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Experiências e Liberações

2007, verve. revista semestral autogestionária do Nu-Sol.

verve Ex p er iên cias e lib er ações lítica moderna apontadas por Foucault: o sexo e a política. Sensibilidade sutil que vem amalgamar gestos anarquistas, femininos em práticas de experimentações de si, na coragem ímpar da anarquista Emma Goldman, na ousadia inventiva da associação Mujeres Libres, durante a Guerra civil espanhola, de mulheres que não caíram nas armadilhas liberais de generalização do feminismo. As pesquisas, os problemas, as pistas, as fulgurações deixadas por Foucault possibilitam a instauração deste bom encontro tecido pelos autores no livro Figuras de Foucault. Do negro imprime-se a caligrafia amarela e da figura na penumbra em cinza é possível subverterse as palavras e as coisas de A a Z e de Z a A, e neste espaço delicado e vigoroso não esquecer que as genealogias são mais precisamente insurreições. experiências e liberações bruno andreotti* Gilles Deleuze. A Ilha Deserta. São Paulo, Iluminuras, 2006, 383 pp. Filósofo. Pós-estruralista. Filósofo da diferença. Pensador do devir, do acontecimento. Esses e muitos outros epítetos podem ser atribuídos a Gilles Deleuze. Nenhum enunciado, porém, pode dar conta desse nome, se por nome entendermos algo que denomina um aconteci- * Pesquisador no Nu-Sol, bacharel e licenciado em História pela PUC-SP, mestrando no Programa de E studos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. v er v e, 1 1 : 2 7 7 - 2 8 1 , 2 0 0 7 277 11 2007 mento, uma multiplicidade. Um livro é uma máquina. Que uso faremos dela? Há certos livros que provocam furos e desmoronamentos no leitor. Furam sua blindagem, os muros que habilmente constrói, dia após dia, para quando se olhar no espelho confortavelmente dizer: Eu. Desmoronam esse Eu, e, portanto, ler algo assim é colocar-se em risco, pois nunca se sabe muito bem o que irá desmoronar. Devemos ser dignos desses livros, estar à altura deles, desse acontecimento suscitado por livros assim, como são os de Deleuze, como é A Ilha Deserta, uma coletânea de textos preparada por David Lapoujade e não um livro projetado por ele. Deleuze dizia que escrever é fazer um outro falar de uma certa forma. É delicioso poder ler tantos outros , ver a filosofia de Deleuze fazer com que essas singularidades falem. Podemos notar sua preocupação com a experiência em muitos textos (pp. 29-32), não propriamente com o que é a experiência, mas quem, como, onde , quando, em que caso, quanto se experimenta. Experimentar como um processo de individuação, que não é a de um indivíduo, mas de um acontecimento, um mergulho no virtual, uma atualização e nunca, ou pelo menos apenas de uma maneira secundária, uma recognição. Sempre está em jogo nessa experiência uma liberação de algo. Criar condições para que se possa experimentar de uma outra maneira. O eu faz parte das coisas que é preciso dissolver (pp. 24-29). Somos demais formatados para apreender a novidade de cada experiência; demasiadamente blindados para abrir-nos à multiplicidade de forças em jogo num acontecimento: o organismo contendo o corpo sem órgãos, o Édipo contendo o desejo, a imagem contendo o pensamento. A experiência é representada e não vivida. É para afirmar essa experiência, para liberá-la de qualquer finalidade, unidade, verdade ou sentido, que os escritos de Deleuze 278 verve Ex p er iên cias e lib er ações funcionam. São escritos intempestivos , palavra de valor singular em Nietzsche e Deleuze. Essas experiências liberadas são intempestivas, no tempo e contra o tempo, são perturbadoras. São experiências que criam, destroem para criar. Qual a relação disso com a política? Para alguns, essa pergunta faz todo sentido, visto que é necessário explicitar ou desenhar, para uns não faz nenhum, pois é óbvia demais. É que essas experiências liberadas são interpretações, e interpretar já é mudar as coisas, já é política. Nem sempre o intempestivo é político-histórico, mas há momentos em que o político e o histórico coincidem (pp. 155-166). Tomar o poder, objetivo de toda revolução, é coisa de escravos. Os intempestivos, diz Deleuze, são criadores, o que implica uma nova relação com aquilo que se chama política, que não passa por um partido, por uma vanguarda e tampouco por uma tomada do poder, e sim pela invenção de uma máquina de guerra. O desejo é revolucionário, não no sentido de que queira a revolução, mas constrói máquinas que se inserem no campo social (pp. 295-305), esparrama-se pela história, para que seja liberado do Édipo, da psicanálise. O desejo não é representado, é produzido política, econômica e historicamente; no entanto, a máquina de interpretação psicanalítica aparece para formatar esse desejo no Édipo. Liberar o desejo do Édipo é liberar uma multiplicidade de um Eu (pp. 345-352). Liberar os fluxos, descodificar, desterritorializar... é arriscado. Deleuze jamais negou os perigos dessas experiências; contudo, elas valem a pena. Tudo isso e um tanto mais ou menos despertou malentendidos. Notável é o que se fica sabendo numa pequena nota de rodapé (pp. 103-105): Kostas Axelos, filósofo grego que dirigiu a coleção Argumentos, na qual Deleuze publica “Apresentação de Sacher-Masoch” em 1967 e “Espinosa e o problema da expressão” em 1968, escreve, em 279 11 2007 1972, sobre O Anti-Édipo no Le Monde: “Honorável professor francês, bom esposo, excelente pai de dois filhos encantadores, amigo fiel (...) queres que teus alunos e teus filhos sigam na ‘vida real’ o caminho de tua vida, ou por exemplo o de Artaud, que tantos escrevinhadores invocam?” (p. 104). Há pessoas que entendem Deleuze sem nunca ter lido uma linha de sua obra, enquanto alguns a lêem exaustivamente e nada entendem. Só se descobre a novidade de um autor ao colocar-se no ponto de vista que ele inventou. Estando nesse ponto o leitor é levado num fluxo propiciado pela leitura. Aí ela se torna fácil, simples e alegre (pp. 293-294). Quando interrogado diretamente sobre como essas experiências liberadas podem atuar politicamente, a resposta de Deleuze não poderia ser melhor: “Se o soubéssemos, não diríamos, fá-lo-íamos.” (p. 339). Nunca há certezas nesse campo de experimentações que propõe Deleuze. É que um livro jamais pode responder ao desejo enquanto livro, mas em função daquilo que o rodeia, em si mesmo não tem valor. Só politicamente um livro pode responder a um desejo, fora do livro (pp. 277-292). A preocupação com a criação de novas condições de experimentação pode ser vista em diversos campos e já está no próprio modo como Deleuze tratava a filosofia: menos como história e mais como devir. Ver o uso singular que ele faz de Bergson (pp. 33-45) e (pp. 47-71), Kant (pp. 79-97) e do estruturalismo de 1972 (pp. 229-247). É que a criação conceitual de Deleuze não opera por filiações, mas por alianças. E essas alianças não se dão apenas com filósofos e com a filosofia, mas com artistas e com a arte (pp. 171-174) e mesmo com cientistas e com a ciência. Talvez seja uma das passagens mais interessantes do livro o momento em que, numa comunicação à Sociedade Francesa de Filosofia, Ferdinand Alquié, professor de Deleuze, o censura por não ter usado em sua exposição exemplos propriamente filosóficos, mas mate- 280 verve Um sacr ifício par a o condut or polít ico máticos, biológicos etc., e com isso negar a especificidade da filosofia. Ele responde: a crença na especificidade da filosofia eu aprendi com o senhor (p. 144). Deleuze nos mostrou que importava menos o que uma coisa é do que os usos que dela se poderia fazer, dos modos como se faz funcionar. Logo de início se é avisado sobre o que no livro não há: textos inéditos ou póstumos, exceto o texto que dá nome ao livro, “Causas e Razões da Ilha Deserta”. O mais profundo é a pele, tudo já estava lá, na superfície do que já estava escrito e publicado, Deleuze não queria póstumos, comenta Lapoujade... Mas como seria interessante se Deleuze fosse alvo de uma traição tão potente como aquela cometida por Max Brod com Kafka, que deveria ter queimado suas obras incompletas e escritos pessoais, mas preferiu publicá-los... Na traição se está em risco, e no risco está a possibilidade da invenção de uma máquina de guerra. um sacrifício para o condutor político edson passetti* Ismail Kadaré. A filha de Agamenon. O sucessor. São Paulo, Companhia das Letras, 2006, 217 pp. Tradução de Bernardo Joffily. Uma noite, durante um jantar, um jovem editor propiciou uma breve e intensa conversação sobre Thomas Bernhard, de quem eu tinha lido recentemente Per* Coordenador do Nu-Sol, Núcleo de Sociabilidade Libertária, e professor no Depto de Política e no Programa de E studos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. v er v e, 1 1 : 2 8 1 - 2 8 7 , 2 0 0 7 281