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O Fundamento Primário Da Lei Natural

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Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar a crítica elaborada por John Finnis em defesa do fundamento primário da lei natural contra a acusação arguida por David Hume de que este postulado padeceria de um vício originário: a falácia naturalista. Procurar-se-á mostrar que o escopo do ataque de Hume esbarra em certos limites. Frente a esta propositura, será exposta a reação de Finnis, amplamente baseada na filosofia prática de Tomás de Aquino, mas dotada de um caráter analítico exclusivo, epistemologicamente prioritário e ancorado na evidência de certos princípios.

O FUNDAMENTO PRIMÁRIO DA LEI NATURAL: A CRÍTICA DE JOHN FINNIS À DAVID HUME QUANTO AO PROBLEMA DA FALÁCIA NATURALISTA THE PRIMARY FOUNDATION OF NATURAL LAW: JOHN FINNIS' CRITIQUE OF DAVID HUME ON THE PROBLEM OF THE NATURALISTIC FALLACY Marcus Paulo Rycembel Boeira1 Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar a crítica elaborada por John Finnis em defesa do fundamento primário da lei natural contra a acusação arguida por David Hume de que este postulado padeceria de um vício originário: a falácia naturalista. Procurar-se-á mostrar que o escopo do ataque de Hume esbarra em certos limites. Frente a esta propositura, será exposta a reação de Finnis, amplamente baseada na filosofia prática de Tomás de Aquino, mas dotada de um caráter analítico exclusivo, epistemologicamente prioritário e ancorado na evidência de certos princípios. Palavras-chave: Lei natural. Falácia naturalista. Moral. Bem. Dever. Abstract: This paper aims to analyse John Finnis' critique in defence of the primary foundation of natural law against David Hume's accusation that this postulate suffers from an original vice: the naturalistic fallacy. The aim is to show that the scope of Hume's attack runs into certain limits. Faced with this proposition, Finnis' reaction will be exposed, largely based on the practical philosophy of Thomas Aquinas, but endowed with an exclusive analytical character, epistemologically prioritized and anchored in the evidence of certain principles. Keywords: Natural law. Naturalistic fallacy. Morality. Good. Duty. Introdução O problema da falácia naturalista ocupou o imaginário de inúmeros juristas ao longo dos últimos séculos. Autores que, mantendo uma compreensão distorcida acerca do que alguns jusnaturalistas entendiam por direito natural, os acusavam de deduzir valores desde fatos, como se tomassem a natureza como algo do qual seria possível extrair determinadas conclusões 1 Professor de Lógica deôntica e Filosofia do Direito na Faculdade de Direito da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Doutor e Mestre pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutor em Filosofia pela PUG (Pontificia Università Gregoriana/Roma). Líder do Grupo de Pesquisa CNPq Lógica Deôntica, Linguagem e Direito. © Revista Seara Filosófica, E-ISSN 2177-8698 Dossiê Filosofia do Direito: os fundamentos do pensamento jurídico – n. 25 | UFPel [2023] 1-22 Marcus Paulo Rycembel Boeira morais. O erro, todavia, foi diagnosticado por diversos teóricos do Direito nos últimos anos, dos quais se destaca John Finnis. Em seu Ley natural y derechos naturales, o autor pinçou o problema e o analisou cirurgicamente, constatando que aquilo que alguns representantes do positivismo jurídico contemporâneo, como Hans Kelsen, H.L.A. Hart e Joseph Raz entendem sobre direito natural, não coincide com a posição defendida por Tomás de Aquino (o principal expoente da tradição jusnaturalista). Para corroborar com essa análise, Finnis empreende esforços para compreender o que os positivistas utilizam como ponto central de acusação contra a tradição do direito natural: a falácia naturalista. De acordo com isso, os jusnaturalistas extrairiam, desde a regularidade dos fatos e dos comportamentos sociais, determinadas normas de conduta desejáveis para a manutenção da ordem social. Partindo do mundo da experiência, infeririam valores, atribuindo a certos atos humanos bens e valorações correspondentes. Do ponto de vista filosófico, o autor dessa acusação foi David Hume. Em seu Tratado da Natureza Humana, Hume traz diversos apontamentos para demonstrar a impossibilidade de se extrair valores desde fatos. A tradição positivista apoiou-se com grande afinco nesse libelo elaborado pelo filósofo inglês. E, de fato, diversas teorias do direito natural padeceram desse vício originário, o que maculou, em certa medida, boa parte dos argumentos utilizados por jusnaturalistas de diferentes matizes. Todavia, como procurou sintetizar Finnis, não se pode dizer que o maior expoente do jusnaturalismo tenha cometido tamanho deslize. Tomás de Aquino deixa claro que os preceitos da lei natural são inderivados. Ou seja, não são deduzidos de fatos. Nem tampouco de qualquer outra coisa. São inderivados e evidentes por si mesmos. O artigo, assim, terá como escopo central demonstrar de que modo Finnis reconstrói os argumentos de Tomás de Aquino para derrubar a acusação da falácia naturalista e, assim, reposicionar o direito natural dentro da filosofia contemporânea do Direito. Ao final, faremos uma breve exposição acerca do debate contemporâneo sobre a origem da lei natural, debate pertinente ao assunto e que procurará mostrar, quanto ao seu fundamento primário, duas linhas de compreensão: de um lado, a linha epistemológica de Finnis, também compartilhada por Germain Grisez, Joseph Boyle e Robert P. George; de outro, a linha ontológico-naturalista, liderada por Russel Hittinger, dentre outros. Na primeira parte, nos ocuparemos em expor a acusação de Hume, suas direções e problemas suscitados. Na segunda, procuraremos apresentar os argumentos de Finnis, não apenas os presentes no Natural Law and Natural Rights, sua principal obra, como também em outros escritos que, de forma periférica, tratam do problema suscitado, buscando tornar 2 Dossiê Filosofia do Direito: os fundamentos do pensamento jurídico, Seara Filosófica – n. 25 | UFPel [2023] 1-22 explícitas algumas incongruências presentes no ataque promovido por Hume. Por fim, vamos expor as diferenças existentes entre as duas principais correntes jusnaturalistas da atualidade, cujas teses transitam entre a razão e a natureza, ambas tomadas como fundamento originário da lei natural. 1. O argumento de David Hume sobre a falácia naturalista É muito conhecida a crítica de David Hume à chamada falácia naturalista. Em seu Tratado da Natureza Humana, Hume faz uma grave acusação àqueles que, segundo ele, incorrem no erro de deduzir o dever (ought) do ser (is), extraindo normas desde o campo dos fatos. Para uma compreensão adequada da acusação do autor, é fundamental recorrer aos fundamentos de sua tese. Parece-nos que a crítica parte de um entendimento sobre o que a razão é e o que ela pode ou não produzir. Um entendimento errôneo sobre sua estatura poderia levar a uma falsa noção acerca do que ela poderia deduzir. Segundo Hume, a razão é inerte, incapaz de incorporar sentimentos, valores, opções ou preferências morais. Diz ele que “a razão é a descoberta da verdade ou da falsidade. A verdade e a falsidade consistem no acordo e no desacordo seja quanto à relação real de ideias, seja quanto à existência e aos fatos reais. Portanto, aquilo que não for suscetível desse acordo ou desacordo será incapaz de ser verdadeiro ou falso, e nunca poderá ser objeto de nossa razão. Ora, é evidente que nossas paixões, volições e ações são incapazes de tal acordo ou desacordo, já que são fatos e realidades originais, completos em si mesmos, e não implicam nenhuma referência a outras paixões, volições e ações. É impossível, portanto, declará-las verdadeiras ou falsas, contrárias ou conformes a razão”2. Sendo próprio da razão a descoberta da verdade ou da falsidade, compete ao juízo racional assentir ou dissentir quanto à real relação entre ideias e fatos reais existentes. Às paixões, por serem realidades originárias, não postulam qualquer assentimento sobre os fatos, ainda que constatem, de forma sui generis, uma realidade completa em si mesma. No que tange a essa realidade completa e originária em si própria, não há que se inferir verdade ou falsidade, conformidade ou inconformidade ao que quer que seja. As paixões constituem-se como princípios ativos do ser humano, ao passo que a razão é inativa, aferindo apenas verdade ou falsidade de fatos e ideias. 2 HUME, David. Tratado da Natureza Humana. 2ª São Paulo: UNESP, 2009, p. 498. 3 Marcus Paulo Rycembel Boeira Hume sustenta que a razão é inerte, não ativa, incapaz de produzir ação ou afeto de qualquer natureza. Em sua teoria, não é possível afirmar que a virtude, por exemplo, é um hábito conforme a razão, pois esta, inerte, não tem capacidade ativa de definir o que é desejável e indesejável. O que ela faz, na realidade, é receber os dados das percepções – sejam impressões ou ideias – para estabelecer juízos de verdade ou falsidade. Não há qualquer vínculo originário entre a razão e a moralidade dos atos humanos, atos que, neste diapasão, teriam sua justificação na força que a moral exerce sobre as paixões, os afetos e a direção das ações. Diz Hume que “os homens são governados por seus deveres, abstendo-se de determinadas ações porque as julgam injustas (...) sendo impelidos a outras porque julgam tratar-se de uma obrigação (...). Como a moral, portanto, tem uma influência sobre as ações e os afetos, segue-se que não pode ser derivada da razão, porque a razão sozinha (...) nunca poderia ter tal influência. A moral desperta paixões, e produz ou impede ações. A razão, por si só, é inteiramente impotente quanto a esse respeito. As regras da moral, portanto, não são conclusões de nossa razão”3. Com base nesta causa justificadora, ou seja, de que a moral não é causada pela razão, mas é ela o motivo que, pela experiência corrente, influencia as paixões, os afetos e as ações, Hume alega que qualquer tese que pretenda tomar a razão como causa da moralidade dos atos humanos estará radicada em uma inferência ilícita, a saber, a de que a razão, capaz tão somente de assentir sobre a verdade ou falsidade de ideias e fatos da experiência, não poderia formular axiomas morais e deduzi-los como verdades em modelos teleológicos de ação. Veja-se o que sustenta o autor: “ninguém irá negar a legitimidade dessa inferência; e não há outra maneira de evitála, senão negando o princípio que a fundamenta. Enquanto se admitir que a razão não tem influência sobre nossas paixões ou ações, será inútil afirmar que a moralidade é descoberta apenas por uma dedução racional. Um princípio ativo nunca pode estar fundado em um princípio inativo; e se a razão é em si mesma inativa, terá de permanecer assim em todas as suas formas e aparências, quer se exerça nos assuntos naturais ou nos morais, quer se considere os poderes dos corpos externos ou as ações dos seres racionais”4. A inferência de Hume, portanto, é a de que as regras de moralidade não são conclusões da razão, pois não podem ganhar seu fundamento num princípio inativo. As paixões, volições ou ações não podem ser verdadeiras ou falsas. Não podem, dessa maneira, constituir 3 4 4 Op.Cit., p. 497. Op.Cit., p. 497. Dossiê Filosofia do Direito: os fundamentos do pensamento jurídico, Seara Filosófica – n. 25 | UFPel [2023] 1-22 conformidade ou inconformidade à razão. Não pertence à razão, portanto, dispor sobre a virtuosidade ou não de qualquer ação humana. Assim, todos os “sistemas de moralidade” estariam contaminados pelo que Hume considera ser uma mudança imperceptível e inconcebível desde o plano do é ou não é para o plano do deve ou não deve. Hume postula duas provas dentro de sua teoria: (i) os atos humanos não sacam sua qualificação de uma conformidade com a razão, tampouco qualquer reprovação acerca dos mesmos atos. A acusação contra a inferência ilícita de se deduzir afirmações morais de fatos é aqui tomada em sentido forte. Não se pode atribuir mérito ou censura a uma ação por sua conformidade ou não à razão, pois se a descoberta da veracidade ou falsidade é um ato racional, então não há como descobrir se uma ação é virtuosa ou viciosa apenas pela observação regular de sua ocorrência5. (ii) A razão, porquanto inativa, não pode efetuar imediatamente um ato humano, nem mesmo impedi-lo, ou ainda julgar per se a distinção moral entre bem e mal6. A razão não é princípio ativo, mas apenas uma parte do ser humano que descobre a verdade ou a falsidade de ideias e fatos a partir das percepções. Não pode tampouco ser fonte da distinção entre o bem e o mal7. Hume entende que o ato de distinguir o mérito ou demérito de uma ação não é uma propriedade da razão ou da irracionalidade, pois não se pode deduzir que o mérito de uma ação é racional e o demérito, irracional. Não pertence à racionalidade avaliar se uma ação é moralmente boa, pois “a razão é totalmente inativa, e nunca poderia ser a fonte de um princípio ativo como a consciência ou sentido moral”8. Frente a separação entre razão e moral, resta indagar: qual, então, o lugar da filosofia moral? Hume classifica a moral dentro do terreno da filosofia prática. E o faz por entender que “As ações não extraem seu mérito de uma conformidade com a razão, nem seu caráter censurável de uma contrariedade em relação a ela”. Op.cit., p. 498. 6 “(...) Prova a mesma verdade mais indiretamente, ao nos mostrar que, como a razão nunca pode impedir ou produzir imediatamente uma ação, contradizendo-a ou aprovando-a, tampouco pode ser a fonte da distinção entre o bem e o mal morais, os quais constatamos que têm tal influência”. Op.cit., p. 498. 7 “é impossível que a distinção entre o bem e o mal morais possa ser feita pela razão, já que essa distinção influencia nossas ações, coisa de que a razão por si só é incapaz. A razão e o juízo podem, é verdade, ser a causa mediata de uma ação, estimulando ou dirigindo uma paixão; não pretendemos afirmar, porém, que um juízo dessa espécie seja acompanhado, em sua verdade ou falsidade, de virtude ou vício. Quanto aos juízos causados por nossas ações, eles são ainda menos capazes de conferir essas qualidades morais às ações que são suas causas”. Op.cit., p. 502. 8 Op.cit., p. 498. 5 5 Marcus Paulo Rycembel Boeira a experiência assim o recomenda: a “filosofia comumente” o faz9! Quando se atenta para a divisão dos saberes, ante a dificuldade de situar a filosofia moral no horizonte da razão, Hume apoia-se na autoridade da tradição e do costume. Mas poderíamos indagar: seria possível descobrir o primeiro autor da história da filosofia na antiguidade a classificar a moral como parte da filosofia? A tomá-la como uma matéria pertencente ao conjunto das matérias filosóficas? E mais: o costume constituiria razão suficiente para classificar a moral como matéria filosófica? A confiança no argumento de autoridade da tradição filosófica, todavia, é contrastada pelo próprio autor, quando assume que “sistemas que afirmam que a virtude não passa de uma conformidade com a razão (...) concordam que a moralidade, como a verdade, é discernida por meio das ideias, de sua justaposição ou comparação (...). Para julgarmos esses sistemas, basta considerar se é possível, pela simples razão, distinguir o bem e o mal morais, ou se é preciso a concorrência de outros princípios que nos capacitem a fazer essa distinção” 10. Para Hume, todos os sistemas que atribuem à razão a função de avaliar a moralidade das ações desprezariam outros princípios concorrentes em sua definição: “se a moralidade não tivesse naturalmente nenhuma influência sobre as paixões e as ações humanas, seria inútil fazer tanto esforço para inculcá-la; e nada seria mais em vão que aquela profusão de regras e preceitos tão abundantes em todos os moralistas (...). Como a moral, portanto, tem uma influência sobre as ações e os afetos, segue-se que não pode ser derivada da razão”11. Muitos problemas filosóficos poderiam ser arguidos a partir da leitura de Hume sobre a relação entre moral e razão. Parecem existir ao menos quatro problemas claramente latentes: (i) O primeiro problema aparece porque Hume parte da falsa convicção de que “todos os sistemas morais”12 estão de acordo quanto à autoridade da razão para avaliar ações humanas “A filosofia comumente se divide em especulativa e prática. como a moral se inclui sempre nesta última divisão, supõe-se que influencie nossas paixões e ações, e vá além dos juízos calmos e impassíveis do entendimento. Isso se confirma pela experiência corrente, que nos informa que os homens são frequentemente governados por seus deveres, abstendo-se de determinadas ações porque as julgam injustas, e sendo impelidos a outras porque julgam tratar-se de uma obrigação”. Op.cit., p. 497. 10 Op.Cit., p. 497. 11 Op.Cit., p. 497. 12 “Em todo sistema de moral que até hoje encontrei, sempre notei que o autor segue durante algum tempo o modo comum de raciocinar, estabelecendo a existência de Deus, ou fazendo observações a respeito dos assuntos humanos, quando, de repente, surpreendo-me ao ver que, em vez das cópulas proposicionais usuais, como é e não é, não encontro uma só proposição que não esteja conectada a outra por um deve ou não deve. Essa mudança é imperceptível, porém da maior importância. Pois, como esse deve ou não deve expressa uma nova relação ou afirmação, esta precisaria ser notada e explicada; ao mesmo tempo, seria preciso que se desse uma razão pra algo que parece inteiramente inconcebível, ou seja, como essa nova relação pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes. Mas já que os autores não costumam usar essa precaução, tomarei a liberdade de recomendá-la aos 9 6 Dossiê Filosofia do Direito: os fundamentos do pensamento jurídico, Seara Filosófica – n. 25 | UFPel [2023] 1-22 como boas ou não, como se não existissem diferenças internas entre esses “sistemas”. Na realidade, há enormes diferenças entre os “sistemas filosóficos”. Por exemplo, entre Aristóteles e Duns Scotus existem diferenças profundas quanto a esse ponto, ainda que ambos reconheçam a importância do intelecto para avaliar ações humanas; (ii) O segundo problema está no argumento de que não existe nenhuma possível relação entre a razão e as paixões, volições e ações no que diz respeito ao princípio ativo. Ou seja, na afirmação de que a razão é sempre “inerte” frente ao ativismo das percepções. Ora, sendo a razão e as percepções componentes mentais, é mister reconhecer a indemonstrabilidade de suas respectivas naturezas. É pela evidência, portanto, que reconhecemos a razão e as “realidades originárias”. Portanto, sendo evidentes e indemonstráveis, como Hume poderia tomar como suposto de sua teoria moral a tese de que a razão é sempre “inerte”? Para tal, o autor teria de demonstrar cabalmente o motivo pelo qual a razão não participa de nenhum modo na origem do ato humano, o que não parece ocorrer. (iii) O terceiro problema reside na afirmação de que “as ações e os afetos não podem ser derivados da razão”. Disso, pergunta-se: esta afirmação é suficiente para provar que a razão é inerte, como se existisse uma barreira intransponível entre a razão e as percepções? Há, aqui, sólida convicção ou apenas uma crença, que acaba resultando em um argumento circular? (iv) Por fim, o último tipo de problema que aparece está ligado a classificação da moral no campo da filosofia prática, como se este posicionamento se justificasse pelo costume filosófico e não pela racionalidade como tal. Se assim fosse, como seria possível explicar a “percepção” do primeiro filósofo a classificar a moral nesse campo? Será que tal extração da realidade dos fatos é baseada em mera percepção dos acontecimentos humanos? Ou melhor, seriam os acontecimentos, como tais, suficientemente capazes de iluminar tão somente as percepções de modo a explicitar a elas algo que chamamos de moralidade? E mais: será que as ações a que as percepções reputam como comumente morais não exigem uma seletividade de fatos mediante um critério de distinção baseado num critério anterior, que avalie quais fatos se enquadram em determinado âmbito sensorial e quais fatos não se enquadram? Se assumirmos que certos fatos constituem um adequado âmbito classificatório (como a moral dentro da filosofia prática) isso não ocorre porque assumimos a autoridade da história da filosofia, mas sim porque a própria realidade da experiência, percebida, é também inteligida como tal, exigindo da razão uma avaliação sobre quais fatos constituem ações entendidas dentro do leitores; estou persuadido de que essa pequena atenção seria suficiente para subverter todos os sistemas correntes de moralidade, e nos faria ver que a distinção entre vício e virtude não está fundada meramente nas relações dos objetos, nem é percebida pela razão”. Op.Cit., p. 509. 7 Marcus Paulo Rycembel Boeira terreno da filosofia prática e quais fatos pertencem a outro gênero de percepções. Em suma, as percepções, para serem absorvidas pela memória e constituírem um enquadramento filosófico, exigem da razão o apontamento de uma direção de propósitos. Assim, se indagássemos Hume sobre o motivo de ter classificado a moral como algo próprio do campo da filosofia prática, sua resposta adequada deveria ser o de que comumente os filósofos assim o fazem. Mas, o que teria motivado o primeiro filósofo a decidir colocar a moral nesse campo? A resposta exigiria um fundamento anterior à mera observação. Nossa hipótese é a de que a concepção de Hume sobre o que seja a razão é precária e insuficiente para definir o escopo metodológico de sua própria teoria, já que para distinguir a razão das percepções não poderia fazê-lo por “mera percepção”. Ademais, é forçoso ter presente que nem todos os “sistemas de moral” apresentam-se como “sistemas” explicativos, pois muitos deles são amplamente baseados em valores e princípios flexíveis e abertos, o que comprometeria uma suposta sistematização por trás de sua formulação. Também, que nem todos esses supostos sistemas partem de uma demonstrabilidade da moral, o que a tornaria um campo inteiramente radicado em evidência, de forma analógica ao que ocorre no âmbito das ciências demonstrativas, como o próprio Hume aponta: “Se afirmardes que o vício e a virtude consistem em relações suscetíveis de certeza e demonstração, devereis vos limitar àquelas quatro relações que admitem tal grau de evidência; e, nesse caso, incorrereis em absurdos dos quais nunca vos conseguireis livrar. Pois como fazeis a própria essência da moralidade repousar nas relações, e como todas essas relações são aplicáveis, não apenas a objetos irracionais, mas também a objetos inanimados, segue-se que mesmo tais objetos deveriam ser suscetíveis de mérito e demérito. Semelhança, contrariedade, graus de qualidade e proporções de quantidade e número”13. Portanto, seguem-se duas conclusões notórias: primeiro, que parece admissível a crítica de Hume a tentativa de tornar a moral algo demonstrável, embora a ilação desta crítica incorra em generalizações comprometedoras; segundo, de que tais generalizações supõem que todas as teorias morais são sistemas baseados na ausência de articulação entre a razão e as paixões, ações e volições. De acordo com isso, a razão é tomada como princípio inativo, em contraste absoluto com as demais faculdades anímicas, entendidas como princípios ativos. Sendo a razão incapaz de descobrir o vício e a virtude, é por meio do “sentimento por eles ocasionados que somos capazes de estabelecer as diferenças entre os dois (...). A moralidade, portanto, é mais sentida do que julgada”14. 13 14 8 Op.Cit., p. 503. Op.Cit., p. 510. Dossiê Filosofia do Direito: os fundamentos do pensamento jurídico, Seara Filosófica – n. 25 | UFPel [2023] 1-22 2. A teoria da lei natural segundo John Finnis e a impertinência da “inferência ilícita” em relação a moral Se a inferência ilícita não pode ser também demonstrada, então qual a origem da moral? John Finnis toma de Tomás de Aquino, um autor indiscutivelmente relevante para a tradição da lei natural, os pontos centrais para mostrar que a moral não é originalmente viciada, e que guarda relação umbilical com a razão. O argumento procede de um lugar epistemicamente apodíctico e per via negationis: não existem ideias inatas nem qualquer capacidade no ser humano para inferir deveres e obrigações a partir de crenças em proposições sobre sua própria natureza (pelo menos, a compreensão empirista de natureza). Nem, tampouco, os princípios morais podem ser taxados de meros conceitos metafísicos. Resta, então, saber de onde advém a moral. Tomás de Aquino deixa claro que os fundamentos da moralidade estão ligados a certos princípios primeiros, anteriores a própria moralidade dos atos humanos: inderivados, per se nota e indemonstráveis. Estes princípios não são derivados de princípios especulativos. Nem de fatos. Nem de proposições metafísicas sobre a natureza humana, ou sobre a natureza do bem (diretamente falando) e do mal, ou mesmo sobre a função do ser humano (ergon aristotélico), nem inferidos de uma concepção teológica sobre a natureza humana ou mesmo sobre qualquer concepção de natureza. Não são derivados ou inferidos de nada. São inderivados, ainda que não sejam inatos no ser humano15. Quer Finnis com isso dizer que a objeção segundo a qual a teoria de Tomás de Aquino sobre a lei natural e, portanto, sobre a origem da moral estaria sustentada sobre uma inferência ilícita é completamente injustificada. Os princípios da lei natural são inderivados e indemonstráveis, evidentes por si mesmos. Nesse diapasão, a racionalidade prática começa experimentando a própria natureza desde dentro, sob o império das inclinações naturais próprias do ser humano. Nessa operação, não há uma compreensão da natureza desde fora, como se a razão pudesse conceber uma plêiade de juízos psicológicos, antropológicos ou metafísicos que definissem a natureza mediante conceitos de objetos do mundo. Diz Finnis que não há nenhum processo de inferência, mas “um simples ato de compreensão não inferencial que alguém capta o objeto da inclinação que experimenta em si mesmo tomando-o como uma forma geral de bem, tanto para si próprio quanto para os outros semelhantes” 16. 15 16 FINNIS, John. Ley natural y derechos naturales. II.4. 1ªed. Buenos Aires: abeledo-perrot, 2000, p. 68. Op.Cit., p. 68. 9 Marcus Paulo Rycembel Boeira Finnis sustenta que a tese da inferência ilícita é injustificada e se integra ao conjunto das objeções à racionalidade da moral construídas a partir de uma imagem distorcida do que seja a teoria tomista da lei natural17. Segundo o autor, quem formula objeções à teoria da lei natural normalmente embasa suas críticas a esta concepção partindo de três premissas distorcidas: 1º que a expressão “lei natural” pode indicar, pela literalidade, um juízo sobre a natureza, qualquer que seja seu âmbito (humano ou outro); 2º que a concepção tomista de lei natural coincide com o que os estoicos ou alguns renascentistas entendiam por lei natural; 3º que a teoria da lei natural em Tomás de Aquino está, de forma análoga, articulada com toda sua opera omnia, ou seja, com toda a ordem do Ser. Assim, esta interpretação amplíssima vislumbra a lei natural em sua conexão com os hábitos, pois a virtude humana está de acordo com a natureza humana e o vício é contra esta natureza, pelo que ser razoável implica em estar em conformidade com a natureza: “tudo o que é razoável está em conformidade com a natureza humana como tal (...). Para Tomás de Aquino, a maneira de descobrir o que é moralmente reto (virtudes) e desviado (vício) não é perguntar o que está de acordo com a natureza humana, senão o que é razoável”18. Esta última crítica é, em comparação com as duas anteriores, a mais bem elaborada. De acordo com ela, a lei natural derivaria da “virtude” dos hábitos humanos em geral. Assim, a lei natural seria a regra própria da virtude. Decerto, dizer que a lei natural é a regra da virtude não é uma afirmação errada, de acordo com Tomas de Aquino. Todavia, não se pode dizer [e este é o erro] que a lei natural seja “derivada” da virtude. Na realidade, a origem da lei natural é anterior ao próprio hábito. Tomás a trata como princípio extrínseco dos atos humanos, e a toma, a partir de seu primeiro preceito, como um ato imperativo da razão prática que toma a proposição “realizar o bem e evitar o mal” como uma regra, um dever para o agir. É notável que nas questões 93 a 96 da I-II da Suma Teológica, onde está o tratamento da lei natural e da lei humana, Tomás de Aquino em nenhum momento sustente que o dever moral seja extraído diretamente da natureza. De acordo com Finnis, o que fortalece esta proposição é o fato de que a razoabilidade é o critério de intelecção daquilo que é mais próprio 17 18 Op.Cit., p. 68. Op.Cit., p. 69. 10 Dossiê Filosofia do Direito: os fundamentos do pensamento jurídico, Seara Filosófica – n. 25 | UFPel [2023] 1-22 para o ser humano, e que a virtude é aquilo que se pode predicar da natureza da pessoa humana razoável. Diz Tomás de Aquino: “Todo ato recebe a espécie de seu objeto, pelo que toda diferença introduzida no objeto deve produzir uma diferença de espécie nos atos. Pode, todavia, acontecer que uma diferença específica de objeto determine diversidade específica de atos, referida a um princípio ativo e não a outro. Porque só o essencial pode constituir espécie, e não o acidental; e a diferença essencial do objeto, comparado a um princípio ativo, pode ser a diferença acidental com relação a outro princípio ativo; assim, conhecer a cor e o som diferem essencialmente quanto aos sentidos e acidentalmente no que diz respeito ao conhecimento intelectual. Nos atos humanos, o bem e o mal se determinam por relação à razão, pois, segundo observa Dionísio, o bem do homem consiste em ser ‘conforme à razão’, e o mal, em ser ‘contrário a ela’. Do mesmo modo, em cada realidade o bem está naquilo que é conveniente à sua forma, e o mal no que se acha fora da ordem dessa forma. É, pois, patente que as diferenças de bem e de mal no objeto se definem essencialmente por relação à razão, segundo que o objeto seja conveniente a ela; se chamam, com efeito, atos humanos ou morais os que procedem da razão. Manifestamente, o bem e o mal são diferenças específicas nos atos humanos, pois as diferenças essenciais equivalem a diferenças específicas”19. O objeto dos atos humanos, para ser moral, não deriva da natureza ou de qualquer coisa, mas contém moralidade quando vinculado à razão, predicando dela sua forma básica de bem. Finnis diz que uma das analogias que atravessa a ordem do ser é aquela compreendida entre a virtude humana e a virtude que se pode predicar das coisas da natureza, ou ainda, a adequada correspondência entre o ser humano e sua natureza razoável20. É nesse sentido que o vício é contrário a natureza. A natureza do ser humano é o lugar conclusivo: o termo e a medida de realização do ato humano. O sujeito age nos limites de sua natureza, e sua ação pode ser tomada como um movimento enquadrado em uma medida. É dentro desta medida, cujo ideal é a razoabilidade, que o agente raciocina para selecionar o meio adequado para a realização do fim pretendido. A razão prática opera partindo de certos princípios, evidentes por si mesmos. O sujeito nota por “evidência” estes princípios, diretores do agir em direção aos fins dados ao ser humano em virtude de sua natureza específica21. Se o modo habitual da razão operar supõe partir de certos princípios e dirigir-se a conclusões, procedendo do que é anteriormente conhecido para 19 TOMÁS DE AQUINO. Suma de Teologia I-II: q.18, a. 5. 1ª ed. Madrid: BAC, 1954, p. 491. FINNIS, John. Ley natural y derechos naturales. II.4. Op.Cit., p. 69. 21 TOMÁS DE AQUINO. Suma de Teologia I-II: q.94, a. 2. 1ª ed. Madrid: BAC, 1955, p. 128. Tradução livre do autor: “A ordem dos preceitos da lei natural é paralela à ordem das inclinações naturais. Com efeito, o homem, em primeiro lugar, sente uma inclinação ao bem, que é o bem de sua natureza. Essa inclinação é comum a todos os seres a que apetece a própria conservação em conformidade com a respectiva natureza. Em razão dessa tendência, pertence à lei natural todos os preceitos que contribuem a conservar a vida do homem e a evitar seus obstáculos”. 20 11 Marcus Paulo Rycembel Boeira mover-se ao que é desconhecido, então a razão prática, ao operar para um fim, deve deslocarse dos princípios práticos referidos para o termo conclusivo do ato humano, a saber, a realização do fim proposto. A correspondência entre razão prática e natureza é, aqui, notável. São, ambas, respectivas entre si. Mas qual é anterior na ordem dos atos humanos? Não resta dúvida de que Tomás estabelece a ordem dos preceitos da lei natural em atinência ao objeto das inclinações humanas [naturais]. Primeiro, a inclinação de conservar a si mesmo. Desta inclinação primária, a razão prática e a sindéresis ordenam que se preserve a própria vida e se impeça o quanto se possa todos os atos atentatórios contrários à própria condição de existência. Em segundo lugar, o ser humano tem uma inclinação aos bens particulares, conforme a natureza que possui em comum com os animais irracionais, como é o caso da procriação ou da comunicação sexual. Por fim, o ser humano tem uma inclinação ao bem próprio de sua natureza racional, inclinação que é especificamente sua, pois condiz com a tendência à verdade e ao bem, respectivamente, ao conhecimento das coisas invariáveis e dos fins da vida social22. As inclinações naturais não pertencem a lei natural enquanto tais, senão somente – e tão somente – quando reguladas pela razão. É fins aos quais a razão ordena que as inclinações primárias e secundárias adquirem caráter essencialmente humano. Quanto às inclinações superiores, a saber, a de conhecer a verdade e a de viver em sociedade, Tomás as concebe como o objeto contido no primeiro princípio da sindéresis e no primeiro movimento da vontade ao bem supremo do ser humano23. O homem razoável é aquele cuja vontade ut natura se dirige ao bem sob o comando da razão. A inteligência, auxiliada pela imaginação, pela memória, pela sindéresis e pela consciência conduzirá o homem à excelência em sua atividade virtuosa, conformando-o ao fim correspondente. Portanto, para Finnis os princípios primeiros da razão prática são inderivados e não possuem nenhuma conexão com a natureza humana no sentido empregado pelos apologistas da falácia naturalista, mas aos bens humanos como tais. A esse respeito, aponta em seu Direito Natural em Tomás de Aquino, que o Aquinate “considera cada um dos primeiros princípios práticos como auto-evidentes (per se notum: conhecido por si mesmo) e não dedutíveis (primum e indemonstrabile). Ele O uso da oração “...appetit conservationem sui esse secundum suam naturam” em nada se assemelha à natureza de acordo com a visão naturalista do empirismo, nem tampouco com a concepção estoica de lei natural. Não é, tampouco, algo correlato à metafísica. É, sim, um atributo da própria realidade do ser humano como tal, naquilo que o diferencia dos demais animais e que o constitui como animal racional. 23 RAMÍREZ, Santiago. Comentários à Suma de Teologia I-II: q.94, a. 2. 1ª ed. Madrid: BAC, 1955, p. 115. 22 12 Dossiê Filosofia do Direito: os fundamentos do pensamento jurídico, Seara Filosófica – n. 25 | UFPel [2023] 1-22 não pensa, entretanto, que eles sejam ‘intuições’ sem conteúdo; mesmo os primeiros princípios indemonstráveis em todo o campo do conhecimento humano são conhecidos apenas pelo insight (intellectus) dos dados da experiência (aqui, de causalidade e inclinação)”24. Portanto, o que a razão faz é operar de modo a abstrair e, a partir disso, inteligir os dados da experiência humana correspondentes à causalidade das ações e inclinações. Sendo a natureza “conhecida pelas capacidades, as capacidades pelos atos e os atos por seus objetos”, os bens básicos a que se refere Finnis condizem com o fim próprio e adequado para as operações naturais que aperfeiçoam o ser humano como tal. Os bens básicos, identificados pelos primeiros princípios da razão prática, conduzem ao florescimento e delimitam os contornos em que a razoabilidade se realiza. As capacidades, por sua vez, são atualizadas, abrindo ao intelecto a oportunidade de captar o objeto específico de cada uma delas em particular. Em Fundamentos de Ética, Finnis esmiúça de forma analítica o problema da capacidade. Analisando o esforço de Aristóteles por descobrir a forma de vida humana que é verdadeira e sumamente boa, desejável e preferível, Finnis afirma que “potencialidades ou capacidades são compreendidas quando se compreendem os seus atos (atualizações) correspondentes; e atos ou atualizações devem ser, por sua vez, compreendidos por meio do entendimento dos seus objetos. Ocorre que os principais objetos da vida humana (i.e., das nossas capacidades e atividades) são precisamente o enfoque de interesse da razão prática, i.e., do nosso pensamento sobre o que fazer e o que ser. Elas representam a matéria própria daquela disciplina que Aristóteles denominou Ética, um questionamento que alguém busca desenvolver e, se desenvolvido plenamente, não apenas para se descobrir algo sobre determinado assunto (o bem humano, i.e., as formas do florescimento humano), mas para promover e participar daqueles objet(iv)os, daquelas formas de florescimento humano, como todo o seu ser, com todas as suas escolhas e disposições” 25. 24 FINNIS, John. Direito Natural em Tomás de Aquino. 1ª ed. Porto Alegre: Sergio Fabris editor, 2007, p. 35. FINNIS, John. Fundamentos de Ética. 1ª ed. São Paulo: Elsevier, 2012, p. 20. Mais adiante, em nota explicativa sobre o ponto supracitado, FINNIS explicita de modo mais completo o ponto em questão, dizendo que “nós compreendemos atos por meio da compreensão dos seus objetos e as capacidades por meio da compreensão dos seus atos (das suas realizações)...Esse princípio, afirmado em De Anima II, 4: 415ª17-23, é obscurecido por Aristóteles em I, 1: 402b15. Ele é vigorosamente expressado e ampliado (em conformidade com as intenções de Aristóteles) por Tomás de Aquino nos seus comentários: ‘ut per objecta cognoscamus actus, et per actus potentias, et per potentias essentiam animae’. Ao conhecer as potencialidades de um ser, você conhece a sua essência ou natureza; mas você conhece essas capacidades ao conhecer as suas atualizações e conhece ou entende essas atualizações ao entender quais objetos (em Latim objecta, em grego antikeimena) são, desse modo, atingidos – i.e., conhecidos, se for a questão envolvida no ato de conhecer; realizado, se for a questão envolvida em querer, agir ou fazer. Tomás de Aquino emprega e usa esse princípio nos seus escritos mais jovens até os mais tardios. Objectum pode referir-se a vários tipos de coisas: qualquer coisa que pode se apresentar no lugar de um objeto direto, após um verbo finito e transitivo pode ser chamado de objeto (...). O objeto da vontade humana são bens que se conformam ao ‘bem’ (...). De acordo com Tomás de Aquino, o objeto da vontade é ‘bonum et finis in communi’ (ST I, q. 82, a.4c), ‘bonum apprehensum (De Ver. 22, 9 ad 6), ‘bonum intellectum’ (ST I, q. 21, a. 1 ad 2), ‘bonum secundum rationem’ (ST I, q.59, a. 4c) – o que eu chamo de formas gerais do bem, as quais são determinadas pelas caracterizações da desejabilidade. Tomás de Aquino apresenta um inventário básico dessas caracterizações em ST I-II, q. 10, a. 1c, onde ele menciona ‘verdade e vida, etc’, tendo destacado que essas ‘comprehenduntur sub objecto voluntatis, sicut quaedam particularia bona’, já que ‘homo naturaliter vult non solum objectum voluntatis, sed etiam alia quae conveniunt aliis potentiis”. 25 13 Marcus Paulo Rycembel Boeira É na atualidade, portanto, que reside a justificação para as capacidades humanas, o motivo que torna o objeto das inclinações inteligível pela conformação entre o fim e a potencialidade. O entendimento prático sobre as capacidades pressupõe um conhecimento sobre a atualidade de cada uma delas e, portanto, sobre o objeto próprio de cada inclinação natural26. Não se pode dizer, assim, que a teoria da lei natural em Tomás de Aquino esteja sustentada em falácia naturalista, já que sendo a lei natural composta de muitos preceitos análogos aos primeiros princípios da razão prática, se conclui ser ela lei da razão própria e adequadamente. Portanto, não derivada de coisa alguma. Não inferida de fatos. Mas uma participação da lei eterna na criatura racional. E captada pelo intelecto de modo evidente. No sentido de responder à acusação de que a teoria moral de Tomás estivesse ancorada em uma inferência ilícita, uma corrente de matriz tomista, oposta à tese de Finnis, apoia-se na convicção de que em Tomás existe sim essa inferência, mas que de maneira alguma ela poderia ser assumida como falaciosa, pois a lei derivaria das inclinações e, neste sentido, a natureza antecederia a própria razão na ordenação do agir. Finnis rejeita esta posição, afastando-se dos que subordinam a lei natural às inclinações. Coloca-se em outra linha, a mesma partilhada por M. Rhonheimer27, G. Grisez e J. Boyle, no sentido de que Tomás jamais teria postulado qualquer dedução ou inferência desde a natureza (pelo menos, da natureza segundo a compreensão empirista). Para tanto, desafiam os teóricos da corrente pró-naturalista a demonstrar que o Aquinate tenha feito essa dedução ou inferência28. No prólogo ao Comentário à Ética de Aristóteles, Tomás de Aquino afirma ser o conhecimento das coisas da natureza (aquelas que são o que são independentemente de nosso pensamento) distinto do conhecimento lógico e do conhecimento prático, onde reside a filosofia moral. A diferença entre as ordens de conhecimento corresponde à distinção efetiva entre o conhecimento que se dirige à natureza e o conhecimento que se destina à ação humana29. Mesmo se tomássemos a “naturalidade das inclinações” como a base epistemológica dos bens básicos incorreríamos em outro engano fundamental. Para Tomás, o ato humano é também produto da vontade. A vontade e a razão convergem para a formulação do ato pelo qual o ser humano realiza o objeto de sua inclinação. Contudo, não se pode entender vontade aqui Op.Cit., p. 37: “o ser de uma consideração adequada da natureza humana depende da captação prévia dos deveres dos primeiros e bem-identificados princípios da razão prática, mesmo que essa captação prévia fosse possível por aquele entendimento parcial da natureza humana que vem com um entendimento de determinadas linhas de causalidade e possibilidade”. E arrebata dizendo que “defender a prioridade epistemológica dos objetos inteligíveis da vontade nas explanações da razão prática não envolve negação alguma da prioridade metafísica dos fatos naturalmente dados sobre a constituição humana”. 27 RHONHEIMER, Martin. Ley natural y razón prática. 1ª ed. Pamplona: EUNSA, 2000. 28 FINNIS, John. Direito Natural em Tomás de Aquino. Op.Cit., p. 35. 29 Op.Cit., p. 36. 26 14 Dossiê Filosofia do Direito: os fundamentos do pensamento jurídico, Seara Filosófica – n. 25 | UFPel [2023] 1-22 com a mesma base semântica empregada por teorias iluministas. Para o autor, a vontade é racional: a “vontade é uma resposta inteligente a um bem inteligível”. Por isso, a vontade está “na” razão (voluntas in ratione). As atividades do ser humano são naturais e não naturalistas no sentido empregado pelos acusadores da falácia, quando baseadas na vontade dirigida pela razão. O objeto adequado das inclinações condiz com as ações do ser humano inteligente e razoável, com plena consciência de seu estado existencial. A razão prática intelige o objeto de cada uma das inclinações como o que é devido a si mesmo em razão da atualidade de suas capacidades naturais. O bem devido a cada uma é o fim correspondente a cada nível de realização das potencialidades humanas, a bondade de cada objeto específico dessas inclinações . Por ser bom, é desejável. E é desejável não por ser inferido de fatos, mas porque é bom para o ser humano, para seu aperfeiçoamento e para a sua atualidade30. O que Tomás de Aquino entende por “inclinações” em nada condiz com naturalismo nos termos empregados pelos empiristas. Os princípios per se nota e pré-morais da razão que fundamentam a moralidade não são deduzidos das inclinações naturais como tais, mas do objeto adequado a cada inclinação, ou seja, da medida de atualidade de cada uma. Condizem com os bens básicos devidos ao ser humano em razão de suas capacidades. E, por serem indemonstráveis, não são inferidos de nada. Vemos, aqui, a impertinência da afirmação de Hume relativamente ao entendimento de Tomás de Aquino acerca da lei natural. De acordo com Hume, uma observação descritiva e não avaliativa do real não permitiria aceitar a extração do dever desde o ser. Assim, a virtude e o vício não podem ser observados por experiência. Finnis levanta duas interpretações plausíveis sobre este ponto. Primeiramente, a interpretação de que Hume estaria anunciando a verdade lógica de que nenhum conjunto de premissas não-morais (ou, de um modo geral, não valorativas) pode ser base para uma conclusão moral (ou valorativa). E, em segundo lugar, de que Hume estaria atacando os racionalistas do seu tempo (contexto histórico-cultural), especialmente a Samuel Clarke, com a tese central de que “a percepção racional das qualidades morais das ações não poderia proporcionar por si mesma uma orientação que mova à ação”31. É importante ter presente que o ataque realizado por Hume ao que considerou ser a falácia naturalista dos sistemas morais, tinha como endereço o pensamento racionalista predominante em seu tempo, ao que Finnis não se opõe. Antes pelo contrário. Concorda com Op.Cit., p. 38: “uma inclinação desse tipo é relevante na razão prática, porque seu objeto é desejável, e desejável porque contribui ao florescimento de qualquer um”. E termina: “dizer isto não é o mesmo que dizer que nossas inclinações naturais àquilo que contribui parra o nosso florescimento são mero acidente”. 31 FINNIS, John. Ley natural y derechos naturales. II.4. Op.Cit., p. 70. 30 15 Marcus Paulo Rycembel Boeira Hume quanto ao enunciado lógico e ao ataque aos racionalistas de sua época. Todavia, objeta a “derivação” realizada pelo autor de que o enunciado lógico aludido “não autoriza, de nenhuma maneira, a conclusão de Hume segundo a qual as distinções entre ‘vício’ e ‘virtude’ não são ‘percebidas pela razão’”32. 3. O debate “interno” sobre o fundamento primário da lei natural: razão e natureza É conhecido no mundo anglo-saxônico o recente debate entre juristas adeptos da tradição jusnaturalista quanto ao fundamento primário da lei natural. Muito se discutiu ao longo dos tempos sobre o âmbito interno do “direito natural”. É bastante significativa a indagação acerca da origem par excellence da lei natural. O debate gira em torno de duas posições predominantes: de um lado, os adeptos da tese de que a lei natural é uma lei da razão prática, de modo que seu fundamento mais radical é epistemológico – secundum rationem. De outro, aqueles que sustentam ser a lei natural uma lei correspondente direta e propriamente à ordem das inclinações naturais dos seres humanos – secundum naturam. A noção de que a lei natural seja conectada à natureza não é negada por nenhum dos dois lados. Mesmo os que sustentam a precedência da razão sobre a natureza, assumem que as inclinações são indispensáveis para a lei. A ordem teleológica está de fato presente na configuração da lei natural, e possui direta atinência com a “medida” de realização das inclinações. Mas é necessário distinguir a inclinação como tal e a sua medida. A diferença entre o que mede e o que é medido é aqui fundamental. Se a inclinação é a paciente que é medida, quem produz a medida e, assim, a sua justa ordenação não é a própria natureza, mas aquilo que proporciona a ela uma ordenação. Finnis, Grisez, Boyle e Massini Correas, para citar apenas alguns defensores da precedência epistemológica na definição de lei natural, sustentam que a razão [e não a natureza pura e simplesmente] é o que mede, ordenando a realização da inclinação segundo o seu fim correspondente. E esta posição parece estar em maior sintonia com Tomás, conforme se pode atestar em diversas passagens de sua opera omnia. Na questão 90 da I-II S. Theol., Tomás responde claramente que “A lei é uma espécie de regra e medida dos atos, por cuja virtude é alguém induzido a obrar ou apartar-se da operação. Lei, com efeito, procede de ‘ligar’, posto que obriga a obrar. Agora bem, a regra e medida dos atos humanos é a razão, a qual, como se deduz do que já foi dito, constitui o primeiro princípio desses mesmos atos, pois 32 Op.Cit., p. 70. 16 Dossiê Filosofia do Direito: os fundamentos do pensamento jurídico, Seara Filosófica – n. 25 | UFPel [2023] 1-22 que a ela compete ordenar as coisas aos seus fins, fins que constituem primeiro princípio de operação, segundo o Filósofo. Mas, em gênero de coisas, o que é primeiro princípio é também regra de medida, como a unidade entre os números e o movimento primeiro entre os movimentos. Do que se deduz que a lei é algo próprio da razão”33. Grifos nossos. Autores como R. Hittinger, McInerny, Simpson, Schütz, Porter, dentre outros, sustentam que a lei natural, antes de qualquer coisa, deve considerar fundamental o pressuposto de que há uma ordem de inclinações impressa na natureza humana e que esta ordem condiciona o agir humano a certos fins, ou seja, que os seres humanos são ordenados à conformidade com a hierarquia das inclinações que lhes são naturalmente próprias- secundum naturam. Cada uma das posições visa: (i) assumir-se como verdadeira com base no magistério da Igreja e na filosofia grega; (ii) assumir-se como autêntica interpretação da teoria de Tomas de Aquino sobre a lei natural. Enquanto a primeira pretende unificar a ética e a metafísica a partir de um significado focal na relação entre os transcendentais e a gnosiologia, a segunda linha aduz ser a natureza, particularmente a natureza humana, o campo de intersecção necessário para a unidade entre os bens humanos e a lei da razão, perseguindo o caminho de uma antropologia de matriz teológico-naturalista. Ana Gonzáles, em seu Moral, Razón y Naturaleza diz que a ética antiga pivota em torno da natureza- e com ela, da virtude e da felicidade-, ao passo que a ética moderna gira em torno da dignidade e da liberdade- e, a partir de então, do dever e da justiça. Com base na obra de Chang-Suk-Shin34, a autora apresenta duas tradições que pretendem dar conta da realidade humana: a doutrina cristã da criação continuada pelos Padres da Igreja, em que o conceito de imago é utilizado para ressaltar a peculiaridade do ser humano em meio as demais criaturas quanto ao conceito de liberdade, e a noção aristotélica de ergon, cuja justificativa está em que o ser humano é concebido pelos fins para os quais se determina em virtude de sua natureza. Cita tanto o Padre Damasceno, para quem o ser humano é um ser inteligente, livre e senhor de seus atos, como o próprio Tomás, evocando a sequência da Suma de Teologia para dizer nela Deus é o primeiro a ser apresentado e, na sequência, já na segunda parte (I-II: prima secundae), o ser humano, sua imagem35. Para Gonzáles, todo o discurso moral se enquadra no seguinte marco: razão e liberdade, princípios do agir humano. O ser humano é senhor de seus atos e tem o domínio de suas ações; é o princípio delas: ad imaginem Dei. O ato de ser do humano é imago Dei. É a máxima 33 TOMÁS DE AQUINO. Suma de Teologia I-II: q.90, a. 1. 1ª ed. Madrid: BAC, 1955, p. 35. Tradução livre do autor. 34 CHANG-SUK-SHIN. Imago Dei und Natura Hominis. Obra citada por Ana Marta Gonzáles. 35 GONZÁLES, Ana Marta. Moral, Razón y Naturaleza. 1ª ed. Pamplona: EUNSA, p. 38 e seguintes. 17 Marcus Paulo Rycembel Boeira expressão do actus essendi de sua natureza. É no próprio ser humano existente (não no conceito de ser humano) que habita a imagem de Deus. A pessoa humana tem a possibilidade real de exercer a atividade que lhe é própria (atividade livre) e, assim, assemelhar-se ao seu criador. Argui que em Tomás não se há de buscar uma justificativa teleológica externa, mas na própria natureza humana o fundamento da ação moral. Sendo a natureza racional, o caráter de imagem se há de buscar na própria condição racional de sua natureza ou, mais propriamente, na sua atividade característica: racional e livre. A imagem só pode ser achada na alma36. Apesar das sugestões da autora quanto a noção de imago para a reflexão da alma racional, a pergunta persiste: na obra de Tomás e no magistério da lei natural em geral, qual é o critério primário fundamental da moral? A razão ou a natureza? Que tanto uma quanto a outra sejam importantes para a moral em Tomás parece não existir dúvida. Mas, o questionamento gira em torno do problema de se saber qual é àquela que é a mais fundamental, a propriedade primária da lei natural, por assim dizer. A corrente “epistemológica”, encabeçada por Grisez, Finnis e Boyle, rechaça a noção do “ergon” aristotélico37, de que o ser humano teria uma função a desempenhar na ordem natural. O descarte dessa noção implica que a lei natural não é uma lei que ordena o agir humano segundo um determinismo cósmico nem tampouco dirige um comportamento em conformidade com a natureza. O óbice apresentado por Hittinger e outros, de que a natureza é primária à razão, está em atestar que a tônica da análise sobre a lei natural consiste em sua correspondência ontológica com a realidade. Este posicionamento impõe pressupor como o mais fundamental a ordem das inclinações naturais que condicionam o ser humano para determinados fins. Assim, não a razão, mas a natureza seria o princípio-fim das operações da lei natural. Hittinger entende que a ordem da mente humana é inseparável da ordem in natura e da ordem da mente divina38. Em Natural Law and Virtue: Theories at Cross Purposes, afirma: “(...) for the reason of the demise of the order teleological view of nature that permitted theorists like Aquinas to interrelate the analogous meanings of law and nature around the theme of natural inclinations. These inclinations, on Aquinas view, are the soil for both virtues and the first precepts of the natural law. The reason of law as well as the cultivation of the habits take their bearing from a pre-given teleological order. ‘Nature’ designates not only the quiddities of things – the formal cause that which 36 Op.Cit., p. 38 e seguintes. Sobre a noção do ergon para Aristóteles, sugerimos LAWRENCE, Gavin. O bem humano e a função humana, in Aristóteles - Ética a Nicomaco, Richard Kraut e outros colaboradores. 1ª ed. Porto Alegre: artmed editora, 2009, p. 42 e seguintes. 38 Para melhor aprofundamento na tese do autor, sugerimos ver HITTINGER, Russell. The First Grace: Rediscovering the Natural Law in a Post-Christian World. 1ª ed. Wilmington, Delaware: ISI Books, 2003, p. 50 e seguintes. 37 18 Dossiê Filosofia do Direito: os fundamentos do pensamento jurídico, Seara Filosófica – n. 25 | UFPel [2023] 1-22 makes a thing what it is – but more importantly the finality governing completions. Right reason, on the traditional teleological view of natural law, cannot mean simply judgement in accord with natural values, but judgement in accord with what completes these values. While the older teleological theories permitted natural law analysis to play both roles – to explicate the goods embedded in human actions as well as their completions – the modern rejection of teleological thinking guarantees that a natural law doctrine of recta ratio must restrict itself to discourse about natural goods or values. Il will prove very difficult to include the virtues in this discourse” 39. Hittinger defende que o ser humano é ordenado para fins dados pela ordem natural criada por Deus e que olvidar esse ponto seria como reduzir o âmbito próprio da lei natural aos bens e valores, rechaçando aquilo que completaria esse âmbito, a saber, a ordem da natureza. Evoca, em nota de rodapé à citação acima, passagens da Suma de Teologia, especificamente a questão 27, a. 3, ad.4, questão 63, a. 1, questão 51, a.1, além da própria questão 94, a. 2, para que dizer que Tomás de Aquino estabelece uma analogia entre law e virtue – principia juris communis e seminalia virtutum40. Todavia, verificando a resposta de Tomás oferecida no artigo 2 da questão 94 citada, podemos ler o seguinte: “A ordem dos preceitos da lei natural é paralela à ordem das inclinações naturais – ‘secundum igitur ordinem inclinationum naturalium, est ordo praeceptorum legis naturae. Inest enim primo inclinatio homini ad bonum secundum naturam in qua communicat cum omnibus substantiis: prout scilicet quae libet substantia appetit conservationem sui esse secundum suam naturam’”41. Ou seja, a ordem dos preceitos é paralela à ordem teleológica correspondente as inclinações naturais. Poderíamos supor, assim, que a lei é própria da razão, mas ordena o ser humano para determinados fins em virtude da natureza. Ainda assim, a pergunta persiste: o fundamento primário é a razão ou a natureza? No início da resposta, Tomás assevera que os preceitos da lei natural são, relativamente à razão prática42, o mesmo que os primeiros princípios das demonstrações o são quanto à razão especulativa: uns e outros são princípios evidentes por si mesmos. Logo adiante, aponta que uma coisa pode ser evidente de duas maneiras: considerada em si ou considerada em relação a nós. O primeiro caso ocorre quando, numa proposição, o 39 HITTINGER, Russell. Natural Law and Virtue: Theories at Cross Purposes, in Natural Law Theory: contemporary essays, org. Robert P. George. 1ª ed. Oxford: Clarendon Press, 2007, p. 43. 40 Op.Cit., p. 65. 41 TOMÁS DE AQUINO. Suma de Teologia I-II: q.94, a. 2. Op.Cit., p. 128 e 129. 42 “Convém sublinhar o caráter fundamentalmente racional do sistema tomista. A moral está regida pela razão prática e aperfeiçoada pelas virtudes infusas e adquiridas. A referência a razão constitui o critério principal do juízo moral”. PINCKAERS, Servais. Las Fuentes de la Moral Cristiana: su método, su contenido, su historia. 3ª ed. Pamplona: EUNSA, 2007, p. 286. 19 Marcus Paulo Rycembel Boeira predicado de algo pertence a sua essência. O segundo, quando algo não é evidente para todas as pessoas, mas unicamente para os sábios, que entendem a significação dos termos empregados em uma proposição. Nesse sentido, diz que entre as coisas que despontam como objeto do conhecimento humano sucede algo evidente para aqueles que estão habituados ao ato de intelecção. Pontua que, sendo o ente aquilo que é o mais evidente para o intelecto, o bem é o que primeiro apreende a razão prática, ordenada a uma determinada operação, posto que todo agente obra tendo em vista um fim, que tem natureza de bem. E, sendo o bem aquilo a que todos apetece, é isso o primeiro princípio da razão prática, ou melhor, a forma mesma do bem. E, por analogia, será o primeiro preceito da lei natural: “hoc est ergo primum praeceptum legis, quod bonum est faciendum et prosequendum, et malum vitandum”. Ao final, Tomás aduz que “Todos os demais preceitos da lei natural se fundam neste, de sorte que todas as coisas que devam fazer-se ou evitar-se, terão caráter de preceitos da lei natural enquanto a razão prática os julgue naturalmente como bens humanos (...). Posto que o bem tem natureza de fim (...), todas as coisas para as quais o homem sente inclinação natural são apreendidas naturalmente pela inteligência como boas (...). Há no homem uma inclinação ao bem correspondente a sua natureza racional, inclinação que é especificamente sua; e assim o homem tem tendência natural a conhecer as verdades divinas e a viver em sociedade – sicut homo habet naturalem inclinationem ad hoc quod veritatem cognoscat de Deo, et ad hoc quod in societate vivat” 43. A ordem das inclinações naturais é peça-chave para o desenlace dos bens humanos. Todavia, os bens humanos precisam ser apreendidos como evidentes pelo intelecto. E evidência é aquilo que não requer demonstração, nem no primeiro caso (quando é evidente para todos), tampouco no segundo (quando é evidente para os sábios). Parece claro que a razão prática é mais fundamental para os preceitos da lei natural, pois cabe a ela julgar os preceitos, como destacado na citação, como bens humanos a serem perseguidos, ainda que apetecíveis em virtude da natureza de bem. Tanto é que na solução à primeira objeção apresentada no a. 1 da questão 90, quando cita a passagem de São Paulo “Sinto outra lei em meus membros”, Tomás arremata: “Como nada que pertença a razão existe nos membros, porque a razão não usa de órgão corporal, segue-se que a lei não pertence a razão, sendo a lei regra e medida, de duas maneiras pode se achar em um sujeito. Primeiro, como princípio ativo que regula e mede; e, como o medir e regular pertence à razão, segue-se que a lei pertence somente a razão. Segundo, como princípio passivo que é regulado e medido; e, assim, a lei está em todas as coisas que se dirigem à um fim em virtude de uma lei, de sorte que toda inclinação nascida desta lei pode chamar-se lei também, não por essência, senão por participação. E, assim, a mesma tendência dos membros à concupiscência se chama ‘lei dos membros’”44. 43 44 TOMÁS DE AQUINO. Suma de Teologia I-II: q.94, a. 2. Op.Cit., p. 128 a 130. TOMÁS DE AQUINO. Suma de Teologia I-II: q.90, a. 1. Op.Cit., p. 36. 20 Dossiê Filosofia do Direito: os fundamentos do pensamento jurídico, Seara Filosófica – n. 25 | UFPel [2023] 1-22 É notável que chamar de lei as inclinações só é, na perspectiva tomista, algo aceitável por participação- ita quod quaelibet inclinatio proveniens ex aliqua lege, potest dici lex, non essentialiter, sed quase participative45, e não por essência. Portanto, o gênero específico da lei natural é o de ser ato de império da razão, e não da natureza, que o é por participação à razão. E completa na solução seguinte, dizendo que as “proposições universais da razão prática em ordem à operação tem razão de lei”46. Nessa mesma direção, Massini-Correas argumenta que “a lei natural-considerando-a agora enquanto ordem de imposição aos homens- é em primeiro lugar uma proposição universal prática da razão humana que, em virtude de haver sido formulada a partir do conhecimento da natureza do homem e das coisas, recebe casualmente o adjetivo de natural (...). A normatividade ou deonticidade da lei natural não se deriva imediatamente da natureza, que é o sinal que permite conhecêla, senão própria e principalmente da normatividade ou deonticidade da lei eterna, que se conhece- sempre imperfeitamente – através ou pela mediação dessa natureza (...). A normatividade da natureza não é, portanto, imediata e intrínseca, senão mediata e metafisicamente transcendente; não é o conhecimento da natureza o que determina a deonticidade das leis normativas naturais, senão que esta provém da realidade transcendente a que essa natureza remete; não há, definitivamente, uma inferência que a partir do mero conhecimento da natureza nua conclua indevidamente em proposições normativas para o homem, senão que essa natureza opera aqui como o sinal visível de uma norma invisível, como a mediação pela qual a lei eterna se participa como lei natural na razão humana”47. Conclusão A crítica de Hume à suposta falácia naturalista dos sistemas morais da antiguidade não atinge a moral tomista. Para Finnis, a justificativa crucial dessa afirmação está no fato de que a lei natural para Tomás é uma lei da razão prática, cujos preceitos, análogos aos primeiros princípios da recta ratio agibilium, são evidentes e indemonstráveis. Vimos, ainda, que a tese sustentada por Finnis, igualmente assentida por Grisez, Boyle e Massini, dentre outros, toma a razão como princípio primário e mais fundamental da lei natural, em contraste com a tese proinclinatio assumida por Hittinger e outros autores. 45 Op.Cit., p. 36. Op.Cit., p. 37. 47 MASSINI-CORREAS, Carlos I. El Derecho Natural y sus dimensiones actuales. 1ª ed. Buenos Aires: Depalma, 1998, p. 58 e 59. 46 21 Marcus Paulo Rycembel Boeira Referências Bibliográficas FINNIS, John. Ley natural y derechos naturales. 1ªed. Buenos Aires: abeledo-perrot, 2000. _________. Direito Natural em Tomás de Aquino. 1ª ed. Porto Alegre: Sergio Fabris editor, 2007. _________. Fundamentos de Ética. 1ª ed. São Paulo: Elsevier, 2012. GONZÁLES, Ana Marta. Moral, Razón y Naturaleza. 1ª ed. Pamplona: EUNSA. HITTINGER, Russell. The First Grace: Rediscovering the Natural Law in a Post-Christian World. 1ª ed. Wilmington, Delaware: ISI Books, 2003. 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