Academia.eduAcademia.edu

Arquitetura como Envolvimento

2024, Arquitetura como Envolvimento

Quais são as práticas espaciais no contexto das bordas do Brasil que insistem em existir diante de sucessivos colapsos climáticos, econômicos, políticos e sociais vinculados ao paradigma do desenvolvimento? Como práticas espaciais críticas e criativas podem contribuir para criar o envolvimento do ser humano com o seu entorno? A dissertação investiga a ideia de envolvimento, noção proposta pelos filósofos, o indígena e o quilombola, respectivamente, Ailton Krenak e Nêgo Bispo, como um marco do pensamento contemporâneo brasileiro - e porque não latino-americano, se entendida a sua correlação com conceitos como do bem viver; e sua repercussão e tradução para o campo da arquitetura. Foram abordadas experiências e práticas de arquitetura considerando-as em disputa sobre o sentido e o significado da ideia de envolvimento, no que tange sua relação com a paisagem, bem como com as práticas que a instituem como corpos e tempo. Da compreensão destes agenciamentos, imagina-se emergir reflexões sobre a reinvenção dos modos de produzir a arquitetura a partir do envolvimento nas bordas dos territórios brasileiros.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO MARCELLA S. M. P. ARRUDA arquitetura como envolvimento corpos, paisagem e tempo Rio de Janeiro 2024 Marcella Soares de Moura de Paula Arruda Arquitetura como Envolvimento: corpos, paisagem e tempo Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Urbanismo (PROURB), da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FAU-UFRJ) como requisitos parcial a obtenção do título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo. Orientadora: Profa. Dra. Margareth Aparecida Campos da Silva Pereira (PROURB/FAU-UFRJ) Rio de Janeiro 2024 Marcella Soares de Moura de Paula Arruda Arquitetura como Envolvimento: corpos, paisagem e tempo Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Urbanismo (PROURB), da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FAU-UFRJ) como requisitos parcial a obtenção do título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo. Aprovada em: _______________________________ (Orientadora: Profa. Dra. Margareth Aparecida Campos da Silva Pereira - PROURB/FAU-UFRJ) _______________________________ Prof. Dr. Rodrigo Paraizo (PROURB/FAU/UFRJ) _______________________________ Prof. Dr. Guilherme Wisnik (FAUUSP) _______________________________ Profa. Dra. Iazana Guizzo (FAU/UFRJ) agradecimentos Agradeço às mulheres que abriram caminhos, me ajudaram a dar contorno, para que eu pudesse caminhar com firmeza. Agradeço àqueles que me permitiram confluir, com potência. A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) pelos auxilios concedidos fundamentais para a realização deste trabalho; à Prof. Dra. Margareth Pereira, pela paciência, leitura precisa e trocas instigantes, sem as quais esse trabalho não seria possível; às comunidades do Espaço Cultural Jardim Damasceno, Levanta Amotara Zabelê e Cooperativa Turiarte, por me receberem com intimidade e confiança radicais e compartilharem comigo sua história de vida e luta; as anciãs Noêmia Mendonça, Yakuy Tupinambá e Maria Odila, as verdadeiras autoras das arquiteturas apresentadas; aos membros do LeU - Laboratório de Estudos Urbanos e do PROURB, parceiros de investigação; e às várias pessoas que, de maneira direta ou indireta, contribuíram para que este trabalho fosse realizado, especialmente Laura Pappalardo pelo olhar pra dentro e pra fora; Renata pelo açaí; à Pedro Urano, pela escuta atenta; à Julia Delmondes, pela sintonia fina; à David Sperling, pelo comum partilhado; à Eleonora Aronis, pelas pitangas e voltas na Lagoa; à Clara Passaro, pela companhia nos mergulhos; à Iazana Guizzo pela generosidade da partilha; à Tomaz Lotufo, Cassio Abuno, Luis Octavio Faria, Julia Gouvêa e Nayane Alves pela parceria; à Marcia Moura, Ricardo e Rodrigo Arruda por tudo, sempre; e às diversas paisagens que me envolvem ao longo do rio do tempo. Afinal, a arquitetura como envolvimento se faz estando-em-comum. resumo ARRUDA, Marcella Soares de Moura de Paula. Arquitetura como envolvimento: corpos, paisagem e tempo. Rio de Janeiro, 2024. Dissertação (Mestrado em Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2024. Quais são as práticas espaciais no contexto das bordas do Brasil que insistem em existir diante de sucessivos colapsos climáticos, econômicos, políticos e sociais vinculados ao paradigma do desenvolvimento? Como práticas espaciais críticas e criativas podem contribuir para criar o envolvimento do ser humano com o seu entorno? A dissertação investiga a ideia de envolvimento, noção proposta pelos filósofos, o indígena e o quilombola, respectivamente, Ailton Krenak e Nêgo Bispo, como um marco do pensamento contemporâneo brasileiro - e porque não latino-americano, se entendida a sua correlação com conceitos como do bem viver; e sua repercussão e tradução para o campo da arquitetura. Foram abordadas experiências e práticas de arquitetura considerando-as em disputa sobre o sentido e o significado da ideia de envolvimento, no que tange sua relação com a paisagem, bem como com as práticas que a instituem como corpos e tempo. Da compreensão destes agenciamentos, imagina-se emergir reflexões sobre a reinvenção dos modos de produzir a arquitetura a partir do envolvimento nas bordas dos territórios brasileiros. Palavras-chave: Envolvimento; Práticas Espaciais Críticas; Agenciamentos. abstract ARRUDA, Marcella Soares de Moura de Paula. Arquitetura como envolvimento: corpos, paisagem e tempo. Rio de Janeiro, 2024. Dissertação (Mestrado em Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2024. Which are the spatial practices in the context of the borders in Brazil that insist on existing in the face of successive climate, economic, political and social collapses related to the development paradigm? How can spatial practices, critical and creative, contribute to creating the involvement of human beings with their surroundings? The dissertation investigates the idea of Involvement, notion proposed by the indigenous and quilombola philosophers Ailton Krenak and Nêgo Bispo, respectivelly, as a landmark of contemporary brazilian thinking - and why not, latin american, if understood its relationship to concepts such as the Buen Vivir - in regard to the repercussion and translation to the architectural field. Architectural experiences and practices were discussed, considering them in dispute over the meaning of the idea of involvement, in regard to its relationship to the landscape, as well as the practices that institute it as bodies and time. From the comprehension of its agencies, it is imagined to emerge thoughts about the architectural modes of production’s reinvention through involvement on the borders of Brazilian territories. Key-words: Involvement; Spatial Practices; Spatial Agency. resumen ARRUDA, Marcella Soares de Moura de Paula. Arquitetura como envolvimento: corpos, paisagem e tempo. Rio de Janeiro, 2024. Dissertação (Mestrado em Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2024. ¿Cuáles son las prácticas espaciales en el contexto de borde, en Brasil que insisten en existir diante de sucessivos colapsos climáticos, econômicos, políticos y sociales vinculados al paradigma del desarrolo? Como las practicas espaciales críticas y criativas pueden contribuir para crear el envolvimiento del ser humano con su alrededor? La dissertación investiga la idea del Envolvimiento, noción propuesta por los filósofos indígena Ailton Krenak y quilombola Nêgo Bispo, como un marco del pensamiento contemporáneo brasileño - y porque no latinoamericano, se compreendida su correlacion con los conceptos de Sumak Kawsay; y su repercussión y traducción para el campo de la arquitectura. Fueron abordadas experiencias y prácticas espaciales considerandolas en disputa sobre el sentido y el significado de la idea de envolvimiento, en relación con el paisaje, bien como con las prácticas que la instituyen como cuerpos y espacio. Desde la compreensión destes agenciamentos, imaginamos emergir reflecciones sobre la reinvención de los modos de producir arquitectura a partir del envolvimiento con los bordes de los territorios brasileños. Palabras Clave: Envolvimento; Práticas Espaciais; Agenciamentos. sumário prelúdio ............................................................................................................. 1 introdução ....................................................................................................... 15 estado da questão ....................................................................................... 16 outras epistemologias: experiências de envolvimento como método ....... 41 dimensões de análise .................................................................................. 48 modos de ler ................................................................................................ 49 parte I: in situ ................................................................................................. 52 I.I memórias do envolvimento ..................................................................... 54 I.I.I Espaço Cultural Jardim Damasceno, Cantareira................................. 58 I.I.II Levanta Amotara Zabelê, Una .......................................................... 64 I.I.III Cooperativa Turiarte, Arapiuns ........................................................ 70 I.II saberes e fazeres para o agora ............................................................... 76 parte II: forças moventes ............................................................................. 102 II.I ideias-força: dimensões do envolvimento ............................................ 103 II.I.I paisagem ........................................................................................ 105 II.I.II corpos ............................................................................................ 111 II.I.III tempo ........................................................................................... 124 II.II encontros e nebulosas: campo de ideias-moventes ........................... 126 reinventar o desenvolvimento em comum ................................................ 141 conclusão ...................................................................................................... 154 índice de figuras ........................................................................................... 157 referências .................................................................................................... 161 prelúdio arquitetura como envolvimento 2 As vidas humana e das demais espécies têm uma base natural com uma dinâmica de relações e contribuições sistêmicas. Dos microrganismos à estratosfera, uma coisa favorece à outra, uma coisa serve a existência da outra com reciprocidade, em um complexo e constante processo de retroalimentação, a ensinar aqueles que acham que podem continuar minando as condições que sustentam a delicada cadeia da vida. (...) Além da inteligência e da racionalidade humanas, há uma inteligência de funcionamento de toda existência da vida no planeta. Mas nossos modos humanos de produzir, distribuir os produtos, consumir e nos assentarmos para habitar algum lugar tem acumulado desorganização no sistema natural que dá suporte à vida na Terra. É como se estivéssemos praticando por séculos um mesmo e longo suicídio e arrastando, nas nossas escolhas, as demais formas de vida existentes (Silva, 2022, p.10). A sociedade contemporânea vive hoje um mundo que tem como paradigma o desenvolvimento. Nas grandes cidades, em especial, somos incentivados cotidianamente pela mídia, pela família, pelo mercado, a compreendermonos como seres que devem rumar ao desenvolvimento: que devemos crescer, explorar, produzir, consumir e transformar infinitamente tudo aquilo que está ao nosso redor; que devemos nos esforçar para simplesmente ser – com todo o conforto possível, e atender às necessidades que inventamos para o nosso habitar o mundo. Somos ensinados a nos acostumar a ser para ter, com uma demanda de produção e consumo incomensurável, e achar que isso é normal: que devemos fazer de tudo para garantir a segurança daqueles ao nosso redor, que devemos remediar nossas dores com químicos, que devemos temer a morte – reflexo dos medos, da tentativa de manter o controle em nossas mãos. São Paulo é o estado mais ignorante que temos em termos de ser, aqui o lugar é pra ter, não é para ser. Aqui você não é. Tenho amigos que acordam 2h da manhã, pra chegar no trabalho, pegam outro transporte, e se dormem, dormem duas horas. É o desenvolvimento: des-envolvido da vida. E ainda diz que isso é riqueza. E que riqueza é essa, que as pessoas não têm onde morar? (Santos, 2023). Antônio Bispo dos Santos, chamado de Nêgo Bispo, evidencia como o desenvolvimento da vida se materializa nas relações com a forma de habitar contemporânea nas grandes cidades, como São Paulo. Tamanha é a falta de envolvimento com a delicada teia da vida, em que “uma coisa favorece a outra, prelúdio 3 uma coisa serve à existência da outra com reciprocidade, em um complexo e constante processo de retroalimentação” (Silva, 2022), que os sistemas que estruturam nosso cotidiano e nossas relações estão ruindo: a política, a economia, a ecologia. Inclusive a pandemia, momento em que este trabalho foi feito, demonstrou a crise de um modelo que não pode seguir existindo. Como apontam Marina Silva e Nêgo Bispo, talvez uma das causas desse longo suicídio e, porque não, ecocídio, seja justamente a nossa insistência em separar, limitar, criar modelos abstratos para tentar controlar essa complexidade toda: o nosso esquecimento de que somos parte interdependente das outras espécies e vidas; que existimos em relação, em experiência de envolvimento e co-implicação. Hoje nos deparamos com situações de vulnerabilidade e fragilidade extremas: os recursos naturais têm se demonstrado finitos, a biodiversidade está em risco, as pessoas não têm tolerância política ou social, escolhem pela manutenção da ordem, pela segurança de se abster da parte que lhes cabe e se manterem alienadas, des-envolvidas1, como defendem os filósofos, respectivamente, indígena e quilombola, Ailton Krenak e Nêgo Bispo. Nós que habitamos ao sul da linha do Equador, das zonas tropicais; nós da beira, território híbrido, da mescla, mas também do confronto e da disputa; vivimos espaços de reinvenção dos limites que nos des-envolveram do mundo ao redor de nós, podemos também abrir campos de encontro: entre a mente e o corpo, o eu e o outro, o dentro e o fora, a natureza e a cultura, a cidade e a floresta. Desse modo, acreditamos então ser possível estabelecer espaços de relação e situação, construir arquiteturas a partir do envolvimento. Importante mencionar que não somente as pessoas foram incentivadas a manterem-se desenvolvidas, quanto que há séculos que a sociedade ocidental heteronormativa do iluminismo, do eurocentrismo, do desenvolvimento e do progresso estigmatizou, subjugou, aprisionou e explorou os seres envolvidos, que se entendiam pertencentes ao cosmos: as mulheres, as crianças, os idosos, os pajés, os seres vivos humanos e não humanos. Taxados como bruxas, inocentes, bobos, loucos, endemoniados, os seres sensíveis (e verdadeiramente envolvidos com o ambiente ao redor) foram a cada século mais restritos a espaços e funções específicos na sociedade, sendo cada vez mais invisibilizados, proibidos de ocupar e existir em determinados contextos, impossibilitados de serem vistos, re-conhecidos. 1 Pág 2: Figura 01: Antônio Bispo dos Santos, Nego Bispo. Fonte: Divulgação/CCOM, 2023. Figura 02: Rio Berlengas, Maranhão, onde habitava Nego Bispo. Fonte: Raifran Ferreir, 2018. Pág 3: Figura 03: Ailton Krenak em Minas Gerais. Fonte:Hiromi Nagakura, 1990. Figura 04: Ailton Krenak no dia de nossa conversa. Fonte: Florian Kopp, 2024. arquitetura como envolvimento 6 Figura 05: Ailton Krenak e Peter Webb durante o encontro Brechas Urbanas. Fonte: APeres Fotografia, 2017. Tais reflexões vem de encontros, em especial com o filósofo imortal Ailton Krenak. Em 2017, contribui para promover seu encontro com Peter Webb, sob o tema “Brechas Urbanas: A Floresta que Dorme Debaixo do Asfalto”. Desde então, pude ter a oportunidade de aprender com Krenak em outras ocasiões, dentre elas em 2018 no FICA Festival Internacional de Cinema Ambiental, encontro este no qual já falávamos do problema da nossa sociedade como a falta de envolvimento2. Pudemos nos reencontrar durante o fazimento desta pesquisa, depois de uma série de picos da crise climática: em outubro de 2023, São Paulo tem o período mais chuvoso de sua história; em março de 2024, o Rio de Janeiro bate um recorde histórico de temperatura, registrando 62,3ºC de sensação térmica; e então em abril de 2024, ocorre o desastre das inundações no Rio Grande do Sul. Veja mais aqui: https://goias.gov.br/educacao/fica-2018-as-novas-cidades-precisam-de-uma-sustentabilidade-humana/ 2 prelúdio 7 Em nossa conversa, rememora o significado de Guaíba: terra da água. “Escolher habitar a terra da água significa que precisamos habitá-la de forma diferente, e entender que em certos momentos a água vai reivindicar a sua terra”. Para isso, parece necessário saber ler estas paisagens, decodificar as linguagens, para com elas dialogar e compor. Neste sentido, a arquitetura e o urbanismo vão além da ação de meramente construir, mas se revelam como ferramentas para habitar-com: de envolvimento com esse campo de forças que nos rodeiam, nos atravessam e conosco constroem mundos. Figura 06: Até onde o mar vinha, até onde o rio ia. Fonte: Guga Ferraz, 2010. Neste sentido, parece fundamental para nós, fazedores de mundos, compreender os limites: até onde a cidade vai, até onde a água pode vir; até quando dá pra exigir da terra, quando tem que deixar ela descansar; até onde dá pra extrair, quando precisamos repor; até quando podemos consumir, e o que precisamos também produzir. Os ciclos e espaços precisam de tempo para metabolizar e dinamizar as metamorfoses que estão sujeitos a partir do encontro. Um exemplo arquitetura como envolvimento 8 é o ciclo do alimento: para se tornar terra novamente, os restos orgânicos precisam se misturar, trabalhar, produzir gases, e descansar, para mudar a sua materialidade, se de-compor e re-compor, e aí então virar terra preta, como explicou Krenak aquele dia: Por muito tempo, a gente não teve resto que não fosse orgânico, biológico. Tudo o que jogava daqui a pouco virava canteiro. Por isso a terra preta: a qualidade do solo para qualquer cultivo, produzida por um ciclo migratório de quem nunca quis habitar a cidade (Krenak, 2024). Krenak rememora um habitar em movimento, em fluxo e escuta constante, que respeita os limites da terra antes de exaurí-la, antes de extrair todos os recursos que ali existem, “minando as condições que sustentam a delicada cadeia da vida”, como bem coloca Marina Silva. Em nossa conversa naquele fim de tarde, o filósofo indígena trouxe uma metáfora que evidencia essa noção de limite que advém do envolvimento com os ciclos naturais: Quando uma comunidade vive em um lugar e começa a sentir cheiro (rã), é porque vai adoecer. Então, o grupo se desfaz, deixam o lugar descansar até que ele volte a ter cheiro {bom}. Eles voltam lá depois e tem uma alta concentração de recursos para a vida. Um lugar agradável, um jardim, não pode ter cheiro ruim. Antes, era possível habitar sem doença porque quando percebiam que estava perigoso, abandonavam. Hoje, nós nos misturamos com o corpo da terra de uma maneira desordenada: é uma fúria, o consumo de tudo - desde a dieta alimentar ao modo de abrigar (Krenak, 2024). Tamanha é a mistura desordenada com os corpos da terra, que o resíduo que produzimos com nossas escolhas e advindo do padrão de produção e consumo que sustentamos como sociedade, é fora da proporção do limite tolerável para que a vida possa existir. Neste sentido, fica evidente também quais os corpos que são os mais impactados das externalidades negativas geradas pelo desenvolvimento: “populações afrodiáspóricas e africanas, indígenas e terceiro mundistas” (Bernardino Costa; Maldonado Torres; Grosfoguel, 2019, p. 10). Krenak rememorou em nossa conversa o impacto no Watu, o Rio Doce, seu avô, localizado no município de Resplendor em Minas Gerais, depois do desastre do rompimento da barragem da Vale: 9 prelúdio O nosso Rio Doce foi atravessado pela mineração. Daqui a 20 anos, o Watu vai ser o chorume da mineração: litio, mercúrio, o que não deixa a vida surgir. O Rio está interditado, naquela condição nem uma bactéria sobrevive. Foi admitida uma ação em uma corte na Inglaterra para obrigar a assumir a responsabilidade financeira pelas 200 mil pessoas que tiveram suas vidas devastadas: ribeirinhos, indígenas, quilombolas… É preciso proteger a vida da população que escolheu se instalar lá (Krenak, 2024). Nas últimas décadas, através de muita luta política, têm sido criados diversos mecanismos de mensuração de impacto e do risco de grandes obras, bem como de responsabilização pelos “desastres” que sabemos que não são naturais. “A injustiça por trás do desastre não é produto apenas da imprudência, mas do fracasso no enfrentamento de um risco com previsibilidade conhecida, da mitigação da desigualdade”, como coloca Judith Shklar (1990) em The Faces of Injustice. Tal uso irrestrito, sem consciência dos limites nem responsabilização sobre os seus efeitos, é similar a um assalto para os Krenak. Assim como a nominação de um processo que não advém da própria experiência vivida – se referindo a diferença do Bem Viver em relação a Sumak Kawsay, em Kichwa: O bem viver é um sequestro, é uma apropriação, uma extensão de uma experência profunda. (...) Não foi isso que aprendi com minhas mestras. minha mãe, avó, tia, que estavam todo dia, no cotidiano, chamando atenção para o desvio. É uma aprendizagem que implica no modo de conhecer o mundo (Krenak, 2024). A aprendizagem pode vir a ser uma mistura com o corpo da terra que considere o uso consciente dos limites; que se preocupe em co-produzir, e não somente consumir a partir da própria necessidade e depois jogar ‘fora’. Afinal, sabemos que o fora é sempre algum lugar onde os olhos daqueles que estão no topo do processo de tomada de decisão não vêem e cujos impactos não os alcançam – até que os rejeitos saiam do controle e causem um desastre de grande visibilidade e irreversibilidade, como foi o caso da barragem da Vale em 2015. arquitetura como envolvimento Figura 07: Trecho do filme KRENAK. Fonte: Lucas Barreto, 2017. 10 prelúdio Figura 08: Trecho do Rio Doce tomado pela lama. Fonte: Fred Loureiro, 2016. 11 arquitetura como envolvimento 12 Seja por conta das grandes obras de infra-estrutura ou dos seus impactos no ambiente em que estão situadas, ou no clima, a retomada do contato e cuidado da terra e seus corpos como bens comuns é urgente, e o reconhecimento destes como sujeitos de direitos. A co-implicação que revele a interdependência, como a relação dos Krenak com o seu Avô, Watu, o Rio Doce: O Watu iameré: você dá comida pra gente, você dá saúde pra gente, você cuida das nossas crianças. Temos uma tradição que, quando as crianças nascem, elas são mergulhadas no Watu. Não é um batismo, é uma vacina. Isso acontecia antes do Rio ser atravessado pela mineração, essa história teve uma interrupção no tempo. A gente não põe mais as crianças no rio porque agora ele é um veneno. Nós dizemos que o nosso avô está em coma (Krenak, 2024). A história e memória de Krenak na sua relação com o Rio Doce demonstra o quão íntimo e recíproco é o vínculo com a paisagem. A natureza é cultura nos modos de vida dos povos do (e em) envolvimento. Figura 09: Povo Krenak no Parque Estadual do Rio Doce. Fonte: Arquivo do Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES). 13 prelúdio Não somente os Krenak na beira do Rio Doce que cultivam a paisagem, e que guardam os saberes e fazeres culturais, vinculados com a natureza; mas Ailton também se refere a Amazônia, assim como as experiências que veremos aqui. Os indígenas diziam: ‘É um jardim que nós cuidamos’. {A Amazônia} Não é somente um fenômeno natural, é uma interação de culturas. Os primeiros artigos que falam disso são da década de 80. (...) Assim, a gente consegue dialogar com o corpo da mãe terra de uma forma respeitosa. A gente pode estar aqui? Qual o seu gosto? O que você quer? (Krenak, 2024). Os povos da dita “terra-floresta”, como diz Davi Kopenawa Yanomami (2015), dialogam com o corpo da terra e os corpos que a habitam ao falar a língua das Chuvas, do Rio, da Montanha – perguntando se aquela terra pode ser habitada, qual o momento de pescar, qual o momento para plantar ou para colher determinada espécie, e qual a melhor lua para colher o material como a terra ou o bambu para construir uma casa. O conhecimento se produz coletivamente, uma “aprendizagem que implica no modo de conhecer o mundo”, como diz Krenak, e a partir do envolvimento entre corpos humanos e não humanos, com a paisagem e o tempo. Essa relação de intimidade se revela em mais uma memória sua com o Rio Doce: Os nossos vizinhos iam pescar no Rio, e nós tínhamos que avisar que não podia pescar porque era piracema. ‘Os peixes estão subindo a correnteza e produzindo vida’, nós falávamos. ‘Depois vocês podem recolher o que eles estão doando, mas assim vocês estão assaltando. Isso que estão fazendo é errado, vai faltar peixe.’ Depois, eles criaram açude para criar peixe. Os animais que habitavam a beira do rio, e podiam ter uma série de utilidades, sumiram; diminuiu a oferta de tudo. E os vizinhos continuavam contando o tempo (Krenak, 2024). A memória da pescaria tensiona a noção do tempo: o relógio, as horas, o passar dos dias, e o tempo dos ciclos de nascimento, reprodução, morte. Uma experiência fluida, integrada, interdependente, que sabe de onde veio e para onde está indo, e tem um compromisso com a ancestralidade no sentido de permanecer guardando e propagando este conhecimento encarnado. Krenak menciona: Foi na infância que entendi que o que o entorno da nossa coletividade humana arquitetura como envolvimento 14 chamava de tempo era diferente para nós. A nossa experiência de tempo era líquida, larga, não tinha dia da semana. Agora é a época de colher o milho, as batatas - precisamos tirar as batatas antes de inundar com as chuvas... A nossa experiência de tempo integra o sujeito nos ciclos que os peixes, as aves, as batatas, as chuvas se movem (Krenak, 2024). Tais memórias são frutos de experiências in situ, vinculadas com os processos de vida, e que sedimentam conhecimento a partir das experiências. Ailton descreve seu papel a partir da epistemologia de seu povo: Não sou um sujeito, mas sou partes que juntam uma série de experiências. (...) Me sinto um griô, um narrador das histórias e memórias do meu povo. A resistência dos indigenas é contar histórias para adiar o fim do mundo. Sinto que estamos conseguindo, como esperiência coletiva: não é uma experiência isolada, é uma revoada. Vamos cantando e acreditando que esse canto tem o poder de mudar as coisas (Krenak, 2024). Quando disseminadas nessa revoada, as memórias se tornam sementes para fazer nascer outros mundos. Acreditando nisso, esse trabalho compartilha memórias de encontros com contadoras de histórias Brasil adentro, no interesse de contribuir para compreender e nutrir essa experiência comum de reinvenção do desenvolvimento a partir de vivências situadas na beira do sistema capitalista. introdução arquitetura como envolvimento 16 > estado da questão < O progresso, o mito do crescimento infinito, fruto da lógica linear de exploração, consumo e externalização dos limites, tem sido questionado como o paradigma que organiza nosso modo de habitar a Terra. O desenvolvimento como uma ideia de progresso já vem sendo criticado globalmente há mais de 70 anos. No Brasil, o economista Celso Furtado, por volta de 1950, já questionava o subdesenvolvimento, atribuído como condição estrutural dos países “atrasados”. O arquiteto, artista e paisagista Roberto Burle Marx já questionava em 1960 o paradigma do progresso e do desenvolvimento, ocupando o debate público através de matérias em jornais de massa, questionando escolhas políticas da exploração e destruição da biodiversidade3: “a destruição da fauna e flora, a face negativa do progresso. Ninguém segura a destruição” (Burle Marx, 1969). Figura 10: A denúncia feita por Burle Marx, texto de autoria desconhecida, Jornal do Brasil, 1984. Fonte: Exposição Lugar de Estar, 2024. Em 2024, é realizada a exposição “lugar de estar”, que retoma o pensamento e atuação de Roberto Burle Marx. Disponível em: https://mam.rio/programacao/lugar-de-estar/. 3 introdução 17 Figura 11: Destruição da fauna e da flora, a face negativa do progresso. Texto de autoria desconhecida, A Gazeta, 1973. Fonte: Exposição Lugar de Estar, 2024. arquitetura como envolvimento Figura 12: Amazônia: ontem, hoje, e por pouco tempo mais. Fonte: Alex Fisberg, 2010. 18 introdução 19 arquitetura como envolvimento 20 Nos anos 1980 e 1990, as feministas Vandana Shiva e Marie Mies passaram a conceituar esse modelo econômico ocidental imposto aos países do “Terceiro Mundo” de mau desenvolvimento, também utilizado por Wolfgang Sachs (1979), vinculando-o a processos injustos e excludentes, impedindo o exercício de atores locais de suas capacidades sociais, relacionais e ecológicas – pautadas pelo olhar do que vai vir a ser o livro Ecofeminismo (1993). Sachs, por sua vez, no Dicionário do Desenvolvimento em 1992, buscava respostas aos desafios ambientais e éticos que confrontavam a humanidade na época. Na época, o desenvolvimento passou a ser visto também como responsável pela exacerbação da destruição e expropriação da natureza para beneficiar as elites do Norte (Beltran in Sólon, 2019, p. 124). As abordagens críticas a este modelo, bem como a busca por alternativas, continua como luta política nos anos 2000. O Sumak Kawsay, noção proposta por Alberto Acosta no Equador (2008) a partir dos saberes de povos originários locais, tem ecos no Brasil com a noção do envolvimento, vocalizada pelos filósofos Ailton Alves Lacerda, indígena da etnia Krenak da região do Rio Doce, em Minas Gerais, e Antônio Bispo dos Santos, quilombola piauiense nascido no Vale do Rio Berlengas; e pelo antropólogo Viveiros de Castro com a noção do reenvolvimento (2011): Estou convicto de que é urgente, não “parar para pensar”, mas pensar para não parar; é urgente começar a pensar bem para não parar de vez. É preciso aprender a decrescer para não morrer. O Brasil é grande, mas o mundo é pequeno. A Terra não vai nada bem neste começo de século. Há hoje uma insustentabilidade aguda dos padrões globais de geração, distribuição e consumo da energia necessária à vida humana. Nosso país é um dos poucos que ainda têm viabilidade do ponto de vista de sua base de recursos. O Brasil ostenta uma das populações histórica e culturalmente mais diversificadas do mundo: 220 povos indígenas, uma imensidão de descendentes de africanos, de imigrantes europeus e asiáticos, de árabes, de judeus; gentes rurais e urbanas das mais diferentes origens étnicas e culturais, habitando uma variedade de formações naturais que, por sua vez, abrigam a mais rica biodiversidade do planeta. Sociodiversidade e biodiversidade deveriam ser nossos principais trunfos em um mundo em acelerado processo de globalização. 21 introdução Mas eis-nos aqui, ainda e sempre, teimando em serrar o galho em que estamos sentados, com uma política de comércio exterior que vem aplicando um modelo de desenvolvimento ambientalmente suicida, economicamente retrógrado, socialmente empobrecedor e culturalmente alienante. Devastamos mais da metade de nosso país acreditando que era preciso deixar a natureza para entrar na história; pois eis agora que esta última, com sua costumeira predileção pela ironia, exigenos como passaporte justamente a natureza (Viveiros de Castro, 2011). “O modelo de desenvolvimento ambientalmente suicida, economicamente retrógrado, socialmente empobrecedor e culturalmente alienante” como tematiza Viveiros de Castro já vinha de décadas, como apontou a economista Maria da Conceição Tavares nos anos 1990: Uma economia que diz que precisa primeiro estabilizar depois crescer depois redistribuir é uma falácia. E tem sido uma falácia. Cresce aos solavancos: essa é a história da economia brasileira. (...) Tinha que se fazer ao mesmo tempo, estabilização, crescimento e distribuição (Conceição Tavares, 1995). Viveiros de Castro, junto a Deborah Danowski em 2014, retoma a questão dos limites do planeta, noção resgatada por Bruno Latour4 que defende que a exploração infinita dos recursos e acumulação dos mesmos nas mãos de poucos se mostram insustentáveis. A geração de energia necessária para a vida humana requer, portanto, outra organização da produção, da distribuição e do consumo. Os pesquisadores se perguntam: “há mundos por vir” sem modelos de gestão compartilhada e descentralizada dos bens comuns do planeta e sem a redistribuição radical da riqueza já produzida? O colapso climático é atribuído por muitos a este tipo de modelo de sociedade, resultado de um projeto civilizatório e colonizador do des-envolvimento: que cria corpos alienados, extrai bens comuns (ecossistemas repletos de sujeitos não humanos – animais, vegetais, minerais) e exporta os limites para maiorias minorizadas pela métrica de atribuição de valor do capital. Tal noção foi apresentada no evento Mil Nomes de Gaia, 2014, que pode ser considerada uma possível reverberação de Johan Rockstrom, que buscava reconhecer os limites que definiam o espaço seguro para a humanidade habitar a terra em “A safe operating space for humanity”, 2009. 4 arquitetura como envolvimento Figura 13: Encontro da Rocinha com São Conrado, no Rio de Janeiro. Fonte: Johnny Miller, 2021. 22 introdução Figura 14: Inundação decorrente das chuvas no Rio Grande do Sul. Fonte: Matheus Piccini, 2024. 23 arquitetura como envolvimento 24 Figura 15: Deslizamento decorrente das chuvas em Petrópolis, Rio de Janeiro. Fonte: Tomaz Silva, 2022. introdução Figura 16: Céu alaranjado visto em São Paulo das queimadas da Amazônia. Fonte: André Lucas, 2020. 25 arquitetura como envolvimento Figura 17: Cidade de São Paulo e o crescimento infinito. Fonte: Diogo Moreira, 2023. 26 introdução Figura 18: Construção da Usina de Belo Monte. Fonte: Paulo Moreira Leite, 2015. 27 arquitetura como envolvimento Figura 19: Trabalhadores na construção de Brasília. Fonte: Marcel Gautherot, 1958. 28 introdução Figura 20: Poluição de Cubatão, São Paulo. Fonte: Luiz Prado, 1988. 29 arquitetura como envolvimento 30 A ideia do envolvimento é então apresentada como alternativa ao modelo do des-envolvimento, como aponta Nego Bispo em seu discurso no encontro Aquilombar o Antropoceno, Contra-colonizar a Ecologia (2023): Des-envolver é desconexão, é desastre, é deslocamento. Tanto é que pensa-se num lugar pra fazer no outro - que doidera. To dizendo isso pra dizer que para nós quilombolas e contracolonialistas, a palavra chave é envolvimento. Nós somos os povos do envolvimento. O envolvimento é o antídoto de desenvolvimento, é contra-colonialismo. (...) Quando se fala colonialismo, só se pensa na relação humano-humano, mas colonialismo é a relação entre todas as vidas na terra e da terra. Há o colonialismo das matas, há o colonialismo dos animais, há o colonialismo dos biomas (Santos, 2023). O des-envolvimento como ação extrativista só é possível porque existe um deslocamento desde onde se tomam as decisões para onde se sentem os efeitos dessas ações, como bem lembra Nêgo Bispo. Neste sentido, somos reféns das estruturas de poder de um sistema extrativista, linear, de exploração profunda e perpetuação da diferença do lugar onde as riquezas se concentram e do lugar onde as externalidades negativas5 se manifestam. Rompimento de barragens, inundações, desabamentos de morros, queimadas, rios sufocados, secas decorrentes de desmatamentos, espécies sob risco de extinção… A escala da expropriação da natureza tem gerado tamanha destruição que o fenômeno foi denominado pela ciência de Antropoceno, onde a espécie humana promoveu mudanças significativas de alcance global e geológico a partir de suas ações extrativistas, de exploração e dominação dos ciclos e ecossistemas naturais, “como uma força de transformação perigosa e catastrófica para si e aos demais seres na Terra” (Svampa, 2019). É possível imaginar o des-envolvimento como o fruto de uma árvore, contida em um vaso, fechada em uma varanda de vidro em um apartamento, dentro de um prédio murado, construído em cima de uma nascente em uma selva de pedra. Ailton Krenak nos provoca ao dizer: Externalidades negativas ocorrem quando o produto exerce um efeito negativo sobre uma terceira parte independente da transação, que muitas vezes são os povos e comunidades vulnerabilizados, em especial a população negra, a parcela marginalizada e historicamente invisibilizada que acaba sendo a mais afetada por danos ambientais e climáticos. 5 introdução Figura 21: Povo Yanomami. Fonte: Hiromi Nagakura, 1990. 31 arquitetura como envolvimento 32 Nos descolamos do corpo da Terra. Quando nós ficamos na forma humana – esse antropomorfo -, quando nos percebemos nessa forma, começamos a nos descolar da Mãe Terra. O ser humano discrimina os irmãos, as outras espécies (...) Essa excessiva afirmação do ser humano nos colocou um dilema: como recuperar o contato, o afeto – com montanhas, com rios, com floresta? (Krenak, 2020). Seria então a imagem do envolvimento essa mesma árvore, mas inserida em uma teia de relações de reciprocidade, onde as espécies se apoiam mutuamente compartilhando insumos com o reino vegetal; se comunicando pelas raízes através do reino fungae; sendo apoiada pelos corpos humanos e animais, dispersores de suas sementes e possibilitando a reprodução das espécies; compondo um ecossistema onde os produtores, os consumidores e os decompositores provêm a autorregulação dos ciclos. Uma utopia? Os impactos e consequências do des-envolvimento são visíveis, tangíveis e mensuráveis na escala da arquitetura e da cidade. Segundo um estudo da Bimhow, 400 milhões de toneladas de material são utilizadaspela construção civil global todo ano, sendo um setor responsável por 23% da poluição atmosférica, 40% da poluição de água potável e 50% do lixo que vai para os aterros sanitários (Snook, 2017). A arquitetura é responsável, segundo pesquisa do US Green Building Council, por 40% do uso de energia do mundo. No que tange a escala das cidades, a paisagem dita urbana consome cerca de 70% da energia do mundo e produz mais de 70% dos gases do efeito estufa, segundo estudo da ONU Habitat (Relatório Global sobre Assentamentos Humanos 2011: Cidades e Mudanças Climáticas). Isso acontece através do modelo de sociedade na qual habitamos: baseado na dependência de monoculturas como da cana de açúcar ou gado, no uso extensivo de pesticidas, em fontes de produção de energia de grande impacto nas comunidades humanas e não humanas como hidrelétricas, em ciclos produtivos de grandes distâncias percorridas através do modelo rodoviarista e, portanto, na dependência da queima de combustíveis fósseis. Diante dessa urgência latente, escondida debaixo do concreto que impermeabiliza a terra, quente e seca do sol do verão; urgência visivel nas ondas de calor que do concreto emanam (do comum e cotidiano); urgência exposta nas enchentes que inundam cidades que ocupavam as beiras dos rios; de que maneira a arquitetura pode atuar como ferramenta e dispositivo de envolvimento? De que forma práticas espaciais, criadas ou não por arquitetos, participam da criação da noção de envolvimento - e como ela se evidencia? Como nós, introdução 33 arquitetos, urbanistas, desenhadores e construtores de futuros, podemos criar arquiteturas que possam sensibilizar os corpos para o re-envolvimento com o que nos dá contorno e limite? Afinal, o que significa e como se traduz na arquitetura o envolvimento? Como criar e produzir arquiteturas que engagem as pessoas e comunidades na proposição de outras formas de habitar e gerir o comum? Como criar regimes não somente alternativos, mas substitutivos ao des-envolvimento, em comum?6 Interessa assim resgatar a metodologia do pedagogo brasileiro Paulo Freire, que consiste em obter uma perspectiva crítica sobre a realidade em que se habita, mas também compreender-se como sujeito ativo em permanente relação e com potência de transformação desta realidade. O envolvimento vem assim como aposta de reconexão com uma ética, estética, técnica e política que possa redirecionar o destino da vida na Terra, a partir do vínculo com a terra, os corpos, nossas formas de comer, de construir casas e de falar e pensar, como aponta Nêgo Bispo (2023). O filósofo indígena Ailton Krenak acrescenta: Nós também, nosso corpo, assim como todos os outros seres, está dentro dessa ecologia ou dessa vasta biosfera do Planeta como um elemento de equilíbrio e regulador. Nós não somos alguém que age de fora. Nós somos corpos que estão dentro dessa biosfera do Planeta Terra. É maravilhoso, porque, ao mesmo tempo em que somos dentro desse organismo, nós podemos pensar junto com ele, ouvir dele, aprender com ele. Então é uma troca mesmo, de verdade. Não é você incidir sobre o corpo da Terra, mas é você estar equalizado com o corpo da Terra, viver, com inteligência, nesse organismo que também é inteligente (Krenak, 2020, p. 13). Outro comum tem emergido como possibilidade de existência diante das crises que vivemos no contexto latino-americano, e também global, nos últimos 20 anos. A abertura de campos de imaginação e experimentação se mostra mais que urgente, e tem se dado a partir de propostas como o buen vivir (Acosta, 2016), e alternativas sistêmicas (Sólon, 2019) e oportunidades para imaginar outros mundos, como o pós-desenvolvimento e a própria ideia de pluriverso (Kothari et al, 2021) e, por fim, o (re)envolvimento (Viveiros de Castro, 2011; Krenak, 2019; Bispo, 2023). A ideia de tecnologias substitutivas, e não alternativas, é defendida pelo mestre bambuzeiro de Minas Gerais, Lúcio Ventania. Para saber mais, sugerimos o debate Ambientar - Regeneração, da Exposição Infinito Vão, disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=PGFeGTYGT9M. 6 arquitetura como envolvimento Figura 22: Povo Yanomami, Aldeia Demini-Watoriki. Fonte: Hiromi Nagakura, 1990. 34 introdução Figura 23: Aldeia Demini-Watoriki. Fonte: Hiromi Nagakura, 1990. 35 arquitetura como envolvimento Figura 24: Crianças Yanomami na Aldeia Demini-Watoriki. Fonte: Hiromi Nagakura, 1990. 36 introdução 37 Lembrar que a arquitetura é, antes de tudo, envolvimento pode contribuir ativamente no processo de criação de alternativas necessárias ao paradigma hegemônico do des-envolvimento. Afinal, diante dos contextos compartilhados de desigualdades, na busca por justiça socioespacial e climática, como espaços dos mais diversos campos e cantos experimentam proposições? Quais arquiteturas propõem o envolvimento? A partir da literatura existente, é possível localizar a nascente desta discussão no campo da arquitetura e urbanismo na abordagem da participação. Muito se tem escrito desde os anos 1960 sobre a noção no campo da arquitetura e urbanismo: de Arnstein (1969) e Fathy (1982), passando por Alexander (1970) ou Turner (1972); e por Nunez (2003), Fernandes (2012), Guizzo (2019) que têm igualmente se dedicado ao tema. Giancarlo de Carlo (1960) contribuiu com notoriedade, motivo pelo qual em mais de meio século a ideia de participação ou simples colaboração continua a ser denegada ou deixada em segundo plano nas páginas dedicadas à crítica das práticas e das obras de arquitetura e urbanismo. A pesquisadora Sherry Arnstein foi também precursora, em 1969, quando lançou o artigo “A Escada da Participação Cidadã”, no qual construiu o caminho para pensar a tomada de decisão participativa. A “escada” demonstra uma gradação desde a falta de controle e poder por parte da população (quando é por exemplo manipulada por técnicos e políticos acerca de seus interesses com respeito a determinados projetos), passando pela consulta, até chegar no que a pesquisadora chamaria de controle cidadão. Este, para a autora, seria o ápice de participação, no qual os habitantes governam seu território, estando sob sua responsabilidade a tomada de decisão e estando capazes de negociar as condições nas quais os “estrangeiros” possam influenciá-las. É importante reconhecer que há ressalvas em uma tentativa de abstrair e petrificar relações moventes em categorias rígidas, mas tais categorias oferecem uma métrica capaz de facilitar a compreensão das forças que operam nas diferentes situações. Acredita-se que as preocupações de algumas arquitetas e arquitetos se materializam em arquiteturas ao se tornarem linguagens que podem vir a ser ferramentas de construção de imaginário, narrativa e valor acerca de causas relacionadas à justiça social e ambiental, evidenciando o diálogo e a relação com os territórios (sobretudo aqueles marcados por vulnerabilidades, opressões e desigualdades) e defendendo em sua materialidade o direito às múltiplas formas de vida. arquitetura como envolvimento 38 A partir de um caráter político, por vezes ativista, as práticas espaciais estudadas aqui propõem desestruturações hierárquicas e formulam alternativas para se relacionar com o poder em suas diversas dimensões, propondo modos e linguagens participativos, sensíveis à escuta e situados nos territórios. Como resume o arquiteto Fernando Luiz Lara (2021): o processo participativo desloca o arquiteto de uma posição de centralidade. Se por um lado o processo participativo tira o arquiteto da posição central, muitas vezes entende-se a participação como um espaço aberto pelos arquitetos para o envolvimento da sociedade e comunidade local no projeto. A bibliografia existente muitas vezes foca em um entendimento dos arquitetos como condutores da abertura deste espaço de participação da comunidade local. No entanto, creio aqui que seja necessário realizar uma inversão de olhar para a participação, pois, muitas vezes, é a comunidade local que convida o arquiteto a participar de seus processos, locais e situados naqueles territórios, e que estão em curso antes de sua chegada e continuarão depois de sua saída. Tal inversão nos permite exercer um olhar situado, que compreende a comunidade local, o processo histórico de forças e disputas que configuram um território, seus modos de habitar, quais vínculos estabelecem e como eles se envolvem com o ambiente ao seu redor. Pensar a participação com a arquiteta pesquisadora Iazana Guizzo, que venho acompanhando desde 2016, provoca um olhar alargado que se assemelha ao que estou chamando de envolvimento: uma participação do arquiteto no espaço e com a comunidade na qual, para e com quem se está projetando, a partir de um encontro e entendimento das cosmologias que ali habitam: Essa atenção específica aos territórios e seus habitantes, aos modos de situar o projeto e ao reconhecimento de lógicas não centrais ganhou força na concepção de projeto com uma importante ressignificação do campo da arquitetura e do urbanismo que ocorreu na metade do século passado. (...) Em suma, já eram postos em xeque a metodologia hegemônica dos modelos de projeto e os preceitos científicos que a sustentavam. Desde então, é cada vez mais crescente a demanda por uma atitude de projeto mais participativa, ou menos autoritária, que busque situar o desenho no território, que aborde os dispositivos colaborativos e que envolva os habitantes, humanos ou não, no desenho de seu próprio habitat. Contudo, apesar desse processo já estar acontecendo, ele ainda é tímido (Guizzo, 2019, p. 21-22). 39 introdução Tal abordagem mais ampliada da participação aponta para maior envolvimento com os corpos humanos e não humanos, com a paisagem natural e cultural, e com o tempo em cada projeto e cada território. O projeto se daria, assim, no encontro presentificado através de diferentes elementos e dimensões, em experiência de encontro. Compreender, a partir da noção de envolvimento, como se produz a arquitetura e o que ela pode produzir. Guizzo abre caminhos no campo da arquitetura e urbanismo para o que ela vem a propor como participação transversal: A participação pode ser ligada ao agenciamento entre diversos corpos, fabulando novas cenas a partir de potências aparentemente diferenciadas (...) em vez de a pergunta girar em torno de quem desenha, as questões de participação passariam a ser: quais composições entre diferentes corpos possibilitam um aumento da potência de diferentes autonomias? Como produzir pontes com diferentes elementos, fazendo do construir um processo de viver? (Guizzo, 2019, p.177-178). As complexas dimensões das questões contemporâneas têm influenciado até certo ponto as práticas da arquitetura, reclamando que não seja esquecida sua definição como ofício e artefato político (Yaneva, 2017), assim como coloca Nilce Aravecchia Botas: A arquitetura novamente entendida enquanto corpo material, depositário de energias humanas as mais diversas, pode fundar práticas libertárias de descolonização dos corpos, das mentes e das terras; e isso pode ser feito a partir da consciência de duas totalidades que podem ser nomeadas: a do sistema capitalista global com seu poder hierárquico, e a nossa condição de latino-americanos no interior desse sistema (Botas, 2019, p. 80). No contexto brasileiro, mas também latino-americano, profissionais do campo da arquitetura vêm buscando, por meio de sucessivas experiências, respostas a outros modos de produzir arquitetura7. As discussões do pensamento decolonial Tem-se um histórico de experiências relevantes neste sentido: as cooperativas FUCVAM de construção por mutirão no Uruguai; a experiência do LABHAB em São Paulo; a discussão sobre o canteiro de Sérgio Ferro; a práxis transformadora e a atuação de Carlos Nelson nas favelas do Rio de Janeiro; a educação como prática da libertação de Paulo Freire, que atuou na conscientização do povo brasileiro a partir de uma consciência crítica da realidade em que se vive e da descoberta de si como agente de transformação do mundo; os mutirões da pastoral da terra na década de 70. Há também o projeto de habitação modular e autoconstruída no Cajueiro Seco, do arquiteto Acácio Gil Borsoi; as organizações locais e alianças com técnicos e o Movimento Sem Terra no planejamento e construção dos assentamentos rurais; as assessorias técnicas para 7 arquitetura como envolvimento 40 e socioecológico vêm sendo traduzidas para o campo da arquitetura e do urbanismo por críticos e historiadores como os brasileiros Nilce Aravecchia, Paulo Tavares, Gabriela de Matos, Luiz Fernando Lara, e como os arquitetospesquisadores latino-americanos Maria Luisa Borja López e Oscar Eduardo Preciado Velasquez, dentre outros. O papel dos agenciamentos que dialogam com o debate público se mostra relevante para atualizar as discussões que, no Brasil, de modo geral, permanecem fechadas e restritas a uma ideia duplamente “disciplinar”. De certa maneira, eles reiteram a necessária porosidade do pensamento sobre a arquitetura, o urbanismo e as práticas espaciais, em relação às insurgências – políticas, culturais, ecológicas – da sociedade. Tal discussão foi reiterada durante o Pavilhão do Brasil “Terra” na 18ª Bienal de Arquitetura de Veneza, em um diálogo aberto e interdisciplinar com as questões contemporâneas e com a diversidade de matrizes filosóficas e culturais brasileiras. Como aponta um dos curadores, Paulo Tavares: “queremos abordar a arquitetura enquanto prática para se posicionar no mundo” (Tavares, 2023). A arquiteta e educadora ganense-escocesa Lesley Lokko, curadora da 18ª Bienal, relaciona duas noções contemporâneas e fundamentais, dizendo que a descarbonização do planeta está inevitavelmente relacionada à decolonização dos nossos pensamentos e de nossas arquiteturas (2023). os movimentos sociais de luta por moradia nas grandes metrópoles; os coletivos interdisciplinares de atuação nos espaços públicos atuando numa lógica de democracia local introdução Figura 25: Povo Krikati. Fonte: Hiromi Nagakura, 1990. 41 arquitetura como envolvimento 42 > outras epistemologias: o envolvimento como método < Diante da necessidade de uma ruptura epistemológica, “chama à consciência a dimensão eurocêntrica de nossa herança intelectual” (Botas, 2018), fundamentada no racionalismo pretensamente universal e abstrato, separado do corpo e da experiência situada. Junto a Larossa, proponho aqui outro modo de fazer pesquisa e produzir conhecimento: uma epistemologia do envolvimento, na qual o corpo em experiência, na relação com a paisagem, os corpos, o tempo, se abre à sua própria metamorfose, e à construção de conhecimento, coletiva, sensível, interespécie. Sobre a qualidade da experiência, Larossa explica: É o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. (...) O sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura. Trata-se, porém, de uma passividade anterior à oposição entre ativo e passivo, de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental, como uma abertura essencial. [...] Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria transformação (Larossa, 2002, p. 21 e p. 24). Esta proposta epistemológica pode ser compreendida também através da noção da pesquisadora do corpo Fernanda Eugênio de autoetnografia sensorial como uma prática de “distribuição não-hierárquica da atenção pelo entorno e o acompanhamento em ato da percepção-sensação de si – como modo de sintonização e instauração-sustentação de um campo comum” (Eugenio, 2019, p. 45). Eugênio posiciona este exercício como uma experimentação sensível do corpo e uma pesquisa de táticas para frequentar uma relação de inseparabilidade com a experiência, o que pode ser visto também quando Iazana Guizzo coloca como “corpos mais fortes e mais articulados com a Terra” em O corpo e o afeto na questão do projeto participativo (2019, p.177-178). Assim, o estudo acerca do conhecimento é produzido em encontro, em experiência, na imbricação entre natureza e cultura. Esta dissertação esteve baseada em encontros etnográficos (Marquez, 2020), em uma experimentação constante de diversos modos de estar e ser em relação: propostas de intervenções urbanas de baixo para cima, criação de programas 43 introdução pedagógicos interdisciplinares, realização de vivências em canteiros de obra, visitas a obras construídas e entrevistas com os arquitetos, participação em eventos autogeridos por estudantes, curadoria e organização de seminários e colaborações em Bienais e exposições, publicação de artigos e livros em diálogo com pares, e articulação de redes de ativistas pelo comum no continente latino e sul-americano. Atuantes em diversos contextos – na academia, na poítica, nos territórios, no campo disciplinar –, tais ações demonstram a necessidade de criação de alianças, relações de reciprocidade e a ocupação de brechas e interstícios do poder. Uma cartografia de práticas espaciais latinoa-mericanas que convidem a algum comum. Modos de ativismo e cidadania ativa que resistem aos valores estabelecidos são críticos e reclamam por direitos não garantidos, mas vão além: materializam respostas e apontam novos caminhos no seu cotidiano, instaurando mundos possíveis que escapam dos poderes e fazeres hegemônicos8. Pessoas que se organizam para investigar, imaginar e experimentar relações, verdadeiros laboratórios que instauram outras possibilidades de habitar a partir do fazer com pouco que se tem, presente: exercitando a crítica e a construção propositiva com o que se consegue identificar como força de agregação expansiva, libertária, “existente”. Este trabalho busca aprender com corpos que estão semeando essas outras possibilidades de mundo(s), por aí afora e adentro de muitos corpos-territórios. Muitas e muitos mestres compartilharam de forma generosa ferramentas, tecnologias, saberes, fazeres, afetos. Afinal, somos todos constituídos desta partilha do sensível (Rancière, 2005): Denomino partilha do sensível, o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum, e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. (...) Essa repartição das partes e dos lugares se funde numa partilha de espaços tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta a participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha (Ranciére, 2005 apud Tonetti, 2020, p.15). Somos constituídos dos encontros, das dinâmicas de relação com o mundo, com os seres humanos e não humanos, as paisagens naturais e culturais que nos atravessam e as quais seguem se atravessando. Cf. BROWN, G.; FEIGENBAUM, A.; FRENZEL, F.; MCCURDY, P. Protest Camps in International Context: spaces, infrastructures and medias of resistance. Bristol: Policy Press, 2017. 8 arquitetura como envolvimento 44 Encantada por experiências que materializam e espacializam estes saberes, venho cartografando aspectos materiais e discursivos (in situ) de práticas e projetos de espaços comuns em diversos rincões do Brasil e da América Latina, a partir destes encontros. Foram essas experiências e práticas de co-existência e situ-ação que compõem essa voz que aqui escreve. Falam através de mim muitas outras vozes, e carrego no corpo as memórias afetivas e vivas destes encontros, que a cada momento são reescritas por novas inscrições, ganhando outros relevos. Rememorar as experiências de aprendizagem acerca do envolvimento, que marcam cada corpo e os constitui, parece desejável para que se possa seguir aberto para reinventar a singularidade de multiplicidades que é cada um. Os encontros e experiências de envolvimento se mostram assim um caminho de projeto participativo e construção coletiva, se materializando em visitas, conversas, seminários, imersões. Em uma das imersões, guiada por Iazana Guizzo, ela convida e guia os corpos ali presentes para viver a experiência: Dê as mãos com a pessoa ao seu lado. Feche os olhos e sinta esse toque entre peles. Ouça os sons mais distantes, os sons mais próximos. Sinta o cheiro desse lugar, sinta o gosto da última coisa que você comeu que ainda permanece na sua boca. Abra os olhos e receba essa imagem, deixe ela pousar sob seus olhos, suas mãos, sua boca, ouvidos, nariz e todo o corpo como receptor dessa imagem que tem textura, gosto, cheiro e som (Guizzo, 2023). As relações que venho cultivando a partir de uma epistemologia do envolvimento se revelam a mim como ferramenta a partir de 2016, constituindo vínculos em especial com mulheres que guardam e compartilham as histórias de seus povos, que habitam as margens de Rios e defendem territórios Brasil adentro. Montag, falando sobre as experiências que abrem espaço para a transformação, relata seu contato com as mulheres em comunidades no México, reforçando como um caminho as experiências como método de construção coletiva com mulheresreferência nos seus territórios: Os momentos a serem iluminados são os encontros. Tenho o objetivo de refletir sobre como essas mulheres (...) são geradoras de encontros e como esses encontros são etapas importantes para um processo colaborativo. Observo que 45 introdução suas receptividades aos encontros lhes geram diversas oportunidades e elas tecem essas conexões em prol de solucionar demandas coletivas. (...) Ao permitirem que as pessoas adentrem seu íntimo através de suas histórias e sabedorias, tornam-se também seus próprios lugares de encontro. Elas compartilham com sua presença, sem impor, mas como convite às pessoas a permitirem-se viver o encontro, a experiência (Ferreira Montag, 2022, p. 136). O ponto de partida para as reflexões acerca da pesquisa partem do envolvimento como método de investigação; como forma de estar junto para pensar e fazer arquitetura, in situ. Nestes contextos, vi emergir capacidades de possíveis papéis como arquiteta - habilidades pedagógicas, cosmológicas e de mediação. Então, no início deste trabalho no contexto acadêmico, foi feito o levantamento do tema e dos interesses sobre os quais gostaria de me debruçar. As leituras teórico-metodológicas, em primeiro momento, perpassaram autores que posicionam um entendimento conceitual sobre formas de ver o mundo no Brasil e na América Latina, hoje, a partir da chave do comum, do bem viver, do envolvimento. No entanto, ao encaminhar a pesquisa, percebi a importância de compreender ferramentas de outras e outros pesquisadores que escreveram com e sobre as experiências que vivenciaram: arquitetos movidos pelo afeto, como Iazana Guizzo; arquitetos se tornando antropólogos, como Carlos Nelson Ferreira dos Santos; cartógrafas de processos de encontro com as favelas, como Laura Pozzana; penduradores de redes Yanomamis, como Thiago Benucci; criadores de práticas experimentais e educativas no canteiro de casarões tombados, como João Wallig; construtoras de casas das avós no México, como Mariana Montag; e arquitetas preocupadas com o estudo de gênero e sua relação com o potencial social e ecológico da arquitetura, como Maria Luísa Borja López. Essa foi a segunda etapa da pesquisa. Logo, me vi obrigada a recortar, escolher as ideias com as quais trabalharia, mas, especialmente, as experiências que iria rememorar. Nesse sentido, foi fundamental, mais uma vez, entender a ideia de limite: o quanto conseguiria me envolver? Quais contornos iriam me guiar na escolha das experiências que me acompanhariam? Qual é o porquê das categorias e formas de organização da investigação? Lendo a antropóloga e pesquisadora Fernanda Eugênio, me reconheço na descrição de um processo investigativo enraizado e dialógico, que se faz com os contextos onde se situa e com os quais se envolve: arquitetura como envolvimento 46 Assegurar que investigar o comum não seja diferente de viver o comum. Por um lado, trata-se de de transversalizar e ‘reciprocizar’ o gesto investigativo, procurando modos de eliminar concretamente uma diferença (mais para descompasso hierárquico) que tende a ser recorrente nas investigações, apesar de tudo o que se disse e se discutiu sobre o assunto: aquela entre o sujeito-pesquisador e o objetopesquisado. Por outro lado, trata-se de um esforço por fazer (com os) conceitos, explorar a sua performance presentativa, testar a sua pertinência no plano do uso e a partir de uma abordagem que os experimenta enquanto ferramentas - algo que serve para fazer com, não apenas para falar sobre. Um esforço por dar a ver, através de uma prática no/com o terreno e o corpo, a distância que frequentemente persiste entre o posicionamento teórico-discursivo e aquilo que se performa e prática no (e como) mundo, para quem sabe, encontrar maneiras de a colmatar, fazendo coincidir em ato o sentir, o pensar e o fazer (Eugenio, 2019, p. 6). Foi então que escolhi caminhar junto às experiências vivenciadas com três mulheres pelo Brasil que, de uma forma ou de outra, vinham percorrendo o rio do tempo de vínculos criados desde 2016. Encontros etnográficos com Noêmia do Espaço Cultural Jardim Damasceno, nas margens do rio Bananal, que conheci em maio de 2016; Maria Odila, da Cooperativa Turiarte em Anã, nas beiras do rio Arapiuns, que conheci em dezembro de 2018; e Yakuy Tupinambá, do Levanta Amotara Zabelê, próxima ao rio Una, que conheci em fevereiro de 2019. Reconhecer que havia escolhido caminhar junto a mulheres, que beiram a margem de Rios, e protegem áreas de sociobiodiversidade Brasil adentro, foi uma escolha inconsciente, e somente percebida por mim no decorrer da pesquisa, mas que não deixa de ter sua importância. As três experiências estudadas, nas quais envolvi-me como pesquisadora, tensionam os saberes e fazeres arquitetônicos que dominam o campo contemporâneo da arquitetura e do urbanismo. De certo modo, expandem a compreensão das relações espaciais junto às complexas dimensões sociais, culturais, econômicas, políticas – sobretudo ao realizar uma arquitetura envolvida com indivíduos vivendo em comunidades alternativas àquelas urbanas no contexto brasileiro contemporâneo. Interessante perceber o papel dessas mulheres, assim como Krenak, como verdadeiros griôs, guardiãs e guardiões da cultura de seus povos e comunidades, que transmitem as práticas culturais locais mas também narram as suas histórias de forma acessível para as mais diversas pessoas: “me sinto um narrador das 47 introdução histórias e memórias do meu povo (...) Como o pássaro que consegue vocalizar o canto de qualquer outro pássaro” (Krenak, 2024). O encontro com essas mulheres e territórios se manifestou de diversas formas e situ-ações entre 2016 e 2024: em imersões e vivências em cada uma das comunidades (como na vivência de Turismo de Base Comunitária com a Turiarte no Arapiuns, no programa pedagógico Escola Sem Muros realizado no Jardim Damasceno e na Vivência Tupinambá em Una), na curadoria de encontros destas mulheres com outras referências de outras comunidades (como no II Festival A Cidade Precisa de Você em 2018, no Seminário Arquitetura Para Autonomia em 2019, nos encontros online da exposição Infinito Vão em 2021), em visitas informais e trocas online durante o largo período da pandemia (em 2022 e 2023). E foram questões que surgiram dessas experiências que levaram a realização deste trabalho. Creio que o encontro entre as comunidades aqui representadas e as arquitetas e arquitetos com as(os) quais colaboram tensionam as práticas espaciais e apontam para aspectos de uma revisão desejável da atuação profissional. Portanto, o movimento proposto aqui é de reconhecer a relevância dessas práticas espaciais, produções arquitetônicas, de desenho da paisagem e modos de habitar – por vezes feitas pelas próprias comunidades, por vezes em colaboração com arquitetos. É este um movimento de resgate e reparação histórica, mas também de contracolonização, que vem se manifestando não somente na academia, mas também em espaços de discussão pública como as Bienais, ecoando um espírito do tempo. Como Paulo Tavares aponta, na ocasião do Pavilhão do Brasil na Bienal de Arquitetura de Veneza de 2023: O pavilhão reconhece essas práticas espaciais enquanto desenho da paisagem, enquanto arquitetura, enquanto produção do espaço que produz biodiversidade. Isso é fundamental, porque quando algo é colocado num pavilhão da Bienal de Arquitetura, significa que aquilo é reconhecido como experiência arquitetônica relevante. Portanto, nosso trabalho consiste em reconhecer essas práticas como práticas fundamentais para o futuro tanto do Brasil como do planetário (Tavares, 2023). arquitetura como envolvimento 48 Esta dissertação busca, dessa forma, ver até onde chega o rio na época da cheia: alargar o espectro de leitura, entendimento e imaginário das produções arquitetônicas no Brasil, para além daquelas feitas por arquitetos, contemplando práticas autônomas de sujeitos indígenas, ribeirinhos e periféricos. O momento histórico que vivemos apresenta um convite para ampliar o campo da produção para as influências e confluências, como colocado por Nêgo Bispo, culturais, políticas e climáticas sob as quais estamos e somos sujeitos. Assim, a etapa de implementação da pesquisa inclui certo distanciamento histórico, quando realizo conversas partindo de entrevistas semiestruturadas com as mulheres que guardam e confiam em mim suas memórias, mas também com as(os) arquitetas(os) envolvidas(os) nas experiências e que trazem também o que seus corpos filtram do passado. Para além dos encontros com Noêmia, Yakuy e Maria, também entrevistei, em maio de 2023, as(os) arquitetas(os) também envolvidas(os) nestas experiências, de forma a entender desde sua perspectiva a relação com as práticas espaciais, os desafios e aprendizados. Por conta de limitações daquele momento, as entrevistas com Tomaz Lotufo e Cássio Abuno (no caso do Espaço Cultural Jardim Damasceno); e Luis Octavio Faria e Silva, Julia Gouvêa e Nayane Alves (no caso do Levanta Zabelê) foram todas realizadas online - e as entrevistas com o mestre de obras e arquitetos de Una não puderam ser realizadas. Acreditando na potência que essas memórias carregam para um entendimento dos processos históricos, a narração dessas memórias vem como ferramenta de escrita da história, como lembra Krenak na sua fala durante o Ciclo Selvagem: História e memória são muito parecidas, até a gente acha que é a mesma coisa. A memória é eterna. (...) é preciso que as nossas memórias estejam encorpadas, temos que ser um corpo de memória, seria uma maneira da gente honrar essa experiência social plural que a gente compõe, gente de muitas culturas, muitas etnias, muitas memórias. (...) Ter memória mesmo que a materialidade das coisas desapareça (Krenak, 2023). Apesar de por vezes a materialidade das coisas desaparecer, “é uma história que jamais, ninguém no mundo vai conseguir apagar, do que isso aqui representa pra mim e pra muitos da comunidade” (Giba, 2018)9. Trecho do vídeo de financiamento coletivo da obra durante a imersão Escola Sem Muros em 2018, disponível em: https://benfeitoria.com/projeto/escolasemmuros. 9 introdução 49 > dimensões de análise < Como objeto de estudo da pesquisa, pretende-se recortar arquiteturas disparadoras de relações de envolvimento, em seus discursos e práticas espaciais (in situ), a partir das dimensões da paisagem, corpos e tempo. Da compreensão destes agenciamentos, imagina-se emergir reinvenções dos modos de estar-emcomum (Nancy, 1990), reconhecendo assim o estabelecimento de um campo discursivo e propositivo da arquitetura como envolvimento. O objetivo geral desta pesquisa é visibilizar as condições de possibilidade acerca dos modos de pensar e fazer situados da arquitetura no contexto brasileiro, mas também latino-americano, revelando contradições, tensões, desvios e porvires, apontando caminhos para a criação de outras narrativas e imaginários do desenvolvimento. Os objetivos específicos são: investigar três práticas espaciais de envolvimento, identificando as possíveis contribuições destas experiências para o campo da arquitetura e do projeto participativo; revelar os agenciamentos por meio dos quais as práticas se tornam possíveis de modo transescalar; e reconhecer sobre quais afetos, memórias e imagens, os encontros que sustentam as ideias no tempo e fazem com que elas possam circular. Espera-se contribuir para a revisão da própria prática de arquitetura ao sistematizar outras práticas espaciais de envolvimento. A presente pesquisa busca, em resumo, reconhecer e revelar as arquiteturas de envolvimento que apontam para modos críticos e criativos de imaginar e construir alternativas ao paradigma do desenvolvimento de forma coletiva e situada nas beiras dos Rios, no Brasil, na América Latina. Afinal, de que maneira práticas espaciais de envolvimento podem atuar como ferramenta de luta contra o progresso, como um modelo baseado em uma exterioridade que não existe, e um caminho em flecha, miragem tão viva no contexto brasileiro e latino-americano? Qual a ética, estética, técnica e política de uma arquitetura do envolvimento no seu contexto sociocultural e ecológico? Como práticas espaciais baseadas em processos situados participam, junto a movimentos sociais e políticos, da criação do envolvimento como um comum? De que forma estes podem contribuir para a emergência de um processo arquitetura como envolvimento 50 de transformação social territorializado e essencialmente coletivo, além da conscientização individual sobre a relação com o meio? Como lembram Jacques e Pereira (2018): Ao mostrar as descontinuidades, as rupturas, as contradições, as inflexões, as emergências e as sobrevivências de ideias (nos discursos e projetos), buscamos exercitar coletivamente uma outra maneira, mais complexa, de fazer história, que, além de ampliar fontes, acervos e temas, não fuja dos conflitos e embates (Jacques; Pereira, 2018, p. 16). Dessa forma, a presente pesquisa vem para reconhecer os corpos como lugar de memória, sistematizando os conhecimentos de diferentes percursos, em um esforço de reflexão na esperança de manter o campo da arquitetura vivo, pulsante, e aberto para experimentação e reinvenção constante. > modos de ler < A presente dissertação se organiza a partir de capítulos compostos por um caderno de textos, junto a relatos das experiências dos casos estudados. Tal diferença de formatos e linguagens se presta para compreender a complexidade de camadas colocadas em relação, do material ao discursivo, do específico e situado ao geral. A leitura proposta pode ser, assim, escolhida pelo leitor. A parte I: in situ recorda memórias de envolvimento com 3 experiências que poderiam ser vistas como “arquiteturas do envolvimento”, através de relatos destes encontros etnográficos e das histórias de aproximação com tais experiências. Do ponto de vista dos saberes e fazeres ali existentes, os casos escolhidos traduzem a noção de envolvimento para as práticas de arquitetura de diversas matrizes sócio-culturais. Na parte II: forças-moventes, proponho ideias-força da paisagem, corpos e tempo como dimensões e possibilidades de envolvimento, em relação e diálogo das mesmas nas experiências relatadas anteriormente. Nesta parte, me interessa investigar também como essas ideias se movem através de encontros e nebulosas do pensamento da arquitetura e do urbanismo no país e no continente. Por fim, a conclusão versa sobre a instauração de um campo de reflexões e aprendizagem acerca do que seriam modos que possibilitem reinventar o introdução 51 desenvolvimento em uma “efetiva abertura de discussão” (Negri, 2006). Seguimos, assim, um percurso de investigação do que pode ser a arquitetura, em uma construção comum junto às mulheres das três comunidades apresentadas e das(os) arquitetas(os) com elas envolvidas(os). Uma historiografia viva de corpos que transitam e se envolvem a partir de possibilidades de busca de outros modos de se desenvolver, reverberando em outros modos da prática junto a diversidade de comunidades e territórios brasileiros. parte I in situ Figura 26: espaço cultural jardim damasceno, rio bananal-canivete, brasilândia, são paulo Figura 27: levanta amotara zabelê, rio una, bahia Figura 28: cooperativa turiarte, rio arapiuns, anã, pará parte i: in situ 53 arquitetura como envolvimento 54 I.I memórias do envolvimento Construir e reconstruir comunidades é um passo fundamental. Além da relação com a natureza, temos que recuperar o espaço público desde cada um dos territórios, comunidades, onde nos encontramos. Não há receitas nem modelos, mas existem respostas em todos lugares do mundo. O bem viver exige relações de respeito, tolerância e confiança mútuas. Quando podemos começar? Agora! Onde? Aqui! (Acosta, 2019, p. 79). As três experiências in situ aqui relatadas são escolhidas em função de sua relevância, originalidade e diversidade. Apesar de contextos consideravelmente diferentes, o olhar das três situações gira em torno de intentos similares: tangibilizar dimensões do envolvimento. Os três espaços coletivos estão situados às margens de Rios, em bordas de áreas de preservação e proteção ambiental, em diferentes regiões do Brasil. Suas arquiteturas têm como base cosmogonias e culturas que escapam ao hegemônico e que parecem oferecer saberes e fazeres necessários para os tempos que vivemos. parte i: in situ 55 Figura 29: Noêmia Mendonça. Fonte: Rafael Duckur. Espaço Cultural Jardim Damasceno - margens do rio Bananal, em São Paulo Entender a arquitetura como o fio que costura a trama da vida, o tempo. O tempo da luta de um território por ser reconhecido é maior do que o tempo de reprodução de cada vida que passa por ali. O tempo é que vai costurar os acontecimentos, traz a união dos esforços dos corpos que influenciam este território. Como nós, enquanto corpos, podemos participar de uma estrutura histórica que é maior do que nós? A iniciativa do Espaço Cultural Jardim Damasceno provoca um olhar para o processo histórico, para os atores que o constituem, e os ritmos – encontros e afastamentos, aproximações e distanciamentos, sobreposições e tangenciamentos que atuam na composição dessa arquitetura. Figura 30: Linha do tempo Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Produção própria. arquitetura como envolvimento 56 Figura 31: Yakuy Tupinambá. Fonte: Mirrah da Silva. Levanta Amotara Zabelê - às margens do rio Una, na Bahia Encarar a arquitetura como construção viva, em permanente diálogo com diversos corpos que habitam o lugar: bioconstrução. A experiência do Levanta Amotara Zabelê nos convida a pensar os processos de desenho e construção da arquitetura a partir do encontro com os corpos que habitam o lugar, humanos e não humanos, promovendo uma prática mais situada e envolvida. Os corpos dos mestres tupinambás, do rio, do mar, dos caranguejos, dos ventos, do sol. O Zabelê relembra a qualquer um da presença e agência dos corpos, no tempo e espaço; e que a arquitetura é viva, relacional e interdependente. Figura 32: Linha do tempo Levanta Zabelê. Fonte: Produção própria. parte i: in situ 57 Figura 33: Maria Odila. Fonte: Produção própria Cooperativa Turiarte - às margens do rio Arapiuns, no Pará Encarar a arquitetura como relação íntima com a paisagem, natural e cultural, na criação de alianças a partir do encontro. Alianças humanas e não humanas, que reconhecem e valorizam quem pertence à terra. A experiência da Cooperativa Turiarte nos convida a compreender a arquitetura a partir de um ecossistema de criação de comunidade, cooperação e alianças. Os afetos que possibilitam trocas e a manifestação dos mesmos na matéria: a paisagem é incorporada naqueles que se abrem para estar com ela. A Turiarte remonta a criação de intimidade radical a partir do fazer manual e espiritual, de encontro com o outro, e criação de uma terceira margem do rio. Figura 34: Linha do tempo Cooperativa Turiarte. Fonte: Produção própria. memórias de envolvimento I.I.I Espaço Cultural Jardim Damasceno Figuras 35 e 36: Rio Bananal e Serra da Cantareira. Fonte: Victor Paris de Araújo. 58 59 parte i: in situ Jardim Damasceno, 2016 Há anos já que era convidada para participar do movimento de permacultura urbana – um coletivo de pessoas que atuam a partir da noção de cultura de permanência da vida, entendendo como os fluxos energéticos – das águas, do alimento, dos resíduos – se manifestam no ambiente, neste caso, urbano. No decorrer dos anos e do aprofundamento do campo saber-fazer, os ditos permacultores passaram a pensar essas tecnologias de forma mais acessível, nas bordas e periferias da cidade. Como arquiteta urbanista, já conhecia como a palma da minha mão os assentamentos “informais” – em especial a Paraisópolis, segunda maior favela de São Paulo. Na época, em 2016, possuía uma consciência social, no entanto, o movimento ambiental ainda me orbitava num raio mais distante da minha prática como arquiteta. É então que, após uma série de convites do mestre Tomaz Lotufo, participo em 2016 do curso de Design em Permacultura Urbana da Casa da Cidade, na Vila Madalena, mas cujas aulas práticas aconteciam em hortas urbanas das bordas da cidade. Nesta ocasião, o encontro se deu não só com a Permacultura, mas também com a Brasilândia e o Espaço Cultural Jardim Damasceno, espaço que havia acolhido o encontro na edição prévia a que eu participei. Era um fim de tarde quando encontrei Tomaz e Cássio, que estavam reunidos conversando sobre o projeto de reforma do Espaço Cultural que Cássio tinha feito, sob a mentoria de Tomaz. O projeto era de estruturas de bambu, que vestiam a estrutura existente do Galpāo, junto a uma parede de barreamento com pau-a-pique, usando o madeirite do fechamento do galpão como base. Criavase um mezanino no salão, com pé direito duplo, qualificando aquele espaço ambientalmente. Ou seja, o novo projeto propiciava que os ventos atravessassem o espaço, assim como os raios de sol entrassem. Os pórticos de bambu desciam até uma fundação em formato de catamarã, um barco para ter estabilidade caso chovesse e o rio Bananal transbordasse sua margem aprisionada pelo concreto da cidade. Me lembro de ficar surpresa com o cuidado do desenho ao pousar sob o existente, abraçando o galpão, seus usos, e podendo manter a estrutura rígida caso houvesse mais tragédias alarmadas pelos cientistas aterrorizados com a emergência das catástrofes climáticas. Por fim, o desenho abria um eixo de conexão e relação direta com o Parque Linear do Rio Bananal e a Serra da Cantareira ao fundo, os resquícios de mata Atlântica que ainda havia em São Paulo. Para mim, que sempre havia morado na cidade, desde nascida, eram raros os momentos de 60 arquitetura como envolvimento lembrança da existência da floresta na cidade. Cercada de um horizonte feito de prédios, por vezes lembrava que debaixo dos prédios tinha terra, e que junto à terra, tinha água, e que antes, junto à água, tinha vida manifesta em muitas outras formas e corpos para além do humano. Sabia da importância de encorpar esse entendimento, mas não sabia como – só quando cheguei no Espaço Cultural que apreendi. O próprio espaço, por sua situação e relação com o entorno, tornava esse imaginário encorporado. Me lembro de pisar no chão de terra batida – hoje já não sei se a terra batida era do campinho de futebol ou do próprio espaço, destinado às atividades culturais. Como nunca fui de jogar futebol de chinelo, talvez tenha sido nas rodas de ciranda descalça no espaço que percebi a matéria do Chão. Chegando lá, conheci a Noêmia. Educadora popular que impunha respeito: para quem as crianças suadas de tanto brincar no quintal vinham pedir um copo d’água, para quem as almas perdidas iam pedir trela ou permissão para usar o banheiro, ou quem pedia para os jovens ali fora falarem mais baixo que estava tendo reunião. O espaço é público, mas principalmente, comum: tem um dono, um guardião, uma pessoa que zela, dá o tom, estabelece o respeito na forma de relação. Esse cuidado se manifestava há muitas relações, no tempo. Noêmia explicou: ‘Na decada de 90, quando teve o deslizamento de terra, começamos a fazer assembleias dos moradores aqui. Começamos a ocupar. Quando a empresa que ganhou a concorrência, tinha que fazer as obras de contenção, mas era fundamental eles entenderem a história do local. Estamos do lado da Serra da Cantareira: os grileiros desmataram, a força imobiliária ocupou de forma inadequada, sem planejamento, e então ocupava as áreas em situação de risco. Como o solo é argiloso, podia ceder mesmo, aterrando as nascentes; você aterra, mas ela não morre, ela vai encontrar saída pra água fluir. Hoje tá saindo na casa das pessoas. Precisamos entender esse processo, pra gente pensar que Damasceno a gente quer. O passado, o presente, e trabalhar a expectativa para o futuro’. Não bastasse a complexidade que era aquele lugar, lembro que me impressionou o entendimento daquela mulher da realidade que ela ocupava, e das camadas de cuidado que ela atuava, que se manifestavam na sua capacidade de organização para transformar essa realidade. 61 parte i: in situ A educadora relatava: ‘Naquela época, a participação das mulheres era forte. Um grupo de mulheres trabalhando com costura tinha alugado uma garagem, mas aí ocuparam esse lugar pra sair do aluguel. As mulheres no movimento tinham que ter associação para ter uma identidade própria: a igreja tem limites de participação; elas queriam um local aberto para todo mundo; católica, crente, candomblé, de religião nenhuma. Começaram então a discutir esse espaço. Não poderia ter cerca, ter muro, as pessoas deveriam poder interagir, vir e conviver. Começamos a desenhar uma cerca viva, mas o pessoal defendia muito o muro. A cerca viva vai embelezar, fazer um vínculo com a Cantareira, picnic na mata, trilha, o rio. O vínculo não era só com a natureza, mas também com as pessoas: uma mistura de jovens, adultos, crianças; todo mundo sendo trabalhado no processo de envolvimento com a proposta de participação coletiva. Todo mundo crescendo na mesma vertente: da participação e consciência política. As famílias participam, um vai puxando o outro. Fazemos parcerias com grupos locais, pessoas com deficiência, crianças, adolescentes, idosos, curso com instituto federal para turismo de base comunitária (programas governamentais ou iniciativa privada), universidades, técnicos para ajudar a pensar como viabilizar e acionar esses programas, se não tiver, que seja criada uma lei para outros serviços essenciais.’ Logo fomos interrompidas por um grupo da Estratégia Saúde da Família que chegava com cerca de 12 idosos para tirar pressão, esperando todos chegarem para sair para uma caminhada no Parque. Não tinha UBS no bairro, e a UBS do bairro vizinho era distante e não supria a demanda, então os servidores da saúde usavam o espaço como ponto de apoio no Jardim Damasceno. Enquanto isso, as mulheres já chegavam para revezar quem ia cuidar das crianças naquele dia de férias escolares. Neste dia teria também uma oficina para fazer sabão, com aproveitamento do resto de óleo de cozinha e usando ervas aromáticas da horta. ‘Por conta da situação que a gente vive, precisamos buscar a geração de renda das mulheres’, disse Noêmia. No contexto da periferia da maior cidade da América Latina, os recursos são escassos, e a criatividade necessária. Os moradores da periferia criam todo dia um arquitetura como envolvimento 62 saber que emerge do fazer, a Sevirologia, dizia José Soró10, educador popular de um bairro vizinho da Brasilândia, que anos depois vim a apresentar para Noêmia durante o Seminário Arquitetura Para Autonomia. A arte de se virar com o que tem, transformar resíduo em recurso: isso Noêmia também muito me ensinou. O espaço cultural sempre fez muito com pouco: atividades culturais, focadas nos direitos humanos (crianças e adolescentes), comunicação e mídias (podcast), demandas diversas da comunidade (como o conselho tutelar), saúde da família, cuidado de quem cuida, oficinas (de culinária, reaproveitamento do óleo para produzir sabonete), espiral de ervas medicinais e aromáticas… Com a parceria com o coletivo de permacultura, foram implantadas soluções baseadas na natureza, buscando eficiência energética. No entanto, foi em 2021, anos mais tarde, que conseguimos juntos ampliar a horta, criar a feira quinzenal de alimentos orgânicos que compravam alimentos de hortas da região, e reformar a cozinha. As pessoas, que estavam desempregadas e sem renda por conta da pandemia, criaram um ecossistema virtuoso, de trocas e produção de valor a partir do que se tinha à mão - a partir de todo o ciclo do alimento, desde o plantio, o preparo, o consumo, a compostagem dos resíduos orgânicos para gerar adubo e plantar de novo. Trabalhar com a natureza, o verde, o alimento, uniu essas mulheres, muitas delas migrantes, que vieram de Pernambuco, Pará, Maranhão, com memórias da roça, do quintal dos pais, das frutas que eram colhidas no pé, do banho de rio. Mulheres que chegam na cidade grande, na periferia, na Brasil-lândia, e se veem cortadas das suas raízes da Silva (sobrenome comumente atribuido para aqueles que iam para a Selva, como chamavam o interior do Brasil na chegada dos imigrantes). Como se aquilo que viveram antes, o envolvimento com a Terra, as Plantas, os Pássaros, os Rios, não tivesse valor algum ali. Como se na cidade, elas fossem mais uma perdida na multidão. Mas, nos últimos anos, foi possível resgatar essas memórias em suspensão, que haviam se perdido no tempo das migrações. Em 2023, na ocasião de um reencontro no contexto desta pesquisa, Noêmia compartilhou que lideranças e moradores da região vêm se encontrando no último Cf. Moreira, J; Veloso, L. ‘Um novo mundo é possível’: morre Soró, líder da Comunidade Quilombaque de Perus. Mural, São Paulo, 31 out. 2019. Disponível em https://www.agenciamural. org.br/um-novo-mundo-e-possivel-morre-soro-lider-da-comunidade-quilombaque-de-perus/ Acesso em: julho 2023. 10 63 parte i: in situ ano para sonhar um parque agrário no entorno do Espaço Cultural, na bacia do Cabuçu de Baixo, com a intenção de produzir alimento, cuidar da biodiversidade e gerar renda nas bordas da cidade e da floresta. Verdadeiras agentes ambientais, corpos que atuam na preservação dessa paisagem natural e cultural que habita as bordas da Cantareira e os interiores do Brasil. 64 memórias de envolvimento I.I.II Levanta Amotara Zabelê Figuras 37 e 38: Yakuy e Joza Tupinambá e Lagoa do Mabaço. Fonte: Produção própria e Neto Carriço. 65 parte i: in situ Lagoa do Mabaço, Una, 2016 Fui a Salvador encontrar Clara, arquiteta, pesquisadora do corpo em movimento, que conheci em Lisboa durante o encontro Projetar com a Comunidade. Tínhamos desenhado uma viagem para explorar o sul da Bahia, encontrar os Tupinambás, viver a Natureza, o Mangue, a Praia. Saímos juntas de Salvador com a balsa para Itaparica, com uma mochila, uma sacola de pano, um chapéu de palha. Era fevereiro, ainda verão. Iríamos a princípio para Serra Grande, e depois para Olivença dos Tupinambá. Já conhecia Casé Angatu, irmão de Binho, das andanças do Bixiga afro-indígena das terras de São Paulo. Mas Binho, mais quieto e na dele, era Clara Pássaro que conhecia. Chegamos em Olivença de van, deixamos as coisas na casa do casal que nos hospedava, e logo saímos ao encontro de Binho. A casa tinha cheiro de peixe seco, junto ao ar úmido e quente, por vezes atravessado pela Ventania da brisa do mar. De biquíni e sacola de pano, fomos à praia. Encontramos Binho em meio ao paliteiro de coqueiros e aos chapéus de sol que trazem uma verticalidade para as praias compridas da Bahia. Ele usava um óculos de sol e tinha longos cabelos, que protegiam sua nuca do corpo exposto, usava uma bermuda de surf, e carregava com ele uma sacola térmica, com Água de beber, conservada do calor. Nós éramos outros corpos ainda que marcavam essa verticalidade. Em movimento, deixávamos os rastros da gravidade inscritos de forma frágil na areia fina e branca, mas que logo seriam bagunçados pelo movimento do corpo d’água do Mar (salgada e gelada) ou do Vento (seco e cortante). A caminhada foi longa e silenciosa, assim como a praia, extensa, debaixo da verticalidade do sol a pino, inscrevendo sobre os corpos sua marca. Paralelos à linha do Mar, por vezes encontrávamos Pedras no caminho, ou Rios. Ao atravessálos, a água doce acariciava a pele com sua temperatura mais morna e repleta de matéria orgânica. A Matéria se deposita nas bordas do corpo do Rio, inscrevendo sua memória de forma mais permanente na areia da Praia. Foi aí que encontrei um rastro de Matéria de vida que me recordou do Pará: o encontro com outro corpo, o arquitetura como envolvimento 66 rio Arapiuns. Depois de horas a fio caminhando, pousamos debaixo de uma cobertura de tecido para descansar, e aí que vi o Vento. Corpo de movimento intenso, ritmo insistente, que quebra as linhas fixas do Horizonte do Mar e da verticalidade dos Coqueiros, materializado no pano de algodão esvoaçando e criando um chapéu, um filtro, uma trama atrapalhando os Raios do Sol. Depois de um tempo de des-cansar, seguimos a caminhada até a Aldeia. O ambiente foi se transformando, ficando mais adensado pela presença de árvores e de casas de madeira. Era meio para o fim do dia já, e Binho nos levou até a casa de Joza e Yakuy, na subida de um Morro de Restinga. A Casa não era só uma edificação, mas se espalhava pelo platô: o varal saía da casa e alcançava uma árvore próxima; a mesa ficava debaixo da mangueira; andando um pouco mais, a rede pendurada na sombra, ao relento; os restos da fogueira do dia anterior e os bancos ao redor indicavam o lugar de encontro. Nos sentamos ao redor da mesa na varanda da casa, por entre panelas e jarros de metal, e garrafas térmicas com café recém-feito. E lá ficamos por horas a fio, conversando com Yakuy. Yakuy nos contou da dificuldade do machismo enraizado na cultura, da falta de perspectiva e de futuro. Nos contou do suicídio comum entre os indígenas tupinambás jovens, e da perda das tradições dos mais velhos. Yakuy nos contou do histórico de colonização que já perpassa 523 anos, e da necessidade de demarcação do território diante do Estado brasileiro, sob cujas normas estão sujeitos - ainda mais considerando projetos como o do marco temporal, que revoga todo e qualquer direito de ocupação antes do ano constitucional. Mas Yakuy relembrou: essa não é nossa relação com o território. A colonização, que aconteceu em 1500 e que continua com uma imposição de direitos civis sob seu modo de vida, deixou marcas profundas nestes corpos, mas sua percepção sensorial do mundo de certa forma insiste em resistir. ‘Vejo que o útero se inicia a partir do momento que tenho uma memória que consigo lembrar dela e conviver com ela, começa na minha infância com os ensinamentos que eu adquiri através dos meus mais velhos. Está relacionado à cultura e educação. Que para nós se dá na oralidade e na forma de entender o mundo e como você se 67 parte i: in situ sente pertencente ao que está à sua volta. Essa proposta nasce da percepção de mundo, da escuta e do enxergar. Começa de dentro pra fora. A realidade externa que se apresenta interage com nosso eu e vamos construindo nossa história. Observando o que você acredita que faz parte de você e o que poderia ser de um jeito ou de outro. Quando meu povo se levanta, e adquiri o reconhecimento oficial (2002), as retomadas, a portaria declaratória (as últimas fases de demarcação), quando isso acontece e eu me envolvo como militante do movimento em 2003, eu comecei a fazer um mergulho, uma etnogênese. Quando você se aprofunda numa história que infelizmente é cheia de violências, isso vai dando condição de um despertar para fazer uma leitura do que é esse ser: quem sou eu, vocês, nós, quem é a espécie humana. Fazendo essas leituras e vivenciando momentos de conflito no território {não é somente aqui, não é somente no Brasil}, isso expande seu nível de consciência. Você vai observando, e vendo as tentativas que são feitas para manter um equilíbrio nas relações, para que não haja sofrimento, tudo o que afeta nossos corpos. Tem alguns nós que precisam ser desatados. Como solucionar esse desequilíbrio e encontrar o equilíbrio que buscamos?’ trouxe Yakuy Tupinambá aquela noite. Fomos juntos para a Lagoa do Mabaço, o local onde seria a implantação da Universidade Intercultural de Saberes Amotara Zabelê. Percebi de forma nítida a potência daquela paisagem. A primeira parada, depois da caminhada pela estrada, seguida de um caminho de areia mais fechado pela Mata de Restinga, foi a Lagoa. Completamente transparente, azulada, morna, a Lagoa foi como um abraço. Clara foi a primeira a mergulhar, e logo a segui. Nadei a borda inteira da Lagoa, e depois, com o corpo cansado, boiava como que em uma sessão de watsu, uma terapia na água morna que te recorda da vivência no útero materno. Não à toa Yakuy chama este lugar de útero. ‘Formamos um coletivo, Levanta Zabelê. Quando começamos, sentimos necessidade de ter um espaço, de construir um espaço. Atuamos com três princípios: troca de saberes, retorno à mãe terra, e a descolonização para libertar as mentes dos processos históricos relacionados à violência (a colonização é um deles). Tem toda a questão cultural Tupinambá, que pede uma restituição: é algo que nós perdemos; nossa arquitetura tradicional, sagrada. Buscamos uma arquitetura arquitetura como envolvimento 68 integrada à natureza, mas que contribua para a visibilização do nosso povo. Como trazer algo que contemple o fortalecimento cultural de um povo, para a arquitetura, para os construtores, que respeite a natureza e as espécies que estão em volta? Sinto que precisamos trazer essa diversidade para um universo: o que forma um uni-verso é a diversidade, unida nesse universo. A cultura distorce tudo isso e começa a individualizar. O entendimento do indivíduo no coletivo se perde. Então as estratégias do projeto são de fazer uma travessia para uma transformação. Você está com um corpo todo cronometrado, e o útero convida para um outro tempo, que não é esse. Ele não vem pra bater de frente, mas para que esses indivíduos que formam esse coletivo possam trazer ao mundo algo que possa contribuir para um alinhamento. É preciso envolver a todos, pois sem esse envolvimento e entrelaçamento, não vamos conseguir dissolver as violências ฀ se não conseguirmos interagir com esse todo. A proposta é ousada e desafiadora. Como tivéssemos [sic] que renascer. É uma escola de aprendizagem viva, da prática, mas também de pesquisa e inovação: uma escola filosófica’, disse Yakuy quando nos encontramos ao sair da Lagoa. Depois de silenciar o tempo e desfrutar do encontro com este corpo d’água e com esta verdadeira mestra, seguimos para onde havia um resquício de ocupação da sua mãe, que antes habitava este lugar. Uma cabana de madeira e cobertura de palha, escura, com um avarandado, que separavam os cômodos mais internos e privados do ambiente, externo. Transitando por entre o interno e externo. Nessa costura, deixei minha marca na areia junto àquelas dos caranguejos que habitam por ali, no caminho para o porto que dava para o corpo d’água salobra de Mangue. Anos se passaram, e ali voltamos, dessa vez com Julia, arquiteta também da Escola da Cidade que morava em Serra Grande, professora da Universidade Federal do Sul da Bahia. Fomos de carro do Pé de Serra até Una, e paramos no caminho para comprar gasolina. Chegamos lá, Yakuy e Joza nos receberam com uma moqueca de peixe fervendo na panela de barro preta. Depois de caminhar pelo quintal, encontrar galinhas, patos, insetos, cocos espalhados por ai, Joza abriu um coco e me deu de comer Nuvem, para abrir o apetite. Logo sentamos para almoçar no avarandado da Cabana de madeira, o Vento agraciava a pele trazendo o frescor para compensar o calor da moqueca que se produzia em nós. 69 parte i: in situ A sesta foi uma dança com o Vento, caminhando pela terra areada da Restinga, em que fomos parar no centro de força do útero: a parte resguardada do corpo d’água, que permanece mais seca mesmo nas Chuvas ou na Maré Cheia. É de lá que se irradiariam as Malocas, que vão abrigar as atividades da proposta. Pude ver toda a arquitetura sagrada daquele espaço se construindo na medida que Yakuy ia narrando. Ver no sentido da materialização de algo no imaginário. ‘Isso se dá através da nossa cosmopercepção (para o indigena não é cosmovisão, mas percepção, pois somos seres sencientes, conseguimos enxergar, escutar, usar os sentidos). Fui treinada desde criança a usar todos os sentidos. Esses são elementos importantes para você sentir a energia que acontece num momento. Quando encontro com uma pessoa que começamos a falar: você se apresena, olha, sente a energia, e quando vai avançando, vai sentindo as reações da pessoa, o olhar, o gestual. A pessoa sendo envolvida, recebendo um chamado.’ Anos depois Yakuy vai me lembrar do impacto que este encontro teve em mim, na Julia, e em diversos caminhos de muitas outras pessoas que por ali passaram. Mais tarde, ela também revelou um entendimento dos processos de envolvimento destes corpos: ‘O útero tem ensinado, o útero fisico, de cada mulher [sic]. Eu; minha bisavó; eu lembro do período que gestei outro ser aqui dentro… Há momentos que o útero expele, às vezes nasce, mas logo depois faz a passagem. Tem que ter uma compreensão. Tem pessoas que escutam, dão uma mergulhada, trazem isso pra si; tem umas que fazem o mergulho e outras não. Vou observando e isso me dá condição de adentrar qualquer espaço. Não tenho dificuldade de levar a proposta dele pra nenhuma pessoa. (...) O útero não é seu, nem meu, é do universo. É seu na hora que você mergulha. O útero pode ser uma nova pedagogia: como construir um espaço para que ali possa acontecer uma aprendizagem viva? E fazer com que os conhecimentos racionais dialoguem com a natureza. Não é a espécie humana o centro das atenções. (...) Acordar as manhãs, ver o sol brilhando e ouvir o canto dos pássaros, do barulho do vento nas folhas, isso que importa. (...) Interagir com isso aqui reforça e encoraja para que possamos acreditar que ainda é possível preservar as formas de vida. Quando você se relaciona com isso, entende porque a arquitetura precisa fazer palafitas, para respeitar os répteis; quando fazer uma ponte suspensa para não pisar no berçário do crustáceo. E partilhar isso para as pessoas que virão, e os zabelês falarem de que em qualquer parte do mundo pode [sic] criar um mecanismo para que possa se relacionar de forma harmoniosa (com a natureza).’ 70 memórias de envolvimento I.I.III Cooperativa Turiarte Figura 39 e 40: Rio Arapiuns e Imagem de Satélite. Fonte: Produção própria e Google Maps. 71 parte i: in situ Anã, Arapiuns, dezembro de 2018 Cheguei a Santarém por ocasião do trabalho que realizava na época: O Futuro da Minha Cidade. Já vinha me orientando para um horizonte de pensar e viver não somente a cidade, mas outros territórios, e ousar reinventar o que chamamos de urbano. Nessa busca, através do mapeamento e das articulações com iniciativas de inovação socioambientais locais, encontrei o projeto Saúde e Alegria e tive o privilégio de, através deles, chegar nas comunidades ribeirinhas do rio Arapiuns e conhecer a Associação de Anã e a Cooperativa Turiarte. Conheci a sede da Cooperativa Turiarte em Santarém. Em meio ao clima quente e úmido da Amazônia, fui caminhando e cheguei transpirando na sede, mas lá fui recebida com um copo de água fresca, em um átrio com árvores frondosas e uma sombra generosa. Um oásis, criando um microclima da Floresta, dentro da Selva de Pedra que é Santarém. Lembro que me impressionou as calçadas: palco onde as pessoas tomavam tacacá no fim da tarde, e onde durante as chuvas a memória da paisagem se revelava. As valas profundas que separaram a calçada da rua tentavam estabelecer um sistema de drenagem urbana, sem sucesso. Na época das chuvas, mudavam as vogais: antes de ser Rua, ali era Rio. No caminho para a sede da Cooperativa, me perguntava: jardins filtrantes? Jardins de chuva? Tantas tecnologias que poderiam trazer a Floresta de volta pra Cidade… De volta à sede, a biodiversidade humana e não humana daquele micro-oásis me encantava: cantos de pássaros e sotaques diferentes dos quais eu estava habituada me situavam ali, em um pedacinho da Amazônia dentro da cidade amazônica. As mulheres ribeirinhas do Arapiuns me mostravam os artesanatos que faziam de palha de Tucumã, e fiquei completamente absorvida pelas mandalas e curiosa para saber mais do processo de feitura, do contexto de onde vinham essas peças, e como essas relações com essa paisagem tão particular se davam. Me recordava de ter visto esses desenhos em outros lugares: no aeroporto, nas lojas de souvenir, descontextualizados de qualquer vínculo com pessoas ou com o lugar. Que paisagem era essa de onde vinham esses desenhos? Como era o Tucumã? Uma palmeira? Como era feita a tintura natural – a partir de quais matérias-primas (irmãs)? Estava sedenta de conhecer e incorporar essa tessitura de materiais, saberes, fazeres… arquitetura como envolvimento 72 Resolvi então mergulhar nessa experência pelo tempo que podia. Saímos do porto de Santarém, de barco, cheirando a óleo queimado. Entre coletes salva-vidas, toldos e redes penduradas, sacolas plásticas nomeadas com encomendas da cidade grande para os moradores das beiras do Rio Arapiuns, fiquei ali, sentada, esperando o tempo passar e todos chegarem para que pudéssemos partir. O meio de transporte não era somente de humanos, mas também mercadorias, e notícias. Logo saímos do porto - do barulho, do excesso de fluxos vários, do lixo, dos tratores New Holland que traziam o desenvolvimento com a reforma feita a partir de estruturas de concreto armado, montes de terra e areia sendo movidos a bel-prazer do desejo de um humano com sua prótese biônica. Nos deparamos com o silêncio do horizonte do Rio, das massas verdes das Matas, das Praias de Rio, do Mangue, das Raízes aéreas que desenham formas complexas, mas simultaneamente simples. Formas rebuscadas que, quando refletidas pelas águas, compõem um arranjo simétrico e integrado. Fecham ciclos: ‘o que está no alto é como o que está embaixo; o que está embaixo é como o que está no alto.’ Depois de algumas horas de boreste na rede, no balanço do Rio, chegamos a Urucureá. Piso de terra batida, casa de madeira com teto de palha, redes amarradas em todo e qualquer elemento vertical, por todo canto. Na minha chegada, fui recebida por Rosângela, que me acolheu carinhosamente, e abriu a sala de sua casa para me hospedar. Deixei as coisas por ali e fomos caminhar pelo quintal. Terra-Areia a perder de vista. Tucumã, araçá, cúrcuma, urucum, genipapo. Fui apreendendo as palavras na medida que apreendia a paisagem e suas diferenciações. Pilão, fogueira, tijolo, pia, banco, avarandado. Abrigo, limite, trama, furinhos por onde a luz vazava. Barcos, taboa, canoa, céu. Parecia haver uma profunda intimidade entre Rosângela e os elementos da paisagem, que neste encontro, produziam uma terceira margem. O que se via ali era o acontecimento em potência. Por vezes se encontravam vestígios destes rituais. Me sentia completamente honrada de estar adentrando essa intimidade, e tendo os olhos treinados para ver. Aqueles objetos que antes havia visto, agora revelavam a mim outra trama de 73 parte i: in situ afetos e sentidos. Depois da caminhada, findava o dia. Jantamos à luz de velas, com as crianças, jambu, arroz e feijão. Depois de comer, Rosângela me mostrou como tecer o Tucumã: respeitar o sentido da fibra, realizar o corte seco e preciso das fitas com a faca, compreender os movimentos das dobras e o ritmo do ir e vir. Tecer com, entremear. Queria eu ter ainda viva a memória no corpo dessa tessitura. Mas relatando aqui me lembro que a memória deste encontro permanece viva. No dia seguinte, ao acordar, fomos para Anã de barco pelo rio Arapiuns. Corpo largo, ondas suaves, repleto de mata ciliar, bancos e praias de areia com árvores baixas de troncos contorcidos, como se deitadas pela força do Vento. Foi um longo caminho, percorrido em diferentes modais e velocidades. Depois do barco, peguei um mototáxi por entre a Mata fechada, guiada pelo desenho das marcas dos pneus no chão, por entre a Areia, a Terra e a Serrapilheira. Finalmente chegamos a Anã, onde conheci Maria Odila. Caminhamos pela vila: o restaurante escola, a oficina para feitura do Beiju e feitura de ração para o Tambaqui, o espaço de convivência para o Baile Arrochado, a Igreja de Nossa Senhora de Fátima, o mirante avarandado na praia do Rio Arapiuns, o redário onde viria a dormir. Fechamentos de palha de Tucumã no telhado e na fachada, pilares de Madeira, chão de Areia batida, e caminhos de Areia fina e branca mostrando as linhas do desejo em meio ao verde ora do Quintal e ora da Floresta, que se confundiam. Maria me contava que no começo, em 1958, a comunidade foi chamada de Piquiá. Frei Marco, um padre americano que começou a relação com as três famílias que ali viviam, deu a sugestão que trocasse de nome, porque o piquiazeiro ia morrer. Perguntou então qual era o nome do dono do Lago. Maria então me disse: ‘A nossa região amazônica é cheia de encantos e mitos: cada lago e cada cabeceira tem um dono. A partir disso pensaram em Muanã, ser encantado em tupi-guarani. Em 86, quando foi registrar a associação, foi escrito Anã, que significa encanto’. Maria morou até 1971 em Anã, partiu para São Paulo, e depois em 1998 voltou para a comunidade – estando Maria e Anã diferentes neste retorno. Ao retornar, Maria encontrou um grupo de mulheres organizado, cuidando uma da outra, fazendo remédios caseiros, e cuidando da floresta, sua casa, com a conquista do arquitetura como envolvimento 74 estabelecimento de uma Reserva Extrativista na Unidade de Conservação Tapajós Arapiuns. De 17 famílias em 1971, hoje são 86 famílias em Anã, que têm a posse da terra, o direito de trabalhar na terra, 2hec de roçado pra fazer plantio e suprir a necessidade, além da área de proteção ambiental com manejo sustentável. A comunidade ribeirinha colabora em projetos de turismo de base comunitária, trabalhando na produção de farinha de tapioca, beiju, alimentos frescos, galinha caipira no quintal, tambaqui, artesanato… ‘Nós acompanhamos o tempo: criando, se desenvolvendo e lutando para manter o nosso conhecimento, porque a aculturação vem em peso. Quando a gente trabalha com outros segmentos da sociedade, precisamos prestar atenção em nós mesmos. Temos que ter um cuidado grande para que a aculturação não mate a gente, caboclos ribeirinhos da Amazônia’, disse Maria enquanto caminhávamos pela vila e ela me mostrava a paisagem que a constituía. Experiências como a que eu vivia junto a elas, de turismo de base comunitária, eram importantes no sentido de criar alianças para viabilizar os desejos da comunidade, dentre eles o refeitório onde comi, a maloca onde pendurei a rede pra dormir. Com diversos apoiadores do Brasil e de fora, em 2012 foi construído todo o complexo para receber turistas em Anã, com mestres de obra da própria comunidade, um arquiteto gaúcho, e financiamento alemão. Mas não bastava construir o espaço. Maria contava: ‘A comunidade estava com tudo pronto, mas não estava legalizado. Em 2015 registramos a hospedaria de Anã no Ministério do Turismo. A Rosângela regia todo o artesanato, e estava com problema como eu: que [sic] a gente estava recebendo o dinheiro na nossa conta, e como tinha que pagar os impostos, a gente recebia menos do que devia. As associações não podiam gerenciar o artesanato pra vender porque são sem fins lucrativos. Depois de conversar pra legalizar, criamos a Cooperativa, legalizando o turismo e o artesanato, e trabalhando com a conscientização da comunidade sobre o que é cooperativismo, como funciona. Eu conhecia essa palavra mas não sabia o que era: li apostilas, foi um trabalho de conscientização, um trabalho árduo.’ Me lembro de ter perguntado se eles recebiam muitos turistas lá, e se essa atividade gerava a renda necessária para a comunidade. Maria concluiu: ‘A gente não tem muita geração de renda ainda. A hora que precisa, tem dinheiro, mas o que é importante mesmo é a segurança alimentar. A hora que precisa de um Peixe, 75 parte i: in situ de uma comida, é só descer pro rio e o almoço tá garantido. A princípio o foco não era o dinheiro. Mas sempre ganhamos o suficiente e garantimos a alimentação.’ Foi importante ouvir dela a perspectiva de que por vezes o que precisamos é o suficiente para o bem viver, e que o dinheiro é o meio para conseguir isso, mas nem sempre o único meio. A perspectiva de que com seu tempo e esforço, poderia se ter almoço ao alcance das mãos. Não que fosse fácil, mas era possível. Maria continuou: ‘Na preservação da nossa raiz, a gente tem cuidado. Tem um projeto que chama O que a comunidade sabe e que a escola não ensina, que busca ensinar jovens e adolescentes sobre alimentação, coisa antiga… Quanto ao meio ambiente também, nós temos consciência que precisamos dele, e ele é capaz de nos dar o que precisamos: temos uma casa para morar, uma terra para cultivar, temos consciência do que é a vivência na floresta’. Na ocasião do reencontro com Maria no contexto da pesquisa, perguntei como eles haviam passado estes últimos anos, e ela disse: ‘A dificuldade mesmo foi durante a pandemia. 1 ano e 6 meses sem receber ninguém, todo mundo adoeceu. 2 ou 3 meses se passaram, eu me apavorei. A gente não ganha salário por trabalhar com turismo, a gente recebe por diárias, que contribuem para quem trabalha ali dentro, para a família que está trabalhando. E a conscientização para criar esse espaço todo? Deu trabalho’. arquitetura como envolvimento 76 I.II saberes e fazeres para o agora As entrevistas e observações feitas em cada vivência revelaram diferentes dimensões que merecem atenção e nem sempre são levadas em consideração pela pregnância de um modelo de formação em arquitetura e urbanismo funcionalista e que não foi abandonado. Ao contrário: não só cresceu como privilegia a adoção de teorias, aplicando-as de modo acrítico e pouco respeitoso tanto às diferenças culturais quanto às formas coletivas – comunitárias ou sociais em um sentido mais amplo – de co-instituírem seus lugares de vida. Dentre essas dimensões, pode-se elencar algumas do campo estrito do ofício de arquiteto e urbanista e ainda outras mais gerais, como: 1) as diferentes escalas arquitetônicas tensionam os limites do projeto, provocando as(os) arquitetas(os) a reconhecerem a escala a partir das práticas culturais cotidianas do corpo em suas interações com outros dispositivos, objetos e corpos de ativação específicos segundo cada caso e situação. 2) as tipologias, como conjunto de edifícios, edifício fechado no lote, edifício envolto de espaços verdes livres, espaço aberto. 3) as áreas de atuação e atividades ao redor dos temas de: habitação; preservação ambiental, e salvaguarda do patrimônio cultural; manejo agroecológico; artesanato, fazeres manuais e criativos; consciência corporal, terapias e cuidado; economia solidária, comércio justo e cooperativismo; educação popular, transmissão de saberes tradicionais e ancestrais (o papel pedagógico e de produção coletiva de conhecimento); manifestações e expressões culturais; e turismo de base comunitária. 4) as formas de colaboração da comunidade com a experiência, que podem envolver transferência de recursos, voluntariado e doação de tempo e recursos, troca, uso gratuito. parte i: in situ 77 5) as alianças necessárias para viabilizar a existência da iniciativa, como parcerias com atores políticos, poder público, assessorias técnicas, instituições internacionais, organizações do terceiro setor, movimentos sociais, empresas, mídias, artistas e influenciadores. 6) as nebulosas das quais fazem parte ou com as quais interagem, os atores históricos com os quais se inspiram e dialogam – além do contexto histórico que dá contorno à situação na qual se insere, quando e como começa, quais as forças que a tensionam e limitam, quais as forças que movem. 7) os desafios e momentos de desânimo e cansaço, de falta de energia para seguir a luta e continuar re-existindo apesar das adversidades. 8) a situação legal - se é irregular e está sob ameaça, se é formalizado e regularizado de alguma forma, sendo pública ou privada. 9) qual o impacto percebido do que acontece ali e qual a força do que é feito ali. 10) os desdobramentos da iniciativa, de que forma tem se desenvolvido e ressoado no mundo – seja em termos da política institucional ou da política praticada no cotidiano. Reconhecendo as diferentes experiências, é possível reconhecer a atenção às diferentes escalas de projeto (1) que se revelam nas práticas culturais cotidianas do corpo em suas interações com o meio. Um exemplo evidente dessa dimensão é a questão do artesanato, no caso da Cooperativa Turiarte, que atua com um desenho da paisagem a partir da relação com as diferentes espécies de plantas que são cultivadas e servem para a tintura da palha do tucumã. No caso das tipologias (2), os três casos são de edifícios envoltos em espaços verdes livres e abertos, demonstrando uma relação de exteriorização e envolvimento com o entorno, revelando um zoneamento baseado na relação diretamente proporcional de quanto maior a frequência de uso dos espaços, maior é sua proximidade do edifício. Um exemplo é a proximidade da horta da cozinha do Espaço Cultural Jardim Damasceno, que tem frequência tanto para rega quanto para colheita diária da comunidade. arquitetura como envolvimento 78 As áreas de atuação e atividades praticadas nos espaços estudados (3) são multidimensionais, provendo uma série de benefícios para a população que frequenta e que habita o entorno do espaço estudado. É importante perceber que as três iniciativas possuem uma relação intrínseca com processos de conscientização, refletindo no seu compromisso com a produção coletiva de conhecimento, seja em espaços informais ou formais de aprendizado, como as universidades. As formas de colaboração com as experiências (4) são das mais diversas, envolvendo vínculos e contribuições diferentes por parte de públicos diferentes. Nas três situações, por se tratarem de territórios vulnerabilizados, a relação com o entorno é pautada por uma economia solidária, comunitária e do cuidado. Um ponto central no caso das três experiências é a necessidade de criação de alianças para viabilizar a existência da iniciativa (5). Muitas vezes os territórios estão em disputa e vivem situações legais frágeis (8), uma vez que não são regularizados, sofrendo com tentativas de desapropriação – como foi o caso do Espaço Cultural Jardim Damasceno, que durante essa pesquisa, em outubro de 2023 sofreu ameaças por parte da Prefeitura de São Paulo com uma ordem de despejo11. Parcerias com assessorias técnicas, organizações do terceiro setor e mídias são atores fundamentais para conseguir visibilidade e peso político em disputas como essa. Mas é em momentos como este que emerge a necessidade de não somente mensurar mas comunicar qual o impacto e a força do que acontece ali (9). Essas relações políticas, de aliança e reciprocidade, se agudizam em momentos de crise, mas existem para além deles. Quando mapeamos as nebulosas (6) das quais as mulheres como Noêmia, Yakuy e Maria Odila fazem parte ou com as quais interagem, com quem se inspiram e dialogam, se revela uma teia de apoio mútuo e de vínculos delicados porém muito necessários no dia a dia das experiências. No entanto, ao mapear essas nebulosas, se revelam não só quais as forças que movem essas mulheres e iniciativas, mas também as disputas, quais as forças que a tensionam e limitam sua potência e ação no mundo, produzindo desafios e momentos de desânimo e cansaço (7) que por vezes geram hiatos no processo histórico de cada experiência. Apesar de reconhecer a importância Saiba mais aqui na campanha que organizamos através do Instituto A Cidade Precisa de Você, que estou como diretora-presidente, para pressionar pela permanência do Espaço Cultural Jardim Damasceno: https://www.espacoculturaljddamascenofica.minhasampa.org.br/ 11 parte i: in situ 79 dessas mulheres para a vida destes espaços, é importante lembrar que se tratam de iniciativas coletivas. Deste modo e também por isso, por serem vivas, possuem picos e vales – que se manifestam em ausências mas também em ressonâncias muito além do visível. Os desdobramentos das experiências que acontecem em cada um destes territórios (10) tem dimensões imprevisíveis e muitas vezes incomensuráveis. Porém, se percebe nas memórias e nas trocas com aqueles envolvidos nas atividades o impacto e importância destes espaços em suas vidas. Seja em termos de construção de identidades e pertencimento, ou da troca de experiências e aprendizados com outras iniciativas em outros contextos que passam por situações e desafios semelhantes, ou ainda como insumos para a criação de políticas públicas que possam ser replicadas, cada um destes territórios e arquiteturas afeta os corpos que ali passaram, bem como é afetado e transformado por estas presenças e percursos. As três experiências expostas até aqui tensionam os saberes e fazeres arquitetônicos, provocando que a compreensão das relações espaciais junto às complexas dimensões sociais, culturais, econômicas e políticas passem a ser levadas em conta, sobretudo, ao se realizar uma arquitetura como envolvimento no contexto brasileiro contemporâneo. arquitetura como envolvimento Espaço Cultural Jardim Damasceno Figuras 41 a 46: Atividades de regeneração urbana com o Instituto A Cidade Precisa de Você no Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Clayton João, 2022. 80 81 parte i: in situ Figuras 47 a 49: 4º Festival A Cidade Precisa de Você no Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Victor Paris, 2022. 82 Figuras 50 a 52: Atividades do projeto ECOCIDADE com A Cidade Precisa de Você e Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Victor Paris, 2022. Pág 83: Figuras 53 a 56: Vivências Escola Sem Muros no Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Raffaela Arcuschin, 2017. Pág 83: Figuras 57 a 59: Atividades com o grupo de mulheres do Espaço Cultural Jardim Damasceno: Perifa Alimenta. Fonte: Tata Barreto, 2023. parte i: in situ 83 84 Figuras 60 a 62: Vivências Escola Sem Muros no Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Raffaela Arcuschin, 2017. parte i: in situ 85 Levanta Amotara Zabelê Figura 63: Yakuy e Joza Tupinambá no braço de Rio da Reserva Biológica de Una. Fonte: Produção própria, 2016 Figura 64 e 65: Yakuy e Joza Tupinambá e a Lagoa do Mabaça Sul. Fonte: Produção própria, 2016 arquitetura como envolvimento 86 Figuras 66 a 68: Yakuy Tupinambá no manguezal da Reserva Biológica de Una. Fonte: Júlia Auler, 2016 parte i: in situ 87 Figura 69: Yakuy Tupinambá no manguezal da Reserva Biológica de Una. Fonte: Produção própria, 2016 arquitetura como envolvimento Figuras 70 e 71: Construções vernaculares na Aldeia Zabelê. Fonte: Produção própria, 2019. 88 89 parte i: in situ Figura 72: Paisagem de dendezeiros na Aldeia Zabelê. Fonte: Produção própria, 2016. Figuras 73 a 75: Paisagem de dendezeiros e feitura de azeite de dendê na Aldeia Zabelê. Fonte: Mirrah da Silva, 2023 arquitetura como envolvimento Figuras 76 a 82: Vivência Tupinambá com Floresta Cidade na Aldeia Zabelê. Fonte: Emmanuele Araújo, 2024 90 parte i: in situ Figuras 83 a 85: Rituais e modos de habitar Tupinambá. Fonte: Mirrah da Silva, 91 arquitetura como envolvimento Cooperativa Turiarte Figuras 86 a 90: Saberes e fazeres ribeirinhos. Fonte: Chema Llanos/ Saúde e Alegria. 92 parte i: in situ Figuras 91 a 94: Trançado de palha de Tucumã das mulheres da Cooperativa Turiarte. Fonte: Luca Vittorio. 93 arquitetura como envolvimento Figura 95 a 97: Saberes e fazeres do trançado de palha de tucumã e do tingimento natural. Fonte: Chema Llanos. 94 parte i: in situ Figuras 98 a 103: Saberes e fazeres do trançado de palha de tucumã e do tingimento natural. Fonte: Chema Llanos. 95 arquitetura como envolvimento 96 Figuras 104 a 109: Trançado de palha de Tucumã das mulheres da Cooperativa Turiarte. Fonte: Marcelo Oseas. parte i: in situ Figuras 110 a 114: Trançado de palha de Tucumã das mulheres da Cooperativa Turiarte. Fonte: Theo. 97 98 arquitetura como envolvimento Figuras 115 a 119: Construções do modo de habitar em Anã. Fonte: Produção própria, 2018. parte i: in situ Figuras 120 e 121: Construções do modo de habitar em Urucurea e Anã. Fonte: Produção própria, 2018. 99 arquitetura como envolvimento Figuras 122 a 124: Construções do modo de habitar em Anã. Fonte: Produção própria, 2018. 100 101 reinventar o desenvolvimento em comum Ela me disse: “a senhora não vai conseguir parar, porque isso tá no seu sangue, na sua veia, isso que lhe move.” Aí depois de algum tempo, voltamos, e graças a deus, o grupo reanimou, reativou, e hoje estamos bem, quase todas as famílias trabalham para o turismo com o MUSA Mulheres sonhadoras em ação (Odila, 2023). Figuras 125 a 127: Paisagem ribeirinha em Anã. Fonte: Produção própria, 2018. arquitetura como envolvimento Figura 128: Rio Arapiuns. Fonte: Produção própria, 2018. 102 parte II forças moventes 104 arquitetura como envolvimento II.I ideias-força: dimensões do envolvimento Foi um autodidatismo que se afirma através de trabalhos concretos. (...) de observador de padrões e arranjos dos espaços públicos e privados, e de candidato a interventor nas suas formas de produção e de consumo, fui me transmutando em observador das inter-relações sociais e das redes de significados. (...) de fato, fomos vendo que o mais fascinante resultado do que fazíamos era o que acontecia a partir daí e totalmente fora do nosso controle. (...) foi uma evolução traumática: eu fazia muita etnografia “em bruto” e vivia ansioso por “contar histórias’ sem conhecer a técnica adequada e receoso de usar os termos inadequados (Santos, 1980, p. 40, 42 e 44). No processo de rememorar estes encontros, resolvi reencontrar também os arquitetos e arquitetas envolvidas nesses processos, ouvir deles como a arquitetura se faz dispositivo de envolvimento. Neste exercício de olhar para as experiências e para a potência da arquitetura como elemento disparador de relações, emergiram as seguintes noções que atravessam as experiências compartilhadas: corpos, tempo e paisagem. Na presente dissertação, faço uso, portanto, dessas três categorias de análise de processos e projetos de arquitetura, de forma a guiar-nos para aprofundar os modos de intervir no mundo, hoje, a partir da arquitetura. Nesse sentido, o que há em comum nas três categorias de análise propostas é o conceito de envolvimento, que vem de forma a entendermos que não é um processo unilateral e unidirecional, proposto pelo arquiteto, mas sim multidimensional, que se estabelece no mergulho em diferentes cosmogonias e em ação dialógica. 105 parte ii: forças moventes paisagem 106 ideias-força: dimensões do envolvimento II.I.I paisagem O pensamento da paisagem é um pensamento do possível, ele é a busca dos possíveis contidos no real. Projetar é imaginar o real. (...) Projetar a paisagem seria, ao mesmo tempo, pô-la em imagem ou representá-la (projeção) e imaginar o que poderia vir a ser (projetação) (...) Testemunhar, de um lado, e modificar, do outro (Besse, 2010, p. 60). As reflexões do geógrafo Jean Marc Besse, em livro traduzido no ano de 2010 no Brasil, foram elaboradas no fim dos anos 1990 e embora se mostrem atentam aos paradoxos que impõe a reflexão sobre a paisagem, hesitam e muitas vezes não levam em conta, como se verá nas páginas seguintes, outras perspectivas epistemológicas que vêm sendo discutidas internacional (Tsing, 2015; Ingold, 1993) ou nacionalmente (Bispo, 2023), e que sustentam a ideia relacional e coimplicada dos corpos na instauração de qualquer ideia de paisagem. Contudo, embora essa reflexão sobre o modo interativo e fusional de propostas de mundo tenha crescido, sobretudo a partir da pandemia de Covid-19 (2020), permanecem certas questões que incitam as formulações de Besse em relação à arquitetura, isto é: como insistir e melhorar alguma noção de paisagem envolvida nos projetos de arquitetura? Como a arquitetura pode reconhecer as camadas que compõem a paisagem, e ser o gesto, entre tantos, que também agencia o diálogo com corpos, partículas, ondas, moléculas que humanos e não humanos e todo presente e vivente mobiliza? Como insistir que ela seja instrumento de revelação e incorporação de marcas, memórias, hábitos, elementos e dinâmicas? Nesse sentido, é importante reconhecer o papel das comunidades que habitam alguns territórios no Brasil e ao redor do mundo no cuidado e salvaguarda de paisagens culturais, e inclusive naturais. Muitas povoações indígenas – pessoas ou comunidades originárias de um determinado lugar, que ali vive, a ele está ligada por um laço imanente; que se sente uma “propriedade” da terra antes que proprietária de uma paisagem ou lugar (Viveiros de Castro, 2023). Seu papel Pág 105: Figura 129: Modo de habitar e paisagem ribeirinha. Fonte: Saúde e Alegria, 2018. Figura 130: Passeio de barco no Rio Una. Fonte: Emmanuele Araújo, 2024. Figura 131: Capoeira no Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Victor Paris, 2022. parte ii: forças moventes 107 se manifesta nas ações espaciais praticadas cotidianamente, na interação e no cultivo da biodiversidade na qual estamos imersos, produzindo camadas de vida e memória. Esta vem sendo uma discussão presente no campo da arquitetura e urbanismo, como aponta Paulo Tavares, curador do Pavilhão Brasileiro Terra, na Bienal de Arquitetura de Veneza: Observamos que os territórios sob custódia de populações indígenas e quilombolas são os territórios onde a proteção da terra enquanto casa de toda a vida comum acontece de forma mais eficiente, comprovado por diversas pesquisas nacionais e internacionais. Mas é importante ressaltar que essa proteção é feita de uma maneira ativa que implica produção espacial, não no sentido de que tudo ali é intocável. Pelo contrário, uma proteção que acontece na forma de cultivo, de desenho da paisagem (Tavares, 2023). A interação dos corpos, humanos e não humanos, desenha e cultiva paisagens, participando do fazimento do mundo. O desenho da paisagem perfaz, fundamentalmente, um envolvimento com os elementos que a compõem, e pode ser entendida como uma dança que conecta fluxos e fixos, criando outros sentidos para além do pensado inicialmente. Como o geógrafo Jean Marc Besse coloca: Um dos motivos essenciais do que se convencionou chamar de ‘projeto de paisagem’ talvez esteja contido nessa noção de pensamento latente, que ficaria atrás das formas visíveis, nessa espécie de onda que se desenvolve ao longo de toda a extensão, conferindo-lhe por assim dizer, um sentido. O projeto seria a cartografia dessa onda invisivel, desse ‘centro virtual’ dos movimentos do espaço. Essa dança do espaço que é preciso captar, ao desenhá-la (Besse, 2014, p. 63). Ao mesmo tempo que captar os movimentos do espaço, parece importante que o desenho mantenha uma abertura para o porvir: espaço vazio, para transformação e inscrição de novas camadas na paisagem pela ação dos corpos e do tempo. Projetar sem fim o estar-em-comum, como aponta Besse: “projetar é, portanto, primeiramente querer esse inacabamento, e a responsabilidade do projetista, quando se trata da paisagem, talvez resida nisso: é o portador do inacabamento, isto é, das significações em reserva, (...) dos futuros” (Besse, 2014, p. 66). As experiências apresentadas demonstram dimensões de relação com a paisagem que são reforçadas a partir da colaboração das comunidades locais com os arquitetos. A arquitetura como linguagem propõe abrir espaço para 108 arquitetura como envolvimento a composição com o lugar, como comenta Gouvêa sobre o projeto que vem sendo desenhado para o Zabelê, em Una: A paisagem vai se expressar nos fechamentos, nas fibras locais, nos cipós nos trançados. Os tupinambás fazem artesanato, objetos, isso deve ser transformado em arquitetura. Aí vai começar a ter uma ligação mais forte, através dos materiais da Restinga. Na questão cultural, estamos tendo uma aproximação, pois a vida acontece fora, vivemos nas varandas, nos espaços entre. E queremos trazer este espaço para o projeto de arquitetura. Nos mutirões, quando empregamos os hábitos culturais. Olhando do ponto de vista das pessoas, e da história desse território, de uma retomada muito recente. A gente traz o nosso traço que passa a fazer parte dessa paisagem. (Gouvêa, 2023). Figuras 132 e 133: Trançados presentes na Aldeia Zabelê. Fonte: Produção própria, 2019. parte ii: forças moventes 109 O trabalho dos arquitetos envolvidos nas situações de diálogo e projeto citadas chama atenção, tal qual já mostrara Iazana Guizzo em seu trabalho sobre o conceito de participação, por sua vez pensado por Lina Bo Bardi (Guizzo, 2019), para a necessidade dos próprios, os arquitetos, de se despirem de crenças e certezas e se afetarem pelo que veem como paisagem e que irão projetar para o futuro Como diria Nayane Alves, colaboradora do projeto Zabelê, “se lambuzar pelo lugar”. Ela afirma: “É desafiador para as nossas convicções. (...) A relação com aquele lugar se dá muito por conta da nossa dança com essa história: algumas vezes é de se acomodar e outras de se colocar e recompor com o que está em volta: de forma muito mais enraizada, lambuzada por aquele lugar” (Alves, 2023). Evidentemente, o ato de se lambuzar em cada cosmogonia, em cada lugar, em cada paisagem, produz experiências completamente distintas não só pelas memórias e condensações de histórias vividas. O mergulho no mangue e na Restinga do sul da Bahia é uma experiência que produz afetos distintos do mergulho em São Paulo, nas bordas dos resquícios de Mata Atlântica, margeados por morros de casas de tijolo baiano. Mais uma vez, que seja claro que essas comunidades têm culturas. Afinal, temse que decidir se culturas a partir de um sentido mais amplo, uma instância de reflexão e experiências de recriação da vida. Portanto, a Cantareira está prenhe de cuidados e de culturas e de uma avaliação do que deve ou não ser salvaguardado. A responsabilidade dos arquitetos que se envolvem com experiências como essas é reconhecer que estão compondo com uma paisagem natural e cultural que já estava lá antes de chegarem, como advoga Lotufo, e que, portanto, devem integrá-la e expandi-la ao desenhar, prever espaço para que ela se manifeste no projeto no tempo, a partir dos corpos que ali habitam. Isso significa revelar, através do seu traço, traços que compõem, qualificam, definem essa paisagem. Como um palimpsesto, onde os traços vão se afetando, compondo um todo: O espaço não é uma página em branco, assemelhando-se mais a um palimpsesto. O solo não é uma simples supeficie plana que se oferece à ação, mas confronta a ação a um conjunto mais ou menos denso de marcas, de pegadas, de dobras e de resistências que a ação deve levar em conta. Os locais têm memória (Besse, 2014, p. 58). Como diz Noêmia Mendonça, liderança que luta pelo cuidado das beiras do rio arquitetura como envolvimento 110 Bananal, em depoimento em 2023, sobre o entendimento das camadas, forças, hábitos, memórias que marcam um espaço: Até então, a gente fazia (essa reflexão) mas não tinha um entendimento. O que é a paisagem de um lugar? A gente via a paisagem como plantas. A gente vem percebendo que a paisagem tá no entorno, na relação toda. A história, a forma como vai construindo as coisas, a memória, a forma de se alimentar, de se cuidar, se vestir, entender o outro... Toda uma relação aí que precisamos entender. Qual o olhar que você tem sobre a paisagem? No trabalho com as crianças e os adultos precisamos falar mais para ampliar esse entendimento desse olhar sobre a paisagem. São muitas coisas, umas mais tranquilas e outras mais desafiadoras. O espaço cultural vem se preparando para fazer o entendimento sobre esse contexto. E a gente vem procurando fazer e manter isso vivo, falar sobre o assunto, buscar pessoas para contribuir para essa discussão, promover o entendimento sobre o assunto. Porque quando a gente entender, a gente consegue promover as mudanças (Mendonça, 2023). Figura 134: Rio Bananal-Canivete no entorno do Espaço Cultural. Fonte: Produção Própria, 2017. ideias-força: dimensões do envolvimento 111 Aprender a ler a paisagem oferece preciosas ferramentas para poder transformá-la. Reconhecer a floresta que circunda, a ação humana que insiste em desmatá-la, assoreando os rios e nascentes; derrubando árvores, ninhos; disparando desastres ambientais e impactando os futuros moradores desses morros pelados. Nesse sentido, em 1980, Paulo Freire em suas experiências de aprendizagem, cunhou a ideia de conscientização como a conquista de um olhar crítico sobre o que se considera “realidade”, e um entendimento do papel de cada um na sua transformação. Maria Odila, de Anã, reitera a importância da conscientização a partir da compreensão de uma última dimensão da paisagem a ser trabalhada: a paisagem interna, as forças que moldam a forma como vemos o mundo. Na hora atual precisamos cada vez mais de pedagogias de envolvimento com a paisagem. Você conhece meu quintal, meu quintal não é capinado. Me disseram que eu tinha que capinar, pra ficar mais limpo. Tem aqueles que parece que incomoda a nossa paisagem. Eu digo, ela tá dentro de nós: se ela tá bonita verde dentro da gente, a gente consegue preservar ela lá fora. Quando tá tudo aputrefado, é quando a gente sai cortando e queimando tudo, a gente precisa desenvolver a paisagem, não só a de fora, mas a de dentro também. O que tá dentro eu consigo expressar pra você. A cultura, a paisagem, a vida devia ser bem mais trabalhada. Não sei como você vai fazer, mas a conscientização precisa caminhar mais rápido. Ela tá gravada no povo krenak, yanomami, os povos da terra, que vivem dela e pra ela. Gostaria que a gente tivesse um pouquinho mais de consciência para poder abraçar esse processo (Odila, 2023). 112 ideias-força: dimensões do envolvimento corpos 113 ideias-força: dimensões do envolvimento II.I.II corpos A vida não precisa de materialidade, mas ela se expressa quando cria corpo (Krenak, 2024). O mundo é objetivo, então enquanto resiste e obstrui; o continuar é conseguir alcançar uma ruptura. Na vida, porém, eu estou com meu corpo, não contra ele. O corpo não se coloca no caminho - ou pelo menos não com frequência - senão que é caminho, o mesmo movimento, execução, ou passagem da minha própria existência no mundo. Neste sentido, o corpo não é um objeto nem sou eu um sujeito. O corpo é uma coisa, como claramente eu também sou. E a coisa perto das coisas, se quiser, é que cada uma é um indo [going on] - ou melhor, um lugar em que vários indo se relacionam (Ingold, 2012, p. 36, tradução nossa).12 A vida é um organismo. A Terra é uma materialidade dessa vida. Nosso corpo, assim como o de uma formiga ou de uma borboleta, é a materialidade da vida. A vida passa na gente e vai para outro lugar. Ela não fica parada em lugar algum. É como se nós fôssemos corpos que já estão perdendo a sensível comunicação com outros corpos, e temos muito artifício para despistar o nosso pertencimento ao organismo de gaia - como a gente vai regenerar se a gente não troca com ela. Culturalmente fomos treinados para isso. O desafio é furar essa pele dura e fazer o contato com o organismo sensível de gaia. A gente passa.E ela faz contato com a gente, solta aroma, o extrato dela (Krenak, 2020). Os arquitetos pouco reconhecem, valorizam ou se envolvem com os corpos com os quais interagem e constroem. Reconhecer que os corpos participam da arquitetura, e para além disso, inclusive a constroem como arquitetura, é o primeiro passo para reconhecer e fazer arquitetura como dispositivo de envolvimento. “El mundo es objetivo entonces mientras resiste u obstruye; el proceder es lograr una ruptura. En la vida, no obstante, yo estoy con mi cuerpo, no contra él. El cuerpo no se pone en el camino - o al menos no a menudo - sino que es el camino, el mismo movimiento, ejecución, o pasaje de mi propia existencia en el mundo. En este sentido, el cuerpo no es un objeto ni yo soy un sujeto. El cuerpo es una cosa, como ciertamente yo también lo soy. Y la cosa acerca de las cosas, si se quiere, es que cada una es un «andando» [going on] - o mejor, un lugar en el que varios andando se entrelazan”. 12 arquitetura como envolvimento 114 Yakuy Tupinambá, que vive em Una, em depoimento em 2023 situa a argumentação de Krenak e Ingold: Eu conheci minha vó, e meu avô faleceu aqui. vim aqui a primeira vez na década de 90, mas meu povo não tinha se levantado ainda. quando o útero surge na minha vida, a relação com isso aqui é outra. quando senti que aqui seria o espaço ideal para essa interação com o todo. quando você entende que está amparada por um nicho onde tem manguezais, mata de restinga, berçário de crustáceo, berçário de robalo, que tartarugas põem ovos aqui na praia, próximo à reserva biológica do mico leão dourado, com espécies ameaçadas quanto vegetais ou animais, você vai entendendo a relação, que pode trazer algo que possa despertar nos outros: a importância de aprender e entender como lidar com isso aqui. a importância de preservar a vida. vida do todo (Tupinambá, 2023). Figuras 135 e 136: Joza Tupinambá no manguezal durante a Vivência Tupinambá com Floresta Cidade. Fonte: Julia Auler, 2024 parte ii: forças moventes 115 A arquitetura pode reconhecer as forças e coexistir com os corpos que habitam cada lugar, além de oferecer condições de possibilidade de interações (humana, não humana, mais que humana) através da história e da cultura. Como menciona Luis Octavio Faria, um dos arquitetos do Núcleo de Arquitetura vinculado ao projeto Zabelê, em Una: A arquitetura como o berço destes corpos: corpos humanos, não humanos e mais que humanos. A arquitetura como abrigo, não somente dos seres humanos, mas que responde e coexiste com os corpos que ali estão: se levanta do chão para deixar a maré (o corpo d’água) subir, os caranguejos transitarem e construírem sua morada, se abre para o vento atravessar, se sustenta no mossunguê, madeira local, matéria irmã dos tupinambá na mata de restinga (Faria e Silva, 2023). Sobre o que nós temos na nossa cultura que pode dar pistas para o Bem Viver, para estar nesse mundo de uma maneira criativa, corpo vivo em uma Terra viva, talvez seja observar ao seu redor, muito provavelmente tem uma floresta, uma montanha, então tem tanta vida gritando ao seu redor. Escuta essa vida, dialoga com ela, estabelece relação com ela. (...) São outras percepções que importam. Nós conversamos com rios e montanhas (Krenak, 2020, p. 26). A falta de envolvimento e relação com os outros corpos, como o bicho-depé ou a onça, muitas vezes vem de um imaginário habitado pelo medo; por uma necessidade de resguardo, proteção, esconderijo e abrigo daquilo que está fora. Silva continua a exemplificar algumas dessas dificuldades dos corpos que obstruem, como menciona Ingold, essas interações: Vivi situações curiosas, como o bicho do pé, não saber tirar. de repente entrar no mangue e de repente você se machucar. A onça que povoa o lugar no imaginário, todo mundo morre de medo, tem que levar um bastão para se proteger. e os bichos que picam. Iazana Guizzo, em uma banca, falou disso, da leitura de como ela sentia o corpo dela naquela situação, como aquilo acarinhava ou machucava o corpo, nesse espectro de gradação. é doce na inteireza, mas tem que lidar com esses afetos. sinto que ainda tenho que romper o asfalto - mas nasci dele (Faria e Silva, 2023). O medo, que vem do des-envolvimento, da cidade, do asfalto, é sintoma de um desequilíbrio, de uma separação. É possível se envolver novamente a partir de um processo pedagógico, de estabelecimento de vínculos e relação com arquitetura como envolvimento Figuras 137 a 142: Corpos não humanos da Aldeia Zabelê: as cobras, os caranguejos, o rio, a palha. Fonte: Emmanuele Araújo, 2024 116 parte ii: forças moventes 117 os outros corpos que extrapolem a necessidade de dominação e controle para formas mais harmoniosas, mais dialógicas, pautadas por uma escuta e curiosidade profunda. Noêmia Mendonça, educadora popular da periferia de São Paulo, traz um olhar de uma pedagogia de envolvimento com o mundo. Ela tem trabalhado com os moradores da segunda maior favela da cidade e ensina: Eu diria que hoje a gente já trabalhou melhor esse olhar para se relacionar melhor com esses corpos: plantas, animais, água, pessoas. Porque temos que estar bem pra conseguir ver o outro. São relações que se juntam, uma coisa está relacionada com a outra. Não estão no mundo isoladas. O bem viver está relacionado com todas as vidas e corpos: a folha, a minhoca, a formiga… Precisamos de outras formas de lidar com eles que não destruí-los (Mendonça, 2023). Maria Odila, da comunidade ribeirinha do Arapiuns no Pará, lembra, no entanto, que assim como os corpos da cidade tem que romper com o concreto, também os corpos que habitam a floresta precisam resgatar a relação de reciprocidade com os corpos não humanos: Lá na comunidade sou tida como maluca. eu converso com os pássaros, com o rio, com tudo. eu sei que eles me escutam, que eles têm vida. eu não ouço a resposta porque não tenho merecimento para isso. (…) eu costumo dizer que as árvores são minhas melhores amigas. elas me ouvem e não dizem se estou certa ou estou errada. no Arapiuns a gente continua, nossos banhos de tempo de criança na infância, que a mãe buscava dentro d’água brava que a gente tava na água: a nossa conexão com o rio era bem maior. Hoje não, tem chuveiro lá em casa. O corpo da água, o corpo da terra continuam. Precisavamos dela pra plantar, pra nossa necessidade. Sempre senti, que árvore, rio, igarapé, animal, somos todos um só. Eu sinto muitas coisas, e tem coisas que eu não consigo falar. Quando as pessoas conseguem sair, ir pra uma cidade grande, elas negam que elas são do interior. Eu nunca esqueci o meu interior, do rio arapiuns. Não consegui viver bem e feliz como eu vivo nas margens dele. Nós somos a floresta, e ela somos nós tambem (Odila, 2023). arquitetura como envolvimento Figuras 143 e 144: Construções do modo de habitar em Anã. Fonte: Produção própria, 2018. 118 parte ii: forças moventes 119 Maria resgata um sentimento de pertencimento ao lugar, junto aos outros corpos. E reitera que com a chegada de uma arquitetura do desenvolvimento – representada aqui pelo conforto do chuveiro elétrico – ela chega como um apartamento das relações com outros corpos – como na relação com o corpo do rio – e com a quebra de rituais pautados por relações de encantamento com o mundo e os corpos que o co-habitam junto a nós, humanos. No caso dela, senhora de maior idade, que viu os avanços tecnológicos chegarem no Arapiuns, assim como pôde viver “fora” da floresta e “dentro” da cidade, ela ainda manteve as memórias afetivas do corpo livre, perdido no tempo, com todos os sentidos mergulhados no encontro com o rio. Retoma-se neste trabalho a ideia de envolvimento a partir da noção de experiência do pedagogo e filósofo Jorge Larossa: Requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (Larossa, 2002, p. 24). A experiência do envolvimento com outros corpos exige, portanto, o aprendizado de um gesto de pausa e escuta profunda: afetar-se, colocar-se em movimento, para então, através da relação, conhecer. Como diz Krenak: escutar, enxergar, sentir o mundo, tocar o mundo, é um gesto (Krenak, 2022). A produção arquitetônica, como as práticas que se sabem espaciais, são, portanto, dispositivos de envolvimento com os corpos que habitam ao seu redor, promovendo assim outro paradigma da participação, que envolve corpos humanos e não humanos: “quais habitantes participam do processo e de que modo? Em qual cosmovisão se dá a participação? Como um rio, as árvores, os animais participam de um projeto?” (Guizzo, 2019, p. 177). O que Guizzo coloca como cosmovisão, Yakuy, a partir de sua vivência Tupinambá, vai chamar de cosmopercepção, na qual não há a predominância de um sentido, arquitetura como envolvimento 120 no caso da visão, na interação com os corpos do mundo. Este processo se dá a partir de uma imersão e experiência sensível, portanto, estética. Interessante pensar que não somente os corpos das comunidades que habitam o lugar, humanas e não humanas, participam de um projeto, mas também o(a) arquiteto(a), que coloca seu corpo disponível para viver o lugar para o qual irá projetar. O arquiteto que vivencia o lugar e se afeta por ele, como relata Abuno sobre a aproximação com o Espaço Cultural Jardim Damasceno, em São Paulo: A conexão se deu mais nas atividades, fui várias vezes lá. Uma coisa que me aproximou muito foi o samba, os bares, o almoço. Tem coisas que têm mais força, cada um tem sua linguagem. Pra mim, é comida, música e bebida. Uma seara infinita a das técnicas de aproximação (Abuno, 2023). Houve um envolvimento maior a partir da relação com os técnicos e os arquitetos. Os técnicos que vêm com esse olhar de comunidade, tem uma visão diferente. Não trabalha só uma linguagem, é como se viesse ao encontro com nosso sonho, nossos desejos, nossa expectativa. Uma coisa que se junta. Essa relação vem crescendo e tem feito a diferença. O resultado das ações, as melhorias no espaço. Visão e leitura diferenciada de aproximação. Quando a sua proposta se conecta com o desejo do outro, o resultado sai diferente. As coisas vivas que estão aqui. Às vezes fico com vergonha de como está o espaço. Mas as pessoas que vêm, elas veem vida. Como você mesmo num local pobre consegue construir vida, beleza, e passar uma mensagem pro outro, de esperança. O que move a gente é esperança, é o sonho. Não ver isso, o problema, ver a saída. A gente tava muito internalizado no problema (Mendonça, 2023). A cosmopercepção pode ser ferramenta de projeto auxiliando no desenho, mas também é o que define a construção de obras arquitetônicas. Ela é o que faz uma construção ser arquitetura: são as “visões de mundo”, as cosmovisões, cosmopercepções, as percepções estéticas, que definem a arquitetura. A materialidade da produção arquitetônica pode então retomar, um fazer sensível; que por exemplo pode ser manual, implicando relação íntima com este outro corpo - que não é matéria prima mas matéria irmã, como apontaria Ailton Krenak. Há materiais, como o bambu, que apresentam vínculos muito mais próximos de parentesco com o corpo humano do que o concreto, como lembra Noêmia: É nesse processo que a gente vem descobrindo essas coisas, um eterno aprendizado. parte ii: forças moventes 121 O que eu enxergava na década de 80, vejo diferente hoje. Essa proposta da relação com a comunidade traz outras perspectivas. Não dá pra construir de alvenaria. A equipe de arquitetura traz uma perspectiva de melhorar o lugar onde está sem grandes obras. Cimento tijolo ferro. Foi trazida uma perspectiva com bambu, que não estava no nosso horizonte, e fica tão bonito quanto. Como mostrar saída, perspectiva, alternativa, outros instrumentos que tinham na própria comunidade; que eram caminhos de construção (Mendonça, 2023). Durante as vivências de imersão no Jardim Damasceno13, promoveu-se uma série de atividades que foram criando ferramentas de aproximação e envolvimento com os corpos e a paisagem daquele território. Como lembra Lotufo: Muita coisa que aconteceu e que poderia acontecer. escadinha de bambu, como aquilo fez uma interferência, um acesso mais fácil pro campo, uma coisa que foi feita e que interferiu na dinâmica do corpo naquele lugar. na época da ação do programa Escola Sem Muros, foram feitas muitas atividades com o corpo. Pode movimentar, desenhar, fazer roda, todo dia de manhã fazia uma atividade. Pode ocupar esse espaço e descobrir como ele pode ser bem aproveitado e celebrado. Lembro das crianças brincando, os cortejos, o corpo chegando com delicadeza, com bandeira colorida, brinquedo de pirâmide de bambu… Um corpo externo pedindo licença pra participar daquele lugar (Lotufo, 2023). A criação de uma habilidade, de um saber fazer, leva tempo, requer intimidade, no embate corpo a corpo, reconhecendo onde há resistências, onde flui, quais os modos de se trabalhar com. No caso do Jardim Damasceno, a escolha pelo bambu foi pautada por ser um material maleável, leve, generoso por permitir um manuseio por maior variedade de pessoas, idades, gêneros... Foi uma escolha oportuna, por ser um corpo presente nas margens da cidade – na época, já havia produtores e fornecedores de bambu nas margens da cidade, que eram pontos de um sistema de produção mais próximo do artesanato. Dessa forma, fortaleceu-se não só o uso deste material mas também de uma rede de pessoas que trabalham com um cuidado e responsabilidade maior com o ambiente. A técnica ou habilidade mobilizada na ocasião foi mais simples, com ângulos retos, encaixes em boca de peixe. Existiam pessoas próximas que sabiam fazer Vivência do Escola Sem Muros, realizadas por Tomaz Lotufo, Cassio Abuno, Andressa Capriglione, Ranyely Araújo, Flavia Burcatovsky, Ana Beatriz Giovani, Gabriela Franco, Jair Vieira, Flavia Prado, Alexandre Monteiro, Caio Yashima e Pedro Burgos, de julho de 2017 a março 2019. Saiba mais aqui: https://www.facebook.com/semmurosescola/photos_albums. 13 122 arquitetura como envolvimento Figuras 145 a 147: Vivências Escola Sem Muros no Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Raffaela Arcuschin, 2017. Figura 148: Cortejo do Escola Sem Muros no Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Pepe Guimarães, 2017. parte ii: forças moventes 123 e podiam ensinar, dentro do tempo da vivência. Abuno, em sua entrevista em 2023, resgata o contexto e o desenvolvimento de habilidades e conhecimento da época, dizendo como poderiam ter um impacto na técnica escolhida: Hoje se a gente fizesse o mesmo trabalho lá, seria outra coisa. Nossa sociedade, a comunidade de arquitetos, construtores, engenheiros evoluiu muito nesses últimos anos. Na época, esse era o quadro e as tintas que tínhamos para pintar... (Abuno, 2023). Conhecer o corpo do outro através de uma habilidade, um saber fazer encorpado através da relação com o tato, a visão, o olfato, a audição, o paladar, todas as formas de percepção, e da cultura, como instância guardiã da tradição sob a forma de razão e sensibilidade. A cultura, os hábitos, os saberes-fazeres se atualizam e, portanto, se aprimoram no tempo, passando de geração em geração, e sendo sempre atualizados in situ, em experiência. Pra nós, é maloca mesmo, com chapéu de palha. Aqui a gente dorme tranquilo, que entra o ar, mas não entra os insetos. e esse é o telhado nosso, natural. Na hospedaria, nós fazemos questão de usar ela porque ela não esquenta, ela é neutra. No inverno, ela tá temperatura ambiente (24 graus) e no verão também. As telhas que vem pra cá fazem da nossa casa uma estufa, e isso daqui, não. Quando eu era jovem e íamos fazer isso, aí todo mundo ia cantando, brincando. eu lembro muito, na abertura de palha, a gente tava abrindo, e a gente descobria quem tava apaixonada. Abria seus corações e a voz (Odila, 2023). Figuras 149 a 151: Telhado de chapéu de palha. Fonte: Produção própria, 2018. arquitetura como envolvimento 124 Como defende Ingold desde 2012 sobre o conhecimento que se perfaz na habilidade: As teorias convencionais de conhecimento tratam das habilidades como a aplicação de conhecimento jáa adquirido. Eu gostaria de colocar isso de pernas para o ar e dizer que o conhecimento depende da habilidade precedente. Na minha definição, a habilidade tem raiz na coordenação da percepção com a ação. Todo corpo que conta com um sistema perceptivo, que se encontra continuamente monitorando sua ação com relação a tal percepção, é necessariamente um corpo que aporta uma trajetória habilidosa. Como o topo dessa definição podemos dizer que as habilidades de nenhuma maneira são exclusiva dos humanos. Pelo contrário, são comuns aos animais de qualquer espécie. (...) Penso que a alternativa é propor que o que se transmite de geração a geração não são as representações, mas sim as habilidades. O que acontece é que cada geração instaura as condições e os contextos nos quais a seguinte geração pode descobrir por si mesma como são realizadas certas atividades. (...) A minha proposta é que as habilidades (...) são passadas através de um processo de redescobrimento guiado, no qual cada geração descobre as habilidades por elas mesmas com a guiança de praticantes mais experientes, que podem estabelecer condições nas quais seja possível para o mais novo crescer com elas. Novamente, o conhecimento cresce em você através do movimento. O que é crucial é a consciencia do corpo do seu próprio movimento. (...) Conhecer e mover são inseparáveis. O movimento é a forma como o corpo conhece (Ingold, 2012, p 73-84, tradução nossa).14 “Las teorías convencionales del conocimiento tratan las habilidades como la aplicación de conocimiento ya adquirido. Me gustaría ponerlo de patas para arriba y decir que el conocimiento depende de la habilidad precedente. En mi definición, la habilidad radica en la coordinación de percepción y acción. Todo ser que cuenta con un sistema perceptual, que se encuentra continuamente monitoreando su acción con relación a tal percepción, es necesariamente un ser que aporta una trayectoria habilidosa. Como corolario de esta definición tenemos que las habilidades de ninguna manera son exclusivas de los humanos. Por lo contrario, son comunes a los animales de cualquier clase. (...) La alternativa, pienso, es proponer que lo que se trasmite de generación en generación no son representaciones sino habilidades. Lo que sucede es que cada generación instaura las condiciones y los contextos en los cuales la siguiente generación puede descubrir por sí misma cómo son realizadas ciertas actividades. (...) Mi propuesta es que las habilidades no son estrictamente trasmitidas como representaciones de generación en generación, sino que son pasadas a través de un proceso de redescubrimiento guiado en el cual cada generación descubre las habilidades por ellos mismos bajo la guía de practicantes más experientes, quienes pueden establecer las condiciones en las cuales es posible para el novicio crecer en ellas. Nuevamente, el conocimiento crece en ti a través del movimiento. Lo que es crucial es la conciencia del cuerpo de su propio movimiento. (...) Conocer y moverse son inseparables. Moverse es la forma en que el cuerpo conoce” (Ingold, 2012, p. 73-84). 14 parte ii: forças moventes Figuras 152 e 153: Modos de construir durante a Vivência Tupinambá com Floresta Cidade. Fonte: Emmanuele Araújo, 2024 125 126 arquitetura como envolvimento tempo 127 ideias-força: dimensões do envolvimento II.I.III tempo Fico pensando na minha presença no corpo. O corpo no lugar, juntos trabalhando. Meu corpo naquele lugar se confunde com o tempo. O tempo e o corpo naquele lugar, em transformação através de um diálogo contínuo (Faria e Silva, 2023). Os profissionais formados em arquitetura sob o regime funcionalista estrito senso, hoje, ao fazerem projetos pouco consideram o tempo, nas suas mais diversas dimensões. Envolver-se com o tempo significa reconhecer a vida que antecede e que perdura após a realização do projeto de arquitetura propriamente dito, mas é também se envolver com o que é ditado pelos ciclos – dia e noite, as marés cheia e vasante, as luas, as estações do ano… O tempo é dança, é movimento, atração e repulsão. Quando estou lá, o tempo é muito generoso, parece uma dança. Quando estou lá, parece que estou dançando com aquele lugar: entro na água, paro, ando, as coisas estão me levando. Você está cansado aí tem um lugar que fala deita aqui, ai você sobe e vê o pôr do sol. Era ali que você tinha que estar. É uma relaçao poética, para além da cartesiana (Faria e Silva, 2023). Quem dita nosso corpo aqui é o tempo da natureza, respeitar os processos da natureza. a maré que sobe e desce, a lua que traz mosquito, o período dos caranguejos que saem pra passear e se reproduzir, a chuva que vai e impede os processos planejados anteriormente - chove com frequência e muito. Estamos sempre lidando com essa força: aqui tudo corre em função dos processos da natureza, precisa parar pra aceitar e se adaptar. não é como na cidade que a gente impõe o nosso tempo. (...) Comecei a me dar conta, de que se eu não entendesse que o tempo é outro, isso iria machucar meu corpo (Alves, 2023). O tempo influencia os corpos: a colheita do bambu deve ser em determinada lua, para ele ter menos água, no caso a seiva, e portanto atrair menos bichos que querem comê-lo. Já a terra, para paredes de pau a pique e bioconstrução, a terra precisa ser retirada do solo também em lua nova, de forma a ter menos água e não perder água depois, ao secar no sol e criar rachaduras. As relações entre os corpos e os ciclos temporais são fundamentais para entender como eles irão se comportar em relação às forças do tempo: como o corpo (a matéria irmã) se arquitetura como envolvimento 128 comporta na chuva, sob o sol, na lua cheia ou nova, no verão ou no inverno. Portanto, não é o tempo cronometrado milimetricamente, com um ritmo pré-estabelecido, planejado anteriormente, afastado da experiência e do acontecimento. É o tempo cujo ritmo se estabelece no encontro, no afeto, no fazer, desacelerado em comparação ao tempo do status quo, do relógio central, “universal”. É o tempo que tem vazio. O tempo infinito, produtivista, com pretensões funcionalistas, de maior aproveitamento e eficiência, que é permanentemente preenchido, é um tempo que não corresponde à realidade da vida no planeta. Até o solo da floresta, para produzir, precisa de descanso, pausa, para se regenerar. O tempo vai mudando as coisas, nós temos muita participação nesse tempo ou não? Tem muita coisa que nós mudamos: como o tempo era antes, como é agora. Nós contribuimos para que ele esteja tão acelerado. a gente dormiu acordou e já passou. será que é o tempo ou somos nós? Vou pensar mais ainda, no tempo, em nós e na vida no planeta (Odila, 2023). Existe também outra dimensão que é o tempo histórico, que se faz nos encontros dos corpos no espaço, construindo assim memória compartilhada, um corpo coletivo. O que acontece lá desde o tempo que eu conheço, teve deslizamento, que construíram galpão, ao longo do tempo e da história foi formando cultura. essas coisas não se apagam, tá na cultura, em cada um que passou por ali, a coisa foi ganhando corpo. É um tempo que não se interrompe, ele é contínuo. tem coisas que entram pra história e que não entram, as coisas que entram tem tempo contínuo, por causa de todos esses valores que estamos conversando. histórias estao vivas em nós. Cada um de nós num lugar. cada um do seu jeito levou isso na bagagem e segue se manifestando, lá dentro e interferindo em outros territórios (Lotufo, 2023). A continuidade da cultura se dá pela resiliência e persistência de atores sociais que continuam vivendo e contando suas memórias, apesar das adversidades e tentativas de apagamentos no tempo. Aqui trago justamente Noêmia: A cada momento do espaço nesses 30 anos apareceram diferentes pessoas que querem construir e contribuir na história desse lugar. Isso manteve o Espaço vivo, nos deu a certeza de que não estávamos sozinhos, dá aquele gás. Mesmo que não saia da forma como a gente pensa. A gente não desanimou, permaneceu buscando outras saídas (Mendonça, 2023). 129 parte ii: forças moventes II.II encontros e nebulosas: campo de ideias moventes O ensino no campo da arquitetura opera na maioria das vezes por meio de uma pedagogia de abstração espacial – o completo oposto à noção de envolvimento. Fernando Luiz Lara nos convida a compreender o que é ensinado nas escolas de arquitetura, demonstrando a pedagogia que sustenta o des-envolvimento: Uma vez desvinculados de quaisquer relações espaciais anteriores, nossa pedagogia de atelier os ensina a dominar a abstração, quase sempre descartando qualquer contexto ou conteúdo do lugar para manipular apenas a geometria. Mapas não registram a vida da comunidade. Topografias não contam a história da terra. Planos e seções são narrativas arbitrárias que impõem comportamentos às pessoas. Esse é o poder da arquitetura como ferramenta de transformação que poderia ser usada para imaginar um mundo melhor, mas 95% das vezes é usada para reforçar o status quo (Lara, 2021). A “abstração espacial” torna-se para o desenho, assim como o “trabalho alienado” está para o canteiro, como Sérgio Ferro tematiza, a manifestação do des-envolvimento nos processos e produções arquitetônicas: O trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata quanto maior o número de bens que produz. Com a valorização do mundo das coisas, aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz apenas mercadorias; produz-se também a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e justamente na mesma proporção com que produz bens. Tal fato implica apenas que o objeto produzido pelo trabalho, o seu produto, opõe-se a ele como ser estranho, com um poder independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, que se transformou em coisa física, é a objetivação do trabalho. A realização do trabalho aparece na esfera da economia política como desrealização do trabalhador, a objetivação como perda e servidão do objeto, a apropriação como alienação (Ferro, 2006, p. 105-106). Se fizermos um resgate histórico, perceberemos que existem diversos pesquisadores que evidenciam a arquitetura a serviço e como produto do desenvolvimento, apontando que o saber-fazer do arquiteto nasce como ferramenta arquitetura como envolvimento 130 do poder hegemônico, do status quo: de exploração da paisagem, dos corpos e na maioria das vezes indissociada do tempo – antes e depois que o artefato arquitetônico se constrói como possibilidade de espaço. A exploração da natureza – para o consumo de matérias irmãs, a produção de materiais de alto valor agregado, com diversos processos de perpetuação das desigualdades – é visível nas assimetrias que condicionam as relações, na divisão do trabalho, no desenho, no canteiro, nos resíduos produzidos, na externalização dos limites e, ainda, na contínua geração de gases que poluem o ar que respiramos. No entanto, esta condição não apenas tensiona o campo da arquitetura e urbanismo. Urge também que sejam formulados outros desenhos e outras relações com processos, modos de pensamento, produção e práticas no campo da arquitetura e do urbanismo – como mencionado por Botas: No ambiente acadêmico, tanto quanto no ambiente profissional, o problema parece passar também pela definição e salvaguarda de micro-campos de especialidades, que impedem um diálogo maior na construção de um projeto político mais abrangente para a arquitetura e o urbanismo. É no enfrentamento desses obstáculos, da excessiva especialização, que a aproximação com o pensamento decolonial apresenta um ponto de entrada. Uma crítica radical envolvendo os termos de origem da própria profissão pode indicar um salto qualitativo na reflexão, na prática e no ensino de arquitetura de maneira integrada (Botas, 2019, p. 79). Mobilizo a partir dessa compreensão integrada a metáfora das nebulosas de Margareth Pereira (2018) para lembrar que, historicamente, nuvens diversas vinculadas às áreas da bioclimática e ecologia, mas também aos campos dos movimentos sociais, da antropologia, e por vezes se encontram, fazendo cair verdadeiros torós que bagunçam as estruturas do status quo. Os sociólogos da Escola de Chicago como Robert Park, os antropólogos como José Guilherme Magnani e Heitor Frúgoli Jr., as psicólogas sociais como Virgínia Kastrup e Laura Pozzana, dentre outros. Na arquitetura e no urbanismo, desde os anos 1960 até os dias atuais, certos atores e práticas espaciais e arquitetônicas compuseram nebulosas que afirmadamente sustentaram práticas contra-hegemônicas até os dias atuais: Lina Bo Bardi, João Filgueiras Lima, Sérgio Ferro, Flávio Império, Rodrigo Lefebvre, Carlos Nelson Ferreira dos Santos, Acacio Gil Borsoi, Nabil Bonduki, Erminia Maricato, Roberto Pompéia, Vitor Lotufo, Reginaldo Ronconi, João Marcos, parte ii: forças moventes 131 Roberto Burle Marx, as(os) arquitetas(os) das assessorias técnicas como Usina e Peabiru, e muitos outros. Arquitetas(os) brasileiras(os) que ampliam os limites do campo, compreendendo a arquitetura em sua dimensão sócio-ecológica e cosmopolítica, e não somente estética ou técnica. De forma a não deixar cair o céu, mas para molhar o solo para que outras vidas possam brotar. Apesar de se falar aqui das(os) arquitetas(os) que tensionaram e expandiram os limites do campo disciplinar, estes vieram ao encontro com outros atores de diversas áreas do conhecimento, como a ecologia, os movimentos sociais, a filosofia e a antropologia – que também ampliaram os limites e estruturas que pautam o pensar e fazer arquitetura. A arquitetura sempre teve interfaces com outros campos do conhecimento, mas a partir dos anos 2000, a dimensão ecológica se fortalece ainda mais, com o surgimento de diversas experiências e grupos de arquitetos no Brasil e em outros países da América Latina, atentos às temáticas ambientais.15 Nos estudos do meio ambiente, mestres como Ana Primavesi, Peter Webb, Jorge Timmerman, passaram a ser conhecidos e discutidos ao lado de Paulo Freire, Milton Santos, Carlos Nelson, Frei Betto, nos movimentos sociais. Na antropologia e filosofia a nível nacional Ailton Krenak, Eduardo Viveiros de Castro, Antônio Bispo dos Santos, Eduardo Neves e Davi Kopenawa também passam a ser debatidos nacional e internacionalmente e em conexão com cosmogonias da América Latina ou africanas analisadas por figuras como Arturo Escobar, Alberto Acosta, Silvia Rivera Cusicanqui, Maristella Svampa, Frantz Fanon e M’Bembe, dentre muitos outros. Somam-se ainda Edgar Morin, Tim Ingold, Bruno Latour, Anna Tsing, Emanuele Coccia, entre outros. Apesar de se falar aqui de atores estabelecidos e reconhecidos, é importante lembrar que a arquitetura como prática existe há milênios, realizada no cotidiano, no anonimato, na coletividade, na expressão cultural de diversas cosmogonias envolvidas com o ambiente ao redor. Afinal, como apontava William Morris: “cada indivíduo é criador do seu próprio ambiente” (Barone; Dobry, 2004). Um exemplo claro é a forma de habitar das aldeias indígenas, que no caso do povoamento da América do Sul, teve início por volta de 20.000 a.C., segundo a maioria dos pesquisadores. Escritórios como: Estúdio Guanabara, Materia Base, Terceira Margem Arquitetura, Grupo Fresta, Ruína, Instituto Técnico de Ensino, Pesquisa e Extensão em Agroecologia Laudenor de Souza, Helena Ruette, Arquitectura Mixta, A Casa, Parque de Bambu, Restauro Vila Flores, Fio Assessoria, Ikobe Bioconstrução, Sem Muros Arquitetura Integrada, Ecosapiens, Tibá Arquitetura, Low Construtores, Estúdio Flume, Arquitetura na Periferia… 15 arquitetura como envolvimento 132 A arquitetura das ocas eram habitações coletivas, mas também ocupadas por uma diversidade de usos ao longo do tempo – ao longo dos dias e das estações. Assim como as arquiteturas indígenas, o Brasil possui muitas outras manifestações culturais que se traduzem em arquitetura de povos que seguem diferentes cosmogonias e práticas, como os encantados das populações ribeirinhas, aquelas dos cultos afro-diaspóricos, ou ainda as que de modo híbrido constroem as periferias das metrópoles... Como aponta Gabriela de Matos, vivemos uma cegueira para outras produções e práticas espaciais: Acredito que, por muito tempo, nós ignoramos essas outras práticas porque elas não seguiam o padrão que entendemos ser o da arquitetura. E sabemos exatamente quais são as produções que ficaram de fora, não é mesmo? Então, penso que a contribuição (...) vai nesse sentido, de aproximar, dar lugar e compreender essas outras produções, e compreender, também, que a arquitetura se relaciona com muitas outras disciplinas. A coisa vai ficando mais complexa e completa quando temos a contribuição de vozes diversas (De Matos, 2023). A contribuição necessária parece estar em considerar aqueles que não estavam dentro das academias, que não estavam nos centros, muitas vezes, da colonização do saber e do poder, nas universidades dos países ditos “desenvolvidos”, com acesso à produção de publicações, do sistema de produção de artigos, revistas, podcasts. Verdadeiros mestres e mestras de um saber-nascente16. Dar lugar a outras vozes e outras produções, como afirma Gabriela de Matos, significa reconhecer e valorizar o saber secular, com processos produtivos baseados em um trabalho criativo e situado. Na literatura existente, percebe-se um mapeamento das práticas espaciais em diversos rincões do continente, em termos da forma como respondem aos seus contextos de desigualdades (sociais, raciais, econômicas, ecológicas) e do colonialismo (do saber e do poder). No entanto, essa literatura muitas vezes não revela as arquiteturas feitas por outros atores fora do campo disciplinar, além mesmo da complexa rede de condições que tornam possíveis tais práticas. Não somente busco aqui reconhecer essas produções mas também contar essas Viva José Soró e Perus, viva Noêmia Mendonça e a Brasilândia, viva Maria e o rio Arapiuns, viva Yakuy e Una, viva Maria Alves e o Assentamento Irmã Alberta, viva Ubatumirim, viva Pedro e o Centro de Envolvimento em Agroecologia de Barra do Turvo, viva Lúcio Ventania e Ravena… Mestres que se expressam através da oralidade e com os quais tive a honra de interagir e conviver por espaços-tempo que apesar de curtos, se alongaram até o presente momento. 16 parte ii: forças moventes 133 histórias e memórias, a partir dos encontros de envolvimento com as que me acompanharam nessa trajetória - Noêmia, Maria e Yakuy. Como aponta Paulo Tavares, mais uma vez: Existem outras histórias para se contar na arquitetura. Histórias que não foram contadas, que não foram visibilizadas, que não foram narradas, porque foram de alguma maneira suprimidas por narrativas canônicas da arquitetura. (…) Num país formado por uma diversidade cultural, étnica e racial tão grande como o Brasil, é preciso contemplar essas outras narrativas, isto é, as outras histórias, as outras arquiteturas, os outros memoriais, os outros patrimônios (Tavares, 2023). Seria possível curar a ferida da colonialidade e do desenvolvimento de forma a propor uma arquitetura aberta a outros modos de relação, baseados na reciprocidade, nas alianças multiespécies, na ideia de limite planetário? Estes princípios apontam para uma mudança de postura e de comportamento da(o) arquiteta(o), com maior envolvimento com as questões éticas, estéticas, técnicas e políticas. No passado, temos uma série de bons exemplos de arquitetas(os) que transbordaram os limites do campo e foram a campo, como em 1980, com as comunidades eclesiais de base, que levavam os arquitetos para as periferias em plena ditadura, como o LABHAB da Belas Artes de São Paulo, e a criação de outras metodologias de trabalho, as experiências estudantis in situ, junto aos movimentos sociais, e dentro da academia. É o que lembra Tomaz Lotufo sobre memórias dessas experiências vividas em São Paulo dos anos 1980 e 1990: Quando a Erundina assume prefeitura, continua pensando produção perto de onde está a questão. isso volta pro ensino de novo. sai do ensino, vai pro mundo profissional e volta pro ensino. iniciativas de canteiro experimental nas faculdades de arquitetura. interfere no movimento estudantil. precisamos nos desalienar fazendo. se queremos trabalhar para as pessoas que não acessam, precisamos estar lá com eles. não é tão consciente pro movimento. os jovens da universidade fazem coisas que são importantes, mas isso nao está teorizado. vem do coração, impulsiona algo que não está teorizado mas hoje se entende. começam ações do movimento estudantil. levando o canteiro experimental pra fora. O movimento da permacultura e bioconstrução tinha outras raízes e motivações, fazer, construir junto, envolvimento naquilo que acreditamos. Fazendo, na prática, o que acreditamos (Lotufo, 2023). arquitetura como envolvimento 134 Tais experiências tiveram ressonância no ensino, este por sua vez sensibilizando pessoas para essas práticas, inserindo dimensões eticas, estéticas, técnicas e políticas na formação. No entanto, Nêgo Bispo critica de forma veemente como as universidades muitas vezes ainda operam de forma colonialista, enquanto deveriam ir a campo para instaurar um campo de efetiva abertura de discussão, um comum. Ainda que o comum se construa em toda parte e também nas salas de aula, nos laboratórios de pesquisa, nos grupos de extensão, vistos como espaços plurais e políticos como insiste Pereira (2023), é forçoso reconhecer com Bispo que o papel das universidades nem sempre é visto como o de crítica, mas também de luta, conflito e insurgência. E a dimensão estética da arquitetura – o projetar com os sentidos – cedeu lugar a uma forma de prática de uma colonialidade e subalternidade às leis do mercado e a uma profissionalização que desrespeita, portanto, o próprio ofício. Assim, Bispo declara: Não existe um antro mais colonialista que as universidades, porque elas são a cabeça da sociedade. (...) As universidades pensam para a sociedade executar. Isso é coisa do desenvolvimento. Por isso que as universidades deram certo, porque elas foram feitas para pensar o desenvolvimento (Bispo, 2023). No dia em que as universidades aprenderem que elas não sabem, no dia em que as universidades toparem aprender as línguas indígenas – em vez de ensinar –, no dia em que as universidades toparem aprender a arquitetura indígena e toparem aprender para que servem as plantas da caatinga, no dia em que eles se dispuserem a aprender conosco como aprendemos um dia com eles, aí teremos uma confluência. Uma confluência entre os saberes. Um processo de equilíbrio entre as civilizações diversas desse lugar. Uma contracolonização (Bispo, 2018). Esta pesquisa busca operar esse giro, como dizem os portugueses, essa virada, essa guinada – como muitos vêm afirmando há décadas: imergir e aprender com as experiências em campo, in situ. Confluir junto a elas uma pedagogia do envolvimento através da arquitetura, que por sua vez pode ser adentrar os muros da universidade, como discorre Abuno: Acho que a universidade tem seu papel no sentido de ampliar as referências. vim pra sp, do interior, todo mundo conhecia artigas, paulo mendes, nao sabia nem uma régua “T”. A universidade tem um papel de abrir esse mundo, trazer referências que nao poderíamos acessar, tem o poder catalisador de colocar muita coisa num pequeno espaço. O que não existe nela e essas experiências proporcionam é nossa parte ii: forças moventes 135 capacidade criativa, de entender, fazer uma interpretação, experienciar o lugar para além da análise, e sair do marasmo do papel em branco - que você tem que desenhar alguma coisa e nao sai nada. sair desse estado de espírito e imobilizacao, e conseguir propor as coisas, ter capacidade de se movimentar (Abuno, 2023). Percebemos que experiências como as que foram aqui estudadas tangibilizam essa convergência. Yakuy, de Una, menciona o trabalho desafiador do envolvimento entre os participantes da equipe que colaboram para a proposta: O útero vai ser erguido num espaço onde tem várias espécies, dialogando com isso e respeitando essa natureza. Daí surge o núcleo de arquitetura, que vem sendo construído. Não sei se todos enxergam a mesma coisa que eu. Ele tem uma flexibilidade e liberdade de agregar mais pessoas, e o desenho já vem apontando. Às vezes, sinto um membro do núcleo com dificuldade de lidar com isso. Vai chegar o momento de fazer essas provocações. Todos podem contribuir e têm saberes importantes. Há uma resistência, e é importante entender as resistências. Hoje o nucleo de arquitetura já vem há mais de 2 anos até chegar nesse momento. Você sabe muito bem que parte de você, e vai trazendo os que estão até hoje. Até sua chegada, tinham chegado uns 3 grupos que tinham esbarrado em algo que não conseguiam ir adiante. Hoje, está sendo interessante ver isso acontecendo. Nos mostra que estamos no caminho certo. Já está acontecendo. O núcleo ja está promovendo esse encontro de saberes, mostra que é possível esse coletivo, que é um corpo. Tem o núcleo de cultura e educação, o núcleo de filosofia, o núcleo de comunicação, o núcleo das mulheres, o núcleo tibira (de orientação sexual, preconceito e discriminação), o nucleo de administração/jurídico/financeiro, o núcleo de produção e projetos. A arquitetura não está sozinha. Estes núcleos precisam interagir. Não está sendo fácil, os núcleos têm dificuldade de agregar, como somos isolados. Essa cultura nos afasta do coletivo (Tupinambá, 2023). Os desafios são muitos. No encontro dessas lógicas e mundos distintos, emergem os preconceitos e os impasses, evidenciando que há coisas que precisam ser trabalhadas. Nayane, arquiteta envolvida no projeto da Universidade Intercultural de Saberes Zabelê, dialoga com a visão de Yakuy: Essa visão me traz pra um lugar de ruptura: a arquitetura vindo para amparar a Aldeia Zabelê. Para construir um grande complexo, precisamos de uma microestrutura. O processo de projeto vem como ruptura, de lógicas de escritório, de universidade, através de uma construção coletiva, horizontal. Não temos um coordenador, um arquiteto sênior, ninguém sabe mais do que ninguém, está todo mundo aprendendo arquitetura como envolvimento 136 junto. A arquitetura é construída a partir desses processos, vem como uma proposta de construir algo juntos. Estarmos desprendidos do nosso desenho, desapegar nos nossos traços, muita coisa surge no canteiro e faz parte do processo. O que seria um outro paradigma é esse encontro, essa troca, e esse processo de criar junto. É muito desafiador: o desenho e método construtivo são muito fortes. Mesmo depos desse processo de etnocídio, ainda existem saberes, por mais artesanais que eles sejam… É uma caminhada, é uma construção constante: de confiança, de diálogo (Alves, 2023). Os espaços de fazer coletivo e aprendizagem que se estabelecem a partir dos encontros são muitas vezes “informais”, pautados pela educação popular e por uma aprendizagem experiencial e corporificada (não necessariamente experimental, mas experiencial). Assim, os momentos mais marcantes são as experiências em si: as vivências em campo, de projetar e construir com os sentidos, em coletivo. Marcantes no sentido simbólico, mas também no sentido de experiências de troca de saberes e fazeres, que transformaram as pessoas que participaram, como relata Abuno em sua entrevista, se recordando da experiência do programa Escola Sem Muros no Jardim Damasceno em 2017: Começou como um trabalho. Tomaz chamou depois de um mutirão do MST e comecei como estagiário. A ideia do escola sem muros começou um pouco depois, o conceito de misturar processo educacional com processo de arquitetura. Numa esfera mais sensível do que a que estávamos acostumados. Muito racional, engessado no desenho. O Escola Sem Muros vem nesse contexto, uma primeira possibilidade dessa escola longe da faculdade, um processo mais territorializado e mais humanizado - projetar com sentidos. Pude fazer minha formação como permacultor, e a contrapartida pela formação foi o desenho desse projeto de estrutura de bambu para a reforma do espaço cultural. Já tinha toda uma história com o permasampa e me colocou nesse circuito sob a mentoria do Tomaz. Foi a primeira vez que eu pude projetar numa mesa que não era da faculdade. Eu ia para casa pra passar a limpo o que tinha sido desenhado e sacramentado no território, para cristalizar. Foi uma marca única na minha vida e experiência. (…) O que eu vejo de reverberação foi um monte de gente desse processo que se transformou, saiu de lá renovado. Na hora você não percebe, mas hoje percebo quanta coisa da maneira como eu penso agora e que eu devo da experiência que tive lá (Abuno, 2023). parte ii: forças moventes Figuras 154 a 159: Vivências Escola Sem Muros no Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Pepe Guimarães, 2017. 137 arquitetura como envolvimento 138 O que se estabelece a partir de experiências como essas é de fato outro modo de fazer arquitetura, que provém da sinergia de movimentos dos campos cosmopolítico, social e ambiental. E que, apesar de por vezes serem encontros fragmentados, compõem um processo, uma história que permanece com os hiatos do tempo. Tomaz Lotufo, em sua entrevista, descreve este modo de fazer arquitetura: Me vejo pensando arquitetura a partir do processo, não do resultado final. Na natureza dele, tem aquilo que você acredita. As coisas que acreditamos envolvem os dois movimentos - social e ambiental - que se encontram. Na perspectiva social, a tecnologia apropriada, onde as pessoas podem se apropriar das soluções técnicas construtivas e levar isso para qualquer contexto. A gente só aprende a partir da perspectiva da integralidade. Não é só no mental, senão fica um vazio. O lado ambiental é olhar os recursos locais, a tecnologia apropriada. O que acontece no Damasceno é o encontro desses dois fluxos, desses dois movimentos (acadêmicotécnico-social e permacultural). Vamos fazer a ecologia que a gente acredita pensamos na época. Eu estava nesse meio. Isso tem um contexto histórico familiar que me ajudou muito. Acordei com muita facilidade por causa dos referenciais que vieram do meu pai {Vitor Lotufo}, ele estava nesse fluxo. Tem figuras que vão te trazendo recados. Na faculdade, temos que entender que as coisas têm história. Profissionalmente, fui tentando fazer uma coisa que tem uma cadência. A Sofia Telles, que trouxe uma coisa de acreditar que arquitetura não pode ser vazia e desprovida de ideias, são poucos que constroem isso… Fica uma discussão muito de objetos, e poucos que colocam conteúdo em você. São pessoas que, no período profissional, que trazem de volta um sentido que foi dado lá atrás. Me envolvi fazendo um curso de permacultura, com pessoas de São Paulo querendo entender permacultura urbana, sair da lógica acadêmica e querendo ir pra fora. Mas para onde? Apresentaram o Damasceno, e então começamos um curso de permacultura híbrido - na vila madalena e no jardim damasceno. Propusemos um clássico da permacultura: a espiral de ervas e uma cisterna. A Noêmia é uma pessoa muito acordada, vai olhando e curtindo, mas sabia que aquilo não era o suficiente - eles queriam mais. Lembro que quando fomos apresentar o design permacultural para aquela área, quando termina a apresentação: ‘Até quando vamos fazer hortas?’ Aí que surge: temos um grupo de pessoas que gostam de fazer coisas juntas, gostam de construir e projetar dentro de um contexto social: vamos melhorar esse espaço! Durante o curso de permacultura, tínhamos que trocar telhas da cobertura do Espaço, porque quando chovia muito, caía água dentro da sala. Então resolvemos: vamos dar um gás nesse espaço! O curso de permacultura propôs olhar para esse espaço. Formou-se então um grupo de trabalho, e o Cássio entra para dar um gás no projeto. Como parte ii: forças moventes 139 tinha cada um trabalhando com uma coisa na vida, tinha que ter alguém ancorando o processo. O momento mais marcante foi o momento que a Noêmia apertou a gente: uma coisa é achar que o que você está fazendo é legal, outra coisa é o feedback. O que seria fazer algo que pudesse fortalecer esse espaço? Ela é a semente de tudo isso, fez com que um processo se desencadeasse. Tudo começa com a força dela. E a coisa poderia continuar pra sempre, tem um todo maior. Foi isso que caiu a ficha. O Damasceno pra mim é o exemplo mais potente de que arquitetura é processo. Ela não foi feita, mas ela foi feita. A ausência da arquitetura é que demonstra o que a arquitetura pode fazer, o que acontece quando o processo é valorizado. A edificação (se construída) seria melhor, ia ter um mezanino, uma abertura pro Parque... Isso tiraram da gente, mas não tiraram a alma. ‘Vocês não vão construir, e se começarem, a gente vai entrar com esse trator e derrubar tudo porque isso é irregular’. Como assim? é uma sobrevivência. O que mais se espera é que aconteçam coisas como o que está acontecendo aqui. A Prefeitura impediu a construção de um edifício, mas não impediu a construção de um processo. Cada um levou pra fora, e quem ficou, está lá trazendo essa semente (Lotufo, 2023). Os encontros podem acontecer e permanecer ao longo de anos, ou podem acontecer momentaneamente e logo se dissipar –, mas nem por isso são menos impactantes. Encontros com paisagens e corpos que atravessam, propiciando uma experiência de metamorfose, íntima e marcante. A água, que do lençol freático, sobe a superfície, se junta na correnteza do rio, então evapora, condensa em forma de nuvem, que encontra o vento e cai como toró, para depois atravessar o solo rumo ao lençol freático mais uma vez. É a mesma água, em diversos estados da matéria. Assim como os corpos e o tempo, que atravessam essas paisagens, deixando registros, marcas e memórias dos acontecimentos de cada etapa deste ciclo. Encontros como fenômenos, verdadeiras pororocas: encontro de água doce e água salgada, de diferentes visões de mundo e modos de vida – experiências que mudam o estado das coisas, como aponta Mariana Montag, “encontros que acontecem quando pessoas de lógicas diferentes desejam fazer algo juntas” (Montag, 2022, p. 143). Tais encontros e experiências de envolvimento têm se realizado no campo da arquitetura em diversos cantos do Brasil e da América Latina, criando verdadeiras nebulosas de troca de experiências, tecnologias, inteligências, saberes e fazeres. Esses encontros que habitam dentro e fora do campo são organizados por arquitetura como envolvimento 140 diversos coletivos, por vezes transbordando os limites do campo na interface com permacultores, ecologistas, educadores populares, movimentos sociais. Nas duas últimas décadas cita-se, por exemplo, eventos organizados por mais de trinta coletivos na América Latina17, fora aqueles já citados dentro do território brasileiro, onde diferentes atores coletivos e institucionais são convidados a compartilhar saberes e fazeres. É importante entender que se trata também da produção de narrativas dessas arquiteturas de matrizes culturais diversas - que não se dão somente através de vias formais, mas também por meio da oralidade e de encontros dos atores que dão materialidade a esses pensamentos. Tais corpos, individuais e coletivos, transitam pelo continente, e se reúnem periodicamente em encontros de diversos formatos: organizados muitas vezes de forma independente, autogeridos por estudantes, promovidos por universidades ou por instituições de classe. Na curadoria e nas pautas dos encontros, coletivos, profissionais e escritórios são convidados a compartilhar saberes e fazeres que trazem um caráter experimental e inovador. Os encontros do campo da arquitetura e do urbanismo, nacionais e latinoamericanos, têm acontecido desde os anos 1985 e se organizam em diversos fóruns, como os do Seminario de Arquitectura Latinoamericana SAL desde 1985 (Souza, 2013), Encuentro latinoamericano de estudiantes de arquitectura ELEA desde 1990, seminário nacional de escritórios modelo de arquitetura e urbanismo SENEMAU desde 1997, Taller social latinoamericano TSL desde 2001, congresso científico de arquitetura e urbanismo CICAU também desde 2001 e Bienais de Arquitetura desde 1992. São iniciativas que produzem conhecimento, viabilizando trocas de tecnologias e inteligências coletivas, construindo juntas narrativas de outros fazeres possíveis. Os encontros autogeridos articulam pensamento e produção atuais, inovadores e experimentais no continente, mobilizando os anseios dos estudantes por respostas ao tempo e questões contemporâneas, trazendo um frescor e esgarçando os limites da disciplina. Dentre eles: Matéricos Periféricos, Acqua Alta, Grupo Talca, República Portátil, A77, Arquitectura Mixta, Al Borde, Ariztia LAB, Colectivo Arrabal, Aga Estudio, Arquitectura Expandida, Pico Colectivo, Alvaro Lara, Terceira Margem, Eleazar Cuadros, Semillas, Oficina Comunitaria de arquitectura Oca, Ruta4, Comunal, Atarraya Taller, Natura Futura, Colectivo Hormiga, Taller General, Tibá arquitectos, Connatural, Cooperación Comunitaria, Productora, Daniel Moreno Flores, Supersudaca, entre outros. 17 Enquanto isso, por sua vez, o papel das Bienais de Arquitetura, por exemplo, se mostra não somente como o de um lugar de intenso intercâmbio e de projeção das pautas para uma discussão pública, mas também como o de um lugar de encontros, reconhecimento e valorização de saberes e fazeres alternativos e não hegemônicos. Assim, constituindo um marco na trajetória das produções, as Bienais não somente visibilizam os escritórios e suas práticas, mas também os premiam, possibilitando desdobramentos e garantindo um reconhecimento para sua difusão em plataformas digitais e revistas impressas, alcançando ainda outros territórios e criando relações entre as produções no continente. De fato, exposições (e eventos e publicações relacionados) têm sido um local produtivo e visível de prática crítica e experimental em arquitetura; eles têm sido fundamentais para abrir novas linhas de pesquisa, testar novos formatos, tecnologias e investigações programáticas, e lançar novas polêmicas e reivindicações conceituais sobre para onde a arquitetura pode estar indo (Scott, 2012, p. 66 apud. Tonetti, 2020). arquitetura como envolvimento 142 143 reinventar o desenvolvimento em comum Figura 160: Diagrama das nebulosas de encontros. Fonte: Produção própria18. Como pesquisadora, participei de inúmeras dessas iniciativas. Assim como as manifestações de encontro das águas, os modos de encontro são muitos: encontros de estudantes de arquitetura (como os que vivi no Paraguai, Argentina, Chile, Croácia); seminários e congressos (como o arquitetura para autonomia que juntou Alberto Acosta, Yakuy Tupinambá, Iazana Guizzo); cursos (como o “Perspectivas da Terra”, que juntou saberes guarani e de matrizes afro-diaspóricas); festivais e bienais junto a entidades de classe (como as Bienais de São Paulo, Chile e Veneza); vivências de construção promovidas por escritórios de arquitetura e universidades (como aquelas em Talca e na Bahia); oficinas de educação popular (como aquelas organizadas pelo Movimento Sem Terra); redes em tessitura (como o laboratório COMUNS); além de laboratórios de aprendizagem viva e troca de experiências (como o Escola sem muros e a Vivência Tupinambá) - muitas vezes produzindo registros como vídeos e publicações. Essa prática crítica e experimental em arquitetura, que desloca o pensamento arquitetônico para outros lugares de ação, agindo também sobre suas formas de visibilidade, configura uma “prática estética” nos termos elaborados por Ranciere. Nesse sentido, conforme o filósofo, não se trata de uma oposição entre o desencantamento pós-moderno acerca do fim das utopias e possíveis respostas vanguardistas Disponível aqui em alta resolução: https://miro.com/ welcomeonboard/aXdSNUEzYUZFVTRWZ2tiZVo2cThjRld1bmlYNTBWV0JzNjZPVVAwNW9OMVMxZXowQkhtRnRMTW8zMmlJT3RucXwzMDc0NDU3MzU1NzQ3NjA3MjY3fDI=?share_link_id=691670823492 18 144 arquitetura como envolvimento por parte da arte, mas, sim, uma elaboração sobre as ‘maneiras de fazer’ que intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com as maneiras de ser e formas de visibilidade’. Ou seja, como instâncias articuladas, pensar, fazer e visibilizar definem uma estética política, como formas de inscrição do sentido da comunidade (Ranciére, 2005, p.17-18, apud. Tonetti, 2020, p. 124). Vejo-me de certa forma também como um corpo d’água, e durante os encontros que vivenciei no Brasil e na América Latina, já fomos nascente, rio, corredeira, nuvem, chuva, toró, pororoca. A cada encontro, uma realização em potência que se manifesta, uma transformação do corpo que era antes. A cada encontro, revela-se em suas pautas uma atenção particular ao que Souza (2013) identifica como espírito do tempo: a atenção ao corpo, a paisagem, e ao próprio tempo. Espaços que abrem o campo para jogo, tecendo uma rede de aprendizagem viva e pulsante, criando confluências com territórios outros – como foi o Programa Escola Sem Muros, em 2018, no Jardim Damasceno, e a Vivência Tupinambá, em 2024, na Aldeia Zabelê em Una. Hoje eu vim buscar raiz na aldeia zabelê, hoje eu vim buscar raiz na aldeia zabelê, vou por minha planta na roda, vou por minha planta na roda, vou por minha planta na roda. Hoje eu vim plantar raiz na aldeia zabelê” (Durval, 2023)19 19 Trecho de canto na Vivência Tupinambá em janeiro de 2024. reinventar o desenvolvimento em comum arquitetura como envolvimento 146 Mas afinal, por que reinventar o desenvolvimento em comum? Qual o interesse dessa reinvenção? O desenvolvimento é bem complexo. somos alvo de perseguição por causa de minérios, bauxita para fazer aluminio, a ganância do ser humano está acabando com ele próprio. Não é só a floresta que vai morrendo nesse meio, somos nós também. Se parasse a grande ganância do mundo, será que nao pararia essa coisa avassaladora, pra tirar madeira, plantar soja pro boi, arrastando e fazendo pastos pra pecuária. Será que um pouco de consciência, não melhoraria a vida? Nós fomos estudar, pra fazer com que o progresso venha sem matar a gente mesmo. Nós somos o solo, a agua dos igarapés, do rio, as raízes. Se pensasse em desenvolvimento para quem? O Ailton pergunta assim: ‘será que não chegou de desenvolver tanto?’ (...) Como a gente faz para envolver as pessoas, fazer com que elas consigam se conscientizar um pouquinho? A gente só conversa, fala da nossa realidade, mostra que o alternativo tá dentro da floresta. como a gente se sente bem, alimentando das coisas naturais. nunca pensei uma atividade pra envolver melhor, a gente sempre mostra o que temos e o que somos. as pessoas sempre voltam, que faltou uma coisinha pra completar o que é o envolvimento com a vida, com o ser humano, os animais (Odila, 2023). A pesquisa in situ, diante das questões apontadas até aqui, parece possibilitar uma imersão e envolvimento com os saberes e fazeres necessários para o agora. A epistemologia do envolvimento possibilita o vínculo com outros sujeitos em pesquisa, o que mesmo nas universidades públicas apenas uma pequeníssima parte pode construir, e auxilia na compreensão das forças que os movem e das dimensões que qualificam as relações estabelecidas ali. Este outro modo de fazer pesquisa, ou seja, uma pesquisa de campo imersiva e participante, é corrente junto aos antropólogos e sociólogos e, de modo geral, na formação das áreas de ciências humanas e sociais. Podemos dizer que tem sido praticado pela pesquisa-ação desde os sociólogos da Escola de Chicago no começo do século XX, para dar apenas um exemplo (Cf. Pereira. A conexão Chicago - São Paulo através dos primeiros urbanistas paulistas: o caso Anhaia Melo. 1999). Entretanto, pouco penetrou nas escolas de arquitetura onde certamente traria grandes benefícios, uma vez que o próprio objeto do olhar e reinventar o desenvolvimento em comum 147 estudo de arquitetos e urbanistas são os modos de habitar e as cidades – vistas não apenas como forma física e material, mas como forma política, social e, sobretudo, cultural, complexas. Nesse caso, podemos entender o envolvimento como modo direto e interacionista (cf: Topalov, Licia Valladares, Marco Antônio Mello, Pereira) e como possibilidade, portanto, de aproximação e vínculo com sujeitos concretos (que são também objetos de pesquisa com os quais a relação de co-implicação é, e deveria ser, ponto de partida). Nesses termos, o conhecimento se produz de forma dialógica, in situ; isto é, “em campo”, qualquer que seja ele20, e dentro do qual o pesquisador-arquiteto experimenta e reflete sobre as interações que privilegia quando se propõe uma arquitetura que se insere e se recompõe com sujeitos que ali estão e ainda virão a estar, continuamente se transformando. É justamente a partir da compreensão dessas dimensões que é possível reconhecer e praticar a arquitetura como dispositivo e ferramenta do envolvimento como uma ética e política que perpassa a estética e a técnica. O desenvolvimento é pautado num trabalho com recursos finitos para fazer algo infinito. É completamente irracional, não tem como, não tem pra onde ir. (...) A arquitetura só tem esse caminho: é uma profissão que trabalha para o interesse do desenvolvimento, que a base para tudo isso é a mineração. O que achamos que Sobre esse ponto, Pereira (Entrevista supra cit 2024) ajuda a situar historicamente essas questões quando sustenta que “pensar, conceber e fazer a arquitetura, propriamente dita, é pensar a história, e o tempo como múltiplas temporalidades, é pensar também ritmos, cadências com um feixe de relações, interações e movimentações que definem o espaço, antes de tudo, como uma proposta de existência. É queiramos ou saibamos, sempre um pensar situado, encarnado”. Para a autora: “avaliar e propor desvios – o que é, em suma, o que se faz quando se projeta – é um pensar co-implicado com tudo que nos rodeia: homem, pedra, bicho, planta, água... É como um conjunto de nuvens, uma nebulosa, que é como imagem de pensamento sempre um substantivo coletivo, isto é, um singular que é ao mesmo tempo plural. É portanto nesse amontoado de relações e interações com múltiplas dimensões e forças que estamos, a um só tempo, individual e coletivamente co-implicados”. E ela continua: “Creio que é sintoma da pregnância do funcionalismo e do desinteresse pela história e pelas culturas da própria profissão de arquiteto ou de urbanista, e portanto é sintoma de uma incultura o fato que estes tenham que ter olhado os artistas, ou comunidades vivendo de modo isolado, para “descobrirem” que outras culturas e as suas próprias vidas são vividas in situ sejam nas nebulosas formadas por livros, nas nebulosas das salas de aula, nas nebulosas das redes sociais e telas dos computadores e nas nebulosas de gente que chamamos “cidade”. Isto é, sobretudo nas situações concretas nas quais coletivos mas também indivíduos, que no final das contas são frutos de culturas e desinteligências, tecem qualquer projeto, plano, programa ou obra”. Pereira, M. entrevista em maio de 2023, ver igualmente: JACQUES, P.B., and PEREIRA, M.S., comps. Nebulosas do pensamento urbanístico: tomo I – modos de pensar [online]. Salvador: EDUFBA, 2018. 20 arquitetura como envolvimento 148 a arquitetura existe pra manter a indústria da mineração e do plástico? (…) Não podemos mais prestar servico para esse universo petroquimico e de mineração (Lotufo, 2023). A arquitetura como envolvimento e, portanto, como ferramenta para a reinvenção do des-envolvimento permite ser a síntese de processos de relação e vinculação contínua através da cultura e com os demais corpos da natureza, animados e inanimados, nos espaços-tempos em que se habita. Diferentemente de gestos construtivos que separam, alienam, apartam, segregam, propõe-se aqui um olhar para o que é que a arquitetura guarda como ambição e projeto, isto é, como dispositivo de criação de relação com aquilo que a atravessa, contorna, ambienta, ocupa, transborda, entrelaça, serpenteia. Como descreve Tim Ingold: O importante quando se pensa o ambiente como uma zona de interpenetração é que está continuamente em obra, continuamente crescendo na medida em que os habitantes do ambiente fazem seus caminhos através dele, seguindo diferentes percursos (Ingold, 2012, p. 73, tradução nossa)21. Os corpos em interação, as ideias de tempo e a paisagem que constroem situações, forças ou dimensões para compreender a arquitetura como envolvimento, uma vez que a reinvenção do desenvolvimento se dá em comum, em encontros com a alteridade: Os encontros com outrem são encontros com outras lentes, e estas não apenas oferecem uma outra forma de ver, mas elas nos atravessam provocando novo arranjo das forças que nos compõem, possibilitando assim uma operação de diferenciação (Guizzo, 2019, p. 145). Seria este fazer arquitetura um modo de ativar a disponibilidade e abertura dos corpos para se afetarem e se permitirem envolver? Essa seria uma relação com os conflitos e negociações, mas também que se pensa ser necessário confiar no processo de permanente produção do comum. Seria, ainda, confiar que a passagem de uma noção linear e pautada em uma visão de progresso alienante e espoliativa para a reinvenção do que chamamos de desenvolvimento, e que seria uma outra forma de desenvolver-se, pode emergir de mãos, suor, sabor, corpos envolvidos na produção dessas arquiteturas. A própria co-produção da Lo importante acerca de pensar el ambiente como una zona de interpenetración es que está continuamente en obra, continuamente creciendo al tiempo que los habitantes del ambiente hacen sus caminos a su través, siguiendo diferentes sendas. 21 reinventar o desenvolvimento em comum 149 arquitetura como cultura de habitar, que manifesta saberes e fazeres de um povo de um determinado lugar, pode ser uma semente de outras formas de organização coletiva e de uma vida em comunidade que se perceba acolhida pela Terra, respeitando ao que nos deu origem, ou simplesmente, vida. Lotufo, que se dedicou intensamente à experiência da Cantareira, argumenta: Nós como arquitetos podemos contribuir criando um ambiente adequado para a vida. Podemos incluir edificações, mas elas precisam fazer parte desse ambiente, como se fosse um organismo vivo. Como ele se manifesta em um meio? Ele é o todo, a cosmovisão, um caminho onde a energia passa, se manifesta dentro dele e diversas formas de vida, em forma de abraços, de água, calor, trocas afetivas e físicas, e isso tem que sair com muita qualidade, tomara que possamos melhorar. É simples, esquecer o que está nos enganando, parar de trabalhar para esses interesses e fazer coisas que dialoguem com a vida. Para isso precisamos entender a vida. Isso vai nos dar habilidades, ter iniciativa, melhorar o nosso meio, para ter autonomia e nos tornarmos interdependentes (Lotufo, 2023). Tais experiências são frutos de movimentos situados e envolvidos em uma dentre as muitas possibilidades de constituição do corpo, individual e coletivo. As práticas criam tônus, fortalecem a musculatura, promovem outros caminhos do pensamento a partir dos relevos do real. A arquitetura pode ser reconhecida como ferramenta para uma pedagogia do envolvimento nos territórios que habitam as beiras – geográfica, simbólica, política, onde não há limites rígidos ou definidos –, permitindo alargar o imaginário, constituído individual e socialmente, nos territórios físico e intangível. Estamos como sociedade revendo a cosmovisão que nos habita para alimentar uma outra cosmopercepção, como menciona Krenak: Talvez o dano que a gente tenha cometido contra o Planeta, no século XX, é que a gente estava preparando técnicos e formando muitos técnicos, e a ideia era habilitar o humano para incidir sobre a vida na Terra. Tirar petróleo, furar plataforma continental, devastar a Floresta Amazônica, caçar ouro para todo lado, toda essa cosmovisão constituída de um Planeta cheio de concreto, viadutos, pontes, rodoviárias, metrôs. Essa parafernalha toda é uma ofensa ao corpo da Terra. A Terra respira (Krenak, 2020). Afinal, estamos falando de criar uma pedagogia do envolvimento para podermos arquitetura como envolvimento 150 reinventar o desenvolvimento, que possa atravessar os campos disciplinares na busca de preparação dos humanos para habitar um planeta com limites. O planeta Terra é um organismo vivo, e que a continuidade da vida tem a responsabilidade de todos nós. Através da cultura que adquirimos nossos habitos, que se tornam costumes e tradições. As pessoas que fazem o movimento dessas estruturas são escravizadas para manter essa estrutura funcionando e não tem força para romper. Mas há outros povos libertos dessa colonização. Espaços de reconstrução que vão fazer com que a gente consiga romper (Tupinambá, 2023). Reconstruir as bases do desenvolvimento é urgente desde muito tempo, como Viveiros de Castro aponta desde 2011 em “Desenvolvimento econômico e reenvolvimento cosmopolítico: da necessidade extensiva à suficiência intensiva”: Penso que seria mais interessante começarmos a desenvolver (se posso usar a palavra) um conceito de suficiência antropológica. Não se trata aqui de autosuficiência, visto que a vida é diferença, relação com a alteridade, abertura para o exterior em vista da interiorização perpétua, sempre inacabada, desse exterior (o fora nos mantém, somos o fora, diferimos de nós mesmos a cada instante). Mas se trata sim de auto-determinação, de capacidade de determinar para si mesmo, como projeto político, uma vida que seja boa o bastante. O desenvolvimento é sempre suposto ser uma necessidade antropológica, exatamente porque ele supõe uma antropologia da necessidade. Estamos aqui em plena teologia da falta e da queda, da insaciabilidade infinita do desejo humano perante os meios materiais finitos de satisfazê-lo (Viveiros de Castro, 2011). Viveiros alerta para a importância da autodeterminação de uma ontologia, como capacidade de instaurar, ao nominar, um modo de existir no mundo baseado no envolvimento: como uma ideia de viver com o suficiente, com os recursos que temos. Maria Odila (2023), em seu saber calcado em um fazer e em um agora, lembra: “o dinheiro é o meio para conseguir isso, mas nem sempre o único meio. A perspectiva de que com seu tempo e esforço, poderia se ter o almoço ao alcance das mãos. Não que fosse fácil, mas era possível”. Como uma vida com uma suficiência intensiva, o bem viver seria portanto, como defende Alberto Acosta a partir dos saberes e viveres dos povos andinos: A vida em pequena escala, sustentável, equilibrada, como meio necessário para reinventar o desenvolvimento em comum 151 garantir uma vida digna para todos e a própria sobrevivência da espécie humana e do Planeta. O fundamento são as relações de produção autônomas, renováveis e autossuficientes (Acosta, 2016). Ou como diria Gilberto Gil, na canção “Eu vim da Bahia” (1985): “onde a gente não tem pra comer, mas de fome não morre. (...) Viver, pra sambar, pra cantar, pra valer, pra morrer de alegria na festa de rua, no samba de roda, na noite de lua, no canto do mar”. E assim, para habitar o espaço entre a terra e o céu, dançar para não deixar cair o céu. O movimento do envolvimento: estar-emcomum produzindo encontro, vida, subjetividade, afeto – como coloca Espinosa (2009): “ao transitar, ao mover-nos, expressarmos, abrimos possibilidades, criamos passagens. Com outros corpos, potencializamos a ação e produzimos a vida e a alegria; produzimos subjetividade, território”. Através dos encontros, das passagens, das trajetórias, do serpentear dos Rios, pensamos que o que está sendo criado nas experiências mostradas não são somente alternativas, mas possibilidades substitutivas de envolvimento, reenvolvimento e desenvolvimento. Por isso, as experiências transbordam as dimensões propostas, e exercem a sua liberdade a partir da consciência destas. Afinal, envolver é também dar contorno, dar limite; nominar para poder instaurar. Disputamos, como diria Nêgo Bispo, a guerra das denominações: Já que nominar é a arte de dominar, pois agora vou entrar na guerra chamada de guerra das denominações: para o desenvolvimento, o envolvimento. para a ecologia ou para a permacultura, a biointeração; para o pensamento linear, o pensamento circular. (...) Agora nós escrevemos denominações diferentes para coisas diferentes (Santos, 2023). Disputar o desenvolvimento significa compreender uma disputa política que vem de décadas, e que já possibilitou o reconhecimento, o acesso e a garantia de direitos - de corpos humanos e não humanos, inclusive. O desenvolvimento pode significar estar apto para o próximo passo, direção, indicação ou etapa além da que se encontrava anteriormente. O que não se entendia anos atrás é que a etapa além não necessariamente significaria onde os países ditos “desenvolvidos” se encontravam, mas sim um próximo passo dentro da nossa métrica, da nossa dança, do nosso curso. Uma promessa histórica de reparação arquitetura como envolvimento 152 e pretendida “equiparação”, de envolver-se na partilha do comum. Tavares coloca, dessa mesma forma, a necessidade de reparação como uma forma de envolvimento: Imaginar um futuro no qual uma sociedade do cuidado e da reconexão significa a recuperação da terra e a restauração do clima, propomos ideias para a reparação de comunidades humanas e não humanas através de meios da arquitetura, desenhando novos materiais e conexões subjetivas entre nós e a terra. Se nossa ação política mais urgente hoje é reconstruir o mundo de outra forma, as reparações constituem uma questão central para a prática da arquitetura, a partir das suas manifestações transescalares, transdisciplinares e trans-meios (Tavares, 2024, tradução nossa). Aqui, para um processo de reparação, também parece ser importante reconhecer e dialogar com múltiplas matrizes culturais e epistemológicas brasileiras, e porque não, latino-americanas; e as diversas trajetórias dos corpos que aqui habitam em suas cosmologias amazônicas, ribeirinhas, indigenas, quilombolas, que estabelecem uma diferença de grau, não de natureza, entre os corpos humanos e não humanos. Afinal, como lembra Peter Webb: “essa natureza do humano nasce da mesma natureza da floresta, mas é muito fácil esquecer, às vezes a gente esquece do nosso parentesco” (Webb, 2016). A proposta de denominação agora parece exigir que se dê ao contrário: criar a denominação a partir das trajetórias, vivas, vividas, envolvidas - e não impor(tar) um conceito sobre a realidade que habita a margem. Nêgo Bispo, por exemplo, embora criticando e desconsiderando as lutas que se dão no interior das universidades em diferentes campos, chega às mesmas conclusões daqueles que vêm defendendo uma atenção ao uso social e cultural dos termos. Acertadamente, contudo, nas linhas gerais sobre o que ainda é dominante em muitas áreas, ele escreve: ”não escrevemos uma teoria mas uma relatoria: é a denominação de uma trajetória. Hoje é um conceito mas não foi escrito como conceito. Hoje é um conceito porque aprendemos que as universidades comem conceitos, então vamos alimentá-las (Santos, 2023). reinventar o desenvolvimento em comum 153 Portanto, o envolvimento, ou o reenvolvimento, como defende Viveiros de Castro (2011), seria uma categoria contracolonial autodeterminada pelos povos e territórios da beira do capitalismo, de um metro que só mede a si mesmo, a partir de entendimentos e indicadores advindos da própria experiência nestes territórios. “Uma denominação diferente para uma coisa diferente”, como defenderia Bispo (2023): uma ideia que emerge dos encontros, produzindo conceitos a partir de outras culturas, outras subjetividades e outros territórios. Ardalan (2008) coloca nos mesmos termos, no sentido de “retomar as documentações sobre a realidade com a qual se aprendeu e interpretá-la a partir de conceitos extraídos da própria situação”. O que seria, portanto, uma arquitetura que decide não dominar a natureza nem os corpos humanos e não humanos, mas estabelecer um vínculo em constante relação e negociação? A quem interessa essa outra arquitetura? Que interações são possíveis de serem produzidas? As alianças cosmopolíticas e multiespécies relembram que toda ação é política. A conscientização desse poder e responsabilidade é defendida pelo arquiteto Cássio Abuno, a qual se associa uma percepção cosmopolítica que é transversal a todas as dimensões em jogo. Infelizmente, talvez, foi fora das academias, mas nos mergulhos no Rio Bananal, Arapiuns e Una, que entendi que constrói-se outros mundos em comum, a partir de encontros: da natureza com a cultura – que parece ser uma das dimensões potenciais do humano como parte ele próprio do mundo natural; da criação de relações de reciprocidade e convivência multiespécies; da compreensão de que deve se pisar devagarinho e pedir licença ao adentrar e interagir com outras cosmopercepções; da co-responsabilidade nas relações com aquilo que não se conhece plenamente; de outros modos de habitar – os quilombos, as aldeias, as periferias. Faz-se assim resistência, potência e contínua re-existência – lugares onde se manifesta o desenvolvimento dos povos do envolvimento. Trago, mais uma vez, Tomaz Lotufo para pensar junto essas outras atitudes e agenciamentos: Sinto que esse mundo que precisamos construir que aparentemente é simples mas não é, ele só vai mudar com a transformação cultural. Precisamos construir e consolidar uma cultura do cuidado, nas diversas dimensões - têm a ver com nosso modo de vida. A cultura é história no tempo, Paulo Freire dizia. Precisamos da história e do tempo para consolidar essa cultura do cuidado (Lotufo, 2023). arquitetura como envolvimento 154 O tempo de relatoria dessas trajetórias me revelou que a cultura do cuidado instaura “uma ética para as práticas espaciais”, como Iazana Guizzo (2019) enfatiza. Uma ética baseada na suficiência, na justeza, no fazer uma vida que seja boa o bastante com aquilo que se tem. Ou seja, como defendem os integrantes do escritório de arquitetura equatoriano Al Borde: fazer muito com pouco, aprender fazendo, repetindo os saberes tradicionais, e, avaliando seu alcance, reinventá-los e atualizá-los a cada encontro. Experiências de envolvimento como essas percorrem os percursos de culturas mais ou menos diferenciadas e que se irradiam a partir dos corpos, que se relacionam, expandindo para outros corpos-território. As situações descritas em In situ produziram conhecimento coletivamente, de forma a inventariar e cartografar ações, gestos, iniciativas, a partir das seguintes questões: quais as relações da arquitetura com a paisagem natural e humana do lugar onde se situa? Quais as alianças com os corpos humanos e não humanos que se estabelecem a partir da arquitetura? Como a arquitetura se faz e refaz no tempo – atravessando os hiatos e as inflexões, os afastamentos e aproximações? Como os arquitetos participam deste processo histórico, que está presente no projeto arquitetônico em si, e que é o da compreensão de que a história não se trata de um passado morto, mas uma história sempre viva e atualizada a cada vez no presente? Qual a importância e o desafio de envolvimento das pessoas na construção de um espaço? Como a cultura na sua relação com a construção (como hábito que se repete no tempo) pode instaurar uma arquitetura, e assim, envolvimento? Quais os modos de fazer arquitetura? Por quem são praticados e quais as forças e interesses que os movem? Analisando os processos, técnicas, estéticas, a partir das dimensões e das perguntas propostas aqui, pode-se avaliar se estão a serviço da ética e política de desenvolvimento ou de envolvimento. A investigação aqui apresentada buscou mapear as contribuições de algumas experiências para o campo de estudo e prática da disciplina da arquitetura e do projeto participativo; buscando contribuir para a revisão da prática de arquitetura ao sistematizar práticas espaciais de envolvimento. O interesse aqui foi reconhecer as práticas espaciais sustentadas por povos e comunidades diversas das beiras do Brasil e buscar chamar atenção para eles, para que as práticas dos arquitetos e arquitetas possam confluir com estes saberes e fazeres do envolvimento. Como estas e outras experiências de envolvimento podem informar outros modos de construir e até mesmo praticar arquitetura? reinventar o desenvolvimento em comum 155 A partir dos encontros com estas experiências, pode-se perceber que tais arquiteturas podem ser fomentadas nas universidades a partir da educação (e da aprendizagem experiencial a partir do ativamento da sensibilidade de cada aluno), considerando as dimensões do envolvimento e as práticas de uma pedagogia do envolvimento, isto é, da dimensão ética e estética. Mais diretamente, no campo profissional, talvez fosse possível, ainda, consolidar as assessorias técnicas populares, capacitando os profissionais para uma escuta local e um vínculo com todo o ciclo produtivo, reconhecendo de onde vêm os materiais utilizados na construção, para onde vão os resíduos desta obra. Enfim, parece desejável fomentar alianças com atores que ocupam espaços de poder, com o poder público e os criadores de políticas públicas, tomadores de decisão em geral e financiadores, além da mídia, adotando tecnologias sociais e ecológicas, que surjam do encontro de saberes empíricos e técnicos, multiplicando a disseminação de informação, elaborando normas, e valorizando os avanços técnologicos de saberes tradicionais, de forma a fomentar as práticas ditas alternativas para se tornarem substitutivas. Compreendemos, portanto, que a arquitetura pode promover o envolvimento de diversos modos, sendo simultaneamente global – enquanto movimento pautado por uma ética e política comuns – e situada – enquanto técnica e estética, em interação com corpos específicos: materiais, luz, cor, elementos da natureza, ar, ondas de som, por exemplo – que são territorializados em paisagens diversas em cada situação. Em se tratando de um país de escala continental como o Brasil, o desafio é o da multiplicação e distribuição dessas arquiteturas, considerando a subalternização intelectual ainda operante, além das assimetrias no reconhecimento dos direitos civis e sociais que se traduz na desigualdade de acessos. Entender a complexidade desse ecossistema e das relações possíveis de serem estabelecidas pode trazer maior clareza para compreender os papéis necessários em um trabalho de confluência de várias escalas para que qualquer mudança se torne possível. Qual pode vir a ser o papel da arquitetura no movimento pela redução das desigualdades e da subalternização que vêm junto do desenvolvimento? A relatoria aqui realizada é de alguns poucos percursos, costurando-os junto a um tecido mais amplo, na narração e escrita dessas memórias e na abertura do campo comum de recriação e produção de conhecimento a partir dos arquitetura como envolvimento 156 encontros parecem ser ferramentas e estratégias importantes na luta por justiça socioespacial e climática. Precisamos lutar em todas as escalas, igualmente importantes - dentre elas o trabalho de escrever, como coloca Abuno em nossa entrevista. Reconhecer os direitos dos vários modos de habitar; instaurar limites que assegurem e salvaguardem estas práticas; e sensibilizar pessoas que não vivem estes encontros e não partilham desta cosmopercepção se revelam ações possíveis para juntos reinventarmos o desenvolvimento. O que buscou-se relatar aqui são tecnologias, inteligências coletivas, nortes a partir do Sul: das beiras dos rios, do Brasil, das periferias do capitalismo, da América Latina. Uma aposta no papel político e simbólico da escrita como uma tentativa de contribuir com as discussões sobre projetos políticos, um estarem-comum includente, como aponta Yakuy Tupinambá: Trazer este tema para dentro da academia, a importância de discutir o envolvimento, penso que já é um fio que conduz para uma travessia. quando uma pessoa dentro de uma estrutura como essa, tem liberdade de trazer algo para se construir ali dentro que traz uma abertura para essas rupturas que precisamos fazer, me deixa cada vez mais com a chama da esperança acesa. não tem outro caminho se nao formos nessa busca. formarmos uma rede para essas conexões. isso só vai se dar quando houver o entendimento, a troca de saberes, o respeito, a confiança, a generosidade e corresponsabilidade. quando você mergulhar, vai trazer ensinamentos, é preciso sentir, não é superficial. essas conexões que vao formando essa rede. abrindo esses espaços (Tupinambá, 2023). conclusão arquitetura como envolvimento 158 Esta dissertação se propôs a reconhecer e valorizar, delimitar e organizar saberes e fazeres do envolvimento a partir da arquitetura de contextos sociobiodiversos, para então propor outros entendimentos para um desafio que é cosmopolítico. Através destes modos situados e não hegemônicos, pudemos reconhecer três de muitos fazedores de arquiteturas que têm muito a nos ensinar no aqui e agora sobre quais são as ferramentas necessárias para habitar mundos em comum. A partir dessas arquiteturas dos povos que habitam as bordas – migrantes que habitam as periferias das grandes cidades, indígenas, ribeirinhos, quilombolas –, pudemos ver quais são as arquiteturas que estão sendo produzidas para além das que trabalham para o desenvolvimento como progresso linear e de consumo que insiste na obsolescência programada e na financeirização das relações. A nossa aposta está na produção e valorização das arquiteturas que operam como ferramentas para instaurar modos de envolvimento com a Terra; que prestam serviço para a cultura de permanência da vida; que permitem aos humanos habitarem junto aos outros corpos que já a habitam; que instauram um processo de co-implicação in situ; que criam formas ao existir, e que ao existirem, vão se metamorfoseando ao longo do tempo por estarem vivas. Arquiteturas que comprometem aqueles que ali estão, corresponsáveis por cuidar, manter, gerir o comum; que criam, além de conexões, possibilidades de pertencimento, manifestando um propósito e construindo identidades coletivas e individuais; que possibilitam criar o reencantamento com os rituais cotidianos através do afeto; que rememoram a todo tempo que habitamos um planeta com limites e um cosmos incógnito e aparentemente ilimitado, precisando usar somente o necessário e entendendo que a Terra não nos pertence, mas pertencemos a ela. Os corpos criam paisagens, as paisagens criam corpos; o tempo permite esse entrelaçamento. Como Iazana Guizzo, seguindo os passos de Lina Bo Bardi, aponta - é preciso que a arquitetura seja como: Uma habitação mágica que cria, fabula, transforma, entendemos que um ambiente construído está entrelaçado aos corpos que o habitam. E esse entrelaçamento não cumpre apenas uma função de abrigo. (...) também é uma experiência. O corpo da edificação, o arranjo de sua materialidade e imaterialidade, também possui o poder de afetar e ser afetado (Guizzo, 2019, p. 180). conclusão 159 Entende-se aqui um outro modo de habitar o mundo, que não se mede por entidades quantificáveis de pedaços fragmentados, mas sim por relações e processos imanentes de justeza, que na imbricação com as resistências do real, abrem passagens para fazer mover – se medindo por aquilo que é justo na justiça; pela finitude, que é diferente da precariedade. Retomo aqui Viveiros: Estou convicto de que é urgente, não “parar para pensar”, mas pensar para não parar; é urgente começar a pensar bem para não parar de vez. É preciso aprender a decrescer para não morrer. O Brasil é grande, mas o mundo é pequeno. A Terra não vai nada bem, neste começo de século. Há hoje uma insustentabilidade aguda dos padrões globais de geração, distribuição e consumo da energia necessária à vida humana. Nosso país é um dos poucos que ainda têm viabilidade do ponto de vista de sua base de recursos. O Brasil ostenta uma das populações histórica e culturalmente mais diversificadas do mundo: 220 povos indígenas, uma imensidão de descendentes de africanos, de imigrantes europeus e asiáticos, de árabes, de judeus; gentes rurais e urbanas das mais diferentes origens étnicas e culturais, habitando uma variedade de formações naturais que, por sua vez, abrigam a mais rica biodiversidade do planeta. Sociodiversidade e biodiversidade deveriam ser nossos principais trunfos em um mundo em acelerado processo de globalização. Mas eis-nos aqui, ainda e sempre, teimando em serrar o galho em que estamos sentados, com uma política de comércio exterior que vem aplicando um modelo de desenvolvimento ambientalmente suicida, economicamente retrógrado, socialmente empobrecedor e culturalmente alienante (Viveiros de Castro, 2011). Buscou-se nas páginas precedentes uma métrica, um passo, um ritmo para com o qual possamos compor juntos outros desenhos de mundos através do envolvimento; que, ao fazer arquitetura, dançam com o tempo, os corpos, a paisagem. As dimensões existem aqui não para aprisionar as experiências, mas para oferecer uma delimitação de um campo que possa apoiar no entendimento da complexidade que é cada uma das experiências e abrir a discussão para o que podem vir a ser. Propôs-se aqui um campo de reflexão e debate, para que em futuros encontros possamos reinventar o desenvolvimento e autodeterminar, coletivamente, qual a noção que designa o que buscamos: desenvolvimento, reenvolvimento, ou simplesmente, envolvimentos. lista de figuras Figura 01: Antônio Bispo dos Santos, Nego Bispo. Fonte: Divulgação/CCOM, 2023. Figura 02: Rio Berlengas, Maranhão, onde habitava Nego Bispo. Fonte: Raifran Ferreir, 2018. Figura 03: Ailton Krenak em Minas Gerais. Fonte:Hiromi Nagakura, 1990. Figura 04: Ailton Krenak no dia de nossa conversa. Fonte: Florian Kopp, 2024. Figura 05: Ailton Krenak e Peter Webb durante o encontro Brechas Urbanas. Fonte: APeres Fotografia, 2017. Figura 06: Até onde o mar vinha, até onde o rio ia. Fonte: Guga Ferraz, 2010. Figura 07: Trecho do filme KRENAK. Fonte: Lucas Barreto, 2017. Figura 08: Trecho do Rio Doce tomado pela lama. Fonte: Fred Loureiro, 2016. Figura 09: Povo Krenak no Parque Estadual do Rio Doce. Fonte: Arquivo do Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES). Figura 10: A denúncia feita por Burle Marx, texto de autoria desconhecida, Jornal do Brasil, 1984. Fonte: Exposição Lugar de Estar, 2024. Figura 11: Destruição da fauna e da flora, a face negativa do progresso. Texto de autoria desconhecida, A Gazeta, 1973. Fonte: Exposição Lugar de Estar, 2024. Figura 12: Amazônia: ontem, hoje, e por pouco tempo mais. Fonte: Alex Fisberg, 2010. Figura 13: Encontro da Rocinha com São Conrado, no Rio de Janeiro. Fonte: Johnny Miller, 2021. Figura 14: Inundação decorrente das chuvas no Rio Grande do Sul. Fonte: Matheus Piccini, 2024. Figura 15: Deslizamento decorrente das chuvas em Petrópolis, Rio de Janeiro. Fonte: Tomaz Silva, 2022. Figura 16: Céu alaranjado visto em São Paulo das queimadas da Amazônia. Fonte: André Lucas, 2020. Figura 17: Cidade de São Paulo e o crescimento infinito. Fonte: Diogo Moreira, 2023. Figura 18: Construção da Usina de Belo Monte. Fonte: Paulo Moreira Leite, 2015. Figura 19: Trabalhadores na construção de Brasília. Fonte: Marcel Gautherot, 1958. Figura 20: Poluição de Cubatão, São Paulo. Fonte: Luiz Prado, 1988. Figura 21: Povo Yanomami. Fonte: Hiromi Nagakura, 1990. Figura 22: Povo Yanomami, Aldeia Demini-Watoriki. Fonte: Hiromi Nagakura, 1990. Figura 23: Aldeia Demini-Watoriki. Fonte: Hiromi Nagakura, 1990. Figura 24: Crianças Yanomami na Aldeia Demini-Watoriki. Fonte: Hiromi Nagakura, 1990. Figura 25: Povo Krikati. Fonte: Hiromi Nagakura, 1990. Figura 26: espaço cultural jardim damasceno, rio bananal-canivete, brasilândia, são paulo Figura 27: levanta amotara zabelê, rio una, bahia Figura 28: cooperativa turiarte, rio arapiuns, anã, pará Figura 29: Noêmia Mendonça. Fonte: Rafael Duckur. Figura 30: Linha do tempo Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Produção própria. Figura 31: Yakuy Tupinambá. Fonte: Mirrah da Silva. Figura 32: Linha do tempo Levanta Zabelê. Fonte: Produção própria. Figura 33: Maria Odila. Fonte: Produção própria Figura 34: Linha do tempo Cooperativa Turiarte. Fonte: Produção própria. Figuras 35 e 36: Rio Bananal e Serra da Cantareira. Fonte: Victor Paris de Araújo. Figuras 37 e 38: Yakuy e Joza Tupinambá e Lagoa do Mabaço. Fonte: Produção própria e Neto Carriço. Figura 39 e 40: Rio Arapiuns e Imagem de Satélite. Fonte: Produção própria e Google Maps. Figuras 41 a 46: Atividades de regeneração urbana com o Instituto A Cidade Precisa de Você no Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Clayton João, 2022. Figuras 47 a 49: 4º Festival A Cidade Precisa de Você no Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Victor Paris, 2022. Figuras 50 a 52: Atividades do projeto ECOCIDADE com A Cidade Precisa de Você e Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Victor Paris, 2022. Figuras 53 a 55: Vivências Escola Sem Muros no Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Raffaela Arcuschin, 2017. Figuras 56 a 59: Atividades com o grupo de mulheres do Espaço Cultural Jardim Damasceno: Perifa Alimenta. Fonte: Tata Barreto, 2023. Figuras 60 a 62: Vivências Escola Sem Muros no Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Raffaela Arcuschin, 2017. Figura 63: Yakuy e Joza Tupinambá no braço de Rio da Reserva Biológica de Una. Fonte: Produção própria, 2016 Figura 64 e 65: Yakuy e Joza Tupinambá e a Lagoa do Mabaça Sul. Fonte: Produção própria, 2016 Figuras 66 a 68: Yakuy Tupinambá no manguezal da Reserva Biológica de Una. Fonte: Júlia Auler, 2016 Figura 69: Yakuy Tupinambá no manguezal da Reserva Biológica de Una. Fonte: Produção própria, 2016 Figuras 70 e 71: Construções vernaculares na Aldeia Zabelê. Fonte: Produção própria, 2019. Figura 72: Paisagem de dendezeiros na Aldeia Zabelê. Fonte: Produção própria, 2016. Figuras 73 a 75: Paisagem de dendezeiros e feitura de azeite de dendê na Aldeia Zabelê. Fonte: Mirrah da Silva, 2023 Figuras 76 a 82: Vivência Tupinambá com Floresta Cidade na Aldeia Zabelê. Fonte: Emmanuele Araújo, 2024 Figuras 83 a 85: Rituais e modos de habitar Tupinambá. Fonte: Mirrah da Silva, Figuras 86 a 90: Saberes e fazeres ribeirinhos. Fonte: Chema Llanos/Saúde e Alegria. Figuras 91 a 94: Trançado de palha de Tucumã das mulheres da Cooperativa Turiarte. Fonte: Luca Vittorio. Figura 95 a 97: Saberes e fazeres do trançado de palha de tucumã e do tingimento natural. Fonte: Chema Llanos. Figuras 98 a 103: Saberes e fazeres do trançado de palha de tucumã e do tingimento natural. Fonte: Chema Llanos. Figuras 104 a 109: Trançado de palha de Tucumã das mulheres da Cooperativa Turiarte. Fonte: Marcelo Oseas. Figuras 110 a 114: Trançado de palha de Tucumã das mulheres da Cooperativa Turiarte. Fonte: Theo. Figuras 115 a 119: Construções do modo de habitar em Anã. Fonte: Produção própria, 2018. Figuras 120 e 121: Construções do modo de habitar em Urucurea e Anã. Fonte: Produção própria, 2018. Figuras 122 a 124: Construções do modo de habitar em Anã. Fonte: Produção própria, 2018. Figuras 125 a 127: Paisagem ribeirinha em Anã. Fonte: Produção própria, 2018. Figura 128: Rio Arapiuns. Fonte: Produção própria, 2018. Figura 129: Modo de habitar e paisagem ribeirinha. Fonte: Saúde e Alegria, 2018. Figura 130: Passeio de barco no Rio Una. Fonte: Emmanuele Araújo, 2024. Figura 131: Capoeira no Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Victor Paris, 2022. Figuras 132 e 133: Trançados presentes na Aldeia Zabelê. Fonte: Produção própria, 2019. Figura 134: Rio Bananal-Canivete no entorno do Espaço Cultural. Fonte: Produção Própria, 2017. Figuras 135 e 136: Joza Tupinambá no manguezal durante a Vivência Tupinambá com Floresta Cidade. Fonte: Julia Auler, 2024 Figuras 137 a 142: Corpos não humanos da Aldeia Zabelê: as cobras, os caranguejos, o rio, a palha. Fonte: Emmanuele Araújo, 2024 Figuras 143 e 144: Construções do modo de habitar em Anã. Fonte: Produção própria, 2018. Figuras 145 a 147: Vivências Escola Sem Muros no Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Raffaela Arcuschin, 2017. Figura 148: Cortejo do Escola Sem Muros no Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Pepe Guimarães, 2017. Figuras 149 a 151: Telhado de chapéu de palha. Fonte: Produção própria, 2018. Figuras 152 e 153: Modos de construir durante a Vivência Tupinambá com Floresta Cidade. Fonte: Emmanuele Araújo, 2024 Figuras 154 a 159: Vivências Escola Sem Muros no Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Pepe Guimarães, 2017. Figura 160: Diagrama das nebulosas de encontros. Fonte: Produção própria. referências bibliográficas ABUNO, Cassio. [Entrevista cedida a] Marcella Arruda. Rio de Janeiro, maio de 2023. [A entrevista encontra-se transcrita no apêndice desta dissertação] ACOSTA, Alberto. Buen vivir. In: Instituto a cidade precisa de você e Escola sem muros. Arquitetura para autonomia - ativando territórios educadores. São Paulo: a cidade press, 2019. p.79. ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia literária, Elefante, 2016. ALVES, Nayane. [Entrevista cedida a] Marcella Arruda. Rio de Janeiro, maio de 2023. [A entrevista encontra-se transcrita no apêndice desta dissertação] ARNSTEIN, Sherry R. (1969) A Ladder Of Citizen Participation. Journal of the American Institute of Planners, n.35, v.4, p.216-224, DOI: 10.1080/01944366908977225. Disponível em: https://www.tandfonline.com/ doi/abs/10.1080/01944366908977225. Acesso em: BARONE, A.C.C.; DOBRY, S.A. “Arquitetura participativa” na visão de Giancarlo de Carlo. PosFAUUSP, São Paulo, n.15, p.18-31, 2004. DOI:10.11606/issn.23172762.v0i15p18-31. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/posfau/article/ view/43369. Acesso em: BELTRAN, Elizabeth Peredo. Ecofeminismo. In: SÓLON, Pablo (org.). Alternativas sistêmicas: Bem Viver, decrescimento, comuns, ecofeminismo, direitos da Mãe Terra e desglobalização. São Paulo: Editora Elefante, 2019, p. 124. BERNARDIN-OCOSTA, J.; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón. Introdução: Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. In: BERNARDINOCOSTA, J.; MALDONADO-TORRES, N.; GROSFOGUEL, R. (org.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2019, p. 926. BESSE, Jean Marc. O gosto do mundo: exercicios de paisagem. Tradução Annie Cambe. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014. BICHARA, Tatiana Alves Cordaro. “Dança para todos”: cartografias de experiências artísticas da oficina de dança e expressão corporal como lugar- ponte. 2014. Tese (Doutorado em Psicologia Social) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. doi:10.11606/T.47.2014.tde08042015-163525. BORJA LÓPEZ, Marialuisa Verónica. THE SOCIAL-ECOLOGICAL POTENTIAL OF ARCHITECTURE: Lessons from Conversations with Women Architects in Contemporary Latin America. 2023.Thesis (Master of arts in development studies). – International Institute of Social Studies, Haia, 2023. BOTAS, Nilce Cristina Aravecchia. O pensamento decolonial: caminhos para o ensino de arquitetura na América Latina. América - Revista da Pós Graduação da Escola da Cidade, n. 1, 2018, p. 76-81. BROWN, G.; FEIGENBAUM, A.; FRENZEL, F.; MCCURDY, P. Protest Camps in International Context: spaces, infrastructures and medias of resistance. Bristol: Policy Press, 2017. EU vim da Bahia. Intérprete: Gal Costa. Compositor: Gilberto Gil. In: CAETANO, Gal, Gil e Bethânia. Intérpretes: Caetano Veloso, Gillberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia. RCA, 1989. Disponível em: https://open. spotify.com/track/58RbWdA7Pqzo4GRams6TMD?si=ifDWbFhhRYWd3_ qJZdwA_Q&context=spotify%3Aalbum%3A5HIAqMijAQwtFJfvKRrb5I. Acesso em: EXPOSIÇÃO “LUGAR DE ESTAR”. Roberto Burle Marx. MAM, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2024. DANOWSKI, Deborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis: Instituto Socioambiental, 2014. DE CARLO, Giancarlo. An Architecture of Participation. Perspecta, n. 17, 1980, p. 74-79. EUGENIO, Fernanda. Caixa Livro AND. Rio de Janeiro: Fada Inflada, 2019. Publicação realizada pelo AND Lab | Arte-Pensamento & Políticas da Convivência, com o apoio da Direção Geral das Artes - República Portuguesa. FARIA E SILVA, Luis Octavio. [Entrevista cedida a] Marcella Arruda. Rio de Janeiro, maio de 2023. [A entrevista encontra-se transcrita no apêndice desta dissertação] FERREIRA MONTAG, Mariana. A Casa de la Abuela Cuentacuentos. 2022. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2022. FERRO, Sergio. Arquitetura e trabalho livre. Organização Pedro Fiori Arantes. São Paulo: Cosac Naify, 2006. FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação – uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. 3. ed. São Paulo: Cortez & Moraes, 1980. GALINDO, Maria. La pandemia es el capitalismo. Lavaca, 2021. Disponível em: https://lavaca.org/mu156/capitalismo-pandemico-lo-que-esta-en-juegoecocidio-y-suicidio/. Acesso em: GOUVEA, Julia. [Entrevista cedida a] Marcella Arruda. Rio de Janeiro, maio de 2023. [A entrevista encontra-se transcrita no apêndice desta dissertação] GUIZZO, Iazana. A imersão Tupinambá. Una, 2023. GUIZZO, Iazana. Reativar territórios: o corpo e o afeto na questão do projeto participativo. Belo Horizonte: Quintal Edições, 2019. INGOLD, Tim. Ambientes para la vida: Conversaciones sobre humanidad, conocimiento y antropología. Ediciones Trilce, Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación y Extensión universitaria, Universidad de la República (Udelar). Montevideo: 2012. INGOLD, Tim. Humanidade e animalidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 10, n. 28, 1995, p. 39-54. Disponível em: <http://www.anpocs. com/images/stories/RBCS/28/rbcs28_05.pdf>. Acesso em: 2023. JACQUES, P.B., and PEREIRA, M.S. (Org.), comps. Nebulosas do pensamento urbanístico: tomo I – modos de pensar [online]. Salvador: EDUFBA, 2018, 335 p. ISBN 978-85-232-2032-7. https://doi.org/10.7476/9788523220327. KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã Yanomami. Tradução Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. KOTHARI, A; SALLEH, A. ESCOBAR, A.; DEMARIA, F.; ACOSTA, A. (Org.). Pluriverso: dicionário do pós-desenvolvimento. São Paulo: Elefante, 2021. KRENAK, Ailton. Ailton Krenak: “A Terra pode nos deixar para trás e seguir o seu caminho” [Entrevista concedida a] Anna Ortega. UFRGS: Jornal da universidade, nov. 2020. Disponível em: https://www.ufrgs.br/jornal/ailtonkrenak-a-terra-pode-nos-deixar-para-tras-e-seguir-o-seu-caminho/. Acesso em: KRENAK, Ailton. Educação e Arte na Cosmopercepção Indígena. 2022. 1 vídeo (145 min). Publicado pelo canal UFR. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=eYLWTKms5dQ. Acesso em: KRENAK, Ailton. [Entrevista cedida a] Marcella Arruda. Rio de Janeiro, maio de 2024. [A entrevista encontra-se transcrita no apêndice desta dissertação] KRENAK, Ailton. Ideia de natureza. In: MAIA, Bruno (org.) Caminhos para a cultura do bem viver. Rio de Janeiro: 2020, p. 13. Disponível em: https://www. biodiversidadla.org/Recomendamos/Caminhos-para-a-cultura-do-Bem-Viver. Acesso em: KRENAK, Ailton. Memórias Ancestrais – Ailton Krenak – História e memória. 2023. 1 vídeo (22 seg). Publicado pelo canal Selvagem ciclo de estudos sobre a vida. Disponivel em: https://www.youtube.com/watch?v=-BXAcF7g3IQ. Acesso em: LARA, Fernando Luiz. Paulo Freire como antídoto à hegemonia da abstração. Arquitextos, São Paulo, ano 22, n. 256.00, Vitruvius, set. 2021. Disponível em: https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/22.256/8240. Acesso em: LAROSSA, Jorge Bondía. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Universidade de Barcelona, Espanha. Tradução João Wanderley Geraldi. Universidade Estadual de Campinas, Departamento de Lingüística. 2002, p 21 e p.24. LOKKO, Lesley. Lesley Lokko on the 2023 Venice Architecture Bienale:”I Hope It Porvokes the Audience to Think Differently and More Empathetically”. ArchDaily, abr. 2023. Disponível em: https://www.archdaily.com/999671/lesley-lokko-onthe-2023-venice-architecture-biennale-i-hope-it-provokes-the-audience-tothink-differently-and-more-empathetically. Acesso em: LOTUFO, Tomaz. [Entrevista cedida a] Marcella Arruda. Rio de Janeiro, maio de 2023. [A entrevista encontra-se transcrita no apêndice desta dissertação] MARQUEZ, Renata. Quase-Etnografa-etc. Revista Mundaú, n. 9, 2020, p. 209233. MENDONÇA, Noêmia. [Entrevista cedida a] Marcella Arruda. Rio de Janeiro, maio de 2023. [A entrevista encontra-se transcrita no apêndice desta dissertação] NANCY, Jean-Luc. The Inoperative Community. Minneapolis: University of Minnesota Press,1991. NEGRI, Antonio. Antonio Negri e Gilberto Gil. 2006. 1 vídeo (47 min). Publicado pelo canal Jose Murilo. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=rGrubIVxzOE&gl=BR. Acesso em: ODILA, Maria. [Entrevista cedida a] Marcella Arruda. Rio de Janeiro, maio de 2023. [A entrevista encontra-se transcrita no apêndice desta dissertação] OVIEDO CASTELNUOVO, Sebastián Ignacio. Spatializing the communal: Material articulations of dispossession and resistance in the Communas of Ilaló. 2022. Thesis (Master of urbanism, Landscape and Planning) – International Center of Urbanism, Leuven, 2022. PASSOS, E; KASTRUP, V; ESCOCIA, L. (Org.) Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. PEREIRA, Margareth. [Entrevista cedida a] Marcella Arruda. Rio de Janeiro, maio de 2023. [A entrevista encontra-se transcrita no apêndice desta dissertação] PRECIADO VELASQUEZ, Oscar Eduardo. El Arquitecto y La Experiencia de Trabajo Con Comunidades En Ecuador: Un Abordaje Sobre Metodologías. 2020. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito Santo, 2011. ROCKSTROM, J. et al. A safe operating space for humanity. Nature, v. 461, 2009, p. 472-475. SANTOS, Antônio Bispo dos. Aquilombar o Antropoceno, Contra-colonizar a Ecologia. 2023. 1 vídeo (106 min). Publicado pelo canal uspfflch. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7RCuzE6b83k. Acesso em: SANTOS, Antônio Bispo dos. SOMOS DA TERRA. Piseagrama, Belo Horizonte, n.12, 2018, p. 44-51. SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. “Como e quando pode um arquiteto virar antropólogo?”. In: VELHO, Gilberto (org). O desafio da cidade: novas perspectivas da Antropologia Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1980. SHKLAR, Judith Nisse. The faces of injustice. New Haven: Yale University Press, 1990. SILVA, Marina. Prefácio. In: LOUBACK, Andréia Coutinho (coord.). Quem precisa de justiça climática no Brasil? Brasília, DF: Gênero e Clima: Observatório do Clima, 2022. Quem Precisa de Justiça Climática no Brasil?, 2022. Disponível em: https://generoeclima.oc.eco.br/lancamento-quem-precisa-de-justicaclimatica-no-brasil/. Acesso em: SNOOK, Jenny. How Does Construction Impact the Environment. Initiafy. 2017. SOUZA, Gisela Barcellos de. Tessituras híbridas ou duplo regresso: encontros latino-americanos e traduções culturais do debate sobre o Retorno à Cidade. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) — Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. SVAMPA, Maristella. As fronteiras do neoextrativismo na América Latina: Conflitos Socioambientais, giro ecoterritorial e novas dependências. São Paulo: Editora Elefante, 2019. TAVARES, Maria da Conceição. Roda viva/Maria da Conceição Tavares/1995. 1995. 1 vídeo (88 min). Publicado pelo canal Roda Viva. Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=xKXT_gfBbIA. Acesso em: 10 junho 2023. TAVARES, Paulo; DE MATOS, Gabriela. “A Terra como tecnologia ancestral e do futuro”: entrevista com Gabriela de Matos e Paulo Tavares. Entrevista cedida a [Romullo Baratto e Victor Delaqua]. Archdaily, jun. 2023. Disponível em: https://www.archdaily.com.br/br/1000485/terra-como-tecnologia-ancestral-edo-futuro-entrevista-com-gabriela-de-matos-e-paulo-tavares. Acesso em: TAVARES, Paulo. 2023. Reparation Architecture. [Material de apoio à disciplina Advanced Studio VI, lecionada em Columbia University]. Disponível em: https:// edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/7927940/mod_resource/content/1/Paulo%20 Tavares_Reparation%20Architecture_GSAPP%20Studio.pdf. Acesso em: TONETTI, Ana Carolina. Interseções entre arte e arquitetura: práticas espaciais críticas. 2020. Tese (Doutorado em Projeto, Espaço e Cultura) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020. doi: 10.11606/T.16.2020.tde-17032021-195700. Acesso em: 10 jun. 2024. TUPINAMBÁ, Yakuy. [Entrevista cedida a] Marcella Arruda. Rio de Janeiro, maio de 2023. [A entrevista encontra-se transcrita no apêndice desta dissertação] VALL, Natasha. Social engineering and participation in Anglo-Swedish housing 1945–1976: Ralph Erskine’s vernacular plan. Planning Perspectives, n. 2, v. 28, 2013, p. 79. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Desenvolvimento econômico e reenvolvimento cosmopolítico: da necessidade extensiva à suficiência intensiva. Sopro, mai. 2011. Disponivel em: http://culturaebarbarie.org/sopro/outros/suficiencia.html. Acesso em: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Indígena. n-1 Edições, 15 jun. 2023. Disponível em: https://medium.com/n-1-edi%C3%A7%C3%B5es/ind%C3%ADgenaeduardo-viveiros-de-castro-6f2cddcd7826. Acesso em: YANEVA, Albena. Five Ways to Make Architecture Political: An Introduction to the Politics of Design Practice. Londres: Bloomsbury academic, 2017.