualíssimas”, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa. Não é igual a nada. Todo ser humano é um estranho ímpar (DRUMMOND, 1985, p. 537) É isso que nos permite antever o encontro do inesperado (GREIMAS, 2004), nas histórias que vão se fazendo. REFERÊNCIAS ANDRADE, Carlos Drummond de. A paixão medida. In: Nova reunião: 19 livros de poesia. v. 2. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985. BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica literária. Bauru, SP: EdUSC, 2003. COELHO, Eduardo Amorim. Letramento digital do professor de língua materna e saberes sobre a prática pedagógica: análise semiótica da interação em ambiente institucional virtual Moodle. 2014. 95f. Dissertação (Mestrado em Ensino de Língua e de Literatura) – Universidade Federal do Tocantins, 2014. GREIMAS, Algirdas Julien.; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto, 2008. __________., Algirdas Julien. Da imperfeição. São Paulo: Hacker, 2002. LANDOWSKI, Eric. Presenças do outro: ensaios de sociossemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2002. _____. Passions sans nom. Paris: PUF, 2004. _____. Les interactions risquées. Limoges: Pulim, 2005. _____. Aquém ou além das estratégias, a presença contagiosa. São Paulo: CPS, 2005a. 246 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados _____. Avoir prise, donner prise. Nouveaux Actes Sémiotiques [online]. NAS, 2009, n.º 112. Disponível em: <http://revues.unilim.fr/nas/document.php?id=2812>. Acesso em : 9 fev. 2010. _____. De quoi l’imaginaire est-il le nom? Lexia, nuova serie, n. 7-8, p. 63-89, 2011. _____. ¿Habría que rehacer la semiótica? Contratexto, n. 20, p. 127-155, 2012. _____. Représentation de l’un, pratiques de l’autre. In: LA RÉPRESENTATION DE L’AUTRE: journées thématiques, 2014, 527, Limoges. Résumés... Limoges, CERES, 2014, p. 12. LIMA, Geovana Dias.; SILVA, Luiza Helena Oliveira da. O. Imagens da escola na perspectiva de docentes em formação: uma leitura semiótica. In: SILVA, L. H. O.; MELO, M. A.; OLIVEIRA, L. R. P. (Orgs.). Ensino de língua e literatura: pesquisas na pós-graduação. Palmas: EDUFT, 2014 (no prelo). ______. Sentidos para o ensinar, sentidos para o aprender: análise do discurso de professores em formação inicial. 2001. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Tocantins, 2011, 107p. ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes Editores, 1999. POMPÉIA, Raul. O Ateneu. 19ª ed. São Paulo: Ática, 1996. SILVA, Luiza Helena Oliveira da; REIS, Naiane Vieira dos. Diálogos virtuais e regimes de sentido: análise semiótica de chats em contexto de ensino. In: TEIXEIRA, Lucia; CARMO JR, José Roberto do (Orgs.). Linguagens na cibercultura. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2013, p. 115-139. ______. Diálogos acadêmicos, interações digitais. CASA (Araraquara), v. 11, p. 3-14, 2013. TOCANTINS. Projeto pedagógico do curso de Letras. Araguaína, TO: UFT, 2009 (mimeo). Recebido em 31/03/2014. Aprovado em 20/04/2014. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 247 Universidade Federal da Grande Dourados A FORMAÇÃO PRÉ-SERVIÇO DO PROFESSOR DE LÍNGUA ESTRANGEIRA EM CURSO DE LICENCIATURA: CRENÇAS E REFLEXÕES EM EXPERIÊNCIAS DE ESTÁGIO SUPERVISIONADO EM DIFERENTES CONTEXTOS (SALA DE AULA E TELETANDEM) PRE-SERVICE TRAINING OF FOREIGN LANGUAGE TEACHERS IN LICENCIATE COURSE: BELIEFS AND REFLECTIONS ON EXPERIENCES OF SUPERVISED TRAINEESHIP IN DIFFERENT CONTEXTS (CLASSROOM AND TELETANDEM) Marta Lúcia Cabrera Kfouri Kaneoya* RESUMO: Este artigo tem por objetivo apresentar resultados de um projeto de pesquisa institucional em Linguística Aplicada, no qual se busca compreender como ocorre a prática inicial docente em contextos diversamente configurados de ensino/aprendizagem de língua estrangeira (presencial e virtual), bem como de que maneira esses contextos podem se favorecer mutuamente e favorecer a formação reflexiva e crítica do professor de línguas, em/para um mundo contemporâneo. É possível perceber a atitude reflexiva de quatro professores brasileiros de língua estrangeira (espanhol, inglês e italiano) em formação inicial, especialmente quanto a alguns aspectos relacionados ao processo de ensinar/aprender línguas, tais como papéis dos participantes; relevância da interação significativa; culturas envolvidas; ensino de uma língua estrangeira e ensino da língua materna como estrangeira; ensinar e aprender línguas tipologicamente próximas; constituição do lugar de aprender/ensinar. Os resultados indicam que a experiência de vivenciar a dinâmica de um contexto didático convencional de ensino de línguas (sala de aula), ao lado da experiência de ensinar e aprender em um contexto de configurações didáticas virtuais (teletandem), foi especialmente importante para a formação crítica dos futuros professores de línguas e para a conscientização sobre a prática de ensinar línguas em tempos de inovação tecnológica. Palavras-chave: formação de professores de línguas; ensino/aprendizagem de línguas; contextos presencial e virtual. ABSTRACT: This article aims to show the results of an institutional research in Applied Linguistics, which tries to comprehend how the initial teaching practice occurs in diversely figured contexts of foreign language teaching-learning (on-site and virProfessor Assistente Doutor do Instituto de Biocências Letras e Ciências Exatas/UNESP/São José do Rio Preto. E-mail: [email protected]. * Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 249 Universidade Federal da Grande Dourados tual), as well as how such contexts may mutually favor and encourage reflective and critical training of the language teacher in/for a contemporary world. It´s possible to notice a reflective attitude of four Brazilian foreign language (Spanish, English and Italian) teachers in initial training, especially regarding some aspects related to the teaching-learning languages process, such as roles of the participants; relevance of meaningful interaction; engaged cultures; teaching of a foreign language and mother tongue teaching as foreign one; teaching and learning typologically similar languages; constitution of the place to learn-teachIt´s possible to notice a reflective attitude of four Brazilian foreign language (English, Italian and Spanish) teachers in pre-service education, especially about some aspects of language teaching and learning process, such as the role of the participants; the relevance of significant interactions; the involved cultures; the teaching of a foreign language and the teaching of the mother tongue as a foreign language; the teaching of similar languages as Portuguese and Spanish; and the constitution of the place of teaching and learning languages. The results indicate that the experience of experiencing the dynamics of a conventional didactic context of language teaching (classroom), alongside to the experience of teaching and learning in a context of virtual educational settings (teletandem), it was especially important for the critical training of the future language teachers and to the awareness about the practice of teaching languages in times of technological innovation. Keywords: language teacher training; languages teaching-learning; on-site and virtual contexts. INTRODUÇÃO O contexto brasileiro de pesquisas em Linguística Aplicada (LA) tem-se ocupado de diversos estudos em torno da temática de formação de professores de língua estrangeira (LE), enfatizando estudos que analisam as formas de desenvolvimento e as reflexões envolvendo práticas de ensino em contextos de formação inicial docente em sala de aula (VIEIRA-ABRAHÃO, 2004; GIL et al., 2005; PIMENTA e GHEDIN, 2002; MAGALHÃES, 2004). Em relação à formação de docentes em nível superior, Celani (2000) aponta ser fundamental questionarmos até que ponto a Universidade vem preparando futuros professores a lidarem com a linguagem enquanto elemento socialmente construído, a partir de subsídios oferecidos pelo campo da LA. Na visão da autora, tal compreensão é essencial para o trabalho do professor em sala de aula e, acrescentamos, em qualquer ambiente de ensino/aprendizagem. É necessário, pois, que o futuro professor comece a refletir, desde os anos iniciais do curso de licenciatura, sobre questões que envolvam seu próprio processo de aprendizagem e seu trabalho futuro com a linguagem na construção de contextos sociais de ensino de línguas. Nesse sentido, poderá assumir posicionamentos críticos e participativos no estabelecimento de políticas sociais relevantes para o reconhecimento do valor da tarefa de ensinar línguas. 250 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Com vistas a discutir a problemática da formação docente do professor LE a partir das ações envolvidas no estágio curricular supervisionado, apresentamos, neste artigo, os resultados do desenvolvimento de um projeto institucional trienal com esse enfoque1. Nesse sentido, traçamos um perfil de estagiário e de futuro licenciado em Letras inserido em ambientes distintos de ensino/aprendizagem de línguas, o presencial (sala de aula) e o virtual (teletandem), nos quais se deu o cumprimento de estágios obrigatórios em LE. Acreditávamos que, nesses espaços, o estagiário poderia vivenciar não somente a dinâmica dos contextos didáticos convencionais, por meio de regências de aulas, mas também experimentar um contexto de configurações didáticas distintas em relação ao processo de ensino/aprendizagem de línguas, em ambiente teletandem, buscando aproximá-los, de maneira que a experiência do estágio pudesse contribuir para sua formação e futura atuação como professor de línguas (CELANI, 2004; SACRISTÁN, 2002; PIMENTA, 2002; BRAGA, 2007). A pesquisa justificou-se, pois, pela busca em estabelecer reflexões críticas a respeito da formação e atuação pré-serviço do professor de línguas em uma universidade pública do interior paulista, desenvolvida em forma de estágio curricular supervisionado, particularmente na disciplina de Estágio Curricular Supervisionado II: língua estrangeira, oferecida nos últimos anos dos cursos diurno e noturno. Para tanto, tomamos por base o Projeto de Estágio Curricular Supervisionado para o Curso de Licenciatura em Letras, produzido em 2008, que, por sua vez, apoia-se no Projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura em Letras da Universidade, o qual leva em consideração, ainda, o disposto no Parecer nº 1, CNE/CP, de 18/02/20022. Parece-nos oportuno ao aluno-professor poder exercer, em sua formação inicial, atividades de estágio em contextos distintamente configurados entre si, tal como se caracterizavam os que aqui se apresentam, especialmente no que diz respeito, entre outros aspectos, à análise dos papéis dos participantes, à importância atribuída ao contexto e ao trabalho com a perspectiva cultural no ensino de línguas. Não podemos deixar de esclarecer que, na proposta investigativa, também levamos em consideração, como pré-requisito para o trabalho do estagiário, as discussões teórico-práticas desenvolvidas nas disciplinas de Estágio Curricular Supervisionado I: língua estrangeira e Linguística Aplicada: ensino de língua estrangeira, ambas oferecidas no penúltimo ano dos cursos diurno e noturno. Tais disciplinas são vistas aqui como fundamentais para um embasamento crítico do aluno-professor a respeito do papel que a LA vem ocupando em contextos contemporâneos e desafiadores de formação de professores e de ensino/ aprendizagem de línguas. Este estudo caracterizou-se como projeto de pesquisa de minha autoria, relativo ao triênio 2010-2012, cujo título original é A formação pré-serviço do professor de língua estrangeira em curso de licenciatura: crenças e relexões em experiências de estágio supervisionado em contexto presencial (sala de aula) e mediado pelo computador (teletandem). Agradeço aos participantes da pesquisa apresentados neste artigo, cujos nomes reais foram preservados, pela disponibilidade em participar do estudo e em ceder os dados registrados. 2 Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena. 1 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 251 Universidade Federal da Grande Dourados A título de esclarecimento, salientamos que as atividades de prática propriamente dita (observação e regência de aulas) são realizadas em escolas de ensino básico conveniadas com a Universidade, sob supervisão do docente responsável pelas disciplinas de estágio e coma supervisão local dos professores de línguas das escolas-campo de estágio. Além dessas atividades, prevê-se também o desenvolvimento de um projeto que atenda às necessidades das escolas de ensino básico onde o aluno estagia, o qual, caso não seja possível ou viável concretizar-se, por razões apresentadas pelo aluno ou pela escola, deverá ser substituído por atividade em que o estagiário possa destinar vinte horas para análise de materiais, instrumentos e programas oficiais de ensino ou, ainda, outra atividade didática, tal como previsto no Projeto de Estágio Curricular Supervisionado para o Curso de Licenciatura em Letras (p. 10). Tendo sido o campus universitário em questão um dos locais de implementação do Projeto Teletandem Brasil: línguas estrangeiras para todos (TELLES, 2006)3, no período em que a pesquisa se desenvolveu, a atuação dos alunos-estagiários de Letras em tal projeto institucional parecia-nos relevante para a investigação, no sentido de contemplar outra dimensão formativa para uma futura prática do ensino de línguas. Na tentativa de adiantar algumas considerações sobre os resultados da pesquisa, podemos afirmar que, ao aliar experiências presenciais e virtuais de ensino/aprendizagem de LE, os alunos-estagiários puderam redimensionar os conceitos por eles construídos a respeito de ensinar e aprender línguas, especialmente quando se trata da língua e cultura maternas, ao abordá-las a um estrangeiro. Ademais, nessa perspectiva renovada de cumprimento de estágios, tiveram a possibilidade de refletir sobre e de (re)construir crenças e expectativas a respeito da constituição do lugar de aprender/ensinar, o que, como sabemos, já não se restringe à sala de aula de línguas. Por fim, nessa trajetória, os alunos-estagiários puderam tecer apreciações a respeito de como os contextos de ensino/ aprendizagem estudados, o presencial e o virtual, puderam se favorecer mutuamente, no intuito de atribuir novas significações ao ensino de uma LE que vão além dos conteúdos linguísticos, rompendo fronteiras ideológicas, sociopolíticas, geográficas e culturais. A CARACTERIZAÇÃO TEÓRICA DA PESQUISA No que tange à fundamentação teórica do estudo, partimos de discussões sobre a formação reflexivo-crítica do futuro professor no âmbito do estágio supervisionado (VIEIRA-ABRAHÃO, 2001, 2004, 2005) e sua futura atuação em contextos de ensino diversos na era tecnológica (ZEICHNER E LISTON, 1996; NÓVOA, 1997; PIMENTA, 2002; REAGAN e OSBORN, 2002; GHEDIN, 2002; ZEICHNER, 2003; DAWSON et. al., 2006; BRAGA, 2007). Tomamos, ainda, como referenciais teóricos, as questões apontadas por diversos autores em torno do estudo de crenças (re)construídas no discurso e na prática de alunos-professores DEWEY, [1910]1997; O Projeto Institucional Teletandem Brasil: línguas estrangeiras para todos, inanciado pela Fapesp, foi desativado em dezembro de 2010, mas os docentes deram continuidade às atividades de pesquisa e de ensino/aprendizagem de línguas em teletandem, em nível de graduação e de pós-graduação. 3 252 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados VYGOTSKY, 1998; VIEIRA-ABRAHÃO, 2004, 2006; BARCELOS, 2006; BORG, 2006). À luz dessas teorias, observamos que a formação inicial pode representar ao futuro professor de línguas uma oportunidade de tomada de consciência crítica a respeito de suas crenças, pressupostos e conhecimentos prévios, tendo em vista a construção de novos conhecimentos sobre teorias e práticas pedagógicas. No caso de a formação inicial ocorrer em ambiente de teletandem, acreditamos que a reflexão pode assumir um âmbito mais abrangente, pois experimentamos um novo contexto de aprendizagem de línguas em uma realidade histórica marcada pela mediação tecnológica e pela ausência do trabalho direto do professor. Portanto, havia muito sobre o que refletir de maneira crítica, atividade que extrapola a abordagem simplista de reflexão sobre conteúdos (o que ensinar), normalmente enfocada na formação inicial acadêmica. A formação do professor de português língua estrangeira (PLE), ou seja, neste caso, a daquele que ensina sua própria língua como estrangeira, foi outro alvo teórico na pesquisa em questão. Os trabalhos em torno da área de PLE têm constituído um terreno crescente de pesquisas a respeito do ensino/aprendizagem de português para falantes de outras línguas4. Nesse sentido, o ensino nessa área tem gerado reflexões sobre aspectos importantes, porém, ainda pouco enfocados no campo da formação de professores (ALMEIDA FILHO e CUNHA, 2007). O preparo de um professor de PLE, tal como de um professor de línguas em geral, beneficia-se “dos conhecimentos sobre o próprio processo de ensino/aprendizagem, sobre a natureza de uma língua não-materna, sobre a cultura em que se insere a língua-alvo e a sua aprendizagem” (ALMEIDA FILHO, 2004, p. 36), aspectos estes abarcados pela própria LA. Consideramos igualmente relevante o pensamento do autor sobre a proximidade entre o português e o espanhol gerar restrições e parâmetros na preparação e implementação do ensino de português a seus falantes, como é o caso da pesquisa aqui descrita, já que essas línguas são consideradas as irmãs da mesma família linguística (as neolatinas) que mais possuem afinidades entre si (ALMEIDA FILHO, 2001, 2007). Complementando essa visão, apoiamo-nos também nas discussões trazidas nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias (2006), nas quais se vislumbra “o conhecimento sobre o outro e a reflexão sobre o modo como interagir ativamente em um mundo plurilíngue, multicultural e heterogêneo, envolvendo-se questões identitárias e de reflexão nas quais o papel da LM é inegável” (p. 150). O termo língua estrangeira é atribuído ao português ensinado como outra língua, de acordo com a SIPLE – Sociedade Internacional de Português Língua Estrangeira. 4 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 253 Universidade Federal da Grande Dourados O TRAÇADO METODOLÓGICO DA INVESTIGAÇÃO E AS PERGUNTAS DE PESQUISA A pesquisa delineou-se como um estudo qualitativo de tipo etnográfico (ANDRÉ, 2000; RICHARDS, 2003; DUFVA, 2003; SÓL, 2005), permitindo-se um tratamento interpretativista à análise e triangulação dos dados gerados e garantindo mais confiabilidade à trajetória analítica (BURNS, 1999). Os contextos de pesquisa, como já adiantado de início, foram às salas de aulas presenciais de escolas de educação básica onde quatro licenciandos em Letras, Lorena, Marcela, Roberto e Silvana, desenvolveram estágios supervisionados obrigatórios, sob forma de regência de catorze aulas de LE, e, ainda, o ambiente teletandem, no qual esses estagiários desenvolveram vinte interações de ensino/aprendizagem de línguas, o português e a língua de proficiência dos parceiros estrangeiros, que deveria ser a mesma em que os licenciandos concluiriam suas habilitações (espanhol, no caso de Marcela, inglês, no caso de Lorena, e italiano, no caso de Roberto e Silvana)5. A título de esclarecimento, o ambiente teletandem envolve pares de falantes nativos de diferentes línguas trabalhando, de forma colaborativa, para aprender o idioma um do outro, sem a presença de um professor, a partir dos princípios da reciprocidade, bilinguismo e autonomia na aprendizagem de línguas. As interações se estabeleceram por meio de programa de mensageria eletrônica (Skype), que permitiu aos interagentes utilizar, em tempo real (comunicação síncrona), recursos de voz, texto (leitura e escrita) e imagens, a partir do recurso de uma webcam (para mais detalhamento do ambiente teletandem, consulte www.teletandembrasil.org). Assim, consideramos como dados primários as gravações em áudio de duas aulas de cinquenta minutos de regência e de uma sessão de duas horas de teletandem, desenvolvidas por cada um dos participantes. Como dados secundários, foram utilizados os obtidos por meio de uma sessão de visionamento com cada participante e de uma sessão reflexiva, em grupo, realizadas com minha mediação enquanto pesquisadora-formadora, os registros dos perfis e dos diários de bordo dos licenciandos sobre as interações e as regências, na plataforma Teleduc, além do relatório de Iniciação Científica (IC) de um dos participantes, onde encontramos uma análise do ponto de vista de uma das alunas-estagiárias, que foi contemplada com uma bolsa de IC (PIBIC-Reitoria) para desenvolver esse trabalho como pesquisa6 Reuniões de orientação metodológica e de estudo teórico entre estagiários e pesquisadora foram igualmente consideradas como dados secundários. As perguntas que nortearam a investigação foram duas: a) Como se caracteriza a formação pré-serviço de alunos-professores de línguas de um curso de Letras de uma 5 Não foi possível que licenciandos em Português-Francês, a outra habilitação oferecida no campus envolvido, izessem parte da pesquisa, já que não havia interagentes estrangeiros de francês disponíveis para fazer teletandem com os estudantes brasileiros, o que inviabilizaria a proposta investigativa. 6 Todos os dados foram registrados e analisados com o devido consentimento dos envolvidos. 254 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados universidade pública, por meio de experiências de ensino de línguas em estágio supervisionado, em contextos presencial (sala de aula) e virtual (teletandem) de ensino/ aprendizagem de LE? b) Em que medida as crenças e expectativas dos alunos-professores se transformam ao longo da experiência de estágio, no sentido de promover ou não reflexões a respeito da formação docente em/para diferentes contextos de atuação? UM RELATO DA ANÁLISE DOS DADOS: CONTRIBUIÇÕES PARA A FORMAÇÃO CRÍTICA E PARA A (RE) CONSTRUÇÃO DE CRENÇAS DOS FUTUROS PROFESSORES DE LÍNGUAS Os dados analisados sugeriram que a participação na investigação proposta foi bastante significativa aos quatro alunos-professores em formação inicial para atuar em suas LEs de habilitação. Já no registro de seus perfis, os participantes indicaram ter expectativas positivas em relação a interagir em teletandem, tais como praticar a LE de formação com um falante proficiente e conhecer melhor traços culturais dessa LE, entender como se dá o ensino de português a um falante de outra língua e buscar contribuições nessa prática para seus estágios de regência em contexto presencial. De maneira geral, os alunos-professores avaliaram que as contribuições para sua formação como futuros docentes deram-se de maneiras distintas, principalmente porque cada qual vivenciou experiências diversas em suas parcerias de teletandem, tal como apontaram nos registros de seus diários de bordo. É importante esclarecer que todos realizaram seus estágios em escolas públicas, sendo que Marcela, Roberto e Silvana estagiaram em um centro de estudos de línguas, projeto público voltado a alunos da rede estadual paulista de ensino, enquanto Lorena realizou as regências em uma escola da rede oficial de ensino. Em relação ao teletandem, os estagiários faziam suas interações em computador pessoal ou no ambiente institucional, em laboratório da Universidade. Nas sessões de visionamento, realizadas com cada participante, os estagiários puderam relatar as particularidades de cada experiência, bem como refletir sobre a maneira como cada contexto (sala de aula e ambiente virtual) favoreceu-se mutuamente, ou não. Já na sessão reflexiva, realizada ao final da pesquisa, os quatro alunos-professores discutiram em conjunto, com minha mediação, aquilo que foi mais relevante para sua formação inicial docente, em termos de participação na pesquisa. Para Lorena, a licencianda em português-inglês, as principais contribuições deram-se em relação a alguns fatores específicos. O primeiro deles diz respeito à sua formação linguístico-comunicativa e cultural, já que a participante se sentiu beneficiada pelas interações em teletandem com um estadunidense, Alex, que vivia na Virgínia, onde trabalhava no laboratório de línguas de uma Universidade. Ele era casado com uma brasileira, tinha um nível avançado de proficiência em PLE, além de ser fluente Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 255 Universidade Federal da Grande Dourados em alemão, italiano, francês, espanhol, latim e grego. Lorena salientou que, como interagente de Alex, teve oportunidades para melhorar sua fluência na LE, além de ter aprendido mais vocabulário e compreendido aspectos culturais do país do interagente, a partir de uma visão mais crítica e menos idealizada sobre os fatos. Em relação à motivação e à autonomia para ensinar e aprender LE, Lorena valorizou a afetividade (paciência e amizade mútuas) presente nas interações, aspecto que certamente contribuiu positivamente para o processo de ensino/aprendizagem das línguas e culturas (inglês e português) em meio virtual. A escolha de conteúdos em parceria e de estratégias de aprendizagem com as quais ambos mais se identificavam também proporcionou maior autonomia em relação às línguas aprendidas. Quanto à contribuição entre contextos diversamente configurados (o presencial e o virtual), Lorena afirmou que, ao contrário do que ocorria nas interações em teletandem, as aulas de regência tiveram como ponto de referência os conteúdos dos cadernos da proposta curricular paulista para o ensino de inglês, material distribuído nas escolas, embora a estagiária pudesse complementar livremente as atividades, desde que as cumprisse, tal como a orientou a professora responsável da escola-campo de estágio. Essa diversidade de configuração de contextos foi analisada pela participante como um aspecto propulsor em relação às possibilidades de contribuição de um contexto pelo outro, levando-a a agir pedagogicamente em busca desse diálogo nos contextos nos quais atuou, e contribuindo, no exercício do estágio curricular supervisionado, para sua formação reflexiva e crítica como futura professora de línguas. Além disso, a temática das aulas presenciais impulsionava a interação em teletandem, gerando enriquecimento linguístico-comunicativo e cultural, tanto para a brasileira quanto para seu interagente estadunidense. Por fim, Lorena refletiu sobre ter vivenciado um significativo crescimento em sua formação inicial na universidade, já que a experiência das interações em teletandem melhorou seu desempenho oral enquanto aluna de língua inglesa, aumentou sua autoestima e diminuiu a timidez em relação à prática da LE, além de ter ampliado seus conhecimentos de mundo para a apresentação de seminários obrigatórios em disciplinas. A participante também relatou que as interações tiveram um significado especial quanto ao fato de ter podido apresentar a Alex alguns poetas brasileiros, alvos de sua pesquisa de iniciação científica na universidade. No caso de Marcela, licencianda de português-espanhol, a experiência desenvolvida durante a pesquisa deu-se de forma distinta da de sua colega, pois Marcela estagiou em ambiente específico de ensino de LE, um centro de estudos de línguas, projeto da rede estadual paulista direcionado a alunos matriculados a partir do 6º ano do ensino fundamental, que podem optar pela língua que desejam cursar, gratuitamente, no centro (neste caso, as línguas oferecidas são o espanhol, o francês e o italiano). Os cursos têm duração de seis semestres. Em relação ao teletandem, a estagiária conseguiu interagir com dois parceiros mexicanos, Juan e Ariel, que já estudavam português e tinham interesses gerais na 256 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados língua e na cultura brasileira. Ambos eram estudantes no curso de “Ciencias de la Información” e trabalhavam em uma emissora de rádio. No caso específico de Marcela, a estagiária já havia tido a experiência de interagir em teletandem antes, tendo realizado dois estágios básicos nessa modalidade. Conforme registrado em seu perfil do Teleduc, Marcela acreditava possuir uma ideia mais clara dos fatores de proximidade e de distância entre as línguas trabalhadas e das vantagens de se aprender e se ensinar línguas em meio virtual, especialmente quanto à convergência de aspectos culturais, sociais e psicológicos (JESUS, 2010). Vale lembrar, ainda, que sua participação nesta pesquisa rendeu-lhe, simultaneamente, o desenvolvimento de uma investigação de iniciação científica sobre ensino/aprendizagem de línguas próximas (português-espanhol), da qual fui orientadora, e que, posteriormente, foi ampliada e transformou-se em investigação de mestrado em andamento sobre a temática da interculturalidade na formação do professor de PLE. Nesse sentido, podemos afirmar que os dados obtidos por meio das sessões reflexivas e de visionamento7, bem como pelos registros de diários de bordo de Marcela, sugerem algumas contribuições importantes, primeiramente, quanto ao diálogo estabelecido entre o contexto virtual (teletandem) e o presencial (sala de aula), já que Marcela conseguiu realizar uma interação em teletandem entre seus parceiros mexicanos e os alunos de espanhol de uma turma do centro de línguas, com a qual cumpria a modalidade de estágio de regência. Para a estagiária, isso possibilitou uma conexão dos alunos com os estrangeiros, pois os aprendizes de espanhol tiveram a oportunidade de interagir, no próprio espaço da sala de aula, com dois falantes proficientes e nativos da língua, o que se constituiu como uma rica oportunidade para que refletissem sobre as diferenças entre duas pessoas de uma mesma cultura, desmitificando, talvez, um pensamento estereotipado de igualdade entre pessoas de mesma nacionalidade, língua e cultura, tal como afirma Marcela em seu relatório de iniciação científica. A estagiária também notou nos alunos brasileiros uma preferência por tratar de temas culturais com os interagentes mexicanos, deixando, em segundo plano, questões que envolvessem gramática. Ficou claro para ela que os alunos valorizaram a oportunidade de trocar informações e ampliar conhecimentos culturais sobre o Brasil e sobre o México, ora comparando ora aproximando as duas culturas. Além do mais, Marcela teceu reflexões sobre o fato de que a inserção do contexto virtual no presencial pareceu ter gerado contribuições também para a professora da turma, a qual teve a oportunidade de ampliar seus conhecimentos sobre o idioma espanhol pelo ponto de vista de interagentes inseridos em uma cultura mexicana, de modo que ela também pôde tirar proveito da interação. Outro ponto que chamou a atenção de Marcela durante as regências envolveu um olhar reflexivo sobre os motivos para a escolha do espanhol como LE pelos alunos do centro de línguas. A estagiária notou que os principais fatores que determinavam a esA sessão de visionamento é aquela em que participante e pesquisador se reúnem, no intuito de que o participante, tendo assistido ou ouvido sua atuação pedagógica previamente, escolhe trechos que queira comentar ou analisar junto com o pesquisador, realizando um visionamento sobre sua prática. Na sessão relexiva, o grupo todo se reúne com o pesquisador, no intuito de discutir as práticas de cada participante da pesquisa, fazendo comentários ou sugestões. 7 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 257 Universidade Federal da Grande Dourados colha da LE estudada revelaram, basicamente: que há uma motivação intrínseca (gosto pela língua) e uma motivação extrínseca (oportunidades de trabalho) que os move a essa opção, especialmente nos estágios iniciais e finais do curso, respectivamente; que o fato de o espanhol e o português serem línguas tipologicamente próximas não é relevante para os alunos e que estudar uma LE irmã de sua LM não lhes garante a facilidade do processo de aprendizagem. Em termos de reflexão sobre o desenvolvimento de suas estratégias e crenças a respeito de ensinar LE, Marcela afirma que as principais utilizadas por ela em ambos os contextos de atuação foram a de correção no momento do erro e a de escrever as palavras e frases desconhecidas dos aprendizes, para facilitar a visualização do vocábulo, propiciar o contato com a língua escrita e, dessa forma, facilitar a compreensão da LE por parte dos aprendizes, conforme registrado em diário de bordo. Além disso, essas estratégias facilitaram seu desempenho como tutora da LM nas interações com os mexicanos, levando-a a refletir quanto às particularidades de se ensinar sua própria língua como estrangeira, oportunidade que, segundo ela, não havia vivenciado, até então, em sua formação acadêmica. Isso a levou a desenvolver uma capacidade de mais autonomia para ensinar, promovida, em sua visão, mais nas interações em teletandem do que na sala de aula. Para Marcela, a interferência da maneira de trabalhar da professora titular da turma da regência fez com que sua liberdade metodológica ficasse comprometida, o que não aconteceu na interação, considerada a própria configuração do contexto teletandem, no qual os interagentes negociam o que e como desejam aprender, não havendo, inclusive, a figura centralizadora de um professor. Finalmente, no caso dos licenciandos de português-italiano, temos uma configuração diferente, já que Roberto e Silvana trabalharam em dupla, mas, tal como as outras participantes, registraram em seus perfis expectativas muito próximas em relação ao sucesso que a experiência de atuar em contextos diferentemente configurados poderia representar para sua formação inicial docente. Ambos também estagiaram no centro de línguas acima referido, porém, a experiência como o teletandem desenvolveu-se com uma única parceira italiana, Alessandra, estudante em Firenze, onde residia. Enquanto participante do Projeto Teletandem pela parceria firmada entre as universidades brasileira e estrangeira, a italiana acabou vindo para o Brasil e passando alguns dias com seus parceiros brasileiros. Nessa visita, os estagiários levaram-na ao centro de línguas, onde realizou com os alunos um tandem presencial. Dessa experiência, a principal contribuição apontada pela dupla de estagiários foi quanto à possibilidade de alunos brasileiros conhecerem uma estrangeira falante da LE. Roberto e Silvana apontaram este aspecto como sendo o mais importante da experiência de estagiar em dois contextos diversamente configurados, já que a presença de uma estrangeira no ambiente de aprendizagem de LE dos alunos ampliou seu universo linguístico e cultural, ao mesmo tempo em que encurtou a distância entre as línguas e diminuiu os mitos em relação ao estrangeiro. Os alunos puderam conhecer melhor os 258 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados hábitos de uma jovem falante de outra língua e reconhecer neles muito de seus próprios hábitos, criando-se, assim, uma identificação mútua. O trabalho da professora da escola campo de estágio também foi beneficiado, tal como ocorreu no caso de Marcela, no que diz respeito ao uso real da língua em sala de aula, a partir de aspectos como entonação, pronúncia, vocabulário, expressões comunicativas e valores culturais. Por terem tido a companhia da interagente italiana por algum tempo no Brasil, os estagiários também contaram com a possibilidade de receber uma tutoria em relação às possíveis dúvidas sobre o conteúdo que tinham de tratar nas regências, vista como outro benefício nesse contexto. Tal fato colaborou para um ensino da LE mais eficiente e atrativo para os alunos, na sala de aula, já que a professora da turma não interferiu nas escolhas metodológicas feitas pelos estagiários, apenas direcionou-os em relação aos conteúdos que teriam de cumprir. Nesse sentido, Roberto e Silvana apontaram um ganho para sua formação linguístico-comunicativa, cultural e acadêmica (sessão de visionamento), promovido, especialmente, pelas trocas linguísticas e culturais realizadas entre estagiários e interagente italiana em teletandem, antes de ela vir ao Brasil, bem como as possibilidades para que essas trocas se intensificassem em tandem presencial, durante sua estada no país. Entretanto, diferentemente das outras participantes, os estagiários de português-italiano apontaram um aspecto problemático na interação com a parceira estrangeira, ocorrido especialmente com Roberto. Tratou-se de um entrave de ordem afetiva, já que, ao vir para o Brasil e estabelecer um contato mais próximo de seus interagentes brasileiros, Alessandra acabou se declarando interessada afetivamente por Roberto, que não correspondeu ao sentimento, inclusive para preservar, segundo ele, a relação acadêmica de ensino/aprendizagem de LE proposta pelo projeto Teletandem Brasil (sessão de visionamento). A partir desse momento, a relação entre a interagente italiana e os interagentes brasileiros, estagiários e participantes desta pesquisa, foi interrompida, e, da mesma forma, a possibilidade de irem a Itália, naquela ocasião. Roberto e Silvana acreditam que esse foi um aspecto negativo da proximidade com a interagente, já que, em sua opinião, nem todos os interagentes conseguem, talvez por falta de orientação adequada, ter a mesma percepção dessas experiências, ou seja, a do envolvimento estritamente acadêmico e investigativo proporcionado nas parcerias institucionais, o que acaba gerando desentendimentos e compreensões equivocadas nesse tipo de relacionamento virtual. Retomando as perguntas de pesquisa propostas para o estudo, vimos que a possibilidade de aprimorar, em um ambiente virtual de ensino/aprendizagem de línguas, conhecimentos sobre a língua e a cultura estrangeiras na qual seriam em breve habilitados, atribuiu à formação inicial docente dos quatro licenciandos participantes uma significação renovada, à medida que promoveu também um aumento de sua autoestima, tanto como futuros professores de línguas quanto como alunos universitários de LE. As interações igualmente lhes garantiram impulso para o estudo de questões de língua que puderam ser mais bem compreendidas quando vistas pela ótica de um Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 259 Universidade Federal da Grande Dourados falante proficiente que está de fato disposto a ensinar sua língua, a partir de sua inserção em um contexto linguístico-cultural específico. Apontamos, ainda, um aspecto comum na experiência dos quatro estagiários participantes, e que se remete ao ensino do PLE promovido nas interações em teletandem. Todos se sentiram motivados a favorecer o parceiro a aprender sua língua de proficiência, o que fez a situação de interação ser uma troca, na qual um ajudava o outro a melhorar suas habilidades na língua que queriam aprender, ao mesmo tempo em que lhes deu oportunidades de refletir sobre o ensino de sua própria língua como estrangeira e sobre o ensino das LEs de habilitação para alunos da rede escolar oficial. Por outro lado, ficou claro para todos que a habilitação para ensinar PLE não é contemplada no curso de licenciatura, no sentido de que não há formação adequada para essa atuação, nem mesmo a direcionada aos interagentes brasileiros em teletandem. Portanto, essa é uma das limitações sobre as quais nos pusemos a refletir a partir desta pesquisa, em relação a como se caracteriza a formação pré-serviço desses alunos. A análise dos dados nos mostrou que é necessário nos encaminhar a r um trabalho de formação docente nesse sentido. No que se refere às crenças e expectativas dos participantes, notamos, claramente, que houve um encontro entre o que eles esperavam sobre atuar virtualmente no ensino de LE e o que de fato ocorreu, no sentido de que as experiências foram muito positivas e motivadoras para todos. Houve também uma confirmação de expectativas sobre a contribuição de um contexto para o outro, ao se refletir sobre os ganhos obtidos tanto ao ensinar em sala de aula quanto ao ensinar em teletandem. Ao aproveitar as experiências trazidas de um contexto para o outro, houve possibilidade de os estagiários trabalharem de forma mais adequada aspectos gramaticais e de vocabulário, principalmente, mas também aspectos culturais das línguas envolvidas. Outras questões importantes e que foram alvo de reflexão acentuada da parte dos estagiários remeteram às crenças sobre o ensino da própria língua para um estrangeiro, especialmente quando se tratou de línguas próximas, como no caso do português-espanhol e à importância da compreensão do lugar da afetividade nas relações de ensino/aprendizagem, como nos casos de português-inglês e português-italiano. Os resultados nos mostraram, ainda, que a inserção de ambientes virtuais de ensino/aprendizagem de línguas em espaços convencionais de ensino trazem benefícios mútuos e atingem positivamente professores em formação e já em atuação e alunos, que passam a ter a oportunidade de interagir com estrangeiros e a encontrar mais sentido nas relações entre as línguas e culturas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo, apresentamos os resultados de uma pesquisa institucional sobre formação inicial de professores de línguas, na perspectiva da LA, tendo como foco a formação reflexiva de estagiários a respeito de suas crenças e expectativas quanto ao 260 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados processo de ensinar e aprender línguas em contextos diversamente configurados, a sala de aula (contexto presencial) e o ambiente teletandem (contexto virtual), no cumprimento de estágios curriculares supervisionados. Podemos considerar que, para os participantes, foi importante vivenciar, em sua formação inicial docente, a dinâmica dos contextos didáticos convencionais e virtuais de ensino de LE. Os dados igualmente indicam que houve oportunidades de reflexão crítica sobre as expectativas e crenças iniciais dos quatro licenciandos a respeito do papel dos interagentes para o estabelecimento e o sucesso das interações virtuais; da importância de interagir sobre temas significativos, sobretudo os relativos às culturas envolvidas, o que pode facilitar o desenvolvimento de ações pedagógicas mais bem sucedidas em sala de aula; da possibilidade de melhorar o ensino da LE e de praticar o ensino de LM como estrangeira; da importância da valorização da autoestima na carreira docente, a partir da conscientização sobre sua importância desde a formação inicial; da conscientização sobre o diálogo possível entre diferentes lugares de aprender/ensinar línguas, já que a sala de aula deixou de ser o único espaço pedagógico na atualidade; do papel da universidade no oferecimento de oportunidades inovadoras de formação docente em LE, beneficiando, assim, os demais envolvidos no processo de ensinar/aprender, como alunos e professores em atuação. Finalmente, podemos confirmar que houve um aproveitamento mútuo entre sala de aula e teletandem, no sentido de melhorar a atuação dos participantes em seu duplo papel: o de professor em formação e o de interagente em um contexto inovador de aprendizagem de línguas. Concluímos que a investigação realizada permitiu que futuros professores de línguas se conscientizassem da importância do estágio curricular supervisionado em sua formação, tanto como espaço para reflexão quanto para reconstrução de crenças em torno do ensino e da aprendizagem de LE. Da mesma maneira, é nessa disciplina que os estagiários encontram oportunidades para experienciar o ensino de línguas e estudar suas peculiaridades em contextos com configurações diversas, corriqueiramente constituídos no mundo contemporâneo, porém, nem sempre tomados adequadamente como espaços para a ação pedagógica. REFERÊNCIAS ALMEIDA FILHO, José Carlos Paes de. Uma metodologia específica para o ensino de línguas próximas? In: ____ (Org.). Português para estrangeiros interface com o espanhol. Campinas: Pontes Editores, 2001, p. 13-21. ____. Questões da interlíngua de aprendizes de português a partir ou com a interposição do espanhol (língua muito próxima). In: SIMÕES, A. R. M.; CARVALHO, A. M.; WIEDMANN, L. (Orgs.). Português para falantes de espanhol/ for Spanish speakers. Campinas: Pontes Editores, 2004, P.183-191. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 261 Universidade Federal da Grande Dourados ____. Maneiras de credenciar-se na área de ensino de português a falantes de outras línguas. In: ALMEIDA FILHO, J.C.P.; CUNHA, M.J.C. Cunha (Orgs.). Projetos iniciais em português para falantes de outras línguas. Campinas, Pontes Editores: 2007, p. 33-37. ______.; CUNHA, Maria Jandyra Cavalcanti (Orgs.). Projetos iniciais em português para falantes de outras línguas. Campinas, Pontes Editores: 2007 ANDRÉ, Marli Elisa Dalmazo Afonso de. Etnografia da prática escolar. Campinas: Papirus, 2000, p. 27-31. BARCELOS, Ana Maria Ferreira. Cognição de professores e alunos: tendências recentes na pesquisa de crenças sobre ensino e aprendizagem de línguas. In: BARCELOS, A. M. F.; VIEIRA-ABRAHÃO, M. H. (Orgs.). Crenças e ensino de línguas: foco no professor, no aluno e na formação de professores. Campinas: Pontes Editores, 2006, p. 15-42. BORG, Simon. Teacher cognition and language education. London, UK: Continuum, 2006. BRAGA, Denise Bértoli. Práticas letradas digitais: considerações sobre possibilidades de ensino e de reflexão social crítica. In: ARAÚJO, J. C. (Org.). Internet & Ensino: novos gêneros, outros desafios. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007, p. 181-195. BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores de Educação Básica. Conselho Nacional de Educação, Brasília, 2002. BRASIL. Orientações Curriculares para o Ensino Médio: linguagens, códigos e suas tecnologias. Ministério da Educação e Cultura, Brasília, 2006. BURNS, Anne. Analysing action research data. Collaborative action research for English language teachers. Cambridge: CUP, 1999, p. 152-180. CELANI, Maria Antonieta Alba. A relevância da Linguística Aplicada na formulação de uma política educacional brasileira. In: FORTKAMP, M.B.M.; TOMITCH, L.M.B. (Orgs.). Aspectos da Linguística Aplicada: estudos em homenagem ao professor Hilário I. Bohn. Florianópolis: Insular, 2000, p. 17-32. ____. Culturas de aprendizagem: risco, incerteza e educação. M. C. C. Magalhães (Org.). A formação do professor como um profissional crítico: linguagem e reflexão. Campinas: Mercado de Letras, 2004, p. 37-56. DAWSON, Kara M.; MASON, Cheryl L.; MOLEBASH, Philip. Results of a telecollaborative activity involving geographically disparate preservice teachers. Documento on-line: http://teleduc.assis.unesp.br URL/~teleduc/cursos/diretorio/leituras_18_7, 2006, p.470-483. DEWEY, John. How we think. Mineola, NY: Dover Publications, [1910] 1997. DUFVA, Hannele. Beliefs in dialogue: a bakhtinian view. In: KALAJA, P.; BARCELOS, A. M. F. (Eds.). Beliefs about SLA: new research approachs. Dordrecht: Kluwer, 2003, p. 131-151. 262 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados GHEDIN, Eduardo. Professor reflexivo: da alienação da técnica à autonomia da crítica. In: PIMENTA, S. G.; GHEDIN, E. (Orgs.). Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez, 2002, p. 129-150. GIL, Glória et al. (Orgs.). Pesquisas qualitativas no ensino e aprendizagem de língua estrangeira: a sala de aula e o professor. Florianópolis: UFSC, 2005. GIMENEZ, Telma. Currículo e identidade profissional nos cursos de Letras/Inglês. In: TOMITCH, L.M.B.; VIEIRA-ABRAHÃO, M.H.; DAGHLIAN, C.; RISTOFF, D.I. (Orgs.). A interculturalidade no ensino de inglês. Florianópolis: UFSC, 2005, p. 331-343. GRANVILLE, Maria Antonia; TOTTI, Luis Augusto Schmidt. Projeto de Estágio Curricular Supervisionado para o Curso de Licenciatura em Letras. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”(UNESP), Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. São José do Rio Preto/São Paulo, IBILCE, 2008. JESUS, Isabela Abe. Ensinando Espanhol na sala de aula e Português no teletandem: experiências e reflexes sobre o ensino de línguas estrangeiras próximas em contextos diversamente configurados e seus reflexos na formação inicial do professor de línguas. Relatório final de Iniciação Científica. São José do Rio Preto/São Paulo: IBILCE/ UNESP/PIBIC, 2010. KFOURI-KANEOYA, Marta Lúcia Cabrera. A formação inicial de professoras de línguas para/em contexto mediado pelo computador (teletandem): um diálogo entre crenças, discurso e reflexão profissional. 2008. Tese. (Doutorado em Estudos Linguísticos) - Universidade Estadual Paulista/UNESP, São José do Rio Preto. 2008. BARROS, Eliana Merlin Deganutti de. A apropriação do gênero crítica de cinema no processo de letramento. 222f. 2008. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina. MAGALHÃES, Maria Cecília Camargo. A formação do professor como um profissional crítico: linguagem e reflexão. Campinas: Mercado de Letras, 2004. NÓVOA, António. Formação de professores e profissão docente. In: ____. (Org.). Os professores e a sua formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1997, p.15-33. OLIVEIRA e PAIVA, Vera Lúcia Menezes de. O novo perfil dos cursos de licenciatura em Letras. In: TOMITCH, L.M.B.; VIEIRA-ABRAHÃO, M.H.; DAGHLIAN, C.; RISTOFF, D.I. (Orgs.). A interculturalidade no ensino de inglês. Florianópolis: UFSC, 2005, p. 345-363. PIMENTA, Selma Garrido. Professor reflexivo: construindo uma crítica. In: PIMENTA, S. G.; GHEDIN, E. (Orgs.). Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez, 2002, p. 17-52. PIMENTA, Selma Garrido e GHEDIN, Eduardo. (Orgs.). Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez, 2002. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 263 Universidade Federal da Grande Dourados REAGAN, Timothy G. e OSBORN, Terry A. The foreign language education in society: toward a critical pedagogy. New York: Lawrence Erlbaum Associates, 2002. RICHARDS, Keith. Qualitative inquiry in TESOL. New York; Palgrave Macmillan, 2003. SACRISTÁN, José Gimeno. Tendências investigativas na formação de professores. In: PIMENTA, S. R.; GHEDIN, E. (Orgs.). Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez, 2002, p. 81-87. SÃO PAULO. Projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura em Letras. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. São José do Rio Preto/São Paulo, IBILCE, 2004. SÓL, Vanderlice dos Santos Andrade. Modelos de supervisão e o papel do formador de professores. Contexturas - ensino crítico de língua inglesa, São Paulo: APLIESP, n.8, p. 55- 77, 2005. TELLES, João Antonio. Teletandem Brasil: Línguas Estrangeiras Para Todos. Disponível em: http://www.teletandembrasil.org/site/docs/TELETANDEM_BRASIL_completo.pdf. 2006. Acesso em: 30 mar. 2008. VIEIRA-ABRAHÃO, Maria Helena. Uma abordagem reflexiva na formação e no desenvolvimento do professor de língua estrangeira. Contexturas: ensino crítico de língua inglesa. São Paulo: Apliesp, n. 5, p. 153-159, 2001. ___. Crenças, pressupostos e conhecimentos de alunos-professores de língua estrangeira e sua formação inicial. In: ____. (Org.). Prática de Ensino de Língua Estrangeira: experiências e reflexões. Campinas: Pontes Editores/ ArteLíngua, 2004, p. 131- 152. ___. Crenças x teorias na formação pré-serviço do professor de língua estrangeira. In: TOMITCH, L.M.B.; VIEIRA-ABRAHÃO, M.H.; DAGHLIAN, C.; RISTOFF, D. I. (Orgs.). A interculturalidade no ensino de inglês. Florianópolis: UFSC, 2005, p. 313-329. ___ . Metodologia na investigação de crenças. In: BARCELOS, A. M. F.; VIEIRA-ABRAHÃO, M. H. (Orgs.). Crenças e ensino de línguas: foco no professor, no aluno e na formação de professores. Campinas: Pontes Editores, 2006, p. 219-23. ZEICHNER, Kenneth M. Educating reflective teachers for learner centered-education: possibilities and contradictions. In: GIMENEZ, T. (Org.). Ensinando e aprendendo Inglês na Universidade: formação de professores em tempo de mudança. Londrina: ABRAPUI, 2003, p. 3-19. ______.; LISTON, Daniel P. Understanding reflective teaching. In: _____ (Eds.). Reflective teaching: an introduction. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates Publishers, 1996, p. 1-22. VYGOTSKY, Lev Semenovich. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Recebido em 20/02/2014. Aprovado em 19/03/2014. 264 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 INCLUSÃO Universidade Federal da Grande Dourados ESTÁGIO SUPERVISIONADO EM EDUCAÇÃO DE SURDOS NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA: RELATO DE EXPERIÊNCIA SUPERVISED TRAINEESHIP IN DEAF EDUCATION FROM THE PERSPECTIVE OF INCLUSIVE EDUCATION: AN EXPERIENCE REPORT Michelle Nave Valadão* Carla Rejane de Paula Barros Caetano** Juliana da Silva Paula*** RESUMO: O presente artigo relata uma experiência de estágio supervisionado em educação de surdos na perspectiva da educação inclusiva, promovido pela área de Língua Brasileira de Sinais, do Departamento de Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa, permitindo uma discussão acerca da formação inicial de professores. A proposta possibilitou experiências referentes ao processo de ensino-aprendizagem por meio de metodologias de ensino e de práticas didáticas, as quais se mostraram facilitadoras desse processo. Os resultados apontam para novos significados da Libras na formação dos professores, para aproximação de uma educação inclusiva e para a importância da disseminação dessa língua a partir de um viés linguístico e educacional. Palavras-chave: Língua Brasileira de Sinais; surdez; formação de professores. ABSTRACT: This paper aims to report an experience of supervised traineeship in deaf education from the perspective of inclusive education, promoted by the area of the Brazilian Sign Language (BSL), from the Department of Languages and Arts, at Federal University of Viçosa, allowing a discussion around the initial teacher training. The proposal allowed experiences related to the teaching-learning process that language through teaching methods and teaching practices, which proved to assist this process. In this context, the results point for new meanings of BSL in teacher training, for the approach of an inclusive education and for the importance of the dissemination of this language departing from a linguistic and educational perspective. Keywords: Brazilian Signal Language; deafness; teacher training. Professora Adjunta da área de LIBRAS do Departamento de Letras da Universidade Federal de Viçosa - UFV. E-mail: [email protected] ** Especialista em Psicopedagogia e em LIBRAS. Tradutora-Intérprete LIBRAS/Língua Portuguesa: [email protected] *** Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal de Viçosa - UFV. E-mail: [email protected] * Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 267 Universidade Federal da Grande Dourados INTRODUÇÃO A Língua Brasileira de Sinais – Libras - vem sendo alvo de pesquisas em Linguística Aplicada, quando se trata de discutir questões e problemas referentes ao seu processo de aquisição como segunda língua por ouvintes e como língua materna por surdos, alfabetização e letramento de surdos, direitos em relação ao seu uso e formação de professores. Na perspectiva da linguagem como elemento processual, as investigações na área de Libras apoiam-se nas concepções de Grabe (2002) ao recomendar estudos que enfatizem as noções de conscientização linguística envolvidas na aprendizagem de línguas, os padrões existentes na interação professor-aluno, a aprendizagem a partir de interações dialógicas e o papel do professor como pesquisador. No relato aqui apresentado, o foco é ampliado para as questões educacionais no sentido de refletir acerca dos conflitos comunicativos relacionados à língua de sinais, interpretando-os de maneira a contribuir para novas possibilidades de atuação que visem à melhoria da qualidade social da educação ofertada às pessoas surdas. A iniciativa é consequência das recentes discussões vivenciadas no Brasil, no campo das políticas públicas voltadas para a surdez. Nessa conjuntura, algumas conquistas foram alcançadas como a Lei no 10.432, de 24 de abril de 2002 (BRASIL, 2002), que reconheceu a Libras como meio de comunicação e expressão da comunidade surda brasileira; e o Decreto no 5.626, de 22 de dezembro de 2005 (BRASIL, 2005), que, entre outras providências, instituiu a obrigatoriedade do oferecimento da disciplina de Libras aos cursos de formação de professores. Ao adentrar os espaços de ensino superior, a disciplina de Libras proporcionou mudanças no processo de formação inicial dos professores, desencadeando reflexões acerca da prática docente no contexto da educação das pessoas surdas. Por causa disso, verificou-se a urgência de se constituírem propostas que estabelecessem uma interlocução entre a formação acadêmica e a atuação profissional sob a orientação das demandas da sociedade. O estágio supervisionado em educação de surdos, na perspectiva da educação inclusiva, torna-se um importante processo para a formação acadêmica de licenciandos que visualizam uma atuação nessa perspectiva. Essa modalidade de estágio amplia as estratégias de formação do futuro professor, além de aproximar universidade e sociedade com vistas ao desenvolvimento de uma educação que abarque as diversidades presentes na escola, podendo ser oferecida com qualidade e equidade. Nessa conjuntura, o professor precisa ser preparado para oferecer, inclusive aos alunos com surdez, um ensino que possibilite o desenvolvimento pleno e global de todas as suas potencialidades, entendendo as singularidades envolvidas nessa condição. O momento histórico atual revela que, para os alunos surdos, a qualidade social da educação só será possível se for pautada na abordagem bilíngue, ou seja, abrangendo o uso da Libras como língua de instrução, e metodologias de ensino que atendam às especificidades dos alunos surdos para o aprendizado da segunda língua, a Língua Portuguesa. 268 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Na região de Viçosa, parte desses futuros educadores hoje é representada pelos graduandos dos cursos de Licenciatura da Universidade Federal de Viçosa - UFV. Logo, essa modalidade de estágio supervisionado consolida-se por ser um importante laboratório de professores, colaborando para a melhoria das práticas pedagógicas. Além disso, inicia uma caminhada em busca de transformações nos contextos educacionais e sociais, principalmente voltadas para aqueles que, por muito tempo, permaneceram à margem desses contextos. O objetivo deste relato é descrever uma iniciativa de estágio supervisionado em educação de surdos na perspectiva da educação inclusiva e, a partir das experiências didáticas e metodológicas, melhorar e dinamizar o processo de formação inicial do professor. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA EDUCAÇÃO DOS SURDOS Muitos são os desafios enfrentados pelas pessoas surdas no decorrer do processo educacional. Os aprendizes surdos comumente apresentam um histórico marcado por dificuldades na escolarização básica e por evasão dos espaços escolares. A esse respeito, Silva et al. (2006) relatam que, no Brasil, poucos são os alunos surdos que conseguem concluir o ensino médio de maneira exitosa ou entrar em cursos de graduação. Os índices de analfabetismo entre os surdos ainda são altos e, apesar de frequentarem a escola por vários anos, muitos concluem a educação básica sem saber ler nem escrever. Durante vários anos, acreditou-se que a surdez, no sentido fisiológico de ausência da audição, era a causa dos fracassos escolares enfrentados pelos surdos. Por esse motivo, a educação dos surdos focou em métodos clínicos terapêuticos que buscavam superar o déficit auditivo e adaptar os surdos aos modelos ouvintes. Tais métodos vão ao encontro do que é denominada abordagem oral. Nesse tipo de abordagem, os objetivos são centrados no treinamento da fala, na leitura orofacial, no uso de dispositivos de amplificação sonora, no treinamento articulatório e na aprendizagem da leitura e da escrita a partir dessas técnicas. A literatura refere que, na abordagem oral, a surdez constitui-se de uma patologia que necessita de uma cura. Sob a ótica patológica, Gesser (2009) descreve que a surdez restringe-se a uma deficiência que deve ser tratada para (re) habilitar o indivíduo e para poder aproximá-lo das condições dos ouvintes, consideradas como padrão de normalidade. Autores como Skliar (1998) e Sánchez (1990) criticam fortemente essa abordagem argumentando que, na tentativa de alcançar um padrão de normalidade, muito tempo é despendido aos intensos treinamentos da fala, o que pode limitar a aquisição de conhecimentos considerados de maior relevância para o desenvolvimento psíquico, cognitivo e intelectual. Os propósitos desenvolvidos durante o período em que se fez uso exclusivo da abordagem oral ocasionaram aos surdos importantes restrições educacionais. Privados de um ensino de qualidade, ofertado em condição de igualdade, ficaram impossibilitados de concluírem com êxito todas as etapas da esco- Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 269 Universidade Federal da Grande Dourados larização básica. Por isso, poucos foram os surdos que ingressaram no ensino superior e alcançaram melhores postos de trabalho. O cenário oralista persistiu aproximadamente até meados de 1960 e começou a mudar a partir dos estudos de Stokoe (1960), linguista americano, que descreveu a estrutura da Língua Americana de Sinais, comprovando que a língua atendia a todos os critérios linguísticos de uma língua genuína, no léxico, na sintaxe e na capacidade de gerar uma quantidade infinita de sentenças. Stokoe observou que os sinais não eram mímicas, pantomimas ou gestos, mas símbolos abstratos complexos, com uma estrutura interior. O reconhecimento do valor linguístico das línguas de sinais permitiu uma nova maneira de conceber a surdez para além da visão patológica: a visão cultural. A nova concepção, segundo Gesser (2009), vem quebrar o paradigma da deficiência ao enxergar as restrições e potencialidades de ambos: surdos e ouvintes. A compreensão cultural reconhece a surdez como apenas mais um aspecto das infinitas possibilidades da diversidade humana, abordando aspectos não limitados e não determinísticos de uma pessoa ou de outra. É uma visão multicultural do mundo: um jeito ouvinte de ser, com a cultura da audição, e um jeito surdo de ser, com a cultura da visão. Precursor dessa visão cultural da surdez, Skliar afirma: É possível aceitar o conceito de Cultura Surda por meio de uma leitura multicultural, em sua própria historicidade, em seus próprios processos e produções, pois a Cultura Surda não é uma imagem velada de uma hipotética Cultura Ouvinte, não é seu revés, nem uma cultura patológica (SKLIAR, 1998, p. 28). Pautadas na concepção cultural da surdez, no Brasil, a partir da década de 90, pesquisadoras como Brito (1993), Moura, Lodi e Harisson (1997), Quadros (1997) e Lacerda (1998) passaram a defender a abordagem bilíngue como proposta educacional para as pessoas surdas. As autoras argumentam que a língua de sinais deve ser adquirida o mais precocemente possível, como primeira língua. Esta será a base linguística para a aquisição dos demais conhecimentos e da Língua Portuguesa como segunda língua. No Brasil, as discussões acerca da surdez, da educação de surdos e da língua de sinais alcançaram o patamar das legislações. Dentre as várias conquistas, destaca-se a promulgação da Lei n.º 10.436, de 24 de abril de 2002, uma lei que reconheceu como meio legal de comunicação e expressão a Libras e outros recursos de expressão a ela associados (BRASIL, 2002); e o Decreto n.º 5.626, de 22 de dezembro de 2005, que, entre outras regulamentações, estabeleceu a inclusão da disciplina de Libras nos cursos de formação de professores como medida promotora de uso e divulgação dessa língua (BRASIL, 2005). Para atender ao referido Decreto, as universidades brasileiras foram instruídas a implantarem, gradativamente, a Libras como disciplina obrigatória para os cursos de formação de professores. A iniciativa expandiu consideravelmente as reflexões acerca 270 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados da constituição linguística e cultural das pessoas surdas e do atendimento dos seus direitos enquanto cidadãos brasileiros, utentes de uma língua de modalidade visual e espacial. Por outro lado, a experiência, embora incipiente, tem mostrado que apenas uma disciplina, oferecida em um único semestre letivo durante o curso de licenciatura, não é suficiente para promover a construção de conhecimentos capazes de preparar o professor para uma atuação que possa proporcionar mais qualidade social para a educação dos alunos surdos. O estágio supervisionado em educação de surdos na perspectiva da educação inclusiva configura-se como uma iniciativa para ampliar a formação do professor, possibilitando, como preconizam Pimenta e Lima (2004), a integração entre teoria e prática em um processo de conhecimento, fundamentação, diálogo e intervenção na realidade. A DISCIPLINA DE LIBRAS E SEU DESDOBRAMENTO NO ESTÁGIO SUPERVISIONADO A disciplina de Libras foi implantada na UFV no ano de 2010, em duas propostas. A primeira, denominada LET 290, com carga horária de 45h e oferecida como obrigatória para todos os cursos de Licenciatura da UFV, no campus de Viçosa, e optativa para os demais cursos de graduação desse campus. A segunda, LET 491, com carga horária de 60h e oferecida como obrigatória para o curso de Pedagogia do campus de Viçosa. As disciplinas são construídas e desenvolvidas com algumas diferenças e especificidades pertinentes aos cursos que atendem. No entanto, ambas são ministradas por meio de aulas teóricas e práticas que envolvem dinâmicas, apresentações expositivas e atividades dialógicas para o ensino-aprendizagem da Libras. São focados os aspectos linguísticos e gramaticais da Libras, além de questões relativas às necessidades educacionais, linguísticas e sociais das pessoas surdas. A disciplina é complexa e assume um papel articulador entre as necessidades da comunidade surda e o saber acadêmico. Por causa disso, enfatiza-se o ensino da língua e busca-se relacionar os conteúdos específicos de cada curso de licenciatura com o processo de ensino e aprendizagem dos surdos. Trata-se de uma proposta que permite uma projeção de possíveis práticas pedagógicas que poderão ser desenvolvidas na atuação profissional desses professores junto aos alunos surdos. A complexidade da disciplina não é tarefa fácil e, por ser uma iniciativa recente, ainda não está claramente estabelecida na literatura. Uma breve análise das ementas das disciplinas de Libras ofertadas nas mais diversas instituições de ensino superior do Brasil mostrou que não há consenso nos conteúdos abarcados, ora envolvendo questões exclusivamente linguísticas, ora exclusivamente educacionais, ora ambas. Em tal conjuntura, acreditamos que as dificuldades e as conquistas precisam ser refletidas e partilhadas por todos os envolvidos nesse processo. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 271 Universidade Federal da Grande Dourados Diante do exposto, levantamos três questões que consideramos primordiais para o alcance dos objetivos propostos na disciplina: primeira, as dificuldades no ensino da Libras quando comparado ao ensino de línguas estrangeiras; segunda, as implicações políticas e sociais que a implantação da disciplina trouxe para o cenário educacional; terceira, as necessidades de formação do professor quanto ao uso de metodologias visuais. Iniciamos nossas reflexões pautadas nas discussões de Moita Lopes (1996) e Gesser (2012) sobre a natureza social e educacional dos processos de ensino-aprendizagem de línguas. Esses críticos apontam a existência de algumas questões polêmicas que podem interferir no processo de aprendizagem de línguas. Tais questões referem-se, principalmente, às atitudes dos alunos, marcadas por ideologias preconceituosas, como a ideia de falta de aptidão e de déficit linguístico. Os autores tecem observações sobre o ensino da língua inglesa que, no Brasil, conta com uma perspectiva exageradamente positiva, uma quase adoração pela cultura americana, resultando em grande prestígio no aprendizado da mesma pela sociedade. Por sua vez, o ensino da Libras não é visto da mesma forma e, ao contrário da língua inglesa, é carregado de estigmas e preconceitos. Corroborando as ponderações supracitados, Lacerda, Caporali e Lodi (2004) afirmam que, no processo de ensino da Libras, os ouvintes, em geral, se dizem inaptos, argumentando que as características visuoespaciais da língua são difíceis de serem compreendidas e realizadas, dificultando, portanto, a aprendizagem. Para essas pesquisadoras, diferentemente do que ocorre com o inglês, a cultura surda é frequentemente desvalorizada e a Libras é vista como uma língua menor e desprestigiada. O estabelecimento de um conceito negativo pode interferir intensamente nos processos de aprendizagem, porque as dificuldades podem ser atribuídas, na opinião das autoras, à “precariedade” da língua, o que pode afastar o aprendiz de seu objetivo (2004, p. 56). Trata-se de um fato que necessita ser discutido com os aprendizes a fim de evitar preconceitos que impeçam o processo de aprendizagem. Lacerda, Caporali e Lodi (2004) enfocam que o trabalho deve abarcar os aspectos culturais da comunidade surda, pois esses aspectos não são suficientemente conhecidos pela comunidade ouvinte. Por isso, o ensino de uma língua deve vir associado ao conhecimento cultural dos utentes da mesma. As referidas autoras ainda enfatizam que todas as pessoas são capazes e podem adquirir toda e qualquer língua. A questão é levar em conta as características de cada grupo de aprendizes e as características intrínsecas de cada língua e pensar em abordagens metodológicas adequadas a cada tipo de público e de língua (LACERDA, CAPORALI e LODI, 2004, p. 56). O segundo ponto de discussão aborda as questões políticas e sociais envolvidas por ocasião da inclusão da Libras como disciplina curricular no ensino superior. A esse respeito, Martins (2008) faz a seguinte análise: 272 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados (...) como promotora de visibilidade linguística às diferenças surdas, de um lado, mas de outro, possível agenciadora do discurso de uma hostil inclusão que mascara politicamente as mudanças que seriam, de fato, necessárias na sala de aula e no currículo, mantendo e contribuindo com um discurso e apelo de atos “politicamente corretos” (Grifos da autora). (MARTINS, 2008, p.194). A pesquisadora tece argumentos que tratam das vantagens e desvantagens da disciplina de Libras. Quanto às vantagens, trouxe benefícios para a educação de surdos com o reconhecimento de novas estratégias de ensino. A disciplina promoveu a desconstrução de tradições que sempre privilegiaram as línguas orais em detrimento daquela, contribuindo para o reconhecimento da língua de sinais como uma língua natural com uma estrutura gramatical própria. Além disso, possibilitou o acesso dos surdos aos ambientes acadêmicos, pois professores surdos passaram a lecionar a disciplina de Libras. Consequentemente, houve um aumento no ingresso de estudantes surdos no ensino superior, com a respectiva contratação de intérpretes de Libras. Por outro lado, como desvantagem, instaurou-se uma comercialização da Libras como instrumento, com fins políticos centralizadores, alimentando a ponte para o ensino da oralidade. A autora também descreve uma possível e sutil paralisação das resistências surdas pela ilusão de “trabalho cumprido”, o que define como um movimento perverso, capaz de, lentamente, provocar o enfraquecimento da cultura e identidade surdas, se colocado apenas como uma língua memorável, pela qual os sujeitos surdos não se identificam mais. Alerta ainda para os perigos de transformar a disciplina de Libras num manual de ensino rápido que facilita e promove, por si só, o acesso à inclusão. Por fim, faz ainda uma importante crítica ao que chama de ações politicamente corretas. Tais ações seriam superficiais e apenas estariam mascarando a situação educacional historicamente vivenciada pelas pessoas surdas na área da surdez, tratando da Libras e da cultura surda como um “ritual folclórico” na sociedade majoritária ouvinte e não provendo transformações nas políticas públicas (MARTINS, 2008, p. 195). O terceiro ponto diretamente relacionado à disciplina de Libras refere-se à formação dos professores quanto ao uso de didáticas, metodologias e práticas educativas direcionadas aos alunos surdos. A esse respeito, Campos e Santos (2013, p. 33) afirmam que “tais profissionais devem ter formação específica para atuarem junto a surdos, e não apenas um conhecimento básico da língua”. Conscientes das limitações da disciplina quanto à carga horária e à diversidade do público-alvo, entendemos que ela é apenas o passo inicial na formação dos professores. A partir dela, outras ações devem ser desenvolvidas, contribuindo para ampliar as discussões no referido contexto. Na UFV, a disciplina de Libras despertou o interesse de uma acadêmica do curso de Pedagogia, que buscou a possibilidade de estágio supervisionado na área da surdez como estratégia de ampliação da formação. Com base nos interesses da aluna, foi elaborada uma proposta de estágio supervisionado amparado nos pressupostos de Santos Filho (2010), na qual a discente deveria assumir uma Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 273 Universidade Federal da Grande Dourados posição de professora-investigadora. Segundo a proposta, o estágio deveria possibilitar uma intervenção baseada na elaboração de metodologias que pudessem ser usadas em sua prática de maneira a valorizar e explorar as diversidades linguísticas e culturais presentes no contexto da sala de aula. O referido estágio foi realizado em um estabelecimento de ensino privado da cidade de Viçosa - MG, em uma turma do 1º ano do ensino fundamental, com 25 (vinte e cinco) alunos, sendo 1 (um) aluno surdo. O passo inicial consistiu em um período de observação das aulas. Conhecer as vivências dos alunos foi considerado um elemento necessário para o cumprimento dos propósitos estabelecidos. Consciente de seu papel investigativo, foi escolhida como metodologia a observação participante, que, segundo Cicourel (1975), é o “processo pelo qual se mantém a presença do observador em uma situação social com a finalidade de realizar uma investigação científica. Nesse caso, o observador é parte do contexto sob observação, ao mesmo tempo modificando e sendo modificado por este contexto” (CICOUREL, 1975, p. 89). O caráter de observador participante garantiu, por exemplo, informações sobre a cooperação do grupo, que foram importantes para se compreender e interpretar a situação estudada. As informações obtidas por meio das observações foram fundamentais para entender a realidade sem que esta fosse influenciada por suposições, interpretações e preconceitos advindos do senso comum. A observação permitiu ainda a socialização e, consequentemente, a avaliação do trabalho. Para tanto, ela foi utilizada como instrumento para coletar dados acerca do comportamento e da situação ambiental, sendo possível compreender o processo de aprendizagem da criança surda e suas interações com os ouvintes. Através da observação, identificaram-se as problemáticas e as variáveis que poderiam interferir nas relações entre eles. Diante das observações, foi percebida a necessidade de propor à comunidade escolar conhecimentos acerca da surdez e da aprendizagem da Libras. Para isso, foram propostas oficinas aos professores, funcionários, pais e alunos. Compreendendo a Libras como a segunda língua oficial do país, tornou-se imprescindível iniciar a intervenção com ações promotoras de uso e divulgação da mesma a todos os envolvido nesse espaço escolar. A esse respeito, Garcia (2012) chama a atenção para a necessidade de compreender a surdez como uma condição cultural que vai além da questão linguística. Ele ressalta que não basta, aos profissionais da educação, aprender a Libras, mas é preciso garantir que o ambiente escolar seja um espaço multicultural, onde surdos e ouvintes reconheçam as particularidades uns dos outros. Ao compreenderem as condições históricas, culturais e sociais dos alunos surdos, poderão pôr em prática ações que possibilitem, segundo Garcia (2012), uma interação multicultural, na qual a Libras não será uma língua secundária, mas um objeto de inclusão cultural. 274 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Além das oficinas, foram propostos momentos de discussões com os docentes da escola, acerca de metodologias de ensino que pudessem ser usadas na turma com a criança surda. As discussões indicaram a necessidade de elaboração de metodologias que compreendessem recursos concretos e visuais, partindo-se da premissa de que os estudantes surdos vivenciam o mundo de uma maneira diferenciada, a partir das suas especificidades visuoespaciais. Obviamente, foi levada em consideração a importância da Libras para a aquisição dos conceitos educacionais. As metodologias deveriam atender as especificidades da criança surda sem, contudo, deixar de promover a interação com os professores e colegas ouvintes. Por esse motivo, era necessário promover interações coletivas entre os alunos, visando ao desenvolvimento de todos os alunos. Acreditamos que os princípios estabelecidos são importantes para a educação escolar inclusiva no sentido de proporcionar a todos os envolvidos a oportunidade de desenvolvimento de habilidades para a vida em comunidade. Importa mencionar que as metodologias não foram elaboradas apenas por meio das etapas de um método, mas se organizaram conforme as situações relevantes que emergiram durante os diálogos entre a estagiária, a docente responsável pelo estágio, docentes da escola e família da criança surda. As proposições desenvolvidas nessa fase inicial do estágio foram ao encontro dos anseios de Campos e Santos (2013) quanto à: formação de professores bilíngues, criação de currículo específico para alunos surdos, de materiais e livros didáticos adaptados e de provas especializadas na língua de sinais; oferta da disciplina de Libras como primeira língua para alunos surdos e segunda língua para ouvintes e do português como segunda língua na estrutura curricular. As referidas autoras discutem a respeito de algumas adversidades e contradições presentes na educação inclusiva na rede regular de ensino e defendem uma proposta de educação bilíngue, na qual a Libras seja a base para o aprendizado do aluno e não, como observado cotidianamente, uma língua relegada ao segundo plano, complementar e acessória. Campos e Santos (2013) afirmam ainda que, infelizmente, os contextos mais comuns, ainda nos dias atuais, são situações nas quais as questões linguísticas, culturais e socais não são contempladas. As ações se restringem à contratação de um intérprete de Libras, medida que, obviamente, não considera as necessidades educativas específicas do aluno surdo. Suas recomendações reforçam que a escola deve atender à pedagogia da diferença, caso contrário, o surdo continuará excluído pela falta de acessibilidade a informações em sua língua. Em relação às práticas pedagógicas, Campello (2007) traz algumas considerações metodológicas do que denomina Pedagogia Visual para a educação de surdos. O trabalho enfatiza o campo visual e insere a cultura surda, a imagem visual dos surdos, os olhares surdos, os recursos visuais e os recursos didáticos. Campello (2007) esclarece que o campo visual não é similar a gestos ou mímicas, mas se constitui em um signo Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 275 Universidade Federal da Grande Dourados linguístico que se utiliza dos corpos, das expressões corporais e faciais, dos braços, das mãos, dos dedos, dos pés e das pernas em uma semiótica imagética. Para os surdos, os aspectos visuais são fundamentais no processo de aprendizagem. Concepção também defendida por Viana e Barreto (2011) ao discutirem a importância do uso de recursos visuais na educação de surdos. Elas propõem o uso de jogos como ferramenta favorável à construção de conceitos pelos alunos surdos. Pautadas na Pedagogia Visual, tais autoras se utilizam de diferentes elementos visuais como aliados ao processo pedagógico. Ainda acerca da Pedagogia Visual, Campello (2007) afirma que ela se sustenta sobre os pilares da visualidade, ou seja, tem, no signo visual, seu maior aliado no processo de ensinar e aprender. Segundo ela, essa pedagogia desempenha uma função fundamental no processo educacional, pois permite ao aluno surdo compreender, intervir e reagir ao meio. A autora assegura que a percepção desenvolvida através de uma imagem visual permanece mais tempo na cognição do que o discurso oral, proferido em aulas tradicionais. De maneira similar, encontramos em Singer (1980 apud VIANA e BARRETO, 2011, p. 20) a afirmação de que “as pistas visuais mantêm a atenção do aprendiz por mais tempo se comparadas aos elementos verbais, melhorando, por consequência, o seu aprendizado”. Após observação e interação com o corpo docente da escola, iniciou-se a fase de regência. Nessa etapa, em conjunto com a escola, optou-se pelo sistema de bidocência que, de acordo com Beyer (2005, 2006), tem, como eixo norteador, um trabalho de parceria entre o professor da classe regular e um professor com conhecimentos especíicos na área. As ações são compartilhadas entre ambos os professores e disponibilizadas a todos os alunos em sala de aula. PRÁTICA PARA O ENSINO-APRENDIZAGEM DA LÍNGUA PORTUGUESA A intervenção focou o processo de ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa. O princípio norteador foi o conceito de letramento defendido por Soares (2001), que envolve duas dimensões, uma individual e outra social. A dimensão individual enfatiza aptidões cognitivas e metacognitivas que são necessárias ao desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita; enquanto a social considera o uso dessas habilidades em determinados contextos históricos e sociais. Soares (2001) propõe que as práticas de letramento envolvam, por exemplo, atividades como redigir um bilhete, escrever uma carta, ler jornais, revistas e livros, entre outras que estão presentes no cotidiano de uma sociedade grafocêntrica. Para ela, as habilidades de leitura e escrita devem ser desenvolvidas associadas às transformações sociais que elas acarretam. O trabalho com a Língua Portuguesa foi proposto segundo as recomendações dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) (BRASIL, 1997), que sugerem a utilização 276 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados dos gêneros textuais como objeto de ensino da mesma. Por esse motivo, apoiamo-nos nos argumentos de autores que congregam as orientações dos PCNs (BRASIL, 1997), como Schneuwly e Dolz (2004), e defendem que o ensino da língua deve ser pautado em diferentes gêneros textuais. Esses teóricos argumentam que os gêneros são importantes por se constituírem a partir de atividades de linguagem desenvolvidas em contextos históricos e sociais e, por isso, refletirem o funcionamento da língua e da linguagem em determinada sociedade. Tais concepções corroboram as defendidas por teóricos como Beaugrande (1997) que tratam os textos como eventos comunicativos que, para serem compreendidos, necessitam do conhecimento do leitor sobre a sociedade e sobre a língua nas quais tais eventos estão inseridos. Importa lembrar que, geralmente, tais recomendações são voltadas apenas para o texto oral e para o escrito e não apontam perspectivas para um trabalho que também inclua o texto em Libras nos processos de aprendizagem vivenciados por alunos surdos. Devido a essa lacuna, foi necessário atribuir novos significados às recomendações supracitadas para o desenvolvimento de práticas de ensino da Língua Portuguesa na modalidade escrita a partir de gêneros textuais que abarcassem a Libras e a Língua Portuguesa nos mais variados contextos comunicativos. Dentre diversas práticas desenvolvidas, destacaremos uma que enfatizou os domínios sociais de comunicação relacionados à cultura literária ficcional, com objetivo de priorizar as capacidades de linguagem relacionadas à narrativa. Para tal prática, foi eleito o gênero conto. O trabalho seguiu as orientações de Schneuwly e Dolz (2004) no que tange ao desenvolvimento de sequências didáticas. Então, a apresentação do gênero foi realizada de maneira gradual, por meio de atividades planejadas, ordenadas e relacionadas entre si a fim de articular os conhecimentos iniciais com novos conhecimentos a serem adquiridos. A prática iniciou com um momento de discussão sobre o gênero eleito, visando a uma análise dos conhecimentos prévios que os alunos traziam acerca do mesmo. Em seguida, foi realizada a apresentação de um conto em Libras. Todos os alunos, surdos e ouvintes, foram instigados a observar os aspectos da sua composição e, em seguida, a responder perguntas como, por exemplo: Quem era o narrador? De que maneira a história foi narrada? O narrador era personagem da história? Quais as personagens? O que aconteceu? Qual foi o conflito? Qual foi o desfecho? Em que tempo e espaço a história se passou? Somente após densa discussão acerca do conto em Libras, o texto foi apresentado em Língua Portuguesa na modalidade escrita. Nesse momento, os alunos foram questionados sobre as diferenças e semelhança entre os contos e levados a refletir sobre os aspectos que diferenciam as modalidades de língua, sejam elas oral, escrita ou em sinais. Depois dessas análises, o trabalho foi direcionado aos aspectos morfossintáticos da Libras e da Língua Portuguesa. Nessa etapa, os alunos realizaram atividades relacionadas, por exemplo, à identificação de substantivos e de verbos em ambas as línguas. Também elaboraram um glossário Libras/Língua Portuguesa, onde registraram, atra- Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 277 Universidade Federal da Grande Dourados vés de escrita, desenhos e figuras, as correspondências entre o léxico das duas línguas. Por fim, foi proposta uma produção coletiva de novas versões para o conto. Os alunos tiveram a flexibilidade de produzi-las em Libras e em Língua Portuguesa. Importa informar que em todos os momentos, foram priorizadas as interações comunicativas entre surdos e ouvintes. As interações foram assistidas por meio da mediação de um profissional intérprete Libras/Língua Portuguesa, funcionário da escola. Todas as atividades desenvolvidas foram conduzidas com base nos pressupostos do bilinguismo, ou seja, além da construção dos recursos visuais, enfatizou-se o uso da Libras como língua de instrução. Nessa proposta, a língua de sinais vem favorecer o desenvolvimento linguístico e cognitivo do aluno surdo, colaborando para o processo de aprendizagem e servindo de apoio para a leitura e compreensão da Língua Portuguesa. Para Viana e Barreto (2011), a proposta bilíngue apresenta uma ampla contribuição para o desenvolvimento da criança surda, pois reconhece a Libras como primeira língua, a língua que dará a base linguística para aquisição da língua majoritária do país como segunda língua. Segundo os pressupostos da abordagem bilíngue, os textos foram primeiramente apresentados em Libras, em seus mais diversos gêneros, como poesias, notícias, receitas e narrativas. Somente depois de reconhecida a função comunicativa do texto em Libras, o trabalho com o texto em Língua Portuguesa escrita era iniciado. Todo o trabalho foi amparado em paradigmas já bem estabelecidos na linguística aplicada, nos quais o texto é concebido como objeto de ensino da Língua Portuguesa, o qual se faz presente a partir das práticas de letramento socialmente estabelecidas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto, consideramos que a disciplina de Libras, criada via determinação do Decreto no 5.626, de 22 de dezembro de 2005 (BRASIL, 2005), foi concebida como fundamental no despertar do interesse dos licenciandos na busca de uma formação destinada à atuação na perspectiva da inclusão educacional e social dos alunos surdos. Embora seu papel seja vital na formação de professores, não deve ser compreendida como o único espaço de reflexão desses licenciandos. Nesse sentido, o estágio supervisionado constituiu-se em um elemento essencial na ampliação dos saberes acerca do tema e na continuidade da construção dos conhecimentos a partir de uma atuação teórica e prática. Do oferecimento da disciplina originou-se o estágio supervisionado, que, por sua vez, proporcionou uma gama de ações que ultrapassaram os muros da universidade e adentraram os espaços da educação básica. Tais ações foram promotoras de uso e divulgação da Libras no contexto escolar, além de proporcionar o (re) pensar pedagógico de outros professores que, muitas vezes, não foram contemplados com essas discussões em suas trajetórias acadêmicas. Na posição de professora-pesquisadora, a estagiária 278 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados pode desenvolver reflexões acerca das práticas de formação de professores nas diversas áreas do conhecimento, em um processo de busca por melhores condições de aprendizagem para alunos surdos. Além disso, suscitou condições de interação comunicativa em Libras, necessária a todos os envolvidos no ambiente escolar. Os resultados são satisfatórios para surdos e ouvintes, não só no quesito educacional, mas na articulação desses alcances em outras esferas sociais. Em relação à acadêmica, o estágio supervisionado favoreceu à licencianda do curso de Pedagogia uma formação destinada à atuação na perspectiva da inclusão educacional e social dos alunos surdos. Evidenciou-se a necessidade de elaboração de novas metodologias, bem como de dar novas significações às já existentes, preconizando o aprendizado significativo para todos os alunos. Ressalta-se, ainda, a construção de uma reflexão crítica em relação à educação de surdos na perspectiva do bilinguismo, contemplando a Libras em todo o processo educacional. Quanto à bidocência, a prática foi considerada um desafio, pois ambos os educadores tiveram que desenvolver um trabalho colaborativo com vistas a possibilitar um processo educacional inclusivo no atendimento das especificidades do aluno surdo, sem, contudo, deixar de envolver os alunos ouvintes. Os professores trabalharam na mediação do desenvolvimento das potencialidades dos alunos, respeitando as diversidades presentes no espaço escolar. A respeito das interações entre surdos e ouvintes, acreditamos que os processos inclusivos só serão possíveis se pautados nas relações entre os mesmos. Para isso, as relações precisam ser constantemente mediadas e estimuladas pelos profissionais da educação. Finalizamos pontuando que os aspectos referentes à formação de professores devem ser continuamente contemplados em discussões futuras, já que estão intimamente relacionados às transformações dos processos educacionais dos alunos surdos. A esse respeito, as universidades brasileiras têm ampliado seus espaços de discussões e o alcance de suas ações. Na UFV, a área de Libras do Departamento de Letras estende sua atuação por meio de projetos de ensino, pesquisa e extensão que são desenvolvidos em parceria com as instituições da rede básica de ensino do município de Viçosa - MG. Nessas propostas, os alunos surdos têm sido contemplados de modo significativo. É inegável, porém, que tais iniciativas ainda são incipientes e os resultados pretendidos só serão alcançados em longo prazo. Entretanto, propostas como a aqui apresentada servem de estímulos para o surgimento de outras ações que contribuam para uma formação inicial e continuada de profissionais da educação atentos à inclusão em diferentes âmbitos. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 279 Universidade Federal da Grande Dourados REFERÊNCIAS BEAUGRANDE, Robert. New foundations for a science of text and discourse: cognition, communication, and the freedom of access to knowledge and society. Norwood, New Jersey: Ablex, 1997. Disponível em: <http://www.beaugrande.com/new_foundations_ for_a_science.htm>. Acesso em: 20 jan. 2014. BEYER, Hugo O. O pioneirismo da escola flämming na proposta de integração (inclusão) escolar na Alemanha: aspectos pedagógicos decorrentes. Revista Educação Especial, n. 25, p. s/n, 2005. Disponível em: <http://coralx.ufsm.br/revce/ceesp/2005/01/ a1.htm>. Acesso em: 20 jan. 2014. ______. Inclusão e avaliação na escola de alunos com necessidades educacionais especiais. 2ª ed. Porto Alegre: Mediação, 2006. BRASIL. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, que regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras. Publicado no Diário Oficial da União, em 22 de dezembro de 2005. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10436.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014. ______. Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispões sobre a Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS, e dá outras providências. Publicada no Diário Oficial da União, em 24 de abril de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014. ______. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa/Secretaria de Educação Fundamental. Brasília. 1997. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro02.pdf>. Acesso em: 10 abr. 2014. BRITO, Lucinda Ferreira. Integração social & educação de surdos. Rio de Janeiro: Babel Editora, 1993. CAMPELLO, Ana Regina de Souza. Pedagogia Visual: sinal na educação dos surdos. In: QUADROS, Ronice Müller de; PERLIN, Gladis. (Orgs.). Estudos Surdos II. Petrópolis, RJ: Arara Azul, 2007. p. 100-131. CAMPOS, Mariana de Lima Isaac Leandro; SANTOS, Lara Ferreira dos. Educação especial e educação bilíngue para surdos: as contradições da inclusão. In: ALBRES, Neiva de Aquino; GRESPAN, Sylvia Lia Neves (Orgs.). Libras em estudo: política educacional. São Paulo: FENEIS, 2013. p. 13-38. CICOUREL, Aaron Victor. Teoria e método em pesquisa de campo. In: GUIMARÃES, A. Z. (Org.). Desvendando máscaras sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1975. p. 87-121. GARCIA, Eduardo de Campos. O que todo pedagogo precisa saber sobre Libras. Salto: Schoba, 2012. 280 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados GESSER, Audrei. LIBRAS? Que língua é essa? Crenças e preconceitos em torno da Língua de Sinais e da realidade Surda. São Paulo: Parábola, 2009. ______. O ouvinte e a surdez: sobre ensinar e aprender LIBRAS. São Paulo: Parábola, 2012. GRABE, William. (2002). Applied linguistics: an emerging discipline for the twentieth century. In: KAPLAN, Robert B. (Ed.). Oxford handbook of Applied Linguistics. New York: Oxford University Press, 2002. LACERDA, Cristina Broglia Feitosa de. Um pouco da história das diferentes abordagens na educação dos surdos. Cadernos. CEDES, v.19, n. 46, 1998. Disponível em: <http:// www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101- 32621998000300007&lng =pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 20 jan. 2014. LACERDA, Cristina Broglia Feitosa de; CAPORALI, Sueli Aparecida; LODI, Ana Claudia. Questões preliminares sobre o ensino de língua de sinais a ouvintes: reflexões sobre a prática. Distúrbios da Comunicação, v. 16, n. 1, p. 53-63, 2004. Disponível em: <file:///C:/Users/WBV/Desktop/artigos/11620-27872-1-SM.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2014. MARTINS, Vanessa Regina de Oliveira. Análise das vantagens e desvantagens da Libras como disciplina curricular no ensino superior. Revista Cadernos do CEOM, v. 21, n. 28, p. 191-206, 2008. Disponível em: <http://bell.unochapeco.edu.br/revistas/ index.php/rcc/article/viewFile/161/87>. Acesso em: 10 mar. 2014. MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Oficina de Linguística Aplicada. Campinas: Mercado das Letras, 1996. MOURA, Maria Cecília de; LODI, Ana Claudia Baliero; HARISSON, Kathryn M. P. História e educação do surdo, a oralidade e o uso de sinais. In: FILHO, O. L. Tratado de Fonoaudiologia. Ribeirão Preto: Tecmedd, 1997. p. 327-357. PIMENTA, Selma Garrido; LIMA, Maria Socorro Lucena. Estágio e docência. São Paulo: Cortez, 2004. QUADROS, R. M. Educação de surdos: a aquisição da linguagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. SANCHEZ, C. La Increible y triste historia de la sordera. Caracas: CEPROSORD, 1990. SANTOS FILHO, Agnaldo Pedro. O Estágio Supervisionado e sua importância na formação docente. Revista P@rtes, 2010. Disponível em: <http://www.partes.com.br/ educacao/estagiosupervisionado.asp>. Acesso em: 20 mar. 2014. SCHNEUWLY, B., DOLZ, J. et al. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução e Org. de Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas: Mercado de Letras, 2004. SILVA, Lazara Cristina da et al. CAS – Cursinho Alternativo para Aprendizes Surdos. Revista em Extensão, v. 5, n. 1, 2006. Disponível em: <http://www.seer.ufu.br/index. php/emextensao/issue/view/212>. Acesso em: 03 maio 2012. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 281 Universidade Federal da Grande Dourados SKLIAR, C. A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 1998. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. STOKOE, William C. Sign Language structure: an outline of the visual communication system for the American deaf. Buffalo: Buffalo University, 1960. VIANA, Flávia Roldan; BARRETO, Marcília Chagas. A construção de conceitos matemáticos na educação de alunos surdos: o papel dos jogos na aprendizagem. Horizontes, v. 29, n. 1, p. 17-25, 2011. Disponível em: <http://webp.usf.edu.br/revistas/ horizontes/V29-n1-2011/uploadAddress/revista_horizontes_vol29_num01_2011_ artigo02[18958].pdf>. Acesso em: 10 mar. 2014. Recebido em 31/03/2014. Aprovado em 19/04/2014. 282 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados ESTÁGIO SUPERVISIONADO E A DOCÊNCIA INDÍGENA: UM CASO KARAJÁ SUPERVISED TRAINEESHIP AND THE INDIGENOUS TEACHING: A KARAJÁ CASE Caroline Pereira de Oliveira* Rogério Vicente Ferreira** RESUMO: Este trabalho trata de um estudo de caso de ações pedagógicas durante Estágio Supervisionado de um aluno indígena do Curso de Educação Intercultural da Universidade Federal de Goiás. O estagiário realizou seu trabalho em terra indígena karajá em 2011, ano da conclusão de seu curso. Algumas questões que envolvem a Educação Bilíngue Intercultural no Brasil também são discutidas. Palavras-chave: estágio supervisionado; formação superior indígena; Karajá. ABSTRACT: This paper discusses a case study of pedagogical actions during Supervised Traineeship of an indigenous student of the Intercultural Education Course from at the Federal University of Goiás. The trainee executed performed his work in an indigenous karajá land in 2011, the year of his graduation. Some issues involving the Intercultural Bilingual Education in Brazil are also discussed. Keywords: supervised traineeship; indigenous higher education; Karajá. EDUCAÇÃO BILÍNGUE INTERCULTURAL NO BRASIL A reflexão sobre o papel da educação bilíngue intercultural em todo o continente e, de modo particular, na América Latina tem origens e motivações diferentes em diversos contextos, como no Peru, na Argentina, na Bolívia, por exemplo. Essa perspectiva surge não somente por razões pedagógicas, mas principalmente por motivos sociais, políticos, ideológicos e culturais. O nascimento desse movimento pedagógico pode ser situado aproximadamente há trinta anos, nos Estados Unidos, a partir dos movimentos de pressão e reivindicação de algumas minorias étnico-culturais, principalmente negras. Na América Latina, a preocupação intercultural nasce a partir de outro horizonte. Essa abordagem surge no movimento das populações indígenas (LÓPEZ e SICHRA, 2006). * E-mail: [email protected] Professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: [email protected] ** Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 283 Universidade Federal da Grande Dourados No Brasil, conforme os Referenciais para a Formação de Professores Indígenas (BRASIL, 2002), a crescente reivindicação para a implantação de escolas em áreas indígenas deixou de ser uma imposição nacional, passando, assim, a ser uma exigência dos próprios povos indígenas brasileiros, invocando uma educação intercultural que envolva a comunidade e fortaleça o uso das línguas indígenas, bem como a língua portuguesa, além de permitir o desenvolvimento de uma metodologia específica que possibilite a elaboração de materiais didáticos próprios e específicos para as escolas indígenas. Essa crescente reivindicação indígena a favor de escolas em seus territórios, as articulações e organizações dos encontros de professores indígenas que interferem nas deliberações do Estado, por meio do Ministério da Educação – MEC – em relação à educação nacional, além do respeito aos conhecimentos tradicionais culturais impulsionaram o que hoje se denomina Educação Bilíngue Intercultural (doravante EBI). A EBI resulta dessa forte articulação de movimentos indígenas em toda a América Latina, cujas reivindicações colocam os indígenas como interlocutores diretos desse processo, em que as ações articuladas desses movimentos fazem com que os indígenas surjam como atores sociais de importância no cenário político latino americano (LÓPEZ e SICHRA, 2006). Dentre os diferentes tipos de EBI, há aquelas que têm como uma de suas premissas a incorporação de visões e os conhecimentos tradicionais de populações indígenas, sejam elas quais forem, para que assim seja possível a abertura de diálogo entre culturas e conhecimentos tradicionais e os ditos universais. De forma alguma, nesse tipo de concepção de educação, os alunos seriam imersos e apresentados a algo que lhes seja alheio, estranho. Ao contrário, aqui os estudantes se deparam com sua língua, seus costumes e tradições, além também de se apropriarem de conhecimentos não indígenas (LÓPEZ e SICHRA, 2006). É válido lembrarmos que as reivindicações indígenas e suas demandas não podem ser entendidas como movimentos separatistas, ao contrário, a necessidade de um tipo de educação que abarque sua língua e, por conseguinte, sua cultura tradicional, não impede aos indígenas o sentimento de pertencimento ao país onde residem e onde fazem parte do todo nacional. Os movimentos indígenas buscam dar voz própria a seus integrantes, sejam eles de diferentes povos ou não. No Brasil, de acordo com Grupioni (2006), assim como em outros países que sofreram com a colonização europeia, houve a tentativa de destruição/esvaziamento da identidade étnica dos diferentes povos que aqui habitavam. O autor também aponta que tal tentativa de esvaziamento de pertencimento étnico não ocorreu, ao contrário, as populações indígenas brasileiras estão se reencontrando e se reorganizando enquanto sociedades que apresentam diferentes culturas, tradições e línguas. A educação escolar é um espaço para defrontar concepções e práticas sobre o lugar dos índios na sociedade brasileira, lugar este que tem sido ocupado por professores das próprias comunidades indígenas. 284 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados A Constituição Federal de 1988 é responsável pelas mudanças referentes aos direitos indígenas e à sua condição de indivíduo pertencente a um grupo étnico e a não tutela do Estado sobre eles. De acordo com Guimarães (2002, p. 34), o artigo 231 da Constituição introduz uma mudança importante em relação à assimilação dos povos indígenas ao estabelecer que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. O artigo 210 “assegura às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem” (Ibdem, p. 34). A partir dessas mudanças, as populações indígenas se tornaram melhor amparadas e passaram a ter reconhecimento enquanto sociedades diferentes entre si, que apresentam suas especificidades. A Lei de Diretrizes e Bases, n. 9.394, de 1996, também causou impacto sobre a educação escolar indígena. O Estado passou a ter o dever de ofertar educação bilíngue e intercultural às populações indígenas com o intuito de salvaguardar práticas socioculturais e a língua materna dos povos e comunidades indígenas, bem como lhes assegurar o acesso aos conhecimentos técnico-científicos da sociedade não indígena (UFG, 2006, p. 28-29). Art. 78. O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilíngue e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos: I - proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas memórias históricas; a reairmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências; II - garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informações, conhecimentos técnicos e cientíicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não-índias (BRASIL, 1996). Para o movimento indígena, a educação precisa ser concebida como ferramenta na construção de uma cidadania sem exclusões, de forma democrática e igualitária, para que na prática haja o exercício da dupla cidadania, com respeito aos direitos coletivos e às diferenças culturais (FERREIRA, 2001). Hoje na América Latina são 16 (dezesseis) países que adotam, mesmo que alguns ainda de forma incipiente, a EBI voltada para a educação de povos indígenas, sendo eles Argentina, Belize, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Chile, Equador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru e Venezuela. Esse tipo de educação não permite, de acordo com López e Sichra (2006), que exista um modelo a ser seguido em cada um desses países, na verdade, nem mesmo dentro de um mesmo território nacional podemos pensar em uma “única fórmula” de EBI. Aqui a flexibilidade é fator crucial para as necessidades de cada etnia, e para que cada comunidade étnica possa ser atendida conforme suas características sociolinguís- Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 285 Universidade Federal da Grande Dourados ticas e socioculturais, além de, é claro, incorporar em cada comunidade distintas visões e conhecimentos tradicionais de cada um dos povos envolvidos. Nesse sentido, podemos inferir ao menos três distintos objetivos da EBI, sendo eles o objetivo da igualdade, como condição de melhoria de aprendizagens; objetivo de diversidade, almejando o fortalecimento cultural e linguístico dos povos indígenas e o objetivo de justiça social, próprio do diálogo cultural em prol da convivência humana (CASTRO, 2006). A EBI é, portanto, a concepção que envolve a educação como algo próprio do ser humano conforme sua realidade. Nesta concepção de ensino, o aluno não permanece alheio ao que o circunda, ao contrário, ele descobre, questiona, busca. É imprescindível que tal concepção seja construída com as comunidades indígenas, e não fique somente em esferas governamentais e acadêmicas. Para isso, é preciso que os professores indígenas também tenham direito à formação superior pautada nessa concepção de ensino, na qual a universidade e comunidades indígenas sejam parceiras. Para que seja possível a prática da EBI nas escolas indígenas, é imprescindível que os professores que ali atuam sejam formados a partir dos princípios básicos desse tipo de educação. Nesse contexto, há a necessidade de oferta de cursos de Educação Intercultural de Formação Superior de Professores Indígenas, como o da Universidade Federal de Goiás, reivindicado pelos povos indígenas da região Araguaia-Tocantins. Essa região abrange os Estados do Tocantins, Goiás, parte de Mato Grosso e o Maranhão, local onde vivem povos indígenas que falam línguas do Tronco Linguístico Macro-Jê: Karajá, Karajá/Xambioá, Javaé, Gavião, Xerente, Apinajé, Krahô, Canela e Krikati; e de línguas do Tronco Tupi: Guajajára, Tapirapé, Guarani, Avá-Canoeiro, e, ainda, os Tapuio, remanescentes de alguns povos Macro-Jê. De todos esses povos, excetuando-se os Avá-Canoeiro, já há alunos indígenas, professores em seus territórios, no Curso da Universidade Federal de Goiás. POLÍTICAS DE ESTÁGIO NO CURSO DE EDUCAÇÃO INTERCULTURAL – UFG A política de estágio do Curso de Educação Intercultural – UFG aponta para 3 (três) situações que devem ser respeitadas em relação ao trabalho dos estagiários durante suas práticas pedagógicas: a) Realidade sociolinguística das comunidades envolvidas; b) Contexto histórico da educação bilíngue/educação intercultural; e c) Educação e os projetos societários dos povos indígenas. Essas reflexões servem para fortalecer o planejamento do estágio pensado numa concepção bilíngue intercultural e transdisciplinar, que rompe a educação do bilinguismo de transição, hierarquia, subalternidade etc. As práticas pedagógicas do estágio, assim concebido, propõem a descolonização da educação por meio da construção 286 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados de uma educação contextualizada que favoreça um diálogo permanente entre os conhecimentos. Freire (2005) nos fala que o diálogo começa, justamente, no momento da busca que o educador faz pelo conhecimento, por aquilo que ele pretende dialogar com seus educandos. É importante, no entanto, que o estagiário domine certas competências para agir individual ou coletivamente no fazer da profissão docente, a fim de ser reconhecido como aquele que conhece as especificidades de seu trabalho em termos didáticos, políticos, teóricos e práticos. Também é indispensável que o professor se ache confiante e competente para proporcionar momentos para experiências e para buscar novos conhecimentos e definição de novos paradigmas educacionais. O processo de acompanhamento dos trabalhos dos estagiários é complexo. Os comitês orientadores também fazem parte do processo desse novo fazer da educação. Enquanto orientadores e também aprendizes nesse novo contexto, cada professor-orientador integrante dos comitês orientadores precisa se ater a importantes situações que requerem atenção como, por exemplo, uma intensa parceria entre os membros dos comitês – docentes e alunos – que devem buscar uma metodologia de ensino compartilhada, em que o processo ensino/aprendizagem/ensino se realize de forma intercultural e transdisciplinar. Na seção a seguir apresentamos o desenvolvimento do Estágio Pedagógico de um aluno do Curso da etnia Karajá. L. L. Karajá desenvolveu seu trabalho em terra indígena sob a supervisão de um comitê orientador. ESTÁGIO PEDAGÓGICO – APLICAÇÃO OU AMPLIAÇÃO DE CONHECIMENTOS? L. L. Karajá foi aluno da matriz específica Ciências da Linguagem e seus trabalhos de estágio pedagógico aconteceram em duas aldeias distintas e vizinhas: JK – aldeia onde reside, e Hãwalò/Santa Isabel do Morro – ambas situadas na Ilha do Bananal, no estado do Tocantins. A decisão de trabalhar ora em JK, ora em Santa Isabel, partiu do próprio universitário, uma vez que ele se sentiu mais seguro em iniciar sua prática pedagógica tendo como parceiros seus colegas de curso, já que ele não tinha, até então, experiência como professor. L. L. Karajá trabalhou como piloto de voadeira1 para a Secretaria de Educação do Estado do Tocantins, e somente durante o 2º (segundo) semestre de 2009 foi contratado como professor para atuar em sua comunidade, na Escola Estadual Indígena Krumarè. Sua primeira experiência como professor se deu ao iniciar seu estágio pedagógico no Curso. Para a realização do estágio, cada aluno deveria ter um caderno de estágio. O caderno de estágio é um instrumento de documentação das experiências praticadas 1 Voadeira é o barco a motor utilizado por aqueles que precisam se locomover ao longo do Rio Araguaia. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 287 Universidade Federal da Grande Dourados no ensino por meio de temas contextuais. Ou seja, por meio de estudo que permita a relação das ciências, dos conhecimentos tradicionais dos indígenas, da realidade cultural, da história de vida, do compartilhamento de experiências, da visão de mundo, e da produção coletiva de saberes. A escolha dos temas contextuais para os trabalhos de estágio de L. L. Karajá e de seus colegas universitários residentes em Santa Isabel foi a mesma nas etapas de estágios I e II. Os locais de pesquisa, no entanto, foram diferentes, L. L. Karajá pesquisou em sua comunidade. Vejamos, então, suas ações em seu Estágio I com o tema contextual Pintura Corporal. TEMA CONTEXTUAL: PINTURA CORPORAL As ações pedagógicas de L. L. Karajá durante as atividades do Estágio I e II, embora articuladas com as de seus colegas universitários de Santa Isabel do Morro – TO, foram realizadas na Escola Estadual Indígena Krumarè de sua comunidade, JK – TO, a partir de uma pesquisa e entrevista feita com a artesã e sábia da cultura Iny e da arte de fazer artesanatos, a senhora Lawabiru Karajá. Discutiremos aqui 1 (uma) aula que L. L. Karajá ministrou para uma turma multisseriada – 4º (quarto) e 5º (quinto) anos do ensino fundamental, totalizando 16 (dezesseis) alunos. Em seu caderno de estágio, o estagiário registrou tanto sua pesquisa com Lawabiru quanto a palestra feita por ela na Escola Krumarè. Segundo a artesã, para que a pintura corporal e de artesanato seja realizada, antes de escolher os tipos de desenho ou mesmo o tipo de artesanato a ser feito, é necessário produzir a tinta para a pintura. A tinta utilizada pelos Iny é natural, ou seja, ela é feita a partir de itens retirados da natureza, como podemos perceber nos registros do caderno de estágio do universitário expostos a seguir. Segundo ela (Lawabiru Karajá), existem 3 (três) tipos de tintas usadas pelos Iny: amarela, vermelha e preta. A tinta amarela é extraída da planta chamada açafrão, que é tirada da raiz da planta, e geralmente é usada para pintar artesanato feito de madeira e também era usado para pintar o corpo de crianças. A tinta vermelha é feita do urucum, seu uso é mais importante, pois é usado para todos os tipos como, por exemplo, serve para pintar adorno feito de algodão, cerâmica, artesanato de madeira etc. A tinta preta é a principal porque é usada na pintura corporal e tem dois tipos de extrair a tinta preta. Para pintar o corpo segundo a pesquisa, é extraído do fruto verde do jenipapo, outro é da casca de uma árvore chamada wyryraworona, esta utilizada para pintar os artesanatos (L. L. Karajá, 2011). L. L. Karajá aponta em seu caderno de estágio, assim como nos disse em comunicação pessoal, que os alunos ficaram bastante entusiasmados em ver na escola os conhecimentos tradicionais de seu povo sendo tratados como algo de importância, como algo que merecesse atenção do professor. Tal reconhecimento ainda não havia sido vivido por eles até então em sua escola. 288 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados As razões para a escolha do tema contextual em questão são diversas, dizemos isso apoiando-nos nas falas dos próprios universitários que escolheram este conhecimento para suas ações pedagógicas de estágio, dentre elas o anseio pela valorização dos saberes culturais, a tentativa de envolver os jovens que já não mais querem fazer uso da pintura ou que até mesmo não a entendem como importante/necessária. Diante disso, destacamos aqui os objetivos de Leandro para com o trabalho sobre o tema escolhido: “[...] o objetivo é para os alunos compreenderem a diferença das pinturas e para eles conhecerem as várias maneiras de usar a pintura no corpo e nos artesanatos”. Além da palestra proferida por Lawabiru para os alunos na Escola Krumarè, L. L. Karajá promoveu discussões com eles, debates sobre como manter a arte de pintura Iny em JK. Outra atividade proposta por ele foi a confecção de cartazes com desenhos previamente discutidos com os alunos. A documentação da feitura dos cartazes, bem como do momento em que os alunos foram pintados e alguns, inclusive, aprenderam a pintar os colegas, não pôde ser realizada por falta de instrumentos de registro, porém L. L. Karajá registrou em seu caderno de estágio os desenhos utilizados/discutidos nesta aula. Os desenhos/pinturas foram Txuxonoheraru, Hãru e Ãoti2, como expomos abaixo. Figura 1: Desenho da pintura Txuxonoheraru feita por L. L. Karajá. Figura 2: Desenho da pintura Hãru feita por L. L. Karajá. Txuxonoheraru, Hãru e Ãoti são tipos de traçados utilizados na pintura corporal ou mesmo no adorno de artesanatos. Esses traçados são pautados em itens da natureza. 2 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 289 Universidade Federal da Grande Dourados Figura 3: Desenho da pintura Ãoti feita por L. L. Karajá. As atividades produzidas pelos alunos – os cartazes e o momento de pintura de colegas foi algo que L. L. Karajá considerou de extrema importância. Os alunos, todos ainda muito jovens e, segundo o universitário, ainda com dificuldades em escrita tanto em língua portuguesa quanto em Iny Rybè, ampliaram as discussões e descobertas de sala de aula para outras situações, outros lugares de discussão, como em seus lares, com outros alunos de outras séries, colegas que não frequentam a escola. Freire (2005) afirma a necessidade de que os assuntos abordados durante as aulas pelos professores façam parte da realidade vivida pelos alunos. Segundo este autor (2005, p. 114), “É importante reenfatizar que o tema gerador não se encontra nos homens isolados da realidade, nem tampouco na realidade separada dos homens. Só pode ser compreendido nas relações homens-mundo.” Entendemos que, ao falar sobre tema gerador, Freire falava sobre o tema, o assunto, o conhecimento investigado e fruto da própria realidade. O Curso de Educação Intercultural entende este tema/ assunto/conhecimento como tema contextual, pois é dele (e a partir dele) que as investigações ganham força e promovem movimentação na escola, na comunidade, nos professores, nos alunos. As pesquisas sobre o tema contextual Pintura Corporal continuaram para o planejamento e atividades de estágio, agora em sua 2ª (segunda) etapa, mas com outra abordagem. L. L. Karajá pesquisou, nessa fase de estágio, com o sábio Tewahura Karajá, originalmente da Aldeia Santa Isabel do Morro – TO, mas que atualmente reside em Fontoura – TO. A pesquisa com Tewahura se deu em São Félix do Araguaia – MT, cidade próxima às aldeias de JK e Santa Isabel. De acordo com os registros de Leandro em seu caderno de estágio, percebemos que a discussão sobre os conhecimentos do tema contextual seguiram na direção da Pintura Corporal. Por serem do sexo masculino, tanto Leandro quanto Tewahura conversaram sobre as fases de pintura corporal para o sexo masculino, os tipos de pintura, suas referências dentro da sociedade Iny de outrora, além de seu significado social atual. 290 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Segundo L. L. Karajá, um dos pontos cruciais de sua pesquisa é o nascimento biológico e o nascimento cultural e social de uma criança Iny. Dentre os Iny, as crianças dos sexos feminino ou masculino, ao nascerem, são pintadas com urucum, o que para este povo indica o nascimento de um novo ser humano, uma vida que veio ao mundo. O senhor Wajurema falou sobre a pintura corporal de dois tipos, que ocorre duas vezes na vida e com cores diferentes. Primeiro no recém nascido, logo quando nasce ele é pintado com tinta vermelha que é urucum para ambos os sexos. Segundo Wajurema, essa pintura indica o nascimento biológico para uma vida (L. L. KARAJÁ, 2011). A partir daí, há as especificações culturais inerentes à educação formal Iny para cada sexo. As meninas nascem socialmente após a primeira menstruação, enquanto os meninos recebem educação diferenciada após se tornarem jyrè, isso com a idade em torno dos 11 (onze) e 12 (doze) anos. Outra pintura é com o jenipapo. Isso ocorre no menino com mais ou menos 12 anos a idade, quando passa pelo ritual de iniciação para a fase adulta. Nesta cerimônia a criança é pintada toda com tinta preta de jenipapo indicando uma nova fase da vida, ou seja, segundo nascimento, o social (L. L. KARAJÁ, 2011). As figuras 4 e 5 abaixo retratam, respectivamente, o momento de pintura de um jyrè e as fases de pintura corporal vivenciadas por um menino na cultura Iny. É como jyrè que o menino é iniciado na casa dos homens – Casa de Ijasò, ou Casa de Aruanã, local onde recebe os ensinamentos para a vida adulta, para a conduta social dentro da comunidade enquanto homem, para a fase adulta que o espera. Figure 4: Pintura Corporal Masculina: Jyrè. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 291 Universidade Federal da Grande Dourados Figure 5: Processo de Pintura Corporal Masculina. A Casa de Ijasò é um local sagrado para o povo Iny. Lá os segredos masculinos são guardados, preservados e perpetuados a partir da transmissão de conhecimentos intergeracionais entre as pessoas do sexo masculino. Essa Casa é local proibido para as mulheres, sendo elas Iny, indígenas de outras etnias ou mesmo não indígenas. O processo de reflexões e ações pedagógicas de Estágios I e II desenvolvidas por L. L. Karajá, e também por seus colegas de Santa Isabel do Morro foi apresentado em um Seminário de Estágio realizado durante Etapa de Estudos na UFG no 1º (primeiro) semestre de 2010, momento em que todos os alunos ingressantes no curso no ano de 2007 apresentaram suas ações, seus questionamentos, suas dúvidas. Esse seminário proporcionou reflexões coletivas do trabalho dos estagiários em questão, embora explorando o mesmo tema, cada um deles trabalhou de forma diferente os conhecimentos deste tema contextual. As descobertas que L. L. Karajá fez após suas pesquisas sobre o tema contextual em questão, além de suas próprias observações de mudanças no comportamento dos jovens de seu povo em relação à manutenção dos saberes culturais são ressaltadas por ele em seu caderno de estágio. O tema contextual não apresenta limite de conhecimento, ao contrário, ele se amplia, se expande, a pesquisa transcorre ao passo que a vida se revela na realidade da comunidade em que o professor atua, onde mora, onde vive. Em texto de reflexão sobre as 2 (duas) primeiras etapas de estágio, L. L. Karajá aponta para a necessidade de autonomia dentro da escola, enquanto professor, enquanto educador. Vejamos um trecho desta reflexão. Depois das pesquisas, iquei observando os alunos na escola, um professor dando a sua aula, com um livro na mão copiando na lousa, ensinando a história da Europa e outros, sem nenhuma criatividade. Enquanto isso, muitas histórias do meu povo Karajá, que podia ser ensinada e há muitas coisas que as crianças não sabem hoje, tanto crianças quanto adultos não sabem sequer o que está ao redor. 292 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados O dia a dia da matemática usada por nós, o meio ambiente que nos envolve, a nossa geograia, como o limite do nosso território, a história de nosso antepassado, [...] tudo isso tem que estar na escola, ensinando na sala de aula, enquanto isso o atual professor se perde com outras culturas, que não tem nada a ver com a realidade dos alunos (L. L. KARAJÁ, 2011). Em comunicação pessoal conosco, em fevereiro de 2011, L. L. Karajá nos disse sobre o entusiasmo em continuar a pesquisar Pintura Corporal, mesmo não sendo mais esse o tema contextual trabalhado por ele nas etapas seguintes de seu Estágio Pedagógico. Os planejamentos, as ações pedagógicas, as investigações, as descobertas por meio do trabalho com temas contextuais perpetuam na escola os diversos saberes culturais, o que reforça a luta pela manutenção linguístico-cultural de sua comunidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste curso, o estágio pedagógico surge como um momento fundamental de discussão de educação bilíngue intercultural, conjugando-se a isso fatores importantes a serem considerados na formação e no desenvolvimento do professor, nomeadamente o contato do estagiário com a proposta de ensino contextualizado, tendo como referência central a ação educativa transdisciplinar que se sustenta no sistema próprio de ensino indígena, mas também em estudos em que se apresenta essa concepção como passaporte de um saber maior. A autonomia do professor enquanto profissional da educação também tem espaço no processo vivido por cada um dos alunos indígenas que se encontram em fase de Estágio Pedagógico no Curso. O fazer autônomo de materiais didáticos, o entendimento da necessidade em se trabalhar assuntos da realidade dos alunos, a percepção política em torno do ensino e uso da língua portuguesa e língua étnica dentro da escola, a amplitude de discussões sobre acontecimentos que interferem na vida cotidiana das comunidades. Todas essas ações levam, por meio da escola e, principalmente, via professor e educação, a autonomia que as populações indígenas reivindicam. Alunos atentos ao seu mundo e ao mundo que os rodeia, professores questionadores e independentes apontam para uma nova realidade de educação em meio às populações indígenas. O exemplo de ação pedagógica exposto neste trabalho trata desta libertação. Os acadêmicos indígenas, em especial neste trabalho L. L. Karajá, apontam para a percepção de mudança em relação à suas práticas pedagógicas. L. L. Karajá, por exemplo, afirmou que depois de sua experiência entende o distanciamento do ensino na escola de sua aldeia para com a realidade vivida dos alunos e dos próprios professores. A escola ainda se pauta em conhecimentos alheios, nada articulados com as necessidades da comunidade e isso gera, dentre outros motivos, o afastamento de muitos jovens Iny (Karajá) da escola. A própria comunidade deixa de ver na escola um lugar de diálogo, Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 293 Universidade Federal da Grande Dourados mas sim de imposição daquilo que seria considerado necessário para a formação escolar de crianças, jovens, jovens adultos e adultos indígenas, como se eles mesmos não fossem capazes de exercer e criar metodologias que envolvessem seus interesses. A prática pedagógica é, portanto, o cerne das discussões e preocupações dos universitários indígenas e suas comunidades, bem como nossa, seus professores e orientadores, uma vez que é por meio dela que será possível a efetiva transformação da educação escolar em meio a comunidades indígenas visando uma educação bilíngue intercultural de fato, não apenas aquela resguardada constitucionalmente. A abertura por parte das escolas indígenas para os conhecimentos das comunidades não pode ser mantida apenas no momento do estágio dos universitários indígenas, mas sim durante todo o processo de ensino e aprendizagem dos membros da comunidade – crianças e adultos. Desta mesma forma, nós, membros da sociedade majoritária, no ambiente de nossas escolas, precisamos devolver a este espaço a característica principal de libertadora, de amplificadora de direitos dos alunos a manterem, valorizarem e vivenciarem no espaço escolar traços de sua cultura. REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Bases, n. 9394. Brasília: MEC, 1996. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/lei9394.pdf>. Acesso em: 18 ago 2010. BRASIL. Ministério da Educação. Referenciais para a formação de professores indígenas. Brasília: MEC; SEF, 2002. CASTRO, Guillermo Williamson. Reflexão político-pedagógica sobre a diversidade e a educação intercultural bilíngue. In: HERNAIZ, Ignacio. Educação na diversidade: experiências e desafios na educação intercultural bilíngue. Brasília: UNESCO, 2006. p. 153-179. FERREIRA, Mariana Kawall Leal. A educação escolar indígena: um diagnóstico crítico da situação no Brasil. In: SILVA, Aracy Lopes e FERREIRA, Mariana Kawall Leal (Orgs.). Antropologia, História e Educação: a questão indígena e a escola. São Paulo: Global, 2001, p.71-111. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. GUIMARÃES, Suzana Martelletti Grillo. A aquisição da escrita e diversidade cultural: a prática de professores Xerente. Brasília: FUNAI/DEDOC, 2002. GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. (Org.). Formação de professores indígenas: repensando trajetórias. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2006. LEANDRO LARIWANA KARAJÁ. Caderno de Estágio Pedagógico. Hãwalò / JK / 294 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 Universidade Federal da Grande Dourados Goiânia: Curso de Licenciatura Intercultural de Formação Superior de Professores Indígenas (manuscrito), 2011. LÓPES, Luis Enrique e SICHRA, Inge. Intercultural bilingual education among indigenous peoples in Latin America. Cochabamba: PROIB Andes, 2006. UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS. PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO. NÚCLEO TAKINAHAKỸ DE FORMAÇÃO SUPERIOR INDÍGENA. Projeto Político-Pedagógico da Licenciatura Intercultural. Goiânia: UFG, 2006. Recebido em: 31/03/2014. Aprovado em: 20/04/2014. Raído, Dourados, MS, v.8 , n.15, jan./jun. 2014 295 UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS