UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
MARCELLA S. M. P. ARRUDA
arquitetura como envolvimento
corpos, paisagem e tempo
Rio de Janeiro
2024
Marcella Soares de Moura de Paula Arruda
Arquitetura como Envolvimento: corpos, paisagem e tempo
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Urbanismo
(PROURB), da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (FAU-UFRJ) como requisitos parcial a
obtenção do título de Mestre em Arquitetura e
Urbanismo.
Orientadora: Profa. Dra. Margareth Aparecida Campos da Silva Pereira
(PROURB/FAU-UFRJ)
Rio de Janeiro
2024
Marcella Soares de Moura de Paula Arruda
Arquitetura como Envolvimento: corpos, paisagem e tempo
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Urbanismo (PROURB),
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (FAU-UFRJ)
como requisitos parcial a obtenção do título de
Mestre em Arquitetura e Urbanismo.
Aprovada em:
_______________________________
(Orientadora: Profa. Dra. Margareth Aparecida Campos da Silva Pereira
- PROURB/FAU-UFRJ)
_______________________________
Prof. Dr. Rodrigo Paraizo (PROURB/FAU/UFRJ)
_______________________________
Prof. Dr. Guilherme Wisnik (FAUUSP)
_______________________________
Profa. Dra. Iazana Guizzo (FAU/UFRJ)
agradecimentos
Agradeço às mulheres que abriram caminhos, me ajudaram a dar contorno, para
que eu pudesse caminhar com firmeza. Agradeço àqueles que me permitiram
confluir, com potência. A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - Brasil (CAPES) pelos auxilios concedidos fundamentais para a
realização deste trabalho; à Prof. Dra. Margareth Pereira, pela paciência, leitura
precisa e trocas instigantes, sem as quais esse trabalho não seria possível; às
comunidades do Espaço Cultural Jardim Damasceno, Levanta Amotara Zabelê
e Cooperativa Turiarte, por me receberem com intimidade e confiança radicais e
compartilharem comigo sua história de vida e luta; as anciãs Noêmia Mendonça,
Yakuy Tupinambá e Maria Odila, as verdadeiras autoras das arquiteturas
apresentadas; aos membros do LeU - Laboratório de Estudos Urbanos e do
PROURB, parceiros de investigação; e às várias pessoas que, de maneira direta
ou indireta, contribuíram para que este trabalho fosse realizado, especialmente
Laura Pappalardo pelo olhar pra dentro e pra fora; Renata pelo açaí; à Pedro
Urano, pela escuta atenta; à Julia Delmondes, pela sintonia fina; à David
Sperling, pelo comum partilhado; à Eleonora Aronis, pelas pitangas e voltas na
Lagoa; à Clara Passaro, pela companhia nos mergulhos; à Iazana Guizzo pela
generosidade da partilha; à Tomaz Lotufo, Cassio Abuno, Luis Octavio Faria,
Julia Gouvêa e Nayane Alves pela parceria; à Marcia Moura, Ricardo e Rodrigo
Arruda por tudo, sempre; e às diversas paisagens que me envolvem ao longo
do rio do tempo.
Afinal, a arquitetura como envolvimento se faz estando-em-comum.
resumo
ARRUDA, Marcella Soares de Moura de Paula. Arquitetura como envolvimento: corpos, paisagem e tempo. Rio de Janeiro, 2024. Dissertação (Mestrado em
Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2024.
Quais são as práticas espaciais no contexto das bordas do Brasil que insistem em
existir diante de sucessivos colapsos climáticos, econômicos, políticos e sociais
vinculados ao paradigma do desenvolvimento? Como práticas espaciais críticas
e criativas podem contribuir para criar o envolvimento do ser humano com o
seu entorno? A dissertação investiga a ideia de envolvimento, noção proposta
pelos filósofos, o indígena e o quilombola, respectivamente, Ailton Krenak e
Nêgo Bispo, como um marco do pensamento contemporâneo brasileiro - e
porque não latino-americano, se entendida a sua correlação com conceitos
como do bem viver; e sua repercussão e tradução para o campo da arquitetura.
Foram abordadas experiências e práticas de arquitetura considerando-as em
disputa sobre o sentido e o significado da ideia de envolvimento, no que tange
sua relação com a paisagem, bem como com as práticas que a instituem como
corpos e tempo. Da compreensão destes agenciamentos, imagina-se emergir
reflexões sobre a reinvenção dos modos de produzir a arquitetura a partir do
envolvimento nas bordas dos territórios brasileiros.
Palavras-chave: Envolvimento; Práticas Espaciais Críticas; Agenciamentos.
abstract
ARRUDA, Marcella Soares de Moura de Paula. Arquitetura como envolvimento:
corpos, paisagem e tempo. Rio de Janeiro, 2024. Dissertação (Mestrado em
Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2024.
Which are the spatial practices in the context of the borders in Brazil that insist
on existing in the face of successive climate, economic, political and social
collapses related to the development paradigm? How can spatial practices,
critical and creative, contribute to creating the involvement of human beings
with their surroundings? The dissertation investigates the idea of Involvement,
notion proposed by the indigenous and quilombola philosophers Ailton Krenak
and Nêgo Bispo, respectivelly, as a landmark of contemporary brazilian thinking
- and why not, latin american, if understood its relationship to concepts such as
the Buen Vivir - in regard to the repercussion and translation to the architectural
field. Architectural experiences and practices were discussed, considering
them in dispute over the meaning of the idea of involvement, in regard to its
relationship to the landscape, as well as the practices that institute it as bodies
and time. From the comprehension of its agencies, it is imagined to emerge
thoughts about the architectural modes of production’s reinvention through
involvement on the borders of Brazilian territories.
Key-words: Involvement; Spatial Practices; Spatial Agency.
resumen
ARRUDA, Marcella Soares de Moura de Paula. Arquitetura como envolvimento:
corpos, paisagem e tempo. Rio de Janeiro, 2024. Dissertação (Mestrado em
Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2024.
¿Cuáles son las prácticas espaciales en el contexto de borde, en Brasil que
insisten en existir diante de sucessivos colapsos climáticos, econômicos, políticos
y sociales vinculados al paradigma del desarrolo? Como las practicas espaciales
críticas y criativas pueden contribuir para crear el envolvimiento del ser humano
con su alrededor? La dissertación investiga la idea del Envolvimiento, noción
propuesta por los filósofos indígena Ailton Krenak y quilombola Nêgo Bispo,
como un marco del pensamiento contemporáneo brasileño - y porque no
latinoamericano, se compreendida su correlacion con los conceptos de Sumak
Kawsay; y su repercussión y traducción para el campo de la arquitectura. Fueron
abordadas experiencias y prácticas espaciales considerandolas en disputa sobre
el sentido y el significado de la idea de envolvimiento, en relación con el paisaje,
bien como con las prácticas que la instituyen como cuerpos y espacio. Desde la
compreensión destes agenciamentos, imaginamos emergir reflecciones sobre
la reinvención de los modos de producir arquitectura a partir del envolvimiento
con los bordes de los territorios brasileños.
Palabras Clave: Envolvimento; Práticas Espaciais; Agenciamentos.
sumário
prelúdio ............................................................................................................. 1
introdução ....................................................................................................... 15
estado da questão ....................................................................................... 16
outras epistemologias: experiências de envolvimento como método ....... 41
dimensões de análise .................................................................................. 48
modos de ler ................................................................................................ 49
parte I: in situ ................................................................................................. 52
I.I memórias do envolvimento ..................................................................... 54
I.I.I Espaço Cultural Jardim Damasceno, Cantareira................................. 58
I.I.II Levanta Amotara Zabelê, Una .......................................................... 64
I.I.III Cooperativa Turiarte, Arapiuns ........................................................ 70
I.II saberes e fazeres para o agora ............................................................... 76
parte II: forças moventes ............................................................................. 102
II.I ideias-força: dimensões do envolvimento ............................................ 103
II.I.I paisagem ........................................................................................ 105
II.I.II corpos ............................................................................................ 111
II.I.III tempo ........................................................................................... 124
II.II encontros e nebulosas: campo de ideias-moventes ........................... 126
reinventar o desenvolvimento em comum ................................................ 141
conclusão ...................................................................................................... 154
índice de figuras ........................................................................................... 157
referências .................................................................................................... 161
prelúdio
arquitetura como envolvimento
2
As vidas humana e das demais espécies têm uma base natural com uma dinâmica
de relações e contribuições sistêmicas. Dos microrganismos à estratosfera, uma coisa
favorece à outra, uma coisa serve a existência da outra com reciprocidade, em um
complexo e constante processo de retroalimentação, a ensinar aqueles que acham
que podem continuar minando as condições que sustentam a delicada cadeia da
vida. (...) Além da inteligência e da racionalidade humanas, há uma inteligência de
funcionamento de toda existência da vida no planeta. Mas nossos modos humanos de
produzir, distribuir os produtos, consumir e nos assentarmos para habitar algum lugar
tem acumulado desorganização no sistema natural que dá suporte à vida na Terra. É
como se estivéssemos praticando por séculos um mesmo e longo suicídio e arrastando,
nas nossas escolhas, as demais formas de vida existentes (Silva, 2022, p.10).
A sociedade contemporânea vive hoje um mundo que tem como paradigma
o desenvolvimento. Nas grandes cidades, em especial, somos incentivados
cotidianamente pela mídia, pela família, pelo mercado, a compreendermonos como seres que devem rumar ao desenvolvimento: que devemos crescer,
explorar, produzir, consumir e transformar infinitamente tudo aquilo que está
ao nosso redor; que devemos nos esforçar para simplesmente ser – com todo
o conforto possível, e atender às necessidades que inventamos para o nosso
habitar o mundo. Somos ensinados a nos acostumar a ser para ter, com uma
demanda de produção e consumo incomensurável, e achar que isso é normal:
que devemos fazer de tudo para garantir a segurança daqueles ao nosso redor,
que devemos remediar nossas dores com químicos, que devemos temer a
morte – reflexo dos medos, da tentativa de manter o controle em nossas mãos.
São Paulo é o estado mais ignorante que temos em termos de ser, aqui o lugar é
pra ter, não é para ser. Aqui você não é. Tenho amigos que acordam 2h da manhã,
pra chegar no trabalho, pegam outro transporte, e se dormem, dormem duas
horas. É o desenvolvimento: des-envolvido da vida. E ainda diz que isso é riqueza.
E que riqueza é essa, que as pessoas não têm onde morar? (Santos, 2023).
Antônio Bispo dos Santos, chamado de Nêgo Bispo, evidencia como o desenvolvimento da vida se materializa nas relações com a forma de habitar
contemporânea nas grandes cidades, como São Paulo. Tamanha é a falta de
envolvimento com a delicada teia da vida, em que “uma coisa favorece a outra,
prelúdio
3
uma coisa serve à existência da outra com reciprocidade, em um complexo
e constante processo de retroalimentação” (Silva, 2022), que os sistemas
que estruturam nosso cotidiano e nossas relações estão ruindo: a política, a
economia, a ecologia. Inclusive a pandemia, momento em que este trabalho foi
feito, demonstrou a crise de um modelo que não pode seguir existindo.
Como apontam Marina Silva e Nêgo Bispo, talvez uma das causas desse longo
suicídio e, porque não, ecocídio, seja justamente a nossa insistência em separar,
limitar, criar modelos abstratos para tentar controlar essa complexidade toda: o
nosso esquecimento de que somos parte interdependente das outras espécies e
vidas; que existimos em relação, em experiência de envolvimento e co-implicação.
Hoje nos deparamos com situações de vulnerabilidade e fragilidade extremas:
os recursos naturais têm se demonstrado finitos, a biodiversidade está em risco,
as pessoas não têm tolerância política ou social, escolhem pela manutenção
da ordem, pela segurança de se abster da parte que lhes cabe e se manterem
alienadas, des-envolvidas1, como defendem os filósofos, respectivamente,
indígena e quilombola, Ailton Krenak e Nêgo Bispo.
Nós que habitamos ao sul da linha do Equador, das zonas tropicais; nós da
beira, território híbrido, da mescla, mas também do confronto e da disputa;
vivimos espaços de reinvenção dos limites que nos des-envolveram do mundo
ao redor de nós, podemos também abrir campos de encontro: entre a mente
e o corpo, o eu e o outro, o dentro e o fora, a natureza e a cultura, a cidade e
a floresta. Desse modo, acreditamos então ser possível estabelecer espaços de
relação e situação, construir arquiteturas a partir do envolvimento.
Importante mencionar que não somente as pessoas foram incentivadas a manterem-se desenvolvidas, quanto que há séculos que a sociedade ocidental heteronormativa do iluminismo,
do eurocentrismo, do desenvolvimento e do progresso estigmatizou, subjugou, aprisionou
e explorou os seres envolvidos, que se entendiam pertencentes ao cosmos: as mulheres, as
crianças, os idosos, os pajés, os seres vivos humanos e não humanos. Taxados como bruxas,
inocentes, bobos, loucos, endemoniados, os seres sensíveis (e verdadeiramente envolvidos com
o ambiente ao redor) foram a cada século mais restritos a espaços e funções específicos na
sociedade, sendo cada vez mais invisibilizados, proibidos de ocupar e existir em determinados
contextos, impossibilitados de serem vistos, re-conhecidos.
1
Pág 2: Figura 01: Antônio Bispo dos Santos, Nego Bispo. Fonte: Divulgação/CCOM, 2023.
Figura 02: Rio Berlengas, Maranhão, onde habitava Nego Bispo. Fonte: Raifran Ferreir, 2018.
Pág 3: Figura 03: Ailton Krenak em Minas Gerais. Fonte:Hiromi Nagakura, 1990.
Figura 04: Ailton Krenak no dia de nossa conversa. Fonte: Florian Kopp, 2024.
arquitetura como envolvimento
6
Figura 05: Ailton Krenak e Peter Webb durante o encontro Brechas Urbanas. Fonte: APeres
Fotografia, 2017.
Tais reflexões vem de encontros, em especial com o filósofo imortal Ailton
Krenak. Em 2017, contribui para promover seu encontro com Peter Webb, sob
o tema “Brechas Urbanas: A Floresta que Dorme Debaixo do Asfalto”. Desde
então, pude ter a oportunidade de aprender com Krenak em outras ocasiões,
dentre elas em 2018 no FICA Festival Internacional de Cinema Ambiental,
encontro este no qual já falávamos do problema da nossa sociedade como a
falta de envolvimento2. Pudemos nos reencontrar durante o fazimento desta
pesquisa, depois de uma série de picos da crise climática: em outubro de 2023,
São Paulo tem o período mais chuvoso de sua história; em março de 2024, o Rio
de Janeiro bate um recorde histórico de temperatura, registrando 62,3ºC de
sensação térmica; e então em abril de 2024, ocorre o desastre das inundações
no Rio Grande do Sul.
Veja mais aqui: https://goias.gov.br/educacao/fica-2018-as-novas-cidades-precisam-de-uma-sustentabilidade-humana/
2
prelúdio
7
Em nossa conversa, rememora o significado de Guaíba: terra da água. “Escolher
habitar a terra da água significa que precisamos habitá-la de forma diferente, e
entender que em certos momentos a água vai reivindicar a sua terra”. Para isso,
parece necessário saber ler estas paisagens, decodificar as linguagens, para
com elas dialogar e compor. Neste sentido, a arquitetura e o urbanismo vão
além da ação de meramente construir, mas se revelam como ferramentas para
habitar-com: de envolvimento com esse campo de forças que nos rodeiam, nos
atravessam e conosco constroem mundos.
Figura 06: Até onde o mar vinha, até onde o rio ia. Fonte: Guga Ferraz, 2010.
Neste sentido, parece fundamental para nós, fazedores de mundos, compreender
os limites: até onde a cidade vai, até onde a água pode vir; até quando dá pra
exigir da terra, quando tem que deixar ela descansar; até onde dá pra extrair,
quando precisamos repor; até quando podemos consumir, e o que precisamos
também produzir. Os ciclos e espaços precisam de tempo para metabolizar e
dinamizar as metamorfoses que estão sujeitos a partir do encontro. Um exemplo
arquitetura como envolvimento
8
é o ciclo do alimento: para se tornar terra novamente, os restos orgânicos
precisam se misturar, trabalhar, produzir gases, e descansar, para mudar a sua
materialidade, se de-compor e re-compor, e aí então virar terra preta, como
explicou Krenak aquele dia:
Por muito tempo, a gente não teve resto que não fosse orgânico, biológico. Tudo
o que jogava daqui a pouco virava canteiro. Por isso a terra preta: a qualidade do
solo para qualquer cultivo, produzida por um ciclo migratório de quem nunca quis
habitar a cidade (Krenak, 2024).
Krenak rememora um habitar em movimento, em fluxo e escuta constante, que
respeita os limites da terra antes de exaurí-la, antes de extrair todos os recursos
que ali existem, “minando as condições que sustentam a delicada cadeia da
vida”, como bem coloca Marina Silva. Em nossa conversa naquele fim de tarde,
o filósofo indígena trouxe uma metáfora que evidencia essa noção de limite que
advém do envolvimento com os ciclos naturais:
Quando uma comunidade vive em um lugar e começa a sentir cheiro (rã), é porque
vai adoecer. Então, o grupo se desfaz, deixam o lugar descansar até que ele volte
a ter cheiro {bom}. Eles voltam lá depois e tem uma alta concentração de recursos
para a vida. Um lugar agradável, um jardim, não pode ter cheiro ruim. Antes, era
possível habitar sem doença porque quando percebiam que estava perigoso,
abandonavam. Hoje, nós nos misturamos com o corpo da terra de uma maneira
desordenada: é uma fúria, o consumo de tudo - desde a dieta alimentar ao modo
de abrigar (Krenak, 2024).
Tamanha é a mistura desordenada com os corpos da terra, que o resíduo que
produzimos com nossas escolhas e advindo do padrão de produção e consumo
que sustentamos como sociedade, é fora da proporção do limite tolerável para
que a vida possa existir. Neste sentido, fica evidente também quais os corpos
que são os mais impactados das externalidades negativas geradas pelo desenvolvimento: “populações afrodiáspóricas e africanas, indígenas e terceiro
mundistas” (Bernardino Costa; Maldonado Torres; Grosfoguel, 2019, p. 10).
Krenak rememorou em nossa conversa o impacto no Watu, o Rio Doce, seu avô,
localizado no município de Resplendor em Minas Gerais, depois do desastre do
rompimento da barragem da Vale:
9
prelúdio
O nosso Rio Doce foi atravessado pela mineração. Daqui a 20 anos, o Watu vai ser
o chorume da mineração: litio, mercúrio, o que não deixa a vida surgir. O Rio está
interditado, naquela condição nem uma bactéria sobrevive. Foi admitida uma ação
em uma corte na Inglaterra para obrigar a assumir a responsabilidade financeira
pelas 200 mil pessoas que tiveram suas vidas devastadas: ribeirinhos, indígenas,
quilombolas… É preciso proteger a vida da população que escolheu se instalar lá
(Krenak, 2024).
Nas últimas décadas, através de muita luta política, têm sido criados diversos
mecanismos de mensuração de impacto e do risco de grandes obras, bem como
de responsabilização pelos “desastres” que sabemos que não são naturais.
“A injustiça por trás do desastre não é produto apenas da imprudência, mas
do fracasso no enfrentamento de um risco com previsibilidade conhecida, da
mitigação da desigualdade”, como coloca Judith Shklar (1990) em The Faces of
Injustice. Tal uso irrestrito, sem consciência dos limites nem responsabilização
sobre os seus efeitos, é similar a um assalto para os Krenak. Assim como a
nominação de um processo que não advém da própria experiência vivida – se
referindo a diferença do Bem Viver em relação a Sumak Kawsay, em Kichwa:
O bem viver é um sequestro, é uma apropriação, uma extensão de uma experência
profunda. (...) Não foi isso que aprendi com minhas mestras. minha mãe, avó, tia,
que estavam todo dia, no cotidiano, chamando atenção para o desvio. É uma
aprendizagem que implica no modo de conhecer o mundo (Krenak, 2024).
A aprendizagem pode vir a ser uma mistura com o corpo da terra que considere
o uso consciente dos limites; que se preocupe em co-produzir, e não somente
consumir a partir da própria necessidade e depois jogar ‘fora’. Afinal, sabemos
que o fora é sempre algum lugar onde os olhos daqueles que estão no topo do
processo de tomada de decisão não vêem e cujos impactos não os alcançam
– até que os rejeitos saiam do controle e causem um desastre de grande
visibilidade e irreversibilidade, como foi o caso da barragem da Vale em 2015.
arquitetura como envolvimento
Figura 07: Trecho do filme KRENAK. Fonte: Lucas Barreto, 2017.
10
prelúdio
Figura 08: Trecho do Rio Doce tomado pela lama. Fonte: Fred Loureiro, 2016.
11
arquitetura como envolvimento
12
Seja por conta das grandes obras de infra-estrutura ou dos seus impactos no
ambiente em que estão situadas, ou no clima, a retomada do contato e cuidado
da terra e seus corpos como bens comuns é urgente, e o reconhecimento destes
como sujeitos de direitos. A co-implicação que revele a interdependência, como
a relação dos Krenak com o seu Avô, Watu, o Rio Doce:
O Watu iameré: você dá comida pra gente, você dá saúde pra gente, você cuida
das nossas crianças. Temos uma tradição que, quando as crianças nascem, elas são
mergulhadas no Watu. Não é um batismo, é uma vacina. Isso acontecia antes do
Rio ser atravessado pela mineração, essa história teve uma interrupção no tempo.
A gente não põe mais as crianças no rio porque agora ele é um veneno. Nós
dizemos que o nosso avô está em coma (Krenak, 2024).
A história e memória de Krenak na sua relação com o Rio Doce demonstra o
quão íntimo e recíproco é o vínculo com a paisagem. A natureza é cultura nos
modos de vida dos povos do (e em) envolvimento.
Figura 09: Povo Krenak no Parque Estadual do Rio Doce. Fonte: Arquivo do Centro de Documentação
Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES).
13
prelúdio
Não somente os Krenak na beira do Rio Doce que cultivam a paisagem, e que
guardam os saberes e fazeres culturais, vinculados com a natureza; mas Ailton
também se refere a Amazônia, assim como as experiências que veremos aqui.
Os indígenas diziam: ‘É um jardim que nós cuidamos’. {A Amazônia} Não é somente
um fenômeno natural, é uma interação de culturas. Os primeiros artigos que falam
disso são da década de 80.
(...) Assim, a gente consegue dialogar com o corpo da mãe terra de uma forma respeitosa.
A gente pode estar aqui? Qual o seu gosto? O que você quer? (Krenak, 2024).
Os povos da dita “terra-floresta”, como diz Davi Kopenawa Yanomami (2015),
dialogam com o corpo da terra e os corpos que a habitam ao falar a língua das
Chuvas, do Rio, da Montanha – perguntando se aquela terra pode ser habitada,
qual o momento de pescar, qual o momento para plantar ou para colher
determinada espécie, e qual a melhor lua para colher o material como a terra
ou o bambu para construir uma casa. O conhecimento se produz coletivamente,
uma “aprendizagem que implica no modo de conhecer o mundo”, como diz
Krenak, e a partir do envolvimento entre corpos humanos e não humanos,
com a paisagem e o tempo. Essa relação de intimidade se revela em mais uma
memória sua com o Rio Doce:
Os nossos vizinhos iam pescar no Rio, e nós tínhamos que avisar que não podia
pescar porque era piracema. ‘Os peixes estão subindo a correnteza e produzindo
vida’, nós falávamos. ‘Depois vocês podem recolher o que eles estão doando, mas
assim vocês estão assaltando. Isso que estão fazendo é errado, vai faltar peixe.’
Depois, eles criaram açude para criar peixe. Os animais que habitavam a beira
do rio, e podiam ter uma série de utilidades, sumiram; diminuiu a oferta de tudo.
E os vizinhos continuavam contando o tempo (Krenak, 2024).
A memória da pescaria tensiona a noção do tempo: o relógio, as horas, o
passar dos dias, e o tempo dos ciclos de nascimento, reprodução, morte. Uma
experiência fluida, integrada, interdependente, que sabe de onde veio e para
onde está indo, e tem um compromisso com a ancestralidade no sentido de
permanecer guardando e propagando este conhecimento encarnado. Krenak
menciona:
Foi na infância que entendi que o que o entorno da nossa coletividade humana
arquitetura como envolvimento
14
chamava de tempo era diferente para nós. A nossa experiência de tempo era
líquida, larga, não tinha dia da semana. Agora é a época de colher o milho, as
batatas - precisamos tirar as batatas antes de inundar com as chuvas... A nossa
experiência de tempo integra o sujeito nos ciclos que os peixes, as aves, as batatas,
as chuvas se movem (Krenak, 2024).
Tais memórias são frutos de experiências in situ, vinculadas com os processos
de vida, e que sedimentam conhecimento a partir das experiências. Ailton
descreve seu papel a partir da epistemologia de seu povo:
Não sou um sujeito, mas sou partes que juntam uma série de experiências. (...) Me
sinto um griô, um narrador das histórias e memórias do meu povo. A resistência
dos indigenas é contar histórias para adiar o fim do mundo. Sinto que estamos
conseguindo, como esperiência coletiva: não é uma experiência isolada, é uma
revoada. Vamos cantando e acreditando que esse canto tem o poder de mudar as
coisas (Krenak, 2024).
Quando disseminadas nessa revoada, as memórias se tornam sementes para
fazer nascer outros mundos. Acreditando nisso, esse trabalho compartilha
memórias de encontros com contadoras de histórias Brasil adentro, no interesse
de contribuir para compreender e nutrir essa experiência comum de reinvenção
do desenvolvimento a partir de vivências situadas na beira do sistema capitalista.
introdução
arquitetura como envolvimento
16
> estado da questão <
O progresso, o mito do crescimento infinito, fruto da lógica linear de exploração,
consumo e externalização dos limites, tem sido questionado como o paradigma
que organiza nosso modo de habitar a Terra. O desenvolvimento como uma
ideia de progresso já vem sendo criticado globalmente há mais de 70 anos.
No Brasil, o economista Celso Furtado, por volta de 1950, já questionava o
subdesenvolvimento, atribuído como condição estrutural dos países “atrasados”.
O arquiteto, artista e paisagista Roberto Burle Marx já questionava em 1960 o
paradigma do progresso e do desenvolvimento, ocupando o debate público
através de matérias em jornais de massa, questionando escolhas políticas da
exploração e destruição da biodiversidade3: “a destruição da fauna e flora, a
face negativa do progresso. Ninguém segura a destruição” (Burle Marx, 1969).
Figura 10: A denúncia feita por Burle Marx, texto de autoria desconhecida, Jornal do Brasil,
1984. Fonte: Exposição Lugar de Estar, 2024.
Em 2024, é realizada a exposição “lugar de estar”, que retoma o pensamento e atuação de
Roberto Burle Marx. Disponível em: https://mam.rio/programacao/lugar-de-estar/.
3
introdução
17
Figura 11: Destruição da fauna e da flora, a face negativa do progresso. Texto de autoria desconhecida,
A Gazeta, 1973. Fonte: Exposição Lugar de Estar, 2024.
arquitetura como envolvimento
Figura 12: Amazônia: ontem, hoje, e por pouco tempo mais. Fonte: Alex Fisberg, 2010.
18
introdução
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arquitetura como envolvimento
20
Nos anos 1980 e 1990, as feministas Vandana Shiva e Marie Mies passaram a
conceituar esse modelo econômico ocidental imposto aos países do “Terceiro
Mundo” de mau desenvolvimento, também utilizado por Wolfgang Sachs
(1979), vinculando-o a processos injustos e excludentes, impedindo o exercício
de atores locais de suas capacidades sociais, relacionais e ecológicas – pautadas
pelo olhar do que vai vir a ser o livro Ecofeminismo (1993).
Sachs, por sua vez, no Dicionário do Desenvolvimento em 1992, buscava
respostas aos desafios ambientais e éticos que confrontavam a humanidade
na época. Na época, o desenvolvimento passou a ser visto também como
responsável pela exacerbação da destruição e expropriação da natureza para
beneficiar as elites do Norte (Beltran in Sólon, 2019, p. 124).
As abordagens críticas a este modelo, bem como a busca por alternativas,
continua como luta política nos anos 2000. O Sumak Kawsay, noção proposta
por Alberto Acosta no Equador (2008) a partir dos saberes de povos originários
locais, tem ecos no Brasil com a noção do envolvimento, vocalizada pelos
filósofos Ailton Alves Lacerda, indígena da etnia Krenak da região do Rio Doce,
em Minas Gerais, e Antônio Bispo dos Santos, quilombola piauiense nascido no
Vale do Rio Berlengas; e pelo antropólogo Viveiros de Castro com a noção do
reenvolvimento (2011):
Estou convicto de que é urgente, não “parar para pensar”, mas pensar para não
parar; é urgente começar a pensar bem para não parar de vez. É preciso aprender
a decrescer para não morrer. O Brasil é grande, mas o mundo é pequeno. A Terra
não vai nada bem neste começo de século. Há hoje uma insustentabilidade aguda
dos padrões globais de geração, distribuição e consumo da energia necessária à
vida humana. Nosso país é um dos poucos que ainda têm viabilidade do ponto
de vista de sua base de recursos. O Brasil ostenta uma das populações histórica e
culturalmente mais diversificadas do mundo: 220 povos indígenas, uma imensidão
de descendentes de africanos, de imigrantes europeus e asiáticos, de árabes, de
judeus; gentes rurais e urbanas das mais diferentes origens étnicas e culturais,
habitando uma variedade de formações naturais que, por sua vez, abrigam a mais
rica biodiversidade do planeta. Sociodiversidade e biodiversidade deveriam ser
nossos principais trunfos em um mundo em acelerado processo de globalização.
21
introdução
Mas eis-nos aqui, ainda e sempre, teimando em serrar o galho em que estamos
sentados, com uma política de comércio exterior que vem aplicando um modelo
de desenvolvimento ambientalmente suicida, economicamente retrógrado,
socialmente empobrecedor e culturalmente alienante. Devastamos mais da metade
de nosso país acreditando que era preciso deixar a natureza para entrar na história;
pois eis agora que esta última, com sua costumeira predileção pela ironia, exigenos como passaporte justamente a natureza (Viveiros de Castro, 2011).
“O modelo de desenvolvimento ambientalmente suicida, economicamente
retrógrado, socialmente empobrecedor e culturalmente alienante” como
tematiza Viveiros de Castro já vinha de décadas, como apontou a economista
Maria da Conceição Tavares nos anos 1990:
Uma economia que diz que precisa primeiro estabilizar depois crescer depois
redistribuir é uma falácia. E tem sido uma falácia. Cresce aos solavancos: essa
é a história da economia brasileira. (...) Tinha que se fazer ao mesmo tempo,
estabilização, crescimento e distribuição (Conceição Tavares, 1995).
Viveiros de Castro, junto a Deborah Danowski em 2014, retoma a questão
dos limites do planeta, noção resgatada por Bruno Latour4 que defende que
a exploração infinita dos recursos e acumulação dos mesmos nas mãos de
poucos se mostram insustentáveis. A geração de energia necessária para a vida
humana requer, portanto, outra organização da produção, da distribuição e do
consumo. Os pesquisadores se perguntam: “há mundos por vir” sem modelos
de gestão compartilhada e descentralizada dos bens comuns do planeta e sem
a redistribuição radical da riqueza já produzida?
O colapso climático é atribuído por muitos a este tipo de modelo de sociedade,
resultado de um projeto civilizatório e colonizador do des-envolvimento: que
cria corpos alienados, extrai bens comuns (ecossistemas repletos de sujeitos
não humanos – animais, vegetais, minerais) e exporta os limites para maiorias
minorizadas pela métrica de atribuição de valor do capital.
Tal noção foi apresentada no evento Mil Nomes de Gaia, 2014, que pode ser considerada uma
possível reverberação de Johan Rockstrom, que buscava reconhecer os limites que definiam o
espaço seguro para a humanidade habitar a terra em “A safe operating space for humanity”,
2009.
4
arquitetura como envolvimento
Figura 13: Encontro da Rocinha com São Conrado, no Rio de Janeiro. Fonte: Johnny Miller, 2021.
22
introdução
Figura 14: Inundação decorrente das chuvas no Rio Grande do Sul. Fonte: Matheus Piccini, 2024.
23
arquitetura como envolvimento
24
Figura 15: Deslizamento decorrente das chuvas em Petrópolis, Rio de Janeiro. Fonte: Tomaz Silva, 2022.
introdução
Figura 16: Céu alaranjado visto em São Paulo das queimadas da Amazônia. Fonte: André Lucas, 2020.
25
arquitetura como envolvimento
Figura 17: Cidade de São Paulo e o crescimento infinito. Fonte: Diogo Moreira, 2023.
26
introdução
Figura 18: Construção da Usina de Belo Monte. Fonte: Paulo Moreira Leite, 2015.
27
arquitetura como envolvimento
Figura 19: Trabalhadores na construção de Brasília. Fonte: Marcel Gautherot, 1958.
28
introdução
Figura 20: Poluição de Cubatão, São Paulo. Fonte: Luiz Prado, 1988.
29
arquitetura como envolvimento
30
A ideia do envolvimento é então apresentada como alternativa ao modelo
do des-envolvimento, como aponta Nego Bispo em seu discurso no encontro
Aquilombar o Antropoceno, Contra-colonizar a Ecologia (2023):
Des-envolver é desconexão, é desastre, é deslocamento. Tanto é que pensa-se
num lugar pra fazer no outro - que doidera. To dizendo isso pra dizer que para
nós quilombolas e contracolonialistas, a palavra chave é envolvimento. Nós somos
os povos do envolvimento. O envolvimento é o antídoto de desenvolvimento,
é contra-colonialismo. (...) Quando se fala colonialismo, só se pensa na relação
humano-humano, mas colonialismo é a relação entre todas as vidas na terra e da
terra. Há o colonialismo das matas, há o colonialismo dos animais, há o colonialismo
dos biomas (Santos, 2023).
O des-envolvimento como ação extrativista só é possível porque existe um
deslocamento desde onde se tomam as decisões para onde se sentem os efeitos
dessas ações, como bem lembra Nêgo Bispo. Neste sentido, somos reféns das
estruturas de poder de um sistema extrativista, linear, de exploração profunda
e perpetuação da diferença do lugar onde as riquezas se concentram e do lugar
onde as externalidades negativas5 se manifestam.
Rompimento de barragens, inundações, desabamentos de morros, queimadas,
rios sufocados, secas decorrentes de desmatamentos, espécies sob risco
de extinção… A escala da expropriação da natureza tem gerado tamanha
destruição que o fenômeno foi denominado pela ciência de Antropoceno,
onde a espécie humana promoveu mudanças significativas de alcance global e
geológico a partir de suas ações extrativistas, de exploração e dominação dos
ciclos e ecossistemas naturais, “como uma força de transformação perigosa e
catastrófica para si e aos demais seres na Terra” (Svampa, 2019).
É possível imaginar o des-envolvimento como o fruto de uma árvore, contida
em um vaso, fechada em uma varanda de vidro em um apartamento, dentro
de um prédio murado, construído em cima de uma nascente em uma selva de
pedra. Ailton Krenak nos provoca ao dizer:
Externalidades negativas ocorrem quando o produto exerce um efeito negativo sobre uma
terceira parte independente da transação, que muitas vezes são os povos e comunidades vulnerabilizados, em especial a população negra, a parcela marginalizada e historicamente invisibilizada que acaba sendo a mais afetada por danos ambientais e climáticos.
5
introdução
Figura 21: Povo Yanomami. Fonte: Hiromi Nagakura, 1990.
31
arquitetura como envolvimento
32
Nos descolamos do corpo da Terra. Quando nós ficamos na forma humana – esse
antropomorfo -, quando nos percebemos nessa forma, começamos a nos descolar
da Mãe Terra. O ser humano discrimina os irmãos, as outras espécies (...) Essa
excessiva afirmação do ser humano nos colocou um dilema: como recuperar o
contato, o afeto – com montanhas, com rios, com floresta? (Krenak, 2020).
Seria então a imagem do envolvimento essa mesma árvore, mas inserida em
uma teia de relações de reciprocidade, onde as espécies se apoiam mutuamente
compartilhando insumos com o reino vegetal; se comunicando pelas raízes através
do reino fungae; sendo apoiada pelos corpos humanos e animais, dispersores
de suas sementes e possibilitando a reprodução das espécies; compondo um
ecossistema onde os produtores, os consumidores e os decompositores provêm
a autorregulação dos ciclos. Uma utopia?
Os impactos e consequências do des-envolvimento são visíveis, tangíveis
e mensuráveis na escala da arquitetura e da cidade. Segundo um estudo da
Bimhow, 400 milhões de toneladas de material são utilizadaspela construção civil
global todo ano, sendo um setor responsável por 23% da poluição atmosférica,
40% da poluição de água potável e 50% do lixo que vai para os aterros sanitários
(Snook, 2017). A arquitetura é responsável, segundo pesquisa do US Green
Building Council, por 40% do uso de energia do mundo. No que tange a escala
das cidades, a paisagem dita urbana consome cerca de 70% da energia do
mundo e produz mais de 70% dos gases do efeito estufa, segundo estudo da
ONU Habitat (Relatório Global sobre Assentamentos Humanos 2011: Cidades
e Mudanças Climáticas). Isso acontece através do modelo de sociedade na qual
habitamos: baseado na dependência de monoculturas como da cana de açúcar
ou gado, no uso extensivo de pesticidas, em fontes de produção de energia de
grande impacto nas comunidades humanas e não humanas como hidrelétricas,
em ciclos produtivos de grandes distâncias percorridas através do modelo
rodoviarista e, portanto, na dependência da queima de combustíveis fósseis.
Diante dessa urgência latente, escondida debaixo do concreto que impermeabiliza
a terra, quente e seca do sol do verão; urgência visivel nas ondas de calor que
do concreto emanam (do comum e cotidiano); urgência exposta nas enchentes
que inundam cidades que ocupavam as beiras dos rios; de que maneira a
arquitetura pode atuar como ferramenta e dispositivo de envolvimento?
De que forma práticas espaciais, criadas ou não por arquitetos, participam
da criação da noção de envolvimento - e como ela se evidencia? Como nós,
introdução
33
arquitetos, urbanistas, desenhadores e construtores de futuros, podemos criar
arquiteturas que possam sensibilizar os corpos para o re-envolvimento com
o que nos dá contorno e limite? Afinal, o que significa e como se traduz na
arquitetura o envolvimento? Como criar e produzir arquiteturas que engagem
as pessoas e comunidades na proposição de outras formas de habitar e gerir o
comum? Como criar regimes não somente alternativos, mas substitutivos ao
des-envolvimento, em comum?6
Interessa assim resgatar a metodologia do pedagogo brasileiro Paulo Freire,
que consiste em obter uma perspectiva crítica sobre a realidade em que se
habita, mas também compreender-se como sujeito ativo em permanente
relação e com potência de transformação desta realidade. O envolvimento vem
assim como aposta de reconexão com uma ética, estética, técnica e política que
possa redirecionar o destino da vida na Terra, a partir do vínculo com a terra, os
corpos, nossas formas de comer, de construir casas e de falar e pensar, como
aponta Nêgo Bispo (2023). O filósofo indígena Ailton Krenak acrescenta:
Nós também, nosso corpo, assim como todos os outros seres, está dentro dessa
ecologia ou dessa vasta biosfera do Planeta como um elemento de equilíbrio e
regulador. Nós não somos alguém que age de fora. Nós somos corpos que estão
dentro dessa biosfera do Planeta Terra. É maravilhoso, porque, ao mesmo tempo
em que somos dentro desse organismo, nós podemos pensar junto com ele, ouvir
dele, aprender com ele. Então é uma troca mesmo, de verdade. Não é você incidir
sobre o corpo da Terra, mas é você estar equalizado com o corpo da Terra, viver,
com inteligência, nesse organismo que também é inteligente (Krenak, 2020, p. 13).
Outro comum tem emergido como possibilidade de existência diante das crises
que vivemos no contexto latino-americano, e também global, nos últimos 20
anos. A abertura de campos de imaginação e experimentação se mostra mais
que urgente, e tem se dado a partir de propostas como o buen vivir (Acosta,
2016), e alternativas sistêmicas (Sólon, 2019) e oportunidades para imaginar
outros mundos, como o pós-desenvolvimento e a própria ideia de pluriverso
(Kothari et al, 2021) e, por fim, o (re)envolvimento (Viveiros de Castro, 2011;
Krenak, 2019; Bispo, 2023).
A ideia de tecnologias substitutivas, e não alternativas, é defendida pelo mestre bambuzeiro de
Minas Gerais, Lúcio Ventania. Para saber mais, sugerimos o debate Ambientar - Regeneração, da
Exposição Infinito Vão, disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=PGFeGTYGT9M.
6
arquitetura como envolvimento
Figura 22: Povo Yanomami, Aldeia Demini-Watoriki. Fonte: Hiromi Nagakura, 1990.
34
introdução
Figura 23: Aldeia Demini-Watoriki. Fonte: Hiromi Nagakura, 1990.
35
arquitetura como envolvimento
Figura 24: Crianças
Yanomami na Aldeia
Demini-Watoriki. Fonte:
Hiromi Nagakura, 1990.
36
introdução
37
Lembrar que a arquitetura é, antes de tudo, envolvimento pode contribuir
ativamente no processo de criação de alternativas necessárias ao paradigma
hegemônico do des-envolvimento. Afinal, diante dos contextos compartilhados
de desigualdades, na busca por justiça socioespacial e climática, como
espaços dos mais diversos campos e cantos experimentam proposições? Quais
arquiteturas propõem o envolvimento?
A partir da literatura existente, é possível localizar a nascente desta discussão
no campo da arquitetura e urbanismo na abordagem da participação. Muito
se tem escrito desde os anos 1960 sobre a noção no campo da arquitetura e
urbanismo: de Arnstein (1969) e Fathy (1982), passando por Alexander (1970)
ou Turner (1972); e por Nunez (2003), Fernandes (2012), Guizzo (2019) que têm
igualmente se dedicado ao tema. Giancarlo de Carlo (1960) contribuiu com
notoriedade, motivo pelo qual em mais de meio século a ideia de participação ou
simples colaboração continua a ser denegada ou deixada em segundo plano nas
páginas dedicadas à crítica das práticas e das obras de arquitetura e urbanismo.
A pesquisadora Sherry Arnstein foi também precursora, em 1969, quando
lançou o artigo “A Escada da Participação Cidadã”, no qual construiu o caminho
para pensar a tomada de decisão participativa. A “escada” demonstra uma
gradação desde a falta de controle e poder por parte da população (quando
é por exemplo manipulada por técnicos e políticos acerca de seus interesses
com respeito a determinados projetos), passando pela consulta, até chegar no
que a pesquisadora chamaria de controle cidadão. Este, para a autora, seria o
ápice de participação, no qual os habitantes governam seu território, estando
sob sua responsabilidade a tomada de decisão e estando capazes de negociar
as condições nas quais os “estrangeiros” possam influenciá-las. É importante
reconhecer que há ressalvas em uma tentativa de abstrair e petrificar relações
moventes em categorias rígidas, mas tais categorias oferecem uma métrica capaz
de facilitar a compreensão das forças que operam nas diferentes situações.
Acredita-se que as preocupações de algumas arquitetas e arquitetos se materializam
em arquiteturas ao se tornarem linguagens que podem vir a ser ferramentas de
construção de imaginário, narrativa e valor acerca de causas relacionadas à justiça
social e ambiental, evidenciando o diálogo e a relação com os territórios (sobretudo
aqueles marcados por vulnerabilidades, opressões e desigualdades) e defendendo
em sua materialidade o direito às múltiplas formas de vida.
arquitetura como envolvimento
38
A partir de um caráter político, por vezes ativista, as práticas espaciais estudadas
aqui propõem desestruturações hierárquicas e formulam alternativas para
se relacionar com o poder em suas diversas dimensões, propondo modos e
linguagens participativos, sensíveis à escuta e situados nos territórios. Como
resume o arquiteto Fernando Luiz Lara (2021): o processo participativo desloca
o arquiteto de uma posição de centralidade. Se por um lado o processo
participativo tira o arquiteto da posição central, muitas vezes entende-se a
participação como um espaço aberto pelos arquitetos para o envolvimento da
sociedade e comunidade local no projeto. A bibliografia existente muitas vezes
foca em um entendimento dos arquitetos como condutores da abertura deste
espaço de participação da comunidade local.
No entanto, creio aqui que seja necessário realizar uma inversão de olhar para
a participação, pois, muitas vezes, é a comunidade local que convida o
arquiteto a participar de seus processos, locais e situados naqueles territórios,
e que estão em curso antes de sua chegada e continuarão depois de sua
saída. Tal inversão nos permite exercer um olhar situado, que compreende a
comunidade local, o processo histórico de forças e disputas que configuram um
território, seus modos de habitar, quais vínculos estabelecem e como eles se
envolvem com o ambiente ao seu redor.
Pensar a participação com a arquiteta pesquisadora Iazana Guizzo, que venho
acompanhando desde 2016, provoca um olhar alargado que se assemelha ao
que estou chamando de envolvimento: uma participação do arquiteto no espaço
e com a comunidade na qual, para e com quem se está projetando, a partir de
um encontro e entendimento das cosmologias que ali habitam:
Essa atenção específica aos territórios e seus habitantes, aos modos de situar o
projeto e ao reconhecimento de lógicas não centrais ganhou força na concepção de
projeto com uma importante ressignificação do campo da arquitetura e do urbanismo
que ocorreu na metade do século passado. (...) Em suma, já eram postos em xeque
a metodologia hegemônica dos modelos de projeto e os preceitos científicos que a
sustentavam. Desde então, é cada vez mais crescente a demanda por uma atitude
de projeto mais participativa, ou menos autoritária, que busque situar o desenho
no território, que aborde os dispositivos colaborativos e que envolva os habitantes,
humanos ou não, no desenho de seu próprio habitat. Contudo, apesar desse
processo já estar acontecendo, ele ainda é tímido (Guizzo, 2019, p. 21-22).
39
introdução
Tal abordagem mais ampliada da participação aponta para maior envolvimento
com os corpos humanos e não humanos, com a paisagem natural e cultural,
e com o tempo em cada projeto e cada território. O projeto se daria, assim,
no encontro presentificado através de diferentes elementos e dimensões, em
experiência de encontro. Compreender, a partir da noção de envolvimento,
como se produz a arquitetura e o que ela pode produzir. Guizzo abre caminhos
no campo da arquitetura e urbanismo para o que ela vem a propor como
participação transversal:
A participação pode ser ligada ao agenciamento entre diversos corpos, fabulando
novas cenas a partir de potências aparentemente diferenciadas (...) em vez de a
pergunta girar em torno de quem desenha, as questões de participação passariam
a ser: quais composições entre diferentes corpos possibilitam um aumento da
potência de diferentes autonomias? Como produzir pontes com diferentes
elementos, fazendo do construir um processo de viver? (Guizzo, 2019, p.177-178).
As complexas dimensões das questões contemporâneas têm influenciado até
certo ponto as práticas da arquitetura, reclamando que não seja esquecida sua
definição como ofício e artefato político (Yaneva, 2017), assim como coloca
Nilce Aravecchia Botas:
A arquitetura novamente entendida enquanto corpo material, depositário
de energias humanas as mais diversas, pode fundar práticas libertárias de
descolonização dos corpos, das mentes e das terras; e isso pode ser feito a partir da
consciência de duas totalidades que podem ser nomeadas: a do sistema capitalista
global com seu poder hierárquico, e a nossa condição de latino-americanos no
interior desse sistema (Botas, 2019, p. 80).
No contexto brasileiro, mas também latino-americano, profissionais do campo
da arquitetura vêm buscando, por meio de sucessivas experiências, respostas a
outros modos de produzir arquitetura7. As discussões do pensamento decolonial
Tem-se um histórico de experiências relevantes neste sentido: as cooperativas FUCVAM de
construção por mutirão no Uruguai; a experiência do LABHAB em São Paulo; a discussão sobre
o canteiro de Sérgio Ferro; a práxis transformadora e a atuação de Carlos Nelson nas favelas do
Rio de Janeiro; a educação como prática da libertação de Paulo Freire, que atuou na conscientização do povo brasileiro a partir de uma consciência crítica da realidade em que se vive e da
descoberta de si como agente de transformação do mundo; os mutirões da pastoral da terra na
década de 70. Há também o projeto de habitação modular e autoconstruída no Cajueiro Seco,
do arquiteto Acácio Gil Borsoi; as organizações locais e alianças com técnicos e o Movimento
Sem Terra no planejamento e construção dos assentamentos rurais; as assessorias técnicas para
7
arquitetura como envolvimento
40
e socioecológico vêm sendo traduzidas para o campo da arquitetura e do
urbanismo por críticos e historiadores como os brasileiros Nilce Aravecchia,
Paulo Tavares, Gabriela de Matos, Luiz Fernando Lara, e como os arquitetospesquisadores latino-americanos Maria Luisa Borja López e Oscar Eduardo
Preciado Velasquez, dentre outros.
O papel dos agenciamentos que dialogam com o debate público se mostra
relevante para atualizar as discussões que, no Brasil, de modo geral, permanecem
fechadas e restritas a uma ideia duplamente “disciplinar”. De certa maneira,
eles reiteram a necessária porosidade do pensamento sobre a arquitetura,
o urbanismo e as práticas espaciais, em relação às insurgências – políticas,
culturais, ecológicas – da sociedade.
Tal discussão foi reiterada durante o Pavilhão do Brasil “Terra” na 18ª Bienal
de Arquitetura de Veneza, em um diálogo aberto e interdisciplinar com as
questões contemporâneas e com a diversidade de matrizes filosóficas e culturais
brasileiras. Como aponta um dos curadores, Paulo Tavares: “queremos abordar
a arquitetura enquanto prática para se posicionar no mundo” (Tavares, 2023).
A arquiteta e educadora ganense-escocesa Lesley Lokko, curadora da 18ª
Bienal, relaciona duas noções contemporâneas e fundamentais, dizendo que a
descarbonização do planeta está inevitavelmente relacionada à decolonização
dos nossos pensamentos e de nossas arquiteturas (2023).
os movimentos sociais de luta por moradia nas grandes metrópoles; os coletivos interdisciplinares de atuação nos espaços públicos atuando numa lógica de democracia local
introdução
Figura 25: Povo Krikati. Fonte: Hiromi Nagakura, 1990.
41
arquitetura como envolvimento
42
> outras epistemologias: o envolvimento como método <
Diante da necessidade de uma ruptura epistemológica, “chama à consciência a
dimensão eurocêntrica de nossa herança intelectual” (Botas, 2018), fundamentada
no racionalismo pretensamente universal e abstrato, separado do corpo e
da experiência situada. Junto a Larossa, proponho aqui outro modo de fazer
pesquisa e produzir conhecimento: uma epistemologia do envolvimento, na
qual o corpo em experiência, na relação com a paisagem, os corpos, o tempo,
se abre à sua própria metamorfose, e à construção de conhecimento, coletiva,
sensível, interespécie. Sobre a qualidade da experiência, Larossa explica:
É o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa,
não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém,
ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. (...) O sujeito da experiência se
define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade,
por sua disponibilidade, por sua abertura. Trata-se, porém, de uma passividade
anterior à oposição entre ativo e passivo, de uma passividade feita de paixão, de
padecimento, de paciência, de atenção, como uma receptividade primeira, como
uma disponibilidade fundamental, como uma abertura essencial. [...] Somente o
sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria transformação (Larossa,
2002, p. 21 e p. 24).
Esta proposta epistemológica pode ser compreendida também através da
noção da pesquisadora do corpo Fernanda Eugênio de autoetnografia sensorial
como uma prática de “distribuição não-hierárquica da atenção pelo entorno
e o acompanhamento em ato da percepção-sensação de si – como modo de
sintonização e instauração-sustentação de um campo comum” (Eugenio, 2019,
p. 45). Eugênio posiciona este exercício como uma experimentação sensível do
corpo e uma pesquisa de táticas para frequentar uma relação de inseparabilidade
com a experiência, o que pode ser visto também quando Iazana Guizzo coloca
como “corpos mais fortes e mais articulados com a Terra” em O corpo e o afeto
na questão do projeto participativo (2019, p.177-178). Assim, o estudo acerca
do conhecimento é produzido em encontro, em experiência, na imbricação
entre natureza e cultura.
Esta dissertação esteve baseada em encontros etnográficos (Marquez, 2020),
em uma experimentação constante de diversos modos de estar e ser em relação:
propostas de intervenções urbanas de baixo para cima, criação de programas
43
introdução
pedagógicos interdisciplinares, realização de vivências em canteiros de obra,
visitas a obras construídas e entrevistas com os arquitetos, participação em
eventos autogeridos por estudantes, curadoria e organização de seminários e
colaborações em Bienais e exposições, publicação de artigos e livros em diálogo
com pares, e articulação de redes de ativistas pelo comum no continente latino
e sul-americano. Atuantes em diversos contextos – na academia, na poítica,
nos territórios, no campo disciplinar –, tais ações demonstram a necessidade
de criação de alianças, relações de reciprocidade e a ocupação de brechas e
interstícios do poder. Uma cartografia de práticas espaciais latinoa-mericanas
que convidem a algum comum.
Modos de ativismo e cidadania ativa que resistem aos valores estabelecidos são
críticos e reclamam por direitos não garantidos, mas vão além: materializam respostas
e apontam novos caminhos no seu cotidiano, instaurando mundos possíveis que
escapam dos poderes e fazeres hegemônicos8. Pessoas que se organizam para
investigar, imaginar e experimentar relações, verdadeiros laboratórios que instauram
outras possibilidades de habitar a partir do fazer com pouco que se tem, presente:
exercitando a crítica e a construção propositiva com o que se consegue identificar
como força de agregação expansiva, libertária, “existente”.
Este trabalho busca aprender com corpos que estão semeando essas outras
possibilidades de mundo(s), por aí afora e adentro de muitos corpos-territórios.
Muitas e muitos mestres compartilharam de forma generosa ferramentas,
tecnologias, saberes, fazeres, afetos. Afinal, somos todos constituídos desta
partilha do sensível (Rancière, 2005):
Denomino partilha do sensível, o sistema de evidências sensíveis que revela, ao
mesmo tempo, a existência de um comum, e dos recortes que nele definem lugares
e partes respectivas. (...) Essa repartição das partes e dos lugares se funde numa
partilha de espaços tempos e tipos de atividade que determina propriamente a
maneira como um comum se presta a participação e como uns e outros tomam
parte nessa partilha (Ranciére, 2005 apud Tonetti, 2020, p.15).
Somos constituídos dos encontros, das dinâmicas de relação com o mundo,
com os seres humanos e não humanos, as paisagens naturais e culturais que nos
atravessam e as quais seguem se atravessando.
Cf. BROWN, G.; FEIGENBAUM, A.; FRENZEL, F.; MCCURDY, P. Protest Camps in International Context: spaces, infrastructures and medias of resistance. Bristol: Policy Press, 2017.
8
arquitetura como envolvimento
44
Encantada por experiências que materializam e espacializam estes saberes,
venho cartografando aspectos materiais e discursivos (in situ) de práticas e
projetos de espaços comuns em diversos rincões do Brasil e da América Latina,
a partir destes encontros.
Foram essas experiências e práticas de co-existência e situ-ação que compõem
essa voz que aqui escreve. Falam através de mim muitas outras vozes, e carrego
no corpo as memórias afetivas e vivas destes encontros, que a cada momento
são reescritas por novas inscrições, ganhando outros relevos. Rememorar as
experiências de aprendizagem acerca do envolvimento, que marcam cada
corpo e os constitui, parece desejável para que se possa seguir aberto para
reinventar a singularidade de multiplicidades que é cada um.
Os encontros e experiências de envolvimento se mostram assim um caminho
de projeto participativo e construção coletiva, se materializando em visitas,
conversas, seminários, imersões. Em uma das imersões, guiada por Iazana
Guizzo, ela convida e guia os corpos ali presentes para viver a experiência:
Dê as mãos com a pessoa ao seu lado. Feche os olhos e sinta esse toque entre
peles. Ouça os sons mais distantes, os sons mais próximos. Sinta o cheiro desse
lugar, sinta o gosto da última coisa que você comeu que ainda permanece na sua
boca. Abra os olhos e receba essa imagem, deixe ela pousar sob seus olhos, suas
mãos, sua boca, ouvidos, nariz e todo o corpo como receptor dessa imagem que
tem textura, gosto, cheiro e som (Guizzo, 2023).
As relações que venho cultivando a partir de uma epistemologia do envolvimento
se revelam a mim como ferramenta a partir de 2016, constituindo vínculos em
especial com mulheres que guardam e compartilham as histórias de seus povos,
que habitam as margens de Rios e defendem territórios Brasil adentro. Montag,
falando sobre as experiências que abrem espaço para a transformação, relata
seu contato com as mulheres em comunidades no México, reforçando como um
caminho as experiências como método de construção coletiva com mulheresreferência nos seus territórios:
Os momentos a serem iluminados são os encontros. Tenho o objetivo de refletir
sobre como essas mulheres (...) são geradoras de encontros e como esses
encontros são etapas importantes para um processo colaborativo. Observo que
45
introdução
suas receptividades aos encontros lhes geram diversas oportunidades e elas tecem
essas conexões em prol de solucionar demandas coletivas. (...) Ao permitirem que
as pessoas adentrem seu íntimo através de suas histórias e sabedorias, tornam-se
também seus próprios lugares de encontro. Elas compartilham com sua presença,
sem impor, mas como convite às pessoas a permitirem-se viver o encontro, a
experiência (Ferreira Montag, 2022, p. 136).
O ponto de partida para as reflexões acerca da pesquisa partem do envolvimento
como método de investigação; como forma de estar junto para pensar e fazer
arquitetura, in situ. Nestes contextos, vi emergir capacidades de possíveis
papéis como arquiteta - habilidades pedagógicas, cosmológicas e de mediação.
Então, no início deste trabalho no contexto acadêmico, foi feito o levantamento
do tema e dos interesses sobre os quais gostaria de me debruçar. As leituras
teórico-metodológicas, em primeiro momento, perpassaram autores que
posicionam um entendimento conceitual sobre formas de ver o mundo no
Brasil e na América Latina, hoje, a partir da chave do comum, do bem viver, do
envolvimento. No entanto, ao encaminhar a pesquisa, percebi a importância de
compreender ferramentas de outras e outros pesquisadores que escreveram
com e sobre as experiências que vivenciaram: arquitetos movidos pelo afeto,
como Iazana Guizzo; arquitetos se tornando antropólogos, como Carlos Nelson
Ferreira dos Santos; cartógrafas de processos de encontro com as favelas, como
Laura Pozzana; penduradores de redes Yanomamis, como Thiago Benucci;
criadores de práticas experimentais e educativas no canteiro de casarões
tombados, como João Wallig; construtoras de casas das avós no México, como
Mariana Montag; e arquitetas preocupadas com o estudo de gênero e sua
relação com o potencial social e ecológico da arquitetura, como Maria Luísa
Borja López. Essa foi a segunda etapa da pesquisa.
Logo, me vi obrigada a recortar, escolher as ideias com as quais trabalharia,
mas, especialmente, as experiências que iria rememorar. Nesse sentido, foi
fundamental, mais uma vez, entender a ideia de limite: o quanto conseguiria
me envolver? Quais contornos iriam me guiar na escolha das experiências que
me acompanhariam? Qual é o porquê das categorias e formas de organização
da investigação? Lendo a antropóloga e pesquisadora Fernanda Eugênio, me
reconheço na descrição de um processo investigativo enraizado e dialógico,
que se faz com os contextos onde se situa e com os quais se envolve:
arquitetura como envolvimento
46
Assegurar que investigar o comum não seja diferente de viver o comum. Por um
lado, trata-se de de transversalizar e ‘reciprocizar’ o gesto investigativo, procurando
modos de eliminar concretamente uma diferença (mais para descompasso
hierárquico) que tende a ser recorrente nas investigações, apesar de tudo o que se
disse e se discutiu sobre o assunto: aquela entre o sujeito-pesquisador e o objetopesquisado. Por outro lado, trata-se de um esforço por fazer (com os) conceitos,
explorar a sua performance presentativa, testar a sua pertinência no plano do uso
e a partir de uma abordagem que os experimenta enquanto ferramentas - algo
que serve para fazer com, não apenas para falar sobre. Um esforço por dar a ver,
através de uma prática no/com o terreno e o corpo, a distância que frequentemente
persiste entre o posicionamento teórico-discursivo e aquilo que se performa e
prática no (e como) mundo, para quem sabe, encontrar maneiras de a colmatar,
fazendo coincidir em ato o sentir, o pensar e o fazer (Eugenio, 2019, p. 6).
Foi então que escolhi caminhar junto às experiências vivenciadas com três
mulheres pelo Brasil que, de uma forma ou de outra, vinham percorrendo o rio
do tempo de vínculos criados desde 2016. Encontros etnográficos com Noêmia
do Espaço Cultural Jardim Damasceno, nas margens do rio Bananal, que
conheci em maio de 2016; Maria Odila, da Cooperativa Turiarte em Anã, nas
beiras do rio Arapiuns, que conheci em dezembro de 2018; e Yakuy Tupinambá,
do Levanta Amotara Zabelê, próxima ao rio Una, que conheci em fevereiro de
2019. Reconhecer que havia escolhido caminhar junto a mulheres, que beiram
a margem de Rios, e protegem áreas de sociobiodiversidade Brasil adentro,
foi uma escolha inconsciente, e somente percebida por mim no decorrer da
pesquisa, mas que não deixa de ter sua importância.
As três experiências estudadas, nas quais envolvi-me como pesquisadora,
tensionam os saberes e fazeres arquitetônicos que dominam o campo
contemporâneo da arquitetura e do urbanismo. De certo modo, expandem
a compreensão das relações espaciais junto às complexas dimensões sociais,
culturais, econômicas, políticas – sobretudo ao realizar uma arquitetura envolvida
com indivíduos vivendo em comunidades alternativas àquelas urbanas no
contexto brasileiro contemporâneo.
Interessante perceber o papel dessas mulheres, assim como Krenak, como
verdadeiros griôs, guardiãs e guardiões da cultura de seus povos e comunidades,
que transmitem as práticas culturais locais mas também narram as suas histórias
de forma acessível para as mais diversas pessoas: “me sinto um narrador das
47
introdução
histórias e memórias do meu povo (...) Como o pássaro que consegue vocalizar
o canto de qualquer outro pássaro” (Krenak, 2024).
O encontro com essas mulheres e territórios se manifestou de diversas formas
e situ-ações entre 2016 e 2024: em imersões e vivências em cada uma das
comunidades (como na vivência de Turismo de Base Comunitária com a Turiarte
no Arapiuns, no programa pedagógico Escola Sem Muros realizado no Jardim
Damasceno e na Vivência Tupinambá em Una), na curadoria de encontros
destas mulheres com outras referências de outras comunidades (como no II
Festival A Cidade Precisa de Você em 2018, no Seminário Arquitetura Para
Autonomia em 2019, nos encontros online da exposição Infinito Vão em 2021),
em visitas informais e trocas online durante o largo período da pandemia (em
2022 e 2023). E foram questões que surgiram dessas experiências que levaram
a realização deste trabalho.
Creio que o encontro entre as comunidades aqui representadas e as arquitetas
e arquitetos com as(os) quais colaboram tensionam as práticas espaciais e
apontam para aspectos de uma revisão desejável da atuação profissional.
Portanto, o movimento proposto aqui é de reconhecer a relevância dessas
práticas espaciais, produções arquitetônicas, de desenho da paisagem e
modos de habitar – por vezes feitas pelas próprias comunidades, por vezes em
colaboração com arquitetos.
É este um movimento de resgate e reparação histórica, mas também de
contracolonização, que vem se manifestando não somente na academia, mas
também em espaços de discussão pública como as Bienais, ecoando um espírito
do tempo. Como Paulo Tavares aponta, na ocasião do Pavilhão do Brasil na
Bienal de Arquitetura de Veneza de 2023:
O pavilhão reconhece essas práticas espaciais enquanto desenho da paisagem,
enquanto arquitetura, enquanto produção do espaço que produz biodiversidade.
Isso é fundamental, porque quando algo é colocado num pavilhão da Bienal de
Arquitetura, significa que aquilo é reconhecido como experiência arquitetônica
relevante. Portanto, nosso trabalho consiste em reconhecer essas práticas como
práticas fundamentais para o futuro tanto do Brasil como do planetário (Tavares,
2023).
arquitetura como envolvimento
48
Esta dissertação busca, dessa forma, ver até onde chega o rio na época da
cheia: alargar o espectro de leitura, entendimento e imaginário das produções
arquitetônicas no Brasil, para além daquelas feitas por arquitetos, contemplando
práticas autônomas de sujeitos indígenas, ribeirinhos e periféricos. O momento
histórico que vivemos apresenta um convite para ampliar o campo da produção
para as influências e confluências, como colocado por Nêgo Bispo, culturais,
políticas e climáticas sob as quais estamos e somos sujeitos.
Assim, a etapa de implementação da pesquisa inclui certo distanciamento
histórico, quando realizo conversas partindo de entrevistas semiestruturadas
com as mulheres que guardam e confiam em mim suas memórias, mas também
com as(os) arquitetas(os) envolvidas(os) nas experiências e que trazem também
o que seus corpos filtram do passado. Para além dos encontros com Noêmia,
Yakuy e Maria, também entrevistei, em maio de 2023, as(os) arquitetas(os)
também envolvidas(os) nestas experiências, de forma a entender desde sua
perspectiva a relação com as práticas espaciais, os desafios e aprendizados.
Por conta de limitações daquele momento, as entrevistas com Tomaz Lotufo e
Cássio Abuno (no caso do Espaço Cultural Jardim Damasceno); e Luis Octavio
Faria e Silva, Julia Gouvêa e Nayane Alves (no caso do Levanta Zabelê) foram
todas realizadas online - e as entrevistas com o mestre de obras e arquitetos de
Una não puderam ser realizadas.
Acreditando na potência que essas memórias carregam para um entendimento
dos processos históricos, a narração dessas memórias vem como ferramenta de
escrita da história, como lembra Krenak na sua fala durante o Ciclo Selvagem:
História e memória são muito parecidas, até a gente acha que é a mesma coisa.
A memória é eterna. (...) é preciso que as nossas memórias estejam encorpadas,
temos que ser um corpo de memória, seria uma maneira da gente honrar essa
experiência social plural que a gente compõe, gente de muitas culturas, muitas
etnias, muitas memórias. (...) Ter memória mesmo que a materialidade das coisas
desapareça (Krenak, 2023).
Apesar de por vezes a materialidade das coisas desaparecer, “é uma história que
jamais, ninguém no mundo vai conseguir apagar, do que isso aqui representa
pra mim e pra muitos da comunidade” (Giba, 2018)9.
Trecho do vídeo de financiamento coletivo da obra durante a imersão Escola Sem Muros em
2018, disponível em: https://benfeitoria.com/projeto/escolasemmuros.
9
introdução
49
> dimensões de análise <
Como objeto de estudo da pesquisa, pretende-se recortar arquiteturas
disparadoras de relações de envolvimento, em seus discursos e práticas espaciais
(in situ), a partir das dimensões da paisagem, corpos e tempo. Da compreensão
destes agenciamentos, imagina-se emergir reinvenções dos modos de estar-emcomum (Nancy, 1990), reconhecendo assim o estabelecimento de um campo
discursivo e propositivo da arquitetura como envolvimento.
O objetivo geral desta pesquisa é visibilizar as condições de possibilidade acerca
dos modos de pensar e fazer situados da arquitetura no contexto brasileiro,
mas também latino-americano, revelando contradições, tensões, desvios e
porvires, apontando caminhos para a criação de outras narrativas e imaginários
do desenvolvimento.
Os objetivos específicos são: investigar três práticas espaciais de envolvimento,
identificando as possíveis contribuições destas experiências para o campo da
arquitetura e do projeto participativo; revelar os agenciamentos por meio dos
quais as práticas se tornam possíveis de modo transescalar; e reconhecer sobre
quais afetos, memórias e imagens, os encontros que sustentam as ideias no
tempo e fazem com que elas possam circular. Espera-se contribuir para a revisão
da própria prática de arquitetura ao sistematizar outras práticas espaciais de
envolvimento.
A presente pesquisa busca, em resumo, reconhecer e revelar as arquiteturas
de envolvimento que apontam para modos críticos e criativos de imaginar e
construir alternativas ao paradigma do desenvolvimento de forma coletiva e
situada nas beiras dos Rios, no Brasil, na América Latina.
Afinal, de que maneira práticas espaciais de envolvimento podem atuar como
ferramenta de luta contra o progresso, como um modelo baseado em uma
exterioridade que não existe, e um caminho em flecha, miragem tão viva no
contexto brasileiro e latino-americano? Qual a ética, estética, técnica e política
de uma arquitetura do envolvimento no seu contexto sociocultural e ecológico?
Como práticas espaciais baseadas em processos situados participam, junto a
movimentos sociais e políticos, da criação do envolvimento como um comum?
De que forma estes podem contribuir para a emergência de um processo
arquitetura como envolvimento
50
de transformação social territorializado e essencialmente coletivo, além da
conscientização individual sobre a relação com o meio? Como lembram Jacques
e Pereira (2018):
Ao mostrar as descontinuidades, as rupturas, as contradições, as inflexões, as
emergências e as sobrevivências de ideias (nos discursos e projetos), buscamos
exercitar coletivamente uma outra maneira, mais complexa, de fazer história, que,
além de ampliar fontes, acervos e temas, não fuja dos conflitos e embates (Jacques;
Pereira, 2018, p. 16).
Dessa forma, a presente pesquisa vem para reconhecer os corpos como lugar
de memória, sistematizando os conhecimentos de diferentes percursos, em
um esforço de reflexão na esperança de manter o campo da arquitetura vivo,
pulsante, e aberto para experimentação e reinvenção constante.
> modos de ler <
A presente dissertação se organiza a partir de capítulos compostos por um
caderno de textos, junto a relatos das experiências dos casos estudados. Tal
diferença de formatos e linguagens se presta para compreender a complexidade
de camadas colocadas em relação, do material ao discursivo, do específico e
situado ao geral. A leitura proposta pode ser, assim, escolhida pelo leitor.
A parte I: in situ recorda memórias de envolvimento com 3 experiências
que poderiam ser vistas como “arquiteturas do envolvimento”, através de
relatos destes encontros etnográficos e das histórias de aproximação com tais
experiências. Do ponto de vista dos saberes e fazeres ali existentes, os casos
escolhidos traduzem a noção de envolvimento para as práticas de arquitetura
de diversas matrizes sócio-culturais.
Na parte II: forças-moventes, proponho ideias-força da paisagem, corpos e
tempo como dimensões e possibilidades de envolvimento, em relação e diálogo
das mesmas nas experiências relatadas anteriormente. Nesta parte, me interessa
investigar também como essas ideias se movem através de encontros e nebulosas
do pensamento da arquitetura e do urbanismo no país e no continente.
Por fim, a conclusão versa sobre a instauração de um campo de reflexões
e aprendizagem acerca do que seriam modos que possibilitem reinventar o
introdução
51
desenvolvimento em uma “efetiva abertura de discussão” (Negri, 2006).
Seguimos, assim, um percurso de investigação do que pode ser a arquitetura, em
uma construção comum junto às mulheres das três comunidades apresentadas
e das(os) arquitetas(os) com elas envolvidas(os). Uma historiografia viva de
corpos que transitam e se envolvem a partir de possibilidades de busca de
outros modos de se desenvolver, reverberando em outros modos da prática
junto a diversidade de comunidades e territórios brasileiros.
parte I
in situ
Figura 26: espaço cultural jardim damasceno, rio bananal-canivete, brasilândia, são paulo
Figura 27: levanta amotara zabelê, rio una, bahia
Figura 28: cooperativa turiarte, rio arapiuns, anã, pará
parte i: in situ
53
arquitetura como envolvimento
54
I.I
memórias do envolvimento
Construir e reconstruir comunidades é um passo fundamental. Além da relação com
a natureza, temos que recuperar o espaço público desde cada um dos territórios,
comunidades, onde nos encontramos. Não há receitas nem modelos, mas existem
respostas em todos lugares do mundo. O bem viver exige relações de respeito,
tolerância e confiança mútuas. Quando podemos começar? Agora! Onde? Aqui!
(Acosta, 2019, p. 79).
As três experiências in situ aqui relatadas são escolhidas em função de sua
relevância, originalidade e diversidade. Apesar de contextos consideravelmente
diferentes, o olhar das três situações gira em torno de intentos similares:
tangibilizar dimensões do envolvimento. Os três espaços coletivos estão
situados às margens de Rios, em bordas de áreas de preservação e proteção
ambiental, em diferentes regiões do Brasil. Suas arquiteturas têm como base
cosmogonias e culturas que escapam ao hegemônico e que parecem oferecer
saberes e fazeres necessários para os tempos que vivemos.
parte i: in situ
55
Figura 29: Noêmia Mendonça. Fonte: Rafael Duckur.
Espaço Cultural Jardim Damasceno - margens do rio Bananal, em São Paulo
Entender a arquitetura como o fio que costura a trama da vida, o tempo. O tempo
da luta de um território por ser reconhecido é maior do que o tempo de reprodução
de cada vida que passa por ali. O tempo é que vai costurar os acontecimentos,
traz a união dos esforços dos corpos que influenciam este território. Como nós,
enquanto corpos, podemos participar de uma estrutura histórica que é maior
do que nós? A iniciativa do Espaço Cultural Jardim Damasceno provoca um
olhar para o processo histórico, para os atores que o constituem, e os ritmos
– encontros e afastamentos, aproximações e distanciamentos, sobreposições e
tangenciamentos que atuam na composição dessa arquitetura.
Figura 30: Linha do tempo Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Produção própria.
arquitetura como envolvimento
56
Figura 31: Yakuy Tupinambá. Fonte: Mirrah da Silva.
Levanta Amotara Zabelê - às margens do rio Una, na Bahia
Encarar a arquitetura como construção viva, em permanente diálogo com
diversos corpos que habitam o lugar: bioconstrução. A experiência do Levanta
Amotara Zabelê nos convida a pensar os processos de desenho e construção da
arquitetura a partir do encontro com os corpos que habitam o lugar, humanos
e não humanos, promovendo uma prática mais situada e envolvida. Os corpos
dos mestres tupinambás, do rio, do mar, dos caranguejos, dos ventos, do sol. O
Zabelê relembra a qualquer um da presença e agência dos corpos, no tempo e
espaço; e que a arquitetura é viva, relacional e interdependente.
Figura 32: Linha do tempo Levanta Zabelê. Fonte: Produção própria.
parte i: in situ
57
Figura 33: Maria Odila. Fonte: Produção própria
Cooperativa Turiarte - às margens do rio Arapiuns, no Pará
Encarar a arquitetura como relação íntima com a paisagem, natural e cultural, na
criação de alianças a partir do encontro. Alianças humanas e não humanas, que
reconhecem e valorizam quem pertence à terra. A experiência da Cooperativa
Turiarte nos convida a compreender a arquitetura a partir de um ecossistema
de criação de comunidade, cooperação e alianças. Os afetos que possibilitam
trocas e a manifestação dos mesmos na matéria: a paisagem é incorporada
naqueles que se abrem para estar com ela. A Turiarte remonta a criação de
intimidade radical a partir do fazer manual e espiritual, de encontro com o outro,
e criação de uma terceira margem do rio.
Figura 34: Linha do tempo Cooperativa Turiarte. Fonte: Produção própria.
memórias de envolvimento
I.I.I
Espaço Cultural Jardim Damasceno
Figuras 35 e 36: Rio Bananal e Serra da Cantareira. Fonte: Victor Paris de Araújo.
58
59
parte i: in situ
Jardim Damasceno, 2016
Há anos já que era convidada para participar do movimento de permacultura urbana
– um coletivo de pessoas que atuam a partir da noção de cultura de permanência
da vida, entendendo como os fluxos energéticos – das águas, do alimento, dos
resíduos – se manifestam no ambiente, neste caso, urbano. No decorrer dos anos
e do aprofundamento do campo saber-fazer, os ditos permacultores passaram
a pensar essas tecnologias de forma mais acessível, nas bordas e periferias da
cidade. Como arquiteta urbanista, já conhecia como a palma da minha mão os
assentamentos “informais”
– em especial a Paraisópolis, segunda maior favela
de São Paulo. Na época, em 2016, possuía uma consciência social, no entanto, o
movimento ambiental ainda me orbitava num raio mais distante da minha prática
como arquiteta. É então que, após uma série de convites do mestre Tomaz Lotufo,
participo em 2016 do curso de Design em Permacultura Urbana da Casa da Cidade,
na Vila Madalena, mas cujas aulas práticas aconteciam em hortas urbanas das
bordas da cidade. Nesta ocasião, o encontro se deu não só com a Permacultura,
mas também com a Brasilândia e o Espaço Cultural Jardim Damasceno, espaço
que havia acolhido o encontro na edição prévia a que eu participei.
Era um fim de tarde quando encontrei Tomaz e Cássio, que estavam reunidos
conversando sobre o projeto de reforma do Espaço Cultural que Cássio tinha
feito, sob a mentoria de Tomaz. O projeto era de estruturas de bambu, que
vestiam a estrutura existente do Galpāo, junto a uma parede de barreamento com
pau-a-pique, usando o madeirite do fechamento do galpão como base. Criavase um mezanino no salão, com pé direito duplo, qualificando aquele espaço
ambientalmente. Ou seja, o novo projeto propiciava que os ventos atravessassem
o espaço, assim como os raios de sol entrassem. Os pórticos de bambu desciam
até uma fundação em formato de catamarã, um barco para ter estabilidade caso
chovesse e o rio Bananal transbordasse sua margem aprisionada pelo concreto
da cidade. Me lembro de ficar surpresa com o cuidado do desenho ao pousar
sob o existente, abraçando o galpão, seus usos, e podendo manter a estrutura
rígida caso houvesse mais tragédias alarmadas pelos cientistas aterrorizados com a
emergência das catástrofes climáticas. Por fim, o desenho abria um eixo de conexão
e relação direta com o Parque Linear do Rio Bananal e a Serra da Cantareira ao
fundo, os resquícios de mata Atlântica que ainda havia em São Paulo. Para mim,
que sempre havia morado na cidade, desde nascida, eram raros os momentos de
60
arquitetura como envolvimento
lembrança da existência da floresta na cidade. Cercada de um horizonte feito de
prédios, por vezes lembrava que debaixo dos prédios tinha terra, e que junto à
terra, tinha água, e que antes, junto à água, tinha vida manifesta em muitas outras
formas e corpos para além do humano. Sabia da importância de encorpar esse
entendimento, mas não sabia como
– só quando cheguei no Espaço Cultural que
apreendi. O próprio espaço, por sua situação e relação com o entorno, tornava
esse imaginário encorporado.
Me lembro de pisar no chão de terra batida – hoje já não sei se a terra batida era
do campinho de futebol ou do próprio espaço, destinado às atividades culturais.
Como nunca fui de jogar futebol de chinelo, talvez tenha sido nas rodas de ciranda
descalça no espaço que percebi a matéria do Chão.
Chegando lá, conheci a Noêmia. Educadora popular que impunha respeito: para
quem as crianças suadas de tanto brincar no quintal vinham pedir um copo d’água,
para quem as almas perdidas iam pedir trela ou permissão para usar o banheiro, ou
quem pedia para os jovens ali fora falarem mais baixo que estava tendo reunião.
O espaço é público, mas principalmente, comum: tem um dono, um guardião,
uma pessoa que zela, dá o tom, estabelece o respeito na forma de relação. Esse
cuidado se manifestava há muitas relações, no tempo.
Noêmia explicou: ‘Na decada de 90, quando teve o deslizamento de terra,
começamos a fazer assembleias dos moradores aqui. Começamos a ocupar. Quando
a empresa que ganhou a concorrência, tinha que fazer as obras de contenção,
mas era fundamental eles entenderem a história do local. Estamos do lado da
Serra da Cantareira: os grileiros desmataram, a força imobiliária ocupou de forma
inadequada, sem planejamento, e então ocupava as áreas em situação de risco.
Como o solo é argiloso, podia ceder mesmo, aterrando as nascentes; você aterra,
mas ela não morre, ela vai encontrar saída pra água fluir. Hoje tá saindo na casa das
pessoas. Precisamos entender esse processo, pra gente pensar que Damasceno a
gente quer. O passado, o presente, e trabalhar a expectativa para o futuro’.
Não bastasse a complexidade que era aquele lugar, lembro que me impressionou
o entendimento daquela mulher da realidade que ela ocupava, e das camadas de
cuidado que ela atuava, que se manifestavam na sua capacidade de organização
para transformar essa realidade.
61
parte i: in situ
A educadora relatava: ‘Naquela época, a participação das mulheres era forte. Um
grupo de mulheres trabalhando com costura tinha alugado uma garagem, mas aí
ocuparam esse lugar pra sair do aluguel. As mulheres no movimento tinham que ter
associação para ter uma identidade própria: a igreja tem limites de participação;
elas queriam um local aberto para todo mundo; católica, crente, candomblé, de
religião nenhuma.
Começaram então a discutir esse espaço. Não poderia ter cerca, ter muro, as
pessoas deveriam poder interagir, vir e conviver. Começamos a desenhar uma
cerca viva, mas o pessoal defendia muito o muro. A cerca viva vai embelezar, fazer
um vínculo com a Cantareira, picnic na mata, trilha, o rio.
O vínculo não era só com a natureza, mas também com as pessoas: uma mistura
de jovens, adultos, crianças; todo mundo sendo trabalhado no processo de
envolvimento com a proposta de participação coletiva. Todo mundo crescendo na
mesma vertente: da participação e consciência política. As famílias participam, um
vai puxando o outro. Fazemos parcerias com grupos locais, pessoas com deficiência,
crianças, adolescentes, idosos, curso com instituto federal para turismo de base
comunitária (programas governamentais ou iniciativa privada), universidades,
técnicos para ajudar a pensar como viabilizar e acionar esses programas, se não
tiver, que seja criada uma lei para outros serviços essenciais.’
Logo fomos interrompidas por um grupo da Estratégia Saúde da Família que
chegava com cerca de 12 idosos para tirar pressão, esperando todos chegarem
para sair para uma caminhada no Parque. Não tinha UBS no bairro, e a UBS do
bairro vizinho era distante e não supria a demanda, então os servidores da saúde
usavam o espaço como ponto de apoio no Jardim Damasceno. Enquanto isso,
as mulheres já chegavam para revezar quem ia cuidar das crianças naquele dia
de férias escolares. Neste dia teria também uma oficina para fazer sabão, com
aproveitamento do resto de óleo de cozinha e usando ervas aromáticas da horta.
‘Por conta da situação que a gente vive, precisamos buscar a geração de renda das
mulheres’, disse Noêmia.
No contexto da periferia da maior cidade da América Latina, os recursos são
escassos, e a criatividade necessária. Os moradores da periferia criam todo dia um
arquitetura como envolvimento
62
saber que emerge do fazer, a Sevirologia, dizia José Soró10, educador popular de
um bairro vizinho da Brasilândia, que anos depois vim a apresentar para Noêmia
durante o Seminário Arquitetura Para Autonomia. A arte de se virar com o que tem,
transformar resíduo em recurso: isso Noêmia também muito me ensinou. O espaço
cultural sempre fez muito com pouco: atividades culturais, focadas nos direitos
humanos (crianças e adolescentes), comunicação e mídias (podcast), demandas
diversas da comunidade (como o conselho tutelar), saúde da família, cuidado
de quem cuida, oficinas (de culinária, reaproveitamento do óleo para produzir
sabonete), espiral de ervas medicinais e aromáticas…
Com a parceria com o coletivo de permacultura, foram implantadas soluções
baseadas na natureza, buscando eficiência energética. No entanto, foi em 2021,
anos mais tarde, que conseguimos juntos ampliar a horta, criar a feira quinzenal
de alimentos orgânicos que compravam alimentos de hortas da região, e reformar
a cozinha. As pessoas, que estavam desempregadas e sem renda por conta da
pandemia, criaram um ecossistema virtuoso, de trocas e produção de valor a partir
do que se tinha à mão - a partir de todo o ciclo do alimento, desde o plantio, o
preparo, o consumo, a compostagem dos resíduos orgânicos para gerar adubo e
plantar de novo.
Trabalhar com a natureza, o verde, o alimento, uniu essas mulheres, muitas delas
migrantes, que vieram de Pernambuco, Pará, Maranhão, com memórias da roça,
do quintal dos pais, das frutas que eram colhidas no pé, do banho de rio. Mulheres
que chegam na cidade grande, na periferia, na Brasil-lândia, e se veem cortadas
das suas raízes da Silva (sobrenome comumente atribuido para aqueles que iam
para a Selva, como chamavam o interior do Brasil na chegada dos imigrantes).
Como se aquilo que viveram antes, o envolvimento com a Terra, as Plantas, os
Pássaros, os Rios, não tivesse valor algum ali. Como se na cidade, elas fossem
mais uma perdida na multidão. Mas, nos últimos anos, foi possível resgatar essas
memórias em suspensão, que haviam se perdido no tempo das migrações.
Em 2023, na ocasião de um reencontro no contexto desta pesquisa, Noêmia
compartilhou que lideranças e moradores da região vêm se encontrando no último
Cf. Moreira, J; Veloso, L. ‘Um novo mundo é possível’: morre Soró, líder da Comunidade Quilombaque de Perus. Mural, São Paulo, 31 out. 2019. Disponível em https://www.agenciamural.
org.br/um-novo-mundo-e-possivel-morre-soro-lider-da-comunidade-quilombaque-de-perus/
Acesso em: julho 2023.
10
63
parte i: in situ
ano para sonhar um parque agrário no entorno do Espaço Cultural, na bacia do
Cabuçu de Baixo, com a intenção de produzir alimento, cuidar da biodiversidade
e gerar renda nas bordas da cidade e da floresta. Verdadeiras agentes ambientais,
corpos que atuam na preservação dessa paisagem natural e cultural que habita as
bordas da Cantareira e os interiores do Brasil.
64
memórias de envolvimento
I.I.II
Levanta Amotara Zabelê
Figuras 37 e 38: Yakuy e Joza Tupinambá e Lagoa do Mabaço. Fonte: Produção própria e Neto Carriço.
65
parte i: in situ
Lagoa do Mabaço, Una, 2016
Fui a Salvador encontrar Clara, arquiteta, pesquisadora do corpo em movimento,
que conheci em Lisboa durante o encontro Projetar com a Comunidade. Tínhamos
desenhado uma viagem para explorar o sul da Bahia, encontrar os Tupinambás,
viver a Natureza, o Mangue, a Praia.
Saímos juntas de Salvador com a balsa para Itaparica, com uma mochila, uma sacola
de pano, um chapéu de palha. Era fevereiro, ainda verão. Iríamos a princípio para
Serra Grande, e depois para Olivença dos Tupinambá. Já conhecia Casé Angatu,
irmão de Binho, das andanças do Bixiga afro-indígena das terras de São Paulo. Mas
Binho, mais quieto e na dele, era Clara Pássaro que conhecia.
Chegamos em Olivença de van, deixamos as coisas na casa do casal que nos
hospedava, e logo saímos ao encontro de Binho. A casa tinha cheiro de peixe seco,
junto ao ar úmido e quente, por vezes atravessado pela Ventania da brisa do mar.
De biquíni e sacola de pano, fomos à praia.
Encontramos Binho em meio ao paliteiro de coqueiros e aos chapéus de sol que
trazem uma verticalidade para as praias compridas da Bahia. Ele usava um óculos
de sol e tinha longos cabelos, que protegiam sua nuca do corpo exposto, usava
uma bermuda de surf, e carregava com ele uma sacola térmica, com Água de
beber, conservada do calor.
Nós éramos outros corpos ainda que marcavam essa verticalidade. Em movimento,
deixávamos os rastros da gravidade inscritos de forma frágil na areia fina e branca,
mas que logo seriam bagunçados pelo movimento do corpo d’água do Mar
(salgada e gelada) ou do Vento (seco e cortante).
A caminhada foi longa e silenciosa, assim como a praia, extensa, debaixo da
verticalidade do sol a pino, inscrevendo sobre os corpos sua marca. Paralelos à
linha do Mar, por vezes encontrávamos Pedras no caminho, ou Rios. Ao atravessálos, a água doce acariciava a pele com sua temperatura mais morna e repleta de
matéria orgânica. A Matéria se deposita nas bordas do corpo do Rio, inscrevendo
sua memória de forma mais permanente na areia da Praia. Foi aí que encontrei um
rastro de Matéria de vida que me recordou do Pará: o encontro com outro corpo, o
arquitetura como envolvimento
66
rio Arapiuns.
Depois de horas a fio caminhando, pousamos debaixo de uma cobertura de tecido
para descansar, e aí que vi o Vento. Corpo de movimento intenso, ritmo insistente,
que quebra as linhas fixas do Horizonte do Mar e da verticalidade dos Coqueiros,
materializado no pano de algodão esvoaçando e criando um chapéu, um filtro,
uma trama atrapalhando os Raios do Sol.
Depois de um tempo de des-cansar, seguimos a caminhada até a Aldeia. O ambiente
foi se transformando, ficando mais adensado pela presença de árvores e de casas
de madeira. Era meio para o fim do dia já, e Binho nos levou até a casa de Joza
e Yakuy, na subida de um Morro de Restinga. A Casa não era só uma edificação,
mas se espalhava pelo platô: o varal saía da casa e alcançava uma árvore próxima;
a mesa ficava debaixo da mangueira; andando um pouco mais, a rede pendurada
na sombra, ao relento; os restos da fogueira do dia anterior e os bancos ao redor
indicavam o lugar de encontro. Nos sentamos ao redor da mesa na varanda da
casa, por entre panelas e jarros de metal, e garrafas térmicas com café recém-feito.
E lá ficamos por horas a fio, conversando com Yakuy.
Yakuy nos contou da dificuldade do machismo enraizado na cultura, da falta
de perspectiva e de futuro. Nos contou do suicídio comum entre os indígenas
tupinambás jovens, e da perda das tradições dos mais velhos. Yakuy nos contou do
histórico de colonização que já perpassa 523 anos, e da necessidade de demarcação
do território diante do Estado brasileiro, sob cujas normas estão sujeitos - ainda
mais considerando projetos como o do marco temporal, que revoga todo e
qualquer direito de ocupação antes do ano constitucional. Mas Yakuy relembrou:
essa não é nossa relação com o território.
A colonização, que aconteceu em 1500 e que continua com uma imposição de
direitos civis sob seu modo de vida, deixou marcas profundas nestes corpos, mas
sua percepção sensorial do mundo de certa forma insiste em resistir.
‘Vejo que o útero se inicia a partir do momento que tenho uma memória que consigo
lembrar dela e conviver com ela, começa na minha infância com os ensinamentos
que eu adquiri através dos meus mais velhos. Está relacionado à cultura e educação.
Que para nós se dá na oralidade e na forma de entender o mundo e como você se
67
parte i: in situ
sente pertencente ao que está à sua volta. Essa proposta nasce da percepção de
mundo, da escuta e do enxergar. Começa de dentro pra fora. A realidade externa
que se apresenta interage com nosso eu e vamos construindo nossa história.
Observando o que você acredita que faz parte de você e o que poderia ser de um
jeito ou de outro. Quando meu povo se levanta, e adquiri o reconhecimento oficial
(2002), as retomadas, a portaria declaratória (as últimas fases de demarcação),
quando isso acontece e eu me envolvo como militante do movimento em 2003,
eu comecei a fazer um mergulho, uma etnogênese. Quando você se aprofunda
numa história que infelizmente é cheia de violências, isso vai dando condição de
um despertar para fazer uma leitura do que é esse ser: quem sou eu, vocês, nós,
quem é a espécie humana.
Fazendo essas leituras e vivenciando momentos de conflito no território {não é
somente aqui, não é somente no Brasil}, isso expande seu nível de consciência.
Você vai observando, e vendo as tentativas que são feitas para manter um equilíbrio
nas relações, para que não haja sofrimento, tudo o que afeta nossos corpos. Tem
alguns nós que precisam ser desatados. Como solucionar esse desequilíbrio e
encontrar o equilíbrio que buscamos?’ trouxe Yakuy Tupinambá aquela noite.
Fomos juntos para a Lagoa do Mabaço, o local onde seria a implantação da
Universidade Intercultural de Saberes Amotara Zabelê. Percebi de forma nítida a
potência daquela paisagem. A primeira parada, depois da caminhada pela estrada,
seguida de um caminho de areia mais fechado pela Mata de Restinga, foi a Lagoa.
Completamente transparente, azulada, morna, a Lagoa foi como um abraço. Clara
foi a primeira a mergulhar, e logo a segui. Nadei a borda inteira da Lagoa, e depois,
com o corpo cansado, boiava como que em uma sessão de watsu, uma terapia na
água morna que te recorda da vivência no útero materno. Não à toa Yakuy chama
este lugar de útero.
‘Formamos um coletivo, Levanta Zabelê. Quando começamos, sentimos necessidade
de ter um espaço, de construir um espaço. Atuamos com três princípios: troca
de saberes, retorno à mãe terra, e a descolonização para libertar as mentes dos
processos históricos relacionados à violência (a colonização é um deles).
Tem toda a questão cultural Tupinambá, que pede uma restituição: é algo que
nós perdemos; nossa arquitetura tradicional, sagrada. Buscamos uma arquitetura
arquitetura como envolvimento
68
integrada à natureza, mas que contribua para a visibilização do nosso povo. Como
trazer algo que contemple o fortalecimento cultural de um povo, para a arquitetura,
para os construtores, que respeite a natureza e as espécies que estão em volta?
Sinto que precisamos trazer essa diversidade para um universo: o que forma um
uni-verso é a diversidade, unida nesse universo. A cultura distorce tudo isso e
começa a individualizar. O entendimento do indivíduo no coletivo se perde. Então
as estratégias do projeto são de fazer uma travessia para uma transformação.
Você está com um corpo todo cronometrado, e o útero convida para um outro
tempo, que não é esse. Ele não vem pra bater de frente, mas para que esses
indivíduos que formam esse coletivo possam trazer ao mundo algo que possa
contribuir para um alinhamento. É preciso envolver a todos, pois sem esse
envolvimento e entrelaçamento, não vamos conseguir dissolver as violências se
não conseguirmos interagir com esse todo. A proposta é ousada e desafiadora.
Como tivéssemos [sic] que renascer.
É uma escola de aprendizagem viva, da prática, mas também de pesquisa e inovação:
uma escola filosófica’, disse Yakuy quando nos encontramos ao sair da Lagoa.
Depois de silenciar o tempo e desfrutar do encontro com este corpo d’água e com
esta verdadeira mestra, seguimos para onde havia um resquício de ocupação da
sua mãe, que antes habitava este lugar. Uma cabana de madeira e cobertura de
palha, escura, com um avarandado, que separavam os cômodos mais internos e
privados do ambiente, externo. Transitando por entre o interno e externo. Nessa
costura, deixei minha marca na areia junto àquelas dos caranguejos que habitam
por ali, no caminho para o porto que dava para o corpo d’água salobra de Mangue.
Anos se passaram, e ali voltamos, dessa vez com Julia, arquiteta também da Escola
da Cidade que morava em Serra Grande, professora da Universidade Federal do
Sul da Bahia. Fomos de carro do Pé de Serra até Una, e paramos no caminho para
comprar gasolina. Chegamos lá, Yakuy e Joza nos receberam com uma moqueca
de peixe fervendo na panela de barro preta. Depois de caminhar pelo quintal,
encontrar galinhas, patos, insetos, cocos espalhados por ai, Joza abriu um coco e
me deu de comer Nuvem, para abrir o apetite. Logo sentamos para almoçar no
avarandado da Cabana de madeira, o Vento agraciava a pele trazendo o frescor
para compensar o calor da moqueca que se produzia em nós.
69
parte i: in situ
A sesta foi uma dança com o Vento, caminhando pela terra areada da Restinga,
em que fomos parar no centro de força do útero: a parte resguardada do corpo
d’água, que permanece mais seca mesmo nas Chuvas ou na Maré Cheia. É de lá
que se irradiariam as Malocas, que vão abrigar as atividades da proposta. Pude ver
toda a arquitetura sagrada daquele espaço se construindo na medida que Yakuy ia
narrando. Ver no sentido da materialização de algo no imaginário.
‘Isso se dá através da nossa cosmopercepção (para o indigena não é cosmovisão,
mas percepção, pois somos seres sencientes, conseguimos enxergar, escutar,
usar os sentidos). Fui treinada desde criança a usar todos os sentidos. Esses são
elementos importantes para você sentir a energia que acontece num momento.
Quando encontro com uma pessoa que começamos a falar: você se apresena, olha,
sente a energia, e quando vai avançando, vai sentindo as reações da pessoa, o olhar,
o gestual. A pessoa sendo envolvida, recebendo um chamado.’ Anos depois Yakuy
vai me lembrar do impacto que este encontro teve em mim, na Julia, e em diversos
caminhos de muitas outras pessoas que por ali passaram. Mais tarde, ela também
revelou um entendimento dos processos de envolvimento destes corpos: ‘O útero
tem ensinado, o útero fisico, de cada mulher [sic]. Eu; minha bisavó; eu lembro do
período que gestei outro ser aqui dentro… Há momentos que o útero expele, às
vezes nasce, mas logo depois faz a passagem. Tem que ter uma compreensão. Tem
pessoas que escutam, dão uma mergulhada, trazem isso pra si; tem umas que fazem o
mergulho e outras não. Vou observando e isso me dá condição de adentrar qualquer
espaço. Não tenho dificuldade de levar a proposta dele pra nenhuma pessoa. (...)
O útero não é seu, nem meu, é do universo. É seu na hora que você mergulha.
O útero pode ser uma nova pedagogia: como construir um espaço para que ali possa
acontecer uma aprendizagem viva? E fazer com que os conhecimentos racionais
dialoguem com a natureza. Não é a espécie humana o centro das atenções. (...)
Acordar as manhãs, ver o sol brilhando e ouvir o canto dos pássaros, do barulho do
vento nas folhas, isso que importa. (...) Interagir com isso aqui reforça e encoraja
para que possamos acreditar que ainda é possível preservar as formas de vida.
Quando você se relaciona com isso, entende porque a arquitetura precisa fazer
palafitas, para respeitar os répteis; quando fazer uma ponte suspensa para não pisar
no berçário do crustáceo. E partilhar isso para as pessoas que virão, e os zabelês
falarem de que em qualquer parte do mundo pode [sic] criar um mecanismo para
que possa se relacionar de forma harmoniosa (com a natureza).’
70
memórias de envolvimento
I.I.III
Cooperativa Turiarte
Figura 39 e 40: Rio Arapiuns e Imagem de Satélite. Fonte: Produção própria e Google Maps.
71
parte i: in situ
Anã, Arapiuns, dezembro de 2018
Cheguei a Santarém por ocasião do trabalho que realizava na época: O Futuro da
Minha Cidade. Já vinha me orientando para um horizonte de pensar e viver não
somente a cidade, mas outros territórios, e ousar reinventar o que chamamos de
urbano. Nessa busca, através do mapeamento e das articulações com iniciativas
de inovação socioambientais locais, encontrei o projeto Saúde e Alegria e tive o
privilégio de, através deles, chegar nas comunidades ribeirinhas do rio Arapiuns e
conhecer a Associação de Anã e a Cooperativa Turiarte.
Conheci a sede da Cooperativa Turiarte em Santarém. Em meio ao clima quente
e úmido da Amazônia, fui caminhando e cheguei transpirando na sede, mas lá fui
recebida com um copo de água fresca, em um átrio com árvores frondosas e uma
sombra generosa. Um oásis, criando um microclima da Floresta, dentro da Selva
de Pedra que é Santarém.
Lembro que me impressionou as calçadas: palco onde as pessoas tomavam tacacá
no fim da tarde, e onde durante as chuvas a memória da paisagem se revelava.
As valas profundas que separaram a calçada da rua tentavam estabelecer um
sistema de drenagem urbana, sem sucesso. Na época das chuvas, mudavam as
vogais: antes de ser Rua, ali era Rio. No caminho para a sede da Cooperativa, me
perguntava: jardins filtrantes? Jardins de chuva? Tantas tecnologias que poderiam
trazer a Floresta de volta pra Cidade…
De volta à sede, a biodiversidade humana e não humana daquele micro-oásis me
encantava: cantos de pássaros e sotaques diferentes dos quais eu estava habituada
me situavam ali, em um pedacinho da Amazônia dentro da cidade amazônica. As
mulheres ribeirinhas do Arapiuns me mostravam os artesanatos que faziam de palha
de Tucumã, e fiquei completamente absorvida pelas mandalas e curiosa para saber
mais do processo de feitura, do contexto de onde vinham essas peças, e como essas
relações com essa paisagem tão particular se davam. Me recordava de ter visto esses
desenhos em outros lugares: no aeroporto, nas lojas de souvenir, descontextualizados
de qualquer vínculo com pessoas ou com o lugar. Que paisagem era essa de onde
vinham esses desenhos? Como era o Tucumã? Uma palmeira? Como era feita a tintura
natural – a partir de quais matérias-primas (irmãs)? Estava sedenta de conhecer e
incorporar essa tessitura de materiais, saberes, fazeres…
arquitetura como envolvimento
72
Resolvi então mergulhar nessa experência pelo tempo que podia.
Saímos do porto de Santarém, de barco, cheirando a óleo queimado. Entre coletes
salva-vidas, toldos e redes penduradas, sacolas plásticas nomeadas com encomendas
da cidade grande para os moradores das beiras do Rio Arapiuns, fiquei ali, sentada,
esperando o tempo passar e todos chegarem para que pudéssemos partir. O meio de
transporte não era somente de humanos, mas também mercadorias, e notícias. Logo
saímos do porto - do barulho, do excesso de fluxos vários, do lixo, dos tratores New
Holland que traziam o desenvolvimento com a reforma feita a partir de estruturas de
concreto armado, montes de terra e areia sendo movidos a bel-prazer do desejo de
um humano com sua prótese biônica.
Nos deparamos com o silêncio do horizonte do Rio, das massas verdes das Matas,
das Praias de Rio, do Mangue, das Raízes aéreas que desenham formas complexas,
mas simultaneamente simples. Formas rebuscadas que, quando refletidas pelas
águas, compõem um arranjo simétrico e integrado. Fecham ciclos: ‘o que está no
alto é como o que está embaixo; o que está embaixo é como o que está no alto.’
Depois de algumas horas de boreste na rede, no balanço do Rio, chegamos a
Urucureá. Piso de terra batida, casa de madeira com teto de palha, redes amarradas
em todo e qualquer elemento vertical, por todo canto.
Na minha chegada, fui recebida por Rosângela, que me acolheu carinhosamente, e
abriu a sala de sua casa para me hospedar. Deixei as coisas por ali e fomos caminhar
pelo quintal. Terra-Areia a perder de vista. Tucumã, araçá, cúrcuma, urucum,
genipapo. Fui apreendendo as palavras na medida que apreendia a paisagem e
suas diferenciações.
Pilão, fogueira, tijolo, pia, banco, avarandado. Abrigo, limite, trama, furinhos por
onde a luz vazava. Barcos, taboa, canoa, céu. Parecia haver uma profunda intimidade
entre Rosângela e os elementos da paisagem, que neste encontro, produziam uma
terceira margem. O que se via ali era o acontecimento em potência. Por vezes se
encontravam vestígios destes rituais. Me sentia completamente honrada de estar
adentrando essa intimidade, e tendo os olhos treinados para ver.
Aqueles objetos que antes havia visto, agora revelavam a mim outra trama de
73
parte i: in situ
afetos e sentidos.
Depois da caminhada, findava o dia. Jantamos à luz de velas, com as crianças,
jambu, arroz e feijão. Depois de comer, Rosângela me mostrou como tecer o
Tucumã: respeitar o sentido da fibra, realizar o corte seco e preciso das fitas com
a faca, compreender os movimentos das dobras e o ritmo do ir e vir. Tecer com,
entremear. Queria eu ter ainda viva a memória no corpo dessa tessitura. Mas
relatando aqui me lembro que a memória deste encontro permanece viva.
No dia seguinte, ao acordar, fomos para Anã de barco pelo rio Arapiuns. Corpo
largo, ondas suaves, repleto de mata ciliar, bancos e praias de areia com árvores
baixas de troncos contorcidos, como se deitadas pela força do Vento. Foi um longo
caminho, percorrido em diferentes modais e velocidades. Depois do barco, peguei
um mototáxi por entre a Mata fechada, guiada pelo desenho das marcas dos pneus
no chão, por entre a Areia, a Terra e a Serrapilheira. Finalmente chegamos a Anã,
onde conheci Maria Odila.
Caminhamos pela vila: o restaurante escola, a oficina para feitura do Beiju e feitura
de ração para o Tambaqui, o espaço de convivência para o Baile Arrochado, a Igreja
de Nossa Senhora de Fátima, o mirante avarandado na praia do Rio Arapiuns, o
redário onde viria a dormir. Fechamentos de palha de Tucumã no telhado e na
fachada, pilares de Madeira, chão de Areia batida, e caminhos de Areia fina e
branca mostrando as linhas do desejo em meio ao verde ora do Quintal e ora da
Floresta, que se confundiam.
Maria me contava que no começo, em 1958, a comunidade foi chamada de Piquiá.
Frei Marco, um padre americano que começou a relação com as três famílias que
ali viviam, deu a sugestão que trocasse de nome, porque o piquiazeiro ia morrer.
Perguntou então qual era o nome do dono do Lago. Maria então me disse: ‘A
nossa região amazônica é cheia de encantos e mitos: cada lago e cada cabeceira
tem um dono. A partir disso pensaram em Muanã, ser encantado em tupi-guarani.
Em 86, quando foi registrar a associação, foi escrito Anã, que significa encanto’.
Maria morou até 1971 em Anã, partiu para São Paulo, e depois em 1998 voltou
para a comunidade – estando Maria e Anã diferentes neste retorno. Ao retornar,
Maria encontrou um grupo de mulheres organizado, cuidando uma da outra,
fazendo remédios caseiros, e cuidando da floresta, sua casa, com a conquista do
arquitetura como envolvimento
74
estabelecimento de uma Reserva Extrativista na Unidade de Conservação Tapajós
Arapiuns. De 17 famílias em 1971, hoje são 86 famílias em Anã, que têm a posse
da terra, o direito de trabalhar na terra, 2hec de roçado pra fazer plantio e suprir a
necessidade, além da área de proteção ambiental com manejo sustentável.
A comunidade ribeirinha colabora em projetos de turismo de base comunitária,
trabalhando na produção de farinha de tapioca, beiju, alimentos frescos, galinha
caipira no quintal, tambaqui, artesanato… ‘Nós acompanhamos o tempo: criando, se
desenvolvendo e lutando para manter o nosso conhecimento, porque a aculturação
vem em peso. Quando a gente trabalha com outros segmentos da sociedade,
precisamos prestar atenção em nós mesmos. Temos que ter um cuidado grande para
que a aculturação não mate a gente, caboclos ribeirinhos da Amazônia’, disse Maria
enquanto caminhávamos pela vila e ela me mostrava a paisagem que a constituía.
Experiências como a que eu vivia junto a elas, de turismo de base comunitária, eram
importantes no sentido de criar alianças para viabilizar os desejos da comunidade,
dentre eles o refeitório onde comi, a maloca onde pendurei a rede pra dormir. Com
diversos apoiadores do Brasil e de fora, em 2012 foi construído todo o complexo
para receber turistas em Anã, com mestres de obra da própria comunidade, um
arquiteto gaúcho, e financiamento alemão. Mas não bastava construir o espaço.
Maria contava: ‘A comunidade estava com tudo pronto, mas não estava legalizado.
Em 2015 registramos a hospedaria de Anã no Ministério do Turismo. A Rosângela
regia todo o artesanato, e estava com problema como eu: que [sic] a gente estava
recebendo o dinheiro na nossa conta, e como tinha que pagar os impostos, a gente
recebia menos do que devia. As associações não podiam gerenciar o artesanato
pra vender porque são sem fins lucrativos. Depois de conversar pra legalizar,
criamos a Cooperativa, legalizando o turismo e o artesanato, e trabalhando com
a conscientização da comunidade sobre o que é cooperativismo, como funciona.
Eu conhecia essa palavra mas não sabia o que era: li apostilas, foi um trabalho de
conscientização, um trabalho árduo.’
Me lembro de ter perguntado se eles recebiam muitos turistas lá, e se essa
atividade gerava a renda necessária para a comunidade. Maria concluiu: ‘A gente
não tem muita geração de renda ainda. A hora que precisa, tem dinheiro, mas o
que é importante mesmo é a segurança alimentar. A hora que precisa de um Peixe,
75
parte i: in situ
de uma comida, é só descer pro rio e o almoço tá garantido. A princípio o foco não
era o dinheiro. Mas sempre ganhamos o suficiente e garantimos a alimentação.’
Foi importante ouvir dela a perspectiva de que por vezes o que precisamos é o
suficiente para o bem viver, e que o dinheiro é o meio para conseguir isso, mas nem
sempre o único meio. A perspectiva de que com seu tempo e esforço, poderia se ter
almoço ao alcance das mãos. Não que fosse fácil, mas era possível. Maria continuou:
‘Na preservação da nossa raiz, a gente tem cuidado. Tem um projeto que chama
O que a comunidade sabe e que a escola não ensina, que busca ensinar jovens
e adolescentes sobre alimentação, coisa antiga… Quanto ao meio ambiente
também, nós temos consciência que precisamos dele, e ele é capaz de nos dar
o que precisamos: temos uma casa para morar, uma terra para cultivar, temos
consciência do que é a vivência na floresta’.
Na ocasião do reencontro com Maria no contexto da pesquisa, perguntei como eles
haviam passado estes últimos anos, e ela disse: ‘A dificuldade mesmo foi durante
a pandemia. 1 ano e 6 meses sem receber ninguém, todo mundo adoeceu. 2 ou 3
meses se passaram, eu me apavorei. A gente não ganha salário por trabalhar com
turismo, a gente recebe por diárias, que contribuem para quem trabalha ali dentro,
para a família que está trabalhando. E a conscientização para criar esse espaço
todo? Deu trabalho’.
arquitetura como envolvimento
76
I.II
saberes e fazeres para o agora
As entrevistas e observações feitas em cada vivência revelaram diferentes
dimensões que merecem atenção e nem sempre são levadas em consideração
pela pregnância de um modelo de formação em arquitetura e urbanismo
funcionalista e que não foi abandonado. Ao contrário: não só cresceu como
privilegia a adoção de teorias, aplicando-as de modo acrítico e pouco respeitoso
tanto às diferenças culturais quanto às formas coletivas – comunitárias ou sociais
em um sentido mais amplo – de co-instituírem seus lugares de vida.
Dentre essas dimensões, pode-se elencar algumas do campo estrito do ofício
de arquiteto e urbanista e ainda outras mais gerais, como:
1) as diferentes escalas arquitetônicas tensionam os limites do projeto,
provocando as(os) arquitetas(os) a reconhecerem a escala a partir das práticas
culturais cotidianas do corpo em suas interações com outros dispositivos,
objetos e corpos de ativação específicos segundo cada caso e situação.
2) as tipologias, como conjunto de edifícios, edifício fechado no lote, edifício
envolto de espaços verdes livres, espaço aberto.
3) as áreas de atuação e atividades ao redor dos temas de: habitação; preservação
ambiental, e salvaguarda do patrimônio cultural; manejo agroecológico;
artesanato, fazeres manuais e criativos; consciência corporal, terapias e cuidado;
economia solidária, comércio justo e cooperativismo; educação popular,
transmissão de saberes tradicionais e ancestrais (o papel pedagógico e de
produção coletiva de conhecimento); manifestações e expressões culturais; e
turismo de base comunitária.
4) as formas de colaboração da comunidade com a experiência, que podem
envolver transferência de recursos, voluntariado e doação de tempo e recursos,
troca, uso gratuito.
parte i: in situ
77
5) as alianças necessárias para viabilizar a existência da iniciativa, como
parcerias com atores políticos, poder público, assessorias técnicas, instituições
internacionais, organizações do terceiro setor, movimentos sociais, empresas,
mídias, artistas e influenciadores.
6) as nebulosas das quais fazem parte ou com as quais interagem, os atores
históricos com os quais se inspiram e dialogam – além do contexto histórico
que dá contorno à situação na qual se insere, quando e como começa, quais as
forças que a tensionam e limitam, quais as forças que movem.
7) os desafios e momentos de desânimo e cansaço, de falta de energia para
seguir a luta e continuar re-existindo apesar das adversidades.
8) a situação legal - se é irregular e está sob ameaça, se é formalizado e
regularizado de alguma forma, sendo pública ou privada.
9) qual o impacto percebido do que acontece ali e qual a força do que é feito ali.
10) os desdobramentos da iniciativa, de que forma tem se desenvolvido e
ressoado no mundo – seja em termos da política institucional ou da política
praticada no cotidiano.
Reconhecendo as diferentes experiências, é possível reconhecer a atenção às
diferentes escalas de projeto (1) que se revelam nas práticas culturais cotidianas
do corpo em suas interações com o meio. Um exemplo evidente dessa dimensão
é a questão do artesanato, no caso da Cooperativa Turiarte, que atua com um
desenho da paisagem a partir da relação com as diferentes espécies de plantas
que são cultivadas e servem para a tintura da palha do tucumã.
No caso das tipologias (2), os três casos são de edifícios envoltos em espaços
verdes livres e abertos, demonstrando uma relação de exteriorização e
envolvimento com o entorno, revelando um zoneamento baseado na relação
diretamente proporcional de quanto maior a frequência de uso dos espaços,
maior é sua proximidade do edifício. Um exemplo é a proximidade da horta da
cozinha do Espaço Cultural Jardim Damasceno, que tem frequência tanto para
rega quanto para colheita diária da comunidade.
arquitetura como envolvimento
78
As áreas de atuação e atividades praticadas nos espaços estudados (3) são
multidimensionais, provendo uma série de benefícios para a população que
frequenta e que habita o entorno do espaço estudado. É importante perceber
que as três iniciativas possuem uma relação intrínseca com processos de
conscientização, refletindo no seu compromisso com a produção coletiva de
conhecimento, seja em espaços informais ou formais de aprendizado, como as
universidades.
As formas de colaboração com as experiências (4) são das mais diversas,
envolvendo vínculos e contribuições diferentes por parte de públicos diferentes.
Nas três situações, por se tratarem de territórios vulnerabilizados, a relação com
o entorno é pautada por uma economia solidária, comunitária e do cuidado.
Um ponto central no caso das três experiências é a necessidade de criação de
alianças para viabilizar a existência da iniciativa (5). Muitas vezes os territórios
estão em disputa e vivem situações legais frágeis (8), uma vez que não são
regularizados, sofrendo com tentativas de desapropriação – como foi o caso do
Espaço Cultural Jardim Damasceno, que durante essa pesquisa, em outubro de
2023 sofreu ameaças por parte da Prefeitura de São Paulo com uma ordem de
despejo11. Parcerias com assessorias técnicas, organizações do terceiro setor e
mídias são atores fundamentais para conseguir visibilidade e peso político em
disputas como essa. Mas é em momentos como este que emerge a necessidade
de não somente mensurar mas comunicar qual o impacto e a força do que
acontece ali (9).
Essas relações políticas, de aliança e reciprocidade, se agudizam em momentos
de crise, mas existem para além deles. Quando mapeamos as nebulosas (6)
das quais as mulheres como Noêmia, Yakuy e Maria Odila fazem parte ou com
as quais interagem, com quem se inspiram e dialogam, se revela uma teia de
apoio mútuo e de vínculos delicados porém muito necessários no dia a dia das
experiências. No entanto, ao mapear essas nebulosas, se revelam não só quais
as forças que movem essas mulheres e iniciativas, mas também as disputas, quais
as forças que a tensionam e limitam sua potência e ação no mundo, produzindo
desafios e momentos de desânimo e cansaço (7) que por vezes geram hiatos
no processo histórico de cada experiência. Apesar de reconhecer a importância
Saiba mais aqui na campanha que organizamos através do Instituto A Cidade Precisa de Você,
que estou como diretora-presidente, para pressionar pela permanência do Espaço Cultural
Jardim Damasceno: https://www.espacoculturaljddamascenofica.minhasampa.org.br/
11
parte i: in situ
79
dessas mulheres para a vida destes espaços, é importante lembrar que se
tratam de iniciativas coletivas. Deste modo e também por isso, por serem vivas,
possuem picos e vales – que se manifestam em ausências mas também em
ressonâncias muito além do visível.
Os desdobramentos das experiências que acontecem em cada um destes
territórios (10) tem dimensões imprevisíveis e muitas vezes incomensuráveis.
Porém, se percebe nas memórias e nas trocas com aqueles envolvidos nas
atividades o impacto e importância destes espaços em suas vidas. Seja
em termos de construção de identidades e pertencimento, ou da troca de
experiências e aprendizados com outras iniciativas em outros contextos que
passam por situações e desafios semelhantes, ou ainda como insumos para
a criação de políticas públicas que possam ser replicadas, cada um destes
territórios e arquiteturas afeta os corpos que ali passaram, bem como é afetado
e transformado por estas presenças e percursos.
As três experiências expostas até aqui tensionam os saberes e fazeres
arquitetônicos, provocando que a compreensão das relações espaciais junto
às complexas dimensões sociais, culturais, econômicas e políticas passem a ser
levadas em conta, sobretudo, ao se realizar uma arquitetura como envolvimento
no contexto brasileiro contemporâneo.
arquitetura como envolvimento
Espaço Cultural Jardim Damasceno
Figuras 41 a 46: Atividades de regeneração urbana com o Instituto A Cidade Precisa de Você
no Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Clayton João, 2022.
80
81
parte i: in situ
Figuras 47 a 49: 4º
Festival A Cidade
Precisa de Você
no Espaço Cultural
Jardim Damasceno.
Fonte: Victor Paris,
2022.
82
Figuras 50 a 52:
Atividades do projeto
ECOCIDADE com A Cidade
Precisa de Você e Espaço
Cultural Jardim Damasceno.
Fonte: Victor Paris, 2022.
Pág 83: Figuras 53 a 56: Vivências Escola Sem Muros no Espaço Cultural Jardim
Damasceno. Fonte: Raffaela Arcuschin, 2017.
Pág 83: Figuras 57 a 59: Atividades com o grupo de mulheres do Espaço Cultural
Jardim Damasceno: Perifa Alimenta. Fonte: Tata Barreto, 2023.
parte i: in situ
83
84
Figuras 60 a 62: Vivências Escola
Sem Muros no Espaço Cultural
Jardim Damasceno. Fonte: Raffaela
Arcuschin, 2017.
parte i: in situ
85
Levanta Amotara Zabelê
Figura 63: Yakuy e Joza Tupinambá no braço de Rio da Reserva Biológica de Una. Fonte: Produção
própria, 2016
Figura 64 e 65: Yakuy e Joza Tupinambá e a Lagoa do Mabaça Sul. Fonte: Produção própria, 2016
arquitetura como envolvimento
86
Figuras 66 a 68: Yakuy Tupinambá no manguezal da Reserva Biológica de Una. Fonte: Júlia Auler, 2016
parte i: in situ
87
Figura 69: Yakuy Tupinambá no manguezal da Reserva Biológica de Una. Fonte: Produção própria, 2016
arquitetura como envolvimento
Figuras 70 e 71: Construções vernaculares na Aldeia Zabelê. Fonte: Produção própria, 2019.
88
89
parte i: in situ
Figura 72:
Paisagem de
dendezeiros na
Aldeia Zabelê.
Fonte: Produção
própria, 2016.
Figuras 73 a
75: Paisagem de
dendezeiros e
feitura de azeite de
dendê na Aldeia
Zabelê. Fonte:
Mirrah da Silva,
2023
arquitetura como envolvimento
Figuras 76 a 82: Vivência Tupinambá com
Floresta Cidade na Aldeia Zabelê. Fonte:
Emmanuele Araújo, 2024
90
parte i: in situ
Figuras 83 a 85: Rituais e modos de habitar Tupinambá. Fonte: Mirrah da Silva,
91
arquitetura como envolvimento
Cooperativa Turiarte
Figuras 86 a 90: Saberes
e fazeres ribeirinhos.
Fonte: Chema Llanos/
Saúde e Alegria.
92
parte i: in situ
Figuras 91 a 94: Trançado de palha de Tucumã das mulheres da Cooperativa Turiarte. Fonte: Luca
Vittorio.
93
arquitetura como envolvimento
Figura 95 a 97: Saberes e fazeres do trançado de palha de tucumã e do tingimento natural. Fonte:
Chema Llanos.
94
parte i: in situ
Figuras 98 a 103:
Saberes e fazeres do
trançado de palha de
tucumã e do tingimento
natural. Fonte: Chema
Llanos.
95
arquitetura como envolvimento
96
Figuras 104 a 109: Trançado de palha de Tucumã das mulheres da Cooperativa Turiarte. Fonte: Marcelo
Oseas.
parte i: in situ
Figuras 110 a 114: Trançado de palha de
Tucumã das mulheres da Cooperativa Turiarte.
Fonte: Theo.
97
98
arquitetura como envolvimento
Figuras 115 a 119:
Construções do modo de
habitar em Anã. Fonte:
Produção própria, 2018.
parte i: in situ
Figuras 120 e 121: Construções do modo de habitar em Urucurea e Anã. Fonte: Produção própria,
2018.
99
arquitetura como envolvimento
Figuras 122 a 124: Construções do modo de habitar em Anã. Fonte: Produção própria, 2018.
100
101
reinventar o desenvolvimento em comum
Ela me disse:
“a senhora não vai conseguir parar,
porque isso tá no seu sangue,
na sua veia, isso que lhe move.”
Aí depois de algum tempo, voltamos,
e graças a deus, o grupo reanimou,
reativou, e hoje estamos bem,
quase todas as famílias
trabalham para o turismo com o MUSA
Mulheres sonhadoras em ação
(Odila, 2023).
Figuras 125 a 127: Paisagem ribeirinha em Anã. Fonte: Produção própria, 2018.
arquitetura como envolvimento
Figura 128: Rio Arapiuns. Fonte: Produção própria, 2018.
102
parte II
forças moventes
104
arquitetura como envolvimento
II.I
ideias-força: dimensões do envolvimento
Foi um autodidatismo que se afirma através de trabalhos concretos. (...) de
observador de padrões e arranjos dos espaços públicos e privados, e de candidato
a interventor nas suas formas de produção e de consumo, fui me transmutando
em observador das inter-relações sociais e das redes de significados. (...) de fato,
fomos vendo que o mais fascinante resultado do que fazíamos era o que acontecia
a partir daí e totalmente fora do nosso controle. (...) foi uma evolução traumática:
eu fazia muita etnografia “em bruto” e vivia ansioso por “contar histórias’ sem
conhecer a técnica adequada e receoso de usar os termos inadequados (Santos,
1980, p. 40, 42 e 44).
No processo de rememorar estes encontros, resolvi reencontrar também
os arquitetos e arquitetas envolvidas nesses processos, ouvir deles como a
arquitetura se faz dispositivo de envolvimento. Neste exercício de olhar para
as experiências e para a potência da arquitetura como elemento disparador
de relações, emergiram as seguintes noções que atravessam as experiências
compartilhadas: corpos, tempo e paisagem. Na presente dissertação, faço
uso, portanto, dessas três categorias de análise de processos e projetos de
arquitetura, de forma a guiar-nos para aprofundar os modos de intervir no
mundo, hoje, a partir da arquitetura.
Nesse sentido, o que há em comum nas três categorias de análise propostas
é o conceito de envolvimento, que vem de forma a entendermos que não
é um processo unilateral e unidirecional, proposto pelo arquiteto, mas sim
multidimensional, que se estabelece no mergulho em diferentes cosmogonias
e em ação dialógica.
105
parte ii: forças moventes
paisagem
106
ideias-força: dimensões do envolvimento
II.I.I
paisagem
O pensamento da paisagem é um pensamento do possível, ele é a busca dos
possíveis contidos no real. Projetar é imaginar o real. (...) Projetar a paisagem seria,
ao mesmo tempo, pô-la em imagem ou representá-la (projeção) e imaginar o que
poderia vir a ser (projetação) (...) Testemunhar, de um lado, e modificar, do outro
(Besse, 2010, p. 60).
As reflexões do geógrafo Jean Marc Besse, em livro traduzido no ano de 2010
no Brasil, foram elaboradas no fim dos anos 1990 e embora se mostrem atentam
aos paradoxos que impõe a reflexão sobre a paisagem, hesitam e muitas vezes
não levam em conta, como se verá nas páginas seguintes, outras perspectivas
epistemológicas que vêm sendo discutidas internacional (Tsing, 2015; Ingold,
1993) ou nacionalmente (Bispo, 2023), e que sustentam a ideia relacional e coimplicada dos corpos na instauração de qualquer ideia de paisagem.
Contudo, embora essa reflexão sobre o modo interativo e fusional de propostas
de mundo tenha crescido, sobretudo a partir da pandemia de Covid-19 (2020),
permanecem certas questões que incitam as formulações de Besse em relação à
arquitetura, isto é: como insistir e melhorar alguma noção de paisagem envolvida
nos projetos de arquitetura? Como a arquitetura pode reconhecer as camadas
que compõem a paisagem, e ser o gesto, entre tantos, que também agencia o
diálogo com corpos, partículas, ondas, moléculas que humanos e não humanos
e todo presente e vivente mobiliza? Como insistir que ela seja instrumento de
revelação e incorporação de marcas, memórias, hábitos, elementos e dinâmicas?
Nesse sentido, é importante reconhecer o papel das comunidades que habitam
alguns territórios no Brasil e ao redor do mundo no cuidado e salvaguarda de
paisagens culturais, e inclusive naturais. Muitas povoações indígenas – pessoas
ou comunidades originárias de um determinado lugar, que ali vive, a ele está
ligada por um laço imanente; que se sente uma “propriedade” da terra antes
que proprietária de uma paisagem ou lugar (Viveiros de Castro, 2023). Seu papel
Pág 105: Figura 129: Modo de habitar e paisagem ribeirinha. Fonte: Saúde e Alegria, 2018. Figura
130: Passeio de barco no Rio Una. Fonte: Emmanuele Araújo, 2024. Figura 131: Capoeira no Espaço
Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Victor Paris, 2022.
parte ii: forças moventes
107
se manifesta nas ações espaciais praticadas cotidianamente, na interação e no
cultivo da biodiversidade na qual estamos imersos, produzindo camadas de vida
e memória. Esta vem sendo uma discussão presente no campo da arquitetura e
urbanismo, como aponta Paulo Tavares, curador do Pavilhão Brasileiro Terra, na
Bienal de Arquitetura de Veneza:
Observamos que os territórios sob custódia de populações indígenas e quilombolas
são os territórios onde a proteção da terra enquanto casa de toda a vida comum
acontece de forma mais eficiente, comprovado por diversas pesquisas nacionais e
internacionais. Mas é importante ressaltar que essa proteção é feita de uma maneira
ativa que implica produção espacial, não no sentido de que tudo ali é intocável.
Pelo contrário, uma proteção que acontece na forma de cultivo, de desenho da
paisagem (Tavares, 2023).
A interação dos corpos, humanos e não humanos, desenha e cultiva paisagens,
participando do fazimento do mundo. O desenho da paisagem perfaz,
fundamentalmente, um envolvimento com os elementos que a compõem, e pode
ser entendida como uma dança que conecta fluxos e fixos, criando outros sentidos
para além do pensado inicialmente. Como o geógrafo Jean Marc Besse coloca:
Um dos motivos essenciais do que se convencionou chamar de ‘projeto de
paisagem’ talvez esteja contido nessa noção de pensamento latente, que ficaria
atrás das formas visíveis, nessa espécie de onda que se desenvolve ao longo de
toda a extensão, conferindo-lhe por assim dizer, um sentido. O projeto seria a
cartografia dessa onda invisivel, desse ‘centro virtual’ dos movimentos do espaço.
Essa dança do espaço que é preciso captar, ao desenhá-la (Besse, 2014, p. 63).
Ao mesmo tempo que captar os movimentos do espaço, parece importante
que o desenho mantenha uma abertura para o porvir: espaço vazio, para
transformação e inscrição de novas camadas na paisagem pela ação dos corpos
e do tempo. Projetar sem fim o estar-em-comum, como aponta Besse: “projetar
é, portanto, primeiramente querer esse inacabamento, e a responsabilidade
do projetista, quando se trata da paisagem, talvez resida nisso: é o portador
do inacabamento, isto é, das significações em reserva, (...) dos futuros” (Besse,
2014, p. 66).
As experiências apresentadas demonstram dimensões de relação com a
paisagem que são reforçadas a partir da colaboração das comunidades locais
com os arquitetos. A arquitetura como linguagem propõe abrir espaço para
108
arquitetura como envolvimento
a composição com o lugar, como comenta Gouvêa sobre o projeto que vem
sendo desenhado para o Zabelê, em Una:
A paisagem vai se expressar nos fechamentos, nas fibras locais, nos cipós nos
trançados. Os tupinambás fazem artesanato, objetos, isso deve ser transformado
em arquitetura. Aí vai começar a ter uma ligação mais forte, através dos materiais
da Restinga. Na questão cultural, estamos tendo uma aproximação, pois a vida
acontece fora, vivemos nas varandas, nos espaços entre. E queremos trazer
este espaço para o projeto de arquitetura. Nos mutirões, quando empregamos
os hábitos culturais. Olhando do ponto de vista das pessoas, e da história desse
território, de uma retomada muito recente. A gente traz o nosso traço que passa a
fazer parte dessa paisagem. (Gouvêa, 2023).
Figuras 132 e 133: Trançados presentes na Aldeia
Zabelê. Fonte: Produção própria, 2019.
parte ii: forças moventes
109
O trabalho dos arquitetos envolvidos nas situações de diálogo e projeto citadas
chama atenção, tal qual já mostrara Iazana Guizzo em seu trabalho sobre o
conceito de participação, por sua vez pensado por Lina Bo Bardi (Guizzo, 2019),
para a necessidade dos próprios, os arquitetos, de se despirem de crenças
e certezas e se afetarem pelo que veem como paisagem e que irão projetar
para o futuro Como diria Nayane Alves, colaboradora do projeto Zabelê, “se
lambuzar pelo lugar”. Ela afirma: “É desafiador para as nossas convicções. (...)
A relação com aquele lugar se dá muito por conta da nossa dança com essa
história: algumas vezes é de se acomodar e outras de se colocar e recompor
com o que está em volta: de forma muito mais enraizada, lambuzada por aquele
lugar” (Alves, 2023).
Evidentemente, o ato de se lambuzar em cada cosmogonia, em cada lugar,
em cada paisagem, produz experiências completamente distintas não só pelas
memórias e condensações de histórias vividas. O mergulho no mangue e na
Restinga do sul da Bahia é uma experiência que produz afetos distintos do
mergulho em São Paulo, nas bordas dos resquícios de Mata Atlântica, margeados
por morros de casas de tijolo baiano.
Mais uma vez, que seja claro que essas comunidades têm culturas. Afinal, temse que decidir se culturas a partir de um sentido mais amplo, uma instância
de reflexão e experiências de recriação da vida. Portanto, a Cantareira está
prenhe de cuidados e de culturas e de uma avaliação do que deve ou não
ser salvaguardado. A responsabilidade dos arquitetos que se envolvem com
experiências como essas é reconhecer que estão compondo com uma paisagem
natural e cultural que já estava lá antes de chegarem, como advoga Lotufo, e
que, portanto, devem integrá-la e expandi-la ao desenhar, prever espaço para
que ela se manifeste no projeto no tempo, a partir dos corpos que ali habitam.
Isso significa revelar, através do seu traço, traços que compõem, qualificam,
definem essa paisagem. Como um palimpsesto, onde os traços vão se afetando,
compondo um todo:
O espaço não é uma página em branco, assemelhando-se mais a um palimpsesto. O
solo não é uma simples supeficie plana que se oferece à ação, mas confronta a ação a
um conjunto mais ou menos denso de marcas, de pegadas, de dobras e de resistências
que a ação deve levar em conta. Os locais têm memória (Besse, 2014, p. 58).
Como diz Noêmia Mendonça, liderança que luta pelo cuidado das beiras do rio
arquitetura como envolvimento
110
Bananal, em depoimento em 2023, sobre o entendimento das camadas, forças,
hábitos, memórias que marcam um espaço:
Até então, a gente fazia (essa reflexão) mas não tinha um entendimento. O que
é a paisagem de um lugar? A gente via a paisagem como plantas. A gente vem
percebendo que a paisagem tá no entorno, na relação toda. A história, a forma
como vai construindo as coisas, a memória, a forma de se alimentar, de se cuidar,
se vestir, entender o outro... Toda uma relação aí que precisamos entender.
Qual o olhar que você tem sobre a paisagem? No trabalho com as crianças e os
adultos precisamos falar mais para ampliar esse entendimento desse olhar sobre
a paisagem. São muitas coisas, umas mais tranquilas e outras mais desafiadoras.
O espaço cultural vem se preparando para fazer o entendimento sobre esse
contexto. E a gente vem procurando fazer e manter isso vivo, falar sobre o assunto,
buscar pessoas para contribuir para essa discussão, promover o entendimento
sobre o assunto. Porque quando a gente entender, a gente consegue promover as
mudanças (Mendonça, 2023).
Figura 134: Rio Bananal-Canivete no entorno do Espaço Cultural. Fonte: Produção Própria, 2017.
ideias-força: dimensões do envolvimento
111
Aprender a ler a paisagem oferece preciosas ferramentas para poder
transformá-la. Reconhecer a floresta que circunda, a ação humana que insiste
em desmatá-la, assoreando os rios e nascentes; derrubando árvores, ninhos;
disparando desastres ambientais e impactando os futuros moradores desses
morros pelados. Nesse sentido, em 1980, Paulo Freire em suas experiências
de aprendizagem, cunhou a ideia de conscientização como a conquista de um
olhar crítico sobre o que se considera “realidade”, e um entendimento do papel
de cada um na sua transformação.
Maria Odila, de Anã, reitera a importância da conscientização a partir da
compreensão de uma última dimensão da paisagem a ser trabalhada: a paisagem
interna, as forças que moldam a forma como vemos o mundo. Na hora atual
precisamos cada vez mais de pedagogias de envolvimento com a paisagem.
Você conhece meu quintal, meu quintal não é capinado. Me disseram que eu tinha
que capinar, pra ficar mais limpo. Tem aqueles que parece que incomoda a nossa
paisagem. Eu digo, ela tá dentro de nós: se ela tá bonita verde dentro da gente,
a gente consegue preservar ela lá fora. Quando tá tudo aputrefado, é quando a
gente sai cortando e queimando tudo, a gente precisa desenvolver a paisagem, não
só a de fora, mas a de dentro também. O que tá dentro eu consigo expressar pra
você. A cultura, a paisagem, a vida devia ser bem mais trabalhada. Não sei como
você vai fazer, mas a conscientização precisa caminhar mais rápido. Ela tá gravada
no povo krenak, yanomami, os povos da terra, que vivem dela e pra ela. Gostaria
que a gente tivesse um pouquinho mais de consciência para poder abraçar esse
processo (Odila, 2023).
112
ideias-força: dimensões do envolvimento
corpos
113
ideias-força: dimensões do envolvimento
II.I.II
corpos
A vida não precisa de materialidade, mas ela se expressa quando cria corpo
(Krenak, 2024).
O mundo é objetivo, então enquanto resiste e obstrui; o continuar é conseguir
alcançar uma ruptura. Na vida, porém, eu estou com meu corpo, não contra ele.
O corpo não se coloca no caminho - ou pelo menos não com frequência - senão
que é caminho, o mesmo movimento, execução, ou passagem da minha própria
existência no mundo. Neste sentido, o corpo não é um objeto nem sou eu um
sujeito. O corpo é uma coisa, como claramente eu também sou. E a coisa perto das
coisas, se quiser, é que cada uma é um indo [going on] - ou melhor, um lugar em
que vários indo se relacionam (Ingold, 2012, p. 36, tradução nossa).12
A vida é um organismo. A Terra é uma materialidade dessa vida. Nosso corpo,
assim como o de uma formiga ou de uma borboleta, é a materialidade da vida.
A vida passa na gente e vai para outro lugar. Ela não fica parada em lugar algum.
É como se nós fôssemos corpos que já estão perdendo a sensível comunicação
com outros corpos, e temos muito artifício para despistar o nosso pertencimento
ao organismo de gaia - como a gente vai regenerar se a gente não troca com ela.
Culturalmente fomos treinados para isso. O desafio é furar essa pele dura e fazer o
contato com o organismo sensível de gaia. A gente passa.E ela faz contato com a
gente, solta aroma, o extrato dela (Krenak, 2020).
Os arquitetos pouco reconhecem, valorizam ou se envolvem com os corpos
com os quais interagem e constroem. Reconhecer que os corpos participam da
arquitetura, e para além disso, inclusive a constroem como arquitetura, é o primeiro
passo para reconhecer e fazer arquitetura como dispositivo de envolvimento.
“El mundo es objetivo entonces mientras resiste u obstruye; el proceder es lograr una ruptura.
En la vida, no obstante, yo estoy con mi cuerpo, no contra él. El cuerpo no se pone en el camino
- o al menos no a menudo - sino que es el camino, el mismo movimiento, ejecución, o pasaje
de mi propia existencia en el mundo. En este sentido, el cuerpo no es un objeto ni yo soy un
sujeto. El cuerpo es una cosa, como ciertamente yo también lo soy. Y la cosa acerca de las cosas,
si se quiere, es que cada una es un «andando» [going on] - o mejor, un lugar en el que varios
andando se entrelazan”.
12
arquitetura como envolvimento
114
Yakuy Tupinambá, que vive em Una, em depoimento em 2023 situa a
argumentação de Krenak e Ingold:
Eu conheci minha vó, e meu avô faleceu aqui. vim aqui a primeira vez na década de
90, mas meu povo não tinha se levantado ainda. quando o útero surge na minha
vida, a relação com isso aqui é outra. quando senti que aqui seria o espaço ideal
para essa interação com o todo. quando você entende que está amparada por um
nicho onde tem manguezais, mata de restinga, berçário de crustáceo, berçário de
robalo, que tartarugas põem ovos aqui na praia, próximo à reserva biológica do
mico leão dourado, com espécies ameaçadas quanto vegetais ou animais, você
vai entendendo a relação, que pode trazer algo que possa despertar nos outros:
a importância de aprender e entender como lidar com isso aqui. a importância de
preservar a vida. vida do todo (Tupinambá, 2023).
Figuras 135 e 136: Joza Tupinambá no
manguezal durante a Vivência Tupinambá
com Floresta Cidade. Fonte: Julia Auler,
2024
parte ii: forças moventes
115
A arquitetura pode reconhecer as forças e coexistir com os corpos que habitam
cada lugar, além de oferecer condições de possibilidade de interações (humana,
não humana, mais que humana) através da história e da cultura. Como menciona
Luis Octavio Faria, um dos arquitetos do Núcleo de Arquitetura vinculado ao
projeto Zabelê, em Una:
A arquitetura como o berço destes corpos: corpos humanos, não humanos e mais
que humanos. A arquitetura como abrigo, não somente dos seres humanos, mas
que responde e coexiste com os corpos que ali estão: se levanta do chão para
deixar a maré (o corpo d’água) subir, os caranguejos transitarem e construírem sua
morada, se abre para o vento atravessar, se sustenta no mossunguê, madeira local,
matéria irmã dos tupinambá na mata de restinga (Faria e Silva, 2023).
Sobre o que nós temos na nossa cultura que pode dar pistas para o Bem Viver,
para estar nesse mundo de uma maneira criativa, corpo vivo em uma Terra viva,
talvez seja observar ao seu redor, muito provavelmente tem uma floresta, uma
montanha, então tem tanta vida gritando ao seu redor. Escuta essa vida, dialoga
com ela, estabelece relação com ela. (...) São outras percepções que importam.
Nós conversamos com rios e montanhas (Krenak, 2020, p. 26).
A falta de envolvimento e relação com os outros corpos, como o bicho-depé
ou a onça, muitas vezes vem de um imaginário habitado pelo medo; por uma
necessidade de resguardo, proteção, esconderijo e abrigo daquilo que está
fora. Silva continua a exemplificar algumas dessas dificuldades dos corpos que
obstruem, como menciona Ingold, essas interações:
Vivi situações curiosas, como o bicho do pé, não saber tirar. de repente entrar no
mangue e de repente você se machucar. A onça que povoa o lugar no imaginário,
todo mundo morre de medo, tem que levar um bastão para se proteger. e os
bichos que picam. Iazana Guizzo, em uma banca, falou disso, da leitura de como
ela sentia o corpo dela naquela situação, como aquilo acarinhava ou machucava
o corpo, nesse espectro de gradação. é doce na inteireza, mas tem que lidar com
esses afetos. sinto que ainda tenho que romper o asfalto - mas nasci dele (Faria e
Silva, 2023).
O medo, que vem do des-envolvimento, da cidade, do asfalto, é sintoma de
um desequilíbrio, de uma separação. É possível se envolver novamente a partir
de um processo pedagógico, de estabelecimento de vínculos e relação com
arquitetura como envolvimento
Figuras 137 a 142: Corpos não humanos da Aldeia Zabelê: as cobras, os caranguejos, o rio, a palha.
Fonte: Emmanuele Araújo, 2024
116
parte ii: forças moventes
117
os outros corpos que extrapolem a necessidade de dominação e controle
para formas mais harmoniosas, mais dialógicas, pautadas por uma escuta e
curiosidade profunda.
Noêmia Mendonça, educadora popular da periferia de São Paulo, traz um olhar
de uma pedagogia de envolvimento com o mundo. Ela tem trabalhado com os
moradores da segunda maior favela da cidade e ensina:
Eu diria que hoje a gente já trabalhou melhor esse olhar para se relacionar melhor
com esses corpos: plantas, animais, água, pessoas. Porque temos que estar bem
pra conseguir ver o outro. São relações que se juntam, uma coisa está relacionada
com a outra. Não estão no mundo isoladas. O bem viver está relacionado com
todas as vidas e corpos: a folha, a minhoca, a formiga… Precisamos de outras
formas de lidar com eles que não destruí-los (Mendonça, 2023).
Maria Odila, da comunidade ribeirinha do Arapiuns no Pará, lembra, no entanto,
que assim como os corpos da cidade tem que romper com o concreto, também
os corpos que habitam a floresta precisam resgatar a relação de reciprocidade
com os corpos não humanos:
Lá na comunidade sou tida como maluca. eu converso com os pássaros, com o rio,
com tudo. eu sei que eles me escutam, que eles têm vida. eu não ouço a resposta
porque não tenho merecimento para isso. (…) eu costumo dizer que as árvores são
minhas melhores amigas. elas me ouvem e não dizem se estou certa ou estou errada.
no Arapiuns a gente continua, nossos banhos de tempo de criança na infância, que
a mãe buscava dentro d’água brava que a gente tava na água: a nossa conexão com
o rio era bem maior. Hoje não, tem chuveiro lá em casa. O corpo da água, o corpo
da terra continuam. Precisavamos dela pra plantar, pra nossa necessidade. Sempre
senti, que árvore, rio, igarapé, animal, somos todos um só. Eu sinto muitas coisas, e
tem coisas que eu não consigo falar. Quando as pessoas conseguem sair, ir pra uma
cidade grande, elas negam que elas são do interior. Eu nunca esqueci o meu interior,
do rio arapiuns. Não consegui viver bem e feliz como eu vivo nas margens dele. Nós
somos a floresta, e ela somos nós tambem (Odila, 2023).
arquitetura como envolvimento
Figuras 143 e 144: Construções do modo de habitar em Anã. Fonte: Produção própria, 2018.
118
parte ii: forças moventes
119
Maria resgata um sentimento de pertencimento ao lugar, junto aos outros
corpos. E reitera que com a chegada de uma arquitetura do desenvolvimento
– representada aqui pelo conforto do chuveiro elétrico – ela chega como um
apartamento das relações com outros corpos – como na relação com o corpo
do rio – e com a quebra de rituais pautados por relações de encantamento
com o mundo e os corpos que o co-habitam junto a nós, humanos. No caso
dela, senhora de maior idade, que viu os avanços tecnológicos chegarem no
Arapiuns, assim como pôde viver “fora” da floresta e “dentro” da cidade, ela
ainda manteve as memórias afetivas do corpo livre, perdido no tempo, com
todos os sentidos mergulhados no encontro com o rio.
Retoma-se neste trabalho a ideia de envolvimento a partir da noção de
experiência do pedagogo e filósofo Jorge Larossa:
Requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos
que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar
mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir
mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo,
suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a
delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a
lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência
e dar-se tempo e espaço (Larossa, 2002, p. 24).
A experiência do envolvimento com outros corpos exige, portanto, o aprendizado
de um gesto de pausa e escuta profunda: afetar-se, colocar-se em movimento,
para então, através da relação, conhecer. Como diz Krenak: escutar, enxergar,
sentir o mundo, tocar o mundo, é um gesto (Krenak, 2022).
A produção arquitetônica, como as práticas que se sabem espaciais, são,
portanto, dispositivos de envolvimento com os corpos que habitam ao seu
redor, promovendo assim outro paradigma da participação, que envolve corpos
humanos e não humanos: “quais habitantes participam do processo e de que
modo? Em qual cosmovisão se dá a participação? Como um rio, as árvores, os
animais participam de um projeto?” (Guizzo, 2019, p. 177).
O que Guizzo coloca como cosmovisão, Yakuy, a partir de sua vivência Tupinambá,
vai chamar de cosmopercepção, na qual não há a predominância de um sentido,
arquitetura como envolvimento
120
no caso da visão, na interação com os corpos do mundo. Este processo se dá a
partir de uma imersão e experiência sensível, portanto, estética.
Interessante pensar que não somente os corpos das comunidades que habitam
o lugar, humanas e não humanas, participam de um projeto, mas também o(a)
arquiteto(a), que coloca seu corpo disponível para viver o lugar para o qual irá
projetar. O arquiteto que vivencia o lugar e se afeta por ele, como relata Abuno
sobre a aproximação com o Espaço Cultural Jardim Damasceno, em São Paulo:
A conexão se deu mais nas atividades, fui várias vezes lá. Uma coisa que me
aproximou muito foi o samba, os bares, o almoço. Tem coisas que têm mais força,
cada um tem sua linguagem. Pra mim, é comida, música e bebida. Uma seara
infinita a das técnicas de aproximação (Abuno, 2023).
Houve um envolvimento maior a partir da relação com os técnicos e os arquitetos.
Os técnicos que vêm com esse olhar de comunidade, tem uma visão diferente. Não
trabalha só uma linguagem, é como se viesse ao encontro com nosso sonho, nossos
desejos, nossa expectativa. Uma coisa que se junta. Essa relação vem crescendo
e tem feito a diferença. O resultado das ações, as melhorias no espaço. Visão e
leitura diferenciada de aproximação. Quando a sua proposta se conecta com o
desejo do outro, o resultado sai diferente. As coisas vivas que estão aqui. Às vezes
fico com vergonha de como está o espaço. Mas as pessoas que vêm, elas veem
vida. Como você mesmo num local pobre consegue construir vida, beleza, e passar
uma mensagem pro outro, de esperança. O que move a gente é esperança, é o
sonho. Não ver isso, o problema, ver a saída. A gente tava muito internalizado no
problema (Mendonça, 2023).
A cosmopercepção pode ser ferramenta de projeto auxiliando no desenho, mas
também é o que define a construção de obras arquitetônicas. Ela é o que faz
uma construção ser arquitetura: são as “visões de mundo”, as cosmovisões,
cosmopercepções, as percepções estéticas, que definem a arquitetura. A
materialidade da produção arquitetônica pode então retomar, um fazer sensível;
que por exemplo pode ser manual, implicando relação íntima com este outro
corpo - que não é matéria prima mas matéria irmã, como apontaria Ailton Krenak.
Há materiais, como o bambu, que apresentam vínculos muito mais próximos de
parentesco com o corpo humano do que o concreto, como lembra Noêmia:
É nesse processo que a gente vem descobrindo essas coisas, um eterno aprendizado.
parte ii: forças moventes
121
O que eu enxergava na década de 80, vejo diferente hoje. Essa proposta da relação
com a comunidade traz outras perspectivas. Não dá pra construir de alvenaria. A
equipe de arquitetura traz uma perspectiva de melhorar o lugar onde está sem
grandes obras. Cimento tijolo ferro. Foi trazida uma perspectiva com bambu, que
não estava no nosso horizonte, e fica tão bonito quanto. Como mostrar saída,
perspectiva, alternativa, outros instrumentos que tinham na própria comunidade;
que eram caminhos de construção (Mendonça, 2023).
Durante as vivências de imersão no Jardim Damasceno13, promoveu-se uma série
de atividades que foram criando ferramentas de aproximação e envolvimento
com os corpos e a paisagem daquele território. Como lembra Lotufo:
Muita coisa que aconteceu e que poderia acontecer. escadinha de bambu, como
aquilo fez uma interferência, um acesso mais fácil pro campo, uma coisa que foi
feita e que interferiu na dinâmica do corpo naquele lugar. na época da ação do
programa Escola Sem Muros, foram feitas muitas atividades com o corpo. Pode
movimentar, desenhar, fazer roda, todo dia de manhã fazia uma atividade. Pode
ocupar esse espaço e descobrir como ele pode ser bem aproveitado e celebrado.
Lembro das crianças brincando, os cortejos, o corpo chegando com delicadeza,
com bandeira colorida, brinquedo de pirâmide de bambu… Um corpo externo
pedindo licença pra participar daquele lugar (Lotufo, 2023).
A criação de uma habilidade, de um saber fazer, leva tempo, requer intimidade,
no embate corpo a corpo, reconhecendo onde há resistências, onde flui, quais
os modos de se trabalhar com. No caso do Jardim Damasceno, a escolha pelo
bambu foi pautada por ser um material maleável, leve, generoso por permitir um
manuseio por maior variedade de pessoas, idades, gêneros... Foi uma escolha
oportuna, por ser um corpo presente nas margens da cidade – na época, já
havia produtores e fornecedores de bambu nas margens da cidade, que eram
pontos de um sistema de produção mais próximo do artesanato. Dessa forma,
fortaleceu-se não só o uso deste material mas também de uma rede de pessoas
que trabalham com um cuidado e responsabilidade maior com o ambiente.
A técnica ou habilidade mobilizada na ocasião foi mais simples, com ângulos
retos, encaixes em boca de peixe. Existiam pessoas próximas que sabiam fazer
Vivência do Escola Sem Muros, realizadas por Tomaz Lotufo, Cassio Abuno, Andressa
Capriglione, Ranyely Araújo, Flavia Burcatovsky, Ana Beatriz Giovani, Gabriela Franco, Jair
Vieira, Flavia Prado, Alexandre Monteiro, Caio Yashima e Pedro Burgos, de julho de 2017 a
março 2019. Saiba mais aqui: https://www.facebook.com/semmurosescola/photos_albums.
13
122
arquitetura como envolvimento
Figuras 145 a 147:
Vivências Escola Sem
Muros no Espaço Cultural
Jardim Damasceno.
Fonte: Raffaela Arcuschin,
2017.
Figura 148: Cortejo do
Escola Sem Muros no
Espaço Cultural Jardim
Damasceno. Fonte: Pepe
Guimarães, 2017.
parte ii: forças moventes
123
e podiam ensinar, dentro do tempo da vivência. Abuno, em sua entrevista em
2023, resgata o contexto e o desenvolvimento de habilidades e conhecimento
da época, dizendo como poderiam ter um impacto na técnica escolhida:
Hoje se a gente fizesse o mesmo trabalho lá, seria outra coisa. Nossa sociedade, a
comunidade de arquitetos, construtores, engenheiros evoluiu muito nesses últimos
anos. Na época, esse era o quadro e as tintas que tínhamos para pintar... (Abuno, 2023).
Conhecer o corpo do outro através de uma habilidade, um saber fazer
encorpado através da relação com o tato, a visão, o olfato, a audição, o paladar,
todas as formas de percepção, e da cultura, como instância guardiã da tradição
sob a forma de razão e sensibilidade. A cultura, os hábitos, os saberes-fazeres
se atualizam e, portanto, se aprimoram no tempo, passando de geração em
geração, e sendo sempre atualizados in situ, em experiência.
Pra nós, é maloca mesmo, com
chapéu de palha.
Aqui a gente dorme tranquilo,
que entra o ar, mas não entra os
insetos. e esse é o telhado nosso,
natural.
Na hospedaria, nós fazemos
questão de usar ela porque ela não
esquenta, ela é neutra.
No inverno, ela tá temperatura
ambiente (24 graus) e no verão
também. As telhas que vem pra cá
fazem da nossa casa uma estufa,
e isso daqui, não.
Quando eu era jovem e íamos fazer
isso, aí todo mundo ia cantando,
brincando. eu lembro muito, na
abertura de palha, a gente tava
abrindo, e a gente descobria quem
tava apaixonada.
Abria seus corações e a voz
(Odila, 2023).
Figuras 149 a 151:
Telhado de chapéu de
palha. Fonte: Produção
própria, 2018.
arquitetura como envolvimento
124
Como defende Ingold desde 2012 sobre o conhecimento que se perfaz na
habilidade:
As teorias convencionais de conhecimento tratam das habilidades como a aplicação
de conhecimento jáa adquirido. Eu gostaria de colocar isso de pernas para o ar e
dizer que o conhecimento depende da habilidade precedente. Na minha definição,
a habilidade tem raiz na coordenação da percepção com a ação. Todo corpo que
conta com um sistema perceptivo, que se encontra continuamente monitorando
sua ação com relação a tal percepção, é necessariamente um corpo que aporta
uma trajetória habilidosa. Como o topo dessa definição podemos dizer que as
habilidades de nenhuma maneira são exclusiva dos humanos. Pelo contrário, são
comuns aos animais de qualquer espécie. (...) Penso que a alternativa é propor
que o que se transmite de geração a geração não são as representações, mas
sim as habilidades. O que acontece é que cada geração instaura as condições e
os contextos nos quais a seguinte geração pode descobrir por si mesma como
são realizadas certas atividades. (...) A minha proposta é que as habilidades (...)
são passadas através de um processo de redescobrimento guiado, no qual cada
geração descobre as habilidades por elas mesmas com a guiança de praticantes
mais experientes, que podem estabelecer condições nas quais seja possível para o
mais novo crescer com elas. Novamente, o conhecimento cresce em você através
do movimento. O que é crucial é a consciencia do corpo do seu próprio movimento.
(...) Conhecer e mover são inseparáveis. O movimento é a forma como o corpo
conhece (Ingold, 2012, p 73-84, tradução nossa).14
“Las teorías convencionales del conocimiento tratan las habilidades como la aplicación de conocimiento ya adquirido. Me gustaría ponerlo de patas para arriba y decir que el conocimiento
depende de la habilidad precedente. En mi definición, la habilidad radica en la coordinación
de percepción y acción. Todo ser que cuenta con un sistema perceptual, que se encuentra
continuamente monitoreando su acción con relación a tal percepción, es necesariamente un
ser que aporta una trayectoria habilidosa. Como corolario de esta definición tenemos que las
habilidades de ninguna manera son exclusivas de los humanos. Por lo contrario, son comunes
a los animales de cualquier clase. (...) La alternativa, pienso, es proponer que lo que se trasmite
de generación en generación no son representaciones sino habilidades. Lo que sucede es que
cada generación instaura las condiciones y los contextos en los cuales la siguiente generación
puede descubrir por sí misma cómo son realizadas ciertas actividades. (...) Mi propuesta es que
las habilidades no son estrictamente trasmitidas como representaciones de generación en generación, sino que son pasadas a través de un proceso de redescubrimiento guiado en el cual
cada generación descubre las habilidades por ellos mismos bajo la guía de practicantes más
experientes, quienes pueden establecer las condiciones en las cuales es posible para el novicio
crecer en ellas. Nuevamente, el conocimiento crece en ti a través del movimiento. Lo que es
crucial es la conciencia del cuerpo de su propio movimiento. (...) Conocer y moverse son inseparables. Moverse es la forma en que el cuerpo conoce” (Ingold, 2012, p. 73-84).
14
parte ii: forças moventes
Figuras 152 e 153: Modos
de construir durante a Vivência
Tupinambá com Floresta Cidade.
Fonte: Emmanuele Araújo, 2024
125
126
arquitetura como envolvimento
tempo
127
ideias-força: dimensões do envolvimento
II.I.III
tempo
Fico pensando na minha presença no corpo. O corpo no lugar, juntos trabalhando.
Meu corpo naquele lugar se confunde com o tempo. O tempo e o corpo naquele
lugar, em transformação através de um diálogo contínuo (Faria e Silva, 2023).
Os profissionais formados em arquitetura sob o regime funcionalista estrito
senso, hoje, ao fazerem projetos pouco consideram o tempo, nas suas mais
diversas dimensões. Envolver-se com o tempo significa reconhecer a vida que
antecede e que perdura após a realização do projeto de arquitetura propriamente
dito, mas é também se envolver com o que é ditado pelos ciclos – dia e noite,
as marés cheia e vasante, as luas, as estações do ano… O tempo é dança, é
movimento, atração e repulsão.
Quando estou lá, o tempo é muito generoso, parece uma dança. Quando estou lá,
parece que estou dançando com aquele lugar: entro na água, paro, ando, as coisas
estão me levando. Você está cansado aí tem um lugar que fala deita aqui, ai você
sobe e vê o pôr do sol. Era ali que você tinha que estar. É uma relaçao poética, para
além da cartesiana (Faria e Silva, 2023).
Quem dita nosso corpo aqui é o tempo da natureza, respeitar os processos
da natureza. a maré que sobe e desce, a lua que traz mosquito, o período dos
caranguejos que saem pra passear e se reproduzir, a chuva que vai e impede os
processos planejados anteriormente - chove com frequência e muito. Estamos
sempre lidando com essa força: aqui tudo corre em função dos processos da
natureza, precisa parar pra aceitar e se adaptar. não é como na cidade que a gente
impõe o nosso tempo. (...) Comecei a me dar conta, de que se eu não entendesse
que o tempo é outro, isso iria machucar meu corpo (Alves, 2023).
O tempo influencia os corpos: a colheita do bambu deve ser em determinada
lua, para ele ter menos água, no caso a seiva, e portanto atrair menos bichos que
querem comê-lo. Já a terra, para paredes de pau a pique e bioconstrução, a terra
precisa ser retirada do solo também em lua nova, de forma a ter menos água e
não perder água depois, ao secar no sol e criar rachaduras. As relações entre
os corpos e os ciclos temporais são fundamentais para entender como eles irão
se comportar em relação às forças do tempo: como o corpo (a matéria irmã) se
arquitetura como envolvimento
128
comporta na chuva, sob o sol, na lua cheia ou nova, no verão ou no inverno.
Portanto, não é o tempo cronometrado milimetricamente, com um ritmo
pré-estabelecido, planejado anteriormente, afastado da experiência e do
acontecimento. É o tempo cujo ritmo se estabelece no encontro, no afeto, no
fazer, desacelerado em comparação ao tempo do status quo, do relógio central,
“universal”. É o tempo que tem vazio.
O tempo infinito, produtivista, com pretensões funcionalistas, de maior
aproveitamento e eficiência, que é permanentemente preenchido, é um tempo
que não corresponde à realidade da vida no planeta. Até o solo da floresta,
para produzir, precisa de descanso, pausa, para se regenerar.
O tempo vai mudando as coisas, nós temos muita participação nesse tempo ou
não? Tem muita coisa que nós mudamos: como o tempo era antes, como é agora.
Nós contribuimos para que ele esteja tão acelerado. a gente dormiu acordou e já
passou. será que é o tempo ou somos nós? Vou pensar mais ainda, no tempo, em
nós e na vida no planeta (Odila, 2023).
Existe também outra dimensão que é o tempo histórico, que se faz nos encontros dos
corpos no espaço, construindo assim memória compartilhada, um corpo coletivo.
O que acontece lá desde o tempo que eu conheço, teve deslizamento, que
construíram galpão, ao longo do tempo e da história foi formando cultura. essas
coisas não se apagam, tá na cultura, em cada um que passou por ali, a coisa foi
ganhando corpo. É um tempo que não se interrompe, ele é contínuo. tem coisas que
entram pra história e que não entram, as coisas que entram tem tempo contínuo, por
causa de todos esses valores que estamos conversando. histórias estao vivas em nós.
Cada um de nós num lugar. cada um do seu jeito levou isso na bagagem e segue se
manifestando, lá dentro e interferindo em outros territórios (Lotufo, 2023).
A continuidade da cultura se dá pela resiliência e persistência de atores sociais
que continuam vivendo e contando suas memórias, apesar das adversidades e
tentativas de apagamentos no tempo. Aqui trago justamente Noêmia:
A cada momento do espaço nesses 30 anos apareceram diferentes pessoas que
querem construir e contribuir na história desse lugar. Isso manteve o Espaço vivo,
nos deu a certeza de que não estávamos sozinhos, dá aquele gás. Mesmo que
não saia da forma como a gente pensa. A gente não desanimou, permaneceu
buscando outras saídas (Mendonça, 2023).
129
parte ii: forças moventes
II.II
encontros e nebulosas: campo de ideias moventes
O ensino no campo da arquitetura opera na maioria das vezes por meio de uma
pedagogia de abstração espacial – o completo oposto à noção de envolvimento.
Fernando Luiz Lara nos convida a compreender o que é ensinado nas escolas
de arquitetura, demonstrando a pedagogia que sustenta o des-envolvimento:
Uma vez desvinculados de quaisquer relações espaciais anteriores, nossa pedagogia
de atelier os ensina a dominar a abstração, quase sempre descartando qualquer
contexto ou conteúdo do lugar para manipular apenas a geometria. Mapas não
registram a vida da comunidade. Topografias não contam a história da terra. Planos
e seções são narrativas arbitrárias que impõem comportamentos às pessoas. Esse é
o poder da arquitetura como ferramenta de transformação que poderia ser usada
para imaginar um mundo melhor, mas 95% das vezes é usada para reforçar o status
quo (Lara, 2021).
A “abstração espacial” torna-se para o desenho, assim como o “trabalho
alienado” está para o canteiro, como Sérgio Ferro tematiza, a manifestação do
des-envolvimento nos processos e produções arquitetônicas:
O trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata quanto maior o número
de bens que produz. Com a valorização do mundo das coisas, aumenta em
proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz
apenas mercadorias; produz-se também a si mesmo e ao trabalhador como uma
mercadoria, e justamente na mesma proporção com que produz bens. Tal fato
implica apenas que o objeto produzido pelo trabalho, o seu produto, opõe-se
a ele como ser estranho, com um poder independente do produtor. O produto
do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, que se transformou em coisa
física, é a objetivação do trabalho. A realização do trabalho aparece na esfera da
economia política como desrealização do trabalhador, a objetivação como perda e
servidão do objeto, a apropriação como alienação (Ferro, 2006, p. 105-106).
Se fizermos um resgate histórico, perceberemos que existem diversos
pesquisadores que evidenciam a arquitetura a serviço e como produto do desenvolvimento, apontando que o saber-fazer do arquiteto nasce como ferramenta
arquitetura como envolvimento
130
do poder hegemônico, do status quo: de exploração da paisagem, dos corpos
e na maioria das vezes indissociada do tempo – antes e depois que o artefato
arquitetônico se constrói como possibilidade de espaço. A exploração da
natureza – para o consumo de matérias irmãs, a produção de materiais de alto
valor agregado, com diversos processos de perpetuação das desigualdades – é
visível nas assimetrias que condicionam as relações, na divisão do trabalho, no
desenho, no canteiro, nos resíduos produzidos, na externalização dos limites e,
ainda, na contínua geração de gases que poluem o ar que respiramos.
No entanto, esta condição não apenas tensiona o campo da arquitetura e
urbanismo. Urge também que sejam formulados outros desenhos e outras
relações com processos, modos de pensamento, produção e práticas no campo
da arquitetura e do urbanismo – como mencionado por Botas:
No ambiente acadêmico, tanto quanto no ambiente profissional, o problema parece
passar também pela definição e salvaguarda de micro-campos de especialidades,
que impedem um diálogo maior na construção de um projeto político mais
abrangente para a arquitetura e o urbanismo. É no enfrentamento desses
obstáculos, da excessiva especialização, que a aproximação com o pensamento
decolonial apresenta um ponto de entrada. Uma crítica radical envolvendo os
termos de origem da própria profissão pode indicar um salto qualitativo na reflexão,
na prática e no ensino de arquitetura de maneira integrada (Botas, 2019, p. 79).
Mobilizo a partir dessa compreensão integrada a metáfora das nebulosas de
Margareth Pereira (2018) para lembrar que, historicamente, nuvens diversas
vinculadas às áreas da bioclimática e ecologia, mas também aos campos dos
movimentos sociais, da antropologia, e por vezes se encontram, fazendo cair
verdadeiros torós que bagunçam as estruturas do status quo. Os sociólogos da
Escola de Chicago como Robert Park, os antropólogos como José Guilherme
Magnani e Heitor Frúgoli Jr., as psicólogas sociais como Virgínia Kastrup e Laura
Pozzana, dentre outros.
Na arquitetura e no urbanismo, desde os anos 1960 até os dias atuais, certos
atores e práticas espaciais e arquitetônicas compuseram nebulosas que
afirmadamente sustentaram práticas contra-hegemônicas até os dias atuais: Lina
Bo Bardi, João Filgueiras Lima, Sérgio Ferro, Flávio Império, Rodrigo Lefebvre,
Carlos Nelson Ferreira dos Santos, Acacio Gil Borsoi, Nabil Bonduki, Erminia
Maricato, Roberto Pompéia, Vitor Lotufo, Reginaldo Ronconi, João Marcos,
parte ii: forças moventes
131
Roberto Burle Marx, as(os) arquitetas(os) das assessorias técnicas como Usina e
Peabiru, e muitos outros. Arquitetas(os) brasileiras(os) que ampliam os limites
do campo, compreendendo a arquitetura em sua dimensão sócio-ecológica e
cosmopolítica, e não somente estética ou técnica. De forma a não deixar cair
o céu, mas para molhar o solo para que outras vidas possam brotar.
Apesar de se falar aqui das(os) arquitetas(os) que tensionaram e expandiram
os limites do campo disciplinar, estes vieram ao encontro com outros atores
de diversas áreas do conhecimento, como a ecologia, os movimentos sociais,
a filosofia e a antropologia – que também ampliaram os limites e estruturas
que pautam o pensar e fazer arquitetura. A arquitetura sempre teve interfaces
com outros campos do conhecimento, mas a partir dos anos 2000, a dimensão
ecológica se fortalece ainda mais, com o surgimento de diversas experiências
e grupos de arquitetos no Brasil e em outros países da América Latina, atentos
às temáticas ambientais.15 Nos estudos do meio ambiente, mestres como
Ana Primavesi, Peter Webb, Jorge Timmerman, passaram a ser conhecidos e
discutidos ao lado de Paulo Freire, Milton Santos, Carlos Nelson, Frei Betto, nos
movimentos sociais. Na antropologia e filosofia a nível nacional Ailton Krenak,
Eduardo Viveiros de Castro, Antônio Bispo dos Santos, Eduardo Neves e Davi
Kopenawa também passam a ser debatidos nacional e internacionalmente e
em conexão com cosmogonias da América Latina ou africanas analisadas por
figuras como Arturo Escobar, Alberto Acosta, Silvia Rivera Cusicanqui, Maristella
Svampa, Frantz Fanon e M’Bembe, dentre muitos outros. Somam-se ainda Edgar
Morin, Tim Ingold, Bruno Latour, Anna Tsing, Emanuele Coccia, entre outros.
Apesar de se falar aqui de atores estabelecidos e reconhecidos, é importante
lembrar que a arquitetura como prática existe há milênios, realizada no
cotidiano, no anonimato, na coletividade, na expressão cultural de diversas
cosmogonias envolvidas com o ambiente ao redor. Afinal, como apontava
William Morris: “cada indivíduo é criador do seu próprio ambiente” (Barone;
Dobry, 2004). Um exemplo claro é a forma de habitar das aldeias indígenas, que
no caso do povoamento da América do Sul, teve início por volta de 20.000 a.C.,
segundo a maioria dos pesquisadores.
Escritórios como: Estúdio Guanabara, Materia Base, Terceira Margem Arquitetura, Grupo
Fresta, Ruína, Instituto Técnico de Ensino, Pesquisa e Extensão em Agroecologia Laudenor de
Souza, Helena Ruette, Arquitectura Mixta, A Casa, Parque de Bambu, Restauro Vila Flores, Fio
Assessoria, Ikobe Bioconstrução, Sem Muros Arquitetura Integrada, Ecosapiens, Tibá Arquitetura, Low Construtores, Estúdio Flume, Arquitetura na Periferia…
15
arquitetura como envolvimento
132
A arquitetura das ocas eram habitações coletivas, mas também ocupadas
por uma diversidade de usos ao longo do tempo – ao longo dos dias e das
estações. Assim como as arquiteturas indígenas, o Brasil possui muitas outras
manifestações culturais que se traduzem em arquitetura de povos que seguem
diferentes cosmogonias e práticas, como os encantados das populações
ribeirinhas, aquelas dos cultos afro-diaspóricos, ou ainda as que de modo
híbrido constroem as periferias das metrópoles... Como aponta Gabriela de
Matos, vivemos uma cegueira para outras produções e práticas espaciais:
Acredito que, por muito tempo, nós ignoramos essas outras práticas porque elas
não seguiam o padrão que entendemos ser o da arquitetura. E sabemos exatamente
quais são as produções que ficaram de fora, não é mesmo? Então, penso que a
contribuição (...) vai nesse sentido, de aproximar, dar lugar e compreender essas
outras produções, e compreender, também, que a arquitetura se relaciona com
muitas outras disciplinas. A coisa vai ficando mais complexa e completa quando
temos a contribuição de vozes diversas (De Matos, 2023).
A contribuição necessária parece estar em considerar aqueles que não estavam
dentro das academias, que não estavam nos centros, muitas vezes, da colonização
do saber e do poder, nas universidades dos países ditos “desenvolvidos”, com
acesso à produção de publicações, do sistema de produção de artigos, revistas,
podcasts. Verdadeiros mestres e mestras de um saber-nascente16.
Dar lugar a outras vozes e outras produções, como afirma Gabriela de Matos,
significa reconhecer e valorizar o saber secular, com processos produtivos
baseados em um trabalho criativo e situado.
Na literatura existente, percebe-se um mapeamento das práticas espaciais em
diversos rincões do continente, em termos da forma como respondem aos
seus contextos de desigualdades (sociais, raciais, econômicas, ecológicas) e do
colonialismo (do saber e do poder). No entanto, essa literatura muitas vezes não
revela as arquiteturas feitas por outros atores fora do campo disciplinar, além
mesmo da complexa rede de condições que tornam possíveis tais práticas. Não
somente busco aqui reconhecer essas produções mas também contar essas
Viva José Soró e Perus, viva Noêmia Mendonça e a Brasilândia, viva Maria e o rio Arapiuns,
viva Yakuy e Una, viva Maria Alves e o Assentamento Irmã Alberta, viva Ubatumirim, viva Pedro
e o Centro de Envolvimento em Agroecologia de Barra do Turvo, viva Lúcio Ventania e Ravena… Mestres que se expressam através da oralidade e com os quais tive a honra de interagir
e conviver por espaços-tempo que apesar de curtos, se alongaram até o presente momento.
16
parte ii: forças moventes
133
histórias e memórias, a partir dos encontros de envolvimento com as que me
acompanharam nessa trajetória - Noêmia, Maria e Yakuy. Como aponta Paulo
Tavares, mais uma vez:
Existem outras histórias para se contar na arquitetura. Histórias que não foram
contadas, que não foram visibilizadas, que não foram narradas, porque foram de
alguma maneira suprimidas por narrativas canônicas da arquitetura. (…) Num país
formado por uma diversidade cultural, étnica e racial tão grande como o Brasil,
é preciso contemplar essas outras narrativas, isto é, as outras histórias, as outras
arquiteturas, os outros memoriais, os outros patrimônios (Tavares, 2023).
Seria possível curar a ferida da colonialidade e do desenvolvimento de forma
a propor uma arquitetura aberta a outros modos de relação, baseados na
reciprocidade, nas alianças multiespécies, na ideia de limite planetário? Estes
princípios apontam para uma mudança de postura e de comportamento da(o)
arquiteta(o), com maior envolvimento com as questões éticas, estéticas, técnicas
e políticas.
No passado, temos uma série de bons exemplos de arquitetas(os) que
transbordaram os limites do campo e foram a campo, como em 1980, com as
comunidades eclesiais de base, que levavam os arquitetos para as periferias em
plena ditadura, como o LABHAB da Belas Artes de São Paulo, e a criação de
outras metodologias de trabalho, as experiências estudantis in situ, junto aos
movimentos sociais, e dentro da academia. É o que lembra Tomaz Lotufo sobre
memórias dessas experiências vividas em São Paulo dos anos 1980 e 1990:
Quando a Erundina assume prefeitura, continua pensando produção perto de
onde está a questão. isso volta pro ensino de novo. sai do ensino, vai pro mundo
profissional e volta pro ensino. iniciativas de canteiro experimental nas faculdades de
arquitetura. interfere no movimento estudantil. precisamos nos desalienar fazendo.
se queremos trabalhar para as pessoas que não acessam, precisamos estar lá com
eles. não é tão consciente pro movimento. os jovens da universidade fazem coisas
que são importantes, mas isso nao está teorizado. vem do coração, impulsiona
algo que não está teorizado mas hoje se entende. começam ações do movimento
estudantil. levando o canteiro experimental pra fora. O movimento da permacultura
e bioconstrução tinha outras raízes e motivações, fazer, construir junto, envolvimento
naquilo que acreditamos. Fazendo, na prática, o que acreditamos (Lotufo, 2023).
arquitetura como envolvimento
134
Tais experiências tiveram ressonância no ensino, este por sua vez sensibilizando
pessoas para essas práticas, inserindo dimensões eticas, estéticas, técnicas e
políticas na formação. No entanto, Nêgo Bispo critica de forma veemente como
as universidades muitas vezes ainda operam de forma colonialista, enquanto
deveriam ir a campo para instaurar um campo de efetiva abertura de discussão,
um comum. Ainda que o comum se construa em toda parte e também nas salas
de aula, nos laboratórios de pesquisa, nos grupos de extensão, vistos como
espaços plurais e políticos como insiste Pereira (2023), é forçoso reconhecer
com Bispo que o papel das universidades nem sempre é visto como o de crítica,
mas também de luta, conflito e insurgência. E a dimensão estética da arquitetura
– o projetar com os sentidos – cedeu lugar a uma forma de prática de uma
colonialidade e subalternidade às leis do mercado e a uma profissionalização
que desrespeita, portanto, o próprio ofício. Assim, Bispo declara:
Não existe um antro mais colonialista que as universidades, porque elas são a
cabeça da sociedade. (...) As universidades pensam para a sociedade executar. Isso
é coisa do desenvolvimento. Por isso que as universidades deram certo, porque
elas foram feitas para pensar o desenvolvimento (Bispo, 2023).
No dia em que as universidades aprenderem que elas não sabem, no dia em
que as universidades toparem aprender as línguas indígenas – em vez de ensinar
–, no dia em que as universidades toparem aprender a arquitetura indígena e
toparem aprender para que servem as plantas da caatinga, no dia em que eles se
dispuserem a aprender conosco como aprendemos um dia com eles, aí teremos
uma confluência. Uma confluência entre os saberes. Um processo de equilíbrio
entre as civilizações diversas desse lugar. Uma contracolonização (Bispo, 2018).
Esta pesquisa busca operar esse giro, como dizem os portugueses, essa virada,
essa guinada – como muitos vêm afirmando há décadas: imergir e aprender
com as experiências em campo, in situ. Confluir junto a elas uma pedagogia
do envolvimento através da arquitetura, que por sua vez pode ser adentrar
os muros da universidade, como discorre Abuno:
Acho que a universidade tem seu papel no sentido de ampliar as referências. vim
pra sp, do interior, todo mundo conhecia artigas, paulo mendes, nao sabia nem uma
régua “T”. A universidade tem um papel de abrir esse mundo, trazer referências
que nao poderíamos acessar, tem o poder catalisador de colocar muita coisa num
pequeno espaço. O que não existe nela e essas experiências proporcionam é nossa
parte ii: forças moventes
135
capacidade criativa, de entender, fazer uma interpretação, experienciar o lugar para
além da análise, e sair do marasmo do papel em branco - que você tem que desenhar
alguma coisa e nao sai nada. sair desse estado de espírito e imobilizacao, e conseguir
propor as coisas, ter capacidade de se movimentar (Abuno, 2023).
Percebemos que experiências como as que foram aqui estudadas tangibilizam
essa convergência. Yakuy, de Una, menciona o trabalho desafiador do
envolvimento entre os participantes da equipe que colaboram para a proposta:
O útero vai ser erguido num espaço onde tem várias espécies, dialogando com
isso e respeitando essa natureza. Daí surge o núcleo de arquitetura, que vem
sendo construído. Não sei se todos enxergam a mesma coisa que eu. Ele tem uma
flexibilidade e liberdade de agregar mais pessoas, e o desenho já vem apontando.
Às vezes, sinto um membro do núcleo com dificuldade de lidar com isso. Vai chegar
o momento de fazer essas provocações. Todos podem contribuir e têm saberes
importantes. Há uma resistência, e é importante entender as resistências. Hoje o
nucleo de arquitetura já vem há mais de 2 anos até chegar nesse momento. Você
sabe muito bem que parte de você, e vai trazendo os que estão até hoje. Até sua
chegada, tinham chegado uns 3 grupos que tinham esbarrado em algo que não
conseguiam ir adiante. Hoje, está sendo interessante ver isso acontecendo. Nos
mostra que estamos no caminho certo. Já está acontecendo. O núcleo ja está
promovendo esse encontro de saberes, mostra que é possível esse coletivo, que
é um corpo. Tem o núcleo de cultura e educação, o núcleo de filosofia, o núcleo
de comunicação, o núcleo das mulheres, o núcleo tibira (de orientação sexual,
preconceito e discriminação), o nucleo de administração/jurídico/financeiro, o
núcleo de produção e projetos. A arquitetura não está sozinha. Estes núcleos
precisam interagir. Não está sendo fácil, os núcleos têm dificuldade de agregar,
como somos isolados. Essa cultura nos afasta do coletivo (Tupinambá, 2023).
Os desafios são muitos. No encontro dessas lógicas e mundos distintos, emergem
os preconceitos e os impasses, evidenciando que há coisas que precisam ser
trabalhadas. Nayane, arquiteta envolvida no projeto da Universidade Intercultural
de Saberes Zabelê, dialoga com a visão de Yakuy:
Essa visão me traz pra um lugar de ruptura: a arquitetura vindo para amparar a Aldeia
Zabelê. Para construir um grande complexo, precisamos de uma microestrutura. O
processo de projeto vem como ruptura, de lógicas de escritório, de universidade,
através de uma construção coletiva, horizontal. Não temos um coordenador, um
arquiteto sênior, ninguém sabe mais do que ninguém, está todo mundo aprendendo
arquitetura como envolvimento
136
junto. A arquitetura é construída a partir desses processos, vem como uma proposta
de construir algo juntos. Estarmos desprendidos do nosso desenho, desapegar nos
nossos traços, muita coisa surge no canteiro e faz parte do processo. O que seria
um outro paradigma é esse encontro, essa troca, e esse processo de criar junto. É
muito desafiador: o desenho e método construtivo são muito fortes. Mesmo depos
desse processo de etnocídio, ainda existem saberes, por mais artesanais que eles
sejam… É uma caminhada, é uma construção constante: de confiança, de diálogo
(Alves, 2023).
Os espaços de fazer coletivo e aprendizagem que se estabelecem a partir
dos encontros são muitas vezes “informais”, pautados pela educação popular
e por uma aprendizagem experiencial e corporificada (não necessariamente
experimental, mas experiencial). Assim, os momentos mais marcantes são as
experiências em si: as vivências em campo, de projetar e construir com os
sentidos, em coletivo. Marcantes no sentido simbólico, mas também no sentido
de experiências de troca de saberes e fazeres, que transformaram as pessoas
que participaram, como relata Abuno em sua entrevista, se recordando da
experiência do programa Escola Sem Muros no Jardim Damasceno em 2017:
Começou como um trabalho. Tomaz chamou depois de um mutirão do MST e
comecei como estagiário. A ideia do escola sem muros começou um pouco depois,
o conceito de misturar processo educacional com processo de arquitetura. Numa
esfera mais sensível do que a que estávamos acostumados. Muito racional, engessado
no desenho. O Escola Sem Muros vem nesse contexto, uma primeira possibilidade
dessa escola longe da faculdade, um processo mais territorializado e mais
humanizado - projetar com sentidos. Pude fazer minha formação como permacultor,
e a contrapartida pela formação foi o desenho desse projeto de estrutura de bambu
para a reforma do espaço cultural. Já tinha toda uma história com o permasampa e
me colocou nesse circuito sob a mentoria do Tomaz. Foi a primeira vez que eu pude
projetar numa mesa que não era da faculdade. Eu ia para casa pra passar a limpo
o que tinha sido desenhado e sacramentado no território, para cristalizar. Foi uma
marca única na minha vida e experiência. (…) O que eu vejo de reverberação foi um
monte de gente desse processo que se transformou, saiu de lá renovado. Na hora
você não percebe, mas hoje percebo quanta coisa da maneira como eu penso agora
e que eu devo da experiência que tive lá (Abuno, 2023).
parte ii: forças moventes
Figuras 154 a 159: Vivências Escola
Sem Muros no Espaço Cultural Jardim
Damasceno. Fonte: Pepe Guimarães, 2017.
137
arquitetura como envolvimento
138
O que se estabelece a partir de experiências como essas é de fato outro modo de
fazer arquitetura, que provém da sinergia de movimentos dos campos cosmopolítico,
social e ambiental. E que, apesar de por vezes serem encontros fragmentados,
compõem um processo, uma história que permanece com os hiatos do tempo.
Tomaz Lotufo, em sua entrevista, descreve este modo de fazer arquitetura:
Me vejo pensando arquitetura a partir do processo, não do resultado final. Na
natureza dele, tem aquilo que você acredita. As coisas que acreditamos envolvem
os dois movimentos - social e ambiental - que se encontram. Na perspectiva social,
a tecnologia apropriada, onde as pessoas podem se apropriar das soluções técnicas
construtivas e levar isso para qualquer contexto. A gente só aprende a partir da
perspectiva da integralidade. Não é só no mental, senão fica um vazio. O lado
ambiental é olhar os recursos locais, a tecnologia apropriada. O que acontece no
Damasceno é o encontro desses dois fluxos, desses dois movimentos (acadêmicotécnico-social e permacultural). Vamos fazer a ecologia que a gente acredita pensamos na época. Eu estava nesse meio. Isso tem um contexto histórico familiar
que me ajudou muito. Acordei com muita facilidade por causa dos referenciais
que vieram do meu pai {Vitor Lotufo}, ele estava nesse fluxo. Tem figuras que
vão te trazendo recados. Na faculdade, temos que entender que as coisas têm
história. Profissionalmente, fui tentando fazer uma coisa que tem uma cadência.
A Sofia Telles, que trouxe uma coisa de acreditar que arquitetura não pode ser vazia
e desprovida de ideias, são poucos que constroem isso… Fica uma discussão muito
de objetos, e poucos que colocam conteúdo em você. São pessoas que, no período
profissional, que trazem de volta um sentido que foi dado lá atrás. Me envolvi
fazendo um curso de permacultura, com pessoas de São Paulo querendo entender
permacultura urbana, sair da lógica acadêmica e querendo ir pra fora. Mas para onde?
Apresentaram o Damasceno, e então começamos um curso de permacultura híbrido
- na vila madalena e no jardim damasceno. Propusemos um clássico da permacultura:
a espiral de ervas e uma cisterna. A Noêmia é uma pessoa muito acordada, vai
olhando e curtindo, mas sabia que aquilo não era o suficiente - eles queriam mais.
Lembro que quando fomos apresentar o design permacultural para aquela área,
quando termina a apresentação: ‘Até quando vamos fazer hortas?’ Aí que surge:
temos um grupo de pessoas que gostam de fazer coisas juntas, gostam de construir
e projetar dentro de um contexto social: vamos melhorar esse espaço! Durante o
curso de permacultura, tínhamos que trocar telhas da cobertura do Espaço, porque
quando chovia muito, caía água dentro da sala. Então resolvemos: vamos dar um gás
nesse espaço! O curso de permacultura propôs olhar para esse espaço. Formou-se
então um grupo de trabalho, e o Cássio entra para dar um gás no projeto. Como
parte ii: forças moventes
139
tinha cada um trabalhando com uma coisa na vida, tinha que ter alguém ancorando o
processo. O momento mais marcante foi o momento que a Noêmia apertou a gente:
uma coisa é achar que o que você está fazendo é legal, outra coisa é o feedback. O
que seria fazer algo que pudesse fortalecer esse espaço? Ela é a semente de tudo
isso, fez com que um processo se desencadeasse. Tudo começa com a força dela. E
a coisa poderia continuar pra sempre, tem um todo maior. Foi isso que caiu a ficha.
O Damasceno pra mim é o exemplo mais potente de que arquitetura é
processo. Ela não foi feita, mas ela foi feita. A ausência da arquitetura é que
demonstra o que a arquitetura pode fazer, o que acontece quando o processo
é valorizado. A edificação (se construída) seria melhor, ia ter um mezanino,
uma abertura pro Parque... Isso tiraram da gente, mas não tiraram a alma.
‘Vocês não vão construir, e se começarem, a gente vai entrar com esse trator e
derrubar tudo porque isso é irregular’. Como assim? é uma sobrevivência. O que mais
se espera é que aconteçam coisas como o que está acontecendo aqui. A Prefeitura
impediu a construção de um edifício, mas não impediu a construção de um processo.
Cada um levou pra fora, e quem ficou, está lá trazendo essa semente (Lotufo, 2023).
Os encontros podem acontecer e permanecer ao longo de anos, ou podem
acontecer momentaneamente e logo se dissipar –, mas nem por isso são menos
impactantes. Encontros com paisagens e corpos que atravessam, propiciando
uma experiência de metamorfose, íntima e marcante. A água, que do lençol
freático, sobe a superfície, se junta na correnteza do rio, então evapora, condensa
em forma de nuvem, que encontra o vento e cai como toró, para depois
atravessar o solo rumo ao lençol freático mais uma vez. É a mesma água, em
diversos estados da matéria. Assim como os corpos e o tempo, que atravessam
essas paisagens, deixando registros, marcas e memórias dos acontecimentos de
cada etapa deste ciclo.
Encontros como fenômenos, verdadeiras pororocas: encontro de água doce e
água salgada, de diferentes visões de mundo e modos de vida – experiências
que mudam o estado das coisas, como aponta Mariana Montag, “encontros que
acontecem quando pessoas de lógicas diferentes desejam fazer algo juntas”
(Montag, 2022, p. 143).
Tais encontros e experiências de envolvimento têm se realizado no campo da
arquitetura em diversos cantos do Brasil e da América Latina, criando verdadeiras
nebulosas de troca de experiências, tecnologias, inteligências, saberes e fazeres.
Esses encontros que habitam dentro e fora do campo são organizados por
arquitetura como envolvimento
140
diversos coletivos, por vezes transbordando os limites do campo na interface
com permacultores, ecologistas, educadores populares, movimentos sociais.
Nas duas últimas décadas cita-se, por exemplo, eventos organizados por mais
de trinta coletivos na América Latina17, fora aqueles já citados dentro do território
brasileiro, onde diferentes atores coletivos e institucionais são convidados a
compartilhar saberes e fazeres.
É importante entender que se trata também da produção de narrativas dessas
arquiteturas de matrizes culturais diversas - que não se dão somente através de vias
formais, mas também por meio da oralidade e de encontros dos atores que dão
materialidade a esses pensamentos. Tais corpos, individuais e coletivos, transitam
pelo continente, e se reúnem periodicamente em encontros de diversos formatos:
organizados muitas vezes de forma independente, autogeridos por estudantes,
promovidos por universidades ou por instituições de classe. Na curadoria e nas
pautas dos encontros, coletivos, profissionais e escritórios são convidados a
compartilhar saberes e fazeres que trazem um caráter experimental e inovador.
Os encontros do campo da arquitetura e do urbanismo, nacionais e latinoamericanos, têm acontecido desde os anos 1985 e se organizam em diversos
fóruns, como os do Seminario de Arquitectura Latinoamericana SAL desde
1985 (Souza, 2013), Encuentro latinoamericano de estudiantes de arquitectura
ELEA desde 1990, seminário nacional de escritórios modelo de arquitetura
e urbanismo SENEMAU desde 1997, Taller social latinoamericano TSL desde
2001, congresso científico de arquitetura e urbanismo CICAU também desde
2001 e Bienais de Arquitetura desde 1992.
São iniciativas que produzem conhecimento, viabilizando trocas de tecnologias e
inteligências coletivas, construindo juntas narrativas de outros fazeres possíveis.
Os encontros autogeridos articulam pensamento e produção atuais, inovadores
e experimentais no continente, mobilizando os anseios dos estudantes por
respostas ao tempo e questões contemporâneas, trazendo um frescor e
esgarçando os limites da disciplina.
Dentre eles: Matéricos Periféricos, Acqua Alta, Grupo Talca, República Portátil, A77,
Arquitectura Mixta, Al Borde, Ariztia LAB, Colectivo Arrabal, Aga Estudio, Arquitectura
Expandida, Pico Colectivo, Alvaro Lara, Terceira Margem, Eleazar Cuadros, Semillas, Oficina
Comunitaria de arquitectura Oca, Ruta4, Comunal, Atarraya Taller, Natura Futura, Colectivo
Hormiga, Taller General, Tibá arquitectos, Connatural, Cooperación Comunitaria, Productora,
Daniel Moreno Flores, Supersudaca, entre outros.
17
Enquanto isso, por sua vez, o papel das Bienais de Arquitetura, por exemplo, se
mostra não somente como o de um lugar de intenso intercâmbio e de projeção das
pautas para uma discussão pública, mas também como o de um lugar de encontros,
reconhecimento e valorização de saberes e fazeres alternativos e não hegemônicos.
Assim, constituindo um marco na trajetória das produções, as Bienais não
somente visibilizam os escritórios e suas práticas, mas também os premiam,
possibilitando desdobramentos e garantindo um reconhecimento para sua
difusão em plataformas digitais e revistas impressas, alcançando ainda outros
territórios e criando relações entre as produções no continente.
De fato, exposições (e eventos e publicações relacionados) têm sido um local produtivo
e visível de prática crítica e experimental em arquitetura; eles têm sido fundamentais
para abrir novas linhas de pesquisa, testar novos formatos, tecnologias e investigações
programáticas, e lançar novas polêmicas e reivindicações conceituais sobre para onde
a arquitetura pode estar indo (Scott, 2012, p. 66 apud. Tonetti, 2020).
arquitetura como envolvimento
142
143
reinventar o desenvolvimento em comum
Figura 160: Diagrama das nebulosas de encontros. Fonte: Produção
própria18.
Como pesquisadora, participei de inúmeras
dessas iniciativas. Assim como as manifestações
de encontro das águas, os modos de encontro são
muitos: encontros de estudantes de arquitetura
(como os que vivi no Paraguai, Argentina, Chile,
Croácia); seminários e congressos (como o
arquitetura para autonomia que juntou Alberto
Acosta, Yakuy Tupinambá, Iazana Guizzo); cursos
(como o “Perspectivas da Terra”, que juntou
saberes guarani e de matrizes afro-diaspóricas);
festivais e bienais junto a entidades de classe
(como as Bienais de São Paulo, Chile e Veneza);
vivências de construção promovidas por escritórios
de arquitetura e universidades (como aquelas em
Talca e na Bahia); oficinas de educação popular
(como aquelas organizadas pelo Movimento Sem
Terra); redes em tessitura (como o laboratório
COMUNS); além de laboratórios de aprendizagem
viva e troca de experiências (como o Escola sem
muros e a Vivência Tupinambá) - muitas vezes
produzindo registros como vídeos e publicações.
Essa prática crítica e experimental em arquitetura,
que
desloca
o
pensamento
arquitetônico
para outros lugares de ação, agindo também
sobre suas formas de visibilidade, configura
uma “prática estética” nos termos elaborados
por Ranciere. Nesse sentido, conforme o
filósofo, não se trata de uma oposição entre o
desencantamento pós-moderno acerca do fim
das utopias e possíveis respostas vanguardistas
Disponível aqui em alta resolução: https://miro.com/
welcomeonboard/aXdSNUEzYUZFVTRWZ2tiZVo2cThjRld1bmlYNTBWV0JzNjZPVVAwNW9OMVMxZXowQkhtRnRMTW8zMmlJT3RucXwzMDc0NDU3MzU1NzQ3NjA3MjY3fDI=?share_link_id=691670823492
18
144
arquitetura como envolvimento
por parte da arte, mas, sim, uma elaboração sobre as ‘maneiras de fazer’ que
intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com as
maneiras de ser e formas de visibilidade’. Ou seja, como instâncias articuladas,
pensar, fazer e visibilizar definem uma estética política, como formas de inscrição
do sentido da comunidade (Ranciére, 2005, p.17-18, apud. Tonetti, 2020, p. 124).
Vejo-me de certa forma também como um corpo d’água, e durante os encontros
que vivenciei no Brasil e na América Latina, já fomos nascente, rio, corredeira,
nuvem, chuva, toró, pororoca. A cada encontro, uma realização em potência
que se manifesta, uma transformação do corpo que era antes. A cada encontro,
revela-se em suas pautas uma atenção particular ao que Souza (2013) identifica
como espírito do tempo: a atenção ao corpo, a paisagem, e ao próprio tempo.
Espaços que abrem o campo para jogo, tecendo uma rede de aprendizagem viva
e pulsante, criando confluências com territórios outros – como foi o Programa
Escola Sem Muros, em 2018, no Jardim Damasceno, e a Vivência Tupinambá,
em 2024, na Aldeia Zabelê em Una.
Hoje eu vim buscar raiz na aldeia zabelê,
hoje eu vim buscar raiz na aldeia zabelê,
vou por minha planta na roda,
vou por minha planta na roda,
vou por minha planta na roda.
Hoje eu vim plantar raiz na aldeia zabelê”
(Durval, 2023)19
19
Trecho de canto na Vivência Tupinambá em janeiro de 2024.
reinventar o desenvolvimento em comum
arquitetura como envolvimento
146
Mas afinal, por que reinventar o desenvolvimento em comum? Qual o interesse
dessa reinvenção?
O desenvolvimento é bem complexo. somos alvo de perseguição por causa de
minérios, bauxita para fazer aluminio, a ganância do ser humano está acabando
com ele próprio. Não é só a floresta que vai morrendo nesse meio, somos nós
também. Se parasse a grande ganância do mundo, será que nao pararia essa
coisa avassaladora, pra tirar madeira, plantar soja pro boi, arrastando e fazendo
pastos pra pecuária. Será que um pouco de consciência, não melhoraria a vida?
Nós fomos estudar, pra fazer com que o progresso venha sem matar a gente
mesmo. Nós somos o solo, a agua dos igarapés, do rio, as raízes.
Se pensasse em desenvolvimento para quem? O Ailton pergunta assim: ‘será que
não chegou de desenvolver tanto?’ (...) Como a gente faz para envolver as pessoas,
fazer com que elas consigam se conscientizar um pouquinho?
A gente só conversa, fala da nossa realidade, mostra que o alternativo tá dentro
da floresta. como a gente se sente bem, alimentando das coisas naturais. nunca
pensei uma atividade pra envolver melhor, a gente sempre mostra o que temos e
o que somos. as pessoas sempre voltam, que faltou uma coisinha pra completar
o que é o envolvimento com a vida, com o ser humano, os animais (Odila, 2023).
A pesquisa in situ, diante das questões apontadas até aqui, parece possibilitar
uma imersão e envolvimento com os saberes e fazeres necessários para o agora.
A epistemologia do envolvimento possibilita o vínculo com outros sujeitos em
pesquisa, o que mesmo nas universidades públicas apenas uma pequeníssima
parte pode construir, e auxilia na compreensão das forças que os movem e das
dimensões que qualificam as relações estabelecidas ali.
Este outro modo de fazer pesquisa, ou seja, uma pesquisa de campo imersiva e
participante, é corrente junto aos antropólogos e sociólogos e, de modo geral,
na formação das áreas de ciências humanas e sociais. Podemos dizer que tem
sido praticado pela pesquisa-ação desde os sociólogos da Escola de Chicago
no começo do século XX, para dar apenas um exemplo (Cf. Pereira. A conexão
Chicago - São Paulo através dos primeiros urbanistas paulistas: o caso Anhaia
Melo. 1999). Entretanto, pouco penetrou nas escolas de arquitetura onde
certamente traria grandes benefícios, uma vez que o próprio objeto do olhar e
reinventar o desenvolvimento em comum
147
estudo de arquitetos e urbanistas são os modos de habitar e as cidades – vistas
não apenas como forma física e material, mas como forma política, social e,
sobretudo, cultural, complexas.
Nesse caso, podemos entender o envolvimento como modo direto e
interacionista (cf: Topalov, Licia Valladares, Marco Antônio Mello, Pereira) e
como possibilidade, portanto, de aproximação e vínculo com sujeitos concretos
(que são também objetos de pesquisa com os quais a relação de co-implicação
é, e deveria ser, ponto de partida).
Nesses termos, o conhecimento se produz de forma dialógica, in situ; isto é,
“em campo”, qualquer que seja ele20, e dentro do qual o pesquisador-arquiteto
experimenta e reflete sobre as interações que privilegia quando se propõe uma
arquitetura que se insere e se recompõe com sujeitos que ali estão e ainda virão
a estar, continuamente se transformando. É justamente a partir da compreensão
dessas dimensões que é possível reconhecer e praticar a arquitetura como
dispositivo e ferramenta do envolvimento como uma ética e política que
perpassa a estética e a técnica.
O desenvolvimento é pautado num trabalho com recursos finitos para fazer algo
infinito. É completamente irracional, não tem como, não tem pra onde ir. (...) A
arquitetura só tem esse caminho: é uma profissão que trabalha para o interesse do
desenvolvimento, que a base para tudo isso é a mineração. O que achamos que
Sobre esse ponto, Pereira (Entrevista supra cit 2024) ajuda a situar historicamente essas questões quando sustenta que “pensar, conceber e fazer a arquitetura, propriamente dita, é pensar
a história, e o tempo como múltiplas temporalidades, é pensar também ritmos, cadências com
um feixe de relações, interações e movimentações que definem o espaço, antes de tudo, como
uma proposta de existência. É queiramos ou saibamos, sempre um pensar situado, encarnado”. Para a autora: “avaliar e propor desvios – o que é, em suma, o que se faz quando se projeta
– é um pensar co-implicado com tudo que nos rodeia: homem, pedra, bicho, planta, água... É
como um conjunto de nuvens, uma nebulosa, que é como imagem de pensamento sempre um
substantivo coletivo, isto é, um singular que é ao mesmo tempo plural. É portanto nesse amontoado de relações e interações com múltiplas dimensões e forças que estamos, a um só tempo,
individual e coletivamente co-implicados”. E ela continua: “Creio que é sintoma da pregnância
do funcionalismo e do desinteresse pela história e pelas culturas da própria profissão de arquiteto ou de urbanista, e portanto é sintoma de uma incultura o fato que estes tenham que ter
olhado os artistas, ou comunidades vivendo de modo isolado, para “descobrirem” que outras
culturas e as suas próprias vidas são vividas in situ sejam nas nebulosas formadas por livros, nas
nebulosas das salas de aula, nas nebulosas das redes sociais e telas dos computadores e nas
nebulosas de gente que chamamos “cidade”. Isto é, sobretudo nas situações concretas nas
quais coletivos mas também indivíduos, que no final das contas são frutos de culturas e desinteligências, tecem qualquer projeto, plano, programa ou obra”. Pereira, M. entrevista em maio de
2023, ver igualmente: JACQUES, P.B., and PEREIRA, M.S., comps. Nebulosas do pensamento
urbanístico: tomo I – modos de pensar [online]. Salvador: EDUFBA, 2018.
20
arquitetura como envolvimento
148
a arquitetura existe pra manter a indústria da mineração e do plástico? (…) Não
podemos mais prestar servico para esse universo petroquimico e de mineração
(Lotufo, 2023).
A arquitetura como envolvimento e, portanto, como ferramenta para a reinvenção
do des-envolvimento permite ser a síntese de processos de relação e vinculação
contínua através da cultura e com os demais corpos da natureza, animados e
inanimados, nos espaços-tempos em que se habita. Diferentemente de gestos
construtivos que separam, alienam, apartam, segregam, propõe-se aqui um
olhar para o que é que a arquitetura guarda como ambição e projeto, isto é,
como dispositivo de criação de relação com aquilo que a atravessa, contorna,
ambienta, ocupa, transborda, entrelaça, serpenteia. Como descreve Tim Ingold:
O importante quando se pensa o ambiente como uma zona de interpenetração é
que está continuamente em obra, continuamente crescendo na medida em que
os habitantes do ambiente fazem seus caminhos através dele, seguindo diferentes
percursos (Ingold, 2012, p. 73, tradução nossa)21.
Os corpos em interação, as ideias de tempo e a paisagem que constroem
situações, forças ou dimensões para compreender a arquitetura como
envolvimento, uma vez que a reinvenção do desenvolvimento se dá em comum,
em encontros com a alteridade:
Os encontros com outrem são encontros com outras lentes, e estas não apenas
oferecem uma outra forma de ver, mas elas nos atravessam provocando novo
arranjo das forças que nos compõem, possibilitando assim uma operação de
diferenciação (Guizzo, 2019, p. 145).
Seria este fazer arquitetura um modo de ativar a disponibilidade e abertura dos
corpos para se afetarem e se permitirem envolver? Essa seria uma relação com
os conflitos e negociações, mas também que se pensa ser necessário confiar
no processo de permanente produção do comum. Seria, ainda, confiar que a
passagem de uma noção linear e pautada em uma visão de progresso alienante
e espoliativa para a reinvenção do que chamamos de desenvolvimento, e que
seria uma outra forma de desenvolver-se, pode emergir de mãos, suor, sabor,
corpos envolvidos na produção dessas arquiteturas. A própria co-produção da
Lo importante acerca de pensar el ambiente como una zona de interpenetración es que está
continuamente en obra, continuamente creciendo al tiempo que los habitantes del ambiente
hacen sus caminos a su través, siguiendo diferentes sendas.
21
reinventar o desenvolvimento em comum
149
arquitetura como cultura de habitar, que manifesta saberes e fazeres de um
povo de um determinado lugar, pode ser uma semente de outras formas de
organização coletiva e de uma vida em comunidade que se perceba acolhida
pela Terra, respeitando ao que nos deu origem, ou simplesmente, vida. Lotufo,
que se dedicou intensamente à experiência da Cantareira, argumenta:
Nós como arquitetos podemos contribuir criando um ambiente adequado para a
vida. Podemos incluir edificações, mas elas precisam fazer parte desse ambiente,
como se fosse um organismo vivo. Como ele se manifesta em um meio? Ele é o
todo, a cosmovisão, um caminho onde a energia passa, se manifesta dentro dele
e diversas formas de vida, em forma de abraços, de água, calor, trocas afetivas e
físicas, e isso tem que sair com muita qualidade, tomara que possamos melhorar.
É simples, esquecer o que está nos enganando, parar de trabalhar para esses
interesses e fazer coisas que dialoguem com a vida. Para isso precisamos entender
a vida. Isso vai nos dar habilidades, ter iniciativa, melhorar o nosso meio, para ter
autonomia e nos tornarmos interdependentes (Lotufo, 2023).
Tais experiências são frutos de movimentos situados e envolvidos em uma
dentre as muitas possibilidades de constituição do corpo, individual e coletivo.
As práticas criam tônus, fortalecem a musculatura, promovem outros caminhos
do pensamento a partir dos relevos do real. A arquitetura pode ser reconhecida
como ferramenta para uma pedagogia do envolvimento nos territórios que
habitam as beiras – geográfica, simbólica, política, onde não há limites rígidos
ou definidos –, permitindo alargar o imaginário, constituído individual e
socialmente, nos territórios físico e intangível.
Estamos como sociedade revendo a cosmovisão que nos habita para alimentar
uma outra cosmopercepção, como menciona Krenak:
Talvez o dano que a gente tenha cometido contra o Planeta, no século XX, é que
a gente estava preparando técnicos e formando muitos técnicos, e a ideia era
habilitar o humano para incidir sobre a vida na Terra. Tirar petróleo, furar plataforma
continental, devastar a Floresta Amazônica, caçar ouro para todo lado, toda
essa cosmovisão constituída de um Planeta cheio de concreto, viadutos, pontes,
rodoviárias, metrôs. Essa parafernalha toda é uma ofensa ao corpo da Terra. A
Terra respira (Krenak, 2020).
Afinal, estamos falando de criar uma pedagogia do envolvimento para podermos
arquitetura como envolvimento
150
reinventar o desenvolvimento, que possa atravessar os campos disciplinares na
busca de preparação dos humanos para habitar um planeta com limites.
O planeta Terra é um organismo vivo, e que a continuidade da vida tem a
responsabilidade de todos nós. Através da cultura que adquirimos nossos habitos,
que se tornam costumes e tradições. As pessoas que fazem o movimento dessas
estruturas são escravizadas para manter essa estrutura funcionando e não tem
força para romper. Mas há outros povos libertos dessa colonização. Espaços de
reconstrução que vão fazer com que a gente consiga romper (Tupinambá, 2023).
Reconstruir as bases do desenvolvimento é urgente desde muito tempo, como
Viveiros de Castro aponta desde 2011 em “Desenvolvimento econômico e
reenvolvimento cosmopolítico: da necessidade extensiva à suficiência intensiva”:
Penso que seria mais interessante começarmos a desenvolver (se posso usar
a palavra) um conceito de suficiência antropológica. Não se trata aqui de autosuficiência, visto que a vida é diferença, relação com a alteridade, abertura para o
exterior em vista da interiorização perpétua, sempre inacabada, desse exterior (o
fora nos mantém, somos o fora, diferimos de nós mesmos a cada instante). Mas
se trata sim de auto-determinação, de capacidade de determinar para si mesmo,
como projeto político, uma vida que seja boa o bastante. O desenvolvimento é
sempre suposto ser uma necessidade antropológica, exatamente porque ele supõe
uma antropologia da necessidade. Estamos aqui em plena teologia da falta e da
queda, da insaciabilidade infinita do desejo humano perante os meios materiais
finitos de satisfazê-lo (Viveiros de Castro, 2011).
Viveiros alerta para a importância da autodeterminação de uma ontologia,
como capacidade de instaurar, ao nominar, um modo de existir no mundo
baseado no envolvimento: como uma ideia de viver com o suficiente, com os
recursos que temos.
Maria Odila (2023), em seu saber calcado em um fazer e em um agora, lembra:
“o dinheiro é o meio para conseguir isso, mas nem sempre o único meio. A
perspectiva de que com seu tempo e esforço, poderia se ter o almoço ao
alcance das mãos. Não que fosse fácil, mas era possível”. Como uma vida com
uma suficiência intensiva, o bem viver seria portanto, como defende Alberto
Acosta a partir dos saberes e viveres dos povos andinos:
A vida em pequena escala, sustentável, equilibrada, como meio necessário para
reinventar o desenvolvimento em comum
151
garantir uma vida digna para todos e a própria sobrevivência da espécie humana e
do Planeta. O fundamento são as relações de produção autônomas, renováveis e
autossuficientes (Acosta, 2016).
Ou como diria Gilberto Gil, na canção “Eu vim da Bahia” (1985): “onde a gente
não tem pra comer, mas de fome não morre. (...) Viver, pra sambar, pra cantar,
pra valer, pra morrer de alegria na festa de rua, no samba de roda, na noite
de lua, no canto do mar”. E assim, para habitar o espaço entre a terra e o céu,
dançar para não deixar cair o céu. O movimento do envolvimento: estar-emcomum produzindo encontro, vida, subjetividade, afeto – como coloca Espinosa
(2009): “ao transitar, ao mover-nos, expressarmos, abrimos possibilidades,
criamos passagens. Com outros corpos, potencializamos a ação e produzimos a
vida e a alegria; produzimos subjetividade, território”.
Através dos encontros, das passagens, das trajetórias, do serpentear dos
Rios, pensamos que o que está sendo criado nas experiências mostradas não
são somente alternativas, mas possibilidades substitutivas de envolvimento,
reenvolvimento e desenvolvimento.
Por isso, as experiências transbordam as dimensões propostas, e exercem a
sua liberdade a partir da consciência destas. Afinal, envolver é também dar
contorno, dar limite; nominar para poder instaurar. Disputamos, como diria
Nêgo Bispo, a guerra das denominações:
Já que nominar é a arte de dominar, pois agora vou entrar na guerra chamada
de guerra das denominações: para o desenvolvimento, o envolvimento. para a
ecologia ou para a permacultura, a biointeração; para o pensamento linear, o
pensamento circular. (...) Agora nós escrevemos denominações diferentes para
coisas diferentes (Santos, 2023).
Disputar o desenvolvimento significa compreender uma disputa política que
vem de décadas, e que já possibilitou o reconhecimento, o acesso e a garantia
de direitos - de corpos humanos e não humanos, inclusive. O desenvolvimento
pode significar estar apto para o próximo passo, direção, indicação ou etapa
além da que se encontrava anteriormente. O que não se entendia anos atrás
é que a etapa além não necessariamente significaria onde os países ditos
“desenvolvidos” se encontravam, mas sim um próximo passo dentro da nossa
métrica, da nossa dança, do nosso curso. Uma promessa histórica de reparação
arquitetura como envolvimento
152
e pretendida “equiparação”, de envolver-se na partilha do comum. Tavares
coloca, dessa mesma forma, a necessidade de reparação como uma forma de
envolvimento:
Imaginar um futuro no qual uma sociedade do cuidado e da reconexão significa a
recuperação da terra e a restauração do clima, propomos ideias para a reparação de
comunidades humanas e não humanas através de meios da arquitetura, desenhando
novos materiais e conexões subjetivas entre nós e a terra. Se nossa ação política mais
urgente hoje é reconstruir o mundo de outra forma, as reparações constituem uma
questão central para a prática da arquitetura, a partir das suas manifestações transescalares, transdisciplinares e trans-meios (Tavares, 2024, tradução nossa).
Aqui, para um processo de reparação, também parece ser importante reconhecer
e dialogar com múltiplas matrizes culturais e epistemológicas brasileiras, e
porque não, latino-americanas; e as diversas trajetórias dos corpos que aqui
habitam em suas cosmologias amazônicas, ribeirinhas, indigenas, quilombolas,
que estabelecem uma diferença de grau, não de natureza, entre os corpos
humanos e não humanos. Afinal, como lembra Peter Webb: “essa natureza do
humano nasce da mesma natureza da floresta, mas é muito fácil esquecer, às
vezes a gente esquece do nosso parentesco” (Webb, 2016).
A proposta de denominação agora parece exigir que se dê ao contrário:
criar a denominação a partir das trajetórias, vivas, vividas, envolvidas - e não
impor(tar) um conceito sobre a realidade que habita a margem. Nêgo Bispo,
por exemplo, embora criticando e desconsiderando as lutas que se dão no
interior das universidades em diferentes campos, chega às mesmas conclusões
daqueles que vêm defendendo uma atenção ao uso social e cultural dos termos.
Acertadamente, contudo, nas linhas gerais sobre o que ainda é dominante em
muitas áreas, ele escreve: ”não escrevemos uma teoria mas uma relatoria: é a
denominação de uma trajetória. Hoje é um conceito mas não foi escrito como
conceito. Hoje é um conceito porque aprendemos que as universidades comem
conceitos, então vamos alimentá-las (Santos, 2023).
reinventar o desenvolvimento em comum
153
Portanto, o envolvimento, ou o reenvolvimento, como defende Viveiros de
Castro (2011), seria uma categoria contracolonial autodeterminada pelos povos
e territórios da beira do capitalismo, de um metro que só mede a si mesmo, a
partir de entendimentos e indicadores advindos da própria experiência nestes
territórios. “Uma denominação diferente para uma coisa diferente”, como
defenderia Bispo (2023): uma ideia que emerge dos encontros, produzindo
conceitos a partir de outras culturas, outras subjetividades e outros territórios.
Ardalan (2008) coloca nos mesmos termos, no sentido de “retomar as
documentações sobre a realidade com a qual se aprendeu e interpretá-la a
partir de conceitos extraídos da própria situação”.
O que seria, portanto, uma arquitetura que decide não dominar a natureza nem
os corpos humanos e não humanos, mas estabelecer um vínculo em constante
relação e negociação? A quem interessa essa outra arquitetura? Que interações
são possíveis de serem produzidas?
As alianças cosmopolíticas e multiespécies relembram que toda ação é política.
A conscientização desse poder e responsabilidade é defendida pelo arquiteto
Cássio Abuno, a qual se associa uma percepção cosmopolítica que é transversal
a todas as dimensões em jogo.
Infelizmente, talvez, foi fora das academias, mas nos mergulhos no Rio Bananal,
Arapiuns e Una, que entendi que constrói-se outros mundos em comum, a partir
de encontros: da natureza com a cultura – que parece ser uma das dimensões
potenciais do humano como parte ele próprio do mundo natural; da criação de
relações de reciprocidade e convivência multiespécies; da compreensão de que
deve se pisar devagarinho e pedir licença ao adentrar e interagir com outras
cosmopercepções; da co-responsabilidade nas relações com aquilo que não se
conhece plenamente; de outros modos de habitar – os quilombos, as aldeias, as
periferias. Faz-se assim resistência, potência e contínua re-existência – lugares
onde se manifesta o desenvolvimento dos povos do envolvimento. Trago, mais
uma vez, Tomaz Lotufo para pensar junto essas outras atitudes e agenciamentos:
Sinto que esse mundo que precisamos construir que aparentemente é simples
mas não é, ele só vai mudar com a transformação cultural. Precisamos construir e
consolidar uma cultura do cuidado, nas diversas dimensões - têm a ver com nosso
modo de vida. A cultura é história no tempo, Paulo Freire dizia. Precisamos da
história e do tempo para consolidar essa cultura do cuidado (Lotufo, 2023).
arquitetura como envolvimento
154
O tempo de relatoria dessas trajetórias me revelou que a cultura do cuidado
instaura “uma ética para as práticas espaciais”, como Iazana Guizzo (2019)
enfatiza. Uma ética baseada na suficiência, na justeza, no fazer uma vida que seja
boa o bastante com aquilo que se tem. Ou seja, como defendem os integrantes
do escritório de arquitetura equatoriano Al Borde: fazer muito com pouco,
aprender fazendo, repetindo os saberes tradicionais, e, avaliando seu alcance,
reinventá-los e atualizá-los a cada encontro. Experiências de envolvimento
como essas percorrem os percursos de culturas mais ou menos diferenciadas e
que se irradiam a partir dos corpos, que se relacionam, expandindo para outros
corpos-território.
As situações descritas em In situ produziram conhecimento coletivamente, de
forma a inventariar e cartografar ações, gestos, iniciativas, a partir das seguintes
questões: quais as relações da arquitetura com a paisagem natural e humana do
lugar onde se situa? Quais as alianças com os corpos humanos e não humanos
que se estabelecem a partir da arquitetura? Como a arquitetura se faz e refaz no
tempo – atravessando os hiatos e as inflexões, os afastamentos e aproximações?
Como os arquitetos participam deste processo histórico, que está presente no
projeto arquitetônico em si, e que é o da compreensão de que a história não se
trata de um passado morto, mas uma história sempre viva e atualizada a cada
vez no presente? Qual a importância e o desafio de envolvimento das pessoas
na construção de um espaço? Como a cultura na sua relação com a construção
(como hábito que se repete no tempo) pode instaurar uma arquitetura, e assim,
envolvimento? Quais os modos de fazer arquitetura? Por quem são praticados e
quais as forças e interesses que os movem? Analisando os processos, técnicas,
estéticas, a partir das dimensões e das perguntas propostas aqui, pode-se avaliar
se estão a serviço da ética e política de desenvolvimento ou de envolvimento.
A investigação aqui apresentada buscou mapear as contribuições de algumas
experiências para o campo de estudo e prática da disciplina da arquitetura
e do projeto participativo; buscando contribuir para a revisão da prática de
arquitetura ao sistematizar práticas espaciais de envolvimento. O interesse
aqui foi reconhecer as práticas espaciais sustentadas por povos e comunidades
diversas das beiras do Brasil e buscar chamar atenção para eles, para que as
práticas dos arquitetos e arquitetas possam confluir com estes saberes e fazeres
do envolvimento. Como estas e outras experiências de envolvimento podem
informar outros modos de construir e até mesmo praticar arquitetura?
reinventar o desenvolvimento em comum
155
A partir dos encontros com estas experiências, pode-se perceber que tais
arquiteturas podem ser fomentadas nas universidades a partir da educação
(e da aprendizagem experiencial a partir do ativamento da sensibilidade de
cada aluno), considerando as dimensões do envolvimento e as práticas de
uma pedagogia do envolvimento, isto é, da dimensão ética e estética. Mais
diretamente, no campo profissional, talvez fosse possível, ainda, consolidar
as assessorias técnicas populares, capacitando os profissionais para uma escuta
local e um vínculo com todo o ciclo produtivo, reconhecendo de onde vêm os
materiais utilizados na construção, para onde vão os resíduos desta obra.
Enfim, parece desejável fomentar alianças com atores que ocupam espaços de
poder, com o poder público e os criadores de políticas públicas, tomadores
de decisão em geral e financiadores, além da mídia, adotando tecnologias
sociais e ecológicas, que surjam do encontro de saberes empíricos e técnicos,
multiplicando a disseminação de informação, elaborando normas, e valorizando
os avanços técnologicos de saberes tradicionais, de forma a fomentar as práticas
ditas alternativas para se tornarem substitutivas.
Compreendemos, portanto, que a arquitetura pode promover o envolvimento
de diversos modos, sendo simultaneamente global – enquanto movimento
pautado por uma ética e política comuns – e situada – enquanto técnica e
estética, em interação com corpos específicos: materiais, luz, cor, elementos
da natureza, ar, ondas de som, por exemplo – que são territorializados em
paisagens diversas em cada situação.
Em se tratando de um país de escala continental como o Brasil, o desafio é o da
multiplicação e distribuição dessas arquiteturas, considerando a subalternização
intelectual ainda operante, além das assimetrias no reconhecimento dos direitos
civis e sociais que se traduz na desigualdade de acessos. Entender a complexidade
desse ecossistema e das relações possíveis de serem estabelecidas pode trazer
maior clareza para compreender os papéis necessários em um trabalho de
confluência de várias escalas para que qualquer mudança se torne possível.
Qual pode vir a ser o papel da arquitetura no movimento pela redução das
desigualdades e da subalternização que vêm junto do desenvolvimento?
A relatoria aqui realizada é de alguns poucos percursos, costurando-os junto
a um tecido mais amplo, na narração e escrita dessas memórias e na abertura
do campo comum de recriação e produção de conhecimento a partir dos
arquitetura como envolvimento
156
encontros parecem ser ferramentas e estratégias importantes na luta por justiça
socioespacial e climática. Precisamos lutar em todas as escalas, igualmente
importantes - dentre elas o trabalho de escrever, como coloca Abuno em nossa
entrevista. Reconhecer os direitos dos vários modos de habitar; instaurar limites
que assegurem e salvaguardem estas práticas; e sensibilizar pessoas que não
vivem estes encontros e não partilham desta cosmopercepção se revelam ações
possíveis para juntos reinventarmos o desenvolvimento.
O que buscou-se relatar aqui são tecnologias, inteligências coletivas, nortes
a partir do Sul: das beiras dos rios, do Brasil, das periferias do capitalismo, da
América Latina. Uma aposta no papel político e simbólico da escrita como uma
tentativa de contribuir com as discussões sobre projetos políticos, um estarem-comum includente, como aponta Yakuy Tupinambá:
Trazer este tema para dentro da academia, a importância de discutir o envolvimento,
penso que já é um fio que conduz para uma travessia. quando uma pessoa dentro de
uma estrutura como essa, tem liberdade de trazer algo para se construir ali dentro
que traz uma abertura para essas rupturas que precisamos fazer, me deixa cada
vez mais com a chama da esperança acesa. não tem outro caminho se nao formos
nessa busca. formarmos uma rede para essas conexões. isso só vai se dar quando
houver o entendimento, a troca de saberes, o respeito, a confiança, a generosidade
e corresponsabilidade. quando você mergulhar, vai trazer ensinamentos, é preciso
sentir, não é superficial. essas conexões que vao formando essa rede. abrindo esses
espaços (Tupinambá, 2023).
conclusão
arquitetura como envolvimento
158
Esta dissertação se propôs a reconhecer e valorizar, delimitar e organizar saberes
e fazeres do envolvimento a partir da arquitetura de contextos sociobiodiversos,
para então propor outros entendimentos para um desafio que é cosmopolítico.
Através destes modos situados e não hegemônicos, pudemos reconhecer três
de muitos fazedores de arquiteturas que têm muito a nos ensinar no aqui e agora
sobre quais são as ferramentas necessárias para habitar mundos em comum.
A partir dessas arquiteturas dos povos que habitam as bordas – migrantes que
habitam as periferias das grandes cidades, indígenas, ribeirinhos, quilombolas
–, pudemos ver quais são as arquiteturas que estão sendo produzidas para além
das que trabalham para o desenvolvimento como progresso linear e de consumo
que insiste na obsolescência programada e na financeirização das relações.
A nossa aposta está na produção e valorização das arquiteturas que operam
como ferramentas para instaurar modos de envolvimento com a Terra; que
prestam serviço para a cultura de permanência da vida; que permitem aos
humanos habitarem junto aos outros corpos que já a habitam; que instauram um
processo de co-implicação in situ; que criam formas ao existir, e que ao existirem,
vão se metamorfoseando ao longo do tempo por estarem vivas. Arquiteturas
que comprometem aqueles que ali estão, corresponsáveis por cuidar, manter,
gerir o comum; que criam, além de conexões, possibilidades de pertencimento,
manifestando um propósito e construindo identidades coletivas e individuais;
que possibilitam criar o reencantamento com os rituais cotidianos através do
afeto; que rememoram a todo tempo que habitamos um planeta com limites
e um cosmos incógnito e aparentemente ilimitado, precisando usar somente o
necessário e entendendo que a Terra não nos pertence, mas pertencemos a ela.
Os corpos criam paisagens, as paisagens criam corpos; o tempo permite esse
entrelaçamento. Como Iazana Guizzo, seguindo os passos de Lina Bo Bardi,
aponta - é preciso que a arquitetura seja como:
Uma habitação mágica que cria, fabula, transforma, entendemos que um ambiente
construído está entrelaçado aos corpos que o habitam. E esse entrelaçamento não
cumpre apenas uma função de abrigo. (...) também é uma experiência. O corpo
da edificação, o arranjo de sua materialidade e imaterialidade, também possui o
poder de afetar e ser afetado (Guizzo, 2019, p. 180).
conclusão
159
Entende-se aqui um outro modo de habitar o mundo, que não se mede por
entidades quantificáveis de pedaços fragmentados, mas sim por relações e
processos imanentes de justeza, que na imbricação com as resistências do real,
abrem passagens para fazer mover – se medindo por aquilo que é justo na
justiça; pela finitude, que é diferente da precariedade. Retomo aqui Viveiros:
Estou convicto de que é urgente, não “parar para pensar”, mas pensar para não
parar; é urgente começar a pensar bem para não parar de vez. É preciso aprender
a decrescer para não morrer. O Brasil é grande, mas o mundo é pequeno. A Terra
não vai nada bem, neste começo de século. Há hoje uma insustentabilidade aguda
dos padrões globais de geração, distribuição e consumo da energia necessária à
vida humana. Nosso país é um dos poucos que ainda têm viabilidade do ponto
de vista de sua base de recursos. O Brasil ostenta uma das populações histórica e
culturalmente mais diversificadas do mundo: 220 povos indígenas, uma imensidão
de descendentes de africanos, de imigrantes europeus e asiáticos, de árabes, de
judeus; gentes rurais e urbanas das mais diferentes origens étnicas e culturais,
habitando uma variedade de formações naturais que, por sua vez, abrigam a mais
rica biodiversidade do planeta. Sociodiversidade e biodiversidade deveriam ser
nossos principais trunfos em um mundo em acelerado processo de globalização.
Mas eis-nos aqui, ainda e sempre, teimando em serrar o galho em que estamos
sentados, com uma política de comércio exterior que vem aplicando um modelo
de desenvolvimento ambientalmente suicida, economicamente retrógrado,
socialmente empobrecedor e culturalmente alienante (Viveiros de Castro, 2011).
Buscou-se nas páginas precedentes uma métrica, um passo, um ritmo para com
o qual possamos compor juntos outros desenhos de mundos através do
envolvimento; que, ao fazer arquitetura, dançam com o tempo, os corpos, a
paisagem. As dimensões existem aqui não para aprisionar as experiências, mas
para oferecer uma delimitação de um campo que possa apoiar no entendimento
da complexidade que é cada uma das experiências e abrir a discussão para o
que podem vir a ser.
Propôs-se aqui um campo de reflexão e debate, para que em futuros encontros
possamos reinventar o desenvolvimento e autodeterminar, coletivamente, qual
a noção que designa o que buscamos: desenvolvimento, reenvolvimento, ou
simplesmente, envolvimentos.
lista de figuras
Figura 01: Antônio Bispo dos Santos, Nego Bispo. Fonte: Divulgação/CCOM, 2023.
Figura 02: Rio Berlengas, Maranhão, onde habitava Nego Bispo. Fonte: Raifran
Ferreir, 2018.
Figura 03: Ailton Krenak em Minas Gerais. Fonte:Hiromi Nagakura, 1990.
Figura 04: Ailton Krenak no dia de nossa conversa. Fonte: Florian Kopp, 2024.
Figura 05: Ailton Krenak e Peter Webb durante o encontro Brechas Urbanas.
Fonte: APeres Fotografia, 2017.
Figura 06: Até onde o mar vinha, até onde o rio ia. Fonte: Guga Ferraz, 2010.
Figura 07: Trecho do filme KRENAK. Fonte: Lucas Barreto, 2017.
Figura 08: Trecho do Rio Doce tomado pela lama. Fonte: Fred Loureiro, 2016.
Figura 09: Povo Krenak no Parque Estadual do Rio Doce. Fonte: Arquivo do
Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES).
Figura 10: A denúncia feita por Burle Marx, texto de autoria desconhecida,
Jornal do Brasil, 1984. Fonte: Exposição Lugar de Estar, 2024.
Figura 11: Destruição da fauna e da flora, a face negativa do progresso. Texto
de autoria desconhecida, A Gazeta, 1973. Fonte: Exposição Lugar de Estar, 2024.
Figura 12: Amazônia: ontem, hoje, e por pouco tempo mais. Fonte: Alex
Fisberg, 2010.
Figura 13: Encontro da Rocinha com São Conrado, no Rio de Janeiro. Fonte:
Johnny Miller, 2021.
Figura 14: Inundação decorrente das chuvas no Rio Grande do Sul. Fonte:
Matheus Piccini, 2024.
Figura 15: Deslizamento decorrente das chuvas em Petrópolis, Rio de Janeiro.
Fonte: Tomaz Silva, 2022.
Figura 16: Céu alaranjado visto em São Paulo das queimadas da Amazônia.
Fonte: André Lucas, 2020.
Figura 17: Cidade de São Paulo e o crescimento infinito. Fonte: Diogo Moreira, 2023.
Figura 18: Construção da Usina de Belo Monte. Fonte: Paulo Moreira Leite, 2015.
Figura 19: Trabalhadores na construção de Brasília. Fonte: Marcel Gautherot, 1958.
Figura 20: Poluição de Cubatão, São Paulo. Fonte: Luiz Prado, 1988.
Figura 21: Povo Yanomami. Fonte: Hiromi Nagakura, 1990.
Figura 22: Povo Yanomami, Aldeia Demini-Watoriki. Fonte: Hiromi Nagakura, 1990.
Figura 23: Aldeia Demini-Watoriki. Fonte: Hiromi Nagakura, 1990.
Figura 24: Crianças Yanomami na Aldeia Demini-Watoriki. Fonte: Hiromi
Nagakura, 1990.
Figura 25: Povo Krikati. Fonte: Hiromi Nagakura, 1990.
Figura 26: espaço cultural jardim damasceno, rio bananal-canivete, brasilândia,
são paulo
Figura 27: levanta amotara zabelê, rio una, bahia
Figura 28: cooperativa turiarte, rio arapiuns, anã, pará
Figura 29: Noêmia Mendonça. Fonte: Rafael Duckur.
Figura 30: Linha do tempo Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Produção
própria.
Figura 31: Yakuy Tupinambá. Fonte: Mirrah da Silva.
Figura 32: Linha do tempo Levanta Zabelê. Fonte: Produção própria.
Figura 33: Maria Odila. Fonte: Produção própria
Figura 34: Linha do tempo Cooperativa Turiarte. Fonte: Produção própria.
Figuras 35 e 36: Rio Bananal e Serra da Cantareira. Fonte: Victor Paris de Araújo.
Figuras 37 e 38: Yakuy e Joza Tupinambá e Lagoa do Mabaço. Fonte: Produção
própria e Neto Carriço.
Figura 39 e 40: Rio Arapiuns e Imagem de Satélite. Fonte: Produção própria e
Google Maps.
Figuras 41 a 46: Atividades de regeneração urbana com o Instituto A Cidade
Precisa de Você no Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Clayton João,
2022.
Figuras 47 a 49: 4º Festival A Cidade Precisa de Você no Espaço Cultural Jardim
Damasceno. Fonte: Victor Paris, 2022.
Figuras 50 a 52: Atividades do projeto ECOCIDADE com A Cidade Precisa de
Você e Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Victor Paris, 2022.
Figuras 53 a 55: Vivências Escola Sem Muros no Espaço Cultural Jardim
Damasceno. Fonte: Raffaela Arcuschin, 2017.
Figuras 56 a 59: Atividades com o grupo de mulheres do Espaço Cultural
Jardim Damasceno: Perifa Alimenta. Fonte: Tata Barreto, 2023.
Figuras 60 a 62: Vivências Escola Sem Muros no Espaço Cultural Jardim
Damasceno. Fonte: Raffaela Arcuschin, 2017.
Figura 63: Yakuy e Joza Tupinambá no braço de Rio da Reserva Biológica de
Una. Fonte: Produção própria, 2016
Figura 64 e 65: Yakuy e Joza Tupinambá e a Lagoa do Mabaça Sul. Fonte:
Produção própria, 2016
Figuras 66 a 68: Yakuy Tupinambá no manguezal da Reserva Biológica de Una.
Fonte: Júlia Auler, 2016
Figura 69: Yakuy Tupinambá no manguezal da Reserva Biológica de Una. Fonte:
Produção própria, 2016
Figuras 70 e 71: Construções vernaculares na Aldeia Zabelê. Fonte: Produção
própria, 2019.
Figura 72: Paisagem de dendezeiros na Aldeia Zabelê. Fonte: Produção própria,
2016.
Figuras 73 a 75: Paisagem de dendezeiros e feitura de azeite de dendê na
Aldeia Zabelê. Fonte: Mirrah da Silva, 2023
Figuras 76 a 82: Vivência Tupinambá com Floresta Cidade na Aldeia Zabelê.
Fonte: Emmanuele Araújo, 2024
Figuras 83 a 85: Rituais e modos de habitar Tupinambá. Fonte: Mirrah da Silva,
Figuras 86 a 90: Saberes e fazeres ribeirinhos. Fonte: Chema Llanos/Saúde e Alegria.
Figuras 91 a 94: Trançado de palha de Tucumã das mulheres da Cooperativa
Turiarte. Fonte: Luca Vittorio.
Figura 95 a 97: Saberes e fazeres do trançado de palha de tucumã e do
tingimento natural. Fonte: Chema Llanos.
Figuras 98 a 103: Saberes e fazeres do trançado de palha de tucumã e do
tingimento natural. Fonte: Chema Llanos.
Figuras 104 a 109: Trançado de palha de Tucumã das mulheres da Cooperativa
Turiarte. Fonte: Marcelo Oseas.
Figuras 110 a 114: Trançado de palha de Tucumã das mulheres da Cooperativa
Turiarte. Fonte: Theo.
Figuras 115 a 119: Construções do modo de habitar em Anã. Fonte: Produção
própria, 2018.
Figuras 120 e 121: Construções do modo de habitar em Urucurea e Anã.
Fonte: Produção própria, 2018.
Figuras 122 a 124: Construções do modo de habitar em Anã. Fonte: Produção
própria, 2018.
Figuras 125 a 127: Paisagem ribeirinha em Anã. Fonte: Produção própria, 2018.
Figura 128: Rio Arapiuns. Fonte: Produção própria, 2018.
Figura 129: Modo de habitar e paisagem ribeirinha. Fonte: Saúde e Alegria, 2018.
Figura 130: Passeio de barco no Rio Una. Fonte: Emmanuele Araújo, 2024.
Figura 131: Capoeira no Espaço Cultural Jardim Damasceno. Fonte: Victor
Paris, 2022.
Figuras 132 e 133: Trançados presentes na Aldeia Zabelê. Fonte: Produção
própria, 2019.
Figura 134: Rio Bananal-Canivete no entorno do Espaço Cultural. Fonte:
Produção Própria, 2017.
Figuras 135 e 136: Joza Tupinambá no manguezal durante a Vivência Tupinambá
com Floresta Cidade. Fonte: Julia Auler, 2024
Figuras 137 a 142: Corpos não humanos da Aldeia Zabelê: as cobras, os
caranguejos, o rio, a palha. Fonte: Emmanuele Araújo, 2024
Figuras 143 e 144: Construções do modo de habitar em Anã. Fonte: Produção
própria, 2018.
Figuras 145 a 147: Vivências Escola Sem Muros no Espaço Cultural Jardim
Damasceno. Fonte: Raffaela Arcuschin, 2017.
Figura 148: Cortejo do Escola Sem Muros no Espaço Cultural Jardim Damasceno.
Fonte: Pepe Guimarães, 2017.
Figuras 149 a 151: Telhado de chapéu de palha. Fonte: Produção própria, 2018.
Figuras 152 e 153: Modos de construir durante a Vivência Tupinambá com
Floresta Cidade. Fonte: Emmanuele Araújo, 2024
Figuras 154 a 159: Vivências Escola Sem Muros no Espaço Cultural Jardim
Damasceno. Fonte: Pepe Guimarães, 2017.
Figura 160: Diagrama das nebulosas de encontros. Fonte: Produção própria.
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