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EDUCAÇÃO E ABORDAGENS

2023

https://doi.org/10.29327/5200550

Esta obra é uma produção independente. A exatidão das informações, opiniões e conceitos emitidos, bem como da procedência das tabelas, quadros, mapas e fotografias é de exclusiva responsabilidade do(s) autor(es).

MANUEL ALVES DE SOUSA JUNIOR TAUà LIMA VERDAN RANGEL (O������������) EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS: INTERDISCIPLINARIDADES EM DIÁLOGO 2023 © Dos Organizadores - 2023 Editoração e capa: Schreiben Imagem da capa: Menelaw Sete Revisão: os autores Revisão técnica: Manuel Alves de Sousa Junior Conselho Editorial (Editora Schreiben): Dr. Adelar Heinsfeld (UPF) Dr. Airton Spies (EPAGRI) Dra. Ana Carolina Martins da Silva (UERGS) Dr. Deivid Alex dos Santos (UEL) Dr. Douglas Orestes Franzen (UCEFF) Dr. Eduardo Ramón Palermo López (MPR - Uruguai) Dra. Geuciane Felipe Guerim Fernandes (UENP) Dra. Ivânia Campigotto Aquino (UPF) Dr. João Carlos Tedesco (UPF) Dr. José Antonio Ribeiro de Moura (FEEVALE) Dr. José Raimundo Rodrigues (UFES) Dr. Klebson Souza Santos (UEFS) Dr. Leandro Hahn (UNIARP) Dr. Leandro Mayer (SED-SC) Dra. Marcela Mary José da Silva (UFRB) Dra. Marciane Kessler (UFPel) Dr. Marcos Pereira dos Santos (FAQ) Dra. Natércia de Andrade Lopes Neta (UNEAL) Dr. Odair Neitzel (UFFS) Dr. Valdenildo dos Santos (UFMS) Dr. Wanilton Dudek (UNIUV) Esta obra é uma produção independente. A exatidão das informações, opiniões e conceitos emitidos, bem como da procedência das tabelas, quadros, mapas e fotografias é de exclusiva responsabilidade do(s) autor(es). Editora Schreiben Linha Cordilheira - SC-163 89896-000 Itapiranga/SC Tel: (49) 3678 7254 [email protected] www.editoraschreiben.com Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) E24 Educação e abordagens étnico-raciais: interdisciplinaridades em diálogo. / Organizadores: Manuel Alves de Sousa Junior, Tauã Lima Verdan Rangel. – Itapiranga : Schreiben, 2023. 231 p. : il. ; e-book E-book no formato PDF. EISBN: 978-65-5440-093-0 DOI: 10.29327/5200550 1. Educação. 2. Educação - antirracismo. 3. Educação - quilombolas. I. Título. II. Sousa Junior, Manuel Alves de. III. Rangel, Tauã Lima Verdan. CDU 37 Bibliotecária responsável Kátia Rosi Possobon CRB10/1782 SUMÁRIO MENELAW SETE, O PICASSO BRASILEIRO!..........................................6 Jacy Ramos Manuel Alves de Sousa Junior PREFÁCIO...................................................................................................9 Anselma Garcia de Sales APRESENTAÇÃO..................................................................................... 11 Manuel Alves de Sousa Junior Tauã Lima Verdan Rangel PROJETO EU SOU ASSIM: “ESSA É A COR DA MINHA PELE”...........15 Almerinda Cristina Oliveira de Souza Sobral DA EDUCAÇÃO EUROCÊNTRICA À EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: UMA INTRODUÇÃO................................................................................23 Maurício Silva RELAÇÕES ÉTNICO- RACIAIS NA ESCOLA: A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO CONTINUADA SOBRE A AÇÃO PEDAGÓGICA, SOCIAL EPOLÍTICA DOS PROFESSORES DA EDUCAÇÃO BÁSICA.................33 Nilvaci Leite de Magalhães Moreira Malsete Arestides Santana Rosana Fátima de Arruda PRÁTICAS ANTIRRACISTAS E PROCESSOS DE FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA: UMA EXPERIÊNCIA DE ESTÁGIO BÁSICO..................44 Debora Elianne Rodrigues de Souza ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS NA EDUCAÇÃO: A IMPLEMENTAÇÃO DA COMISSÃO DE HETEROIDENTIFICAÇÃO NO INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO ESPÍRITO SANTO (IFES) NO APERFEIÇOAMENTO DA POLÍTICA PÚBLICA DE AÇÃO AFIRMATIVA...........................................................56 Mauricio Soares do Vale Aline Costalonga Gama Shirlena Campos de Souza Amaral DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO À UNIVERSIDADE POR MEIO DA INFORMAÇÃO: RODAS DE CONVERSA SOBRE COTAS COM OS ALUNOS DO ENSINO MÉDIO...........................................................71 Bruna da Conceição Ximenes Átila Maria do Nascimento Corrêa Verônica Fernandes EXTENSÃO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES: O PAPEL DOS PROGRAMAS E PROJETOS DE EXTENSÃO COMO ESTRATÉGIA PARA O ENSINO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS..........................78 Laisa Araújo de Oliveira Rita de Cássia Dias Pereira de Jesus Adriana Miranda Pimentel CONHECIMENTO, DOCÊNCIA E FRACASSO: A FAVELIZAÇÃO DO EXERCÍCIO DOCENTE COMO PRESSUPOSTO PARA O FRACASSO ESCOLAR NO ENSINO PÚBLICO............................................................89 Marília da Silva Rangel João José Souza INTERDISCIPLINARIDADE NO ENSINO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA UTILIZANDO METODOLOGIA EAD DIANTE DA PANDEMIA COVID-19......................................................................104 Elizabeth de Lima Pinto EDUCAI VOSSOS FILHOS: A HISTÓRIA DO NEGRO NO ENSINO PROFISSIONAL TECNOLÓGICO EM PELOTAS/RS PELAS IMAGENS DOS QUADROS DE FORMATURA DO CURSO TÉCNICO INDUSTRIAL (1940/1950).....................................................112 Natália Garcia Pinto Adriana Duarte Leon EDUCAÇÃO QUILOMBOLA: PERSPECTIVAS INCLUSIVAS NAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS......................................................124 Francisca Cibele da Silva Gomes Jordan Bruno Oliveira Ferreira RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA E EDUCAÇÃO X PRECONCEITO E DISCRIMINAÇÃO..........................138 Liana Barcelos Porto Suelen Borges Loth Correa LITERATURA AFRO-BRASILEIRA: CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DAS CRIANÇAS NEGRAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL.149 Graziele Oliveira Aragão Servilha Alanis Lira Moran Malsete Arestides Santana A DENÚNCIA AO RACISMO ESTRUTURAL BRASILEIRO NA OBRA QUARTO DE DESPEJO DE CAROLINA MARIA DE JESUS.....166 Hislla Suellen Moreira Ramalho Robson Batista Moraes A FALSA LIBERDADE DOS NEGROS MARGINALIZADOS NO BRASIL À LUZ DA ESCRITA LITERÁRIA DE CAROLINA MARIA DE JESUS: PERSPECTIVAS DIDÁTICO-PEDAGÓGICA DE EDUCAÇÃO......................................................................................176 Anderson José Machado Linck Adriana Claudia Martins PROCESSO DE COLONIZAÇÃO, RACISMO, EDUCAÇÃO E INFÂNCIA: A EXPERIÊNCIA DA COR NA PRODUÇÃO DAS CULTURAS INFANTIS...........................................................................188 Jefferson Andrade Silva ENSINO DE LITERATURA INDÍGENA A PARTIR DA OBRA DE AURITHA TABAJARA: UMA PROPOSTA DIDÁTICA PARA A DECOLONIZAÇÃO DE CONCEPÇÕES E IMAGINÁRIOS NO ENSINO MÉDIO................................................................................201 Jobson Jorge da Silva Valdênia Sabrina Fragoso de Brito Waldemar Cavalcante de Lima Neto Fernanda Lima de Paula Maria Cristina do Nascimento DEBATES EDUCACIONAIS NO MOVIMENTO NEGRO DOS ESTADOS UNIDOS NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX: A PERSPECTIVA DA AFRICAN BLOOD BROTHERHOOD (1919-1924) ................................................................ 213 Luan Kemieski da Rocha POSFÁCIO...............................................................................................227 Laryssa da Silva Machado SOBRE OS ORGANIZADORES...............................................................229 MENELAW SETE, O PICASSO BRASILEIRO! A coleção Questões raciais, educação e brasilidades é composta por três livros e foi pensada para trazer debates importantes e necessários sobre as relações étnico-raciais. O primeiro volume aborda diversos pontos que atravessam a educação em suas mais variadas faces. O segundo volume traz capítulos que abordam, exclusivamente, as leis n° 10.639/03 e 11.645/08, que completam 20 anos e 15 anos, respectivamente, neste ano de 2023. O terceiro volume elenca textos que abrangem muitos pontos sociais das questões raciais, além de trazer um viés voltado para a biopolítica e necropolítica, conceitos importantes que nos ajudam a refletir sobre a sociedade brasileira. O artista homenageado nesta coleção é Menelaw Sete. Algumas de suas obras ilustram as capas desta coleção. Registrado com o nome civil de Jorge do Nascimento Ramos, Menelaw nasceu em 01 de agosto de 1964 no bairro de Pirajá em Salvador/BA, lugar histórico, onde a cultura Afro-brasileira pulsa. Em 1970, foi alfabetizado, ainda criança, já demonstrava talento para as Artes Plásticas, através de desenhos e esculturas que criava. Em 1974, morando no Subúrbio Ferroviário de Salvador, conheceu Almiro Borges, artista plástico baiano, que se tornou seu mestre. Aos 18 anos ingressou na Marinha do Brasil e foi morar no Rio de Janeiro/RJ. Em 1987, após cinco anos de serviço militar, decidiu dedicar-se à pintura. Pediu demissão da Marinha, retornou a Salvador e começou a dedicar-se a sua paixão: a pintura artística. Em 1990 realizou a sua primeira Exposição, na Panorama Galeria de Artes. Em 1994 inaugurou seu primeiro atelier no Pelourinho, Centro Histórico de Salvador. Menelaw, que é reconhecido artisticamente como o “Picasso brasileiro”, tem como estilo de pintura, o cubismo Afro-brasileiro. Ele utiliza a temática africana como ponto central de suas produções em todas as suas expressões artísticas. O termo “Picasso brasileiro” foi atribuído ao artista no ano de 1999, na cidade estadunidense de Atlanta, por Maiga Saidou, galerista burkinabé, radicado nos Estados Unidos. Maiga viu uma grande aproximação entre a arte de Menelaw e a arte de Pablo Picasso, pintor espanhol que, entre os anos de 1907 e 1910, assim como muitos artistas e intelectuais europeus, demonstrou grande interesse pela arte africana. Foi nessa época que Picasso, influenciado pela arte africana, desenvolveu o estilo cubista, sendo um dos precursores desse movimento europeu. Com 35 anos de arte, Sete levou o seu trabalho para o Brasil e para o mundo. Já ocorreram inúmeras exposições em todo o Brasil. No exterior, ele já expôs 6 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO na Holanda, Alemanha, Bélgica, Espanha, Portugal, Dinamarca, Inglaterra, Estados Unidos, Marrocos, França e a sua mais recente exposição no Museu Cité Miroir em Liége, na Bélgica, totalizando mais de 50 mostras internacionais. Como artista transcultural, no ano de 2018, gravou o filme A Origem, do cineasta francês Pierre Meynadier; na Itália gravou o filme Documentário Um Baiano Pirandelliano do cineasta italiano, Eduardo Veneziano, no ano de 2016. Em 2009 gravou o Filme Documetário Colors of a Creaive Culture, de David Zucker, cineasta estadunidense. Em sua trajetória, o artista possui registros de momentos relevantes, como a presença de Bill Clinton em seu atelier, no ano de 2013, e a citação de Oscar Niemeyer, que escreveu o quanto gostou de sua obra. O artista traz em sua história algumas honrarias: a Bahia rendeu-lhe homenagens, concedendo-lhes a Comenda Tomé de Souza, maior honraria concedida pela Câmara Municipal de Salvador. No ano de 2010, com a obra Pulando Corda, adquiriu o Selo da Drouot, Paris, renomada Casa de Leilão Francesa. Em 2012, o artista recebeu o Título de Professor Ilustre, pela Escola Superior de Belas Artes de São Francisco, em Córdoba na Argentina. No dia 14 de agosto do ano de 2015, em Sciacca Terme, localizada na Sicília na Itália, foi inaugurada a Sala Museu Menelaw Sete no Complexo Monumental Sant`Anna, honraria concedida pelo Governo italiano. FIGURA 01: Menelaw Sete é reconhecido artisticamente como o “Picasso brasileiro”. FONTE: Acervo pessoal do artista. 7 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) Como percebemos, Menelaw Sete tem uma completa afinidade, tanto em sua vida quanto em sua obra, com temas afro-brasileiros, tendo total relação com as temáticas envolvidas na coleção Questões raciais, educação e brasilidades. Desejamos a todos uma boa leitura e um bom desfrute das obras que ilustram as capas dos livros da coleção e demais obras do artista que podem ser conferidas no Instagram @menelawsete ou no site http://menelawsete.com.br/. Jacy Ramos Assessora de Menelaw Sete Especialista em história e cultura afro-brasileira Licenciada em artes e em pedagogia Manuel Alves de Sousa Junior Doutorando em educação (UNISC). Bolsista CAPES/PROSUC MBA em história da arte Especialista em confluências africanas e afro-brasileiras Historiador Organizador da coleção 8 PREFÁCIO A garantia do tratamento adequado da temática das relações étnicoraciais na educação depende da oferta de um aparato institucional que propicie a formação docente, a produção intelectual e a manutenção de práticas pedagógicas antirracistas. Nesse sentido, faz-se necessário relembrar o percurso das conquistas que propiciaram a abordagem efetiva das relações étnico-raciais bem como das Africanidades em todos os níveis de ensino. A consolidação da reivindicação de mudança nas políticas e diretrizes para a educação brasileira no tratamento das relações étnico-raciais, modificação esta que vinha sendo pautada há décadas pelo movimento negro, veio com a lei n°. 10.639/03, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira em todos os níveis de ensino. Apesar da lei não estabelecer em seu texto metas específicas relativas ao cronograma e programa de formação docente, diversos editais, a partir desse dispositivo legal, foram lançados pelo governo federal, entre os anos 2004 a 2015, no intuito de fomentar projetos de produção de conteúdo e formação de professores acerca da temática. A maior parte da execução desses programas ficou a cargo da SECADI (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão), órgão do Ministério da Educação, que orientou municípios e algumas unidades federativas no lançamento de programas para implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Contudo, a continuidade de implementação da lei n°. 10.639/03 foi alvo de sucessivos golpes, que tiveram início com a extinção da SECADI nos primeiros dias do governo Bolsonaro. O fim da SECADI (por meio do Decreto nº 9.465, de 2 de janeiro de 2019) e o aparelhamento ideológico conservador da Fundação Cultural Palmares, importante órgão federal que atuou na produção de conteúdos temáticos formativos, como o projeto “A Cor da Cultura”, se configuraram como um contundente apagamento e desresponsabilização do Estado na aplicação de mecanismos para a correção de distorções educacionais enviesadas por raça, classe, gênero e outras variáveis. A despeito da ausência do governo federal no tratamento das questões relativas à inclusão, direitos humanos e diversidade, ocorrida durante o governo Bolsonaro (2019-2022), algumas iniciativas governamentais e outras mantidas pela sociedade civil e universidades para formação de professores e produção de material na temática das relações étnico-raciais, continuaram a existir, no 9 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) entanto, a maior parte delas, sem o respaldo efetivo do estado, contribuindo para que o racismo institucional, no âmbito da educação, se consolidasse ainda mais. Entretanto, a vitória de Luís Inácio Lula da Silva, no final de outubro de 2022, representou a retomada das pautas sociais ao escopo do governo federal. Já no plano de transição, Lula sinalizou a volta da SECADI e a retomada das políticas de igualdade racial com respaldo do estado. Desse modo, a atuação do estado no fortalecimento de dispositivos legais e institucionais antirracistas, é extremamente necessária ao combate de atitudes discriminatórias que corroboram para a permanência da estruturação das desigualdades em âmbitos diversos. Nesse sentido, e na mesma linha de ação contra as opressões, a mobilização social do campo intelectual a favor da educação se torna imprescindível, por isso, publicações como esta, que envolvem diversas potencialidades educadoras, são e sempre serão importantes mecanismos de garantia da efetivação da luta por um país menos violento e desigual. Anselma Garcia de Sales Doutora em Letras pelo Programa de Estudos Árabes da FFLCH/USP Membro do Grupo de Pesquisa África-Brasil – FFLCH/USP 10 APRESENTAÇÃO O ano de 2023 começou sendo marcado com grandes avanços na área das relações raciais no Brasil. Ao assumir a presidência em 01 de janeiro de 2023, o novo governo Lula já começou inovando e dando valor à área. A entrega da faixa presidencial na cerimônia de posse foi um ato muito simbólico com a participação do povo brasileiro representado por 8 pessoas que trazem consigo a diversidade da população: o menino negro Francisco, a mulher negra Aline Sousa, o indígena Cacique Raoni, o jovem deficiente e LGBTQIA+ militante na luta anticapacitista Ivan Baron, o trabalhador da indústria Weslley Rocha, o professor Murilo Jesus, o artesão Flávio Pereira e a cozinheira Jucimara Santos. A faixa foi passada pelas mãos de Aline Sousa, de 33 anos, mulher negra e presidente da Central das Cooperativas de Trabalho de Catadores de Materiais Recicláveis (Rede Centcoop) do Distrito Federal. Em que pese, os casos de racismo ainda sejam grandes na sociedade e noticiados com constância, essa é a primeira vez que teremos ministérios ligados diretamente às relações raciais. O Ministério da Igualdade Racial, com a liderança de Anielle Franco e o Ministério dos Povos Indígenas com Sônia Guajajara à frente. Ambos liderados por mulheres fortes, atuantes em suas respectivas áreas, pertencentes aos povos que defendem em suas pastas. O governo ainda trouxe uma diversidade jamais vista à frente do primeiro escalão do governo com a presença de 11 mulheres, 11 negros (pretos e pardos) e 1 indígena. Sabemos que a equipe ministerial ainda não representa, de fato, a sociedade brasileira, mas também é inegável reconhecer o avanço. Os discursos de posse de Anielle Franco no Ministério da Igualdade Racial e de Sônia Guajajara no Ministério dos Povos Indígenas foram marcados por emoção e representatividade no dia 11 de janeiro de 2023, apenas 3 dias depois dos atos golpistas de 08 de janeiro, que vandalizaram os prédios dos 3 poderes da república. Em seu discurso de posse, Anielle Franco disse Após quase quatrocentos anos de escravidão negra, e 133 anos de uma abolição que nunca foi concluída, a população brasileira ainda enfrenta múltiplas faces do racismo que gera condições desiguais de vida e de morte para pessoas negras e não negras no país. Isso não pode ser esquecido e nem colocado de lado. É lamentável e inadmissível pensar que diante de um dos marcos sociais mais cruéis da nossa história, se não o mais cruel, a escravização de pessoas 11 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) negras trazidas do continente africano, mediante torturas, estupros, assassinatos e uma série de outras violências, ainda existam pessoas que questionem a importância de um Ministério como o Ministério da Igualdade Racial no Brasil. Desde o sequestro dos nossos bisavós e tataravós em África, à luta pela garantia de políticas públicas e da existência do Ministério da Igualdade Racial, inclusive no que diz respeito aos recursos orçamentários, temos nos empenhado visceralmente em um projeto de sobrevivência. Projeto este que vai desde o enfrentamento ao racismo científico e suas políticas eugenistas, do branqueamento e da aniquilação da população negra, à desmistificação das narrativas de meritocracia e de democracia racial na sociedade brasileira. A desigualdade econômica; a fome; a falta e a precarização de emprego; o desmonte de políticas de ações afirmativas; a insuficiência de políticas sociais; o colapso do sistema de saúde; o racismo religioso e ambiental, a violência estatal e o encarceramento são alguns dos exemplos que podemos citar para ilustrar múltiplas dimensões do genocídio da população negra. O discurso de posse da ministra Sônia Guajajara também foi repleto de emoção e simbolismo, demonstrando a luta e resistência dos povos indígenas: Nós não somos o que, infelizmente, muitos livros de História ainda costumam retratar. Se, por um lado, é verdade que muitos de nós resguardam modos de vida que estão no imaginário da maioria da população brasileira, por outro, é importante saberem que nós existimos de muitas e diferentes formas. Estamos nas cidades, nas aldeias, nas florestas, exercendo os mais diversos ofícios que vocês puderem imaginar. Vivemos no mesmo tempo e espaço que qualquer um de vocês, somos contemporâneos deste presente e vamos construir o Brasil do futuro, porque o futuro do planeta é ancestral! A invisibilidade secular que impacta e impactou diretamente as políticas públicas do Estado é fruto do racismo, da desigualdade e de uma democracia de baixa representatividade, que provocou uma intensa invisibilidade institucional, política e social, nos colocando na triste paisagem das sub-representações e subnotificações sociais do país. São séculos de violências e violações e não é mais tolerável aceitar políticas públicas inadequadas aos corpos, às cosmologias e às compreensões indígenas sobre o uso da terra. Outro Ministro que tomou posse e que merece destaque aqui nesta obra é Silvio Almeida, que está à frente do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, que certamente será citado por diversos capítulos deste livro por ser um intelectual de referência na temática racial e, inclusive, que ajudou a popularizar o conceito 12 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO de racismo estrutural no Brasil nos últimos anos. Um trecho de seu discurso viralizou em todas as redes sociais e emocionou a todos quando disse Trabalhadoras e trabalhadores do Brasil, vocês existem e são valiosos para nós. Mulheres do Brasil, vocês existem e são valiosas para nós. Homens e mulheres pretos e pretas do Brasil, vocês existem e são valiosos para nós. Povos indígenas deste país, vocês existem e são valiosos para nós. Pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais, travestis, intersexo e não binárias, vocês existem e são valiosas para nós. Pessoas em situação de rua, vocês existem e são valiosas para nós. Pessoas com deficiência, pessoas idosas, anistiados e filhos de anistiados, vítimas de violência, vítimas da fome e da falta de moradia, pessoas que sofrem com a falta de acesso à saúde, companheiras empregadas domésticas, todos e todas que sofrem com a falta de transporte, todos e todas que têm seus direitos violados, vocês existem e são valiosos para nós. Este volume conta com 18 capítulos que versam sobre diversos aspectos das abordagens raciais relacionadas com a educação. Reflexões sobre a cor da pele, educação eurocêntrica x educação antirracista, relações étnico-raciais na escola, educação antirracista em estágio do ensino superior, bancas de heteroidentificação, democratização do acesso à universidade, os programas de extensão na formação docente, a favelização do exercício da docência, ensino de história e geografia na pandemia, a história do negro no ensino profissional e tecnológico, educação quilombola, religiões de matriz africana, aspectos da literatura de Carolina Maria de Jesus, educação infantil antirracista, ensino de literatura indígena e movimento negro nos Estados Unidos da América são alguns dos temas abordados nesta obra. A partir de matizes diversificados, heterogêneos e perspectivas críticoreflexivas, os debates promovidos neste livro trazem à tona, enquanto elemento central a reunir os diálogos entre os autores, os desafios que circundam e localizam as relações étnico-raciais no Brasil. Tal como os capítulos que constituem os três volumes desta coleção, há que se reconhecer a complexidade da temática, ao mesmo tempo, multifacetada, compreendendo os mais diversos segmentos e produzindo uma série de despertamentos que fazem pensar acerca da construção das relações de poder no mundo contemporâneo e em especial no Brasil, enquanto um projeto de opressão e de exploração de determinados grupos étnicos. Desejamos a todos uma boa leitura e que os textos ajudem os leitores a refletir sobre os mais diversos pontos da educação que atravessam as abordagens raciais no Brasil e no mundo. A sociedade precisa entender que aprender 13 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) e discutir sobre esses temas contribui para um melhor entendimento do mundo contemporâneo, sob vários aspectos, em prol de um aumento de cultura antirracista universal em detrimento aos muitos tipos de racismo ainda existentes, enraizados no seio da sociedade. Agradecemos a cada leitor pelo seu tempo, disponibilidade e interesse, e convidamos a ajudarem na difusão e compartilhamento desta obra. Manuel Alves de Sousa Junior Biólogo, Historiador, Doutorando em Educação pela Universidade de Santa Cruz, MBA em História da Arte, Especialista em Confluências africanas e afro-brasileiras e as relações étnico-raciais na educação. Professor do IFBA - Campus Lauro de Freitas. Membro do Grupo de Pesquisa Identidade e Diferença na Educação/UNISC, Bolsista PROSUC/CAPES. Tauã Lima Verdan Rangel Estudos Pós-Doutorais em Sociologia Política pela UENF. Doutor e Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais, Bacharel em Direito e Licenciado em Pedagogia. Coordenador de Pesquisa, Extensão, Inovação e Internacionalização pelo Centro Universitário Redentor (UniREDENTOR – Afya) 14 PROJETO EU SOU ASSIM: “ESSA É A COR DA MINHA PELE” Almerinda Cristina Oliveira de Souza Sobral1 INTRODUÇÃO O presente estudo originou-se a partir das inquietações de uma professora frente à dificuldade das crianças se identificarem ou tampouco se representarem como pessoas negras ou pardas nos autorretratos, desenhos e pinturas que produziam. Percebemos que o processo de construção de uma identidade negra no Amazonas ainda é bem difícil devido a uma grande lacuna no contexto histórico, um esquecimento generalizado que foi promovido pelo Estado no passado. Sobre o apagamento da existência de uma população negra na Amazônia, Brito argumenta que: A ideia, portanto, de uma Amazônia exclusivamente portuguesa, indígena, mestiça e cabocla precisa ser ultrapassada no senso comum e merece incorporar outros sujeitos históricos e contemporâneos e a consciência de todos nós (SAMPAIO, 2011 apud BRITO, 2012). Portanto, faz-se necessário destacar e valorizar a história do povo negro e a construção das identidades étnico-raciais brasileiras, particularmente em regiões como a Amazônia onde as pessoas negras são invisibilizadas. A relevância deste estudo, fundamenta-se nas ações afirmativas criadas a partir das políticas públicas voltadas para a promoção da equidade socioeconômica da população negra brasileira - Lei n°. 10.639/032, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), compelindo o ensino da História e Cultura AfroBrasileira assim como, a urgência da discussão e visibilização do protagonismo de pessoas negras e suas narrativas nas escolas. Como também, abraçar o que a BNCC3 destaca como direito de aprendizagem e desenvolvimento na Educação 1 Graduada em Tecnologia em Produção Publicitária – IFAM, Graduada em Pedagogia UCB, Graduada em Licenciatura em Computação - Claretiano, com Especialização em Educação Infantil e nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil - ULBRA. Docente na Secretaria Municipal de Educação de Manaus - SEMED. E-mail: almerindasobral@ rede.ulbra.br 2 Lei no. 10.639, de 9 de janeiro de 2003.: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/ l10.639.htm 3 A BNCC norteia os currículos dos sistemas e redes de ensino, como também as propostas pedagógicas de todas as escolas públicas e privadas de Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio, em todo o Brasil. Fonte: http://basenacionalcomum.mec.gov.br 15 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) Infantil, ou seja, é direito da criança: Conhecer-se e construir sua identidade pessoal, social e cultural, constituindo uma imagem positiva de si e de seus grupos de pertencimento, nas diversas experiências de cuidados, interações, brincadeiras e linguagens vivenciadas na instituição escolar e em seu contexto familiar e comunitário (BRASIL, 2018, p. 34). Sendo assim, o objetivo central do estudo é favorecer a aquisição de valores e atitudes que contribuam para o fortalecimento da autoestima e obtenção da identidade racial na infância, promovendo assim, o respeito às diferenças e à diversidade étnica, deste modo, buscamos colaborar para a superação de situações discriminatórias oportunizando uma educação antirracista. METODOLOGIA Em termos metodológicos, trata-se de uma investigação que se originou a partir das observações de uma turma do 2º período da Ed. Infantil de um Centro Municipal de Educação Infantil – CMEI, da Secretaria Municipal de Educação de Manaus – SEMED, culminando no Projeto Eu Sou Assim: “Essa é a cor da minha pele”4. Para iniciarmos a pesquisa escolhemos o método Estudo de Caso, que se caracteriza por ser um procedimento empírico que considera observações e experiências. No periódico Mundo Acadêmico da UFMG (2021, n.p.) encontramos a definição do cientista social Robert K. Yin que diz o seguinte: “No livro Estudo de Caso Planejamento e Métodos [...] define o estudo de caso como uma estratégia de pesquisa que responde às perguntas “como” e “por que” e que foca em contextos da vida real de casos atuais.” Concomitantemente, a abordagem da pesquisa será qualitativa, pois ela “se aplica ao estudo da história, das relações, das representações, das crenças, das percepções e das opiniões, produtos das interpretações que os humanos fazem a respeito de como vivem, constroem seus artefatos e a si mesmos, sentem e pensam” (MINAYO, 2014, p. 57). Podemos contextualizar a nossa situação trazendo um excerto da escritora bell hooks, que enfatiza a situação das crianças nos EUA, o que aliás, não é muito diferente da realidade de nossas crianças no Brasil: “Mães e pais negros com frequência reclamam que a televisão diminui a autoconfiança e a autoestima de meninas negras. Até mesmo em comerciais na televisão, a criança negra raramente é visível” (HOOKS, 2020, p. 114-115). Sendo assim, a criança aprende desde cedo a apreciar o tom de pele que não é o seu, criando um sentimento de negação e com isso a dificuldade de se amar e se aceitar como é. Após o início das aulas, observamos que as crianças 4 Nota de esclarecimento: “Essa é a cor da minha pele” foi a frase que uma das crianças do projeto, disse ao pai quando mostrou a ele o seu autorretrato. 16 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO negras e pardas não se representavam nos desenhos autorais com a cor da sua pele e quando coloriam figuras de pessoas, as pintavam com as cores rosa, salmão ou deixavam as partes (aparentes) do corpo em branco. Considerando que a turma é formada em sua maioria por crianças pardas, decidimos realizar um trabalho focado na (des)construção da identidade racial, estimulando a autoaceitação e o autoamor nas crianças. Neste sentido, bell hooks (2019, p. 62) destaca que: “Não podemos nos dar valor do jeito certo sem antes quebrar as paredes de autonegação”. A Figura 1 mostra um desenho feito no mês de março de 2022. No desenho são 3 meninas, a da esquerda é parda, a do centro é branca e a da direita é negra (ela é a autora do desenho). Em todos os seus desenhos essa criança representava a si e os outros na cor branca, porém à medida que o projeto era desenvolvido, ela foi se reconhecendo como uma criança negra e seus desenhos ganharam cores, a sua cor: marrom. Figura 1 - Desenho autoral Fonte: Elaboração própria. No início do projeto e como forma de desmistificar a falsa nomenclatura dos lápis rosa e salmão como “cor da pele”, realizamos atividades de pintura, apresentamos as 12 cores que existem na caixa comum de lápis de cor e perguntamos quais cores poderiam ser usadas para pintar figuras de pessoas. No 17 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) começo apontavam para os lápis rosa ou o salmão (apenas), então a professora (uma mulher negra) instigava as crianças aproximando o lápis rosa de seu próprio braço e perguntava: “Essa cor, parece com a cor da minha pele?” Em seguida, pedia para cada criança aproximar os lápis rosa/salmão de seus braços e fazia a mesma pergunta: “Essa cor, parece com a cor da pele de vocês?” Depois de um tempo, fazia outra pergunta: “Então, esse lápis pode ser chamado de cor da pele?” À medida em que o projeto foi avançando, a resposta para essa pergunta foi saindo do encabulado sim, para um estrondoso NÃO. Nessa conjuntura o material utilizado se torna inovador no sentido da fácil aplicabilidade e baixo custo, a caixa de lápis de cor utilizada é a comum de 12 cores, porém, buscamos levar as crianças à reflexão dando um novo sentido às cores tradicionais. Consequentemente, o processo de autoamor e autoaceitação da identidade racial foi tomando forma, as crianças começaram a reconhecer como “tons de pele” e usar outras cores como a laranja e a marrom, além de usarem formas variadas de pintura para representar a si mesmas, os colegas, a professora e os seus familiares. Por exemplo, iniciamos o uso do lápis da cor marrom para representar pessoas negras, porém, se a pele da pessoa representada fosse um pouco mais clara, segundo explicou uma criança do projeto: “é só pintar com o lápis marrom, meio deitado e bem de leve”. Demos continuidade ao trabalho realizando rodas de conversas com as crianças para falarmos sobre os diversos tons de pele que temos na sala de aula, também pedimos para que elas observassem a si mesmas e em casa os seus familiares, utilizamos filmes, vídeos e livros para mostrar personagens negros de forma positiva, evidenciando o protagonismo e empoderamento das personagens. Acompanhando este entendimento, os teóricos Giroux e MacLaren (1995, p. 144) afirmam que “existe pedagogia em qualquer lugar em que o conhecimento é produzido, em qualquer lugar em que existe a possibilidade de traduzir a experiência e construir verdades”. Para oficializar o Projeto Eu Sou Assim: Essa é a Cor da Minha Pele que se encontrava em andamento desde março de 2022, reflexionando as variadas formas de aprendizado que ocorrem dentro e fora dos muros da escola, almejando o fortalecimento e respeito às diferenças fizemos algumas atividades com a participação das crianças, uma reunião e posteriormente uma oficina artística com as famílias dos participantes do projeto. RESULTADOS Na primeira atividade foi exibido o filme A Fera do Mar, na história a protagonista é uma menina negra muito esperta e corajosa que vive diversas aventuras com piratas, nesse dia uma das crianças ficou particularmente encantada 18 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO ao ver a personagem do filme, ela reconheceu a si mesma na tela, na cor da pele, na textura, na cor do cabelo e na “esperteza também” (segundo ela). Ao final da exibição do filme, todas as crianças fizeram desenhos representando as cenas que mais gostaram, porque é no olhar e na observação da história, que a criança aprende com as imagens, relacionando-as com outras imagens já vistas e narrando o que está vendo. Posteriormente foi realizada uma segunda atividade, a de autorretrato, as crianças tiveram dois momentos nessa atividade, o de visualizarem a própria imagem por meio do computador fazendo um exercício de observação da cor da sua pele, cor dos seus olhos, dos seus cabelos, formato/tamanho da boca e nariz; no segundo momento cada criança produziu o seu autorretrato. Para realizar a terceira atividade, utilizamos o livro de história infantil Menina Bonita do Laço de Fita, autoria de Ana Maria Machado. No livro a protagonista também é uma menina negra que aprende desde cedo a ter autocuidado e a valorizar a cor da sua pele, a se gostar como é, demonstrando empoderamento em suas ações e atitudes. As crianças ouviram a narração da história na sala de aula e assistiram o vídeo na plataforma digital YouTube, em seguida fizeram as pinturas das personagens Menina Bonita do Laço de Fita e o Coelho. De acordo com bell hooks, o empoderamento faz parte do autoamor, é prova de resistência, é prova “que descolonizaram a mente e romperam com o tipo de pensamento supremacista branco que insinua que somos inferiores” (hooks, 2019, p. 58). A oficina com as Famílias, foi realizada no Dia da Família na Escola, no mês de agosto, os pais juntamente com as crianças criaram um cartão cujo objetivo era desenhar os membros da sua família. Foi maravilhoso ver as crianças colocando em prática, de forma lúdica o que estavam aprendendo diariamente sobre a sua identidade racial, foi um momento rico! A integração da família na vida escolar das crianças contribui para uma relação na qual se possibilita adquirir e transmitir saberes por meio de vivências diversificadas, favorecendo o seu desenvolvimento integral. Depois de prontas, todas as atividades produzidas pela turma foram apresentadas em formato de cartazes à comunidade escolar. A figura 2 mostra as famílias participando da culminância do Projeto Eu Sou Assim: “Essa é a Cor da Minha Pele”. Sendo possível observar o orgulho e alegria das crianças enquanto apresentavam os trabalhos realizados às famílias, também se destaca que elas evidenciavam aos pais e familiares a cor da pele dos personagens nos desenhos produzidos. 19 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) Figura 2 – Crianças apresentando os trabalhos às famílias Fonte: Elaboração própria. Na ocasião, uma das Mães salientou a importância do Projeto Eu Sou Assim: “Essa é Cor da Minha Pele”, fazendo um relato emocionado sobre a experiência da sua família: A minha filha reclamava de sua cor, dizia não gostar dela por ser diferente dos irmãos mais velhos, que são brancos, mas agora entendi por que ela começou a dizer que era bonita do jeitinho dela e que a cor dela era linda! Ela se desenhou direitinho, professora. Estamos muito felizes, a gente sempre dizia que ela era linda, mas ela não acreditava. Nesse contexto a BNCC, reconhece e ratifica que a criança ao vivenciar as suas primeiras “experiências sociais (na família, na instituição escolar, na coletividade), constroem percepções e questionamentos sobre si e sobre os outros, diferenciando-se e, simultaneamente, identificando-se como seres individuais e sociais” (BRASIL, 2018, p. 36). CONSIDERAÇÕES FINAIS Compreende-se, portanto a importância que histórias de literatura infantil, filmes, vídeos e desenhos com temas como gênero, relações étnico-raciais, discriminação, racismo entre outros, sejam apresentados desde a infância, contudo devem ser abordados num contexto lúdico, mas que possibilite que as crianças reflitam sobre as diferenças, sobre a diversidade existente em nossa sociedade para que elas não reproduzam ideias ou conceitos estereotipados, 20 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO racistas, machistas etc. Logo, obras literárias, assim como filmes e vídeos são instrumentos de aprendizagem, funcionando como pedagogias culturais que podem influenciar na formação das identidades infantis de crianças negras e não negras. Considera-se também a relevância do Projeto Eu Sou Assim: “Essa é Cor da Minha Pele” para as crianças brancas, pois possibilita a conscientização a partir da infância sobre comportamentos e práticas de combate ao racismo, os tornando agentes multiplicadores dessa educação antirracista ao longo da vida. Tudo faz parte de um processo de aprendizagem, pois ensina algo à criança, colaborando com a sua formação enquanto sujeito e na construção de suas identidades, inclusive a racial. Nesse sentido, reflete-se sobre quão importante é apresentar representações positivas de personagens negros para crianças pardas e negras, principalmente as da região norte do Brasil, para que elas reconheçam a sua identidade étnica-racial e adquiram desde a mais tenra idade autoestima, a fim de se apropriarem de empoderamento, pois assim, as crianças poderão entender que são protagonistas de suas histórias e capazes de realizar transformações nas realidades que as cercam. Em relação à busca de mudanças no contexto de vida, a filósofa Djamila Ribeiro (2018, p. 90) ressalta que, “é necessário criar estratégias de empoderamento no cotidiano e em nossas experiências habituais no sentido de reivindicar nosso direito à humanidade”. REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasil: MEC, 2018 BRITO, Ênio. SAMPAIO, Patrícia Melo. O fim do silêncio. Presença negra na Amazônia. Rever – Revista de Estudos da Religião. v.12, n.02, p. 201-206, jul.-dez. 2012. Disponível em https://revistas.pucsp.br/index.php/rever/article/view/14576/10600. Acesso em: 11 agosto. 2022. GIROUX, Henry A., MCLAREN, Peter. Por uma pedagogia crítica da representação. In: SILVA, Tomaz Tadeu da; MOREIRA, Antônio Flávio (orgs.) Territórios Contestados: o currículo e os novos mapas políticos e culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995, p. 144-158. HOOKS, bell. E eu não sou uma mulher? mulheres negras e feminismo. 6 ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020. HOOKS, bell. Olhares negros: raça e representação São Paulo: Elefante, 2019. 356 p. Tradução de Stephanie Borges. MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14 ed. São Paulo: Hucitec, 2014. 21 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) MUNDO ACADÊMICO/UFMG. Estudos de Caso: O que são, Exemplos e Como Criar Cases. 2021. Disponível em: https://biblio.direito.ufmg. br/?p=3579. Acesso em: 23 setembro. 2022. RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Editora Schwarcz S.A. 2018. 22 DA EDUCAÇÃO EUROCÊNTRICA À EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: UMA INTRODUÇÃO Maurício Silva1 INTRODUÇÃO A intersecção entre o dilatado universo da educação e as relações étnico-raciais tem-se mostrado, particularmente no Brasil, bastante promissora, sobretudo após a promulgação da Lei nº. 10.639/03, que veio dar novo impulso às pesquisas acerca da participação da população afrodescendente na sociedade brasileira, fazendo, entre avanços e retrocessos, com que o tema entrasse na agenda política do país e se tornasse um dos assuntos mais debatidos ultimamente, muito em razão de sua capilaridade com outros temas afins, como o racismo, a discriminação, a inclusão social e educacional e o empoderamento da população negra. O Brasil, como se sabe, é um país pródigo em práticas excludentes e discriminatórias, realidade confirmada pelas próprias estatísticas, que nos apresentam um quadro alarmante de diferenças em todos os âmbitos da sociedade. Nesse jogo de aparências sociais, em que se costuma ficar numa incômoda situação de quem se coloca, psicologicamente falando, entre a parataxia e o bovarismo, imperam ora o preconceito (esse julgamento prévio, feito sem ponderação ou conhecimento dos fatos e ligado a um comportamento de inflexibilidade e de dogmatismo), ora a discriminação (atitude ligada ao ato de separar as pessoas de origens étnico-raciais diferentes), ora ainda o próprio racismo (a rigor, a teoria que defende a superioridade de certas raças em relação a outras), nas definições de Zilá Bernd (1994). Essa realidade se reproduz, evidentemente, em diferentes ambientes e espaços, sejam eles institucionais ou não, como é o caso da escola, onde a discriminação racial é um fato há muito constatado (SILVA JÚNIOR, 2002; CARVALHO, 2012; LIMA, 2015). A questão da discriminação racial nas escolas, além disso, tem-se revelado demasiadamente complexa, já que se encontra disseminada nos três âmbitos fundamentais que compõem a estrutura escolar, tornando a própria discriminação – cuja gênese encontra-se, é verdade, em determinadas conjunturas históricas – num problema estrutural: no âmbito 1 Doutor em Letras Clássicas e Vernáculas, pela Universidade de São Paulo. Professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação na Universidade Nove de Julho (São Paulo). [email protected] 23 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) da gestão administrativa, a discriminação se reflete numa cadeia que nasce no modo muitas vezes autoritário como a escola é gerida, em que a instância dos colegiados é subjugada pelo poder centralizador do corpo gestor; no âmbito pedagógico, ela se traduz numa prática pedagógica, adotada no ambiente escolar, que incide, fundamentalmente, sobre os três vetores que encerram a dinâmica ensino-aprendizagem: o currículo, a avaliação e a prática docente, instância em que reside o campo mais sensível à disseminação de atitudes racistas; finalmente, no âmbito político-social, a discriminação se desdobra em atitudes que se situam na interface escola-sociedade, tornando-se, por sua vez, mais um universo fértil de atitudes discriminatórias. Avaliar, portanto, a questão da discriminação na escola – esse autêntico subproduto da categoria-gênese de racismo institucional – torna-se um exercício que tem seu vértice no encontro desses três âmbitos, apontando para a necessidade de se apoiar, na prática cotidiana, uma educação e uma pedagogia antirracistas (LIMA; SOUSA, 2014; GOMES, 2017). O presente artigo busca discutir os encontros e tensões entre a educação eurocêntrica e a educação antirracista no contexto educacional brasileiro, a fim de observarmos não somente o alcance do que acabamos de chamar, aqui, de racismo institucional, mas também os desdobramentos práticos e simbólicos de uma ação e um discurso educativos pautados em processos diversos de silenciamento e invisibilização do do negro, o que certamente resulta, entre outras coisas, em sua inaceitável naturalização do racismo. Adota-se, para tanto, um recorte metodológico qualitativo e de pesquisa bibliográfica, sem se avançar numa perspectiva mais profunda do tema, exatamente por se tratar de uma abordagem introdutória. DA EDUCAÇÃO EUROCÊNTRICA À EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA Escrevendo uma espécie de editorial para o jornal paulistano O Alfinete, periódico dedicado aos homens de cor, um jornalista autonomeado Oliveira (1918, p. 1) critica, na edição de setembro de 1918, a falta de consciência dos negros acerca da necessidade de se alfabetizarem: após dizer que os negros brasileiros vivem “com o pensamento accorrentado” (p. 1), sem impor nenhuma questão de ordem intelectual ou social, completa defendendo sua alfabetização, para que não se transformem em “servos voluntarios”. Passado um século dessa diatribe, não se pode dizer que a situação do negro brasileiro continue a mesma, sobretudo no que compete à alfabetização, mas, apesar dos muitos avanços verificados nas últimas décadas, o que se constata é que há ainda um longo caminho a ser percorrido, até que se possa falar em escolarização plena desse contingente populacional. Muitas das conquistas 24 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO alcançadas nessa área devem-se, é certo, ao empenho da sociedade civil, sobretudo por meio dos movimentos negros (PEREIRA, 2013; SANTOS, 2005), responsáveis por impulsionar a aprovação de leis especialmente preocupadas em suprir demandas educacionais da população afrodescendente no Brasil, como é o caso da já bastante debatida Lei nº. 10.639, de 2003. Associada ao Parecer (2003) e à Resolução (2004) do Conselho Nacional de Educação, a referida lei determina e aponta diretrizes para a implementação, no currículo do Ensino Fundamental e Médio, do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, alterando a norma maior que rege nossa educação, a Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (1996). Não se trata, como pode parecer, de uma lei de alcance limitado, de natureza “curricular” ou afim, mas um dispositivo que assume como efeito colateral profícuo, por um lado, a desconstrução de um imaginário estereotipado em relação à cultura afro-brasileira e a afirmação identitária do afrodescendente e, por outro, a divulgação de episódios históricos e ideologias de cunho discriminatório, acerca da história da África e dos africanos em situação de diáspora. Como lembra Luciano Costa (2010, p. 23), “a lei [10.639/03] traz uma nova oportunidade para os afrodescendentes, no sentido de desconstruir um imaginário e construir uma nova mentalidade com relação à cultura negra no Brasil”. Portanto, em vigência há mais de dez anos, ela acabou por dar novo impulso às pesquisas acerca da participação da população afrodescendente na sociedade brasileira, em especial no campo da educação e seus inúmeros desdobramentos; com efeito, como afirmam Iolanda de Oliveira, Petronilha Gonçalves Silva e Regina Pahim Pinto (2005, p. 231), ao tratarem da aplicação da Lei nº. 10.639/03 na escola, em texto publicado logo após sua promulgação, o esclarecimento sobre a construção histórica das relações sociais, especialmente na educação das crianças e adolescentes, é uma medida preventiva fundamental contra a permanência das estruturas sociais e culturais que dão sustentação a todas as formas de intolerância, de xenofobia, de discriminação e de racismo (SILVA; PINTO, 2005, p. 231). Essa é, de fato, uma ação que, no conjunto, busca desfazer os equívocos que, tradicionalmente, tem-se alastrado no ambiente escolar, acerca da história e da cultura brasileiras, em especial no que compete ao legado cultural africano que aqui aportou, primeiro, por meio das populações escravizadas e, depois, por meio de fluxos migratórios voluntários ou compulsórios. Grosso modo, trata-se de uma visão distorcida de nossa própria história – bem como da história do continente africano e sua importância para a constituição de nossa cultura –, numa abordagem acadêmica e escolar que vai da deturpação e do alienamento à simples acriticidade (AZEVÊDO, 1987; SANSONE, 2002). 25 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) Do ponto de vista normativo, há ainda, nesse mesmo universo, a aprovação de uma legislação destinada à valorização do negro na conjuntura da educação superior, que passa pela aprovação de ações afirmativas – nesse contexto, política que promove o acesso a e/ou permanência de grupos estigmatizados em uma instituição de ensino superior, objetivando sua democratização (GUIMARÃES, 2008; SILVA, 2003; GOMES, 2003) –, como é o caso das chamadas cotas raciais, cujo alcance vai muito além do expediente de ingresso no ensino superior (SANTOS, 2006; MUNANGA, 2006). Como lembram Adailton Silva e colaboradores (2009, p. 58), destacando a situação de absoluta diferenciação entre negros e brancos e reconhecendo o passado e o presente de discriminação racial, as cotas destacam-se como instrumento de enfrentamento da desigualdade racial no país. Não o único, mas um importante instrumento de equalização de oportunidades, em um contexto histórico em que mesmo o Estado brasileiro foi ator relevante na construção das desigualdades raciais (SILVA et al, 2009, p. 58). Toda essa legislação não faria sentido algum, não fosse a compreensão do ambiente escolar – aqui entendido como um conjunto de métodos, teorizações e procedimentos, voltado à dinâmica do ensino-aprendizagem no processo de escolarização formal – como um espaço multicultural, na acepção de uma prática educativa que “propõe a reforma das escolas e de outras instituições educacionais com a finalidade de criar iguais oportunidades de sucesso escolar para todos os alunos independentemente de seu grupo social, étnico-racial” (GONÇALVES; SILVA, 2006, p. 50). Ainda que se conteste, em tese, a ideia mais genérica de multiculturalismo como um conceito historicamente marcado, relacionado, em sua origem, com um projeto de colonização que, no limite, subjuga e suprime traços identitários (TAVARES; GOMES, 2018), não se deve subestimar sua capacidade – como princípio operatório, dentro do contexto tensionado da educação escolar – de atuar no sentido de reconhecer e, até certo ponto, promover a coexistência de valores, sensibilidades, ideários, representações e identidades distintas, o que, nas circunstâncias históricas vividas pela população afrodescendente brasileira na atualidade, representa um significativo avanço em direção não apenas à estabilização das relações sociais, mas, sobretudo, ao reconhecimento e valorização do legado sociocultural africano. Essa tem sido uma demanda histórica dos povos africanos em situação de diáspora, aqui como em outros continentes. Nos Estados Unidos, por exemplo, em sua conhecida Declaration of the Rights of the Negro Peoples of the World (1920), Marcus Garvey (2004, p. 20) já protestava contra a separação de escolas para brancos e negros e, de modo geral, requisitava a inclusão do ensino da história do negro nos currículos escolares, contra “the system of education in any country 26 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO where Negroes are denied the same privileges and advantages as other races”. O currículo, aliás, é um aspecto central da discussão acerca da interface entre educação e questões étnico-raciais. É a ausência quase completa da temática racial no currículo escolar, em todos os níveis do processo de escolarização, que tem levado à defesa incontornável ora de um currículo multicultural – para nos mantermos no âmbito da discussão acima engendrada –, ora de um currículo afrocentrado. Sobre a defesa de um currículo multicultural, sua adesão nasce da constatação de que é no campo curricular que as tensões raciais adquirem uma de suas expressões máximas, na medida em que refletem o ideário de grupos raciais dominantes e se manifestam como narrativas com alto grau de racialização. Como lembra Vanessa Oliveira (2003), ao tratar da relação do currículo com questões de afrodescendência, “pelas narrativas curriculares, identidades hegemônicas são formadas e fixadas, tanto quanto são questionadas, contestadas e disputadas” (OLIVEIRA, 2003, p. 105). Ademais, há que se observar que a promulgação da Lei nº. 10.639/03 não redundou, necessariamente, na apropriação de diretrizes para a implantação de um currículo multicultural, como revela a pesquisa levada a cabo por Lima e Sousa (2014). Mais importante para os propósitos deste artigo, contudo, parece-nos ser a proposição de um currículo afrocentrado, isto é, aquele que contem em si valores culturais africanos e afro-brasileiros, tal como prevê a referida lei. Cumpre ressaltar, contudo, que ambas as “modalidades” curriculares – multicultural e afrocentrado – referem-se e procuram se afirmar como contraponto ao conceito de eurocentrismo, responsável por muitas das contradições e das incongruências, das distorções e das anomalias, das desordens e dos desconcertos, enfim de boa parte das tensões que marcam as relações étnico-raciais no contexto escolar. Desse modo, trata-se de narrativas e práticas curriculares que adquirem, no contexto escolar a que se vincula, um claro e deliberado sentido de resistência. O conceito de eurocentrismo não é novo, tampouco se trata de uma categoria histórica semanticamente estabilizada; ao contrário, sua plurissignificância torna seu emprego extremamente comprometedor e arriscado, caso não sejam feitas as devidas ressalvas quanto ao contexto e ao sentido que se lhe queira dar. De qualquer maneira, tem sido vastamente utilizado nas discussões acerca dos currículos escolares, especialmente no sentido de exprimir um ponto de vista unilateral, tendencioso e arbitrário, por privilegiar uma mundividência e uma subjetividade europeias, que, ao se afirmar como racionalidade de valor universal, desqualifica outras experiências e saberes que, afinal, compõem o complexo universo da educação escolarizada. Por se tratar de uma formulação que exprime uma perspectiva discricionária, o eurocentrismo torna-se objeto de crítica 27 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) recorrente no discurso acadêmico, sobretudo a partir da segunda metade do século XX (embora já viesse sendo discutido por pensadores e teóricos brasileiros antes disso), com o avanço dos Estudos Culturais, Pós-Coloniais, Subalternos, Decoloniais e afins. Essa crítica já estava presente na década de setenta, quando Edward Said publica seu célebre Orientalismo (1978), ao lembrar que aquele conceito resulta da hegemonia cultural europeia, desdobrando-se na “idea of European identity as a superior one in comparasion with all the non-European peoples and cultures” (SAID, 1979, p. 7); ou na de oitenta, quando Samir Amin publica seu igualmente conhecido Eurocentrismo (1988), afirmando que “The whole of Eurocentrism lies in this mythic construct” (AMIN, 2009, p. 103). No âmbito dos Estudos Decoloniais, o conceito ganha uma definição mais precisa e, porventura, mais operacional: Eurocentrismo é, aqui, o nome de uma perspectiva de conhecimento cuja elaboração sistemática começou na Europa Ocidental antes de meados do século XVII, ainda que algumas de suas raízes são sem dúvida mais velhas, ou mesmo antigas, e que nos séculos seguintes se tornou mundialmente hegemônica percorrendo o mesmo fluxo do domínio da Europa burguesa. Sua constituição ocorreu associada à específica secularização burguesa do pensamento europeu e à experiência e às necessidades do padrão mundial de poder capitalista, colonial/moderno, eurocentrado, estabelecido a partir da América (…). Não se trata, em consequência, de uma categoria que implica toda a história cognoscitiva em toda a Europa, nem na Europa Ocidental em particular. Em outras palavras, não se refere a todos os modos de conhecer de todos os europeus e em todas as épocas, mas a uma específica racionalidade ou perspectiva de conhecimento que se torna mundialmente hegemônica colonizando e sobrepondo-se a todas as demais, prévias ou diferentes, e a seus respectivos saberes concretos, tanto na Europa como no resto do mundo (QUIJANO, 2005, p. 239). Embora um pouco extensa, a citação revela exatamente esse aspecto unidireccional – e, portanto, totalitário – do conceito, que, muitas vezes, redunda em práticas elusivas de comunitarismo epistêmico – reprovadas, por Boaventura Santos (2018, p. 25), como um “pensamiento crítico eurocêntrico” demasiadamente resiliente –, as quais escondem seu caráter, a um só tempo, opressor e dominante. É, com efeito, o que costuma acontecer com o currículo, quando confrontado com a questão étnico-racial brasileira. De modo geral e dentro dos limites em que isso é possível, o currículo eurocentrado é um dos responsáveis pela propagação e perpetuação de uma “ideologia” racista, que se traduz em práticas discriminatórias na escola. Nelson Piletti e Walter Praxedes (2010), por exemplo, tratando da questão racial na educação escolar, lembram que, mesmo entre os alunos de baixa renda, os negros apresentam maior índice de insatisfação escolar, o que indica que o problema educacional relacionado aos negros não é 28 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO apenas uma questão de exclusão social; o maior problema, afirmam os autores, é que nossa cultura está centrada nos modelos europeus: o eurocentrismo é um dos grandes obstáculos que devem ser superados para que sejam assegurados o acesso e a permanência dos diversos grupos étnico-raciais no sistema escolar brasileiro, uma reivindicação política e educacional dos grupos sociais marginalizados (PILETTI; PRAXEDES, 2010, p. 134). O fato é que a escola brasileira parece não ter aprendido, ainda, a conviver com a formação cultural multirracial e pluriétnica de seu alunado, privilegiando o currículo de matriz europeia, ou seja, baseada em uma “visão monocultural e eurocêntrica” (FERNANDES, 2005, p. 380). CONSIDERAÇÕES FINAIS Uma vez inseridas as informações relativas ao universo cultural afro-brasileiro na escola, como reza a Lei nº. 10.639/03, o preconceito de natureza racial – relacionado a estruturas reais ou imaginárias, mas, sobretudo, simbólicas – tende a ser, se não rompido, minimizado. É preciso considerar, contudo, que o Brasil – como, de resto, a quase totalidade dos países do chamado Terceiro Mundo – foi vítima de um longo processo de colonização que, baseado numa espécie de naturalização da violência epistêmica que se retroalimenta permanentemente, acabou por criar um trauma colonial, tornando o negro uma espécie contemporânea de pária social. Nesse contexto, o conceito de afrocentricidade ambiciona ocupar na sociedade não um espaço hegemônico, mas se afirmar como uma razão epistemológica que possa, autonomamente, contribuir para a solução da atual “crise” curricular que se verifica entre nós, distinguindo-se como categoria fundamental de uma ampla e complexa razão africana, que segue um modelo epistemológico assentado tanto numa práxis quanto numa gnosiologia africanas. Evidentemente, não se deve entender o epíteto africano, aqui empregado, de um ponto de vista meramente topológico, menos ainda essencialista, mas numa acepção plurissignificativa, que inclui as diásporas e as influências culturais, as práticas de resistência às teorias raciais e às políticas de exclusão, as ações públicas e os discursos históricos e muito mais... No fundo, o que se deve buscar, ao se defender o conceito e a prática afrocêntricas, é tornar os valores culturais de matriz africana um dos vetores pedagógicos em diálogo com os demais valores que compõem o saber “universal”. Em suma, em vez de centralizar o processo educacional a partir de uma matriz cultural específica, dever-se-ia fazer um esforço no sentido de descentralizar os saberes, de modo a romper o paradigma da hegemonia cultural assumida 29 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) por determinadas culturas, em especial a europeia. O resultado seria, obviamente, um diálogo profícuo e pluralista entre os múltiplos saberes, numa relação que, sem ser hierárquica e contingencial, é, antes de tudo, estruturalmente igualitária. Trata-se, nesse sentido, mais do que um movimento de repercussão “apenas” no âmbito educacional, de uma dinâmica de amplo alcance político, na medida em que pressupõe a descolonização dos saberes, no universo da cultura e das práticas sociais. Afinal de contas, a questão racial é particularmente complexa, não devendo ser, como alerta Michael Apple (2017), homogeneizada. REFERÊNCIAS AMIN, Samir. Eurocentrism: Modernity, Religion, and Democracy. A Critique of Eurocentrism and Culturalism. New York: Monthly Review Press, 2009. APPLE, Michael W. A educação pode mudar a sociedade? Petrópolis: Vozes, 2017. AZEVÊDO, Eliane. Raça. Conceito e Preconceito. São Paulo: Ática, 1987. BERND, Zilá. Racismo e Anti-racismo. São Paulo: Moderna, 1994. CARVALHO, Marília Pinto de (org.). Diferenças e desigualdades na escola. São Paulo: Papirus, 2012. COSTA, Luciano Gonçalves (org.). História e cultura afro-brasileira. Subsídios para a prática da educação sobre relações étnico-raciais. Maringá: EDUEM, 2010. 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O trabalho de campo consistiu a partir da vivência como formadoras em cursos de formação continuada, ocorrida em 2021, em uma escola-polo em área rural da comunidade Capoeirinha, município de Barão de Melgaço (MT), e em 2022, realizada com professores que atuam em escolas em área urbana do município de Várzea Grande (MT). Na ocasião, foi aplicado um questionário com perguntas abertas a 12 docentes, porém, neste artigo, serão analisadas somente as respostas de três professores de escola rural e três professoras de escola urbana. Dentre as questões, destacaremos aqui a principal: a importância da formação continuada sobre Educação e relações étnico-raciais na ação pedagógica, política e social das docentes. As participantes serão identificadas por nomes fictícios. A formação docente ainda representa um desafio para campo educacional atualmente, uma vez que a formação continuada dos professores é considerada um instrumento importante na atualização e transformação qualitativa do profissional (NÓVOA, 1995). Possibilita ainda dar conta das mudanças sociais, políticas, culturais e tecnológicas, desenvolvendo suas competências de acordo com as teorias educacionais vigente, fortalece sua prática pedagógica, possibilitando perceber as necessidades da turma permeado em 1 Doutora. UNEMAT. E-mail: [email protected] 2 Mestra. Secretaria Municipal de Educação de Cuiabá. E-mail: [email protected] 3 Mestra. Secretaria Municipal de Educação Cultura Esporte e Lazer de Várzea Grande. E-mail: [email protected] 33 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) um contexto criativo, aberto, dinâmico e que contemple a diversidade em sala de aula. Em se tratando das questões raciais, a Lei n°. 10.639/03 e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais já postulam a relevância da formação de professores como mecanismo central na promoção do ser humano na sua integralidade e ao enfrentamento das desigualdades raciais no contexto escolar, considerando a educação como instrumento de poder no processo de formação de qualquer sociedade. Os referidos documentos clamam pela fomentação de debates sobre a questão racial, com intuito de superar equívocos a respeito da população negra ao longo da história, isto é, contribuindo para o combate do racismo, desigualdades e discriminações em todos os setores sociais, em especial, na escola. Para tanto, há necessidade [...] de professores qualificados para o ensino das diferentes áreas de conhecimentos e, além disso, sensíveis e capazes de direcionar positivamente as relações entre pessoas de diferente pertencimento étnico-racial, no sentido do respeito e da correção de posturas, atitudes, palavras preconceituosas. Daí a necessidade de se insistir e investir para que os professores, além de sólida formação na área específica de atuação, recebam formação que os capacite não só a compreender a importância das questões relacionadas à diversidade étnico-raciais, mas a lidar positivamente com elas e, sobretudo criar estratégias pedagógicas que possam auxiliar a reeducá-las (BRASIL, 2004, p. 17). Os professores que atuam no ensino básico, em áreas rurais (educação infantil, ensino fundamental regular e, alguns em salas multisseriadas), evidenciam a realidade que enfrentam com relação aos processos formativos, e em especial, sobre a implementação da lei n°. 10.639/03 em suas escolas. Sob o ponto de vista da prática pedagógica, os conhecimentos necessários a partir da inclusão de debates e discussões da questão racial no interior das escolas, contribui para repensar sobre os currículos eurocêntricos adotados ao longo dos séculos, a ressignificar os conteúdos, a fortalecer e afirmar identidades, a sobretudo, efetivar uma educação antirracista, indispensável nos dias atuais. É importante destacar que o grau de conhecimento por parte dos professores sobre a temática, pode trazer consequência para o trabalho pedagógico, uma vez que a precariedade na formação do professor incide no seu posicionamento político diante dos problemas sociais, influenciando na manutenção da reprodução de estereótipos racistas e no silenciamento sobre os conflitos raciais no cotidiano escolar. O QUE OS PROFESSORES DA EDUCAÇÃO BÁSICA DE ESCOLAS RURAIS E URBANAS DIZEM DA IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO 34 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO CONTINUADA SOBRE RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA SUA AÇÃO PEDAGÓGICA, SOCIAL E POLÍTICA A educação na contemporaneidade vem enfrentando mudanças significativas, e nesse cenário, os professores têm se deparado com inúmeros desafios enfrentados na sua trajetória profissional, dentre eles, a questão dos processos formativos, que alicerçam o trabalho pedagógico para lidar com a diversidade étnico-racial na escola e com a desigualdade, tão recorrente em nossa sociedade. Segundo Arroyo (1999), é importante que o professor se qualifique para que possa intervir no processo educativo com qualidade, pois “faz parte do pensar mais tradicional que a qualificação dos profissionais se coloque como pré-requisito e é uma precondição à implantação de mudanças na escola” (ARROYO, 1999, p. 146). No contexto das relações étnico-raciais, é fundamental o preparo do professor para lidar com situações que ocorrem em sala de aula, em razão da diversidade que existe nela, uma vez que é notório situações de conflitos raciais que têm influenciado de forma negativa no desempenho escolar de crianças negras na escola. Para Pinto (1999), é fundamental que o professor tenha uma vasta bagagem de conhecimentos acerca do assunto, suficientes para que possa intervir de forma significativa e eficaz nas situações cotidianas, e ainda, a consciência da necessidade de enfrentar as questões raciais no chão da escola. Ao buscar entender a dinâmica da formação, cabe-nos salientar que a apresentação das percepções dos professores é uma forma de chamar atenção para a grande potencialidade que a formação continuada exerce na mudança de posturas dos professores, bem como na forma de refletir e compreender o processo ensino e aprendizagem do aluno e as nuances acerca da diversidade étnico-racial refletida no ambiente escolar. Segundo Nóvoa (2019), o ciclo do desenvolvimento profissional se conclui com a formação continuada, sendo que este espaço permite aos professores romper com o trabalho individual e ter outro olhar para um trabalho em equipe, aguçando para uma reflexão mais conjunta. Em geral, todos os professores destacaram em seus relatos que concebem a formação continuada um mecanismo de construção e reconstrução de saberes e de trocas de experiências importantes para o enriquecimento da prática pedagógica. Professora Ana, que leciona há 10 anos e que, atualmente, atua numa turma de 5º ano do ensino fundamental de uma escola da zona rural do município de Barão de Melgaço (MT), afirma que “a formação continuada é importante para o professor se atualizar e qualificar, buscando melhoria na sua prática pedagógica e metodológica, visando uma aprendizagem de qualidade aos nossos alunos. Mas para nós aqui é difícil” (PROFESSORA ANA, 2021). A professora Maria Aparecida, que já possui uma longa caminhada na educação básica e que, 35 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) hoje, está na coordenação pedagógica, aborda que: A formação continuada desempenha papel imprescindível na prática pedagógica do professor, ela oferece um repertório de saberes para que sua atuação tenha melhor êxito, possibilita ainda nortear suas estratégias de ensino, como também impulsiona sua carreira profissional, aprimorando a sua atuação social e política no ambiente escolar. Mas na nossa realidade de escolas rurais esses cursos são pouco ofertados, principalmente sobre relações raciais, o que nos deixa bastante desanimados (Maria Aparecida, Coordenadora pedagógica, escola rural) (PROFESSORA MARIA APARECIDA, 2022). Percebe-se no relato dessas profissionais da educação, que não há, a alguns anos, um comprometimento da gestão pública com a promoção de cursos de formação continuada aos professores de escolas rurais, o que leva os educadores ao desânimo, a falta de fazer correlação da teoria e prática, dificultando o processo ensino e aprendizagem. Ao observar a fala da professora, é notório que, possivelmente, o poder público não tem demonstrado engajamento numa política de formação, nem empreendido muito interesse em investir na valorização e na formação dos professores, fundamentos vigentes na LDB – lei n°. 9394/96. Isso tem levado ao não cumprimento da obrigatoriedade prevista na lei n°. 10.639/03, havendo um possível descompasso entre o potencial do desenvolvimento profissional e uma educação justa, democrática e equânime. Para Sancristán e Gomez (1998), a melhora da qualidade de ensino esbarra na atenção dada à qualificação dos professores e nas condições da escola. Nessa perspectiva, os autores afirmam que “a escola é um espaço de decisão que deve estabelecer medidas concretas para desenvolver um projeto educativo preocupado com a melhora constante da qualidade do ensino por meio do aperfeiçoamento dos professores” (SANCRISTÁN; GÓMEZ, 1998, p. 268). Para a professora Lúcia, que atua na educação infantil e classe multisseriadas, considera a formação continuada de suma importância, tendo em vista que nós professores somos mediadores do aprendizado e conhecimento adquiridos, por isso, acredito que para que haja uma educação de qualidade devemos buscar a todo instante novos conhecimentos, pois a educação é o único meio de transformação e de mudanças de vida, de mentalidade, principalmente dos nossos alunos que vem de famílias pobres (PROFESSORA LÚCIA, 2021). Outro aspecto importante citado é que os professores consideram como pontos importantes a ser trabalhado nos cursos, a promoção da inclusão, a relação escola e família, e principalmente sobre Educação para as relações étnico-raciais, uma vez que tais temas ainda são desafios a serem enfrentados em sala de aula: 36 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO Na escola o professor orienta a construção do conhecimento dos alunos. Por isso a formação continuada em Relações étnico-raciais ajuda o professor a melhorar cada vez mais as suas práticas pedagógicas e com isso, ajuda nós professores a tratar a situações raciais no dia a dia da escola e os alunos negros na construção de sua identidade racial. Esse processo de formação deve ser permanente, pois faz parte da busca por um ensino de qualidade. (PROFESSORA LÚCIA, 2021). As professoras exaltam a formação continuada como ferramenta importante para melhorar a prática pedagógica e, por conseguinte, o aprendizado dos alunos na sala de aula. Dentre as diversas temáticas de interesse apontadas, a questão da formação sobre relações étnico-raciais parece urgente, tendo em vista que o preconceito racial e estereótipos racistas estão impregnados no imaginário social da sociedade brasileira. De acordo com Pinto (1999, p. 207) “posicionar-se perante as diferenças étnico-raciais ou abordá-las na escola não é uma tarefa fácil, dada a carga ideológica de que se reveste essa questão, a multiplicidade de crenças arraigadas subjacentes à sua percepção”. Ainda sobre a percepção da professora de que “o processo de formação deve ser permanente” (PROFESSORA LÚCIA, 2021). Nóvoa (2019) afirma, categoricamente, que a formação nunca está pronta e acabada, é um processo que continua ao longo da vida. Outros pontos elencados sobre as dificuldades enfrentadas pelas professoras que atuam em escolas rurais, é de que a ausência na realização de cursos de formação, muitas vezes, tem como alegação o fato de as comunidades serem muito afastadas geograficamente da cidade. Nesse sentido, as professoras que trabalham com salas multisseriadas se veem desamparadas de atendimento. Essa situação mostra o reflexo da desigualdade social que atinge o universo escolar, e não é diferente de muitos lugares longínquos de cidades espalhadas pelo país afora. Muitas vezes, os gestores públicos privilegiam o atendimento as escolas mais próximas da zona urbana, e acabam por negligenciar o atendimento as escolas rurais, por considerar que gera muito custos devido à distância, a má qualidade das estradas, poeiras ou alagamentos decorrentes de chuvas. Reportando-se à perspectiva de uma prática pedagógica que exige ação e reflexão, Marques (1999) destaca que a escola é vista como o mundo de referência de todo o processo formativo. É importante que o espaço pedagógico seja fortalecido e aprimorado por práticas enriquecedora e significativas, e isso se constitui na relevância da formação contínua dos docentes, que significa neste enfoque “a articulação entre a atuação do professor na sala de aula e o espaço para a reflexão coletiva e o aperfeiçoamento constante das práticas educativas, refundando-as sempre de novo na produção do saber/competências” (MARQUES, 1999, p. 195). 37 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) A compreensão da formação de professores como essencial para a melhoria da ação pedagógica dos professores, constitui-se em uma tarefa primordial na compreensão da formação de sujeitos históricos, capazes de refletir sobre as questões sociais que os circundam e que possam atuar de forma política, significativa e critica na transformação da realidade em que vivem. Em sentido mais amplo, é importante enfatizar que os processos de formação possibilitam a articulação entre teoria e prática, abrangendo todo o contexto político, cultural e social no qual o docente se encontra. Para Marcelo García (1999), a formação de professores, tanto inicial como continuada, não deve ser entendida como algo técnico, com a intenção de somente adquirir conhecimentos, mas como uma proposta que, além de adquirir conhecimento (saber/saber), se use o conhecimento para resolver situações ou problemas do cotidiano (saber/fazer) e, por fim, os conceitos e conhecimentos adquiridos sejam parte da sua atitude, postura (saber/ser). Nessa perspectiva, o autor enfatiza que “a formação continuada deve ter em conta a reflexão epistemológica da prática, de modo que aprender a ensinar seja realizado através de um processo em que o conhecimento prático e o conhecimento teórico possam integrar-se num currículo orientado para a ação” (GARCÍA, 1999, p. 29). Em outro momento, com o propósito de conhecer a percepção das professoras que atuam em escolas urbanas do município de Várzea Grande-MT, foram feitas duas perguntas para quatro delas. A primeira foi a seguinte: “Você já participou de alguma formação sobre a educação e relações étnico-raciais?”; a segunda questão foi: “Para você, qual a importância desta formação?”. De acordo com as participantes, todas já participaram de cursos de formação continuada sobre questões raciais com foco na lei n°. 10.639/03. As professoras relataram que a Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Lazer, via a Equipe da Diversidade, em parceria com o Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (CMPIR), daquele município, em 2022, realizou a sua 5ª edição do Seminário de Diversidade e Educação Ético-raciais, com o tema “Políticas Públicas, Cultura, Arte e Educação: contribuições afro-brasileira e Indígena”. Segundo as docentes, esse evento tem contribuído na ampliação de conhecimentos sobre a temática, além disso, destacam que elas buscam fazer cursos sobre a temática racial via online quando disponibilizadas por universidades públicas de todo o país: Eu sempre estou em busca de ampliar meu conhecimento sobre as questões raciais, participo dos cursos ofertados pela Secretaria de Educação e também fico atenta nas ofertas de cursos nos sites das universidades públicas. Sempre tem instituição disponibilizando na forma online. Assim que fico sabendo, faço minha inscrição e também informo outros professores, 38 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO aqueles que tem interesse faz sua inscrição (PROFESSORA ROSA, 2022). Ainda sobre a importância dessa temática, as professoras afirmam que ao terem contato com as discussões, percebem que os cursos de formação sobre Relações Étnico-raciais são fundamentais para a compreensão adequada relacionada à temática, oportunizando a conscientizar quanto suas práticas pedagógicas estavam fragilizadas no trato das questões raciais, como destaca a professora Lilian: Esses cursos contribuem muito para que possamos compreender a dimensão do racismo na escola e da importância de nos refletirmos sobre a mudança de nossa postura e da relevância de uma prática pedagógica que possa desconstruir os estereótipos que só prejudicam as crianças negras. [...] tudo que aprendo eu já busco colocar em prática (PROFESSORA LILIAN, 2002). No depoimento, a professora percebe extensão da importância sobre os cursos de formação sobre as relações Étnico-raciais, como também se verifica que esses profissionais da Educação, por estarem concentrados na zona urbana, tem mais oportunidade de acesso a cursos, tanto na forma presencial como online, uma vez que a internet é mais acessível. De acordo com Luiz (2013), para que ocorra uma educação para relações étnico-raciais na escola, é preciso não só desconstruir o preconceito arraigado no imaginário dos professores e demais profissionais da escola, para que estejam preparados para lidar com a diversidade racial no cotidiano, mas também, de serem capazes de tecer críticas ao currículo vigente e buscar transformá-la. Segundo Luiz (2013, p. 116), “a inserção da lei n°. 10.639/03 e suas diretrizes visando o trato das Relações étnico-raciais na escola é doloroso e dificultoso” tendo em vista que que “implica no modo como pessoas, sejam elas negras ou brancas, se enxergam e enxergam o outro” (LUIZ, 2013, p. 116). O maior desafio, ao que nos parece, consiste nas dificuldades na formação dos professores das zonas rurais, incidindo na falta de preparo para lidar com os conflitos raciais no ambiente escolar, o que pode consistir em um entrave na construção de uma escola de qualidade e ocorrer em exclusão social. Apoiados nas ideias defendias por Nóvoa (2019, p. 03), entendemos que a escola se manifesta incapaz de responder aos desafios da contemporaneidade, isto é, “a escola parece perdida como se não tivesse conseguido entrar no século XXI, e desta forma, “a escola revela, sobretudo, uma grande incapacidade para pensar o futuro, um futuro que já faz parte da vida das nossas crianças”. Os estudos sobre as relações étnico-raciais são importantes para compreender e desconstruir o imaginário social que desqualifica as pessoas negras, de forma que, a educação, de maneira geral, e a formação de professores/as, em 39 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) específica, se apresentam como importantes instituições sociais de enfrentamento e combate do racismo, de toda forma de discriminação e preconceito racial (MUNANGA, 1996; 2008; GOMES, 2008, ABRAMOVAY; CASTRO, 2006; CAVALLEIRO, 2001; CANDAU, 1996). Nessa perspectiva, considerando que a escola é uma instituição de poder, é fundamental a descolonização dos currículos (GOMES, 2012), tendo em vista que a promoção de uma educação antirracista tem sido uma das principais bandeiras de luta contra a exclusão, a desigualdade e as opressões, realizada pelo movimento negro brasileiro já há vários anos em nosso país. (GONÇALVES; SILVA, 2000; NASCIMENTO, 1978). Dentro dessas perspectivas e nas inquietudes apresentadas pelas professoras acerca da escassez de cursos de formação continuada no contexto das escolas rurais, nos leva a crer que, a falta de uma política permanente de formação continuada reflete na deficiência do trabalho docente, e causa impacto na qualidade do processo educativo ofertado, contribuindo para as desigualdades educacionais em nosso país. CONSIDERAÇÕES FINAIS A formação continuada é um instrumento importante para potencializar as ações pedagógicas no cotidiano escolar. Os profissionais da educação que lidam cotidianamente com a sala de aula, se deparam constantemente com as mudanças sociais e tecnológicas, e precisam estar atualizados e preparados para enfrentar as situações presentes no ambiente escolar. Evidenciamos a reflexão acerca das relações étnico-raciais e a importância da formação continuada sobre a ação pedagógica, social e política dos professores da educação básica, a partir da vivência como formadoras em cursos de formação continuada, realizada na zona urbana e rural em dois municípios do Estado de Mato Grosso. E importante destacar que os professores, tanto da zona rural quanto da urbana, concebem a importância da formação continuada para a melhoria da sua ação pedagógica, como também tais formações potencializam sua ação política e social nas decisões cotidianas. Porém, os professores que atuam em escolas rurais, revelam suas angústias acerca da necessidade e escassez desses cursos em áreas rurais do município de Barão de Melgaço (MT), tendo em vista que vivenciam já, há algum tempo, o silêncio dos gestores na priorização da formação dos docentes, para que possa elevar a qualidade da educação do município e, consequentemente, melhorar o índice de aproveitamento escolar que, atualmente, é baixo. Consideram que elas têm vontade de fazer esses cursos disponibilizados via online, como forma de suprir suas necessidades pedagógicas, porém, esbarram na falta de acesso à internet. 40 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO Os professores destacam a carência de cursos de formação continuada na região como um problema grave a ser pensado e solucionado, e consideram urgente a valorização dos profissionais que lecionam em escolas rurais, a partir de uma participação mais efetiva do poder público, na construção de uma política de formação continuada permanente, para que resulte em um processo de ensino e aprendizagem bem-sucedido, e contribua para uma educação de qualidade no referido município. Diante da necessidade identificada de formação continuada pelos professores de escolas rurais, é fundamental que a secretaria de educação tenha essa consciência da importância da implementação da lei n°. 10.639/03 nas escolas, e ainda, deve apoiar os professores no sentido de promover estudos constantes, para que possam aprimorar seus saberes e desenvolver sua ação política e social de forma significativa no ambiente escolar. Por outro lado, os professores que atuam em áreas urbanas, destacam que as oportunidades de acesso aos cursos de formação, têm fundamentado seus saberes de forma interdisciplinar, contribuindo de maneira exponencial, no tratamento das questões raciais no contexto educacional. Afirmam que a Secretaria de Educação do município de Várzea Grande tem se preocupado com as formações dos professores, ofertando cursos, seminários e palestras, em parceria com o Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial, e ainda, tem mais oportunidades de fazer cursos ofertados por instituições superiores de todo o país, por conta da facilidade no acesso à internet É indiscutível a relevância dos cursos de formação na mudança de posturas pedagógicas. No caso das temáticas raciais, os profissionais da educação, além de refletir sobre as relações raciais e étnicas na sociedade brasileira, principalmente, no ambiente escolar, tem a oportunidade de desconstruir estereótipos e mudar sua mentalidade em relação às teorias racistas. Além disso, não cabe mais o silenciamento sobre a temática na escola, esta deve ser um espaço de discussões e reflexões acerca do assunto. Os municípios devem estar atentos a efetivação de uma política de formação continuada, que atinja a todos os professores, tanto os que lecionam nas escolas urbanas como nas escolas rurais, levando em consideração as necessidades específicas de cada realidade social, como também, conscientizar da desigualdade racial existente na sociedade brasileira e da educação como potencial instrumento para combatê-la. A ausência de processos formativos sobre as questões étnico-raciais é um dos obstáculos na implementação da lei n°. 10.639/03 nas escolas. Portanto, considera-se urgentes o reconhecimento e a valorização dos profissionais que lecionam em escolas rurais e uma participação mais efetiva 41 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) do poder público na construção de um projeto de formação continuada permanente, enquanto compromisso político, oportunizando direitos iguais para que resulte em um processo de ensino e aprendizagem bem-sucedido com vista na consolidação de uma educação antirracista em todo o Estado. REFERÊNCIAS ABRAMOVAY, Miriam; CASTRO Mary Garcia. Relações raciais na escola: reprodução de desigualdades em nome da igualdade. Brasília: UNESCO, INEP, Observatório de Violências nas Escolas, 2006. ARROYO, Miguel. Ciclos de desenvolvimento humano e formação de professores. Campinas, Educação e Sociedade. Formação de Profissionais da Educação. Políticas e Tendências, n. 68, p. 143-63, 1999. BRASIL. 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Quando pensamos na especificidade desta discussão nos espaços educacionais, em termos legislativos, notamos que por intermédio da Lei nº. 10.639 de 09 de janeiro de 2003, atualizada pela Lei nº. 11.645 de 2008, o Brasil incluiu a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo oficial da rede de ensino. Comprometido com a pauta das políticas afirmativas do governo federal, em 2004 o MEC - Ministério da Educação, apresentou as diretrizes curriculares nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, ressaltando, entre outras, as diretrizes para inserção e discussão da temática no ensino superior, comprometendo-se assim, com um política educacional e um projeto de sociedade baseado no respeito e reconhecimento da pluralidade étnicorracial. No que se refere ao processo de formação no ensino superior, com ênfase para o curso de Psicologia, dado a relevância da temática e o reconhecimento histórico de que a ciência psicológica contribuiu significativamente para a legitimação do racismo e, a Psicologia Brasileira, por sua vez, se omitiu por muito tempo ao não reconhecer na sua trajetória histórica o racismo como uma problemática social grave que deflagra sofrimento existencial, nas últimas décadas o Sistema Conselhos de Psicologia que orienta a prática do profissional no território Brasileiro, vem se movimentando de forma ao reposicionamento, construindo e apresentando a categoria, normas éticas e técnicas para o exercício 1 Psicóloga, Mestra em Educação pela PUC/SP. Especialista em Psicologia Clínica Fenomenológica Existencial pela Nucafe. Aprimoramento em Africanidades pela UF/ABC. Coordenadora Discente no curso de Especialização em Fenomenologia Decolonial e Clínica Ampliada da NUCAFE. Professora no Curso de Psicologia, supervisora de estágios e pesquisadora compromissada com as questões relacionadas às temáticas de raça, gênero, práticas psicológicas, políticas sociais no SUAS e ensino de fenomenologias - [email protected] 44 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO profissional diante das questões raciais. Alguns exemplos deste posicionamento, pode ser observado a partir da criação da Resolução CFP nº. 018/2002, que ao reconhecer os principios legislativos que pautam a discussão da questão, estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação ao preconceito e à discriminação racial. Além desta resolução, após muitas reivindicações advindas do movimento negro, bem como queixas contínuas de estudantes que de diferentes formas denunciavam a ausência de espaços de discussão da temática racial, ausência de autoras(es) negras(os) como referência no processo de formação, entre outras questões, em setembro de 2017, o Conselho Federal de Psicologia, apresentou a categoria e a sociedade o documento - Relações Raciais: Referências Técnicas para a Prática da(o) Psicóloga(o). O documento foi elaborado no âmbito do Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (Crepop) que, entre outros, aponta para a importância da temática racial ser incluída de forma transversal nas diversas disciplinas ou módulos do curso de Psicologia, tendo em vista os aspectos psicológicos envolvidos nas relações raciais no Brasil. Ainda de acordo com o documento, é fundamental, entre outros, que os profissionais de Psicologia, compreendam de forma mais ampla e específica como se dão as relações raciais existentes na sociedade, de que forma o racismo impacta na vida de pessoas brancas e negras, quais são os efeitos psicossociais decorrentes deste tipo de vivência e quais são as possibilidades de ações que poderão ser realizadas por profissionais da Psicologia, que de algum modo, possam contribuir para os processos de acolhimento e emancipação, desconstrução dos preconceitos e das práticas discriminatórias que compõem este cenário. Vale ainda ressaltar que o tema ‘enfrentamento ao racismo’ foi uma das temáticas do 6° Congresso Brasileiro de Psicologia. Na ocasião, foi organizada uma mostra em formato de linha do tempo, com as diversas ações realizadas pelo Sistema Conselhos neste enfrentamento nos últimos anos. O espaço sob responsabilidade da Comissão de Direitos Humanos, foi chamado de “Um tempo para o nosso tempo: O Sistema Conselhos na Luta Antirracista”. Todavia, no texto que marca o início da Campanha Nacional de Direitos Humanos do Sistema Conselhos de Psicologia em sua edição de 2020 a 2022 com o tema - “Racismo é coisa da minha cabeça ou da sua?” merece destaque o trecho que ressalta o fato de que muitos profissionais da Psicologia ainda não reconhecem o caráter marcante, destruidor e estruturante do racismo e desconhecem ações e documentos importantes que intencionam superar a distância da Psicologia e as questões raciais. Tal apontamento, ao mesmo tempo em que evidencia a urgência em se 45 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) produzir continuamente ações de enfrentamento ao racismo nas práticas psicológicas, também ressalta a importância da execução da proposta aqui apresentada, uma vez que a superação do racismo exige, um processo continuo de formação antirracista que se estabeleça desde os primeiros passos do processo de formação em Psicologia. METODOLOGIA A proposta aqui apresentada refere-se a uma experiência de estágio básico, realizada junto aos estudantes do 5º Semestre do Curso de Psicologia, vinculados a uma instituição particular localizada na região metropolitana de São Paulo. Nesta Instituição, o estágio básico, justifica-se por apresentar aos estudantes, a partir do estudo de temáticas específicas, possibilidades de intervenções e adequação do manejo especializado em Psicologia de forma a refletir, compreender e intervir em diferentes contextos. O estágio é balizado por um aporte teórico e prático, e se revela através da oferta e realização de metodologias diversas que visam contribuir para o processo de imersão no estudo da temática específica. Com isso, espera-se, entre outros, ofertar aos estudantes subsídios necessários para que ao final do processo, além de apresentarem um relatório descritivo-acadêmico, tenham condições de entregar um produto, capaz de materializar seu processo de aprendizagem. Para realização deste processo de orientação e supervisão de estágio, enquanto atitude na Psicologia, buscamos adotar uma postura fenomenológica ao longo de todo processo, para isso, tal como nos ensina Cabral (2022), junto aos estudantes buscamos trabalhar no sentido de romper com olhares cristalizados, desaprender cacoetes e reinventar modos cuidadosos e propositivos de estar no mundo com os outros, buscando assim, a transgressão dos olhares míopes que violentamente, impedem que fenômenos historicamente invisibilizados voltem a brilhar a partir de premissas de igualdade e dignidade. Como fundamento teórico-metodológico, foram utilizadas duas perspectivas centrais que dialogam entre si, a saber: A perspectiva dialógica de Paulo Freire (1987) e a perspectiva engajada de bell hooks (2020). De acordo com hooks (2020), pensar a educação como prática de liberdade tal como nos orienta Paulo Freire, só se torna possível quando nos apropriamos de uma prática engajada que se movimente no sentido de promover transformação, para aquilo que não é, mas pode ser. Isso significa que uma prática engajada, assim como a prática libertadora, é antes de qualquer coisa, uma práxis “problematizadora” que além de propor visão crítica da realidade, se compromete, sobretudo, com movimentos de 46 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO expansão e engajamento que ao partir do concreto, isto é da situação vivida pelas pessoas em suas experiências cotidianas, busque a transformação dela. Ao conceituar a ideia de educação problematizadora – dialógica por excelência, Freire (1987), nos informa que esse tipo de educação se estabelece num esforço permanente, por meio do qual os homens e mulheres “vão se percebendo, criticamente, como estão sendo no mundo com que e em que se acham” (FREIRE, 1987, p. 41). Isto posto, compreendemos que a práxis engajada e libertadora, torna-se fundamental em um processo de formação em Psicologia, pois a todo momento ela é um convite para a reinvenção do olhar, da escuta, dos modos de ser e se relacionar consigo e com os outros, movimentando assim, possibilidades de fazeres éticos, cuidadosos e comprometidos também com as premissas antirracistas. Procedimentos metodológicos: Para realização deste estágio, considerando as exigências e cuidado de um processo de formação, um cronograma foi organizado e apresentado aos alunos com a observação de que “caminho se constrói caminhando”. Neste contexto, o cronograma significou pistas metodológicas que deveriam respeitar o ritmo, as escolhas e as possibilidades dos caminhantes. Apresento abaixo, uma breve sistematização das atividades realizadas ao longo do percurso: 1) Apresentação da Proposta e divisão de 5 grupos de no máximo 10 alunos. Na ocasião, os estudantes foram brevemente informados que no meio do semestre deveriam planejar e conduzir rodas de conversas entre eles, como uma forma de experimentação de condução de práticas em Psicologia, tendo como direcionamento uma perspectiva engajada e libertadora, materializada por meio da condução de círculos de cultura, tal como sistematizado por Paulo Freire (1991); 2) Para as rodas de conversa, cada grupo ficou responsável por discutir uma temática específica relacionado à questão racial, a saber: 1) Dimensão Histórica; 2) Âmbitos do Racismo. 3)Movimento Negro, 4) Branquitude e Branqueamento e 5) Reconhecimento do racismo e práticas antirracistas; sendo que os textos de base foram: Relações Raciais: Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) - CFP; Branqueamento e Branquitude no Brasil da Profa Dra Maria Aparecida Silva Bento (2001) e artigo produzido pela Profa Dra Lia Vainer Schucman (2014). Seguindo a orientação institucional, os subtemas foram definidos pela professora/supervisora e sorteados entre os grupos durante a aula; 47 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) 3) Como atividade de início do processo imersivo, foi realizado com os estudantes uma vivência intitulada Ancestralidade: Vivências e Relacionamentos, onde todos tiveram a oportunidade de refletir e pensar sobre sua constituição familiar e seus relacionamentos em diferentes esferas, sendo que a questão disparadora foi - Qual a cor de quem caminha com você? 4) Em outro momento, por meio de uma conversa aberta, também discutimos a percepção dos estudantes acerca da questão - Existe racismo no Brasil?; 5) Com o tema Olhando o PASSADO, Compreendendo o PRESENTE e Construindo FUTUROS dignos e diversos, foi tarefa da professora apresentar, em formato de círculo de cultura, o contexto histórico da discussão racial no Brasil, por meio da legislação que fora apresentada em formato de linha do tempo; 6) Como forma de preparação teórica, todos estudantes foram orientados a realizar fichamento dos respectivos textos de trabalho. Vale salientar, que a segunda metade de cada aula, era disponibilizada para realização do trabalho em grupo e construção de estratégias para a condução das próprias rodas de conversas sob supervisão da professora; 7) Para enriquecer o conhecimento dos estudantes, em todas aulas, a professora se comprometeu em apresentar para os estudantes dicas culturais, educativas, sites, músicas, vídeos, livros, podcast, entre outros dispositivos comprometidos com práticas e educação antirracistas, com o passar das aulas os alunos também passaram a compartilhar dicas diversas e alimentar esta grande rede de cultura e informações; 8) Como atividade de sala de aula, os estudantes tiveram a oportunidade de assistir o documentário Olhos azuis (1995) e, na sequência, realizar uma descrição que chamamos de crítica-sensível, onde tornou-se possível conhecer a percepção obtida por cada um, conforme alguns dos relatos apresentados abaixo: “mesmo com seu conteúdo produzido em 1996 nos EUA, nos toca profundamente em 2021 de maneira tão real. Desde o início do módulo o questionamento ‘Você gostaria de ser tratado como uma pessoa negra?’ me despertou uma inquietude seja pela minha omissão diante das questões, seja pela falta de conhecimento argumentativo. Uma sensação de opressão e revolta que trouxe uma inquietude muito grande.” “Ao longo do documentário eu senti uma revolta e ao mesmo tempo uma satisfação em ver uma virada de poder acontecendo naquele workshop, pessoas que nunca sentiram-se subjugadas experimentaram na pele 48 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO durante duas horas a impotência do preconceito, eu fiquei imaginando como as pessoas desta oficina voltaram para casa, quais os impactos que esses 120 min tiveram sobre elas, comparado a uma vida de injustiças, uma vida pagando por crimes que não são seus, a vida de uma pessoa negra.” “Preciso começar dizendo que todos precisam ter acesso a esse excelente conteúdo, ao assistir o documentário obtive vários insights da infância, me recordei do ensino fundamental I, onde tudo se iniciou, tenho memória da época da sala de aula, quando os meninos zombavam de mim por ter cabelo cacheado/crespo, diziam que meu cabelo era duro, e me chamavam de macaco, isso sem relatar nos apelidos que colocavam em mim.” “Pondero que após o documentário ‘Olhos Azuis’ e o semestre letivo abordando o Racismo na sociedade brasileira, escolher não levá-lo em conta nas práticas clínicas é contribuir para que a opressão permaneça ocorrendo, é invalidar e invisibilizar a dor de quem sofre com a violência. Qualquer aluno que busque uma formação ética, deve passar também pela crítica. Devemos considerar o indivíduo, sua cultura, interações ambientais e compreender o que lhe atravessa. Seu sofrimento não pode ser invalidado ou relativizado. Posicionar-se de maneira ‘neutra’ é não ser capaz de alcançar a dor do outro e desta forma, demonstrar alienação quanto a atuação como Psicólogo”. “fui bastante impactado pelo documentário ‘Olhos Azuis’ por tratar-se de realidades que vivi em muitos momentos da minha existência e que voltaram à tona através das pressões impostas como forma de testes pela intermediadora. O ponto alto dessa experiência foi quanto ao relato das crianças que passaram pelo experimento social, o qual lembrei-me que sofri bulling na escola por ser negro, pobre e não possuir nem lápis de cores para colorir meus desenhos.” 9) Como estratégia metodológica, as rodas de conversas conduzidas pelos estudantes foram realizadas no meio do semestre. Após a realização das rodas e envoltos a diferentes emoções suscitadas pelas reflexões realizadas e os aprendizados obtidos, iniciavam-se os processos de conversa e supervisão em uma perspectiva crítica, acolhedora e comprometida com o diálogo teórico-prático que convoca o compartilhamento do sentir-pensar, uma experiência nova para os estudantes. Foi destinado 1 dia de aula para cada roda de conversa. Cabe destacar, que a saída da atitude natural, isto é, o olhar de fora que convoca a crença da neutralidade e/ou compreensão a partir de pressupostos já dados e estigmatizados, era até o momento o único caminho conhecido pelos alunos no processo de construção de saber e possibilidades de intervenção. Sentir-se parte do processo apresentou-se então, como uma novidade rigorosa é possível, todavia, angustiante dada a tomada de consciência que revela que no mundo, vivemos também sobre a égide das escolhas e da corresponsabilização. 49 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) Somos no mundo com os Outros e neste processo, tal compreensão se deu a partir da reflexão trazida por um dos grupos ao apresentar a perspectiva da filosofia Ubuntu discutida por Cavalcante (2020) como possível caminho de saída do caos produzido pelo racismo no Brasil. Como nos ensina a filósofa Katiúscia Ribeiro, estamos em processo de desNorteamento2 da construção dos modos de Ser, Saber e Fazer. 10) Com vistas a pensar e ver a inserção da temática no cotidiano de práticas, estudantes e professora organizaram uma roda de conversa com profissionais compromissados com a questão em diferentes setores; Esta atividade possibilitou aos estudantes fazer um diálogo entre os estudos realizados até aquele momento e as práticas possíveis realizadas no contexto do mundo-vida, o que de acordo com os mesmos trouxe esperança, após a tomada de conhecimento da tragédia histórica e estrutural que (des) organiza nosso desenho de sociedade. 11) Por fim, os alunos foram instrumentalizados e desafiados a exercitar a escrita de um projeto de intervenção, cuja temática hipotética estava vinculada a um pedido fictício da Faculdade a qual estão inseridos, no sentido de realizar ações compromissadas com a promoção da igualdade racial no ambiente acadêmico. Deste exercício resultaram as seguintes ideias-projetos: a) criação de uma Liga de Psicologia compromissada com a temática racial responsável por diversas atividade com ênfase para indicação de livros para a biblioteca acadêmica; b) Feira Estudantil Racial tendo como objetivo trazer o encontro de todas as classes sociais, proporcionando uma troca de experiência e estimulando os estudantes e convidados a entenderem sua história e origem; c) Rodas de conversa relacionadas à temática étnicorracial e sociocultural; d) intervenção nas redes sociais, utilizando a ferramenta de enquete dentro do ambiente educacional, envolvendo o tema do escravismo ao racismo no Brasil, colocando perguntas que investiguem o quanto as pessoas conhecem do assunto; e) Levar a história da branquitude e Negritude, para alunos dos cursos de Psicologia e Pedagogia, para que ao terem contato com projetos sociais e/ou afins, engajem essa temática para o público infantil, adaptando a linguagem, usando fotos, imagens, bonecos, de maneira lúdica, adaptando a história para a compreensão do grupo. 2 50 Notas de aula a partir do curso ministrado pela Prof Dra Katiuscia Ribeiro no curso de Introdução à Filosofia Africana realizado pelo Ajeum Filosófico em parceria com o Laboratório Geru Maa de Africologia e Estudos Ameríndios do departamento de Filosofia da UFRJ. Desnortear implica o esforço de trabalhar a partir de reflexões que incluem a contribuição do pensamento decolonial e as perspectivas do Sul, saindo da ideia de universalidade do pensamento situado no eixo norte-europeu-estadunidense. EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO 12) Ao final, os estudantes entregaram um relatório descritivo de atividades de estágio elaborado em acordo aos parâmetros técnico-científicos vigentes. Uma peculiaridade que marcou a realização deste estágio é que o mesmo foi realizado de forma remota no período de pandemia da COVID 19, o que de forma surpreendente permitiu que a família entrasse na sala de aula e trocas que seriam impossíveis no contexto presencial, foram fundamentais para o enriquecimento do processo de estágio. Em uma segunda edição deste estágio, inspirada pelo cordel escrito pela escritora Jarid Arraes (2017) em homenagem a grande escritora Antonieta de Barros, ao término de estágio, os estudantes colocaram no mundo das redes sociais o Projeto “Gerando Inspiração”, onde ao mesmo tempo, todos publicaram em suas redes sociais posts que apresentavam personalidades negras de diferentes épocas e suas contribuições. A construção do material foi supervisionada pela professora. Com esta ação, muitos estudantes relataram que até aquele momento, desconheciam a quantidade de pessoas negras que em diferentes posições, fizeram e/ou estavam fazendo coisas incríveis no e pelo mundo, revelando assim, o violento processo de apagamento da potencialidade e contribuição positiva das pessoas negras, tão denunciado pela filósofa Sueli Carneiro (2005) e, a necessidade de ações como estas constituírem as estratégias educativas presentes em um processo de formação. RESULTADOS De maneira geral, durante as rodas de conversas os estudantes demonstraram diferentes impressões, a saber: Desconhecimento da História de construção da sociedade brasileira bem como os seus impactos nos processos de intersubjetividades; reconhecimento do racismo estrutural na vida cotidiana por meio da auto reflexão e compartilhamento de situações vivenciadas; percepção sobre vivências raciais atreladas a experiências pessoais e no contexto de grupos familiares interraciais e outros contextos; sentimento de esperança pela oportunidade de discutir a questão e possibilidades de criar novos modos de con-viver e intervir no campo profissional. Alguns alunos relataram a multiplicação das discussões realizadas nos espaços familiares e de trabalho. Duas estudantes negras, relataram seus protagonismos no processo de multiplicação de saber, ao compartilharem que em diferentes contextos de atuação profissional, os colegas de trabalho ficavam aguardando a chegada delas no dia seguinte a aula de estágio para que pudessem 51 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) contar o que haviam aprendido e como foram as discussões. Foi interessante ouvir as estudantes contando que muitos dos seus colegas, assim com elas, não conheciam esta perspectiva da história do Brasil e que após os compartilhamentos começaram a entender de formas diferentes questões como as cotas raciais, por exemplo, fato que também pode ser observado entre os próprios estudantes que se posicionavam totalmente contra esta política afirmativa e, no processo de estudo, além de ter a oportunidade de compreender a importância desta ação, também puderam ampliar a compreensão sobre o conceito de meritocracia. Alunos não negros relataram muitas dificuldades para dialogar sobre a temática Branquitute “´É muito difícil falar sobre Nós”. “Será que as pessoas não podiam simplesmente fazer as pazes e viver melhor ao invés de serem inimigas? perguntou uma integrante do grupo. Ao ser questionada pela professora sobre quem era o inimigo de quem, a estudante, após um profundo silêncio verbalizou, “os brancos professora, é isso que você quer que eu fale?”. Instrumentalizada pelo aprendizado obtido na leitura do livro pequeno manual antirracista da filósofa Djamila Ribeiro (2019), uma outra estudante branca levantou a mão e disse “Não se trata de se sentir culpado ou culpabilizar alguém, trata-se de se responsabilizar”. Muitas reflexões se abriram a partir deste diálogo - Será que é fácil para a pessoa negra falar sobre todo este processo de violência que marca sua história continuamente?”. Nesta roda em especial, após muitas reflexões, os alunos assumiram o compromisso de quebrar o pacto narcísico, amplamente discutido pela psicóloga Cida Bento (2022), que mantém as estruturas desiguais da sociedade brasileira. Uma questão interessante que apareceu durante as rodas, foi o fato de alunos negros ao discutirem a questão da Branquitude iniciarem suas falas pedindo aos alunos não negros para não se sentirem culpados diante dos acontecimentos históricos “Vocês não tem culpa de ter nascidos brancos”. Interessante notar que em nenhuma das rodas, houve esta preocupação em relação aos estudantes negros. Um estudante, chegou a mencionar “Apesar de eu ser negro, eu vivo muito bem com minha esposa que é branca e meus amigos de faculdades que são brancos”. A palavra “apesar” foi evidenciada no chat da aula online e colocou todos os alunos para pensar sobre o que foi falado. Com o passar das aulas, cada vez mais os alunos passaram a relatar que estavam ficando mais sensíveis acerca da percepção de situações racistas e preconceituosas. No início da aula passou a ser comum o relato de estudantes acerca de situações que foram percebidas e como eles agiram diante da ocorrência. Da paralisação, ao não acreditar no que estavam vendo e ouvindo até o posicionamento crítico. De acordo com os alunos, ter o espaço do estágio para falar 52 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO sobre isso, foi fundamental para lidar com o sentimento de impotência diante de situações tão absurdas e ao mesmo tempo se sentirem mais fortes para fazer algo para acabar com a problemática. Uma aluna branca, fruto de um casamento interracial e oriunda de um contexto social de baixa renda, conforme seu próprio relato, disse que durante muito tempo não conseguia entender a questão dos privilégios, uma vez que como branca e pobre também passava muitas dificuldades. Todavia, após as discussões realizadas em sala de aula, relatou que aos poucos foi compreendendo seu lugar de privilégios pelo simples fato de ser branca ao lembrar de diferentes situações que havia vivido. “Agora eu entendi como a banda toca professora”. Neste caso, entender como a banda toca foi um exercício fundamental para trabalhar em prol da mudança do ritmo da música. Esta mesma estudante, posteriormente em seu contexto de trabalho profissional, por ser professora, foi responsável por elaborar atividades diversas com crianças inseridas na rede pública de educação infantil no mês da Consciência Negra e realizar leituras mais críticas diante do que foi percebendo ao longo destas intervenções. DISCUSSÃO Para concluir a narrativa deste trabalho, utilizarei partes do texto elaborado por um grupo de estudantes ao inscrever a experiência do estágio básico em um evento da Psicologia Social, “(...) Tomar consciência da normalização da branquitude enquanto raça nos fez refletir no quanto o racismo estrutural está enraizado em nossa sociedade.(...). Nos sentimos muito gratos e felizes por ter participado dessas rodas de conversa, visitar todo o contexto histórico e toda a construção social em cima desse tema até a contemporaneidade para manter uma sociedade essencialmente racista. Esta experiência faz com que tenhamos uma decisão a tomar, continuar contribuindo para essa estrutura ou participarmos ativamente para ter uma sociedade antirracista. Nós, como futuros psicólogos, temos que ter olhar crítico para que possamos intervir de forma efetiva (...). As oficinas trouxeram esperança em meio a revolta de não perceber o que está tão escancarado no dia a dia de pessoas negras(...). Os estudantes finalizaram o texto/ reflexão com compromissos fortemente acordados “(..) passar tudo o que pudermos para outras pessoas, seja como família, amigos ou como psicólogos e, assim, contribuir para construção de uma sociedade mais justa e igualitária para todos(...)”. Cabe ainda destacar que, um grupo de estudantes que participou deste estágio em sua segunda versão, levou para a discusão em sala de aula a questão do Levante Negro a partir de uma leitura poética e artística. Muitas foram as questões suscitadas ao longo da apresentação desta roda de conversa e, a partir das problematizações, surgiu a oportunidade de escrever e apresentar o trabalho no VI Congresso Brasileiro de Psicologia: Ciência e Profissão e, assim, 53 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) compartilhar tais inquietações com outros estudantes e profissionais. Neste mesmo evento, o grupo que discutiu a questão da Branquitude também teve o trabalho aprovado e apresentado na modalidade de comunicação oral. Por tratar-se de um relato de prática, busquei teorizar o mínimo possível para que o sentido atribuído a cada experiência vivenciada pelos estudantes pudesse nos alcançar com a força que tornou este estágio possível. Ao longo do processo, os estudantes foram parceiros ousados, protetores, corajosos e comprometidos. Se permitiram sentir, aprender e a se posicionar de forma crítica em vários momentos em que sentiam-se convocados. Como professora e psicóloga, fiz a escolha de caminhar de mãos dadas com a diversidade de educadores compromissados com a questão da educação para igualdade racial, além de seguir fortemente e de forma muito consciente agarrada aos ensinamentos compartilhados pela excelentíssima intelectual brasileira Conceição Evaristo “Eles combinaram de nos matar, mas a gente combinamos de não morrer”. REFERÊNCIAS ARRAES, Jarid. 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CABRAL, Alexandre. Fenomenologia da Transgressão. Instituto Dasein, 2022. Disponível em: https://3ee26c0e-257d-411f-b6b2-66a488d69916.filesusr.com/ugd/7f3396_443f87dd04ab4479aa86e093fce26699.pdf Acesso: 07 dez.. 2022. CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como 54 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. CAVALCANTE. Kellison Lima . Fundamentos da filosofia Ubuntu: afroperspectivas e o humanismo africano. Revista Semiárido De Visu, Petrolina, v. 8, n. 2, p. 184-192, 2020. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (Brasil). Resolução nº. 018, de 19 de dezembro de 2002. Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação ao preconceito e à discriminação racial. Brasília: CFP, 2002. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2002/12/resolucao2002_18.PDF .Acesso em: 17 Dez 2022. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (Brasil). 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Psicologia Social., v. 26, n. 1, p.83-94, 2014. 55 ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS NA EDUCAÇÃO: A IMPLEMENTAÇÃO DA COMISSÃO DE HETEROIDENTIFICAÇÃO NO INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO ESPÍRITO SANTO (IFES) NO APERFEIÇOAMENTO DA POLÍTICA PÚBLICA DE AÇÃO AFIRMATIVA Mauricio Soares do Vale1 Aline Costalonga Gama2 Shirlena Campos de Souza Amaral3 INTRODUÇÃO As primeiras experiências de implementação de Ações Afirmativas no Ensino Superior do Brasil datam do início dos anos 2000 quando, por lei estadual (Universidade Estadual do Rio de Janeiro e Universidade Estadual do Norte Fluminense, em 2003) ou no uso da prerrogativa da autonomia universitária (Universidade Estadual da Bahia, em 2002; Universidade de Brasília, em 2004), algumas universidades passaram a aderir à discriminação positiva, com a reserva de vagas para determinados candidatos com perfil delineado nos editais dos certames. Mesmo que, na sequência, várias instituições públicas tenham aderido à reserva de vagas ou a outras formas de incentivo aos estudantes específicos, somente com a promulgação da Lei nº. 12.711, de 29 de agosto de 2012, padronizou-se a implantação das Ações Afirmativas em instituições federais de Ensino Superior. Com relação à Lei nº. 12.711/2012, que dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio, destaca-se que para a população negra a reserva de vagas caracteriza-se como 1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Cognição e Linguagem da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo Campus Colatina. E-mail: mauriciodovale@gmail. com. 2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Cognição e Linguagem da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo Campus Vitória. E-mail: alinecga@yahoo. com.br. 3 Doutora em Ciências Sociais e Jurídicas pela Universidade Federal Fluminense. Professora dos Programas de Pós-Graduação em Cognição e Linguagem e Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. E-mail: [email protected]. 56 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO uma subcota, sendo essa condicionada a condição do candidato ser egresso de escola pública. Desta forma, para o ingresso na Educação Superior, os candidatos devem ter cursado integralmente o Ensino Médio em escolas públicas, enquanto para o ingresso nas instituições federais de Ensino técnico de nível médio, os candidatos deverão ter cursado integralmente o ensino Fundamental em escolas públicas. Na reserva de vagas, parte serão preenchidas, por curso e turno, por estudantes autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência (essa acrescida mediante Lei nº. 13.409/2016), em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para a população negra, na aplicação da redação da Lei nº. 12.711/2012, e seguindo a interpretação do Estatuto da Igualdade Racial, durante certo período, houve o entendimento que apenas a autodeclaração bastaria para que o candidato usufruísse da subcota reservada às pessoas pretas e pardas. Com especial pressão dos coletivos negros universitários, que imersos no espaço acadêmico denunciam a ocupação indevida das vagas com recorte racial e exigem das instituições a fiscalização quanto a essa utilização, emerge a necessidade da verificação fenotípica do candidato mediante a Comissão de Heteroidentificação. Essa etapa complementar passa a ser realizada de modo a se garantir direitos, e não para coibi-los, promovendo assim igualdade material entre as populações, assegurada pela Constituição da República Federativa do Brasil, considerando as características fenotípicas do candidato, historicamente utilizadas para discriminação do povo negro no Brasil, como cor da pele, cabelo, nariz, boca, e demais traços negroides, não considerando as características genotípicas (descendência) ou informações de documentos (como certidão de nascimento). Sem implicar em derrogação da autodeclaração, a raça social, atrelada ao fenótipo do candidato, norteará a tarefa da Comissão de Heteroidentificação, cuja atuação visa a consecução dos objetivos propostos para a reserva de vagas, corrigindo eventual autoatribuição equivocada. Diante do exposto, este trabalho pretende debruçar-se de forma especial na análise da implantação da Comissão de Heteroidentificação nos processos seletivos para discentes do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (IFES), refletindo sobre a experiência da instituição com a heteroidentificação. Para isso, utilizou-se a pesquisa documental, a partir das resoluções e portarias no âmbito do IFES, por meio do qual foi possível compreender o arcabouço conceitual e legal para implantação da Comissão de Heteroidentificação na instituição, assim como a sua contribuição para a 57 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) efetivação da concepção da igualdade de oportunidades no acesso a um bem essencial, à educação. REVISÃO DE LITERATURA Resultado de árduas lutas de movimento sociais, com destaque para o movimento negro, a reserva de vagas na Educação Superior, caracterizada como uma modalidade de Ação Afirmativa, emerge como garantia e concessão de direitos aos indivíduos que compõem os grupos sociais que, durante longos anos, foram, em sua plenitude, excluídos do processo produtivo e do sistema social. Sobre a Educação Superior, Gomes (2001) aponta que o mecanismo de seleção propicia a exclusividade do acesso, sobretudo nos cursos de maior prestígio, àqueles que se beneficiaram do processo de exclusão, a denominada elite, restringindo aos pobres as migalhas do sistema, alertando que, agir afirmativamente, é ter ciência desse problema e tomar decisões coerentes com imperativo indeclinável de remediá-lo. A elaboração da ação de expansão e investimento nas universidades e institutos federais, através do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), cujo principal objetivo foi ampliar o acesso e a permanência na Educação Superior, fez com que, a partir de 2007, se ampliasse o debate, por meio dos conselhos universitários, sobre as cotas raciais. A aprovação pelo Supremo Tribunal Federal, que votou por unanimidade pela constitucionalidade das Ações Afirmativas na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 186, referente aos atos que instituíram sistema de reserva de vagas com base em critério étnico-racial (cotas) no processo de seleção para ingresso em instituição pública de Ensino Superior, foi propulsora para a publicação da Lei nº. 12.711, de 29 de agosto de 2012 (BRASIL, 2012), dispondo sobre a reserva de vagas para o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. Vale destacar que, como Ação Afirmativa, tal reserva tem necessariamente caráter temporário e com seus beneficiários definidos, a saber: estudantes que tenham cursado a Educação Básica em escolas públicas, sendo que, no preenchimento das vagas, 50% (cinquenta por cento) serão reservadas aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita. A Lei nº. 12.711/2012 fragmenta ainda essas vagas, conforme ilustra a Figura 1, estabelecendo subcotas, a serem preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, incluídos mediante redação dada pela Lei nº. 13.409, de 28 de dezembro de 2016 58 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO (BRASIL, 2016), nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Figura 1: Subdivisão das cotas referente aos 50% das vagas destinadas as Ações Afirmativas no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo. Fonte: IFES, 2022a. Observamos na Lei que, para as pessoas negras, estabelece-se a autodeclaração racial como critério para o estudante se candidatar a vaga. Ressalta-se que o Estatuto da Igualdade Racial, Lei n°. 12.288, de 20 de julho de 2010 (BRASIL, 2010), aponta que as Ações Afirmativas, no Brasil, devem acontecer por meio de programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades (BRASIL, 2010). Resultado de debates públicos e pressão do movimento negro, como uma tentativa de enfrentamento da discriminação racial com o objetivo de garantir a efetivação da igualdade de oportunidades e a defesa de direitos à população 59 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) negra, além de combater o preconceito e o racismo, ainda faltam estudos que permitam compreender o impacto das reservas de vagas nesse processo, mesmo sendo inegável que já houve uma mudança em termos de percepção dessas medidas (MIRANDA; SOUZA; ALMEIDA, 2020). Considerando o apontamento de Batista e Figueiredo (2020), que reforçam que o contexto da prática é onde a política é sujeita à (re)interpretação e (re)criação, produzindo efeitos e consequências que podem apresentar ressignificações na política original, mediante denúncias do uso indevido das vagas reservadas à pretos e pardos por pessoas não negras, institui-se a Comissão de Heteroidentificação. Dessa forma, busca-se a garantia da efetividade das cotas raciais para a entrada de negros nas universidades, sendo necessária a heteroidentificação para o combate ao desvio da política afirmativa ou eventuais fraudes, atuando como forma de fiscalização. Nesse contexto, destaca-se que a Portaria Normativa nº 4, de 6 de abril de 2018 (BRASIL, 2018), ainda que não tratando da reserva de vagas na Educação, que surge com o intuito de regulamentar a heteroidentificação como procedimento complementar à autodeclaração, a fim de confirmar sua veracidade no preenchimento das vagas reservadas para os concursos públicos federais, nos termos da Lei n°. 12.990/2014, também norteará tais procedimentos na aplicação da Lei nº. 12.711/2012. De acordo com a Orientação Normativa (BRASIL, 2018), na institucionalização de Comissões de Heteroidentificação, complementar à autodeclaração, cabe à comissão confirmar a autodeclaração de identidade preta ou parda, de acordo com métodos de verificação previstos e detalhados no edital do respectivo concurso público, considerando as características fenotípicas do candidato de forma presencial ou, excepcionalmente e por decisão motivada, telepresencial, mediante utilização de recursos de tecnologia de comunicação, e por membros distribuídos por gênero, cor e, preferencialmente, naturalidade. Assim, em relação ao gozo de cotas raciais, a autodeclaração não pode ser entendida como absoluta, e sim relativa, cabendo à Administração Pública, criar mecanismos jurídico-administrativos para que a falsidade (dolosa ou não) seja combatida (DIAS, 2018). Dessa forma, alerta-se que o que deve ser analisado, resguardado e policiado, é a possibilidade de desvio da finalidade da política de cotas raciais por eventuais fraudes ou erro material, sendo que a autodeclaração do candidato goza da presunção relativa de veracidade, cabendo à comissão de heteroidentificação, com função deliberativa complementar à autodeclaração, fiscalizar e impedir descaminhos da política afirmativa (VAZ, 2018). As políticas públicas positivas para negros apresentam como objetivos enfrentar a discriminação e incrementar a igualdade de oportunidades, 60 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO considerando a realidade social vivida pela população negra (pretos e pardos) e, para esses fins, a identidade étnico-racial que importa vincula-se à raça social, pois é nessa esfera que o estar no mundo implica a indivíduos e grupos o preconceito e a discriminação (RIOS, 2018). Nesse contexto, como técnicas de identificação coexistentes e complementares, a autodeclaração e a heteroidentificação, visam constatar a identidade étnico-racial social para cumprimento das finalidades das Ações Afirmativas, identificando seus beneficiários. Não se trata, de modo algum, de pretender legitimar ou instituir, no seio do Estado ou de Ações Afirmativas em iniciativas privadas, comissões encarregadas de dizer “a verdade sobre a raça”, ou desautorizar sentimentos e percepções subjetivas, ou afirmações identitárias positivas, vivenciadas em outros ambientes, espaços e dinâmicas (RIOS, 2018). PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Procurando compreender o procedimento de implantação da Comissão de Heteroidentificação nos processos seletivos para discentes do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (IFES), seu arcabouço conceitual e legal e, ainda, refletir sobre a experiência dessa instituição com a heteroidentificação étnico-racial, utilizou-se a pesquisa documental, a partir da busca por notícias, resoluções, portarias e editais, no âmbito do IFES, abordando a temática. Para isso, recorreu-se ao repositório de Sistema de Gestão e Geração de Documentos (GeDoc)4, um sistema para controle e geração de documentos dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, pertencente à Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, baseado em modelos previamente definidos. O repositório suporta a produção de variadas espécies de documentos, tais como ofícios, portarias, memorandos, despachos e resoluções. Além disso, para a mineração das informações nas notícias e nos editais dos processos seletivos da citada instituição, buscamos as informações no sítio eletrônico do IFES5, realizando a pesquisa nos repositórios de notícias e nos certames para discentes. RESULTADOS E DISCUSSÃO Como mecanismo para inibir fraudes, a heteroidentificação teve início nos processos seletivos dos programas e cursos de Pós-Graduação do IFES, 4 Disponível em: https://gedoc.ifes.edu.br/faces/pesquisarDocumentos/pesquisarHistorico.xhtml. Acesso em: 02 dez. 2022. 5 Disponível em: https://ifes.edu.br/. Acesso em: 02 dez. 2022. 61 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) estabelecendo procedimentos complementares para a reserva de vagas para negros, indígenas e pessoas com deficiência. O Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo, mobilizado pela Portaria Normativa nº. 13, de 11 de maio de 20166, que dispõe sobre a indução de Ações Afirmativas na Pós-Graduação, e dá outras providências, mediante Resolução do Conselho Superior nº. 10, de 27 de março de 20177, regulamentou a adoção de Ações Afirmativas nos cursos e Programas de Pós-Graduação do IFES, com foco na inclusão de negros (pretos e pardos), indígenas e pessoas com deficiência. Já no artigo 5° do documento, estabelece-se que: § 1º - A comprovação da autodeclaração dos candidatos cotistas aprovados, dar-se-á por critérios e metodologias a serem estabelecidas pela Comissão Permanente de Ações Afirmativas da Pós-Graduação (CPAA-Pós), a ser criada com a finalidade de acompanhamento, avaliação e assessoramento aos Cursos e Programas de Pós-Graduação do Ifes (IFES, 2017, n.p.). A Portaria nº. 2.145, de 30 de agosto de 20178, designa os servidores para a composição da Comissão institucional responsável pela elaboração do documento base - Critérios de Verificação da Veracidade na Autodeclaração Processo Seletivo Discente no IFES. A essa comissão foi estabelecida um prazo de 60 (sessenta) dias para a conclusão dos trabalhos. Em 09 de outubro de 2017, mediante Portaria nº. 2.8429, o prazo dessa comissão foi prorrogado por mais 60 dias. Observamos que a conclusão dos trabalhos realizados pela comissão instituída pela Portaria nº 2.145/2017, propiciou a publicação da Orientação Normativa (ON) da Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (PRPPG) nº. 01, de 9 de agosto de 2019, na qual dispõe-se as normas complementares para a reserva de vagas a pretos(as), pardos(as) e indígenas e a pessoas com deficiência nos processos seletivos dos programas e cursos de Pós-Graduação do Ifes e a adoção de mecanismos para inibir fraudes. Na ON nº 01/2019, aponta-se que para concorrer às vagas reservadas a pretos e pardos os candidatos deverão declarar sua opção de vaga no formulário de inscrição e apresentar, além dos documentos exigidos pelo Programa/Curso para a inscrição, a autodeclaração (em formulário próprio da instituição) e participar de procedimento complementar de verificação 6 Disponível em: https://prppg.ifes.edu.br/images/stories/Arquivos_PRPPG/CPAA-POS/portaria_mec_13_2016.pdf. Acesso em: 02 dez. 2022. 7 Disponível em: https://prppg.ifes.edu.br/images/stories/Arquivos_PRPPG/CPAA-POS/res_cs10_2017.pdf. Acesso em: 02 dez. 2022. 8 Disponível em: https://gedoc.ifes.edu.br/documento/DA8C456BE800560CB366F65E47859631?inline. Acesso em: 02 dez. 2022. 9 Disponível em: https://gedoc.ifes.edu.br/documento/CC8E4F2952E702A9B9902AB0DC96D5A1?inline. Acesso em: 02 dez. 2022. 62 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO da autodeclaração, que goza de presunção relativa de veracidade, mas que será confirmada pela Comissão de Heteroidentificação. A ON nº 01/2019, do Art.6º ao Art. 11º, apresenta com detalhes o procedimento Complementar de Verificação da Autodeclaração de candidatos às vagas reservadas para pretos, pardos e indígenas (PPI), que deverá estar previsto em edital e será realizado por Comissão Local de Verificação de Autodeclaração criada, temporariamente, no Campus/Cefor (Centro de Referência em Formação e em Educação a Distância), especificamente para este fim. O debate para a ampliação desse procedimento para todos os certames do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo tem começo ainda em 2019, sendo que o fomento para a implementação das Comissões Permanente e Locais de Heteroidentificação nos processos seletivos do IFES teve início com a realização do seminário Diálogos Fundamentais: Relações Étnicoraciais e a Heteroidentificação no IFES. A Pró-reitoria de Ensino (PROEN) da instituição realizou o evento no auditório do Campus Cariacica, entre os dias 28 e 30 de agosto de 2019, com o objetivo de capacitar servidores para atuarem nas comissões, que realizariam os procedimentos de verificação da veracidade da autodeclaração étnico-racial, apresentada pelos candidatos às vagas PPI quando do requerimento de matrícula, sendo um procedimento que se tornaria obrigatórios em todos os níveis, modalidades e ofertas do IFES10. Na programação do seminário, consta a abordagem das bases epistemológicas e políticas das relações raciais no Brasil, suas interfaces nas instituições educacionais e o protagonismo do movimento negro na agenda estatal brasileira. Além disso, também constava no programa o debate da Lei de cotas (Lei nº. 12.711/2012) e os desafios de sua implementação pelas instituições federais de ensino, bem como, as perspectivas e procedimentos de verificação da autodeclaração e as responsabilidades institucionais no combate às fraudes. No último dia do seminário, 30 de agosto de 2019, servidores de todos os Campi da instituição discutiram e aprovaram uma proposta de minuta de resolução e, também, o protocolo de heteroidentificação de pretos, pardos e indígenas em processos seletivos (vagas PPI)11. Na ocasião, o protocolo que já estava sendo utilizado pelo IFES em seleções de cursos de Pós-Graduação e em concursos públicos, foi discutido ponto a ponto e simulado em uma oficina com os servidores, na proposta de implementação nos processos seletivos de cursos técnicos para ingresso a partir do segundo semestre de 2020. A pedagoga Ignêz Brigida 10 Notícia divulgada em: https://ifes.edu.br/noticias/18841-proen-realiza-seminario-sobre-relacoes-etnico-raciais-e-heteroidentificacao. Acesso em: 02 dez. 2022. 11 Notícia divulgada em: https://ifes.edu.br/noticias/18877-representantes-de-todo-o-ifes-aprovam-proposta-de-minuta-de-protocolo-de-heteroidentificacao-para-processos-seletivos-da-instituicao. Acesso em: 02 dez. 2022. 63 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) de Oliveira Pina, servidora lotada na Pró-reitoria de Ensino (PROEN), conduziu a programação desse procedimento, destacando a necessidade de realizar outros treinamentos para obter mais segurança em sua implementação. Na minuta aprovada no seminário, como protocolo de verificação da autodeclaração, o estudante, após aprovado no processo seletivo, faz o requerimento de matrícula e entrega todos os documentos em envelope lacrado. A Comissão Local do Processo Seletivo analisa a documentação, identifica os que optaram pela reserva de vagas e envia para Comissão Local de Verificação da Autodeclaração, que convoca todos autodeclarados pretos e pardos para a entrevista, devendo essa ocorrer em local e horário definidos em edital, oportunidade na qual a comissão realizará, única e exclusivamente, a análise fenotípica do candidato, para fins de verificação dos critérios de ocupação da vaga PPI, ficando o registro gravado. Após o seminário, o documento foi encaminhado para apreciação no Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE), Colégio de Dirigentes e Conselho Superior do IFES, culminando na publicação da Resolução nº 61, do Conselho Superior do IFES, de 13 de dezembro de 201912, instituindo a Comissão Permanente de Verificação da Autodeclaração (CPVA) e estabelecendo e regulamentando os procedimentos e os critérios de verificação da veracidade da autodeclaração em Processo Seletivo Discente do Instituto Federal do Espírito Santo. O documento, citando inclusive a Portaria Normativa do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão nº 4, de 6 de abril de 2018, que disciplina o procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos candidatos negros, a ser previsto nos editais de abertura de concursos públicos para provimento de cargos públicos da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, para fins de preenchimento das vagas reservadas, previstas na Lei nº. 12.990, de 9 de junho de 2014, apresenta seis Capítulos instituindo todos os procedimentos e regulamentando os critérios de verificação da veracidade da autodeclaração de negros (pretos ou pardos) e indígenas mediante Comissão Permanente de Verificação da Autodeclaração (CPVA) e Comissão Local de Verificação da Autodeclaração (CLVA) em todos os Processo Seletivo Discente do Instituto Federal do Espírito Santo. Considerando a Resolução do Conselho Superior nº. 61/2019, é publicada a portaria nº 510, de 4 de março de 202013, designando os servidores para comporem a Comissão Permanente de Verificação da Autodeclaração (CPVA). 12 Disponível em: https://www.ifes.edu.br/images/stories/Res_CS_61_2019_-__Comiss%C3%A3o_Permanente_de_Verifica%C3%A7%C3%A3o_Autodeclara%C3%A7%C3%A3o_CPVA.pdf. Acesso em: 02 dez. 2022. 13 Disponível em: https://gedoc.ifes.edu.br/documento/DC6DC0FC80CD924C7645B7F350A681F6?inline. Acesso em: 02 dez. 2022. 64 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO O isolamento social adotado em decorrência da pandemia da Covid-19, no qual as atividades presenciais foram interrompidas, motivou a publicação do Ato de Homologação Provisória nº. 12, de 30 de setembro de 202014, suspendendo os procedimentos presenciais de heteroidentificação durante a interrupção das aulas presenciais no Instituto Federal do Espírito Santo e orientou a realização dos procedimentos de heteroidentificação, em caráter excepcional, no formato de videoconferência, com o ambiente da gravação devendo ter uma boa iluminação a fim de não comprometer a visualização do candidato, além de proibir o uso de acessórios que dificultassem a verificação fenotípica, bem como, maquiagens. Além disso, estabeleceu que, na impossibilidade de realização da entrevista, decorrente de falha oriunda do equipamento ou da conexão da parte do candidato, após 03 (três) tentativas, classificar-se-ia como um caso de ausência do candidato, implicando automaticamente na eliminação do concurso. Constatamos que, após a publicação da Resolução nº 61/2019, analisando os editais da instituição15, é possível observar que eles estabelecem em seu cronograma de atividades a data para a publicação da convocação e às orientações para os procedimentos de heteroidentificação (entrevistas) dos candidatos inscritos para as vagas de Ação Afirmativa autodeclarados pretos e pardos, bem como a data para o resultado preliminar da análise da documentação de cotas e da heteroidentificação e o período para solicitação de recurso. Ainda nos editais para ingresso dos cursos técnicos e de graduação, localiza-se também as informações sobre as vagas de Ação Afirmativa (AA), reservadas à inclusão social por sistema de cotas em atendimento à Lei nº. 12.711, de 29 de agosto de 2012, com as alterações introduzidas pela Lei nº. 13.409, de 28 de dezembro de 2016, ao Decreto nº. 7.824, de 11 de outubro de 2012, com as alterações introduzidas pelo Decreto nº. 9.034, de 20 de abril de 2017, à Portaria Normativa nº. 18, de 11 de outubro de 2012, à Portaria Normativa nº. 09, de 05 de maio de 2017 e à Portaria MEC nº. 1.117, de 01 de novembro de 2018. Além disso, sobre as vagas reservadas às pessoas negras, no edital são apresentadas as informações pertinentes sobre a etapa complementar de verificação da autodeclaração, ilustradas na Figura 2. 14 Disponível em: https://www.ifes.edu.br/images/stories/Ato_12_-_Suspende_Efeitos_ de_Dispositivos_Resolu%C3%A7%C3%A3o_CS_61_2019.pdf. Acesso em: 02 dez. 2022. 15 Disponíveis em: https://www.ifes.edu.br/processosseletivos/alunos. Acesso em: 02 dez. 2022. 65 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) Figura 2: Ilustração das informações nos editais dos processos seletivos discentes do IFES sobre o procedimento de heteroidentificação. Fonte: IFES, 2022b. Outros editais, como o do Processo Seletivo nº. 45/202216, de 29 de abril de 2022, para o ingresso de alunos para o curso de Pós-Graduação lato sensu em Engenharia de Produção com ênfase em Ciência de Dados, oferecido na modalidade presencial, apresentam as regras de forma ainda mais detalhada, citando a Portaria Normativa nº. 4, de 6 de abril de 2018 e Orientação Normativa PRPPG nº. 01/201917, essa instituída na adoção de mecanismos para inibir fraudes no âmbito da reserva de vagas na Pós-Graduação. Por fim, destaca-se que, embora entre os distintos editais dos processos seletivos do IFES ocorram alterações na escrita, alguns trazendo informações mais completas e outros de modo mais sucinto, todos os editais destacam que, para o procedimento de verificação complementar da autodeclaração para candidatos(as) às vagas para pretos(as) e pardos(as) será considerado única e exclusivamente o fenótipo negro (conjunto de características do indivíduo, predominantemente a cor da pele, a textura dos cabelos e os aspectos faciais) como base para análise, excluídas as considerações sobre ascendência e documentos. 16 Disponível em: https://www.ifes.edu.br/images/stories/-publicacoes/processos-seletivos/alunos/2022/2022-45/edital-enpro-cd-05-07-2022.pdf. Acesso em 04 dez. 2022. 17 Disponível em: https://prppg.ifes.edu.br/images/stories/Arquivos_PRPPG/Arquivos_ PosGraduacao/orientacao_normativa_para_procedimento_heteroidentificacao_cppg_ atualizada.pdf. Acesso em: 02 dez. 2022. 66 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO CONSIDERAÇÕES FINAIS A Lei nº. 12.711/2012, marcada por 13 anos de tramitação no legislativo, ascendeu nacionalmente novos paradigmas ao debate das cotas raciais, no entendimento da inegável desigualdade racial brasileira, bem como, da urgente necessidade de mitigá-la. Na aplicação da subcota racial estabelecida mediante Lei nº. 12.711/2012, houve durante certo tempo o entendimento que a autodeclaração seria elemento suficiente para a caracterização dos seus beneficiários, as pessoas negras. Contudo, denúncias de ocupação indevida das vagas pressionam e exigem das instituições a fiscalização quanto a essa utilização, emergindo a implementação das Comissões de Heteroidentificação que atuam na verificação fenotípica do candidato. Não implicando anulação da autodeclaração, mas ação que busca a concretização do direito dos candidatos pretos e pardos, para os quais, conectados a raça social por meio do seu fenótipo ficam sujeitos ao racismo e a discriminação, a atuação da Comissão de Heteroidentificação busca atingir os objetivos propostos para a reserva de vagas, corrigindo eventual autoatribuição equivocada. Neste trabalho analisou-se a implantação da Comissão de Heteroidentificação nos processos seletivos para discentes do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo, constatando-se que a heteroidentificação teve início nos processos seletivos dos programas e cursos de Pós-Graduação, sendo que em 2017 a instituição regulamentou a adoção de Ações Afirmativas em tais certames já prevendo que a comprovação da autodeclaração dos candidatos cotistas ocorreria pela Comissão Permanente de Ações Afirmativas da Pós-Graduação, responsável por estabelecer os critérios e a metodologia dessa averiguação. Em 2019, mediante Orientação Normativa nº. 01/2019, o IFES apresentou as normas complementares para a reserva de vagas, estabelecendo o procedimento complementar de verificação da autodeclaração, devendo essa ser confirmada pela comissão de heteroidentificação. A ampliação desse procedimento para todos os certames do IFES teve início ainda em 2019, com a realização de um seminário que buscou capacitar servidores para atuarem nas comissões e, em seu último dia, aprovou a proposta de minuta de resolução e, também, o protocolo, já utilizado na PósGraduação, de heteroidentificação de pretos, pardos e indígenas em todos os processos seletivos da instituição. O documento, encaminhado para apreciação nos setores de competência, culminou na publicação da Resolução nº 61/2019, estabelecendo e regulamentando os procedimentos e os critérios de verificação da veracidade da autodeclaração em Processo Seletivo Discente do Instituto Federal do Espírito Santo, instituindo a Comissão Permanente de Verificação da Autodeclaração (CPVA) e a Comissão Local de Verificação da Autodeclaração 67 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) (CLVA). Destaca-se que, após a publicação da Resolução nº. 61/2019, todos os editais dos processos seletivos para discentes da instituição passam a estabelecer em seu cronograma de atividades a data para a publicação da convocação e às orientações para os procedimentos de heteroidentificação dos candidatos inscritos para as vagas de Ação Afirmativa autodeclarados pretos e pardos, bem como a data para o resultado preliminar da análise da documentação de cotas e da heteroidentificação e o período para solicitação de recurso. O isolamento social adotado em decorrência da pandemia da COVID-19 suspendeu os procedimentos presenciais de heteroidentificação que, em caráter excepcional, foi, nesse período, realizado no formato de videoconferência. Concluímos que, embora entre os distintos editais do IFES ocorram alterações na escrita, todos destacam que o procedimento de verificação complementar da autodeclaração para candidato à vaga reservada aos negros considerará única e exclusivamente o fenótipo da pessoa. Dessa forma, compreendemos que há um arcabouço legal que ampara a implementação da Comissão de Heteroidentificação na instituição, bem como, percebemos sua relevância para a efetividade das subcotas raciais no acesso das pessoas negras à Educação Superior. REFERÊNCIAS BATISTA, Neusa Chaves; FIGUEIREDO, Hodo Apolinário Coutinho de. Comissões de heteroidentificação racial para acesso em universidades federais. Cadernos de pesquisa, v. 50, p. 865-881, 2020. BRASIL. Lei nº. 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial; altera as Leis nos 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20072010/2010/lei/l12288.htm. Acesso em: 15 out. 2022. BRASIL. Lei nº. 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12711.htm. Acesso 13 ago. 2021. BRASIL. Lei nº. 13.409, de 29 de dezembro de 2016. Altera a Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, para dispor sobre a reserva de vagas para pessoas com deficiência nos cursos técnico de nível médio e superior das instituições federais de ensino. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ ato2015-2018/2016/Lei/L13409.htm. Acesso em: 24 set. 2021. BRASIL. Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Portaria Normativa n.º 04, de 06 abril de 2018. Regulamenta o procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos candidatos negros, para 68 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO fins de preenchimento das vagas reservadas nos concursos públicos federais. Diário Oficial da União, Brasília/DF, 2018. Disponível em: https://www. in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/9714349/ do1-%202018-04-10-portaria-normativa-n-4-de-6-de-abril-de-2018-9714345. Acesso em: 11 out. 2022. DIAS, Gleidson Renato Martins. Considerações à Portaria Normativa nº4 de 6 abril de 2018 do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. In: DIAS, Gleidson Renato Martins; TAVARES JUNIOR, Paulo Roberto Faber (organizadores). Heteroidentificação e Cotas Raciais - dúvidas, metodologias e procedimentos. Canoas: IFRS campus Canoas, 2018. p. 141 – 174. Disponível em: http://sitio2.com.br/sites/etnicoracial/publicado/chave01/. Acesso em: 19 dez. 2021. GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. A recepção do instituto da ação afirmativa pelo Direito Constitucional brasileiro. Revista de Informação Legislativa, v. 38, n. 151, 2001, p. 129-152. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/ bdsf/bitstream/handle/id/705/r151-08.pdf ? Acesso em: 26 abr. 2021. IFES. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo. Resolução do Conselho Superior nº. 10, de 27 de março de 2017. Disponível em: https://prppg.ifes.edu.br/images/stories/Arquivos_PRPPG/CPAA-POS/ res_cs10_2017.pdf. Acesso em: 02 dez. 2023. IFES. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo. PS nº. 147/2022 – Cursos de Graduação – SiSU – 2023/1. 2022a. Disponível em: https://www.ifes.edu.br/images/stories/-publicacoes/processos-seletivos/ alunos/2022/2022-147/cotas.png. Acesso em: 04 fev. 2022. IFES. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo. PS nº. 84/2022 - Oferta de vagas na educação profissional técnica de nível médio na forma integrada - Modalidade presencial. 2022b. Disponível em: https://ifes.edu.br/images/stories/-publicacoes/processos-seletivos/alunos/2022/2022-84/2022-09-23-edital-84-2022-retificado.pdf. Acesso em: 04 fev. 2022. MIRANDA, Ana Paula Mendes de; SOUZA, Rolf Ribeiro de; ALMEIDA, Rosiane Rodrigues de. “Eu escrevo o quê, professor (a)?”: notas sobre os sentidos da classificação racial (auto e hetero) em políticas de ações afirmativas. Revista de Antropologia, v. 63, 2021. RIOS, Roger Raupp. Pretos e pardos nas ações afirmativas: desafios e respostas da autodeclaração e da heteroidentificação. Heteroidentificação e cotas raciais: dúvidas, metodologias e procedimentos, v. 1, p. 215-249, 2018. Disponível em: http://sitio2.com.br/sites/etnicoracial/publicado/chave01/. Acesso em: 19 dez. 2021. VAZ, Lívia Maria Santana e Sant’Anna. As comissões de verificação e o direito à (dever de) proteção contra a falsidade de autodeclarações raciais. In: DIAS, Gleidson Renato Martins; TAVARES JUNIOR, Paulo Roberto Faber 69 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) (organizadores). Heteroidentificação e Cotas Raciais - dúvidas, metodologias e procedimentos. Canoas: IFRS campus Canoas, 2018. p. 32-78. Disponível em: http://sitio2.com.br/sites/etnicoracial/publicado/chave01/. Acesso em: 19 dez. 2021. 70 DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO À UNIVERSIDADE POR MEIO DA INFORMAÇÃO: RODAS DE CONVERSA SOBRE COTAS COM OS ALUNOS DO ENSINO MÉDIO Bruna da Conceição Ximenes1 Átila Maria do Nascimento Corrêa2 Verônica Fernandes3 INTRODUÇÃO Tendo em vista que a Lei n°. 12.711, conhecida como a “lei de cotas” foi sancionada em Agosto de 2012 no governo da Presidenta Dilma Rousseff, o estudo a seguir trata-se de um relato de experiência que expõe um projeto de extensão realizado pela Faculdade de Ciências Humanas da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul no período de 05/05/2020 a 05/02/2021, com carga horária total de 100 horas de dedicação à ação. O projeto teve a participação de uma professora e dois acadêmicos bolsistas. O objetivo era o de levar informações aos estudantes do ensino médio, sobre a Lei de cotas n°. 12.711/12, por meio de rodas de conversa, com a hipótese de que após a realização das rodas de conversas, aqueles alunos que tivessem o direito a ingressar nas universidades pelo sistema de cotas, conhecessem o seu direito, haja vista que muitos desconhecem essa temática que é pouco ou quase nada discutida no ambiente escolar. A Lei n°. 12.711, de 29 de agosto de 2012, estabeleceu como critérios para o ingresso no ensino superior: a origem escolar, a condição socioeconômica, o pertencimento étnico-racial e também as pessoas com deficiência. Sendo assim tem-se três conjuntos de cotistas. O primeiro conjunto são os 50% reservados para estudantes egressos do ensino público, na prática pessoa branca independente da sua renda ainda é beneficiada. Destas vagas , ou seja 25% do total, são reservadas para pessoas cuja renda bruta familiar mensal per capita é de até um salário mínimo e meio. Os outros 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul- UFMS e-mail: [email protected] 2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul- UFMS e-mail: [email protected] 3 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul- UFMS e-mail: [email protected] 71 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) 25% continuam destinados a pessoas egressas do ensino público com renda superior a este valor. Nestes dois subconjuntos de cotistas, deve ser reservado um percentual de vagas específico para pretos, pardos e indígenas, segundo a representação destes grupos nas respectivas unidades da federação em que estejam sediadas as IES, com base no último Censo Demográfico do IBGE. O próximo critério de ingresso é o socioeconômico, ou seja, por renda familiar per capita. Aqui o total de vagas remete-se a uma grande exclusão histórica que pessoas representadas por outras desses grupos sofreram no passado. Direito esse arduamente conquistado por movimentos negros e outros movimentos sociais (CFP, 2017). A lei garante a esses grupos, que tenham a oportunidade de concorrer com pessoas ditas “privilegiadas” logo, tendo a oportunidade de ingressar na faculdade pública. As desigualdades enfrentadas por essa população são evidentes comparadas a outras não cotistas que possuem privilégios como educação particular e afins. Em um país que cada vez mais reforça a meritocracia em um discurso contra as cotas, a certeza de que se deve sempre relembrar o passado vivido por esses povos e a desigualdade social que enfrentam se faz cada vez mais necessário para continuar garantindo-lhes um direito que é seu por obrigação e não um favor. Ao se tratar do contexto discutido a meritocracia remete-se a afirmação de que todos são iguais de acordo com a lei e tendo em vista essa afirmação, as cotas que são uma ação afirmativa tem a finalidade de tornar esse seleto grupo que tem direito como incapazes e sendo assim, necessitem de “ajuda” para desenvolver-se. (SILVA, 2017). O projeto de extensão foi idealizado para ocorrer de forma presencial, mas uma das maiores crises sanitárias existentes, a pandemia do COVID-19, não permitiu que assim fosse. Ocorrendo então, de forma remota. Inicialmente, o projeto foi lançado através de um edital que remete a ações de extensão da universidade. Seriam duas vagas e os candidatos que concorreram às vagas precisavam enviar uma carta de intenção explicando o porquê gostariam de fazer parte do projeto. Logo, o histórico escolar dos candidatos também foi avaliado. Sendo assim, uma acadêmica do curso de psicologia foi aprovada e um acadêmico do curso de história. Apesar de não ser nenhum requisito, além da professora idealizadora do projeto, ambos os participantes eram pretos (as). Durante a execução do projeto os participantes realizaram pesquisas em periódicos científicos buscando materiais que auxiliassem a elaborar um texto sobre a temática proposta, sendo assim, uma base de estudos para um melhor entendimento. Ademais, antes da realização das rodas de conversa, os bolsistas reuniam-se com a coordenadora a fim de discutir os tópicos do projeto e também sanar dúvidas. 72 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO METODOLOGIA É importante destacar que as oficinas ocorreram em meio a pandemia do COVID – 19 ou seja, em um momento em que o distanciamento social era não só necessário mas obrigatório. Desse modo, os participantes e coordenadores procuram uma metodologia que contemplasse a necessidade de distanciamento e alcançasse o público necessário para que o projeto cumprisse seu objetivo. Mesmo com os protocolos de segurança, o ano escolar continuou normalmente e esses alunos, que estavam no terceiro ano do Ensino Médio, teriam que começar a ponderar sobre suas possibilidades tanto de cursos quanto de instituições de nível Superior. Buscando diminuir a distância entre a universidade e a escola, o projeto teve como objetivo trazer às Escolas Estaduais de Campo Grande – MS um debate com a proposta de discutir os meios de ingresso nas instituições Federais e Estaduais. E debater sobre as modalidades de ingresso, como as cotas de escola pública, cota de renda e cota racial. Discutindo também sobre os processos pelos quais os alunos iriam passar até chegar no momento da matrícula, como a coleta de documentos comprobatórios, autodeclaração e comissão de heteroidentificação. A metodologia escolhida para a realização da intervenção foi a roda de conversa online, pois nesse momento pandêmico as tecnologias se mostraram indispensáveis e provocaram mudanças no ensino presencial. Ao fazer com que o conceito de aprendizagem localizado e temporizador seja deslocado, uma vez que mostra que existe a possibilidade de aprendizagem em vários lugares e ao mesmo tempo, offline, online, juntos e separados (MORAN; MASSETO; BEHRENS, 2013). A utilização das tecnologias foi incorporada de maneira ampla no sistema educacional, a partir das aulas online no momento do regime emergencial. Desse modo, a decisão pelas reuniões, utilizando como ferramenta o Google Meet, foi a mais adequada. O Meet foi um dos recursos mais utilizados nesse período de distanciamento social, esse tipo de ferramenta aproxima grupos que antes estavam separados de modo que agora não existe mais a necessidade de uma proximidade física para as discussões ocorrerem. (MALAQUIAS, 2012). A roda de conversa vem sendo discutida como uma metodologia possível principalmente na área da psicologia, por sua característica participativa, Afonso e Abade (2008) destacam que esse tipo de metodologia tem em seu referencial teórico autores da psicologia social, psicanálise e educação. Além da possibilidade de diálogo com os alunos para descobrir quais suas dúvidas e expectativas quanto ao ingresso em uma instituição de ensino 73 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) superior, a realização online também possibilitou a participação de diversos alunos mesmo em tempos de pandemia. Silva e Bernardes (2007) a descrevem como uma oportunidade de aprendizagem e exploração de argumentos devido ao seu clima de informalidade, tendo como característica também a oportunidade de aprendizagem sem a necessidade de elaborações conclusivas, o que faz com que ocorra a possibilidade de diálogo. Tendo o diálogo com os alunos como objetivo principal, a roda de conversa foi a metodologia que mais contemplou os objetivos buscados. Uma vez que o projeto buscava escutar as dúvidas dos alunos e respondê-las, criando um espaço para que o tema fosse discutido amplamente. Ao possibilitar que os participantes façam reflexões a partir de seu cotidiano, criando desse modo uma relação com o mundo, trabalho e vida, e criando um espaço de diálogo possível. Sobre esses aspectos da roda de conversa se cria um diálogo possível, de acordo com Moura e Lima (2014) É assim também com as rodas de conversa, quando utilizadas como instrumento de pesquisa, uma conversa em um ambiente propício para o diálogo, em que todos possam se sentir à vontade para partilhar e escutar, de modo que o falado, o conversado seja relevante para o grupo e suscite, inclusive, a atenção na escuta. Nas rodas de conversa, o diálogo é um momento singular de partilha, porque pressupõe um exercício de escuta e de fala, em que se agregam vários interlocutores, e os momentos de escuta são mais numerosos do que os de fala (MOURA; LIMA, 2014, p. 100). Existe uma potencialidade relacionada ao sujeito narrador, a capacidade que esse diálogo adicionar a pesquisa, a possibilidade de captar a percepção do sujeito e ter sua colaboração de uma forma orgânica faz com que seja possível identificar aspectos do discurso que não fosse pelo método escolhido ficaram ocultos. O discurso apresenta o que a fala esconde e o que ela revela, independente de atender ou não a expectativa do pesquisador (GHEDIN; FRANCO, 2008). Esse aspecto participativo da roda de conversa e sua importância foram abordados novamente por Moura e Lima (2014). As Rodas de Conversa consistem em um método de participação coletiva de debate acerca de determinada temática em que é possível dialogar com os sujeitos, que se expressam e escutam seus pares e a si mesmos por meio do exercício reflexivo. Um dos seus objetivos é de socializar saberes e implementar a troca de experiências, de conversas, de divulgação e de conhecimentos entre os envolvidos, na perspectiva de construir e reconstruir novos conhecimentos sobre a temática proposta. A conversa saiu dos alpendres e chegou à escola como uma estratégia de ensino, e como caminho natural, alcançou as pesquisas educacionais. Assim, a roda de conversa não é algo novo, a ousadia é empregá-la como meio de produzir dados para a pesquisa 74 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO qualitativa (MOURA; LIMA, 2014, p. 101). Desse modo, não existia uma metodologia qualitativa mais adequada para o trabalho proposto, para que a oficina cumprisse seus objetivos era indispensável a participação dos alunos, visto a proposta principal do projeto, que nesse caso era o acesso à informação sobre as modalidades de acesso ao ensino superior público. Ao socializar os saberes acontece na roda de conversa uma construção coletiva de novos conhecimentos, com a participação de pessoas com diversos tipos de conhecimento, nesse caso, acontece uma aproximação das universidades com as escolas, a roda de conversa constitui então uma metodologia participativa e construtora de conhecimento. Como apoio à roda de conversa foram elaborados slides com conteúdo semiestruturados com a finalidade de fazer com que a discussão se desenvolvesse. No material de apoio foram colocados tópicos dos temas tratados na roda de conversa e destacados diversos aspectos do ingresso a fim de auxiliar e conduzir o debate apresentando novos tópicos a discussão em andamento. No primeiro momento foi realizada uma introdução com os alunos dos acadêmicos responsáveis pela mediação do projeto com a apresentação acerca da temática a ser discutida, com o segundo momento da roda de conversa com os alunos. Essa metodologia se revelou super efetiva, devido à afinidade que os alunos já tinham com as tecnologias e sua experiência com as aulas online, foi constatado que a maioria deles tinha dúvidas sobre o sistema de ingresso e até mesmo com o funcionamento dos processos seletivos das universidades presentes na cidade. Constatou-se que nenhuma outra metodologia participativa iria contemplar as vivências e dúvidas dos alunos, como foi o caso da roda de conversa. É importante ressaltar que, esse relato de experiência não possui revisão de literatura visto que, as autoras não encontraram nenhum estudo com o conteúdo discutido. RESULTADOS E DISCUSSÃO Ao final do projeto foi constatado que a maioria dos alunos não tinham conhecimento de como o sistema de cotas para ingresso na universidade funcionava e várias dúvidas surgiram durante as rodas de conversa. Dúvidas referente a gratuidade de ingresso das universidades públicas, formas de ingresso como realização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), as modalidades das cotas, principalmente as raciais e se de fato tinham direito de concorrer a vaga. Além de que se pode perceber que não sabiam da gratuidade de ingresso das universidades públicas . Percebendo que os alunos das variadas turmas que as rodas de conversa 75 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) foram realizadas tinham desde dúvidas que consideramos básicas até as mais intrínsecas, além de realizarmos as discussões específicas sobre a lei de cotas sanamos as demais dúvidas existentes, além da lei de cotas. As turmas foram informadas e orientadas sobre como era o processo de inscrição para adentrar na universidade, a inscrição para concorrer a uma vaga reservada, autodeclaração e heteroidentificação. Vale ressaltar que dúvidas sobre o processo de heteroidentificação foram bastante questionadas, repleto de dúvidas dos alunos. O interessante foi que os alunos e alunas que de fato percebemos evidentemente que tinham o direito de concorrer a vaga por cotas, por serem pretos ou pardos, eram os que mais questionaram se tinham direito a essa reserva de vagas, demonstrando por sua vez um certo medo em ser avaliado (a) em uma possível banca de heteroidentificação. Conforme o observado durante a execução do projeto é necessário evidenciar a importância desse tipo de debate e de um espaço em que os alunos possam tirar suas dúvidas quanto aos processos de ingresso nas universidades públicas. Vale ressaltar que, as escolas e os cursinhos eram públicos. Haja vista que a lei abarca alunos e alunas de escolas públicas. CONSIDERAÇÕES FINAIS A Lei n°. 12.711/2012 possibilitou o ingresso de negros, estudantes de escolas públicas, baixa renda e deficientes no espaço das instituições e universidades federais. Porém, entende-se que essa política de ação afirmativa não é aceita por grande parte da sociedade no país, talvez por uma ideia mencionada anteriormente neste estudo, a falsa meritocracia. Mesmo com diversos fatores positivos que esse direito proporciona como acesso dos mais vulneráveis a uma universidade pública, a oportunidade de uma educação de qualidade. É importante ressaltar que as políticas afirmativas, assim como a lei de cotas, são políticas de reparação histórica acerca das desigualdades que grupos minoritários sofreram no passado (SANTOS et al., 2021). Além de diversas dúvidas existentes acerca da lei de cotas, percebeu-se que os alunos e alunas, especificamente pretos e pretas, emanaram um trajeto de vida repleto de desigualdades raciais, racismo, dificuldades financeiras da família, dentre outros. Contudo, ao terem acesso a informações repassadas pelo projeto de extensão, constatou-se um certo entusiasmo dos alunos que percebemos serem os futuros cotistas, ao cogitarem ter uma chance maior de ingressar na universidade pública. Visto que anteriormente às rodas de conversa, a maioria tinha pouca ou quase nenhuma informação do possível direito. 76 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO REFERÊNCIAS AFONSO, Maria Lúcia; ABADE, Flávia Lemos. Para reinventar as rodas: rodas de conversa em direitos humanos. Belo Horizonte: RECIMAM, 2008. BRASIL. Lei nº. 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Brasília, DF, 29 ago. 2012. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm. Acesso em: 13 fev. 2023. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA - CFP. 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Educação, Porto Alegre, a. 30, v. 1, n. 61, p. 53-92, jan.-abr. 2007. 77 EXTENSÃO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES: O PAPEL DOS PROGRAMAS E PROJETOS DE EXTENSÃO COMO ESTRATÉGIA PARA O ENSINO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS Laisa Araújo de Oliveira1 Rita de Cássia Dias Pereira de Jesus2 Adriana Miranda Pimentel3 INTRODUÇÃO A extensão universitária sempre se fez presente desde a criação das primeiras universidades brasileiras (ROCHA, 1984). Ao longo do tempo, os espaços de Ensino Superior foram se reestruturando e se ressignificando, deixando de ser frequentada apenas como um lugar da elite, trazendo consigo mudanças no que diz respeito ao seu papel. Assim, a Extensão que sempre fez parte dos pilares da universidade brasileira, começa também a ganhar modificações em seu conceito, visando acompanhar os ideais de um novo fazer universitário, que passava a se configurar mais popular, igualitário e contrário ao pensamento linear de conhecimento científico empírico. Segundo Rocha (1984) para isso acontecer, a Extensão passa por três momentos cruciais: o primeiro período está associado a experiências consideradas pioneiras, marcado pela criação das primeiras universidades, que tinham como base características do plano de extensão já vivenciado na Europa e França. Neste período a extensão era entendida como forma de prestação de serviços à comunidade; o segundo momento é o período das experiências isoladas, marcado por reivindicações dos movimentos sociais e pelas tensões vividas durante o desmonte da educação durante a ditadura militar, assim como também a descaracterização daquilo que já estava sendo construído enquanto ideia de universidade popular; o terceiro e último momento é marcado com a institucionalização da extensão, passando a ser papel da universidade promover ações que visem o 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre a Universidade pela Universidade Federal da Bahia/UFBA. E-mail: [email protected] 2 Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia/UFBA. E-mail: Rcdias@ufrb. edu.br 3 Doutora em Saúde Pública, com ênfase em Ciências Sociais em Saúde pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia/UFBA. E-mail: Adriana.pimentel@ ufba.br 78 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO diálogo com a sociedade. No entanto, Freire (1996; 1983) nos motiva a refletir um pouco mais acerca do conceito de extensão, devendo ter como função principal o papel de transformação social. Neste estudo nos apoiamos no conceito introduzido por Freire (1983; 1996) sobre o papel da extensão. A extensão já não cabe mais no modelo de conhecimento engessado, tampouco a academia deve se conceber enquanto detentora do saber e sim como um espaço que vivencia mudanças constantes, com um papel forte de responsabilidade social, devendo estar atenta e sensível às necessidades da comunidade. As ações extensionistas propostas pelas universidades têm sido importantes pontes para que essa comunicação aconteça, com vistas a contribuir para a formação dos sujeitos envolvidos por meio das trocas de conhecimentos. Neste estudo nos ateremos apenas às ações desenvolvidas pelos programas e projetos que, dentro das universidades possuem importante papel enquanto meio que favorece e possibilita trocas entre comunidade e sociedade. As discussões voltadas para uma determinada temática é uma característica identitária dos programas e projetos, que podem ser coordenados por um docente, discente, técnico-administrativo ou professor aposentado que possua ligação com a universidade, seguindo as normas da Resolução CONAC nº. 11/20144. Santos (2017) aponta que esses grupos permitem muito mais aos sujeitos envolvidos do que apenas uma formação acadêmica, além disso, se constituem enquanto espaço de pertencimento, formação pessoal e de afiliação estudantil¹ para inúmeros estudantes ingressantes no ensino superior. Neste sentido, a temática desenvolvida pelos programas ou projetos de extensão diz muito sobre eles, inclusive, dentro e fora dos espaços acadêmicos muitos possuem importante valor simbólico. Temáticas como a discussão sobre raça, Relações Étnico-Raciais, gênero, dentre outros assuntos voltados para diversidade, são ainda tratados de maneira pontual nos currículos dos cursos de graduação, e espaços como os programas e projetos são considerados importantes meios de acesso a essas discussões dentro da academia (SANTOS, 2017). De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases para as Relações Étnico-Raciais (BRASIL, 2004), as universidades brasileiras devem instituir em seus planos de cursos e projetos institucionais o ensino para as Relações Étnico-Raciais, devendo ser papel institucional possibilitar aos sujeitos uma formação cidadã e que valorize as discussões com o trato para diversidade (BRASIL, 2004). Contudo, entendemos que mesmo tendo dado passos longos no que tange à promulgação de leis para a instituição das Relações Étnico-Raciais nos espaços escolares 4 As Resoluções do Conselho Acadêmico (Conac) dispõem sobre as normas que disciplinam as atividades de Extensão Universitária no âmbito da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Acesso em: https://www.ufrb.edu.br/proexc/images/resolucao-011-14-conac.pdf 79 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) e acadêmicos, vivenciamos fragilidades no que diz respeito à incorporação de maneira sistemática dessas discussões nos currículos. Embora a evidência de programas e projetos que abordem temáticas sobre Relações Étnico-Raciais se apresentam dentro desses espaços como importantes estratégias de ensino para uma formação acadêmica, pessoal e cidadã que contribua com a equidade Étnico-Racial e diversidade nos espaços de ensino superior (OLIVEIRA, 2019). Vivemos em constante luta por uma sociedade que possa se constituir mais igualitária, democrática e inclusiva. No entanto, sempre nos esbarramos no racismo estrutural existente, no embate de ideologias de uma sociedade que ainda se mantém fixada nos padrões eurocêntricos. A discussão sobre raça precisa ser evidenciada e discutida enquanto construção histórica, social e política. Como afirma Munanga (1999), o racismo precisa ser denunciado e a luta por uma sociedade que possa se fazer plural e antirracista deve persistir e a educação é o primeiro e principal caminho para que haja mudanças. Este artigo tem como objetivo discutir o papel dos programas e projetos de extensão como estratégia para o ensino das Relações Étnico-Raciais nos espaços universitários. Trata-se de um recorte bibliográfico da pesquisa que vem sendo desenvolvida para o Programa de Mestrado em Estudos Interdisciplinares Sobre a Universidade. Para isso, nos apoiaremos nos estudos de Gomes (2005) e Santos (2017) que tratam sobre estratégias de ensino para uma educação que possa se fazer antirracista, tomando como ponto de partida o processo de formação de professores. Nessa direção, este estudo estrutura suas tessituras iniciais abordando um breve histórico sobre a extensão universitária. O segundo ponto a ser abordado, visa tratar a discussão sobre formação docente e o ensino para as Relações Étnico-Raciais, com enfoque nas ações desenvolvidas por programas e projetos de extensão universitária nos espaços acadêmicos. BREVE HISTÓRICO DA EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA NO BRASIL Na história da universidade brasileira, as práticas de extensão sempre estiveram presentes e vinculadas à sociedade. Segundo Gadotti (2017), ela surgiu na Inglaterra, em meados do século XIX, sob a ideia da educação continuada, destinada à Educação de Jovens e Adultos que não tinham acesso à universidade, em um formato de cursos oferecidos fora do horário de trabalho. Essa ideia serviu como referência para as primeiras universidades brasileiras, que surgem entre os anos de 1912 e 1930, se pautando nas concepções norte-americanas e francesas de universidades populares, desenvolvendo ações de extensão como prestação de serviços, surgindo posteriormente as ideias de “cursos de extensão” (ALMEIDA, 2015; ROCHA, 1984). 80 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO Entre os anos 1930 a 1968 vivenciamos o que Rocha (1984) chama de período de experiências isoladas e da disseminação de ideias e desenvolvimento de ações a partir dos movimentos sociais. Entre 1930 a 1945 vivenciamos a era Vargas, momento político em que várias reformas educacionais foram implantadas, em todas as etapas da educação, principalmente no Ensino Superior. No ano de 1931 também se destaca a criação do estatuto das universidades brasileiras, por meio do Decreto nº. 19.851 de 11/04/1931, que traz apontamentos sobre a extensão nas universidades brasileiras. No entanto, sobre o mesmo decreto, Dubeux (2018) aponta que a extensão foi sendo ao longo do tempo tratada como mecanismo para servir aos interesses de um grupo, não como via de mão dupla entre universidade e sociedade. Nos anos de 1950 vivenciamos o processo de industrialização, com necessidade de mão de obra qualificada, aumentando a demanda de formação dos operários. Neste momento há crescentes bandeiras de lutas dos movimentos populares, que se apoiavam nas ideias Freirianas (1983; 1996) para configuração de uma universidade popular. Esses movimentos lutavam por uma extensão universitária que fosse comprometida com as mudanças sociais e os problemas locais. Após as reivindicações, começa-se a projetar o fortalecimento de uma universidade que pensasse no povo e nas demandas da sociedade, passando a ser a extensão da pauta política (ROCHA, 1984). No entanto, essas conquistas passam a ser ameaçadas com a ditadura civil-militar de 1964, um período em que os ideais dos movimentos sociais e estudantis não são considerados. Assim, como enfatiza Gadotti (2017), inicia-se um golpe contra a cultura, a Educação Popular, e os ideais de uma sociedade mais justa e acessível às camadas mais populares da sociedade. Nessa nova configuração a extensão universitária passa a ser tratada como modelo tecnicista, “espalhando-se um clima de medo dentro das universidades com invasão de tropas armadas, censura de produções intelectuais entre outros acontecimentos” (ALMEIDA, 2015, p. 17). Assim como aponta Freire (1996), a educação é um importante instrumento de transformação e transmissão de ideologias, logo os governantes deste período começam a realizar reformas educacionais, principalmente do ensino superior, dando início ao desmonte da educação com o intuito justamente, de limitar o seu potencial. Nesse momento, a educação passa a ser “difusão da ideologia promovida pelos militares do período, a exemplo do Projeto Rondon que enviou milhares de jovens em diferentes regiões do Brasil, com missões de educação para o desenvolvimento, a partir da ideologia militar” (DUBEUX, 2018, p. 7). Entre 1970 a 1980, os movimentos sociais passam a ressurgir e dão novo 81 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) significado à extensão universitária. Vivenciamos o movimento das eleições diretas e a volta de políticos engajados com a causa, dando esperança para a configuração de uma educação mais democrática. Estudantes, professores e políticos se unem por um projeto de universidade popular, reivindicando uma universidade que possa abrir as portas para a comunidade e que entenda que ela precisa assumir um papel de responsabilidade social no processo de construção, trocas e de conhecimentos. Nessa direção, as universidades são convidadas a se reestruturar e desenvolver projetos de ensino, pesquisa e extensão que possibilitem contribuir com a sociedade. É importante ressaltar que, neste período entre as décadas de 70 e 80, a ciência passa por mudanças, saindo da ciência moderna para uma ciência pós-moderna, então logo começa a se pensar no rompimento do modelo linear de construção de conhecimento (DUBEUX, 2018). Essa ruptura traz à tona novos olhares e debates acerca da construção do saber, devendo este ser transdisciplinar, visando o diálogo entre as diferentes áreas. É a partir desse momento que começa também a se pensar em uma nova perspectiva de extensão universitária. Em 1987 é então criado o Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras, o FORPROEXT, um grande marco que passa a ampliar as discussões sobre o assunto. Neste Fórum é criado o Plano Nacional de Extensão Universitária, que estabelece a importância da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão universitária, entendendo que esses pilares devem se articular e se alinhar com a comunidade. Um dos princípios que norteiam a extensão universidade orientada pelo Plano Nacional de Extensão é que: (...) a universidade não pode se imaginar proprietária de um saber pronto e acabado, que vai ser oferecido à sociedade, mas, ao contrário, exatamente porque participa dessa sociedade, a instituição deve estar sensível a seus problemas e apelos, quer através dos grupos sociais com os quais interage, quer através das questões que surgem de suas atividades próprias de ensino, pesquisa e extensão (FORPROEXT, 2012, p. 7). A extensão universitária, entendida enquanto um dos pilares da universidade, deve ser desenvolvida como instrumento de mudança dentro dos espaços universitários e fora deles, devendo ser um papel desenvolvido por todos da comunidade acadêmica e externo a ela (FORPROEXT, 2012). Após a criação e instituição do Plano Nacional de Extensão, percebe-se que ainda há muito o que pensar e se instituir acerca dos limites e possibilidades sobre a extensão universitária, sendo elaborado em 2009 pelo fórum a Política Nacional de Extensão Universitária, aprovada em 2012 no XXXI Encontro Nacional de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileira (ALMEIDA, 2015). 82 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO Pautado no enfrentamento de novos desafios, o Plano Nacional enfatiza a importância da troca de conhecimentos entre universidade e sociedade, priorizando as necessidades sociais e da comunidade, permitindo o alargamento desses saberes. Além disso, enfatiza a valorização dos programas e projetos de extensão que buscam desenvolver ações extensionistas e visam um caráter social frente às questões da sociedade. Nesta direção, entendemos que a extensão universitária percorre um longo caminho até chegarmos à ideia de extensão enquanto via de mão dupla entre universidade e sociedade e, extensão cidadã, afirmadas e defendidas por Paulo Freire e pelos movimentos sociais populares e estudantis. Para Freire (1983), o conceito de extensão deve ser entendido enquanto possibilidade de transformação social, modificando-se a si mesma quando se volta para dentro do espaço universitário e também para fora dele quando direcionada à comunidade externa. É também compreendida como mecanismo de ampliação e trocas de conhecimentos, que permite aberturas para o aprendizado com o saber popular. Para Freire (1983) a ideia de extensão deve ser pensada enquanto comunicação, pois esta permite a troca e o estar aberto para a comunidade, diferente de uma extensão entendida enquanto transmissão ou mera transferência para os sujeitos envolvidos, “transformando o homem em quase coisa, e o negando como ser de transformação do mundo” (FREIRE, 1983, p. 22). Rocha (1984), compartilhando das concepções freirianas sobre a ideia do fazer extensão, aponta que as ações extensionistas não devem ser apenas uma função universitária que visa transmitir aos sujeitos externos envolvidos o seu conhecimento, sem ao menos ter tido contato com o outro, ao contrário, a extensão deve ser percebida enquanto “intercâmbio de conhecimentos no qual a universidade aprenda a partir do saber popular” (ROCHA, 1984, p. 59), possibilitando por meio desta ponte traçar caminhos para termos sujeitos críticos e cientes do seu lugar no mundo. A universidade precisa estar aberta para se comunicar com o seu com a comunidade, enfrentando por meio de ações problemas sociais existentes, só assim conseguiremos alcançar um espaço acadêmico igualitário que se coloque à serviço da sociedade. OS PROGRAMAS E PROJETOS DE EXTENSÃO E A DISCUSSÃO SOBRE RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NOS ESPAÇOS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES A extensão tem como um de seus princípios norteadores a aproximação entre universidade e comunidades locais. Essa troca tem como principal objetivo possibilitar uma formação humana, visando o enfrentamento de problemas e contribuindo para a transformação social. 83 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) No espaço universitário as ações de extensão podem ser desenvolvidas por diversas formas, por meio de programas, projetos, eventos, prestação de serviços e consultoria, cursos, vivências, publicações e outras atividades que sigam as orientações do Plano Nacional de Extensão Universitária5. Os projetos visam ações processuais de formação continuada, com cunho social, educativo e científico, tendo prazo determinado e podendo estar vinculado a um programa. Já os programas são conjuntos de projetos ou ações de extensão que visam a articulação entre ensino, pesquisa e extensão, tendo como objetivo contribuir com a formação acadêmica e cidadã dos sujeitos envolvidos (FORPROEXT, 2012). Esses estão intimamente ligados à instituição universitária, que deve garantir apoio financeiro, apoio na definição de políticas e diretrizes voltadas para extensão, além de direcionamento através dos editais. Santos (2017) em seu estudo sobre “Curso de Branco: uma abordagem sobre acesso e permanência” evidencia que as discussões sobre raça e diversidade, perpassam de forma muito pontual nos currículos dos cursos de graduação, em algumas circunstâncias esses temas são tratados apenas pelos professores que se identificam com eles e os abordam durante suas aulas. Para Santos (2017), alguns estudantes apenas conseguem ter acesso a elas por meio de programas e projetos ofertados no campus. Outro apontamento destacado pela autora é sobre como os estudantes se sentem acolhidos nestes grupos, conseguindo alcançar por meio dessa rede aquilo que Coulon (2008) aponta como Afiliação Estudantil6, se sentindo acolhidos e pertencentes ao espaço acadêmico, garantindo sua permanência simbólica. É importante destacar que entendemos o termo raça enquanto construção política e de valorização da cultura negra e não como uma espécie de condição biológica determinante. Ao utilizarmos este conceito para analisar as complexidades existentes entre negros e brancos no Brasil, não nos referimos ao sentido biológico, que por muito tempo sustentou contextos de dominação e superioridades entre as diferentes raças, como refere Gomes (2005). Ao contrário, esta deve ser entendida enquanto construção social e política (MUNANGA, 2005). Outro conceito atrelado a essas discussões é o de etnia. O termo segundo Santos (2012), deriva do grego ethnikos, que quer dizer povo e nação. Para 5 Resolução CNE/CES nº 7, de 18 de dezembro de 2018 - Estabelece as Diretrizes para a Extensão na Educação Superior Brasileira e regimenta o disposto na Meta 12.7 da Lei nº. 13.005/2014, que aprova o Plano Nacional de Educação - PNE 2014-2024 e dá outras providências 6 Segundo Coulon (2008) o processo de afiliação estudantil passa por três etapas: o tempo de estranhamento, quando o estudante entra no universo desconhecido; o tempo de aprendizagem, quando ele começa a se adaptar e a se inteirar do universo estudantil; e o tempo de afiliação que é quando o aluno já consegue decodificar o mundo acadêmico e se sentem pertencentes ao espaço acadêmico. 84 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO Gomes (2005), o termo etnia se refere ao pertencimento ancestral e étnico/racial dos povos negros e de outros grupos da sociedade. Um grupo étnico se organiza a partir das suas experiências compartilhadas, sua identidade, língua, cultura, tradições, territórios, dentre outras características (GOMES, 2005). É importante frisar que o termo etnia na expressão Étnico-Racial, vai além das diferenças estabelecidas a partir da cor da pele, dizem também respeito à valorização da cultura afro-brasileira, que difere em relação à visão de mundo de outros grupos étnicos, assim como aponta as Diretrizes Curriculares Nacionais para as Relações Étnico-Raciais (BRASIL, 2004). A Lei nº.10.639/03, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), torna obrigatório o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira em todas as redes de ensino e foi uma das principais conquistas da luta dos movimentos sociais negros por uma educação antiracista. (SANTOS, 2005). A valorização da história e cultura negra, nos currículos escolares, possibilita aos alunos, principalmente aos alunos negros, conhecer a sua história, e construir a partir deste percurso o seu pertencimento étnico racial (CAVALEIRO, 2001). O que certamente é evidenciado nas práticas de extensão universitária. Nesta visão, como expressa a própria Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL, 2004) para se obter êxito, no que tange o processo de ensino para Relações Étnico-Raciais: Há necessidade de professores qualificados para o ensino das diferentes áreas de conhecimentos e, além disso, sensíveis e capazes de direcionar positivamente as relações entre pessoas de diferentes pertencimentos étnico-racial, no sentido do respeito e da correção de posturas e atitudes (BRASIL, 2004, p. 12). Nessa direção, é preciso pensar em um processo de formação de professores que capacite os docentes não só para atuar nas suas determinadas áreas, mas que também construam durante esse processo tomadas de consciência sobre a necessidade e importância de discussões que fazem parte do social e que devem ser tratadas não de forma pontual, mas cotidianamente no âmbito escolar. Esses micros ações afirmativas cotidianas7 (JESUS, 2009), evidenciam de algum modo mudanças que têm sido significativas para a transformação da educação enquanto cidadã, plural e que inclui a questão racial como algo sério a ser discutido no processo de Formação de Professores. Para Jesus (2009) essas micro ações são entendidas como “práticas pedagógicas de caráter antirracistas, comprometidas com a transformação do quadro de desigualdade étnico-racial 7 Para ver mais: JESUS, Regina de Fátima. PRÁTICAS PEDAGÓGICAS EVIDENCIAM MICRO-AÇÕES AFIRMATIVAS COTIDIANAS. Anais do 19º EPENN. João Pessoa, 2009. 85 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) que se evidencia na sociedade brasileira e, por consequência, nos cotidianos escolares.” (JESUS, 2009, p. 2). Momentos formativos, eventos, seminários, ciclos de conversa e conferências, são exemplos de ações desenvolvidas pelos programas e projetos de extensão, dentro e fora dos espaços acadêmicos. Quando voltadas para discussão sobre raça e diversidade, tais ações ganham um significado ainda maior, pois permitem à comunidade interna e externa a universidade ter acesso a uma formação de professores que debata o ensino para Relações Étnico-raciais. O alcance de uma formação antirracista, não só permite a formação de docentes sensíveis à temática, como também amplia a visão de uma sociedade que valoriza e evidencia a diversidade racial existente, permitindo novos avanços. Tratar sobre Relações Étnico-Raciais dentro do espaço acadêmico, não só diz respeito ao cumprimento de uma demanda que deve ser obrigatória, mas também deve possibilitar ao estudante poder se sentir pertencente a esse espaço. Os programas e projetos de extensão, nesse viés, se configuram como mais uma estratégia de ensino, mas a pauta não deve ser apenas responsabilidade das ações extensionistas, tampouco só dos professores ativistas e engajados com a temática, a sensibilidade e responsabilidade deve permear a todos, principalmente nos currículos dos cursos de graduação das diversas áreas de ensino. Nesta direção, as ações extensionistas, seja por meio de projetos ou programas, tem como intencionalidade maior promover a interação dos universitários com outros setores da sociedade, através de atividades que contribuam para uma formação acadêmica e pessoal, que prima pela diversidade, a inclusão e quebra de barreiras entre universidade e comunidade. As ações de extensão voltadas para discussão racial, têm se configurado dentro destes espaços de formação, como micro ações afirmativas, a partir das colocações de Santos (2017) e Gomes (2005). Propor uma formação que tenha como ponto de partida a valorização da diversidade, é apoiar uma educação que possa se fazer antirracista e igualitária. CONSIDERAÇÕES FINAIS O debate proposto é necessário, pois evidencia a importância das ações extensionistas na universidade, assim como a sua presença no processo de formação docente dentro dos espaços universitários. O alcance que é possível graças às interações entre comunidade acadêmica e comunidade externa, possibilita aos envolvidos o acesso a discussões que pouco perpassam o currículo dos cursos de graduação, a discussão sobre raça é um exemplo disso. Vale ressaltar que quando se trata de formação de professores a situação é ainda mais delicada. É necessário se formar educadores sensíveis a discussão sobre diversidade, 86 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO raça, gênero, dentre outros debates que fazem parte do cenário social e consequentemente das vivências na sala de aula. Os programas e projetos de extensão voltados para a temática das Relações Étnico-Raciais dentro dos espaços universitários se configuram como estratégias de acesso a essas discussões. Assim como aponta Gadotti (2017) a extensão precisa acontecer de dentro para fora, é preciso que as ações se voltem também para dentro, mobilize mudanças e possibilite a comunidade acadêmica trocas de saberes e perspectivas de transformações. Nesse viés, entendemos que diante dos desafios de uma formação docente para o ensino das Relações Étnico-Raciais, ações de extensão como as propostas pelos programas e projetos nos espaços universitários se fazem necessárias, pois permitem ter acesso a discussões imprescindíveis durante o processo de formação docente. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Daisy Santos de. Extensão Universitária na UFBA: ACC e a formação do estudante. 2015. 83 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Mestrado em Estudos Interdisciplinares Sobre A Universidade, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015. BRASIL. Ministério da Educação/Secad. Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana na educação básica. Brasília, DF, 2004. CAVALLEIRO, Elaine. Racismo e Antirracismo na Educação. 6 ed. São Paulo: Selo Negro, 2001. COULON, Alain. 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Para além de saber a disciplina que leciona, pede-se a esse docente que seja um facilitador da aprendizagem, pedagogo (origem etimológica) eficaz, organizador de trabalho em grupo e que, para além do ensino, cuide do equilíbrio psicológico da turma, da integração social, da educação sexual e, se possível, dê um apoio na ordem, no corredor e da disciplina no recreio. Com esse aumento de exigências em relação a docência, produziu-se uma visão distorcida quanto às verdadeiras competências necessárias ao exercício do magistério. A primeira consequência desse processo será a fragilidade no exercício da docência, pois o professor sempre estará sujeito a críticas, tanto no plano de competências funcionais como no domínio metodológico. A segunda consequência desse processo está na provável má formação do aluno. Basta perceber as frequentes tentativas de substituir o professor da matéria por outro professor de alguma área similar, ou por um profissional de pedagogia. Nos três primeiros anos das séries iniciais, essa atitude não traz distorções futuras, contudo, com o passar dos anos letivos, a falta de um profissional com a devida formação para o ano correspondente, poderá trazer deficiências na formação de maneira concreta. É a favelização do exercício da docência. O 1 Professora das redes municipal e estadual do Rio de Janeiro, Pós-graduada em Supervisão Escolar pelo Projeto “A Vez do Mestre”, vinculado à Universidade Cândido Mendes, e autora do trabalho monográfico “O Exercício da Docência Diante do Processo de Favelização do 2 Segmento da Educação Pública Municipal do Rio de Janeiro”. E-mail: [email protected]. 2 Professor da Rede Estadual do Rio de Janeiro, Especialista em Ensino de História e Cultura da África pelo Colégio Pedro PII e Mestre em Relações Étnico Raciais, Filosofia e Ensino pelo Cefet. E-mail: [email protected]. 89 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) vocábulo favelização não é usado no seu sentido etimológico (arbusto ou área geográfica desfavorecida), tampouco pejorativo, mas enquanto projeto estatal, institucionalizado de precarização. Não se trata de algo fortuito, esquecido ou negligenciado. É um projeto. Como afirmou o saudoso professor Darcy Ribeiro3, “o fracasso da educação no Brasil, não é um fracasso. É um projeto”. Esse pensamento nos faz supor que o projeto de educação no Brasil parece não ter dado certo, especialmente quando pensamos no contexto sociopolítico, étnico-racial, espaço das escolas públicas, densidade de aluno por sala e, sobretudo, pela ausência de uma política clara de formação docente (TOWS; BERTOLINI, 2020). Toda essa realidade foi agravada com o advento da pandemia, quando se aprofundam ainda mais as desigualdades, ao mesmo tempo, que demanda um compromisso político. Em seu livro Magistério de 1º Grau: da competência técnica ao compromisso político, a professora Guiomar Namo de Mello afirmou: “O que se expandiu, portanto, foi um modelo empobrecido de escola de elite, esvaziado em seu conteúdo, aviltado nas suas condições de funcionamento, entre as quais a duração da jornada escolar e o número de alunos por sala de aula são dos mais críticos” (MELLO, 1983, p. 146). A partir desse pensamento, este artigo propõe a discussão da função do professor nas escolas e colégios públicos do Município do Rio de Janeiro, diante do processo de “favelização” pelo qual passa o exercício da docência e a consequente precarização na formação dos discentes. Trata-se de uma pesquisa de cunho bibliográfico, em que se espera contribuir para uma discussão séria e qualitativa sobre o tipo de formação que queremos para nossos alunos(as), tendo o professor como figura central nesse processo. Essa discussão é tão importante quanto o futuro de uma sociedade carioca sem o estigma de uma sociedade partida. DA TRANSMISSÃO DO CONHECIMENTO À RESPONSABILIDADE DE UMA REFLEXÃO A transmissão do conhecimento não é algo que surgiu nos dias de hoje. Através do diálogo entre as civilizações pretéritas, a base de um arcabouço de conhecimento coletivo pôde ser disseminada e ratificada. No Grego, a palavra “kyrios” significa “senhor”, “lorde” ou “Mestre”. No Latim, distingue-se “magister”, representando uma função ou posição de referência máxima, associado ao advérbio “magis”, interpretado como mais, sobre a raiz indo-europeia “meg”, expressado como maior. Assim, o mestre aparece como aquele que estava acima dos demais e se destacava por seus conhecimentos em algum assunto. Importa sublinhar a questão da profissão docente que, retomando a 3 Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-crise-da-educacao-no-brasil-nao-e-uma-crise-e-projeto/. Acesso em: 30 dez. 2022. 90 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO discussão sobre a complexidade da profissão docente, Nóvoa (2013) esboça três ideias que corroboram essa compreensão. A primeira salienta a dependência em relação aos outros profissionais, vez que é necessária a colaboração do aluno para a realização da atividade docente, todavia, em suas palavras, “ninguém ensina a quem não quer aprender” (NÓVOA, 2013, p. 229). Nóvoa provoca ao docente a “repensar o seu trabalho no quadro de relações sociais e de redes novas” (idem). Assim, aqui importa, também, repensar o trabalho em face a favelização. Outro aspecto que colabora para caracterizar a complexidade da profissão concerne ao emocional, ao envolvimento com os sentimentos e aos conflitos da prática docente. Damascena (2020) apud (NÓVOA, 2013), chama a atenção para as muitas demandas profissionais, por vezes, contraditórias. Na tradição africana, havia o “Griot ou Griote”, forma feminina, também chamados “Jali ou Jeli”, que eram responsáveis, na África Ocidental, pela vocação de preservar e transmitir as histórias, conhecimentos, canções e mitos do seu povo. Cabe destacar que há uma experiência de Pedagogia Griô, transcreve-se a seguir. Programa Ação Griô Nacional como coordenadora pedagógica da ONG Grãos de Luz. A Ação, que visava valorizar e disseminar a tradição oral no Brasil, articulou diálogos pedagógicos entre a educação formal e a tradição oral, colocando mais de 750 griôs em contato com 100 mil estudantes de escolas públicas. A partir dessa experiência , Pacheco e Marcio Caires desenvolveram a Pedagogia Griô, uma proposta pedagógica baseada na transmissão oral de conhecimento (LABORATÓRIO DE EDUCAÇÃO, 2019, [n.p.]). A partir das relações que o ser humano estabelece com os seus e com o meio, foi naturalmente surgindo um indivíduo responsável por compreender e explicar os diferentes tipos de conhecimento que nos rodeiam e que são observados. A essa compreensão e explicação, vinha associada à responsabilidade de disseminar e preservar este conhecimento em nome da “sobrevivência” deste corpo social. A falta de uma pessoa vocacionada ou “qualificada” para essa “transmissão” possibilitava não só a falta de desenvolvimento do grupo, com também a subserviência ou dominação por outro grupo mais “evoluído”. Desta maneira, fica clara a importância da figura do mestre na transmissão de um conhecimento para a atual geração e para as gerações futuras. É desse binômio mestre/conhecimento que surge a figura do professor. PROFESSOR: SACERDOTE, EDUCADOR OU MESTRE DE UM CAMINHO Com o início das primeiras sociedades organizadas, determinados indivíduos foram incumbidos de registrar os aspectos linguísticos, “científicos”, religiosos ou dos costumes da sociedade em questão: 91 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) Inicialmente, o desenvolvimento deste processo docente deu-se de forma não especializada, constituindo uma ocupação secundária de religiosos ou leigos das mais diversas origens. A gênese da profissão de professor tem seu lugar no seio de algumas congregações religiosas que se transformaram em verdadeiras congregações docentes (NÓVOA, 1995, p. 15). No caso específico da Europa, com o advento dos Estados Nacionais e sua efetiva implementação, a partir do final do século XVIII, aliado ao processo de industrialização, a figura do professor passou a um novo status social. A missão de educar foi substituída pela prática de um ofício, assim como a vocação cedeu lugar à profissão, contudo, muito do “espírito sacerdotal” do exercício do magistério ainda persegue a profissão nos dias de hoje, diz Nóvoa: O processo de estatização consistiu, sobretudo, na substituição de um corpo de professores religiosos (ou sob o controle da Igreja) por um corpo de professores laicos (ou sob o controle do Estado) sem que, no entanto, tenha havido mudanças significativas nas motivações, nas normas e nos valores originais da profissão docente: o modelo do professor continua próximo ao modelo do padre (NÓVOA, 1995, p. 15). No século XIX, a expansão escolar e a ideia de associação da educação com o desenvolvimento econômico “criam as condições para a valorização das suas funções e, portanto, para a melhoria do seu status socioprofissional” (NÓVOA, 1995, p. 16). Contudo, todo esse processo de início de profissionalização também trouxe à tona alguns paradoxos internos inerentes ao ofício do professor: A segunda metade do século XIX é um momento para compreender a ambiguidade do status do professor. Fixa-se neste período uma imagem intermediária dos professores, que são indivíduos entre várias situações: não são burgueses, mas também não são povo; não devem ser intelectuais, mas têm de possuir um bom acervo de conhecimentos; não são notáveis locais, mas têm uma influência importante nas comunidades; devem manter relações com todos os grupos sociais, mas sem privilegiar nenhum deles; não podem ter vida miserável, mas devem evitar ostentação; não exercem seu trabalho com independência, mas é útil que usufruam de algum autonomia (NÓVOA, 1995, p. 18). Todo esse processo evolutivo na construção histórica da figura do professor nos leva a perceber o quão difícil é para a consolidação da imagem técnica do exercício profissional do magistério. Educador e Sacerdote se misturam e criam uma figura profissional difusa e sujeita a mudanças, conforme o olhar de elite executiva em vigor. Não bastasse as incongruências dentro da ambiguidade lexical entre professor/sacerdote, professor/educador e professor/profissional, surge uma figura que dará um caráter de subvalorização ao magistério: a tia. A entrada da figura feminina nos anos iniciais, ao mesmo tempo em que dá chance às mulheres de terem 92 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO uma “profissão”, causa também a entrada de uma visão estratificada e familiar no exercício do magistério, cargo, até então, masculino (por sua origem religiosa), o posto de professor também passou a ser aberto às mulheres, porém com restrições. Nesse contexto, caberá a essa mulher a educação inicial ou básica das crianças, cabendo ao homem as etapas mais “intelectualizadas e questionadoras” da profissão. Esse fenômeno dá uma visão machista e hierarquizada da profissão, levando a uma subvalorização financeira dos profissionais da Educação Básica e a consequente valorização dos profissionais da Educação Superior. Isso perdura até hoje. Por mais que altas tecnologias já façam parte do processo de formação educacional dos alunos no Brasil, muitas questões ainda estão ligadas aos valores do início do século XX. Espera-se ainda do docente da Educação Básica uma dedicação sacerdotal, o compromisso com a transmissão dos valores familiares e a capacidade de “dar conta” de todo tipo de conhecimento. E se esse profissional se insurge contra esse tipo de visão do exercício do magistério ele é visto como incapaz, inepto, ou a famosa afirmação de “não sabe ensinar”. Contudo, o compromisso com a formação do discente não pode ser visto como um sacerdócio, como ter a responsabilidade sobre a educação social do aluno ou de termos que dar conta de todas as disciplinas quando não houver o professor da matéria específica. Apesar de no Brasil haver um registro profissional em órgão federal e um código de ética, muitos são aqueles que esperam do professor uma postura vocacionada “a missão de ensinar”, à medida que esse ensinar seja algo que englobe tudo. DE MESTRE A OPERÁRIO DA EDUCAÇÃO: A DESCONSTRUÇÃO DA FIGURA DO DOCENTE A escola pode ser entendida como uma instituição que fornece o processo de ensino para discentes (alunos e alunas), com o objetivo de formar e desenvolver cada indivíduo em seus aspectos cultural, social e cognitivo. A escola é um local destinado à perpetuação, disseminação e desenvolvimento do conhecimento, além de firmar valores éticos, culturais, estéticos, políticos e religiosos de uma sociedade. Sendo assim, não há como negar o caráter fundamental de uma escola: o social. Dentro deste corpo social, vários são os componentes que viabilizam a sua existência: prédio, direção, funcionários de apoio, material de uso geral e didático e currículo, contudo, duas figuras são centrais para o sentido de sua existência: discentes e docentes. O sentido da palavra escola, colégio ou universidade, só se concretiza se houver alunos e professores, é a “alma” de qualquer instituição de ensino. Contudo, nenhum dos elementos supracitados tem a responsabilidade 93 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) direta sobre o aluno, como tem o professor. A capacidade de ação e transformação do docente sobre seus alunos é “inquestionável”. Mesmo com toda essa “força transformadora”, a figura do profissional do magistério vem passando por um processo de desvalorização implacável. Se antes chamado “mestre”, hoje, dentro do espaço escolar, o professor(a) passa a figurar também como funcionário” dentro de uma estrutura de “gerência escolar”. Tal gerência se manifesta na segmentação funcional expressa na disciplina vinda de “cima para baixo”, na hierarquização. Concentra-se e centraliza-se a decisão, segmentando-se a execução, e para cada nível de execução tem-se um nível mais ou menos hierarquizado de poder (MELLO, 1983, p. 4). Essa segmentação foi sendo feita de tal maneira que empurrou o professor para uma mera função braçal, isto é, ensinar. O interessante observar é que várias foram as responsabilidades adquiridas nesse período de tempo, contudo, proporcionalmente a esse aumento de responsabilidades, acompanhou-se um desprestígio profissional, até porque, se esse funcionário não der conta dos trinta e cinco alunos em sala de aula, “arrumarão um que dê”. O propósito não mais está na qualidade formativa do aluno, mas na capacidade do docente “controlar e entreter” a turma em sala de aula: A presença maior de uma burocracia média no interior das escolas dá um outro “ethos” ao professor. Agora, conteúdo e método se diluem em técnicas prefixadas por objetivos específicos. Se antes o método preponderava sobre o conteúdo, agora a administração (planejamento, supervisão, inspeção etc.), prepondera sobre o método. Escapando do controle do professor, tais recursos tornam-se uma imposição prefixada. Com isso, se chega a uma parcelarização, a uma atomização do saber, simultâneas à perda, por parte do professor, do planejamento e conteúdo. O aprender desloca-se para um produto, espécie de “mercadoria”, através de estratégias que fogem do controle do regente e cabem aos técnicos (MELLO, 1983, p. 3). Para exercer a sua profissão, ele terá que se submeter às hierarquias funcionais mediadoras que controlam os instrumentos de trabalho. A lógica de uma empresa torna o professor refém de modelo de produção que por conta de uma mudança de paradigma econômico torna [...] as velhas formas de organização Tayloristas-fordistas deixam de ser dominantes. À luz dos novos paradigmas, com base no modelo japonês de organização e gestão do trabalho, a linha de montagem vai sendo substituída pelas células de produção; o trabalho individual pelo trabalho em equipe; o supervisor desaparece e o engenheiro desce ao chão da fábrica; o antigo processo de qualidade dá lugar ao controle internalizado, feito pelo próprio trabalhador. Na nova organização, o inverso passa a ser invadido pelos novos procedimentos de gerenciamento; as palavras de ordem são qualidades e competitividade (KUENZER, 2002, p. 32). 94 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO PH, Q1, Pensi, Cubo, A à Z. O que não são isso senão fábricas de educação? Uma Estácio em cada bairro da cidade? É a lógica das fábricas em prol da formação educativa de alguns. Enquanto isso, o modelo de expansão do Ensino Fundamental, Ensino Médio público, levou à necessidade de uma produção em massa de professores, e, consequentemente, uma produção em massa de universidades particulares que viram nesta modalidade profissional um novo “mercado do conhecimento”. A essa expansão desenfreada e sem compromisso com a qualidade formativa do futuro docente, seguiu-se a construção de uma engrenagem de proletarização: entra o estudante que vê nessa formação universitária ou meio de trabalho, e sai das “academias” um profissional de baixa qualidade profissional. Paralelo a isso tudo, acompanha o estudante do colégio público, aviltado pela falta de perspectiva, oriundas de sua precária formação. É a combinação perfeita para um projeto de fracasso escolar e subvalorização de uma profissão. DOS MORROS PARA AS UNIVERSIDADE E AS ESCOLAS: A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA FAVELIZAÇÃO Um país que pretende estar entre as grandes economias do mundo e ter sua capacidade de produção de conhecimento reconhecida deve ter um sistema educacional formativo de grande qualidade. Para que isso ocorra, é necessário termos profissionais das áreas da licenciatura Fundamental e Média formando-se com grau de excelência. Caso isto não ocorra, a tendência será termos profissionais sem o grau de conhecimento necessário à boa formação do discente, e, proporcionalmente a isso, a desvalorização da escola. Com a desvalorização desse sistema escolar, ocorrerá naturalmente uma desvalorização salarial. Afinal, é uma questão de mercado. O bom profissional, que sabe reconhecer a sua qualidade, procura as melhores condições de trabalho e, consequentemente, os melhores salários. A falta de reconhecimento de condições de trabalho tem atraído cada vez menos alunos para a área do magistério. Segundo o movimento “Todos Pela Educação”, com base em dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), a cada cem jovens que ingressam nos cursos de Pedagogia e licenciatura no país, apenas cinquenta e um concluem um curso escolhido. Entre os que chegam ao final do curso, só vinte e sete manifestam efetivo interesse em seguir a carreira de docente (CRAIDE, 2017). Nesse contexto, a realidade profissional que se apresenta hoje é completamente diferente de cinquenta anos atrás. Se antes a sociedade via no Banco do Brasil, na Caixa Econômica, na Petrobrás, na carreira militar, e no magistério (principalmente mulheres) a possibilidade de manutenção ou ascensão social, o que se nos apresenta agora é um processo de disputa muito grande com outras 95 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) profissões, sendo que estas não exigem tanto desgaste físico e muito menos emocional. Para o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, CNTE, Heleno Araújo, a falta de políticas que valorizem os profissionais da educação desmotiva a formação de profissionais para essa área. Ele ressalta que mesmo com a lei do piso nacional do magistério, ainda “há estados que pagam o piso para o professor do nível médio e o mesmo valor para o nível superior” (CRAIDE, 2017, [n.p.]). A NOVA BNCC E OS SEUS “DESCAMINHOS” PARA O MAGISTÉRIO NO ENSINO MÉDIO A “nova” BNCC traz como premissa principal proporcionar ao discente uma formação mais atualizada, dando espaço para que ele tenha autonomia curricular. Os itinerários formativos proporcionariam a possibilidade de o aluno escolher competências e habilidades nas quais ele melhor se identificasse. Contudo, para que isso ocorra efetivamente, é de suma importância que o Ensino Médio tenha a sua grade curricular e seus professores preparados para isso. E o que estamos vendo é a implementação de uma nova “política educacional” sem que a escola e os professores saibam o que precisa ser feito. No contexto do Ensino Médio do Estado do Rio de Janeiro, o que a Secretaria de Educação fez foi determinar o funcionamento de alguns colégios com formação direcionada (ex: Línguas, Esportes, Empreendedorismo [seja lá o que for isso], Gastronomia, entre outras) sem que a comunidade escolar fosse sequer consultada. Houve também a introdução de “matérias” as quais os docentes não entendem o sentido, como é o caso de “Projeto de Vida”. Profissionais do magistério estão sendo direcionados a ministrarem conteúdos para os quais não possuem o menor preparo para essas novas “modalidades curriculares”. São matérias sem livros didáticos, algumas sem uma ementa sequer. Professores sendo obrigados a buscarem conteúdos para que suas aulas tenham algum sentido. E o que é pior: não tem continuidade. Enquanto isso, a determinação da diminuição de carga horária de Matemática, Física e Química ou a retirada da grade curricular de Sociologia, Filosofia e Artes. São os descaminhos no exercício da docência na implementação da nova BNCC. DOS MORROS PARA AS UNIVERSIDADES E AS ESCOLAS: A INSTITUIÇÃO DA FAVELIZAÇÃO DO EXERCÍCIO DA DOCÊNCIA No final de 1897, ao retornarem da Guerra dos Canudos, militares de baixa patente, em sua maioria, negros, improvisaram um “casas” em um morro bem na área central da “pequena África”. É assim que nasceram as favelas 96 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO do Município do Rio de Janeiro. De uma proposta de liberdade moradia feita pela nobreza e a elite oligárquica do Brasil, o que vimos depois foi apenas uma liberdade dada por conveniência e o desamparo como política pública. Assim, tratava-se de ex-escravos, e o conceito escravocrata ainda era muito forte para verem nesses homens a figura de cidadãos brasileiros. Passados cento e trinta e quatro anos da Abolição, e cento e vinte e cinco anos da Guerra de Canudos, percebe-se que a ausência da presença do governo junto às camadas mais necessitadas da população continua. Muitos podem ver nessa ausência uma incapacidade dos governantes em estabelecer projetos para as camadas mais pobres, contudo, outros perceberam mais do que uma falta de capacidade”, mas sim um grande projeto de manutenção do status quo. Uma nação é definida pelo conjunto de características culturais, tradições, língua, costumes, entre outros fatores que formam uma identidade e se sentem parte de um grupo. As nações antecedem o Estado e têm caráter mais subjetivo e humano. Já o conceito de Estado-nação refere-se à forma de organização dos governos dos Estados Modernos e às organizações sociais que se estabeleceram em torno deles. Quando falamos do conceito de Estado, referimo-nos aos mecanismos de controle político de um governo, que rege determinado território. Ao deixarem negros e mestiços ao relento na volta de Canudos, e a consequente ocupação dos morros locais, o Estado-nação simplesmente deu início a uma política pública que se expandiu a todos os campos de governo, e em especial para os moradores oriundos daqueles agrupamentos nas encostas do nosso município: a favelização. É preciso entender que o tema “Favelização” não denota algo depreciativo ou pejorativo, mas um projeto institucionalizado de precarização do papel do Estado junto às populações mais necessitadas. Como exemplo, é mais fácil e menos custoso um projeto como o Favela-Bairro já que a implementação de um “Projeto Habitacional” governamental demanda não só a desapropriação de áreas para a construção de moradias, como também toda uma infraestrutura geral (água, esgoto, luz, telefonia, transporte, saúde e educação), além da obrigatoriedade de reflorestamento de toda encosta depauperada (lembremo-nos das “Águas de Março fechando o verão”). Não é diferente com a educação. Todo o processo de desigualdade social construído a partir da Educação, não se estabelece de um dia para o outro. Ele sempre será lento, gradual e, principalmente, seguro. Para entendermos a sutileza do projeto de desigualdade no Brasil, é necessário entendermos como se deu a chegada da Revolução Industrial e os primórdios do capitalismo para a elite de pindorama. Em seu livro Mauá: empresário do império, Jorge Caldeira (1995, p. 52) nos premia com mais uma bela lição de “para inglês ver”: 97 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) Cairu admirava os ingleses, sobretudo Adam Smith, autor de ‘A Riqueza das Nações’. Pretendia ser apenas um bom divulgador de sua obra. Porém, ao adaptar a teoria do escocês a uma sociedade escravista, na qual o trabalho estigmatizava e o ócio premiava, e também a seus bons princípios de católico extremado, foi obrigado a muitos malabarismos. Em seu Princípios de Economia Política pretensamente um folheto de divulgação de Smith, o bom Cairu remontou as ideias do mestre a seu modo, dando uma cortada local a sua versão. Começou por substituir o mercado por um outro princípio regulador da vida econômica, o velho e bom paternalismo da Coroa: “O primeiro princípio da economia política é que o soberano de cada nação deve considerar-se como o chefe ou cabeça de uma vasta família, e consequentemente amparar todos os que nela estão com seus filhos e cooperadores da geral felicidade.” Torto o princípio, torto o caminho. A ideia de que o trabalho é a fonte de toda a riqueza não podia entrar na cabeça de nenhum senhor de escravos. E para que é importante função de dar ordens não parecesse menos nobre do que conviria para esse eventuais leitores, ocorreu-lhe dar a ela o devido destaque. Em vez da riqueza pelo trabalho, atribuiu a Smith o elogio de outros valores maiores e dignos de um senhor (CALDEIRA, 1995, p. 52). Na nova escola, o trabalho, vinha por último na construção da riqueza: Inteligência, Indústria e Trabalho são as causas da riqueza das nações. [...] Inteligência é o conhecimento das cousas e bem assim dos expedientes de proporcionar fins e meios, para terem as empresas convenientes resultados. Indústria é a energia e constância dos homens e suas operações penosas, para vencerem obstáculos e não desacorçoarem com perigos e sinistros. Trabalho é exercício mecânico do corpo que se executam essas operações Explicou em seu Estudos do Bem Comum. Daí a chegar a uma forma de progresso econômico que dava um justo prêmio para os labores intelectuais dos donos escravos, os que só usavam a inteligência e deixavam o exercício mecânico do trabalho para os outros foi apenas um passo (CALDEIRA, 1995, p. 52-53). Essa longa revisão histórica, baseada no livro de Jorge Caldeira (1995), tem por objetivo reafirmar que o nosso processo de desigualdade é fruto de uma visão de Estado para as classes populares. Quando afirmamos que a favelização é um projeto institucionalizado por falta de um real compromisso com as camadas mais carentes da população, queremos dizer que essa parte da população nunca fez parte de um projeto de nação. Logo, seu papel na sociedade sempre será servil e não de cidadão. Como exemplo disso, o “pequeno” caso4 de preconceito social ocorrido durante o Intermed - RJ-ES (curso de medicina) ocorrido em Vassouras, no Estado do Rio de Janeiro. Os alunos de Medicina da UNIG, unidade Itaperuna, entoaram cânticos que demonstram o total despreparo da 4 Disponível em: <https://tribunasf.com.br/sou-playboy-nao-tenho-culpa-se-seu-pai-e-motoboy-cantico-em-jogos-de-medicina-no-rj-provoca-revolta-expulsao-de-torcida-e-multa-no-valor-de-moto/>. Acesso em: 30 dez. 2022. 98 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO classe média alta em ver alunos das classes populares e um espaço que, para esse grupo não pertence a eles. Tal evento aconteceu em 11 de outubro de 2022. O referido canto é extremamente significativo: “Ei, eu sou playboy, não tenho culpa se seu pai é motoboy”. Mais explícito impossível. Tal situação só demonstra qual deve ser o papel dos “não-playboys” na nossa sociedade: ser servil. A cidadania plena não existe para esses “pais motoboys” (TRIBUNA SUL FLUMINENSE, 2022, [n.p.]). Por isso, a: [...] dificuldade de se desenvolver e implementar um sistema educacional que promova a educação capaz de propiciar as necessárias mediações para que os menos favorecidos estejam em condições de identificar, compreender e buscar suprir, ao longo de sua vida, suas necessidades com relação à participação na produção científica, tecnológica e cultural (KUENZER, 2002, p. 43). O princípio do sentimento de cidadania e educação andam juntos. São as duas faces de uma mesma moeda. O “defeito” em uma dessas “faces da moeda” leva à nulidade dela. Ela não tem valor. Na humanidade, leva ao servilismo, à subocuparão e, no pior dos casos, à escravidão. O FRACASSO DOCENTE COMO FATOR DE UMA LUTA DE CLASSES Coletividade pequena, assentada sobre um pedaço comum de terra e unida por lá “laços de sangue”. Assim pode-se definir a origem pré-histórica de todos os povos conhecidos. A passagem dos tempos permitiu o “desenvolvimento” dessas coletividades. Se nesse primeiro momento, definir desenvolvimento como “controle da natureza” é claro que essa evolução está mais para persistência desse grupo junto às dificuldades do dia a dia do que conhecimento sobre ela; esse conhecimento era coletivo, feito das vivências do grupo. A transmissão dessas vivências era passada pela prática. Todos viviam as mesmas práticas. Nesse sentido, o surgimento das primeiras classes sociais dá-se a partir das “primeiras divisões das responsabilidades do dia a dia”. Com o desenvolvimento de sua percepção de espaço e grupo, a comunidade primitiva inicia uma divisão rudimentar do trabalho coletivo. A responsabilidade quanto à segurança, à justiça, à cura, à religiosidade e à administração desse coletivo passou a ser “dividida” entre o grupo. “Apesar de estarem sob a tutela da comunidade – porque não se lê esse reconhecia nenhuma importância especial –, os “funcionários” que receberam a custódia de determinados interesses sociais fizeram derivar desses interesses certa exaltação de poderes” (PONCE, 2001, p. 23). Essa diferenciação nos fazeres era aceita sem grandes questionamentos, afinal era a sobrevivência do grupo que importava. Com isso, um corpo social 99 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) dividido entre “administradores e executores” (PONCE, 2001, p. 23), tornou-se efetiva dentro da dinâmica funcional do grupo. É o embrião é um embrião do que viriam a ser as futuras classes sociais. (2001, p. 23). Dentro do espectro educacional, o caráter do conhecimento homogêneo desaparece, dando início a um conhecimento que “passa a ser um dogma pedagógico” (PONCE, 2001, p. 28), e prossegue: já nem tudo que a educação inculca nos educandos tem por finalidade o bem comum, a não ser na medida em que “esse bem comum” pode ser uma premissa necessária para manter e reforçar as classes dominantes. Para estas, a riqueza e o saber; para as outras, o trabalho e a ignorância (PONCE, 2001, p. 28). É a educação como luta de classes. Ao estabelecer caminhos e conteúdos preestabelecidos ao professor, desenvolveu-se um tipo de amarra na qual o docente se vê impedido de agir de acordo com o perfil de turma. A preocupação deixa de ser o que o professor pode fazer pelo desenvolvimento daquela turma, mas quais os conteúdos que devem ser aplicados àquela turma. É a velha história: como ensinar Física, Química e Biologia, se o aluno não é estimulado, antes de tudo, a ter um olhar observador sobre essas disciplinas? Afinal, todas elas vieram de uma análise reflexiva sobre a natureza à sua volta. Elas não nasceram sob a perspectiva matemática (cálculo), mas sob a perspectiva filosófica (empírico). Deixando claro que a Matemática também nasce de uma perspectiva filosófica. Como ensinar Literatura sem ler um livro sequer? Restringindo-nos a nossa bolha, como fazer um Enem sem ter lido “Os Lusíadas”, “Dom Casmurro”, “O Triste Fim de Policarpo Quaresma”, “Macunaíma” e “Cidade Partida”? Do mesmo jeito, como ser professor (não importa a área) sem ter lido os grandes pensadores da humanidade. É o conhecimento como luta de classes. Quanto maior for a preocupação com a formação profissional de um docente, tendo as matérias “pedagógicas” como fundamentais e deixando as “culturais” e “implícitas” à área em segundo plano, maior será a quantidade de professores “braçais” e menor a quantidade de professores “intelectuais”. Isso vale para todas as disciplinas. A questão é: a quem interessa isso? CONCLUSÃO Toda sociedade é uma realidade em constante transformação, e existe um senso comum no qual o conhecimento é o grande motor para que todas essas transformações sejam efetivas e que tragam melhorias para todo o grupo social. Também sabemos o quanto a figura do professor é de suma importância em todo o processo de transmissão desse conhecimento, que contribui de maneira 100 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO substancial para o equilíbrio entre os indivíduos componentes dessa sociedade. Contudo, todos têm também a devida consciência de que a deterioração de um dos componentes deste binômio conhecimento/professor pode gerar uma distorção no já referido equilíbrio social. Ao invés dos tão almejados valores humanitários de convivência social, haverá uma engrenagem de produção e hierarquias sociais devidamente estratificadas e de difícil rompimento. Em algumas sociedades, isso é combatido com a valorização da educação e da figura do professor, mas existem outras que, de maneira pensada e com método, desenvolvem mecanismos para que estruturas de poder se perpetuem através de políticas educacionais nas quais uma classe social monopoliza a riqueza e o conhecimento, enquanto uma outra vive sujeita a um saber bem dosado e, atualmente, conceitos religiosos (PONCE, 2001, p. 172). O processo de favelização de políticas públicas educacionais, já descritos anteriormente, são a prova cabal do não interesse em desenvolver projetos educacionais, que estejam sob constante estado de aprimoramento e aperfeiçoamento, para que não fiquem fossilizados e percam seu objetivo maior que é o de oferecer uma educação de qualidade e contemporânea às camadas mais pobres da população. Através da subvalorização da figura do docente de escola pública, implementa-se esse processo de maneira sutil, pois age-se dentro da estrutura da engrenagem, sem que o discente e suas famílias percebam. É oferecido um aparato físico como o prédio, uniforme, merenda, passeio, “bolsas” alimentação e tantas outras “bolsas”, mas o principal fica a reboque. Sem cuidado e sem a devida atenção. E esse principal se chama conhecimento. É ele que permite a ascensão das classes populares. É pela aquisição de conhecimento (sem ser o famoso “QI”) que o filho ou a filha da empregada doméstica (que sustenta as filhas com o seu salário-mínimo) consegue ascender socialmente, (lembremo-nos sempre das palavras preconceituosas do excelentíssimo “superministro posto Ipiranga”, Paulo Guedes, em relação aos filhos das domésticas nas universidades ou “indo para a Disney”). Ao precarizar a figura do docente, há prejuízo em todo o processo de formação discente. O binômio docente-discente é a base de uma política pública de qualidade. Sem focar nesses dois elementos e priorizando o “gerencial”, nada mais fazemos do que uma política pública de maquiagem, o nosso “jeitinho brasileiro”. O exercício do magistério é um desafio constante. Ano a ano, milhares de alunos entram ou concluem o ano escolar que a eles(as) se refere. Todo aluno, esteja no Fundamental, esteja na Academia, foi aluno de alguém. A aprendizagem e o desenvolvimento do aluno são de fato importantes para o professor. No caso da escola pública (sem acesso por concurso), isso se torna, por vezes, 101 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) angustiante, pois tem o devido discernimento da precariedade ou falta de continuidade no atendimento que a escola dá aos alunos e alunas oriundos das camadas mais pobres da população. Ao rever as conceituações do que seja conhecimento, docência e favelização, lembra-se a real função do magistério e, com isso, reafirma-se o nosso compromisso com o mais difícil, o mais trabalhoso, mas também o mais gratificante dos exercícios: o exercício da docência. É sabido que, do ponto de vista econômico e social para uma nação, é um absurdo frear ou até mesmo regredir a qualidade na formação do professor. Isso representa, a longo prazo, a falta de competitividade dessa sociedade diante de outras nações, contudo, e é verdade, parece vantajoso para alguns grupos que tal empresa seja mantida, afinal como manter o poder do status quo diante do olhar crítico de uma população com consciência esclarecida. REFERÊNCIAS CALDEIRA, Jorge. Mauá: empresário do império. 4 reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. CRAIDE, Sabrina. Carreira de professor desperta cada vez menos o interesse de jovens. Diário de Petrópolis, Agência Brasil, 2017. Disponível em https:// www.diariodepetropolis.com.br/integra/carreira-de-professor-desperta-cada-vez-menos-o-interesse-de-jovens-139841 . Acesso em 30 dez. 2022. KUENZER, Acacia. Ensino Médio: construindo uma proposta para os que vivem do trabalho. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2002. LABORATÓRIO DE EDUCAÇÃO. Pedagogia Griô e a valorização da tradição oral - Criada na Bahia, a proposta pedagógica propõe valorizar a ancestralidade afro-indígena dos brasileiros. 2019. Disponível em https://labedu. org.br/pedagogia-grio-e-a-valorizacao-da-tradicao-oral/. Acesso em 05 fev. 2023. MELLO, Guiomar Namo de. Magistério de Primeiro Grau: da competência técnica ao compromisso político. 3 ed. São Paulo: Cortez, 1983 NÓVOA, Antônio. Os professores e o “novo” espaço público da educação. In: TARDIF, Maurice; LESSARD, Claude (Org.). O ofício do professor: história, perspectivas e desafios internacionais. Tradução de Lucy Magalhães. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 217-233. NÓVOA, Antônio. Profissão Professor. 2 ed. Porto: Porto Editora, 1995. PONCE, Aníbal. Educação e Luta de Classes (1898-1938). 18 ed. Tradução de José Severo Camargo Pereira (Instituto de Matemática Estatística da USP). São Paulo: Cortez, 2001. TOWS, Ricardo Luiz; BERTOLINI, Bruna Lais. Desafios educacionais no Brasil em tempos de ensino remoto. In: Anais do CIET: EnPED. 2020 - (Con102 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO gresso Internacional de Educação e Tecnologias | Encontro de Pesquisadores em Educação a Distância), São Carlos, ago. 2020. ISSN 2316-8722. Disponível em: https://ciet.ufscar.br/submissao/index.php/2020/article/view/1263. Acesso em: 21 dez. 2022. TRIBUNA SUL FLUMINENSE. Cântico em jogos de medicina no RJ provoca revolta, expulsão de torcida e multa em Vassouras. 2022. Disponível em https://tribunasf.com.br/sou-playboy-nao-tenho-culpa-se-seu-pai-e-motoboy-cantico-em-jogos-de-medicina-no-rj-provoca-revolta-expulsao-de-torcida-e-multa-no-valor-de-moto/. Acesso em 05 fev. 2022. 103 INTERDISCIPLINARIDADE NO ENSINO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA UTILIZANDO METODOLOGIA EAD DIANTE DA PANDEMIA COVID-19 Elizabeth de Lima Pinto1 INTRODUÇÃO O surgimento da pandemia de Covid-19, ou, mais especificamente do vírus SARS-CoV-2, pois se trata de uma síndrome aguda respiratória severa, causou grande impacto em todos os campos da vivência humana, desde as relações interpessoais, até mesmo as relações de trabalho, dada a ordem de distanciamento social e isolamento humano. As preocupações de autoridades públicas no decreto de isolamento social, fechamento das cidades, também conhecido com lockdown, mantendo-se apenas os serviços essenciais. Mas essa atitude tem gerado uma gama de debate, especificamente na definição do que vem a ser essencial, e para quem vem a ser esse “essencial”, uma vez que, se for olhado as especificidades de cada área de trabalho, tudo é essencial. Um dos aspectos do isolamento social e distanciamento que se passou a olhar com determinado cuidado foi o setor educativo e como ele vem agindo e se adaptando para manter o seu processo formativo, a partir de ferramentas e know-how da Educação à Distância, mas mantendo características que são próprias da educação presencial. Essa dinâmica de atuação, apesar de ser uma novidade encontrou dificuldades inerentes que são frutos de negligência e descaso oficial com a escola que já duram muitas décadas. Não é de hoje que as dificuldades e gargalos que afunilam a educação, principalmente a pública, são patentes e conhecidas, mas, mesmo assim, nada foi feito para contornar essa situação, e o resultado, advindo com a pandemia, foi uma adaptação do ensino à distância, sem que houvesse a criação de uma 1 Mestre em Estudos Fronteiriços pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/ Campus do Pantanal (CPAN); Especialista em Metodologia do Ensino da História e da Geografia Faculdade Venda Nova do Imigrante- FAVENI, Especialista em Mídias na Educação – UFMS. Graduada em História – licenciatura plena pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – (CPAN). ³Graduada em Pedagogia - licenciatura plena pelo Centro Universitário FAVENI; Docente da educação básica da rede estadual – MS; E-mail: [email protected] 104 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO metodologia própria adequada à Educação Básica e que atendesse os interesses e objetivos dessa fase da educação. A situação apresentada gerou problemas diversos que vão desde uma rede de suporte para atendimento ao aluno, passando pela não operacionalização de ferramentas adequadas para esse tipo - não se trata aqui de modalidade, mas apenas tipos adaptados – de aula que não atende, nem as especificidades da Educação a Distância, muito menos a educação presencial. Este trabalho objetiva analisar como o ensino de História e Geografia da Educação Básica utilizou as ferramentas do ensino de Educação a Distância para dar sequência à sua prática pedagógica. Para isso buscou-se conhecer as ferramentas e estratégias do ensino EaD, além de pontuar como essas duas disciplinas se utilizaram dessas ferramentas. O trabalho se justifica, à medida que se buscam novas concepções para o ensino da Educação Básica nessa modalidade, uma vez que não se tem uma perspectiva para o retorno das aulas presenciais normalizadas. Além disso, permite que o pesquisador possa fazer uma reflexão sobre o ensino dessas duas disciplinas, utilizando-se de metodologias, mas não da filosofia EaD para sua consecução. Metodologicamente, este trabalho de revisão qualitativa de literatura buscou material teórico em diferentes fontes, inclusas as virtuais e físicas, estabelecendo como recorte temporal textos a partir de 2015 até o presente momento e que atendesse aos unitermos Educação a Distância, Metodologia, COVID-19 e Educação Básica. EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA As primeiras experiências de Educação a Distância se deram por correspondência, nos idos do século XVIII, com largo desenvolvimento a partir dos meados do século XIX. Em 1856, Charles Toussaint e Gustav Langenscheidt criaram a primeira Escola de Línguas por correspondência, em Berlim, o que se constituiu em uma iniciativa institucional de Educação a Distância (LANDIM, 2019). A partir de então, várias outras foram surgindo. Em nível universitário, os primeiros cursos foram oferecidos na Universidade da África do Sul (UNISA), em 1946. Entre outros, pode-se citar os trabalhos da Open University no Reino Unido, e da Universidade Nacional de Educação à Distância, da Espanha, como referenciais de experiências em EAD até hoje conforme explana Rezende (2020). Educação a Distância não é um mecanismo de simulação do Poder Público sobre a sociedade iletrada, pois está baseada em princípios e filosofias 105 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) que visam a educação formal das pessoas de maneira eficaz e efetiva. Mas se a Educação a Distância não é nada do que pensamos a priori, o que afinal de contas ela é? Niskier (2020) define a Educação a Distância como o processo de ensino-aprendizagem mediado pela tecnologia e caracterizado pela não delimitação espacial entre o professor e o aluno. Várias outras definições são formuladas por autores de diferentes épocas, conforme se seguem. Para Rezende: O ensino à distância é um sistema tecnológico de comunicação bidirecional, que pode ser massivo e que substitui a interação pessoal, na sala de aula, de professor e aluno, como meio preferencial de ensino, pela ação sistemática e conjunta de diversos recursos didáticos e pelo apoio de uma organização e tutoria que propiciam a aprendizagem independente e flexível dos alunos (REZENDE, 2020, p. 54). Na realidade, o ensino a distância trata-se de um tipo de método de instrução em que os condutos docentes acontecem à parte dos discentes, de tal maneira que a comunicação entre professor e aluno se possa realizar mediante textos impressos, por meios eletrônicos, mecânicos ou por outras técnicas. É uma metodologia de ensino em que as tarefas docentes acontecem em um contexto distinto dos discentes, de modo que estas são, em relação às primeiras, diferentes no tempo, no espaço ou em ambas as dimensões ao mesmo tempo. Esse sistema de ensino é um método de transmitir conhecimentos, habilidades e atitudes, racionalizando, mediante a aplicação da divisão do trabalho e de princípios organizacionais, assim como o uso extensivo de meios técnicos, especialmente para o objetivo de reproduzir material de ensino de alta qualidade, o que torna possível instruir muitos alunos ao mesmo tempo e onde quer que vivam (LUCENA, 2020). Observa-se que a EAD pode ser caracterizada de diferentes formas, como sistema de ensino, como método de instrução, como metodologia ou modalidade de ensino, e até mesmo como estratégia educativa. As denominações de Ensino ou Educação a distância referem-se a situações muito diferentes. O termo distância refere-se ao modo de realização do processo educacional em que a relação professor-aluno não se estabelece pela presença física, mas através de um canal de comunicação. Neste caso, o processo de aprendizagem é mediatizado, principalmente, pela utilização de matérias e recursos didáticos, promovendo um sistema de ensino individualizado (LANDIM, 2019). Este termo também caracteriza o desaparecimento dos centros tradicionais de ensino e da sala de aula como locais de aprendizagem e convivência. As fronteiras do tempo e espaço são rompidas, proporcionando flexibilidade ao aluno; ele faz o seu próprio horário de estudo, não precisando subordinar-se à 106 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO disciplina dos horários de aula na visão de Ramos (2005) citado por Rezende (2020). Mas talvez o elemento mais característico dos sistemas de ensino a distância, que configura a comunicação bidirecional, seja a ação tutorial. A função do professor tutor, enquanto facilitador da aprendizagem concorre para compensar as falhas dos materiais e dar calor humano ao processo (WENZEL, 1994 apud REZENDE, 2020). A atuação do tutor, em geral, não é transmitir os conhecimentos, mas sim auxiliar na aprendizagem dos alunos, principalmente aqueles que apresentarem maiores dificuldades no ato de aprender. Em outras palavras, a Educação a Distância é um processo de interação baseado na confiança mútua entre professores e alunos que visam a um aprendizado efetivo e que é mediatizado pelos recursos tecnológicos disponíveis na sociedade moderna, buscando, cada um de per si, tirar o máximo de proveito dos meios disponíveis para se chegar a uma educação de fato. TECNOLOGIA NA EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA A tecnologia educacional tem sua origem ligada a duas áreas do conhecimento: a utilização dos meios visuais (posteriormente audiovisuais) na educação e a análise experimental do comportamento humano de B. F. Skinner. Segundo Pfromm Netto (1998), citado por Sancho (2018), pode ser atribuído ao Dr. James D. Finn, professor da Universidade de Southem Califórnia, o emprego da expressão Tecnologia da Instrução, ao final da década de 50, referindo-se, pela primeira vez, não apenas aos meios audiovisuais, mas a um campo mais amplo relacionado ao ensino e à aprendizagem. A primeira definição oficial, que vigorou por quase uma década, ficou assim especificada: “Comunicação audiovisual é o ramo da teoria e prática educacionais preocupados primordialmente com a concepção e uso de mensagens que controlam o processo de aprendizagem” (SANCHO, 2018, p. 10). Em 1972, a Comissão sobre Definição e Terminologia propôs uma revisão da definição estabelecida em 1963. Pela primeira vez se referiu a Tecnologia Educacional e não à Comunicação Audiovisual e incorporou novas ideias à já existente, ficando desta maneira a nova definição: Tecnologia Educacional é o campo envolvido na facilitação da aprendizagem humana por meio de identificação, desenvolvimento, organização utilização sistemáticas de um aspecto amplo de recursos de aprendizagem e por meio da administração desses processos. (REZENDE, 2020, p. 10). Em 1977, depois da importância dada apenas ao meio e em seguida à mensagem instrucional, foi a vez dos especialistas do campo descreverem a 107 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) tecnologia instrucional como um processo, o que se reflete na definição elaborada pela Associação para Tecnologia e Comunicação Educacionais (AECT). Tecnologia Educacional é um processo complexo, integrado, envolvendo pessoas, procedimentos, ideais, instrumentos e organização para analisar problemas e planejar, implementar, avaliar e administrar soluções para estes problemas envolvidos em todos os aspectos da aprendizagem humana (REZENDE, 2020, p. 10). Nesta definição, a lista de recursos incluindo pessoas, materiais e instrumentos reforçou a noção de que os meios não seriam simplesmente considerados como suplementos ao trabalho do professor, mas que ambos estariam em pé de igualdade. Ao longo da evolução da Tecnologia Educacional, o papel dos recursos tecnológicos no processo de ensino foi sempre uma questão relevante. Hoje em dia, não se pode dizer que essa questão deixou de ser importante, mas ela tem sido vista com um novo enfoque. Pode-se dizer, então, que uma das concepções contemporâneas de Tecnologia Educacional, que poderia ser incorporada a uma definição futura, não separa a tecnologia do contexto educativo. Considera como tecnologia tudo o que os professores fazem a cada dia para enfrentar o problema de ter de ensinar a um grupo de estudantes determinados conteúdos com certas metas, independentemente dos meios usados para esse fim (NISKIER, 2020). Os principais meios utilizados na EAD, entendidos como ferramentas que exercem uma função intermediária na realização de uma proposta pedagógica, são: os materiais impressos (unidades didáticas, módulos de aprendizagem ou guias de orientação didática), materiais audiovisuais (TV, fita K7, vídeo, slides), materiais informáticos (software e CD-ROM), e materiais telemáticos (videotexto, correio eletrônico, videoconferência etc.). Os materiais audiovisuais passaram a ser utilizados por volta do final dos anos 1960, conforme explica Rezende (2020). Rádio, televisão, slides, videocassetes, fitas K-7 são meios mais ricos do que o material impresso no sentido de que podem representar a informação em formatos visuais e sonoros. Há limitações quanto ao uso do rádio e da TV, pois estes submetem o aluno a horários fixos de emissão, além dos altos custos de produção e transmissão. O ENSINO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA NA METODOLOGIA EAD Lucena (2020, p. 67) ao debater a introdução das ferramentas da internet e da EaD na Educação pública chama a atenção para o que ela define como “problemas sistêmicos” da escola em relação à tecnologia. Esses fatores, segundo a pesquisadora, são sensíveis quando se busca implementar a metodologia de 108 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO uma realidade, à dinâmica da escola pública, com todas as suas necessidades e empecilhos. Rezende (2020) analisando a implantação da metodologia EaD em escolas públicas do estado do Rio de Janeiro, apresentou as seguintes vantagens e desvantagens desse processo: Vantagens a) A EAD possibilita atingir um grande número de pessoas e grupos, propiciando maior acesso ao conhecimento e democratização da educação e do saber; b) Ao se eliminarem fronteiras espaço temporais, consegue-se conjugar trabalho e estudo atingindo o objetivo de uma educação permanente; c) Os recursos utilizados e o cuidadoso planejamento do processo ensino-aprendizagem promovem o trabalho independente, pois se adaptam ao ritmo de aprendizagem do aluno; d) Quanto aos custos, apesar de inicialmente serem altos com a produção de materiais instrucionais, apoio, e com toda a infraestrutura operacional, a longo prazo tornam-se baixos, em comparação com os sistemas presenciais de ensino, considerando-se a quantidade de pessoas que utilizarão o curso posteriormente (REZENDE, 2020). Desvantagens a) É necessária uma clientela abundante e dispersa para fazer face aos altos custos de implantação de cursos a distância; b) Por ser um curso pré-produzido, pode levar a certa uniformização de ideias pelo fato de os conteúdos serem iguais para todos os alunos. Mas isto pode ser evitado e superado com a elaboração de materiais que proporcionem a espontaneidade, a criatividade, a expressão das ideias do aluno, estimulando a capacidade crítico-reflexiva, bem como a troca de experiências em sua vida diária; c) As ocasiões para interação entre os alunos e o docente tornam-se escassas, não promovendo a socialização (REZENDE, 2020). Nesse sentido, o ensino de História e Geografia não incorporaram totalmente a metodologia do ensino EaD, mas tão somente alguns aspectos relacionados a essa metodologia com suporte em aulas à distância, mas sem interatividade, muito menos sem o suporte como o ambiente AVA – Ambiente Virtual de Avaliação – que permite um acompanhamento detalhado da evolução do aluno durante as aulas. Vale lembrar que, em se tratando da clientela da escola pública, dos suportes tecnológicos ali existentes e até mesmo da familiaridade do docente e do 109 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) aluno com a tecnologia, pode-se assegurar que, o que houve, nesse período de pandemia, foi uma adequação temporária dessa tecnologia para que houvesse a consecução do ensino. Ainda é possível ver, segundo aponta Sancho (2018) falhas sistêmicas nesse processo e um hibridismo de ensino, em que a aula virtual está suportada em meio físico, haja vista o ambiente escolar não possuir as ferramentas necessárias para a migração total para o ambiente virtual. Essa ação dupla gera diversos problemas relacionados, não somente a interação professora aluno, mas também a busca de materiais teóricos, sua agregação em um ambiente virtual, e por fim, a falta de familiaridade para a execução dessa atividade de maneira plena. Tanto no Ensino Fundamental, quanto no Médio, apesar da popularização dos meios virtuais de comunicação, ainda falta um direcionamento proativo para que professores e alunos possam se beneficiar dessa ferramenta (MORAES, 2021). CONCLUSÃO Pelo estudo procedido, viu-se que a Educação a Distância teve seus implementos no final do século XVIII, com largo desenvolvimento a partir de meados do século XIX. Em nível universitário, os primeiros cursos foram oferecidos a partir de 1945. A necessidade de uma força de trabalho mais qualificada tecnologicamente foi o que impulsionou o desenvolvimento da EAD de nível médio e superior, até os dias atuais. É inegável, pelos conceitos estudados, que a EAD é caracterizada ora como sistema de ensino, como método de instrução, como metodologia de ensino ou como estratégia educativa, denotando um campo que ainda está se construindo. Na EAD, a relação professor-aluno não se estabelece pela presença física, mas através de um canal de comunicação. O processo de ensino-aprendizagem é mediatizado principalmente pela utilização de materiais e recursos didáticos. O contato com o professor só ocorre quando o próprio aluno necessita. A tecnologia pode revolucionar a educação e, consequentemente, sociedade. Portanto, as escolas, as universidades não podem ser esquecidas, tendo que estar conectadas à rede. Por outro lado, vale dizer que o aluno é a peça principal de todo esse sistema desenvolvimentista, se ele não estiver interessado em aprender, em procurar se capacitar, em se instruir, de nada adiantaria essa tecnologia de ponta a favor da humanidade, se cada um não fizer sua parte. Isso falando de uma maneira genérica, isto é, considerando a EaD em seu aspecto atual. Se for levado em consideração a adaptação de parte de sua 110 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO metodologia no Ensino Fundamental e Médio, pode-se dizer que se chegou a um termo híbrido relacionado tanto à EaD, quanto a Educação presencial em tempos de pandemia. Importante frisar que não se está desmerecendo as tentativas de se manter o processo educativo funcionando, mas a pandemia revelou algo que estava submerso na vida escolar e que pouca gente dava atenção: a defasagem entre o mundo real e o mundo da escola. Convém acrescentar que nesse sistema a distância corre-se menos riscos de contaminação e propagação do vírus que oram vem assustando a humanidade, pelo fato da inexistência de contatos com as outras pessoas. Seria impossível a contaminação de modo virtual, o que favorece que grande número de alunos possa acompanhar regularmente os estudos ao mesmo tempo, sem prejuízo da aprendizagem de cada um. O único problema estaria pautado no fato de alguns alunos não possuírem ferramentas tecnológicas capazes de fazer frente a essa nova modalidade de ensino, que praticamente forçou a todos a reaprender e pôr em prática o que já existia há bom tempo – o ensino a distância. REFERÊNCIAS LANDIM, Claudia Maria Ferreira. Educação a distância: algumas considerações. Biblioteca Nacional, n. 128, livro 20, folha 13, Rio de Janeiro, 2019. LUCENA, Marisa. Um modelo de escola aberta na Internet: Kidlink no Brasil. Rio de Janeiro: Brasport, 2020. MORAES, Maria Cândida. O paradigma educacional emergente. São Paulo: Papirus, 2021. NISKIER, Arnaldo. Educação a distância: a tecnologia da esperança; políticas e estratégias a implantação de um sistema nacional de educação aberta e a distância. São Paulo: Loyola, 2020. REZENDE, Flávia. Tecnologia e educação. Rio de Janeiro: UFRJ / CFCH / CEP / CEP / NuCEAD, 2020. SANCHO, Juana M. A tecnologia: um modo de transformar o mundo carregado de ambivalência. In: SANCHO, J. M. (org.). Para uma tecnologia educacional. Porto Alegre: Artes Médicas, 2018. 111 EDUCAI VOSSOS FILHOS: A HISTÓRIA DO NEGRO NO ENSINO PROFISSIONAL TECNOLÓGICO EM PELOTAS/RS PELAS IMAGENS DOS QUADROS DE FORMATURA DO CURSO TÉCNICO INDUSTRIAL (1940/1950) Natália Garcia Pinto1 Adriana Duarte Leon2 INTRODUÇÃO O interesse pela discussão sobre as relações raciais entre sujeitos brancos e negros vem ganhando espaço em diversas áreas, na sociedade brasileira, desde o final dos anos noventa. No campo da história da educação vem ocupando muitas pesquisas sobre a diversidade racial dos grupos escolares, a discussão de ações afirmativas no ensino superior, debates sobre se repensar a escola como produtora ou reprodutora de mecanismos de desigualdades sociais e raciais. Conclui-se, através da pesquisa realizada, pelas imagens dos quadros de formatura, entendemos que o acesso à escola profissional era o elemento de coesão e de manutenção de poder da elite branca local e nacional. Isto é, mesmo que no período investigado os negros tinham o direito de ter acesso a uma educação profissional, sua presença, ínfima indica que era vedado através de mecanismos de discriminação ou de mecanismos que dificultassem a sua permanência nesse espaço escolar e profissionalizante. Essa investigação proposta abordou a relação entre a educação escolar profissional e a presença de estudantes negros na Escola Técnica de Pelotas, no período de 1940 a 1950, num momento histórico em que se trazia o bojo da 1 Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com estágio pós-doutorado em Educação (IFSUL), com interesse em história social da escravidão e liberdade e educação no pós-abolição. Docente no Curso de Licenciatura em História à distância (UFPEL) e Professora na Escola de Ensino Fundamental La Salle Pelotas. e-mail: [email protected] 2 Possui graduação em Pedagogia, graduação em História, Mestrado em Educação pela Universidade Federal de Pelotas e doutorado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora do Instituto Federal Sul Rio-Grandense e atua junto ao Curso de Formação Pedagógica para Graduados não Licenciados e junto ao Programa de Pós-graduação em Educação - Doutorado em Educação e Tecnologia e Mestrado Profissional em Educação e Tecnologia. Desenvolve estudos com ênfase em História da Educação, Ensino de História, Educação Técnico Profissional e Profissão Docente. e-mail: [email protected] 112 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO discussão de ofertar uma educação na República brasileira para todos os cidadãos e, ao mesmo tempo, se tinha a preocupação de moldar o futuro trabalhador nacional com a oferta de cursos profissionalizantes pelo país. Nesse processo, a educação escolar e profissional era pautada como um caminho para a melhoria das condições sociais e econômicas das classes subalternas (CALDEIRA, 2020), tendo uma vasta disseminação de escolas técnico-profissionais sendo construídas no cenário brasileiro. Delimitamos o período analisado pelas seguintes circunstâncias da Escola Técnica de Pelotas ter sido federalizada nesse processo da educação escolar e por apresentar uma variedade de documentos para serem analisados tais como: boletins dos estudantes, fotos de estudantes, professores e técnicos da instituição e os quadros de formatura do curso de Técnico Industrial. A principal fonte utilizada para a construção do nosso trabalho são os quadros de formatura do curso Técnico Industrial, uma vez que pelas fotos do quadro foi possível identificar o fenótipo dos alunos formandos e visualizar os nomes e o local de origem dos estudantes. Nas demais fontes consultadas, não foi possível identificar a cor dos estudantes, portanto, partimos a nossa análise dos quadros de formatura. Entendemos a produção desses quadros de formatura como a materialização do saber escolar e profissionalizante entre uma pequena parcela do segmento de estudantes que frequentou a Escola Técnico Profissional. É a cristalização dos que conseguiram ter êxito em seus estudos. Nesse âmbito, pretendemos entender como a relação da educação escolar e profissional da população negra do município foi inserida ou não dentro da instituição investigada. POR UMA EDUCAÇÃO NEGRA A luta pela educação sempre foi uma pauta dos negros desde o tempo do cativeiro (FONSECA, 2007) e na República essa ação era “entendida como meio de afirmação social e de acesso à cidadania”. A experiência da liberdade inaugurada com o advento da República trouxe uma celeuma para os afrodescendentes, pois seria uma liberdade pautada pelo viés do racismo científico (SCHWARCZ, 1993) marcada pela diferenciação social. Nesse sentido, a educação foi um espaço racializado em que uma minoria detinha o acesso ao letramento e à alfabetização e uma maioria de indivíduos marcados pelo fenótipo e pela cor da pele era alijada do processo de educação. Caberia ao Estado brasileiro ofertar educação pública e de qualidade para todos os cidadãos; todavia, na República oligárquica brasileira, a liberdade era negra, mas a cidadania era branca (ANDREWS, 2014). Então, se o Estado não cumpria o seu papel constitucional, caberia então às associações negras o engajamento na luta pela educação. Conforme apontam Gonçalves e Silva (2000), é no limiar do século XX que os movimentos sociais negros (imprensa negra, por exemplo) passam a 113 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) reivindicar espaços políticos e sociais de direito: O movimento criou suas próprias organizações, conhecidas como entidades ou sociedades negras, cujo objetivo era aumentar sua capacidade de ação na sociedade para combater a discriminação racial e criar mecanismos de valorização da raça. Dentre as bandeiras de luta, destaca-se o direito à educação. Esta esteve sempre na agenda destes movimentos, embora concebida com significados diferentes: ora vista como estratégia capaz de equiparar os negros aos brancos, dando-lhes oportunidades iguais no mercado de trabalho, ora como veículo de ascensão social e, por conseguinte, de integração, ora como instrumento de conscientização por meio da qual os negros aprenderiam a história de seus ancestrais, os valores e a cultura do seu povo, podendo a partir deles reivindicar direitos sociais e políticos, direito à diferença e respeito humano (GONÇALVES; SILVA, 2000, p. 139). A historiografia educacional mais tradicional quando abordava o negro nos seus processos de aquisição de conhecimentos era de forma estigmatizada e pejorativa. Essas interpretações negavam todos os mecanismos de resistência criados por eles ao longo da história, inclusive nas questões que alcançavam o recorte educacional. Dessa forma, a história da educação dos negros era um campo não consolidado, esquecido tanto entre os pesquisadores da Educação, como entre os que se dispunham a compreender o processo que envolvia as relações sociais no país. A escolarização da comunidade negra era relegada a um segundo plano, o que refletia a história da educação brasileira como um espaço de privilégio da classe branca, constituindo um espaço de branquitude (BENTO, 2022). A respeito do assunto, Pinto (1987) em seu texto A educação do Negro – uma revisão bibliográfica publicado nos Cadernos de Pesquisa, da Fundação Carlos Chagas, em 1987, conseguiu identificar apenas alguns indícios e interpretações quase que exclusivamente restritas à delimitação de autores, que trabalhavam com as questões sociológicas da escravidão brasileira. Também foi possível descortinarmos a possibilidade de estudos envolvendo novas vertentes investigativas, ampliando as perspectivas que, quase sempre, estavam sendo veladas nas discussões e nos embates em torno do negro e sua inserção no campo da história da educação brasileira. Salientamos que no início dos anos 2000, há uma revirada na historiografia da história da educação dos afro-brasileiros, especialmente porque os próprios negros começaram a clamar por uma história mais plural e não etnocêntrica e começa um movimento de produção historiográfica realizada por pesquisadores negros e por acadêmicos também interessados na temática e na construção de uma história não única. Em seu texto História da educação: uma abordagem sobre a escolarização de afro-brasileiros publicado na ANPED (Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação), Mauriléia Santos (2000) salienta que as primeiras pesquisas desenvolvidas sobre a educação dos afrobrasileiros foram 114 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO elaboradas pelos próprios negros, cansados de serem discriminados socialmente resolveram ir à luta. Um exemplo dessa renovação historiográfica é o trabalho de Marcus Vinicius Fonseca (2004) em seu artigo “Escolas para crianças negras: uma análise a partir do congresso agrícola do Rio de Janeiro e do congresso agrícola do Recife, em 1878”, publicado nos Anais do III Congresso Brasileiro de História da Educação em 2004, notou uma vinculação entre educação e trabalho agrícola nas propostas dos proprietários de terras e parlamentares que participaram dos eventos e atuaram a favor da construção da Lei do Ventre Livre de 1871. Uma vez sancionada a lei, era preciso discutir o destino das crianças nascidas livres de mães escravizadas. Em relação à proposta educacional para essas crianças, os congressistas do Recife concluíram que deveriam ser criadas escolas agrícolas que transformassem ingênuos em trabalhadores úteis e onde pudessem ser educados conjuntamente com órfãos. Além disso, reivindicavam que o governo assumisse a responsabilidade pela educação dos ingênuos e pela indenização dos proprietários, criando escolas voltadas para a realização de uma educação útil a uma ordem fundamentada nas atividades agrícolas. Em concordância com essa perspectiva, Surya Aaronovich Pompo de Barros (2005) verifica que a existência de escolas noturnas, clubes e espaços educativos diferenciados para instruir os negros não foram deixados de lado por esta produção bibliográfica em ascensão. Apesar disso, é possível salientarmos que ao contrário das outras dimensões da historiografia brasileira, “que passaram por um intenso processo de revisão acerca das suas formas de entendimento e tratamento da população negra, a história da educação continua produzindo interpretações que reafirmam a visão tradicional deste grupo na história” (FONSECA, 2007, p. 10). Nessa perspectiva, é papel do pesquisador empreender esforços, a fim de dar visibilidade aos indivíduos negros, em especial às crianças negras que, durante muito tempo, ficaram obscurecidas nas pesquisas históricas tradicionais. Em suma, a pesquisa visa ancorar-se nos debates em torno da questão da educação do negro no país, mais especificamente no campo da educação e do Ensino tecnológico profissional para refletir sobre o perfil dos estudantes na instituição investigada como também analisar sobre questões relativas à escolarização e à educação dos afro-brasileiros, sob o ponto de vista da história social do pós-abolição e da história brasileira da educação profissional. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Como já exposto, o objetivo do trabalho é investigar o tema sobre a História do negro na Educação Profissional pelotense de modo qualitativo em um movimento mais amplo de renovação do campo da história da educação. 115 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) Metodologicamente, utiliza-se a análise documental. O objeto central de interesse é a produção de distintos documentos sobre a educação e os estudantes da escola profissional e tecnológica (livros de atas, fotografias, livro de matrículas, fichas de alunos, diários, jornais) bem como a própria problematização do contexto histórico que as fontes permitiram a construção da pesquisa. A investigação da documentação custodiada pela instituição é tomada por esta historiadora da educação como documento/monumento (LE GOFF, 2003) em que a história deixada nos vestígios documentais não é analisada pela ótica da passividade, mas sim de uma “história-problema” (BLOCH, 2001), em que o historiador problematiza a sua fonte por intermédio de questionamentos da realidade que almeja estudar. É notório que tal análise deve vir eivada de uma postura crítica para investigar o documento, visto que o “documento não fala senão quando se sabe interrogá-lo” e, além disso, “é a pergunta que fazemos que condiciona a análise e, no limite, eleva ou diminui a importância de um texto retirado de um momento afastado” (BLOCH, 2001, p. 8). Nesse âmbito, o documento/monumento é entendido nesta pesquisa pelo foco da crítica do documento e de que maneira essa produção da memória cristalizada na documentação que foi produzida e preservada pela instituição investigada. Isto é, o que de fato os grupos que produziram essa fonte objetivavam constituir e qual imagem queriam deixar registrada ao longo do tempo. Partindo da concepção de que o conhecimento produzido no passado ou sobre o mesmo é condicionado pelas perguntas que faço às fontes coligidas, acredito que ao tomar de empréstimo o conceito de documento/monumento, consigo investigar a realidade daqueles que tiveram acesso à educação profissional e tecnológica, ou seja, o perfil social e racial dos indivíduos. A intervenção que realizo na fonte não é ingênua e sem criticidade. A respeito disso, Le Goff (2003) pontua que: A intenção do historiador que escolhe o documento, extraindo-o do conjunto dos dados do passado, preferindo-os aos outros, atribuindo-lhe um valor de testemunho que, pelo menos em parte, depende da sua própria posição na sociedade da época e de sua organização mental, insere-se numa situação inicial ainda menos “neutra” do que a sua intervenção. O documento é inócuo. É, antes de mais nada, o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio (LE GOFF, 2003, p. 537-538). É necessário desmontar o documento para elaborar um campo de memória do que está sendo investigado, pois não existe um documento objeto em si. Cabe ao historiador esmiuçá-lo de interrogações, pois “o documento não é o feliz instrumento de uma história que seja, em si própria e com pleno direito, memória. 116 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO Nesse sentido, ao desvelar os quadros de formatura como um documento/monumento carregado de simbologias de memórias foi possível verificar as marcas, isto é, as características fenotípicas da cor dos formandos. A marca latente que vem à tona nos quadros observados foi a desigualdade racial dos formandos em questão, visto uma supremacia de estudantes homens e brancos expostos no quadro em detrimento de uma minoria de estudantes negros que conseguiram se formar no curso de Técnico Industrial da Escola Técnica de Pelotas. Ao todo foram observados quatro quadros de formatura durante o período de nossa análise. Optamos por trabalhar apenas com um dos quadros devido a qualidade das imagens para identificar os sujeitos ora investigados. DA NITIDEZ À INVISIBILIDADE DOS ESTUDANTES NEGROS NA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA A instituição em voga analisada surge na República com o intuito de ofertar uma educação profissional aos estudantes menos desfavorecidos da cidade. Há uma preocupação das elites políticas brasileiras de educar o trabalhador nacional, especialmente em uma conjuntura da transição da mão de obra escravizada para a o trabalhador livre. Nesse processo, a educação escolar e profissional era pautada como um caminho para a melhoria das condições sociais e econômicas das classes subalternas (CALDEIRA, 2020), tendo uma vasta disseminação de escolas técnico-profissionais sendo construídas no cenário brasileiro. A Escola Arte e Ofícios, investigada, que por vários decretos após a sua construção e instalação passa a se chamar Escola Técnica Federal de Pelotas, nasce com esse discurso de progresso, de educar o novo trabalhador, além de pontuar a moralidade, o ideal nacional do novo trabalhador. O discurso desses estabelecimentos era de educar profissionalmente os jovens pobres da sociedade, os tirando da marginalidade e dos vícios. É de salientar que as autoridades educacionais e as elites brasileiras almejavam que as classes populares ocupassem determinado lugar no mundo do trabalho, ou seja, uma educação dualista em que os trabalhadores pobres executassem profissões de cunho mais técnico (sem questionar o sistema) e os filhos das classes abastadas ficassem com profissões mais intelectualizadas e de maior prestígio social, afinal cabia à eles pensar o projeto político e social do país mantendo o status quo preservado. Nos livros consultados a respeito das notas dos estudantes, a cor nunca era informada pelo docente responsável pela disciplina técnica ou propedêutica. Mas chamou a atenção das pesquisadoras na Escola Técnica Profissional (atualmente hoje Instituto Federal Sul-rio-grandense), a existência de muitos quadros de formatura dos diferentes cursos de estabelecimento nos corredores e espaços 117 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) mantidos ainda hoje, no século XXI. São marcas do passado, são vestígios de quem construiu histórias e conquistas. De maneira silenciosa e quase despercebida, indicam presenças e ausências ao longo do tempo desvelando experiências históricas de exclusão social e racial (ROSCHILD, 2021). É visível aos olhos que a grande maioria que estudou no período investigado na Escola Profissional Tecnológica de Pelotas foi o estudante branco, aparecendo em grande presença, nos quadros de formatura. Os estudantes identificados com o fenótipo negro aparecem, porém de maneira pouco expressiva quando visualizamos as fotografias nos quadros de formatura. Vejamos a imagem a seguir: Quadro 1- Formatura do Curso Técnico Industrial -1950 Fonte: Acervo Institucional IFSUL Destaca-se uma presença maciça de estudantes do gênero masculino e de cor branca. Todos muito sérios posaram sem um sorriso para o momento tão desejado da fotografia do quadro de formatura. É crível quando observamos atentamente as fotografias que ao lado esquerdo em que estão os professores homenageados pelos formados do curso, há um professor identificado com o fenótipo negro. A presença desse indivíduo como escolhido pela turma em que a maioria dos jovens nas fotografias são pessoas se deve apenas a este público ou aos três jovens que partilhavam a experiência de terem a mesma cor da tez? Os estudantes Braz Vargas, Rui Alves e Osvaldo Franco compartilhavam a alegria de conseguirem um letramento profissional com o objetivo de angariar uma carreira e obter uma mobilidade social na sociedade pelotense. É provável que sejam os primeiros de suas respectivas famílias a possuírem um diploma profissional. Foram além do letramento puro e simples da vida escolar 118 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO da comunidade negra, visto que a maioria não conseguia ter acesso à educação (PINTO, 2020). Para além da raridade e da excepcionalidade de Braz, Rui e Osvaldo em uma turma em que a maioria dos companheiros de curso era branca, não escapa às lentes dessas historiadoras da educação que a preparação deles estava ancorada em uma preparação moral desses jovens técnicos deviam ser qualificados e “vigiados” para serem um trabalhador ideal, visto que a cor da pele de tais sujeitos lembrava a todo tempo do passado escravista e de que esses estudantes não eram os cidadãos que a República brasileira queria legar a cidadania de fato (DOMINGUES, 2004). Para além dos casos exemplares do êxito de Rui, Osvaldo e Braz, é necessário pensarmos como eram complexas as experiências de letramento, escolarização e profissionalização da população negra. O que significava para esses sujeitos históricos e sua comunidade (família, associações negras) adentrar uma escola técnica profissional e obter um diploma (DÁVILA, 2006) com uma profissão em uma sociedade em que o racismo pesava (e pesa!) diante deles toda a carga de desprezo e os alijavam de direitos básicos de cidadãos (DOMINGUES, 2008). Se ao cursar o curso e não se enxergar entre os seus, uma vez que a maioria dos colegas eram brancos ou quase brancos? Essa disparidade racial era apenas o legado da turma de Braz, Osvaldo e Rui? Infelizmente o cenário era idêntico em outros quadros de formatura analisados. Quadro 2 – Formatura Curso Técnico Industrial ano 1949 Fonte: Acervo Institucional IFSUL 119 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) Quadro 3 – Formatura do Curso Técnico Industrial Ano 1949 Fonte: Acervo Institucional IFSUL Esses quadros expostos nas paredes da instituição investigada podem parecer um ato banal em que enxergamos os formandos com seus trajes bem alinhados para o momento crucial da formatura. Mas nos parece muito mais um ato de uma manifestação violenta e de silenciamento, que expressavam o racismo presente na sociedade, pois a ausência de indivíduos negros nos quadros de formatura denota a “institucionalização da supremacia branca” (STEPHENS, 1999), marcando de maneira indelével a desigualdade social, racial e a exclusão da população negra do cenário educacional. A luta por cidadania e o direito à educação sempre foi uma luta dos afrodescendentes durante o período escravista e após a abolição, portanto, mesmo que vejamos um número ínfimo de estudantes como formandos do curso técnico industrial na Escola Técnica Federal de Pelotas no período investigado, a presença de Rui, Osvaldo e Braz que apesar de toda a opressão racista do sistema, eles resistiram e pontuaram para si e para os seus semelhantes a possibilidade desenharem uma educação profissional com luta e história do povo negro. Assim, Rui, Braz e Osvaldo amalgamados nas fotografias do quadro de formatura evidenciam que suas histórias importam e são sujeitos históricos de seu tempo, pois como evidencia Adichie (2019): As histórias importam. Muitas histórias importam. As histórias foram usadas para espoliar e caluniar, mas também podem ser usadas para empoderar e humanizar. Elas podem despedaçar a dignidade de um povo, mas também podem reparar essa dignidade despedaçada (ADICHIE, 2019, p. 32). 120 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO CONSIDERAÇÕES FINAIS Através da pesquisa realizada, entendemos que o acesso à escola profissional era o elemento de coesão e de manutenção de poder da elite branca local e nacional. Isto é, mesmo que no período investigado os negros tinham o direito de ter acesso a uma educação profissional, sua presença, ínfima indica que era vedado através de mecanismos de discriminação ou de mecanismos que dificultassem a sua permanência nesse espaço escolar e profissionalizante. O acesso à educação profissional seria um elemento de diferenciação entre brancos e negros dentro e fora da instituição investigada. Acreditamos que algumas hipóteses podem estar atreladas à essa questão como uma possível discriminação ou diferenciação entre estudantes brancos e negros. Todavia, mesmo sem ter como comprová-las de fato, muitas dificuldades criadas no acesso dos estudantes negros estão alicerçadas no racismo estrutural presente na sociedade brasileira. A população branca é constituída estruturalmente como merecedora de privilégios, dentre eles, a educação, visto que o passado escravista ainda se faz presente na questão de pertencimento e direitos no Brasil enquanto sociedade. As pesquisadoras compreendem o racismo como um resultado de um “processo de significação”, em que a identidade, a diferença cultural e fenotípica foi constituindo uma noção de raça durante o final da escravidão no século XIX, a República brasileira, foi marcado pela emergência de um discurso político, social e higienista que passou a reconhecer o negro como um indivíduo biológico e culturalmente inferior ao padrão ocidental do homem branco na sociedade (SCHWARCZ, 1993). Assim sendo, o conceito de racialização usado para entender como o processo de raça e racismo afetou a educação da população negra na Educação Profissional e Tecnológica, é por intermédio de uma análise das relações sociais que revela uma política de exclusão e invisibilidade dos negros no cenário educacional por políticas públicas gestadas pelos governos brasileiros. Segundo a definição de Santiago (2015), a racialização é conceituada como: [...] o processo político e ideológico por meio do qual certas populações são identificadas por meio de da referência direta ou indireta às suas características fenotípicas reais ou imaginárias, de modo a sugerir que essa população só pode ser compreendida como uma suposta unidade biológica. Tal processo envolve a utilização direta da ideia de “raça” para descrever ou referir à população [...]. (SANTIAGO, 2015, p. 32). Em suma, o conceito de racialização (ALBUQUERQUE, 2009) está diretamente relacionado ao conceito de racismo, os quais permeiam questões de desigualdade social e hierarquias sociais desde o fim do regime escravista brasileiro (que infelizmente ainda ecoa na atualidade). Contudo, como pesquisadoras 121 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) e professoras acreditamos que a educação deve ser problematizadora e libertadora. A escrita desse texto acadêmico tem o objetivo de problematizar essas experiências discriminatórias para que possamos construir uma sociedade antirracista e democrática. Atualmente podemos enxergar mais estudantes negros em diferentes educandários, todavia, ainda precisamos visualizamos ainda mais com políticas públicas de permanência de tais sujeitos históricos para a concretização de uma educação libertadora com qualidade. A luta e a resistência ainda continuam desde os tempos de Braz, Osvaldo e Rui. Luta essa que vêm dos antepassados deles, por um mundo melhor e antirracista! REFERÊNCIAS ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. ALBUQUERQUE, Wlamyra. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. ANDREWS, George Reis. América Afro-latina: 1800-2000. São Paulo: EDUFSCAR, 2014. BARROS, Surya Aaronovich Pompo de. Negrinhos que por ahi andão: a escolarização da população negra em São Paulo (1870-1920). São Paulo: (Dissertação de Mestrado) - Universidade de São Paulo – USP - Faculdade de Educação, 2005. BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. BLOCH, Marc. Apologia da História: ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. CALDEIRA, Jeane. A infância desvalida institucionalizada em Pelotas: controle e ordenamento social nas páginas dos periódicos locais – década de 1910 e 1940. Tese de Doutorado. 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Tem-se em mente que a sua atual conjuntura carece de mais visibilidade e direcionamento Estatal para promover o acesso igualitário à cidadania educacional e a sua plena liberdade para o exercício do seu legado cultural e histórico. Nesse contexto, os objetivos específicos são: especificar a sua trajetória da formação no Brasil, ressaltar o processo de incorporação no espaço educacional da História e Cultural Africana e Afro-brasileira e analisar a necessidade do enfoque próprio na educação escolar nos espaços educacionais. A metodologia baseou-se em uma pesquisa bibliografia de cunho qualitativo em pesquisas e abordagens teóricos de autores como: Campos e Gallinari (2017), Carril (2017), entre outros pesquisadores para que fosse possível ser traçado uma abordagem panorâmica acerca do campo educacional quilombola e suas particularidades na contemporaneidade e na educação das relações étnico-raciais. Em termos conclusivos, foi possível perceber que o campo educacional que discorre sobre educação quilombola ressalta uma trajetória de luta e resistência, assim como de negligência do poder público em responsabilizar-se pela oferta de educação básica qualificada, no entanto pode ser encontrado foram contexto onde há poucos profissionais qualificados, infraestrutura precária e pouca assistência por parte das políticas públicas, embora existentes encontram-se em defasagem. Mesmo assim, ainda existem um longo percurso para a concretização das escolas quilombolas em termos de extensão e abrangência territorial. 1 Graduada em História pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI). E-mail: cs6445758@ gmail.com. 2 Atualmente aluno do Programa de Pós-Graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), Mestre em História do Brasil (UFPI). E-mail: jordanbruno2003@ gmail.com. 124 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO QUILOMBOS: HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA Os Quilombos não eram apenas esconderijos de produção agrícola autossuficientes, mas local de trocas culturais, intercâmbios religiosos, miscigenação étnica promovidas pelo contato com outros indivíduos sejam oriundos das fugas, comerciantes, mascastes, entre outros, dentro das transações mercantis. Por sua vez, eram pautadas no labor agrário e na comercialização dos seus excedentes. A agricultura foi incentivada desde dos primeiros contatos na lavoura para suprir as necessidades alimentícias dos escravos que era praticadas nos domingos e também seria a tentativa de esvair a obrigação total do proprietário escravista de alimentá-los com seus próprios recursos unicamente (FERRARI, 2016). Seu princípio libertário comungava com a flexibilidade das mudanças na localização dos seus refúgios em preferencialmente nos locais de difícil acesso como montanhas, córregos, florestas e manguezais, pois os fazendeiros e proprietários de escravos começaram a apresentar-se descontentes com as perdas financeiros provocadas pelas fugas fazendo com que passassem a contratar capitães do mato e suas tropas para caçarem seus cativos fugitivos. Por outro lado, o trabalho inverso também ocorria quando os escravos faziam pactos com os quilombos que atuavam nas matas para uma ação conjunta e coordenada para o ataque simultâneo às fazendas (MOURA, 1986). A sua contestação da legitimidade histórica e cultural esbarrava nos grupos econômicos e políticos adversos a qualquer forma de democratização do acesso à propriedade privada que possam esbarrar em seu agronegócio. Em que “[...] o escravo e o ex-escravo estão condenados à desigualdade de lutadores pela liberdade, os senhores e seus descendentes estão condenados, ao contrário, ao opróbrio de lutadores pela manutenção da desigualdade e da opressão” (RIBEIRO, 2015, p. 163). O reconhecimento constitucional das terras quilombolas permitiu não somente a formalização dos seus territórios, mas abriu espaço para incluir as suas manifestações culturais e históricas com base na memória e no parentesco construídos nesse ambiente e como movimentos contrários à escravidão no período colonial definido pelo Conselho Ultramarino, em 1741. Assim como a resistência negra ao longo dos anos e na defesa das suas identidades múltiplas, diversas, heterogêneas, os seus interesses e necessidades na preservação cultural e territorial necessária a sua constituição e a sua sobrevivência coletiva. Logo, “[...] a luta mais árdua do negro africano e de seus descendentes brasileiros foi, ainda é, a conquista de um lugar e de um papel de participante legítimo na sociedade nacional” (RIBEIRO, 2015, p. 166). A mobilização grupal orienta seus elementos históricos, reminiscentes e sociais comuns perante a ameaça de expulsão e limitação das suas expressões 125 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) no território. Onde o uso comum da terra legado pela ancestralidade é a base jurídica e imaginária dessas comunidades fundamentam na satisfação de suas necessidades mútuas que incluíam a simbologia, as tradições e as sobrevivências culturais que assegura a continuidade do sentido territorial, cultura e etnicidade (HENRIQUE FILHO, 2011). Essa questão também deve abarcar: o reconhecimento do direito quilombola ao território foi um dos passos centrais dados na Constituição Federal de 1988 no sentido de aprofundamento democrático no Brasil por pelo menos dois aspectos. O primeiro é que o reconhecimento da existência de quilombos hoje – pois o direito está voltado para a atualidade dessas experiências e não para um passado histórico remoto – é um modo de justiça reparativa, visto que o Estado brasileiro reconhece o papel que os negros desempenharam na construção do País e que a efetivação de seus territórios é um modo de reparação das iniquidades e do racismo sofridos por esses grupos. Em segundo lugar porque contribui para a preservação do patrimônio histórico e cultural brasileiro de que essas comunidades são portadoras; é a preservação de um patrimônio histórico e cultural de todo o povo brasileiro. Portanto, o trato com direitos, tais como os dos indígenas e os dos quilombolas, não está relacionado apenas as questões da justiça social, mas refere-se também à preservação de um patrimônio que é de todo o povo brasileiro (MARQUES; GOMES, 2013, p. 317). Logo, a população africana foi inserida violentamente no processo de formação da sociedade brasileira e ainda responsabilizando coercitivamente pela maior parte do trabalho braçal. Para tanto, integraram também os traços sociais e culturais brasileiros marcas de sua singularidade. A autodefinição dos grupos contemporâneos passa pelo seu próprio reconhecimento como comunidade remanescente em suas formas de organização de resistência, preservação e perpetuação ancestral que viabilizem o seu próprio desenvolvimento. Pode-se perceber também: Para que se desenvolva uma análise mais adequada do termo é necessário trabalhar com a categoria já em seu significado ressemantizado, pois (1) permite aos grupos que se autoidentificam como ‘remanescentes de quilombo’ ou quilombola uma efetiva participação na vida política e pública, como sujeitos de direito; e (2) se afirma com isso a diversidade histórica e a especificidade de cada grupo. A ressemantização do termo percorreu um longo caminho temporal e discursivo (MARQUES; GOMES, 2013, p. 141, Grifos do autor). Nesse contexto, o reconhecimento como comunidades quilombolas depende da sua identidade cultural e da autoavalição dos membros dessas sociedades para que possibilitará em comunhão com a constituinte de 1988 legitimar e zelar suas terras como pertencentes ao patrimônio cultural e histórico. Transmitido ao longo da sua herança tradicional e ancestral ao longo das 126 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO gerações. Corroborando com o rompimento com a perspectiva em que opõem “[...] analfabetos ou letrados, como detentores e um saber vulgar transmitido oralmente ou de um saber moderno, como herdeiros da tradição folclórica ou do patrimônio cultural erudito, como descendentes de famílias bem situadas ou de origem humilde [...]” (RIBEIRO, 2015, p. 178). EDUCAÇÃO QUILOMBOLA: LUTAS E RESISTÊNCIAS A educação brasileira destinou parcela significativa dos seus estudantes ao ensino público, gratuito e qualificado constituído sobretudo pela comunidade afrodescendente, embora sejam alicerçados ainda pelos maiores números de evasão até os dias atuais. Nesse contexto, apesar do acesso à escolarização ser um direito assegurando constitucionalmente para os afro-brasileiros tornando-se ponto chave para sua emancipação desde a Abolição em 1888. O reconhecimento como sujeitos protagonistas dentre eles os quilombolas pauta-se também no acesso a uma produção educacional formadora que articule os seus ensinamentos ancestrais na liberdade com o direito a acessar o sistema educacional que assegure esse princípio. Nessa conjuntura pode-se constatar que: As escolas quilombolas foram regulamentadas com a criação de Diretrizes Brasileiras Curriculares Nacionais específica em 2012; o referido documento foi fruto de uma série de discursões realizadas no campo educacional a partir década de 1980. Determinou-se, assim, que a Educação Escolar Quilombola ocorresse em escolas inseridas nas próprias comunidades, tendo no currículo temas relacionados à cultura e à especialidade étnico-cultural de cada uma delas (CAMPOS; GALLINARI, 2017, p. 199-200). Esses saberes são pautados no reconhecimento que ainda faz-se presente das reações desrespeitosas e formas de marginalização social que perpassam pelo campo moral e jurídico, pois abarcam o pensar sobre esses sujeitos feridos na sua dignidade e cidadania. Desde a extinção da escravatura a população negra também foi assegurado o direito à propriedade da terra em virtude da Lei de Terras de 1850 que legitimou a comercialização dos espaços fundiários aos brasileiros, entretanto enquadrava-lhes como libertos (SOARES, 2016). Essa narrativa construída pelos seus próprios membros invoca o seu legado de resistência e luta pelo acesso à liberdade e atualmente pelo direito à propriedade privada da terra que lhe foi legitimada pela ancestralidade e pelas suas práticas tradicionais, mas também pelo seu acesso à educação digna da cidadania. As discussões têm como fundamento a busca por uma escolarização atrelada aos reconhecimentos de suas necessidades e identidades compostas em seus espaços territoriais de memória e práticas culturais. Visando promover a 127 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) democratização e o acesso digno a educação a todos os seus moradores e inclusive pleiteando o ensino superior. Nesse contexto, a Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica em 2012 propunham uma escolarização quilombola dentro dos currículos escolares de formação flexível e interdisciplinar entre os conhecimentos escolares e o seu saberes e fazeres locais históricos, culturais, políticos e sociais envolvendo democraticamente, assim como a assistência escolar com alimentação, material didático, apoio pedagógico, inserida na realidade educacional e articulado as instituições de ensino superior. Essas concepções colabora com as particularidades da comunidade e a sua composição identitária distintas da submissão, inferioridade e marginalização voltando-se para transformar a realidade diversa e plural. No entanto, na região Nordeste, a maioria dos alunos quilombolas ainda frequentam escolas que estão fora dos seus territórios demarcados (CARRIL, 2017). E ainda ocorre a existência de estabelecimento em todo país não identificado ou que outros que recebem alunos e não utilizam materiais específicos, pois menos da metade das escolas utilizam material didático especializado, assim como precário ambiente escolares, funcionando em igrejas ou templos ou locais improvisados, ausência de acesso a esgoto sanitário, energia elétrica como a maioria das escolas rurais, presença dos laboratórios de informática em sua minoria e falta de quadras esportivas, professores sem vínculo efetivo e formação superior em sua maioria são alguns fatores que esmiúçam a educação no âmbito rural e especialmente nos espaços quilombolas (CARRIL, 2017). A educação nas comunidades quilombolas de acordo seria um espaço de valorização social das identidades que permitem lutar pela sua existência. A formação de uma proposta pedagógica nesse sentido carecessem de pesquisas que favoreçam esses saberes e a interdisciplinaridade faz-se necessária nesse contexto que contribuam para a composição desse currículo que encontram pouca correspondência nas práticas pedagógicas e nas instituições em virtude do despreparo dos docentes, falta de matérias didáticos, espaços restritos com regras e disciplina que reforçam uma hierarquia escola. Distanciando da escolarização relacionada a realidade os alunos quilombolas e muito menos do rompimento do legado de exclusão étnica e racial presente na sociedade brasileira. A educação quilombola segundo uma pesquisa desenvolvida em Salto de Pirapora, em São Paulo, evidencia que os jovens quilombolas por não terem escola na região necessitavam ir a outro município em um ônibus público, quando estava com defeito elas tinham que caminhar pela pista e pegar outro transporte ou pior ainda precisavam voltar sozinha a suas casas. Por muito tempo sua comunidade manteve-se isolado do centro urbano em virtude do preconceito e do 128 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO distanciamento dos demais moradores da região. Cabendo nesse contexto uma intervenção voltada para conhecer os modos de vida, os recursos, a etnicidade e a integração educacional (CARRIL, 2017). Mesma assim, a memória e a oralidade tornam-se instrumentos de produção do conhecimento na possibilidade de debater fenômenos e processos transmitidos oralmente através das gerações na existências de outras visões que ultrapassa a história oficial. Demonstrado que cada grupo social e cultural possuem história em suas condições de geração, construção e perpetuação. Nesse contexto, a educação precisa ter como base: A primeira refere-se à necessidade de elaborar um currículo escolar que sirva para fortalecer e desenvolver posturas críticas a partir das vozes e para as vozes do próprio grupo quilombola, quase sempre silenciado. A segunda questão refere-se à necessidade de entrelaçamento dos conteúdos escolares com os saberes históricos e cotidianos que tecem a vida na Comunidade Quilombola. (SOARES, 2016, p. 1). As narrativas das comunidades quilombolas transformam-se em histórias de vida ligadas ao território nas organizações que lutam pela sua permanência. Uma relação viva como símbolo de poder e pertencimento. Seria também um processo pedagógico de significado contra o domínio latifundiário e exploratório. Suas narrativas diferem da concepção capitalista e produtivas do agronegócio, pois estão amparadas em sua permanência por meio dos vínculos, dos modos de vida, do parentesco e ancestralidade, da formação familiar e do quilombo. A população afrodescendente por muito tempo foi negado o seu direito à educação durante a escravidão e após a abolição ainda eram vistos sob a ótica da exclusão nos espaços escolares. A Lei do Ventre Livre garantiu a liberdade aos filhos nascidos de escravos a partir de 28 de setembro de 1871 não garantiu seu acesso à escolarização. Nesse contexto, as primeiras crianças livres começaram a surgir em 1879, sob a custódia do Estado passará a ter a instrução como um direito, contudo o decreto nº 7.031-A de 6 de setembro de 1878 definiu que a população negra liberta poderia frequentar unicamente as escolas no período noturno. Agravando a segregação entre brancos e negros, a entrega das crianças ao governo ainda foi minguada e restrita (CAMPOS; GALLINARI, 2017). Pode-se entender que os interesses dos senhores de escravos prevaleciam e muitas crianças permaneciam nas fazendas na condição de escravas e negando-lhes o acesso à educação. Contudo, a organização dos movimentos negros voltou-se para alterar essa percepção por meio de suas próprias escolas, mesmo que não houve políticas públicas inclusivas que os contemplassem, essas unidades instrucionais veio a somar-se a educação da população afrodescendente nas cidades e espaços urbanos, incluído os quilombos. Ocupando um lugar central nas suas reivindicações, pois seria um caminho para a emancipação na produção de 129 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) conhecimento intelectual, político, acesso ao mercado formal de trabalho, entre outras atribuições. Entre 1978 e 2000, ocorreu a reorganização política após a Ditadura CivilMilitar (1964-1985), onde promoveu-se a ascensão dos movimentos populares, sindicatos e a Fundação Movimento Negro Unificado (MNU), Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR) que lutava contra a condição histórica legada a população afrodescendente a marginalização social, violência, desemprego e analfabetismo. Revisão dos conteúdos preconceituosos presente nos livros didáticos, capacitando professores, revisado o papel do negro na sociedade, buscando a inclusão do ensino de história da população descendente, a necessidade de ações afirmativas no ensino básico e superior como componente para a construção da igualdade racial que culminaram com a implantação da Lei nº. 10.639/03 que tornou obrigatório o ensino da história e cultural da África e afro-brasileira na educação (CAMPOS; GALLIARI, 2017). Nesse contexto, a discussão em torno da necessidade da educacional escolarizada efetiva nas comunidades quilombolas surgiu em um período de intensos questionamentos das discriminações raciais, mas sobretudo da relevância na inserção da população quilombola na sociedade onde “a educação escolar destinada à população remanescente de quilombos encontra-se em situação adversa, marcada pela inexistência de escolas localizadas nas comunidades ou pelo funcionamento precário das escolas existentes” (MIRANDA, 2012, p. 374). Em uma pesquisa realizada em Minas Gerais destaca-se que as escolas mineiras quilombolas em 2010 ainda eram em sua maioria precárias, funcionando ao ar livre ou em prédios improvisados como igrejas. Para continuar os estudos, os alunos precisavam deslocar-se para outras regiões por meio dos transportes escolares superlotados e desgastados ou até mesmo a pé percorria-se o trajeto de ida e volta. Pior condição encontrava-se os alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) em baixíssima concentração nos âmbitos escolares (MIRANDA, 2012). Cabendo aos professores com pouca formação o papel de lecionar nas escolas quilombolas. Onde “considerou-se que, quando não pertence à comunidade, dificilmente o(a) professor (a) consegue compreender o universo diferenciado dos (das) estudantes. Houve relatos de casos de racismo no tratamento dos estudantes e de menosprezo” (MIRANDA, 2012, p. 377). Em 2003, foi implantada a Lei nº. 10.639, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, para implantar a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira no ensino básico. De modo que pudesse incentivar o contato com os aspectos históricos e culturais de uma população que sempre foi associada ao estereotipo da marginalização, discriminação e exclusão instituídos pela escravidão. Servindo como instrumento 130 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO de empoderamento e reforço às práticas não racistas. A incorporação da diversidade cultural brasileira dentro do âmbito escolar veio a valorizar as particularidades dos grupos étnico-raciais existentes de modo a oferecer a democratização educacional de modo a garantir o princípio da igualdade e o reconhecimento da diferença como valor. Nessa questão, a educação quilombola passa a ser ressaltada sobretudo nesse contexto de valorização cultural e histórica africana e afro-brasileira e a sua normatização passa a vigorar nesta conjuntura. De modo a “[...] permitir-lhes preservar a vivências de suas histórias e culturas em seus significados próprios, e não de forma inferiorizada ou subalternizada como ainda são veiculados em alguns espaços” (CRUZ; RODRIGUES, 2017, p. 169). Embora tenha sido iniciada ainda em 1980, conforme Miranda (2012) dotada de forte mobilização na reconstrução social das escolas nas próprias comunidades. Voltaram-se para sobrepujar-se aos problemas no acesso à instrução, do racismo e discriminação curricular e nos materiais didáticos, entre outros problemas existentes. Levando a criação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, em 2012. Determinou que as escolas fossem implantadas nas unidades comunitárias inseridas nas próprias terras dos remanescentes, baseado na cultura ancestral com pedagogia própria e especificidades étnico-culturais da comunidade. Logo também somou-se a essa questão a atuação do: movimento negro tem como uma de suas lutas a discussão dos problemas relativos aos preconceitos e discriminações raciais presentes na sociedade, englobando a busca por acesso à educação formal. Isso ocorreu porque a produção do conhecimento é de grande valia para a vida em sociedade, além de ser usada como critério de redução e/ou exclusão no mercado de trabalho. Os movimentos iniciados em 1980 fomentaram as discursões a respeito da Educação Escolar Quilombola, já que a escola possui papel de destaque na reprodução do racismo, algo que pode ocorrer de acordo com a organização da estrutura escolar (no conteúdo de um livro didático, por exemplo). As escolas quilombolas, portanto surgem para quebrar o contexto em urgência, pois, valorizado a cultural da população negra e o empoderamento de seus estudantes, a propagação do racismo tende a ser menor (CAMPOS; GALLINARI, 2017, p. 214). Portanto, a educação nas comunidades quilombolas foi pensada para atender as necessidades e demandas das suas populações na relação com sua dimensão histórica, cultural, social e educacional direcionada ao povo negro e sua implantação foi acompanhada pelos próprios quilombos e organizações envolvidas como a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ). De modo as causas dos remanentes sejam incorporadas as políticas públicas do país na denúncia da desigualdade, 131 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) discriminação, assim como contemplar a realidade de seu povo, no reconhecimento das suas identidades, o acesso à terra, ao território e à educação. Baseado na construção das suas lutas reivindicativas, a ancestralidade, os conhecimentos tradicionais, a resistência, logo “torna-se possível compreender, portanto, que a territorialidade tem ação direta para a manutenção da identidade quilombola” (CAMPOS; GALLINARI, 2017, p. 208). O desenvolvimento dos movimentos sociais no campo educacional na década de 1980 foi marcada pela mobilização na reconstrução social. Assim como, destaca-se os problemas existentes nos ambientes escolares relativos a qualidade e a democratização do ensino no sentido de horizontalizar as relações no interior da escola. Incorporando o caráter identitário e na denúncia das discrepâncias sociais, gênero e discriminações raciais presentes no cotidiano dos alunos e professores, na organização curricular, nos livros didáticos, entre outros (MIRANDA, 2012). Nesse sentido vale destaca-se: O livro didático, em sua maioria, apresenta em sua composição a história a partir do ponto de vista do homem branco, tornado invisíveis dos demais populações, negras ou indígenas. Essas invisibilidades faz com que os povos não representados sejam inferiorizados em suas páginas, cria e reforça diversos estereótipos, acarretando na negação de seus valores culturais, o que, consequentemente, acaba por dar preferência aos grupos sociais de culturas exaltadas como superior. Para barrar esse processo tão exclusivo, em 2012 foram aprovados as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, de modo com que as Comunidades Remanentes de Quilombolas tiveram o direito à educação nos seus próprios territórios, a fim de reconhecer e valorizar a especificidade étnico-cultural de cada comunidade, possibilitando o fortalecimento da identidade quilombola (CAMPO; GALLINARI, 2017, p. 214). A implantação da educação quilombola tornou possível o questionamento dos estigmas sociais e as subalternidades legado à população negra brasileira e no sistema escolar. Contudo, ainda não há escolas em todas as comunidades e quando existem são acometidas pela precariedade na sua infraestrutura. Os Estados nacionais com maior número de comunidades quilombolas foram Maranhão, Bahia, Pará e Minas Gerais. Sendo explicado pela grande contingência de escravos destinados a essas regiões no final do século XVII com as áreas de expansão da agricultura e mineração. O reconhecimento dos quilombolas remanescentes segundo a Fundação Palmares, em 2016, contabilizou 2.847 comunidades e apenas 2.248 escolas, revelando apenas 79% dos territórios possuem atendimento escolar, denunciando que 600 ainda não dispõem do mesmo em funcionamento, mesmo considerando as Diretrizes da Educação Quilombola vigorando desde 2012. Ainda admite que existem dificuldades por parte dos quilombos no provimento de recursos 132 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO para merenda escolar, transporte, acesso à internet, energia elétrica, entre outros. Assim como, também existe a necessidade em capacitar os docentes e investir em infraestrutura devido a existência de condições precárias nos estabelecimentos, evasão escolar (BRASIL, 2021). O Censo Data Escola Brasil realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) em 2019, contava-se 2.353 escolas nas comunidades quilombolas e apenas 199 localidades ainda não contavam com unidades escolares distante da Diretrizes Curriculares para a Educação Quilombola que previa 2.784 quilombos remanescentes. No entanto, considera-se que mais de 20% da população não tem acesso à educação e ainda que 79% das escolas quilombolas não funcionem uma instrução aos moldes das Diretrizes Curriculares Nacionais, isto é, com condições ambientais adequados ao ensino, equipamentos pedagógicos necessários, infraestrutura digna, entre outros. Problemas que acarretam o fechamento das escolas prejudicando a oferta a educação infantil, séries iniciais, sendo necessário o deslocamento para outras instituições escolares em virtude da não formação das turmas por serem poucos alunos (BRASIL, 2021). No que tange à educação, cabe ressaltar que os estados possuem oferta no ensino fundamental localizado em sua maioria no espaço rural administrado principalmente pelo município, embora haja escolas estaduais. Geralmente encontram-se em territórios isolados distantes da cidade. Em relação ao ensino médio a expressividade é drasticamente menor em estado como Amazonas, Ceará, Espírito Santo, Pará, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo em virtude da dificuldade dos transportes somando-se à descontinuidade do ensino as comunidades, evasão escolar, desinteresse dos discentes por escolas que não abordam suas realidades culturais e sociais e ao racismo (CAMPOS; GALLINARI, 2017). Ainda possuem como empecilhos suas estruturas serem precárias, a carência educacional e as baixas condições de vidas dos alunos que podem estar relacionadas às suas condições educacionais, embora a formação educacional como princípio democrático também esbarra novamente dos estigmas e preconceitos destinados a população afrodescendente, a educação em uma perspectiva decolonial pressupõem o tratamento da diversidade cultural e histórica em suas próprias dimensões sociais, “[...] considerando a importância de “técnicas educativas diferenciadas, saberes tradicionais, territoriadade, histórias, culturas, trajetórias, migrações, lutas, tensões e vitórias” (BRASIL, 2021, p. 2). No caso das comunidades quilombolas precisa-se destacar também a discriminação legada a formação dos quilombos e inclusive a sua ilegalidade ao ser associada ao rebeldia e a criminalidade. E ainda “[...] quebrar o amuleto das 133 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) injustiças históricas, de intervir e dissolver as marcas colonizadoras imbricadas nos saberes escolares e, sobretudo, vislumbrar a possibilidade de imprimir uma carga de reparação cultural e material [...]” (SOARES, 2016, p. 6). Logo, precisamos identificar e reforçar as políticas públicas que atendam às necessidades desse contingente populacional, que não se vê representado e valorizado a partir das suas experiências educacionais, no caso das comunidades quilombolas que somam os maiores índices de exclusão educacional. Educar para a igualdade tem como fundamento uma educação antirracista. A garantia da equidade pressupõe inúmeras ações, entre as quais, conhecer e trazer a temática para o cotidiano escolar de modo que os alunos possam reconhecer a legitimidade escolar educacional multirracial de modo a ressignificar os recursos pedagógicos, com os conhecimentos presentes nas comunidades quilombolas e quase sempre não são apropriados pelos educadores e educadoras como alternativas didático-pedagógicas (BOTELLO, 2007). REFLEXÕES SOBRE A IGUALDADE E DIVERSIDADE NO CHÃO DA SALA DE AULA: PERSPECTIVAS DA EDUCAÇÃO QUILOMBOLA A realidade dos discentes e das comunidades são fundamentais para o empoderamento dos mesmos no seu árduo caminho para a igualdade e reconhecimento da necessidade de haver melhorias nas suas condições de vida e o reconhecimento como parte da cidadania. Cabe uma educação que vise o empoderamento dos alunos no fortalecimento intelectual e na valorização de suas culturas e histórias formadas e construídas passo a passo ao longo dos anos. A educação quilombola compromete-se com o preparo dos alunos para o exercício do protagonismo social, formação para a diversidade, lutar pelos seus direitos na qualidade da escolarização e o exercício crítico da realidade. Cabendo ao poder público estadual e municipal oferecem currículos diferenciados, equipamentos, capacitação profissional, acessibilidade, docentes qualificados, gestão democrática, respeito às tradições culturais e patrimônios das comunidades, para que os discentes possam usufruir dignamente da participação e interação na cidadania (BRASIL, 2021). A educação quilombola pressupõe a construção de um currículo flexível, aberto e interdisciplinar articulando conhecimento escolares e os saberes construídos nas comunidades remanescentes considerando suas especificidades históricas, culturais, sociais, políticas, econômicas e identitárias. Reiterando o respeito ao direito educacional quilombola autônomo, reagindo aos programas impostos pelos dirigentes do setor da Educação Quilombola. De modo, que pudesse superar a condição de vulnerabilidade dessas populações e reconhecê-las como grupo formador da sociedade brasileira, com direito de se autorrepresentarem. Visando desnaturalizar as desigualdades sociais e culturais nas quais se inscrevem” (MIRANDA, 134 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO 2012, p. 381). Considerando a perspectiva no qual: a diversidade étnico-cultural não pode ser incorporada ao currículo de maneira descontextualizada. É necessário mostrar que no conjunto da diversidade existem vozes historicamente silenciadas, ausentes, quando não deformadas e estereotipadas na intenção de anestesiar suas possibilidades de reação. Nesse caso, reconhecer os estudantes quilombolas e as diferenças que os constituem é romper com aquele modelo curricular pautado na hierarquização de povos e culturas e na escolha de um grupo étnico como referencial de beleza, inteligência, enfim, com características desejáveis da perspectiva do grupo hegemônico (SOARES, 2016, p. 10). Nesse contexto, a educação quilombola demanda a formulação de políticas públicas voltadas à garantia, o acesso e a permanência dos estudantes na escolarização de qualidade e em comunhão com sua história, cultura e marcos ancestrais da comunidade. Exaltando o conhecimento étnico-cultural dos grupos afrodescendentes marginalizados. No qual, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola estabelece que necessita-se de ambiente próprio dentro das unidades remanescentes e organização curricular singular em consonância com as particularidade históricas, sociais, culturais e suas interações com outros grupos sociais no diálogo entre os conteúdos escolares e as manifestações particulares culturais e históricas da comunidade no fortalecimento das suas lutas pela terra, saúde, justiça e educação. Logo, “é importante salientar que, por falta de ações pedagógicas permanentes de valorização dos negros (as), o racismo tem tornado a escola um palco de violências raciais” (BOTELHO, 2007, p. 37). Portanto, a educação nas comunidades quilombolas pretende unir as tradições culturais, históricas e sociais dos seus integrantes dentro da escolarização. De modo, a tornar a democracia educacional acessível às diversidades existentes no país. Configurando-se no intuito de tornar menos preconceituosas e racistas as relações existentes na sociedade e na forma com a população negra foi concebida historicamente sob o estigma da inferioridade e marginalização. O Brasil necessita de uma democracia em termos raciais, embora o caminho ainda longínquo e tortuoso, permeado pela discriminação, preconceito e muitas lutas pelo reconhecimento da identidade, história e cultura afro-brasileira. Pois, a população afro-brasileira ainda enfrentam baixo nível de escolarização, exclusão do mercado de trabalho, desigualdades raciais e discriminação (BOTELHO, 2007). CONSIDERAÇÕES FINAIS A educação como uma das pautas principais no reconhecimento das suas manifestações culturais e difusão da sua ancestralidade entre os membros. Assim como, imbuí-los da consciência crítica sobre o seu papel junto ao grupo 135 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) quilombola e na luta pelos seus direitos e necessidades serem visto como detentores das ações governamentais e políticas públicas. Seria a base para a formação sólida para o empoderamento e lidar criticamente com as falhas assistencialistas estatais e com a violência impedidas sobre suas comunidades. Para que sobrepuja-se nessa conjuntura, os grupos quilombolas lutam cotidianamente e resistem às ameaças exteriores como fazendeiros, empresários e o próprio Estado e interiores como a desesperança e o medo que advém da insegurança das suas terras que tentam desestruturar sua permanência na sociedade brasileiro ou a margem dela como ainda constitui-se essa prerrogativa. São frustrações, discriminações e receios que tornam a vida quilombola ainda mais desgastante e litigante, tornando o seu legado em meio a resistência e opressão ainda mais necessário para sua sobrevivência e sua perpetuação como representantes históricos e culturais de uma organização coletiva e comunitária, autônoma e sustentável. REFERÊNCIAS BOTELHO, Denise. Lei nº. 10.639/2003 e a educação quilombola: Inclusão educacional e população negra brasileira. In: BRASIL. Educação Quilombola, BOLETIM, jun. 2007. 41 p. Disponível em: https://www.geledes.org.br/ wp-content/uploads/2017/03/Educacao-quilombola.pdf. Acesso em: 15 fev. 2023. BRASIL. Seção II – Da Cultura. 2016. In: BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações determinadas pelas Emendas Constitucionais de Revisão nº 1 a 6/94, pe.as Emendas Constitucionais nº. 1/92 a 91/2016 e pelo Decreto Legislativo nº. 186/2008. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2016. 496 p. Disponível em:https://www2.senado.leg.br/ bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf. Acesso em: 29 set. 2022. BRASIL. Parecer CNE/CEB nº. 3/2021. Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação. 2021. Disponível em:http://portal.mec.gov.br/expansao-da-rede-federal/323-secretarias-112877938/orgaos-vinculados-82187207/ 18693-educacao-quilombola. Acesso em: 02 set. 2021. CAMPOS, Margarida C.; GALLINARI, Tainara S. A educação escolar quilombola e as escolas quilombolas no Brasil. Revista Nera, a. 20, n. 35, p. 199217, jan.-abr. 2017. Disponível em: https://revista.fct.unesp.br/index.php/ nera/article/download/4894/3688/17195. Acesso em 12 set. 2022. CARRIL, Lourdes de F.B. Os desafios da educação quilombola no Brasil: o território como contexto e texto. Revista Brasileira de Educação, v. 22, n. 69, p. 539-564, abr.-jun. 2017. 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Dito isso, demarca-se que essa produção vai percorrer o caminho metodológico da pesquisa bibliográfica, bem como, vai buscar dialogar com as experiências vivenciadas por professoras da rede municipal de dois municípios da metade sul do estado do Rio Grande do Sul, Pelotas e Canguçu, ambos compostos por populações de origem africana e europeia, Pelotas é intitulada a capital do doce, tendo ele (doce) como patrimônio imaterial e herança portuguesa, a influência dos portugueses foi fortalecida pelo desenvolvimento da cidade em aspectos como culinária, arquitetura, cultura e religião. Até os dias atuais a herança portuguesa mantém resquícios de sua influência na construção da cidade, bem como na culinária local. É importantes relatar as origens do lugar onde queremos falar, para isso precisamos evidenciar as influências que os municípios tiveram para a sua construção e não deixarmos de falar sobre o papel dos africanos escravizados na construção e desenvolvimento da cidade, mesmo que de modo involuntário, pois sabemos que foram forçados a trabalhar, os africanos escravizados contribuíram grandemente na construção da cidade, bem como na culinária, cultura e religiosidade do nosso povo, tanto o pelotense como também o brasileiro. No município de Canguçu ainda é forte a influência da colonização europeia, nas pessoas. O espaço é amplamente povoado por descendentes de 1 Doutoranda em Educação pelo PPGE\UFPEL; Professora Mediadora a Distância do Curso de Pedagogia \IFSUL e professora da Educação Básica da rede Municipal de Canguçu-RS. [email protected] 2 Mestranda em Educação pelo PPGE\UFPEL; Professora da Educação Básica da rede Municipal de Pelotas-RS. [email protected] 138 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO alemães (pomeranos), ele também conta com parte da população de origem africana, inclusive possui 16 comunidades quilombolas ativas e certificadas pela Fundação Palmares. O município de Canguçu é o que possui mais quilombos na região sul, esse número influencia os aspectos sociais e culturais da cidade, no aspecto religioso para religiões de matriz africana, que é a linha para a qual o artigo pretende se voltar. No município podemos encontrar diferentes práticas do cristianismo, tais como: a igreja luterana, a igreja católica, igreja evangélica pentecostal e as igrejas neopentecostais. Com esse breve panorama sobre os dois municípios, pretendemos propiciar a reflexão com relação à intolerância religiosa em ambientes escolares e como os professores podem ajudar no combate à intolerância religiosa. O debate religioso precisa ser efetivo a fim de contribuir para a desconstrução do preconceito, sendo um componente curricular da educação básica, para assim os alunos conseguirem ainda mais entender a diversidade desse tema tão importante na educação. Após a passagem de 20 anos da promulgação da lei n° 10.639/2003 vemos que ela não é cumprida nas escolas na forma que é determinada, que o engajamento pelo conhecimento em Educação Étnico-racial acontece de forma voluntária, ou seja, alguns professores procuram conhecer e trabalhar sobre os temas, não há uma ação pela parte das mantenedoras das escolas em relação a formação de professores e alunos capazes de conhecer e se posicionar em relação ao que a lei propõe. METODOLOGIA O trabalho foi realizado por meio de pesquisas bibliográficas, tendo como meios de fundamentação teórica: artigos e pesquisas acadêmicas para a composição do trabalho. Os autores e artigos utilizados neste texto contribuem para a complementação entendimento com relação a ideia da religião de matriz africana, compreendendo que as práticas religiosas impactam no contexto escolar e esses impactos, essas diferenças culturais podem e devem ser utilizadas por educadores de todas as áreas do currículo para promover uma educação qualificada e baseada em pressupostos críticos. O método de pesquisa utilizado foi a pesquisa teórica qualitativa, sendo assim, em primeiro momento foi feito um apanhado para melhor conhecer o tema abordado e tratar do assunto com maior propriedade. Em momento posterior, após a definição dos objetivos e problema da pesquisa, foi feita a revisão bibliográfica, ou seja, foi analisado o que já foi dito por outros autores sobre o assunto abordado, em segundo momento foram coletadas as principais informações. Os autores foram pesquisados através do google acadêmico, a fim de 139 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) filtrar as buscas, encontrando trabalhos que possuem maior credibilidade. As informações, ou seja, ideias de autores renomados, foram retiradas de livros e pdfs disponíveis na plataforma já mencionada. Após a análise da bibliográfica e coleta de dados importantes, foi realizado o desenvolvimento do referencial teórico da pesquisa, a fim de resolver os objetivos específicos e chegar ao objetivo geral. DESENVOLVIMENTO Buscamos na nossa vivência escolar explicar situações escolares, em que percebemos a intenção da aplicabilidade da lei n°. 10.639 e a forma distorcida que ela é posta nos ambientes escolares, para isso nos apoiamos em bibliografia apropriada e em nossos relatos de experiência. Dizemos que as práticas religiosas não originárias da África se fortaleceram a partir do contato dos pomeranos com os quilombolas, o que causou a longo prazo o silenciamento de costumes e práticas religiosas de matrizes africanas. Dentre esses costumes, diversas práticas religiosas de origens africanas ou afro-brasileiras passaram a ser vistas de forma errônea e preconceituosas, passando a serem associadas a uma possível criatura chamada “Diabo”, que pertence a crença cristã, não possuindo ligação alguma com as práticas religiosas de matriz africana e afro-brasileiras. Demonstrando um preconceito e racismo religioso para com o desconhecido. Muitos costumes religiosos foram se apagando e sendo menos praticados, ou, se, praticados, essas práticas foram sendo realizadas de forma mais particular e não amplamente aberta a toda a sociedade, por múltiplos fatores, tais como: medo, vergonha ou opressão das pessoas ao redor. Como ressalta o autor a seguir: “Muitas práticas que os quilombolas realizavam, incluindo aí as religiosas, foram alvo de estigmatização por parte dos colonos pomeranos, que desde o início da colonização estiveram em contato direto com eles” (SCHNEIDER, 2017, p. 108). Vale destacar que no Brasil durante o período colonial, houve uma forte repressão à cultura afro, tendo sido imposta aos africanos e até mesmo aos indígenas a cultura europeia, no entanto, a cultura afro resistiu, e o maior símbolo dessa resistência é o sincretismo religioso, que foi uma maneira que os africanos encontraram para não abandonar sua identidade, para poderem continuar com a sua religião, seguindo então com suas crenças, no entanto de maneira camuflada, fingindo estarem cultuando Santos católicos. Para Schneider (2017, p. 105) “O silenciamento do passado e a não transmissão das práticas referentes a seus modos de vida seriam […] explicação para o abandono dos cultos de Umbanda”. E através desse apagamento é que se fortalece o discurso preconceituoso e discriminatório, quando se aceita a sobreposição de uma prática religiosa sobre a outra, se está apoiando a ideia de desvalorização de uma religião sobre a outra, intrínseco nessa aceitação se fortalece o racismo religioso, o etnocentrismo, e o 140 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO eurocentrismo. Quando se percebe os estragos que a imposição de uma cultura ou religião exerce sobre um povo e se busca identificar a origem, o motivo de tais ações, leva-se tempo para entender e paulatinamente ir tentando fazer um movimento de reversão da situação, pois, a ação estigmatizada das religiões se cristaliza no imaginário das pessoas, endurecendo a capacidade de aceitação e entendimento do que antes era demonizado. Como exemplo temos a visão deturpada sobre as religiões de matrizes africanas e sua comparação com o Diabo, que de forma preconceituosa se demoniza e inferioriza o desconhecido. É importante e necessário conhecer um pouco sobre as religiões que nos rodeiam para entender melhor como funciona, e diante disso respeitar a todos de forma geral. Esse é o trabalho do ensino religioso e da educação como um todo, ajudar no desenvolvimento de competências críticas para se construir significativas reflexões e atitudes críticas e autônomas, com o objetivo de promover o engajamento social. AMBIENTE ESCOLAR X PRECONCEITO RELIGIOSO O ensino religioso é um componente do currículo da educação básica, e tem o intuito de construir ao longo do processo educativo, cidadãos críticos e reflexivos aptos a uma leitura descolonizada da sociedade, bem como a integração do indivíduo na sociedade e na luta por um mundo melhor e mais justo. Como estamos tratando de religiões, é importante ressaltar o papel da disciplina de ensino religioso na escola e na vida dos alunos, mas também explicar que a lei n° 10.639/2003 não deve somente ser trabalhada pelos professores de ensino religioso e sim de forma transversal. Que atravesse os currículos escolares e envolva todas as áreas do conhecimento, que o trabalho aconteça de forma interdisciplinar. O que vemos com frequência nas escolas são as comemorações da semana da “consciência negra” em novembro, na maioria das vezes deixadas a cargo dos professores de artes e educação física, quando não, segregadas a professores(as) negros(as) com a desculpa de saberem e possuírem lugar de fala sobre o tema. Como isso pode acontecer de forma tão natural? visto que são os brancos que precisam se envolver com o tema e se conscientizar das questões das origens africanas no Brasil. A lei n°. 11.645/08 em seu artigo 1º diz que “nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Corroborando com a assertiva da referida lei, ressalta-se a importância do estudo da raiz histórica da população brasileira, que se construiu também com o povo negro africano (BRASIL, 2008). O papel das escolas é mudar o cenário atual, cenário de desrespeito diante 141 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) da diversidade religiosa. Pois, é por meio da educação onde se promove o conhecimento sobre os valores e princípios de cada religião, onde se desmistificar os preconceitos, onde deveria se falar de forma aberta e sem dogmas, é onde deveria se aprender que o diferente existe e não nos cabe colocar em escalas e nem reproduzir comportamentos preconceituosos. O reflexo do preconceito existente na sociedade e no ambiente escolar, muitas vezes é marcado pelo bullying, que decorre também pela intolerância religiosa e desconhecimento da religião do outro. O preconceito ocorre de diversas formas e infinitas vezes, quando alguém usa algo que represente a sua religião, seja símbolos, objetos ou até vestimentas, ou quando é permitido que determinadas associações religiosas ofereçam bíblias as crianças sem considerar suas religiões, ou não permitir que adentrem na escola pessoas trajadas com paramentos religiosos de matrizes africanas, mas pastores, padres, madres podem ter acesso livre ao ambiente escolar. Referindo a escola pública, não a escola privada de caráter confessional, que ainda existem em Pelotas/RS e Canguçu/RS, a observação do trabalho é acerca da escola pública, com ensino laico e gratuito. O ambiente escolar é um lugar de extrema importância para o desenvolvimento de conhecimentos, para isso se torna necessário o aprendizado sobre as religiões que existem, para que através do conhecimento do diferente seja amenizado ou até mesmo erradicar a intolerância religiosa. A escola, enquanto instituição de ensino e aparelho ideológico do estado, prepara os seus alunos para o mercado de trabalho, e com isso eles aprendem conhecimentos que levarão para a sua jornada de vida. Por isso, o ensino religioso é importante no desenvolvimento da reflexão, da crítica e da ética dos alunos. A religião pode ser impregnada no modo de ser das pessoas e na vivência familiar e assim acarretar possíveis mudanças contemporâneas. Sendo assim, as escolas necessitam promover a conscientização da importância sobre a intolerância religiosa e respeito a todos. O ensino religioso, deve contemplar as mais variadas crenças religiosas, bem como o ateísmo, se constitui uma disciplina de horário normal das escolas públicas segundo a LDB. Pois, quando se fala ensino religioso, a lei trata-se de o respectivo componente curricular como: O ensino religioso deve integrar o currículo da Educação básica porque a cultura faz parte dos conceitos básicos das ciências humanas e sociais. Não há como excluir da rota de aprendizagem essencial do aluno que “todos os homens em princípio interagem socialmente, participam sempre de um conjunto de crenças, valores, visões do mundo e res de significado que define a própria natureza humana” (ALVES, 2018, p. 63). Contudo, a identidade humana conta com o respeito à vida e as suas 142 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO formas de preservação, ou seja, ao meio ambiente e as suas rotas de sustentação, a solidariedade e as suas vias de confluência e convergência, comunidade e os seus modos de vivência à cultura e a sua religião devem permanecer respeitadas. Viver em sociedade é justamente viver com diferenças. Portanto, o ambiente escolar é um lugar que existe a preocupação sobre o aprendizado e desenvolvimento de alunos, então o preconceito religioso muitas vezes termina prejudicando o aprendizado de vários educandos e assim a escola e professores precisam tentar conscientizar os alunos sobre o respeito e a tolerância sobre todas as religiões que permeiam aquele espaço. EDUCADORES E SUA FUNÇÃO Todo professor está em uma escola com o objetivo de promover o ensino e a aprendizagem dos alunos, então é necessário que o professor execute sua função, garantindo ao aluno uma educação de qualidade e que o processo educativo seja de fato inclusivo, assim como definem os documentos curriculares. Prevista no artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (nº 9394), a educação religiosa insere-se em uma disciplina facultativa considerada “integrante da formação básica do cidadão”. Para a sua realização ser de boa qualidade, tem que se dar ao respeito à diversidade cultural religiosa”. Assim, torna- se mais importante ainda que os docentes busquem uma metodologia de ensino que promova a inclusão e que tenha qualidade. Os docentes ressignificam suas práticas quando julgam ser necessário e aprofundam suas reflexões quando dialogam discutem confrontam com seus pares acerca de assuntos dimensionados às suas práticas de experiência profissional. Faz-se importante, que na construção do trabalho docente haja uma coerência entre o seu repertório de mundo e a construção de suas práticas, sendo essencial a adoção desta coerência na organização das práticas educativas para que assim possa atribuir sentido e significados às suas práticas. Para entender as transformações e os objetos dessa dimensão crítica dos saberes experienciais, devemos levar em consideração o momento da carreira no qual ela ocorre (TARDIF; RAYMOND, 2000). O Pensamento de que o docente pode orientar a sua ação unicamente pela sua experiência, a saber, pelos saberes da prática torna-se insustentável deixa de contribuir nos processos de formação docente desta forma encarcera o docente na posição do simples executor ou na posição de apenas assimilador de conteúdos e concepções comprimidos prontos, o docente é compreendido na posição de uma autonomia plena. Assim, busca-se alinhar esta coerência com as intencionalidades em relação aos educandos que são sujeitos alvos do processo de ensino e aprendizagem. 143 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) Torna-se importante também o alinhamento e coerência referente ao desenvolvimento dos saberes profissionais ou experienciais docentes, aqueles constituídos com a formação inicial e continuada, os saberes da ciência da educação, os disciplinares e os curriculares. A RELIGIOSIDADE DE MATRIZ AFRICANA EM SALA DE AULA A formação escolar é proporcional ao desenvolvimento de capacidade, ou seja, favorecer, compreensão e a intervenção de fenômenos sociais que possibilitem aos alunos a entenderem manifestações de sua comunidade e de outras. A religião de matriz africana tem muito a ensinar no quesito educação, pois a socializa através de conhecimentos que são passados de geração a geração e nesse processo de continuidade do saber e manutenção desses no ambiente familiar, assim sendo a religião de matriz africana carrega uma pedagogia importantíssima. A religiosidade na matriz africana tem uma função que é uma formação educacional, ou seja, vai falar em um aspecto de corpo e mente do espírito e a vida ética filosófica e religiosa dentro da sociedade em que eles vivem. É importante compreender que todos têm sua função e necessidade em cada região que elas habitam. Esse tema é muito importante para a educação brasileira pois vai falar e mostrar a diversidade cultural que existe dentro de um só país e mostrando que todas merecem o respeito igual à religião predominante no Brasil que é a católica, mas todas têm o mesmo respeito e intuito na sua sociedade de costume. Para se conhecer a importância de uma tradição religiosa precisa também conhecer a cultura onde ela nasceu e assim constituiu um processo civilizatório daquele povo ou nação que aquela região foi criada. Portanto, todas as religiões existentes são de extrema importância para o entendimento da diversidade cultural que existe hoje, e assim, fica mais fácil de compreender diversos assuntos segundo a regionalidade de cada país ou região do mundo. O ensino religioso justamente também é debater, problematizar e posiciona-se de frente a discursos e práticas de intolerância, ou discriminação violência de como religioso e assim assegurar aos direitos humanos constantes exercícios da cidadania cultura de paz. Logo, o ensino religioso tem por objetivo principal mostrar fundamentos, costumes e valores de diferentes religiões que existem na sociedade e assim pode explorar ainda mais conhecimentos de maneira interdisciplinar, com atividades que estimulam o diálogo e promovem o respeito entre as religiões. Destaca-se a importância do debate sobre a cultura afro-brasileira, com ênfase na religião de matriz africana, nas escolas, a fim de fazer uma abordagem 144 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO acerca da importância e contribuições dos antepassados, reafirmando as raízes do Brasil, quebrando com o preconceito que está enraizado na sociedade brasileira. Não obstante, esse é um processo que precisa ser construído todos os dias, posto que não é possível apagar uma construção histórica o preconceito em 50 minutos de aula por semana. É preciso que a escola promova essa discussão de maneira contínua para que possa ser efetiva. O debate sobre religião de matriz africana nas escolas, com ênfase na desconstrução do preconceito, é de fundamental importância para que os alunos sejam instruídos a respeitar as diferenças, para entender as culturas, sabendo que a sua cultura, sua religiosidade é apenas mais uma no mundo, não é única e nem um modelo a ser seguido. Vale acrescentar que a partir da discussão sobre religião nas escolas podemos desconstruir o preconceito, militar contra a intolerância religiosa, formando cidadãos com uma visão integral de mundo, conhecimento acerca das diversas áreas do conhecimento. Vale destacar que no ambiente escolar é de grande importância que exista um diálogo sobre religião, a fim de promover uma reparação histórica, desconstruindo o preconceito secular que há para com as religiões de matrizes africanas, desde o período escravocrata. Vale ainda acrescentar que o ensino religioso nas escolas, talvez seja o primeiro passo para se alcançar uma real democracia no Brasil, uma vez que vivemos em um país extremamente racista, intolerante, epicentro da intolerância religiosa, da discriminação, do racismo, um dos países que mais resistiram à abolição da escravidão. A fim de discutir os desafios que o ensino religioso e a presença da religião apresentam hoje para a escola pública, realizamos, neste texto, quatro movimentos distintos. No primeiro movimento, apresentamos algumas notas históricas sobre a relação entre educação e religião no Brasil. Não é a ênfase do texto, mas um breve quadro histórico para entender o momento presente e fundamentar as reflexões sobre o tema. No segundo momento, tentamos mostrar que como a intolerância religiosa tem ganhado força atualmente, ou seja, os conflitos religiosos emergem no cotidiano escolar e talvez tenhamos algo que aprender com eles. No terceiro movimento, apresentamos nossa aposta na perspectiva intercultural e no diálogo como possibilidade de lidar com a intolerância religiosa no contexto escolar, superando uma defesa exclusiva da laicidade como uma possibilidade de superação do tema. Por fim, discutimos nossa aposta na ética mínima e na tolerância, como possíveis chaves de leitura e de ação para a intolerância religiosa que desafia a escola hoje. (BARCELLOS; ANDRADE, 2023, p. 01). Pode- se dizer que o Brasil é um exemplo de pluralidade cultural, visto que coexistem diversas culturas no país, nas diferentes regiões, sempre com predominância de uma cultura. Na Bahia, por exemplo, tem- se predominância da cultura afro, devido à forte presença dos africanos que vivem no Brasil desde a 145 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) época colonial, portanto, a cultura afro é fortemente notada no país, e se mostra em ênfase na Bahia, na culinária, dança, religião. O pluralismo cultural, ou ainda multiculturalismo faz de uma região um ambiente diverso, apresentando diferentes culturas, e isso se manifesta na culinária, na religião, no modo de vestir, e até mesmo no sotaque e gírias das regiões. Da colonização portuguesa, herdamos as primeiras experiências de educação formal (ou escolar), que foram implementadas no Brasil sob a direção da Companhia de Jesus, o que, de certa forma, inaugurou a relação umbilical entre educação e religião em nossa história. Em meados do século XVII, com a Reforma Pombalina e a expulsão dos jesuítas (1759), houve uma tentativa de desvencilhar a educação da religião oficial e fazê-la mais ilustrada. No entanto, apenas no final do século XIX, 130 anos após a tentativa do Marquês de Pombal, com a instituição do regime republicano, em 1889, é que ocorrerá a separação formal entre Igreja e Estado, tornando o Brasil um país oficialmente laico, ato regulamentado pela constituição de 1891. Não obstante, a defesa de uma educação pública e laica para todos só ganhará força, entre nós, com os Pioneiros da Educação Nova e o Manifesto de 1932, no início do século XX, período dos históricos embates entre liberais e católicos. (BARCELLOS; ANDRADE, 2023, p. 02). Vale acrescentar que diante de tanta diversidade cultural, faz- se necessário o respeito às diferentes culturas, sob uma perspectiva de conscientização sobre a importância de cada cultura para a construção do país, bem como pregando o respeito às diferenças, aos costumes de cada povo, entendendo tais costumes como um legado, e olhando as manifestações culturais dos diferentes povos como sendo algo imprescindível para a sua formação identitária, para sua autoafirmação e reconhecimento. Ressalta- se a importância de um ensino da história local pautado na necessidade de adequação das crianças à sua realidade a fim de construir uma linha de ensino da história geral a partir do ensino da história local, sob a perspectiva de construir no aluno uma experiência com a história do mundo que lhe rodeia, posto que as experiências que estes alunos já possuem são de fato significativa e contribuem para o aprendizado, ou seja, a experiência que os alunos tiverem serão bastante significativas e podem servir de base para o aprendizado de novos conteúdos. Vale acrescentar que são imprescindíveis as ações voltadas para as questões relacionadas às políticas de inclusão cultural nas escolas, viabilizando o processo de contato dos indivíduos com culturas múltiplas, abordando a importância de cada cultura e de cada povo para a construção do Brasil. E nesse sentido, destaca- se que o Brasil sendo um país diverso culturalmente deve implantar políticas de fomento às culturas, promovendo a valorização das mesmas, bem como visando a equidade, visto que há culturas que são tidas inferiores. 146 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO Ao ser questionada se era função da escola ensinar os alunos a conviverem com a diferença, e se este seria um dos objetivos da Lei nº 10.639 (BRASIL, 2003) e das diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações etnicorraciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana (BRASIL, 2005), enfatizou que isto não acontecia. Graça considera que a lei não contempla as religiões afro-brasileiras, encobrindo este tipo de religiosidade, pois não acredita ser possível estudar a África sem mencionar suas divindades. A existência pura e simples da Lei nº 10.639 e das diretrizes curriculares não leva a termo o processo de aceitação das religiões afro-brasileiras por parte da escola (ROCHA; ROCHA; LIMA, 2016, p. 15). A implementação dos temas afro-brasileiros dentre os assuntos que devem ser abordados em sala de aula pelo professor é fator preponderante no processo de construção de um saber integral em relação à sociedade, podemos dizer que auxilia o aluno a ter uma visão de mundo no tocante à cultura, religião, direitos, e demais esferas do conhecimento, visto que a proposta é uma abordagem de todos os temas de relevância social. CONSIDERAÇÕES FINAIS Não chegamos a este ponto com respostas prontas e fechadas, chegamos aqui com o entendimento da importância que tem de os educadores abordarem em suas práticas pedagógicas aspectos da cultura africana, principalmente com enfoque na religiosidade desses povos, com vistas a contribuir com a desconstrução de estereótipos e preconceitos. Ressaltamos que ser educador é algo pautado pela laicidade do nosso Estado, o trabalho é árduo e exige conscientização para a compreensão da relevância e a grandeza desse legado que é parte da nossa identidade enquanto povo brasileiro. O debate sobre as religiões é muito importante para toda a educação, pois através dele entendemos como é cada religião e como se dão essas práticas religiosas em cada região do nosso país e também no mundo, trazendo a diversidade cultural que existe para dentro da sala de aula. O tema ensino religioso, é muito delicado em escolas fundamentais pois expressa uma certa dificuldade quando se fala de conteúdos na prática familiar ou seja , na realidade cotidiana existencial do aluno. Se faz necessário uma práxis pedagógica que possibilite a análise de cada cultura, com neutralidade em relação ao credor, uma vez que o objetivo não é discutir a religião em si, mas as sociedades que existem e resistem com toda sua complexidade e riqueza de relações e manifestações para com o sagrado. 147 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) REFERÊNCIAS ALVES, Moacir Carneiro. LDB fácil: leitura crítico: compreensiva. Petrópolis: Vozes, 2018. BARCELLOS, Joycimar; ANDRADE, Marcelo. A intolerância religiosa na escola pública: perspectivas e apostas. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL EDUCAÇÃO, CIDADANIA E EXCLUSÃO, 4., 2015, Rio de Janeiro. Anais [...]. Rio de Janeiro: Ceduce, 2015. p. 1-12. Disponível em: https://editorarealize.com.br/editora/anais/ceduce/2015/TRABALHO_EV047_MD1_SA7_ ID783_08062015183921.pdf. Acesso em: 05 mar. 2023. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 fev. 2023. BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, 23 dez. 1996. Disponível em: https:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 22 fev. 2023. BRASIL. Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Brasília, 10 jan. 2003. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 21 fev. 2023. BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 março de 2008. Inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e cultura afro-brasileira e indígena”. Brasília, 11 mar. 2008. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm. Acesso em: 10 jan. 2023. ROCHA, Marcos Porto; ROCHA, José Geraldo da; LIMA, Jacqueline Pinheiro. Intolerância religiosa em escolas públicas no Rio de Janeiro. Educação, Santa Maria, v. 41, n. 3, p. 709-718, dez. 2016. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/reveducacao/article/view/22100/pdf. Acesso em: 04 mar. 2023. SCHNEIDER, Maurício. Identidades em rede: um estudo etnográfico entre quilombolas e pomeranos na serra dos tapes. Pelotas: Ufpel, 2017. Disponível em: https://www.ufrgs.br/gepac/arquivos/livros/identidades-em-rede.pdf. Acesso em: 19 fev. 2023. TARDIF, Maurice; RAYMOND, Danielle. Saberes, tempo e aprendizagem do trabalho no magistério. Educação & Sociedade, n. 73, p. 209-244, dez. 2000. Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/Ks666mx7qLpbLThJQmXL7CB/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 25 fev. 2023. 148 LITERATURA AFRO-BRASILEIRA: CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DAS CRIANÇAS NEGRAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL Graziele Oliveira Aragão Servilha1 Alanis Lira Moran2 Malsete Arestides Santana3 INTRODUÇÃO No Brasil, a construção histórica traz muitos resquícios da colonização escravocrata, fato histórico que deixou alguns efeitos na sociedade, como o racismo, que tenta convencer os afrodescendentes de que possuem uma identidade inferior às demais etnias (CRUZ, 2005). No aspecto escolar, surgiu a necessidade de trabalhar essa temática na educação infantil, visto que a construção da identidade se dá desde a infância, pois a criança nasce em uma sociedade já educada por princípios pré-determinados (WALLON, 1975). A construção da identidade da criança é desenvolvida, principalmente, a partir dos livros de histórias infantis, desenhos e personagens animados, pois é um processo em permanente movimento (HALL, 2006). Esse processo se desenvolve durante cinco estágios na vida da criança, do nascimento, aos cinco anos de idade. Durante esses estágios, ocorre a construção do “Eu” e das relações com o próximo, através da interação social (WALLON, 1975). Nesse sentido, a literatura exerce um papel fundamental na construção da identidade das crianças, que entram em contato com as histórias, por meio da oralidade e através dos livros, conhecendo personagens como heróis, príncipes e princesas, mocinhas, vilões, fadas, animaizinhos entre outros. Essas histórias, na maioria das vezes, trazem personagens de origem europeia, mocinhas brancas e delicadas, que aguardam por príncipes brancos e corajosos o suficiente para regatá-las. Percebe-se que a criança cresce com a impressão de que os padrões do belo e do bom são aqueles com os quais se encontram nos livros da literatura 1 Acadêmica do curso de Licenciatura em Pedagogia da UAB – UNEMAT Polo de Arenápolis/Contato: [email protected] 2 Acadêmica do curso de Licenciatura em Pedagogia da UAB – UNEMAT Polo de Arenápolis/Contato: [email protected] 3 Orientadora do curso em licenciatura em pedagogia, graduada em Licenciatura plena em Pedagogia-UFMT, mestra em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso UFMT: [email protected] 149 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) infantil (MARIOSA; REIS, 2011). Por isso, é importante pensar no papel da escola e dos professores no processo de formação da identidade da criança negra, por meio da utilização da literatura como forma de construção da identidade. A inserção das literaturas afro e afro-brasileira dentro da sala de aula é significativo, desde que tenha como foco a realidade vivenciada pelas crianças. Nesse pensamento, a questão problema que norteia essa pesquisa é: Quais as contribuições das literaturas afro-brasileira na construção da identidade de crianças negras na educação infantil? A partir desse questionamento, nasce o objetivo geral deste artigo: analisar as contribuições das literaturas afro-brasileiras na construção das identidades de crianças negras, na percepção das professoras que atuam na educação infantil. Dado o objetivo geral, destaca-se os objetivos específicos: discorrer sobre a construção da identidade afro-brasileira na educação infantil; identificar o uso da literatura afro-brasileira na educação infantil; e analisar a percepção das professoras sobre a inclusão da literatura afro-brasileira. A pesquisa se justifica, por ser uma necessidade de estudar as obras de literatura para criança, cujas temáticas estejam, ou não, voltadas para a valorização da cultura afro-brasileiras. Percebe-se ainda que existe a crença de que o preconceito não faz parte do dia a dia da educação infantil, por isso, a pesquisa pode contribuir para a construção da identidade das crianças. Nessa fase, as crianças se conscientizam das diferenças físicas (fenótipo) relacionadas ao pertencimento racial, pois, se houver uma intervenção da literatura, de forma qualificada e que não ignore a “raça” como um elemento importante no processo de construção da identidade da criança, uma história diferente será construída. METODOLOGIA Para a realização dessa pesquisa, buscou-se construir uma revisão bibliográfica através de artigos, livros, dissertações e teses de doutorados. Conforme Marconi e Lakatos (2001), o pesquisador, tem contato direto com tudo o que foi escrito e dito sobre determinado assunto, inclusive, conferências seguidas de debates que tenham sido transcritos por alguma forma, quer publicadas, quer gravadas. Desse modo, esta pesquisa, caracteriza-se, quanto aos objetivos, como descritiva e exploratória, através da técnica análise de conteúdo, com a contribuição dos teóricos que fundamentam este estudo. Para Silva (2010), a pesquisa descritiva demonstra a exata definição dos fatos e fenômenos, com pouca verificação, através da observação, ainda sim, a pesquisa exige grande responsabilidade do pesquisador, para que tenha legitimidade científica. Já a pesquisa exploratória, segundo Marconi e Lakatos (2003), ocorre quando o pesquisador 150 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO procura conhecer de forma mais profunda o assunto abordado, ou seja, explorar o campo de conhecimento discutido na pesquisa. Aqui, adotou-se uma abordagem qualitativa, pois pretende-se analisar as práticas didático-pedagógicas utilizadas na educação infantil, acerca da literatura. A pesquisa qualitativa, “[...] tem o ambiente natural como fonte direta dos dados e o pesquisador como instrumento-chave” (BEUREN, 2006, p. 93). Quanto aos procedimentos para coleta de dados, classifica-se como uma pesquisa de campo, por ter como universo de pesquisa, profissionais que atuam na educação infantil. Segundo Gil (2002), a pesquisa de campo busca o aprofundamento das questões indicadas do que a classificação das características da população conforme determinadas variáveis. Nesse contexto, o universo da pesquisa compreendeu como amostra 10 (dez) professoras atuantes na educação infantil das cidades de Cuiabá, Tangará da Serra, Arenápolis e Araputanga, todas no Estado do Mato Grosso. A escolha se deu pelo fato das pesquisadoras conhecerem os profissionais da educação infantil. Quanto ao instrumento de coleta de dados, foi utilizado o gloogle forms, com questões fechadas e abertas, e disponibilizado link para as professoras responderem. O período de realização e elaboração da pesquisa foi de fevereiro a março de 2021. O questionário foi segregado em dois blocos. O bloco A refere-se ao perfil das professoras; o bloco B compreende a percepção das professoras sobre a inclusão da literatura afro-brasileira na educação infantil, adaptado com base no estudo de Bernardo e Silva (2020). Os dados numéricos foram tabulados com uso software Microsoft Office Excel, analisados e apresentados em formas de tabelas e figuras, comparando com resultados de pesquisas anteriores. Para as questões abertas sobre a inserção da literatura afro-brasileira, utilizou-se a ferramenta WordArt para elaborar a “Nuvem de Palavras”, das palavras mais mencionadas pelos entrevistados. HISTÓRIA DA CULTURA AFRO-BRASILEIRA Grande parte da população brasileira é composta por negros e pardos. Os africanos trouxeram para o Brasil suas crenças, sua culinária e sua cultura, no entanto, com toda a riqueza da influência africana em nossa terra, conhecemos muito pouco sobre esse mundo e sua crenças e costumes, bem como a grande contribuição para a cultura no Brasil (SOUZA, 2018). Com a produção de açúcar no Brasil (século XVI), os portugueses buscavam os negros da África para usar como mão de obra escrava, porém, durante o trajeto, muitos não resistiam e morriam, antes mesmo de chegar ao Brasil. Os escravos trabalhavam de sol a sol nas fazendas de açúcar, recebendo apenas 151 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) trapos de roupas e alimentação de péssima qualidade, sendo ainda submetidos a prisão em caso de fugas (CRUZ, 2005). Souza (2001) relata que os escravos eram proibidos de propagar sua religião de origem africana e obrigados a adotar a religião imposta pelos senhores de engenhos e a língua portuguesa na comunicação. Mesmo com todas essas restrições, não deixaram sua cultura se apagar, praticavam seus costumes e sua cultura de forma escondida. No século XVIII, alguns escravos conseguiam comprar sua tão sonhada liberdade, por meio da carta de alforria, se tornando livres, porém, tinham que enfrentar a falta de oportunidades e o preconceito da sociedade. Resistindo a escravidão e buscando uma vida melhor, os negros organizavam revoltas contra os senhores das fazendas, para formar os famosos quilombos, comandado por Zumbi (HERNÁNDEZ, 2008). Na metade do século XIX, a Inglaterra aprovou a Lei Bill Aberdeen (1845), que proibia o tráfico de escravos; e em 1850, o Brasil cedeu às pressões inglesas e aprovou a Lei Eusébio de Queiróz, dando fim ao tráfico negreiro (CRUZ, 2005; SOUZA, 2018). Na sequência, em 28 de setembro de 1871, foi aprovada a Lei do Ventre Livre, que permitia a liberdade aos filhos de escravos nascidos a partir daquela data, e logo depois em 1885, foi promulgada a Lei dos Sexagenários, que dava liberdade aos escravos acima dos 60 anos. Somente no final do século XIX é que a escravidão foi mundialmente proibida, sendo aqui no Brasil, em 13 de maio de 1888, com a abolição da escravatura, através da Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel nesta data (CRUZ, 2005; SOUZA, 2018). Após todos esses acontecimentos históricos, a cultura afro-brasileira está presente na nossa música popular, na literatura, no cinema, no teatro, na televisão, assim como também na culinária, e entre outras práticas e crenças populares como festas regionais e nacionais. Sem falar na contribuição da linguística africana no português que se fala no Brasil, ainda pouco explorado na história da educação (CRUZ, 2005). À medida que os africanos eram inseridos na sociedade brasileira, tornaram-se afro-brasileiros, além dos traços físicos, a música e a religiosidade estão sempre presentes nas manifestações culturais brasileiras (SOUZA, 2018). Para Munanga (2005), as definições de identidade, as discussões e reflexões teóricas acerca das raízes da cultura africana na história brasileira são de suma importância para a igualdade racial no Brasil. Gomes (2001) apresenta a dificuldade que a sociedade brasileira tem de se reconhecer como povo multicultural, por efeito do processo histórico de negação e homogeneização racial impregnada no país, onde afro-brasileiros têm medo de reconhecer sua herança cultural africana. Assim, algumas reflexões ainda são pertinentes acerca da invisibilidade dos negros nas abordagens históricas da educação (CRUZ, 2005). 152 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA A identidade teve sua origem na filosofia (HABERMAS, 1988). Esse processo de construção de identidade depende de elementos fornecidos pela história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso. Contudo, todos esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que estabelecem seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão no tempo e espaço (CASTELLS, 1999; GONÇALVES; MOURA, 2016). A construção da identidade, sofre a influência de todos os referenciais com os quais irá encontrar ao longo de sua história, e ainda não se caracteriza como um acontecimento acabado, mas como um processo em andamento, a partir de um processo de socialização e da perspectiva de como o outro o vê (HALL, 2006). Nesse sentido, as práticas de identidade incidem em um processo histórico de negação identitária, em que o próprio negro é conduzido a assimilar a identificação do branco como hegemônico, renunciando sua ancestralidade e a história étnico-racial, o que prejudica a construção de uma imagem positiva de pessoas negras até os dias atuais (GONÇALVES; MOURA, 2016). A identidade é algo em constante crescimento, que se desenvolve durante todo o ciclo da vida do indivíduo e em todos os níveis da mente, empregando um processo de reflexão e observação (ERIKSON, 1972). A identidade deve considerar o sujeito sócio histórico, cultural, localizado geograficamente, espacialmente e temporalmente (SILVA, 2010; HALL, 2006). Em consonância com esse pensamento, a literatura propõe representar o negro, através de imagens enriquecedoras, que são favoráveis à construção de uma identidade e uma autoestima, e isto pode desenvolver um orgulho nos negros, de serem quem são, de sua história, de sua cultura (ERIKSON, 1972). Silva (2010) destaca a importância da escola na seleção dos livros de literatura nas séries iniciais, ou seja, livros que forneçam formação de uma identidade positiva do negro, e que proporcione aos alunos não negros, o contato com a diversidade e as especificidades da cultura africana, aprendendo a apreciar também as contribuições dos africanos para a cultura brasileira. Nesse raciocínio, a literatura infantil atual oferece informações e representações, pelas quais o leitor pode desenvolver a leitura, adquirir novos conhecimentos e valores, auxiliando-o na solução de situações da vida (SILVA, 2010). Para as crianças, histórias infantis como fábulas e contos, proporcionam o desenvolvimento cognitivo por meio do processo de representação e construções simbólicas. Assim, a literatura com temática afro-brasileira pode contribuir para reflexões que rompam a visão construída sob o fundamento das desigualdades, construindo 153 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) uma visão sob uma base de valorização da diversidade (WALTER, 2009). Ainda para este autor, a identidade afro-brasileira é construída com base na assimilação de valores diferentes, sendo assim, a literatura infantil pode influenciar de forma definitiva no processo de construção de identidades das crianças. LITERATURA INFANTIL AFRO-BRASILEIRA Buscando despontar a realidade étnica e a identidade cultural brasileira, ressaltar o uso literário afro-brasileiro na educação brasileira, é compreender todo o procedimento histórico instituído a partir da importância das leituras de temas sobre a África, considerados como princípios para distinguir a sua própria identidade (SOUZA, 2018). Para Jovino (2006), entre as décadas de 20 a 30 do século XX, os personagens negros começam a se destacar na literatura infantil, depois do predomínio por tanto tempo de protagonistas branco. As histórias, nesse período, não retratavam de forma positiva a cultura africana, mas reforçavam a imagem do negro como subordinado e com inferioridade (JOVINO, 2006). O autor ainda afirma que, com o movimento modernista, trouxe a valorização do negro, porém, ainda retratado de forma exótica, mas em 1975, intensificou-se a produção de literatura infantil mais comprometida em obras que a cultura e os personagens negros figurassem com mais frequência. Isso se deu pelo esforço desenvolvido por alguns autores que abordavam assuntos até então considerados proibidos e inadequados para crianças, como por exemplo, o preconceito racial. Desenvolveu através das obras uma preocupação com a denúncia do preconceito e da discriminação racial, porém, muitas histórias ainda apresentavam personagens negros de forma a criar uma hierarquia de exposição dos personagens e das culturas negras, fixando-os em um lugar desprestigiado do ponto de vista racial, social e estético, e nessa hierarquia, eram enfatizadas sempre a beleza da personagem feminina mestiça e de pele clara (JOVINO, 2006). Diante desse contexto histórico, Mariosa e Reis (2011), afirmam que, atualmente, os textos estão voltados para o público infanto-juvenil, que visam romper com as representações que inferiorizam os negros e sua cultura. As obras os retratam em situações comuns do cotidiano, encarando preconceitos, resgatando sua identidade e valorizando suas tradições religiosas, mitológicas e a oralidade africana. Pensando nisso, o livro O Cabelo de Lelê, escrito por Valéria Belém, publicado em 2012, traz os traços morfológicos da identidade africana, estes, intensamente censurados pela sociedade europeia, elementos como o cabelo crespo e a cor da pele. O livro conta a história de uma menina negra, cujos cabelos são crespos, que tenta entender a origem de seus cachinhos (BELÉM, 2012). Isso é 154 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO muito comum no Brasil, especialmente, quando a pessoa cede aos padrões de beleza influenciados pela indústria, como o alisamento dos cabelos, um dos passos para a negação da própria identidade (BRAGA, 2010). Pires, Sousa e Souza (2005) afirmam que, para que o livro seja uma obra de referência, não basta trazer personagens negras e abordagens sobre preconceitos, é essencial considerar o modo como são trabalhados o texto e a ilustração. Outra obra importante é a Menina Bonita do Laço de Fita, de Ana Maria Machado, publicado no ano de 2000, na qual, a autora trabalha a aceitação social, fundamental no combate ao racismo, pois, apenas com a atitude de quem se aproxima e dialoga, é que essa barreira pode ser vencida (MACHADO, 2000). A história de um coelho que tinha o desejo de se tornar negro, leva-o a fazer tudo que a menina bonita do laço de fita dizia ter feito para ter a cor negra e, depois de várias tentativas, o coelho entendeu que precisava casar-se com uma “coelhinha pretinha”, para ter lindos filhos com a cor da menina do laço de fita (BRAGA, 2010). Percebe-se que a literatura infantil se torna um instrumento de suma importância para a educação infantil e, por isso, deve despertar para o reconhecimento da sua identidade e promover a capacidade para a reflexão de inúmeras questões presentes na sociedade, especialmente, o combate às práticas racistas, encaradas pela população afro-brasileira (SOUZA, 2018). Os autores ainda colocam que as obras literárias afro-brasileiras são necessárias na educação infantil, por possibilitar que a criança as compreenda sobre a diversidade racial, tanto no espaço escolar quanto fora dele. Mariosa (2011) dizem que os textos contemporâneos, voltados para a literatura afro-brasileira são encontrados em maior quantidade e com temáticas diversas, por isso, se faz necessário que exista disposição política para que sejam trabalhados de forma assertiva, em ambiente escolar e durante todo o ano letivo e não apenas em novembro, mês da consciência negra, único período no qual a maioria das escolas lembram-se de trabalhar temáticas étnico-raciais. RESULTADO E DISCUSSÃO Perfil das Profissionais da Educação Infantil Tendo como objetivo geral da pesquisa analisar as contribuições das literaturas infantil e afro-brasileira na construção da identidade da criança negra. Foram selecionadas pedagogas que atuam na educação infantil, para participação da pesquisa. A Tabela 01 traça o perfil das professoras pesquisadas: município onde atua, ano de conclusão da graduação, especialização, tempo de atuação e modalidade de ensino da graduação: 155 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) Tabela 01: Perfil das professoras PERGUNTAS RESPOSTA Cuiabá Tangará da Serra Município? Arenápolis Araputanga Antes do ano 2010 Ano de conclusão da graduação? Pós o ano de 2011 Psicopedagogia Gestão Escolar Educação especial Área de especialização? Ensino Língua e Linguagem Educação Infantil e infância/ educação inclusiva Até 10 anos Tempo de atuação na educação infantil? Acima de 10 anos EAD Modalidade de ensino na Presencial formação acadêmica? EAD/Presencial FONTE: Elaboração própria (2021) PORCENTAGEM 10% 20% 60% 10% 30% 70% 40% 10% 10% 10% 30% 80% 20% 90% 10% Nesta tabela, é possível observar que a maioria das professoras são formadas na área até 10 (dez) anos. E todas possuem especialização na área, o que demonstra a dedicação à profissão e conhecimento continuado, de forma que 80% das professoras atuam até 10 anos na área da educação infantil, dados que comprovam a experiência profissional das pesquisadas. Percepção das professoras, sobre a inclusão da literatura afro-brasileira É perceptível que nos últimos anos na legislação tenha se discutido muito sobre as relações étnico-raciais, como a Lei nº. 10.639/2003 e das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), que torna obrigatória na educação, o estudo sobre as relações étnico-raciais e o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira. Pereira e Alves (2019) evidencia que, mesmo com o amparo das legislações, ainda faltam materiais e incentivos aos professores. Pensando nisso, o MEC vem desenvolvendo projetos, livros e formação continuada, para que a educação infantil começa a ter as primeiras noções de respeito ao próximo e passe a construir sua identidade. A pesquisa questionou sobre a frequência em que são utilizados a literatura afro-brasileira em sala de aula. Os dados demonstram que a maioria das professoras utiliza, às vezes. Resultado que vai de encontro com a pesquisa de Bernardo e Silva (2020), em que as professoras utilizam em algumas situações, quando surge a necessidade. Isso significa que, mesmo que a frequência não seja 156 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO sempre, não se deve deixar de trabalhar a literatura afro-brasileira com as crianças em sala de aula. As respostas das professoras pesquisadas se complementam com as experiências vivenciadas no contexto da realidade escolar. Quanto à forma como é inserida a literatura afro-brasileira, como prática pedagógica na educação infantil, elaborou-se uma “nuvem de palavras”, no sentido de visualizar, com mais clareza, as palavras-chaves (codificadas isoladamente) mais citadas pelas pedagogas (Figura 1). Figura 01: Forma como são inseridas a literatura afro-brasileira nas práticas pedagógicas. FONTE: Elaboração própria (2021). Conforme observado na Figura 01, verificou-se que as palavras que mais se destacaram foram: História (6), leitura (5), através (3), projetos (3), vídeos (3) e lúdica (2). Identificou-se ainda que as literaturas afro-brasileiras são inseridas de várias formas, sempre pensando em trabalhar o lúdico com as crianças. Silva (2018) destaca a importância das práticas educativas que desconstruam a ideologia do branqueamento, na qual ser belo, é ser branco e ter cabelos lisos e loiros, pois a identidade negra é um processo construtivo, e nessa fase da infância se faz fundamental para essa construção identitária. Neste mesmo contexto, a pesquisa indagou se as professoras se atualizam sobre a legislação, e de que maneira fazem isso. Os resultados demonstram que todas as pedagogas procuram se atualizar sempre, por vários meios, mas sentem que as escolas poderiam ofertar mais formação continuada (Quadro 1). 157 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) Quadro 01: Procuram se atualizar? E de que maneira se atualizam? Em formação continuada, grupos de estudos e leituras pessoais. Pandemia on-line. Estou sempre pesquisando na internet materiais diversificados e atualizados para as aulas, assim acabo por de certa forma me atualizando sobre alguns pontos, mas nem todos. As escolas ainda são falhas quanto a fornecer formações continuadas para manter seus profissionais atualizados das leis e referencias. Sim Através de capacitação e pesquisas. Através de leituras, cursos e etc. Através de formação e pesquisa. Temos sempre o dever de estarmos nos reciclando para nos atualizar. Artigos e livros. Internet e livros. Leituras e livros. FONTE: Elaboração própria (2021). Nesse sentido, a pesquisa questiona em que momento é inserido a literatura afro-brasileira em sala de aula, e quem define esse momento (Quadro 2). De acordo com a pesquisa, as professoras são mediadoras das atividades desenvolvidas em sala de aula, e que esse momento é preparado de acordo com o plano de aula, utilizando a criatividade para explorar a literatura afro-brasileira. Quadro 02: Inserção da literatura afro-brasileira. O Professor LEITURA As narrativas são trabalhadas de acordo com as abordagens dos temas. Eu crio junto com os alunos uma rotina e dentro dessa rotina, todos os dias tem a leitura de histórias. O momento quem define sou eu, as vezes no início das aulas, em outros no decorrer das aulas, depende muito do plano de aula do dia. Na maioria das vezes na acolhida e até mesmo em rodinhas de leitura. No momento das aulas, em textos, em livros e vídeos. No momento da leitura. No início ou na final da aula, ou se surgir um assunto pertinente. Leitura de professor para aluno. Com rodinha de leitura. Cantinho da história. FONTE: Elaboração própria (2021). Questionadas quanto aos títulos/autores da literatura afro-brasileira que costumam trabalhar em sala de aula (Figura 2), notou-se que as palavras que mais se destacaram foram: Menina bonita do laço de fita (3) de Ana Maria Machado, Meu crespo é de rainha (2) de Bell Hooks, O cabelo de Lelê (2) de Valéria Belém, O menino marrom (1) de Ziraldo Alves Pinto e obras de Nelson Mandela (1). 158 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO Figura 02: Títulos/autores da literatura afro-brasileira trabalhada em sala de aula FONTE: Elaboração própria (2021). Os títulos e autores trabalhados pelas professoras se assemelham com a pesquisa de Bernardo e Silva (2020), em que as professoras também citam, Menina bonita do laço de fita, O cabelo de Lelê e O menino marrom. Mariosa e Reis (2011) afirmam que trabalhar a literatura afro-brasileira em sala de aula, ajuda a romper com as representações que inferiorizam os negros e sua cultura, buscando obras que os retratam, enfrentando preconceitos, resgatando sua identidade e valorizando suas tradições religiosas, mitológicas e a oralidade africana. Nesse contexto, a partir dos anos 1980, as obras passaram a apresentar personagens negros, exercendo funções, antes dadas apenas à pessoas de pele clara. E ainda com a ressignificação, essa representação ganhou mais força a partir da década 1990, em que as produções literárias resgatam e valorizam a memória africana e a afro-brasileira (SILVA, 2018). A partir disso, a literatura infantil contemporânea tem contribuído para um novo aspecto de África e de valorização da cultura afro-brasileira, e fortalecendo para que as políticas educacionais como a LDB de 1996, os PCNs, e as Leis nº. 10.639/2003 e a nº. 11.645/2008, tratam os temas como a pluralidade cultural (SILVA, 2018). Assim, a pesquisa questiona as professoras se já presenciaram algum tipo de preconceito racial em sala de aula, se sim, de que forma reagiram. A maioria disseram não ter presenciado nenhum tipo de preconceito em sala de aula, porém, uma das professoras disse sim, conforme evidenciado pela sua fala: Havia uma aluna negra que tinha vitiligo (manchas brancas), quando ela chegou a escola as crianças a olhavam de forma diferente, falavam que não queriam brincar com ela porque ela era branca e preta. Fiquei surpresa 159 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) com as atitudes das crianças. A aluna ofendida chorou bastante, chamei todas as envolvidas em particular e fizemos uma rodinha, de forma carinhosa chamei a atenção delas dizendo que a amiguinha tinha aquelas manchinhas, por que era um dodói, mas que ela estava tomando remedinhos para melhorar, que devemos ter respeito e que perante o papai do céu somos todos iguais. Elas pediram desculpas, abraçaram e a partir daquele dia tentei trabalhar bastante a questão da identidade, mostrando que cada um tem uma cor de pele diferente, cabelos e cultura diferentes. O caso foi para a coordenação para que todos os professores transmitissem essa mensagem aos alunos. Realizamos um projeto e trabalhamos tudo de forma lúdica, simples e objetiva. Quanto a existência de projeto interdisciplinar na escola, que conscientize os educandos contra a discriminação (Quadro 03), a pesquisa apresentou resultados diversos: Cinco (5) professoras disseram não haver projeto interdisciplinar, três (3) professoras optaram por não responder a pesquisa e duas (2) disseram ter o projeto no mês de novembro “Consciência Negra”, na qual abordam temáticas sobre a cultura africana, trabalhando o respeito e a diversidade. Quadro 03: Projeto interdisciplinar contra a discriminação. RESPOSTAS Sim JUSTIFICATIVAS Projeto da consciência negra no mês de novembro. Não Não há nenhum especifico, mas trabalhamos nas propostas pedagógicas. Não Não nas Instituições que trabalhei não Nas unidades que trabalhei, tinha apenas o projeto no mês de novembro “Consciência negra”. Na qual citam as culturas afro descendentes, e o respeito pela mesma e o motivo pela qual essa data foi criada. Sim Não Não Não Não respondeu Não respondeu Não respondeu Não recordo. Não há nenhum. Não há nenhum em específico. Não respondeu. Não respondeu. Não respondeu. FONTE: Elaboração própria (2021) Quanto a escola dispor de materiais pedagógicos sobre a literatura afro-brasileira, quatro (4) professoras disseram que, às vezes, as escolas fornecem; enquanto seis (6) professoras afirmaram que sim, que a escola disponibiliza de materiais para trabalhar a literatura afro-brasileira em sala de aula, e nenhuma delas responderam não. Em relação ao último questionamento, foco da pesquisa, sobre a contribuição da literatura afro-brasileira para a construção da identidade das crianças negras, e de que forma acontece essa contribuição, todas as professoras afirmaram que a literatura afro-brasileira contribui sim para a construção da identidade 160 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO (Quadro 4). Lima (2005) revela que a literatura infantil é um método eficaz para trabalhar questões raciais na educação das crianças, por conter uma linguagem e imagens pensadas para o público infantil, que abordam ideias, conceitos e emoções, além de favorecer o desenvolvimento do conhecimento social e a construção de conceitos. Quadro 04: Contribuição da literatura afro-brasileira na construção da identidade das crianças negras. JUSTIFICATIVAS Sem Justificativa. A literatura contribui para a construção da identidade das crianças em geral, seja ela negra ou não, pois ela pode ter familiares negros e que assim se identificam com as histórias e começa o processo de construção para não haver preconceitos. Sim Pois a literatura mostra de uma forma clara e prazerosa de como adquirir o respeito e a admiração pela própria identidade. Conscientização. Conscientização. De forma cognitivo, formativa e cultural. Conhecendo a cultura, valores e costumes. A criança se identifica com a literatura. Para a igualitáriedade. Sem justificativa. FONTE: Elaboração própria (2021). A pesquisa revela que a literatura contribui para a construção da identidade da criança, sendo ela negra ou não, pois resgata a cultura, valores e costumes, trabalhando o cognitivo da criança. Silva (2018) afirma que uma abordagem da temática das diversidades raciais por meio da literatura infantil, de maneira dinâmica e contextualizada, pode proporcionar uma aprendizagem expressiva para a criança. Debus (2017) afirma que o contato com textos literários, que apresentam personagens em diferentes contextos, proporciona uma visão aberta do mundo. Dessa forma, a literatura negra ou afro-brasileira se faz indispensável. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com base nas informações, os resultados foram alcançados, uma vez que observou-se que a literatura afro-brasileira contribui na construção da identidade negra, pois a literatura infantil, é um método eficaz para trabalhar questões raciais na educação das crianças, por trazer uma linguagem própria da criança. Além de contribuir na construção de conceitos e no desenvolvimento do conhecimento. 161 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) Notou-se que a utilização da literatura afro-brasileira é inserida de acordo com o plano de aula escolar, de forma lúdica, através de livros, historinhas e vídeos. Nesse viés literário, a obra mais mencionada foi Menina bonita do laço de fita, de Ana Maria Machado, uma obra que permite um trabalho com temática afro-brasileira. Explorar a criatividade na literatura afro-brasileira, favorece o enfrentamento contra preconceitos, resgatando e valorizando a identidade e a cultura africana. Nesse contexto, é preciso superar diversas formas de preconceito e racismo em sala de aula, um desafio posto na vida das crianças e profissionais da educação. Por isso, inserir projetos interdisciplinares que conscientizem os educandos contra a discriminação, se faz necessário, uma vez que a temática é estruturada pelas instituições educacionais no inicio do ano letivo. Levando em consideração que a literatura é um método essencial no processo de construção da identidade negra das crianças, as escolas e até mesmo os professores, poderiam explorar ainda mais as atividades interdisciplinar, abordando a temática da literatura afro-brasileira, fortalecendo a luta dos afro-brasileiros, por sofrerem com o medo de reconhecer sua herança cultural africana pelo efeito do processo histórico de negação e homogeneização racial impregnada no país. Nesse raciocínio, a criança tem seu processo de construção de identidade a partir de seu nascimento, e precisa receber mais informações positivas em relação ao que é compatível ao que ela vê frente ao espelho. A construção da identidade negra é tão importante quanto qualquer outra e a literatura afro-brasileira é um grande aliado deste processo. Portanto, foi perceptível que ainda é necessário que haja compreensão da sociedade e no contexto escolar, a exploração sobre a valorização da cultura afrodescendente e afro-brasileira, no que permeia a construção da identidade da criança. Sendo assim, esta temática que foi aqui discutida, fica como reflexão, para que realizem novas abordagens para que se abra uma sucessão de novos conhecimentos acerca do tema. REFERÊNCIAS BRASIL. Lei nº. 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 11 abr. 2021. BRASIL. 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De acordo com a obra, o conceito de raça não é fixo, sendo este ligado inicialmente ao ato de estabelecer classificações entre animais e plantas e depois entre seres humanos. Então, analisar raça é sobre olhar um conceito relacional e histórico, que para se tornar o que é hoje, veio se constituindo desde o século XVI a partir do homem universal; depois com os ideais iluministas do século XVII e XVIII nos quais o homem é o sujeito e o objeto de conhecimento; surgindo assim a distinção dicotômica entre civilizado e primitivo. Considerando o percurso histórico, mais tarde (diga-se hoje) perceberemos que os ideais iluministas de igualdade, fraternidade e liberdade diziam respeito apenas ao homem universal, ou seja, apenas ao homem branco que inclusive utilizou esse lema para realizar a Revolução Francesa e Americana, por exemplo. Contudo, as pessoas negras não poderiam se encaixar nesse lema, haja vista a Revolução Haitiana. Sendo assim, as seguintes perguntas são relevantes: quem é o homem que pode ser considerado livre? quem é o homem (considerado) civilizado? Quem é o humano? Uma vez que são as respostas (equivocadas) a essas perguntas que vão servir para “justificar” o colonialismo que visava levar a civilização aos “primitivos”, “selvagens”. 1 Mestre em Estudos da Tradução pelo POSTRAD (UnB). Doutoranda na mesma área pela PGET (UFSC. Email: [email protected]. 2 Mestre em Língua e Cultura pelo Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura da Universidade Federal da Bahia . Doutorando em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. 166 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO Já no século XX, de acordo com Almeida (2019), embora a antropologia e a biologia tivessem demonstrado que não existem diferenças biológicas ou culturais para “justificar” discriminação entre humanos “o fato é que a noção de raça ainda é um fator político importante, utilizado para naturalizar desigualdades e legitimar a segregação e o genocídio de grupos sociologicamente considerados minoritários” (ALMEIDA, 2019, p. 22). Sendo assim, o racismo é é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam (ALMEIDA, 2019, p. 22). Partindo do pressuposto de que a sociedade brasileira é estruturalmente racista, como esse racismo se apresenta (com qual face ele opera) na obra literária da escritora negra e periférica Carolina Maria de Jesus? É vivenciando, observando, analisando e criticando um sistema que nega direitos básicos e essenciais à existência de certos grupos que Carolina Maria de Jesus escreve, relata e denuncia mostrando sua indignação com o proposital abandono das pessoas negras e pobres nas favelas por parte do poder público. O conto intitulado A gente combinamos de não morrer de Conceição Evaristo (2016) relata o pacto de dois meninos favelados de sobreviverem a qualquer custo, no meio da bala, da escassez, da fome, do medo, da violência dentre outras mazelas sociais. Nesse contexto, Bica, uma jovem mãe, narra seu desejo de escrita; ela afirma: Mas escrever para mim funciona como uma febre incontrolável, que arde, arde, arde… A professora olhava querendo ser natural, a turma ria e eu escrevia. Gosto de escrever palavras inteiras, cortadas, compostas, frases, não frases. Gosto de ver as palavras plenas de sentido ou carregadas de vazio dependuradas no varal da linha. Palavras caídas, apanhadas, surgidas, inventadas na corda bamba da vida. Outro dia, tarde da noite, ouvi um escritor dizer que ficava perplexo diante da fome do mundo. Perplexo! Eu pedi para ele ter a bondade, a caridade cristã e que incluísse ali todos os tipos de fome, inclusive a minha, que pode ser diferente da fome dos meus (EVARISTO, 2016, p. 108). Para Carolina, a escrita é denúncia, é esquecimento, é viagem à outra realidade, é um resgate de direitos, isso não quer dizer que não doa, que não sinta fome, que não sangre. Em Quarto de despejo (1960) o pacto de “a gente combinamos de não morrer” está bem nítido entre Carolina Maria de Jesus e os seus, e a escrita é um dos caminhos-saídas da miserável realidade da autora. Traçando mais uma vez um paralelo, Bica diz: Eu sei que não morrer, nem sempre é viver. Deve haver outros caminhos, saídas mais amenas. Meu filho dorme. Lá fora a sonata seca continua 167 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) explodindo balas. Neste momento, corpos caídos no chão, devem estar esvaindo em sangue. Eu aqui escrevo e relembro um verso que li um dia. “Escrever é uma maneira de sangrar”. Acrescento: e de muito sangrar, muito e muito (EVARISTO, 2016, p. 109). Entendendo o racismo como um sistema político, ideológico e histórico de opressão que se utiliza do requisito da raça como “justificativa” para segregar grupos historicamente subalternizados como negros, latinos, indígenas, judeus e outros segmentos raciais, pode-se afirmar que ele se configura como sendo um sistema de negação de direitos que, se por um lado gera diversas vantagens sociais e econômicas a branquitude, por outro produz inúmeras desvantagens aos negros, indígenas e outros grupos. Dessa maneira, o presente artigo objetiva apresentar denúncias e percepções do racismo estrutural brasileiro a partir do espectro/olhar da escritora negra brasileira Carolina Maria de Jesus. Sabendo que é importante considerar que mulheres negras como Carolina Maria de Jesus falam de um lugar de quem sofrem múltiplas violências. Além disso, esta pesquisa, de caráter documental, está inserida no campo teórico da Literatura Negra brasileira. Para constituição do corpus, serão analisados trechos selecionados do livro Quarto de Despejo (1960) que apresentem indícios de críticas direta ou indireta ao racismo brasileiro pela voz/perspectiva da intelectual negra Carolina Maria de Jesus. Grada Kilomba (2019) explica que devido à experiência do racismo, pessoas negras têm uma percepção e um modo de ver o mundo de forma diferente de pessoas racialmente brancas. Nesse sentido, este artigo é elaborado focalizando uma perspectiva interseccional (AKOTIRENE, 2019) da obra Quarto de Despejo, pois diz respeito a discursos críticos elaborados por uma mulher negra, empobrecida e não escolarizada. Isto é, ela é parte do grupo das pessoas que estão situadas na base da sociedade e sofrem, portanto, opressões de classe, raça e gênero. Por fim, este artigo pode contribuir com os estudos no campo da Literatura Negra brasileira, tendo como foco a análise dos discursos dissidentes proferidos pela escritora Carolina Maria de Jesus e provocar reflexões sobre a necessidade da desnaturalização do machismo, racismo antinegros e as mais correlatas opressões que historicamente acometem as mulheres negras e periféricas nesse país. ANÁLISE E DISCUSSÃO DA OBRA QUARTO DE DESPEJO Em Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano, Grada Kilomba (2019) trata inicialmente de um poema de Jacob-Sam-La-Rose que pergunta: “por que escrevo?” E é nesse ponto que ela desenvolve seu argumento de considerar a escrita como um ato político de resistência, um ato de se tornar sujeito, 168 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO apesar de todas as mazelas sociais e do racismo estrutural. É através da escrita que Carolina Maria de Jesus nomeia, define, apresenta sua identidade e escreve sua afro-história. Dentro das lógicas e relações de poder que marcam quem e que lado conta a história, Carolina Maria de Jesus sai, pega o caderno e o diário e age contra todo um sistema posto contra a pele, contra o corpo preto, do homem preto e, principalmente, da mulher preta. Olhando por essa perspectiva Grada (2019) diz: escrever é um ato de descolonização no qual quem escrever se opõe a posições coloniais tornando se a/o escritora/escritor/ “validada/o” e “legitimada/o” e, ao reinventar a si mesma/o, nomeia uma realidade que fora nomeada erroneamente ou sequer fora nomeada (KILOMBA, 2019, p. 28). A escrita de Carolina Maria de Jesus é uma escrita do real, é uma escrita como ato político e de resistência ao sistema opressor, mas é aí também que ela encontra um processo de cura. Ela, mesmo sem acesso à formação escolar que lhe era direito, escreveu criticamente mostrando nas páginas o racismo e o colonialismo como uma ferida não tratada, inflamada e infeccionada. Ela, em meio ao lixo, à pobreza, ao cortiço, escreve e reescreve sua história, faz sua escrevivência negra. Voltar para analisar a sociedade brasileira que não estava olhando para a situação das pessoas negras e pobres. Ela volta, ela vive, escreve e acha a fissura em Quarto de Despejo. Contudo, é ali que se humaniza, torna-se sujeito. Nascida em 14 de março de 1914, em Minas Gerais, e mais tarde migrando para São Paulo, especificamente para a favela do Canindé, pelas difíceis condições e a morte de sua mãe, Carolina Maria de Jesus vive, no barracão que ela mesma montou, com seus três filhos:Vera Eunice, João José e José Carlos. No meio da escassez, da fome amarela ela luta todos os dias catando papel para conseguir alguns cruzeiros; seus filhos vivem expostos às mazelas, às doenças, à violência física, psicológica, sexual em um ambiente insalubre que o Estado propositalmente abandonou porque a maioria das pessoas que lá habitam/habitavam tinham um corpo, uma cor específica eram/são negras e empobrecidas. Nos dias 19 e 20 de maio de 1958 ela faz sua escrevivência negra, expressa a sua triste e difícil realidade: As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de veludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo. [...] Devo incluir-me, porque eu também sou favelada. Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo (JESUS, 1960, p. 33). A força e a potência de Carolina Maria de Jesus é usar as palavras e a escrita para tentar “esquecer” a cruel realidade, para sonhar, para mudar sua 169 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) situação. O que é posto em relevo aqui também é a leitura crítica da situação social de miséria e vulnerabilidade em que a maioria das mulheres negras vivem em detrimento de uma minoria aristocrata e branca; Carolina Maria de Jesus vê, enxerga a estrutura do capital que coopta com racismo aumentando as desigualdades sociais, diminuindo os direitos corroborando as necropolíticas (MBEMBE, 2018). Tendo em horizonte a teoria do Foucault (2008) sobre o dispositivo de poder, a visão da autora supracitada mostra por várias vezes o “deixar morrer” vidas negras pelo Estado, seja por fome, frio, doenças (como desnutrição), seja pela falta de políticas públicas efetivas etc. O mito da democracia racial disseminado por teóricos e teorias racistas cai quando nos deparamos com as desigualdades sociais, vulnerabilidades e misérias relatadas por Carolina Maria de Jesus e que afetam o povo preto até os dias de hoje. Almeida (2019) parte do pensamento de que o racismo é estrutural, sociopolítico (relacional) além de ser uma tecnologia de poder que desumaniza e age na manutenção de privilégios e direitos para uma parte da população (branca) em detrimento de outra (negra e indígena). Nesse sentido, na sociedade, o racismo não é a exceção, mas sim a regra e está presente de diversas formas no tecido social, seja no preconceito, na discriminação direta ou indireta, na injúria, na negação de direitos previstos na Constituição Federal, como a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade, dentre outros. Para Almeida (2019) o racismo é sempre estrutural, pois é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade. Em suma, o que queremos explicitar é que o racismo é a manifestação normal de uma sociedade, e não um fenômeno patológico ou que expressa algum tipo de anormalidade. O racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea (ALMEIDA, 2019, p. 15). Em seu diário, Carolina Maria de Jesus nos conta como a escassez é resultado de micros e macroviolências. Kilomba (2019) aponta para os vários tipos de racismo: a animalização, primitivização, infantilização, erotização etc. São maneiras de desumanizar e humilhar o ser negro, uma tentativa de negar a dignidade humana. No trecho a seguir, Carolina Maria de Jesus relata um episódio de racismo que sofreu no dia 24 de julho de 1955: O Seu João veio buscar as folhas de batatas. Eu disse-lhe: - Se eu pudesse mudar desta favela!Tenho a impressão que estou no inferno. … Sentei ao sol para escrever. A filha da Silvia, uma menina de seis anos, passava e dizia: - Está escrevendo, negra fidida! A mãe ouvia e não repreendia…. (JESUS, 1960. p. 24). 170 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO O fato de a criança não ser repreendida no momento da ofensa mostra a “normalização” do racismo e a associação feita no imaginário social do negro como algo sujo, ruim, do mal etc. A narradora conta em muitas situações como é ferida e está lutando a todo momento para ter o direito de ser sujeito e viver com dignidade humana. A linguagem é ligada ao imaginário, podendo expressar, manifestar, reproduzir e transformar; a criança ali já tem a “imagem imposta” de onde está o negro, a mulher negra no Brasil em 1950. Ainda segundo Almeida (2019), a vida cultural e política é constituída por padrões de clivagem racial inseridos no imaginário e em práticas sociais cotidianas, dessa forma, “a vida “normal”, os afetos e as “verdades” são, inexoravelmente, perpassados pelo racismo, que não depende de uma ação consciente para existir (ALMEIDA, 2019). A história contada por Carolina Maria de Jesus representa e reverbera a voz e a luta de outras mulheres e pessoas negras. Estava sendo exposta ao extremo às misérias e, mesmo assim, resistindo e reexistindo ao estar viva, ao ousar não ter marido, ao ser independente, ao escrever, ao ler. No dia 16 de junho de 1958 ela conta: Devido ao custo de vida, temos que voltar ao primitivismo. Lavar nas tinas com lenha… Eu escrevia as peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me: É uma pena você ser preta. Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rústico. [...] Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta (JESUS, 1960, p. 58). A potência de Carolina é tamanha (sem estereótipos que reforçam o racismo) que retomamos aqui suas palavras quando se desentendeu com um homem chamado Vitor, “Dia 1 de janeiro de 1958, ele disse-me que ia quebrar-me a cara. Mas eu lhe ensinei que a é a e b é b. Ele é de ferro e eu sou de aço. Não tenho força física, mas as minhas palavras ferem mais do que espada. E as feridas são incicatrizáveis”3 O processo de empoderamento é realizado a todo momento através da linguagem, da palavra e da escrita; um locus onde a autora pensar outros caminhos, outras saídas para o problema social, político, institucional e estrutural. Baseada em, Bárbara Solomon, Paulo Freire, Angela Davis, bell hooks dentre outras e outros, Joice Berth vai colocar que o empoderamento está estritamente ligado ao trabalho social de desenvolvimento estratégico e recuperação consciente das potencialidades de indivíduos vitimados pelos sistemas de opressão, e visa principalmente a libertação social de todo um grupo a partir de um processo amplo e em diversas frentes de atuação, incluindo a emancipação intelectual (BERTH, 2020, p. 46). 3 Os desvios da norma padrão foram mantidos nas citações feitas. 171 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) A consciência crítica de Carolina Maria de Jesus faz com que ela se empodere utilizando suas habilidades pessoais, mas também agindo no meio social quando fala aos políticos, quando pede por políticas públicas, quando lê para informar a favela. Ela observa os políticos, vai à Assembleia e à sede do Serviço Social e vê o “ranger de dentes”, vê os pobres saírem chorando e fica comovida: “E as lágrimas dos pobres comove os poetas. Não comove os poetas de salão. Mas os poetas do lixo, os idealistas das favelas, um expectador que assiste e observa as trajédias que os políticos representam em relação ao povo”(JESUS, 1960, p. 47). A autora do diário registra a sua forma de engajamento na luta social sendo até presa por solicitar o que lhe é de direito entendendo que o processo de transformação é individual e coletiva. A falta, a escassez nos leva a colocar outra questão no horizonte: existe uma real democracia onde há falta de direitos? Onde há racismo estrutural? Du Bois certamente diria que não; com sua perspectiva afropessimista, ele diria que apenas o fim do mundo, a morte humana faria com que encontrássemos a “igualdade”. Analisando a obra O Cometa de Du Bois e Hartman (2021, p. 60) afirma “ele se esforçava para imaginar de que forma o mundo poderia ser reconstruído,, de que forma seria possível nutrir “uma esperança não impossível, mas inviável”. Pode-se refletir então que não é possível exercer a cidadania, que é um direito, quando um Estado que se diz democrático é inefetivo em relação a um grupo racial, a uma parte da população. Carolina Maria de Jesus está consciente do abandono estatal naquele território e pensa nos caminhos para uma possível mudança ou melhora na sociedade. Suas palavras deixam evidente sua posição: Quem deve dirigir é quem tem capacidade. Quem tem dó e amisade ao povo. Quem governa nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre. Se a maioria revoltar-se, o que pode fazer a minoria? Eu estou ao lado do pobre, que é o braço. Braço desnutrido. Precisamos livrar o paiz dos políticos açambarcores (JESUS, 1960, p. 35). A crítica, a visão, a luta e o engajamento de Carolina Maria de Jesus são evidentes em suas obras, mas em Quarto de Despejo ela mostra nitidamente sua ferida, a ferida do Brasil a fome. Escrevendo, ela se alimenta de palavras, nutre sua alma e suas imaginações e recria para si outra realidade feita de palavras em que pratos cheios despertam seu paladar e flores e aves tornam sua casa perfeita. A sua vontade é escrita, Deixei o leito para escrever. Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades (...) É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela. Fiz o café e fui carregar 172 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO água. Olhei o céu, a estrela Dalva já estava no céu. Como é horrível pisar na lama. A hora que sou feliz é quando estou residindo nos castelos imaginários (JESUS, 1960, p. 52). Em Traduzindo no Atlântico Negro: por uma práxis teórico-política de tradução entre literaturas afrodiaspóricas, Carrascosa (2016) vai colocar a linguagem como a arena, o lugar de luta para reescrevermos nossa negra história, o lugar para mudarmos o imaginário embranquecido e revisar narrativas. Apesar de tudo e de todos, Carolina Maria de Jesus escreve para (re)existir, se tornar sujeito, se empoderar e contar a própria afro-história. Ela quebra o padrão que a sociedade racista esperava para uma mulher preta e literalmente, por muito tempo, sobreviveu pela palavra, sendo esse processo também considerado como cura, uma revisitação das memórias e uma escrevivência negra. CONSIDERAÇÕES FINAIS A escritora negra Carolina Maria de Jesus é uma voz que se avoluma a outras vozes dissidentes de mulheres negras brasileiras como Benedita da Silva, Beatriz Nascimento, Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro, Mariele Franco, Lélia Gonzalez, Vilma Reis, Denise Carrascosa e tantas outras mulheres negras anônimas que se colocaram/colocam fortemente contra as múltiplas violências estruturais pelas quais as mulheres negras e periféricas são acometidas no Brasil. A pensadora Carolina Maria de Jesus vivia em uma situação social degradante, porém a sua mente era livre para refletir que o seu estado, assim como o daqueles que viviam ao seu redor era um projeto colonial em curso. A aludida escritora tinha um pensamento ideologicamente autônomo e autoral que questionava através de sua escrita o status quo e forma como a branquitude política tratava os negros e favelados. Convém explicar que a política é um campo historicamente dominado pela branquitude brasileira. Dessa forma, mesmo que talvez de forma inconsciente, ao denunciar o estado de precariedade em que vivia Carolina Maria de Jesus estava fazendo críticas à branquitude política e ao pacto narcisista da branquitude da sua época. (BENTO, 2022). Bento assegura que as formas de exclusão e de manutenção de privilégios nos mais diferentes tipos de instituições, dentre eles o campo da política, são similares e sistematicamente negadas ou silenciadas. Para essa mesma autora, “esse pacto da branquitude, ou seja, um típico acordo tácito e não explicitado entre pessoas brancas, possui um componente narcísico, de autopreservação, como se o “diferente” ameaçasse o ‘normal’” (BENTO, 2022, p. 18). Carolina Maria de Jesus, a despeito da sua condição social de precariedade imposta, não optou pelo silêncio. A escrita dela foi uma importante ferramenta de denúncia e luta contra as opressões nas quais muitos brasileiros e 173 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) brasileiras sofrem cotidianamente no Brasil adentro. A referida escritora evidenciou e criticou aquilo que é naturalizado por parte da branquitude brasileira e daqueles que gozam de diversas vantagens concedidas pelo racismo à brasileira. A voz de Carolina Maria de Jesus, na sua obra prima Quarto de Despejo é um marco no campo da Literatura Negra Brasileira, pois até então não se haviam notícias de que uma mulher negra que vivia à margem da sociedade pudesse falar de forma tão crítica e categórica sobre questões complexas acerca da sociedade brasileira, como ela brilhantemente falou, publicou e foi ouvida em diversos países. A escrita de Carolina Maria de Jesus é denunciadora e altamente crítica. Ela quebra protocolos e ciclos por ser uma mulher negra, pobre e não acadêmica que elaborou uma primorosa crítica social sobre a realidade vigente das favelas brasileiras. Isso nos revela que a capacidade de criticidade não é um atributo pertencente somente a acadêmicos/as brancos/as e de classe média dos centros urbanos, mas também às pessoas que foram cerceadas de diversos direitos sociais, como Carolina Maria de Jesus e inúmeras mulheres negras e faveladas no país. O racismo é inegavelmente um sistema de negação de direitos e a intelectual Carolina Maria de Jesus sabia disso melhor do que ninguém, pois ela e sua família negra vivenciaram na pele todas as mazelas possíveis e os prejuízos ocasionados por esse sistema político capitalista, sexista e opressor. Como muitas mulheres negras, Carolina Maria de Jesus foi uma voz insurgente e lutou até o fim de sua vida contra toda forma de humilhação gerada pelo racismo. Carolina Maria de Jesus nos deixou um legado de força e coragem indescritível. Ela é uma grande inspiração e um potente exemplo de luta para mulheres negras e homens negros brasileiros. A potência crítica do pensamento de Carolina Maria de Jesus é de deixar atônito qualquer acadêmico branco que pouco saberia problematizar sobre questões sociais com a profundidade que essa escritora não acadêmica relatou sobre sua percepção acerca da vida na favela. Por isso, como ela mesma colocou, suas palavras ferem mais que a espada e suas feridas são incicatrizáveis. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. 174 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO BERTH, Joice. Empoderamento. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2020. CARRASCOSA, Denise. Traduzindo no Atlântico Negro: por uma práxis teórico-política de tradução entre literaturas afrodiaspóricas. Cadernos de Literatura em Tradução, [S.L.], n. 16, p. 63-72, 10 maio 2016. Universidade de Sao Paulo, Agencia USP de Gestao da Informacao Academica (AGUIA). http:// dx.doi.org/10.11606/issn.2359-5388.i16p63-72. DU BOIS, William Edward Burghardt; HARTMAN, Saidiya. O cometa + O fim da supremacia branca. São Paulo: Fósforo, 2021. EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2016. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 22. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2008. JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1960. 173 p. Introdução e revisão de Audálio Dantas e Alberto Teixeira. KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018. 175 A FALSA LIBERDADE DOS NEGROS MARGINALIZADOS NO BRASIL À LUZ DA ESCRITA LITERÁRIA DE CAROLINA MARIA DE JESUS: PERSPECTIVAS DIDÁTICOPEDAGÓGICA DE EDUCAÇÃO Anderson José Machado Linck1 Adriana Claudia Martins2 INTRODUÇÃO Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não outra, que nos exprime. Se não for amada, não revelará a sua mensagem; e se não a amarmos, ninguém o fará por nós (CANDIDO, 2009, p. 11-12). A literatura brasileira é rica e ampla, porém há textos literários que buscam representar as margens da sociedade e, esses, ainda são pouco visibilizados, a exemplo das produções da Literatura Marginal Periférica, as quais relatam problemas sociais atrelados às classes menos favorecidas. Contudo, importa sublinhar que, nestas duas últimas décadas, esta literatura está ascendendo entre escritores, leitores e educadores pela sua relevância social e cultural no contexto brasileiro e pela motivação causada a partir do debate acerca da história e cultura étnica e afro-brasileira, com as Leis n°. 11.645/2008 e n°. 10.639/2003. Na Literatura Marginal Periférica, o escritor traz a sua própria história, transformando suas experiências de vida em textos literários de e para a periferia trazendo um olhar de vivência de quem está do lado de dentro da realidade. E isso ocorre, não apenas porque está escrevendo, mas também explicitando na 1 Doutorando na área de Estudos Linguísticos dentro da linha de pesquisa de Linguagem e Contexto Social do programa de pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM; Mestre em Tecnologias Educacionais em Rede e licenciado em Letras Inglês pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Acadêmico do Curso de Segunda Licenciatura em Letras: Português e Inglês da Universidade Franciscana – UFN. Email: [email protected]. 2 Pós-doutora e Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Doutora em Letras/Estudos Literários pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Mestre em Letras/Estudos Linguísticos pela Universidade Católica de Pelotas – UCPEL. Especialista em Português e Literatura e Licenciada em Letras Português-Inglês e Literaturas pela Universidade Franciscana – UFN. Licenciada em Pedagogia pelo Centro Universitário Internacional – UNINTER. Professora titular do curso de Letras Português-Inglês da Universidade Franciscana – UFN; Email: [email protected]. 176 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO perspectiva de quem é o protagonista da história e o conhecedor do cotidiano, por narrar cultura, informação e provocações na direção da conscientização de seu leitor (CUNHA et al., 2012). Nesta contextura, destacamos a escritora Carolina Maria de Jesus e sua obra Quarto de despejo: diário de uma favelada, pelas contribuições significativas que a autora realizou com seus diários e testemunhos, instrumentos de conhecimento sobre a esfera social e cultural das favelas brasileiras. A autora manteve um diário em que anotava as dificuldades do seu dia a dia sofrido, o qual foi transformado em obra literária. Nesta sua obra, Carolina Maria de Jesus apresenta-se como narradora e protagonista, descrevendo uma imagem de si mesma, bem como a de outros seres humanos que compartilham de sua condição de sobrevivência na favela Canindé, na cidade de São Paulo. Logo, na escrevivência de Carolina Maria de Jesus é possível identificarmos a falsa liberdade dos negros e negras no Brasil, vítimas dos preconceitos sociais que marcam a sociedade colonizada, explorada e segregada, a exemplo de nosso país. Sabemos que a autora, que cursou apenas as primeiras séries escolares, surge na arte literária como a primeira escritora negra que desempenhou um importante papel nos anos de 1960, em um contexto histórico e político adverso para minorias e mulheres no Brasil. METODOLOGIA Este texto se organiza, metodologicamente, a partir da análise interseccionista e descritiva com base na obra Quarto de despejo: diário de uma favelada, escrita por Carolina Maria de Jesus e considera as esferas social e cultural das favelas brasileiras. Depois desta introdução, este estudo segue com uma reflexão crítica e interpretativa acerca de como o espaço-tempo na narrativa de Carolina Maria de Jesus corrobora na formação identitária da narradora/autora/personagem, na sua expressão literária e narrativa e no processo de transformação da personagem. As bases teórico-analíticas incidem a partir, principalmente dos teóricos: Candido (2009); Coronel (2014); Cosson (2014); Cunha e colaboradores (2012); Munanga (2005); Simpósio Nacional e Internacional de Letras e Linguística (2013); Santos (1979) e Toledo (2010). Como instrumento basilar do estudo consideramos a obra de Jesus (2014). Assim, no desdobramento do estudo, sublinhamos, ainda, a importância do letramento literário e realizamos uma seção no texto que aponta para perspectivas didático-pedagógica e formativas de educação antirracista à luz da narrativa estudada. Por fim, este texto se fecha com considerações finais e reflexões acerca das constatações do estudo. 177 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) REFLEXÃO CRÍTICA E INTERPRETATIVA QUANTO AO ESPAÇOTEMPO E A FORMAÇÃO IDENTITÁRIA DA PERSONAGEM/ NARRADORA Na obra de Carolina de Jesus, a narradora e protagonista apresenta o espaço da narrativa como sendo uma analogia ao que ela denomina como quarto de despejo, o qual é descrito como um local relacionado ao inferno, conforme menciona a própria narradora: “[...]cheguei no inferno. Abri a porta e pus os meninos para fora” (JESUS, 2014, p. 13). Contudo, há fragmentos no texto que evidenciam a aceitação e pertencimento de Carolina ao local indesejável, assim apontado por ela: “Devo incluir-me, porque eu também sou favelada. Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo” (JESUS, 2014, p. 32). No entorno da análise da obra, vamos observando que a experiência que Carolina marca na sua escritura, por vezes, ainda afere desejo de uma outra vida, de um outro lugar, que é projetado por ela por meio de suas palavras, conforme fragmento que segue: Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades. [...] É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela. [...] As horas que sou feliz é quando estou residindo nos castelos imaginários (JESUS, 2014, p. 60-61). A partir desta associação, podemos inferir que o espaço literário se configura como a soma do significado e das escolhas estéticas e formais da narradora, em outras palavras “as estratégias narrativas em nível lexical e da narração são escolhidas para contar a história” (SIMPÓSIO NACIONAL E INTERNACIONAL DE LETRAS E LINGUÍSTICA, 2013). Assim, Carolina Maria de Jesus descreve o espaço-tempo da obra a partir de suas características contingentes e de conteúdo, e isso caracteriza as personagens, produzindo uma representação do vivido (TOLEDO, 2010). Nesta perspectiva, a construção do cronotopo apresentado na obra elabora-se no contraste entre as representações que configuram a identidade da personagem no decorrer da narrativa do texto literário com uma heterogenia, uma vez que mesmo residindo na favela, no quarto de despejo, a protagonista vive uma relação heteróloga com este espaço-tempo que é o quarto de despejo. É necessário destacar que não era com conformidade que ela aceitava a vida na favela, pelo contrário, em sua narrativa é identificada uma relação hostil com o ambiente, com os vizinhos, com o cotidiano de sobrevivência daquele espaço-tempo de favelada. 178 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO Carolina Maria de Jesus projeta em seu discurso a percepção do lugar que vive e o que não vive, como se transpassasse entre esses dois diferentes lugares, entre a realidade do contexto da favela e o desejo de mudança. Esta representação fica evidente no momento em que ela constrói metáforas sobre o espaço de suas vivências, ao comparar a cidade de São Paulo com cômodos de uma casa. No fragmento da obra Quarto de despejo: diário de uma favelada, que segue, é possível identificar que, para a autora, “o Palacio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos” (JESUS, 2014, p. 27). Com efeito, Carolina Maria de Jesus idealiza a realidade de vida diferente da sua, com regiões agradáveis para se viver, limpas e apresentáveis de uma cidade, comparação e contraste que ela marca quando compara onde vive como um lugar para se jogar o lixo. Em sua narrativa explicita os cômodos lindos de uma casa, aqueles que são exibidos a visitas e convidados. Em contrapartida, a dura realidade daqueles que vivem nas favelas é vista como aquilo que ninguém quer ver ou que deseja ter contato, sendo referido como o quintal sujo ou, até mesmo, o quarto de despejo. O espaço-tempo em que Carolina Maria de Jesus ocupou na sociedade brasileira, enquanto mãe, negra e pobre, é reflexo de si na narrativa, pois sua consciência acerca deste cronotopo de sua existência exprime formato único na obra literária de sua autoria. Deste modo, encontramos ressonância da singularidade literária de Carolina Maria de Jesus nas palavras de Antônio Candido, quando este explica que quem escreve “em uma determinada sociedade, é não apenas o indivíduo capaz de exprimir a sua originalidade (que o delimita e especifica entre todos), mas alguém desempenhando um papel social” (CANDIDO, 2009, p. 84). Nasce do cenário de pobreza, da fome, da exclusão e da falsa liberdade de negros e negras nasce o espaço discursivo da narrativa, que é da obra Quarto de despejo: diário de uma favela, mas que também é da autora, um sujeito que protagoniza o não estático, que é personagem e narradora. Pois sim, Carolina Maria de Jesus é a protagonista e a narradora da sua própria obra literária. Em sua narrativa, ela apresenta diários, os quais a escrita tem início em 15 de julho de 1955 e tem a última narrativa no dia 1° de janeiro de 19603. Quarto de Despejo: diário de uma favelada apresenta uma história de vida narrada a partir de diários (divididos em dia, mês e ano) o retrato do cotidiano da favela de Canindé em São Paulo, que foi desocupada em meados dos anos 1960 para a construção da Marginal do Tietê (JESUS, 2014). No diário, Carolina 3 É importante ressaltar que existem diversas lacunas temporais no meio da obra, por motivos variados, alguns enunciados pela própria autora. 179 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) Maria de Jesus, migrante de Sacramento, Minas Gerais, narra como consegue sobreviver como mãe solteira ao prover para si e seus três filhos ao ser catadora de lixo e de metal. A escritura em forma de diário pode ser interpretada como instrumento de escapismo e denúncia social, testemunho e relato da rotina da favela, como os problemas da miséria, da violência e da fome. A autora fez da palavra escrita e de suas leituras, uma condição de vida e de sobrevivência diante dos preconceitos sociais, dado que quando ela era insultada pelos moradores da favela, respondia que ia registrar o fato em seu livro. Desse modo, sua escrita foi com base nos acontecimentos vivenciados e assim enunciados no livro. A voz de Carolina Maria de Jesus possibilita percebermos a forma como a sua narrativa entrelaça a voz da autora-narradora e das personagens ao descrever o que presenciava pelas ruas de Canindé, ao longo de cinco anos de sua vida, como desavenças e confrontos, prostituição infantil e o descaso social constante que davam forma as suas experiências de vida, as quais mais tarde tornaram-se em a materialização do seu sonho, o qual era a publicação de seus textos. Na construção identitária da personagem Carolina Maria de Jesus há marcas do tempo e do espaço de sua vivência e dos filhos que são expressas em palavras, em diários narrados e julgados por ela, protagonista que se olha e se vê inserida na norma culta da língua brasileira. Em 18 de julho, ela escreve em seu diário: “O que aborrece-me é elas vir na minha porta para perturbar a minha escassa tranquilidade interior [...] Mesmo elas aborrecendo-me, eu escrevo. Sei dominar meus impulsos. Tenho apenas dois anos de grupo escolar, mas procurei formar meu caráter” (JESUS, 2014, p. 16). Os reflexos das normas estão nela, nos ajustes que ela busca fazer para a aceitabilidade de seu texto, mas ela está no texto, cravada, crítica, identitária, significada e significando ao leitor. Ao fazer uma literatura de cor, Carolina Maria de Jesus traça sua identidade, enquanto também é formada pela sociedade que a deixa à margem, favelada. Na condição de sua vida ela escreve, em 12 de junho de 1958: Eu deixei o leito as 3 da manhã porque quando a gente perde o sono começa pensar nas misérias que nos rodeia. (…) Deixei o leito para escrever. Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades. (…) É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela (JESUS, 2014, p. 60). No testemunho desta condição de ser favelada, sua narrativa sofre como sofre a sociedade segregada e marca o que destoa entre sua realidade e a realidade de parte da sociedade em São Paulo, contexto daqueles que vivem em uma 180 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO cidade organizada e cuidada. Carolina negra. Carolina mãe solteira. Carolina catadora de papel. Carolina escritora. Carolina semianalfabeta. É esta Carolina que o leitor identifica na narrativa, na sobrevida e é esta Carolina que escreve memórias do cotidiano para adentrar ao mundo, para ser identificada como gente no mundo, para ter visibilidade, a sua e do coletivo de mulheres que como ela sofrem a miséria. Nesta construção identitária não é somente o espaço-tempo que forma a personagem, narradora e autora, mas também ela, personagem, narradora e autora constrói o espaço da narrativa, com sua perspectiva e possibilidade subjetiva de denunciar a vida dela e de muitos que tentam viver nas condições desumanas da favela. A consciência de seu lugar e tempo fez de Carolina Maria de Jesus uma mulher que não se intimidou diante da injusta sociedade, ao contrário, foi com a escrita e a dedicação de seu testemunho que ela deixou marcas de uma voz única e coletiva dos invisibilizados e silenciados. Então, é notório, que no espaço discursivo de Quarto de despejo: diário de uma favela, Carolina Maria de Jesus usou da palavra para denunciar a falsa liberdade dos negros marginalizados no Brasil. QUARTO DE DESPEJO: O LETRAMENTO LITERÁRIO E A PERSPECTIVA DÍDÁTICO-PEDAGÓGICA E FORMATIVA A formação humana perpassa pela necessidade de reconhecimento da história do Brasil, contextualizações que engendram a história da educação, oportunidades escolares, exclusão-inclusão escolar, democratização da educação. Nesta perspectiva da formação e de integrar o letramento literário no processo formativo de educadores, a atividade literária entrou na sala de aula da formação de professores de Letras, em uma Instituição particular do interior do estado do Rio Grande do Sul. Neste cenário, realizamos um desdobramento do estudo da obra Quarto de despejo: diário de uma favelada, da escritora Carolina Maria de Jesus, indicando perspectivas pedagógicas e formativas a partir da obra desta autora. Assim, com os objetivos de ler, apreciar e estudar a narrativa de Carolina Maria de Jesus e, por conseguinte, discutir temáticas presentes na obra, a exemplo das questões de gênero, raça e classe, este estudo sinaliza o viés formativo imbricado ao letramento literário docente. Neste ínterim, este estudo se inscreve em um texto sensível às Leis n°. 11.645/2008 e Lei n°. 10.639/2003, que introduzem o debate a ser considerado sobre a história e a cultura étnica e afro-brasileiras-brasileiras na educação em nosso país. Com o objetivo deste letramento considerado na vivência da atividade reflexiva e crítica a partir da experiência estética, a obra Quarto de despejo: diário 181 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) de uma favelada é a possibilidade do reconhecimento do espaço-tempo vivenciado pela autora, narradora e protagonista Carolina Maria de Jesus e a identificação deste humano, mulher, mãe, pobre e negra que está atravessado pelos preconceitos sociais e pela dura realidade histórica que a obra literária traz como base situacional. Estudar Carolina Maria de Jesus, remete-nos a observar acerca do olhar da autora, sua objetividade e subjetividade presentes na narrativa por meio de diários e de representações, de si diante dos filhos, dos vizinhos favelados, da sociedade, por volta dos anos de 1960 no contexto social e político brasileiro, na periferia de São Paulo. Uma escritura diária que narra a fome e a vida de sobrevivência de Carolina e seus três filhos e que, ao se tornar publicada, valoriza sua função estética. No viés da narrativa de Carolina Maria de Jesus, a formação de educadores acontece de modo mais reflexiva e crítica, sensível à arte e à história da autora. No estudo da obra Quarto de despejo: diário de uma favelada, a aula se torna transformativa sobre leitura na universidade e na Educação Básica, em uma sociedade que precisa crescer democraticamente e de modo responsivo formar leitores críticos, mais humanos e corresponsivos socialmente. Assim, no entorno da relevância da formação de profissionais leitores, capazes de atuarem na formação de outros leitores escolares, o letramento literário se justifica. Nesta perspectiva, da importância formativa, o letramento literário se refere à qualidade daquela pessoa que, além de realizar a leitura e compreender os distintos gêneros literários que lê, também considera a literatura um meio pela qual aprende, experiência, com apreciação e prazer estético. Neste caminho da leitura literária, “interpretar é dialogar com o texto, tendo como limite o contexto” (COSSON, 2014, p. 41). Um movimento que implica na leitura prévia, histórica e social que quem lê e constrói interlocuções culturais no mundo. No processo formativo de educadores/estudantes/leitores de um modo geral, a aprendizagem de leitura de diferentes textos e gêneros, a leitura de mundo e de memórias da história são imprescindíveis para que o conhecimento seja construído de modo crítico e consciente, que enxergue a necessária decolonização como peça fundamental na democratização da educação. Assim, de modo distinto, educadores precisam compreender que a leitura é a ponte no movimento transformativo educacional. Com esta seção que considera a obra de Carolina Maria de Jesus como instrumento estético que suscita reflexão e formação humana, crítica e reflexiva, ensaiamos a atividade pedagógica como uma possibilidade de enxergarmos a falsa liberdade dos negros marginalizados no Brasil. Portanto, o estudo da obra e sua leitura podem constituir-se como atividade prática e significativa de 182 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO formação humana consciente e servir de motivação para a pesquisa histórica e situacional acerca de como viveram e vivem os negros e negras neste país que teve sua Abolição da Escravatura em 1888, mas que libertou um povo para ser marginalizado e excluído, de modo legitimado. Então, em condições precárias viveu e ainda vive a população pobre, em grande parte cidadãos negros e cidadãs negras, discriminados pela acentuada desigualdade social. Milton Santos (1979) explica que: A pobreza em seu sentido mais amplo, não só implica um estado de privação material como também um modo de vida, onde estão em jogo as condições que criam a ausência de autoestima – e um conjunto complexo e duradouro de relações e instituições sociais econômicas, culturais e políticas criadas para encontrar segurança dentro de uma situação de insegurança (SANTOS, 1979, p. 10). Neste espaço-tempo em que Carolina Maria de Jesus foi anotando sua dor em papéis que recolhia pelas ruas, ela também marca a narrativa com sua experiência de mulher marginalizada, não liberta. Quarto de despejo: diário de uma favelada é o retrato da alma, documento real da sobrevivência de uma mãe e seus filhos, realidade registrada entre os anos de 1955 e 1960, mas que se atualiza no cenário nacional brasileiro. Neste viés crítico e de denúncia, vale sublinhar que Carolina Maria de Jesus, quando da publicação de sua obra, com a ajuda do jornalista Adáulio, foi desacreditada como possível autora, pois sua condição de favelada não daria a ela, na opinião de críticos da época, condições de ser a escritora. Mas seu diário era marcado pelo testemunho de si, mulher e mãe pobre, legítima autora, ainda que a história não tenha dado condições e oportunidades educacionais e de vida digna a tantos brasileiros, assim como à Carolina, aos filhos e moradores da favela do Caindé, espaço-tempo de sua narrativa. Quarto de despejo: diário de uma favelada foi recebido pela crítica literária como um livro discriminado. No entanto, Luciana Paiva Coronel (2014) explica que a dimensão literária da narrativa de Carolina teve uma visão simplista, apenas primeiramente. Neste sentido, é possível constatar que a escrita de Carolina Maria de Jesus foi adquirindo reconhecimento, de ser uma narrativa que esteve próxima às vivências, com uma linguagem contundente e uma voz que representava o cotidiano da fome, e esta “fome como uma vertigem amarela” (CORONEL, 2014, p. 272), dolorida e angustiante. Na situacionalidade formativa de educadores, a obra Quarto de despejo: diário de uma favela é uma obra que deve ser imbricada no processo formativo humano e profissional, pois o estudo da obra realizado aponta para perspectivas didático-pedagógica e formativas de educação antirracista à luz desta narrativa literária de Carolina Maria de Jesus. 183 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) De acordo com Kabengele Munanga (2005, p. 17) não existem leis no mundo que sejam capazes de erradicar as atitudes preconceituosas existentes nas cabeças das pessoas, atitudes essas provenientes dos sistemas culturais de todas as sociedades humanas. No entanto, cremos que a educação é capaz de oferecer tanto aos jovens como aos adultos a possibilidade de questionar e desconstruir os mitos de superioridade e inferioridade entre grupos humanos que foram introjetados neles pela cultura racista na qual foram socializados. (MUNANGA, 2005, p. 17) Nesta dimensão, clamamos que é no espaço-tempo da identidade narrada por Carolina Maria de Jesus, em sua obra Quarto de despejo: diário de uma favelada, que compartilhamos de conteúdos e de conceitos sobre gênero, raça e classe, preceitos que são capazes de desconstruir e de reconstruir a sociedade, mais consciente e humana. E por que se faz necessária essa desconstrução e reconstrução? Porque parte da burguesia brasileira negou a realidade de uma sociedade racista e segregada, então, é nosso compromisso reconhecer a pluralidade cultural e racial, os valores que os negros e negras agregam ao Brasil. Desse modo, criar espaço educativo que possibilite a apreciação das dimensões estéticas desta obra literária e discutir os temas imbricados na contextura dos sentidos e significados da narrativa de Carolina Maria de Jesus é compromisso de pesquisadores, formadores de professores, gestores e sociedade brasileira. Conforme diz Mununga (2005, p. 16), o “resgate da memória coletiva e da história da comunidade negra não interessam apenas aos alunos de ascendência negra. Interessam também aos alunos de outras ascendências étnicas, principalmente branca, pois ao receber uma educação envenenada pelos preconceitos, eles também tiveram suas estruturas psíquicas afetadas”. Esta obra e tantas outras narrativas são espaço-tempos para que reconheçamos e nos envergonhemos de que ainda há escravos no nosso país, ainda que esses tenham sido libertos, legalmente. Que, por fim, este reconhecimento nos faça mobilizadores para transformar, por meio de movimentos decolonialistas e educacionais, a sociedade em um coletivo que seja mais ético, justo, respeitoso e educado. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste texto buscamos destacar a importância da Literatura Marginal Periférica, não apenas como produto literário, mas também como um retrato social de uma esfera social brasileira. Como proposta, buscamos estudar a obra Quarto de despejo: diário de uma favela, escrita por Carolina Maria de Jesus e compreender como o espaço-tempo da narrativa contribuiu na construção de 184 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO identidade de sujeito literário e sujeito social de Carolina Maria de Jesus, por meio dos diários escritos por ela. Com o estudo realizado, o qual toma como base a narrativa desta autora, fica marcado o cenário de pobreza, da fome, da exclusão e da falsa liberdade de negros e negras no Brasil. Neste viés, é possível conferir que o espaço literário se configura em diálogo com o significado enunciado e as escolhas estéticas e formais da narradora. Carolina Maria de Jesus tenciona em sua narrativa as palavras que deseja marcar, em uma percepção única de quem vive naquele espaço-tempo. A autora explicita o que vive e o que não vive, como se transpassasse entre esses dois momentos, tempos e lugares diferentes, entre a favela e o desejo de não viver nela. Este texto ainda buscou refletir acerca da importância do letramento literário e, assim, realizamos uma seção no texto que assinala perspectivas didático-pedagógica e formativas de educação antirracista à luz da narrativa de Carolina Maria de Jesus, pois o Brasil apresentou, historicamente, uma postura permissiva com relação aos preconceitos sociais, ao racismo e às distintas formas de discriminação que atingiram os povos afrodescendentes. Diante disso, apreendemos que cabe à sociedade contemporânea conhecer a história afrodescendente brasileira, conhecer a cultura e respeitar negros e negras, reconhecendo-os como membros importantes da formação de nosso país. Nessa mesma perspectiva, evidenciamos, ao estudarmos os diários narrados, que o processo de construção de identidades e identificações de Carolina Maria de Jesus passou por um constante processo de transformação ao longo da narrativa, buscando ascender no modo de vida, bem como a buscar por assimilação de uma cultura superior. Entretanto, os desejos e objetivos de Carolina Maria de Jesus foram constantemente desafiados e questionados pelo meio social o qual estava inserido, conforme sua identidade era estabelecida nas narrativas descritas pela autora, tanto como sujeito social quanto literário. Assim, Carolina Maria de Jesus foi reconhecida como uma mulher negra e pobre, mãe solteira de três filhos que constantemente batalhava para manter sua honestidade e prover para sua família ao trabalhar como catadora de papel e diarista. Ao mesmo tempo que exercia um desejo de ser uma escritora que, além de relatar suas experiências de vida na favela, buscava mediar politicamente direitos de vida e bem-estar em prol dos outros. Neste estudo, identificamos que, ao decorrer da narrativa, a autora cruzou fronteiras sociais e culturais ao entrar no universo literário por meio de relato de suas vivências em formato de diários. Contudo, por motivos ideológicos, a autora não obteve o sucesso esperado como escritora no período em que seus textos literários foram lançados. Isso se deu segundo os movimentos de censura branca para com sua obra, a qual não somente relatava suas práticas e experiências de 185 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) vida do contexto da favela, mas também seus pontos de vista políticos e ideológicos perante o modo como era tratada pela parte detentora do poder social e econômico da época. Além disso, devido a uma sociedade discriminatória, Carolina Maria de Jesus não conseguiu se estabelecer como sujeito social, uma vez que não conseguiu ser respeitada e reconhecida no meio social que buscou viver fora da favela, ao mesmo tempo que se regressasse a favela, não seria mais bem-vinda por construir inimizades, muitas delas relatadas em seus diários. Apesar disso e das condições desfavoráveis em que viveu, a autora, ao conseguir publicar sua primeira narrativa, ultrapassou dez mil livros vendidos na primeira edição. Ao nos aproximarmos da leitura literária de obras de mulheres escritoras, a exemplo de Carolina Maria de Jesus, da denúncia social, testemunho e relato da rotina da favela, identificamos a importância do letramento literário e acreditamos que a experiência estética de obras como Quarto de despejo: diário de uma favela pode trazer vivências transformadoras ao leitor, promovendo o conhecimento da real história brasileira e o reconhecimento de identidades negras. Portanto, é preciso ampliarmos o projeto que busca colocar educadores e estudantes próximos da literatura afrodescendente a fim de ampliarmos o olhar sensível de leitores e, assim, termos uma sociedade mais humana. REFERÊNCIAS CANDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos (1750- 1880). Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2009. CORONEL, Luciana Paiva. A censura ao direito de sonhar em Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 44, p. 271-288, jul.-dez. 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/ pdf/elbc/n44/a13n44.pdf . Acesso em: 25 fev. 2023. COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2014. CUNHA, Adriana et al. Literatura Marginal Periférica. REVELA - Periódico de Divulgação Científica da FALS, a. 6, n. 14, dez. 2012. JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10 ed. São Paulo: Ática, 2014. 176p. MUNANGA, Kabengele. Superando o Racismo na Escola. 2. ed. Brasília: Mec/Secad, 2005. 206 p. SANTOS, Milton. A totalidade do diabo.Como formas geográficas difundem o capital e mudam estruturas sociais. In: SANTOS, Milton. Economia espacial, críticas e alternativas. São Paulo: Contexto-Hucitec, 1979. p. 31-42. 186 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO SIMPÓSIO NACIONAL E INTERNACIONAL DE LETRAS E LINGUÍSTICA, 2013, Uberlândia. Quarto de despejo: o espaço na obra de Carolina de Jesus. Uberlândia: Edufu, 2013. 8 p. Disponível em: http://www.ileel.ufu.br/ anaisdosilel/wp-content/uploads/2014/04/silel2013_1545.pdf. Acesso em: 03 mar. 2023. TOLEDO, Christiane Vieira Soares. Carolina Maria de Jesus: a escrita de si. Letrônica, Porto Alegre, v. 3, n. 1, p. 247-257, jul. 2010. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/letronica/article/ view/7066/5732. Acesso em: 01 mar. 2023. 187 PROCESSO DE COLONIZAÇÃO, RACISMO, EDUCAÇÃO E INFÂNCIA: A EXPERIÊNCIA DA COR NA PRODUÇÃO DAS CULTURAS INFANTIS Jefferson Andrade Silva1 INTRODUÇÃO Discutir temáticas raciais tem se tornado uma tarefa desafiadora devido a abrangência do tema. O fenômeno é atravessado por instâncias sociais, políticas, econômicas, biológicas, e culturais, tendo como ponto em comum, a historicidade que o acompanha. Trata-se de uma temática que não se esgota, visto a variabilidade de contextos em que se está presente e se manifesta. A sociedade, tal qual se conhece, foi e permanece estruturada em hierarquias sociais, diretamente relacionadas a raça, cor e distribuição de poder (AGUIAR, 2007). Essa estrutura, muito presente no mundo ocidental, está baseada no conceito de raça, que foi durante muito tempo um termo utilizado como sinônimo de espécie, com o objetivo de diferenciar grupos humanos tanto na sua composição física, quanto em suas capacidades mentais. Tal entendimento fundamentou ideologias que pregavam a existência de raças naturalizadas como dominantes e outras, por consequência, dominadas (CABECINHAS; AMÂNCIO, 2003; CABECINHAS, 2010). O pertencimento racial ao grupo de brancos foi colocado como padrão de normalidade, de forma que o tornou representante da espécie humana. Cria-se a partir disso, um ideal a ser alcançado por indivíduos de diferentes grupos raciais (PINTO; FERREIRA, 2014). Esse sistema de hierarquia racial historicamente tem legitimado contra negros, mitos sobre a sua suposta inferioridade moral e intelectual. Coloca-os em um lugar social de periculosidade, explora sua mão-de-obra, persegue, segrega, exclui, os forçam a rejeitar sua própria imagem e provocam seu extermínio, com mortes objetivas e subjetivas (CABECINHAS, 2010; MÁXIMO et al.,2012). Dessa forma, o presente trabalho trata-se de um estudo teórico, que emprega-se como método a revisão da literatura, cujo objetivo é lançar um olhar 1 Graduado em Psicologia pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e Mestre em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Campina Grande (PPGEd/UFCG). Membro do grupo de pesquisa Sociedade, Cultura e Educação (UFCG). Atua como Psicólogo Escolar/Educacional na rede de ensino privada de João Pessoa - PB– Email:[email protected] 188 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO ampliado para os processos de colonização e problematizar como estes reverberam até os dias atuais na vivência de diferentes gerações, entre elas, crianças. Esse esforço teórico será iniciado com uma compreensão das bases sociais e políticas que estruturam o racismo, fundamentado na concepção de raça, que foi e é um conceito amplamente discutido no Brasil e no mundo, devido suas origens coloniais e que apresenta importantes atravessamentos do campo da Educação. PROCESSOS DE COLONIZAÇÃO E O EUROCENTRISMO Ao observar a história política e econômica do Brasil, sobretudo do período colonial, percebe-se que as relações intergrupais construídas se baseavam em poder e dominação. Essa perspectiva pode ser ilustrada pelos grupos étnico-raciais de índios e negros, que na história do desenvolvimento das sociedades e da formação de grupos, aparecem marcados por processos de aculturação e escravização (SAVIANI, 2008). Tanto indígenas, como negros, nessa matriz colonial, tiveram suas experiências de vida invisibilizadas. A colonialidade reconheceu esses sujeitos enquanto diferentes, no entanto, as relações estabelecidas entre esses grupos, especificamente, se construíram de forma assimétrica, estruturadas em um poder racializado e que resultou em uma sociedade hierarquizada, não apenas socialmente, mas também racialmente, em que a branquitude assume posições de privilégios em detrimentos dos outros grupos (VIANA et al., 2019). A apropriação e difusão dessas ideias racializadas impulsionaram a busca do homem pela exploração e pelo domínio, uma vez que tal concepção conferiu poder a um grupo isolado. O processo de hierarquização desenvolvido no Brasil colonial determinou aqueles que eram esteticamente, culturalmente, epistemicamente e racialmente superiores, onde o diferente, neste contexto, era relegado à inferioridade (VIANA et al., 2019). Assim, se estruturou na sociedade, um sistema de classificação de indivíduos baseado, mais especificamente, em padrões importados da Europa, concebida como centro do mundo. De acordo com Saviani (2008), a pedagogia tradicional traz uma visão essencialista de homem. Nessa concepção, o homem possui uma essência universal e imutável, onde, cabe à educação a missão de moldar existências que se distanciam desse modelo à essa essência universal que caracteriza e define o ser humano. Segundo a vertente religiosa, essa essência estava concentrada na perfeição humana, uma vez que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Entretanto, sabe-se que houve uma interpretação mais ampla desse essencialíssimo e o modelo de homem instituído adquire outras esferas para além da religiosa. No período colonial, os sujeitos tiveram suas diferenças reconhecidas, no 189 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) entanto, foram utilizadas como demarcador de inferioridade e elemento justificador da exploração sofrida. Percebe-se assim, que a raça foi um conceito estrategicamente construído, propagado pelo discurso social, com objetivos bem delineados na direção de separar, classificar, desmembrar e enfraquecer grupos sociais, favorecendo a criação do que Gomes (2012) chama de pensamento abissal. A ideia de pensamento abissal parte do pressuposto de que, ao eleger uma cultura dominante, têm-se por resultado, a criação de abismos. Segundo Gomes (2012), ao ser considerada modelo universal, pronta e acabada, a Europa Ocidental tornou-se o centro da sociedade e fabricou periferias, não só geográficas, mas também políticas, econômicas, culturais e raciais, separadas por abismos e divididas por lados, que em tese, não possuíam a menor possibilidade de contato ou convivência. Essa tendência, atualmente é nomeada como eurocentrismo e se manifesta como um instrumento de qualidade, usado para legitimar desde o conhecimento até as pessoas. Essa perspectiva, ao criar, por um lado, uma padronização e um protótipo de sujeito, com uma história única, induz, consequentemente, o caminho da invisibilidade para os que não atendem a norma, ou seja, os diferentes. Assim, pode-se fazer a leitura de que um homem branco, dotado de seu pertencimento ao grupo socialmente valorizado e assim, dominante, é naturalizado como modelo de ser humano, tendo suas características totalmente inclinadas aos padrões de aceitabilidade, tornando-se superior aos demais por via do fenômeno do branqueamento (MÁXIMO et al., 2012). A criação de um padrão de conhecimento, de uma estética ou racionalidade, produz um protótipo de sujeito que é único e universal. Tudo que não atende aos parâmetros definidores desse status, fica subordinado ao conceito de “outro”, que não é apenas diferente, mas também se torna símbolo de fracasso e inferioridade (ABRAMOWICZ; RODRIGUES; CRUZ, 2011). Segundo Abramowicz, Levcovitz e Rodrigues (2009), uma sociedade sustentada por modelos hegemônicos, determina regras e cria modos de subjetivação direcionados à obediência. Esse modo de operar, acaba por produzir padrões de aceitabilidade, de hábitos e condutas, que propaga o “mesmo” e condena o “diferente”. Nesse contexto e sob influência desse tipo de pensamento eurocêntrico são construídas as relações intergrupais, atravessadas por valores históricos, culturais, políticos, econômicos e sociais. A divisão da sociedade em hierarquias contribuiu para a manutenção de lógicas baseadas em poder, dominação e opressão, como pode ser visto no fenômeno do racismo, estruturado na concepção de raça. 190 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO CONCEITUANDO RAÇA Gomes (2012) argumenta que a ideia de raça se baseou, inicialmente, nas diferenças fenotípicas entre conquistadores e conquistados, durante o “descobrimento” do Brasil. Os fenótipos foram então, associados não apenas a diferenças físicas e estéticas, mas diferenças de ordem mental, cultural, sexual e de valor, que para negros e indígenas, era sempre de conotação negativa e subalterna. A ideia foi legitimada como um dos principais artefatos de exploração da América, pois as relações estabelecidas eram baseadas em poder e como tal, determinavam lugares de superioridade e inferioridade. Esse poder transcendia os traços fenotípicos e se tornou, rapidamente, uma potente ferramenta de poder político, econômico, cultural e epistemológico (GOMES, 2012). Nesse processo, as relações sociais estabelecidas entre os grupos, fundamentadas na ideia de raça, passaram a produzir novas identidades sociais. Essas identidades, baseadas em uma relação de poder, terminaram por estruturar a sociedade em hierarquias raciais, com papéis sociais bem definidos para negros e brancos. Dessa forma, o processo civilizatório foi arquitetado na ideia de raça, entendida como uma construção social que serviu como uma das estratégias de dominação adotadas (GOMES, 2012). Esse entendimento possibilita pensar que a concepção de raça parte de uma construção social e não biológica. Foi concebida com funções bem específicas, arquitetada para grupos bem delimitados e com alto poder de alcance, o que explicita um projeto civilizatório, em que existe toda uma estrutura que o sustenta, sendo a Educação, por muito tempo, uma dessas estruturas. EDUCAÇÃO, POLÍTICA E A PROBLEMÁTICA RACIAL De acordo com Saviani (2008), a escravização de negros foi abolida no Brasil, de forma projetada e por etapas. Em uma linha do tempo, tal movimento tem início com a Lei nº. 581, de 4 de setembro de 1850, que proibia a entrada de africanos escravizados no Brasil e traz como um grande marco, a Lei Áurea, proclamada em 1888, que decretava a abolição geral da escravização. Contudo, essa programação tinha como um de seus objetivos, substituir o trabalho escravo pelo trabalho assalariado, necessitando para este fim, a instrução. Assim como usaram as crianças indígenas como recurso para se ter acesso aos adultos e catequizá-los, as crianças negras também foram utilizadas como manobra do Estado, só que desta vez, em função de interesses econômicos. Nascidos após a Lei do Ventre Livre, as crianças negras “livres” eram inseridas em sistemas de instruções, também denominadas de escolas agrícolas ou fazendas-escolas, com o objetivo de tornarem-se mão-de-obra “qualificada” e 191 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) instruída, evitando assim, que cumprissem, o até então considerado, destino natural de vadiagem e subalternidade de seus semelhantes (SAVIANI, 2008). O desejo por liberdade, a conquista da cidadania, a possibilidade de direitos igualitários e de ser visto diferente da condição de inferioridade imposta, tornaram-se mais próximos da população negra no período pós-abolição, em 1888. Tais condições eram reinvindicadas por meio do acesso à educação, que tornou-se pauta prioritária entre as lutas, uma vez que a inserção no mercado de trabalho dependia diretamente da Educação, que no decorrer da história da humanidade, por diversas vezes foi negada aos negros (DOMINGUES, 2008). De acordo com Almeida e Sánchez (2016), a Educação atua na vida da população negra, nesse contexto social e histórico, com objetivos bem definidos. No primeiro momento, busca dificultar ou até mesmo impedir o acesso, de modo a preservar os privilégios da elite branca no que diz respeito à diferenciação social, mantendo assim as estruturas sociais racialmente hierarquizadas; como também utiliza, em segundo plano, práticas pedagógicas institucionais, de maneira estratégica, para disseminar valores próprios da cultura hegemônica e manter seu status. A exclusão dos negros no âmbito social e educacional tem caráter estrutural e pode ser exemplificado pela própria legislação. A lei Lei nº 1, de 14 de janeiro de 1837, que determina diretrizes para a Instrução primária, no seu artigo 3º, proibe de frequentar escolas públicas, tanto pessoas com doenças infectocontagiosas, como negros, sejam eles escravizados ou livres, nativos ou decorrentes do continente africano (ASPHE, 2005). De forma a complementar o estreitamento do acesso à instrução, também foram utilizados de recursos legais, para privar negros, do que atualmente é considerado um direito, o da Educação. Amparados pela Lei nº. 5.465, de 3 de Julho de 1968, as instituições de ensino médio agrícolas, bem como as de ensino superior de Agricultura e Veterinária, regidas pela União, teriam que reservar preferencialmente, 50% das vagas oferecidas, aos candidatos que fossem ou se declarassem filhos de agricultores, sejam eles proprietários ou não de terras, residentes da zona rural. Esta lei ainda estabelecia que mais 30% das vagas fossem reservadas para indivíduos que atendessem a esses mesmos critérios, mas que residissem em zona urbana, sem estabelecimentos de ensino médio (BRASIL, 1968). Em outras palavras, percebe-se que cerca de 80% das vagas em instituições escolares de ensino médio e superior estavam não apenas reservadas, mas sobretudo, destinadas à burguesia rural, que não era composta por negros, já que estes também eram impedidos da posse de terras. Os critérios estabelecidos davam conta de excluir qualquer possibilidade aos negros de ingresso às classes escolarizadas, reforçando o paradigma 192 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO excludente e opressor desenhado pelo modelo de pensamento estabelecido pelo racismo e operacionalizado por meio da Educação, em seus diferentes níveis, incluindo os anos iniciais, onde se encontram crianças ainda na primeira infância. RACISMO NA INFÂNCIA E SUA INFLUÊNCIA NA FORMAÇÃO DAS CULTURAS INFANTIS O racismo configura-se como um sistema de opressão, caracterizado pela produção de uma hierarquização racial, presente em diversos contextos sociais e culturais. Também pode ser pensado como uma ideologia que desumaniza indivíduos e se manifesta a partir de formas variadas, como por exemplo, a objetificação ou exclusão (LIMA, 2020). Historicamente, esse fenômeno atravessa a vivência de diversos grupos sociais, no entanto, devido ao processo de escravização, a população negra ainda é o grupo que mais enfrenta os efeitos desse problema. A abolição da escravatura, no século XIX, também contribuiu para esses processos, pois se deu de formas desiguais a nível mundial, gerando diferentes modos de interação com os negros. Com isso, no Brasil, o fenômeno passou a ser visto sob a ótica político-ideológica de uma suposta democracia racial, cujo efeito é a negação da existência do racismo (VAN DIJK, 2008). Diferente dos Estados Unidos, onde essa relação étnico-racial seguiu rumos mais radicais, no Brasil, as práticas racistas e de preconceito foram naturalizadas, assumindo formas diferentes e peculiares a cada contexto. Todo esse processo de construção do mundo social foi alicerçado pelo eurocentrismo, que operou como dispositivo que determinava lugares sociais. A lógica sempre foi disseminar referências brancas como padrão de aceitabilidade e em contrapartida, o negro teve seus corpos, identidades, valores, costumes, estética e subjetividades invadidos e inundados por referências negativas que o colocavam em posição de inferioridade. Tal condição sempre foi combatida com resistência, no entanto, o racismo enquanto teoria que desqualifica o humano, transborda até os dias de hoje e atravessa indivíduos cada vez mais cedo. De acordo com Cavalleiro (2014), crianças nos primeiros anos de vida já reconhecem e compartilham de espaços com diferenças étnico-raciais. Com isso, o processo de socialização na infância deveria ser mais observado, uma vez que as crianças já demonstram produção de significados sobre questões que compõem e atravessam o seu universo, no entanto, a autora aponta que essa questão é pouco abordada por estudos e pesquisas no Brasil. Segundo Oliveira e Abramowicz (2010), crianças aos 4 anos de idade conseguem expressar, a partir de suas vivências, a realidade social positiva e negativa dos grupos raciais. Nessa pesquisa, realizada em uma instituição de 193 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) Educação Infantil em São Paulo, as autoras analisam as práticas pedagógicas na instituição, dando maior ênfase a crianças negras. Os resultados mostram que na Educação Infantil, os bebês negros recebem menos atenção que os bebês de pele branca. O racismo também se manifesta nas brincadeiras, onde as crianças negras são sempre as empregadas domésticas e quando as crianças brancas não querem ter relações afetivas com a negras, como por exemplo, evitando brincar ou dar as mãos. As autoras afirmam que para essa faixa etária, as brincadeiras espontâneas são fundamentais para se analisar as relações afetivas e corporais, pois são nelas que pode-se evidenciar o racismo. Para além das brincadeiras, a discriminação racial na infância também aparece nos livros. A figura do negro na literatura é frequentemente relacionada a aspectos negativos, que minimizam a história de lutas e resistências desse povo e afirmam sua suposta inferioridade. Historicamente, essa representação do negro na literatura conta com a deturpação de sua imagem, da inteligência, dos seus costumes e do caráter. Embora atualmente tenha se percebido outras posturas de escrita para o público infantil, este é mais um argumento para se pensar nas práticas pedagógicas adotadas com crianças e as relações advindas delas (FARIAS, 2018). A escola, nesse processo, passa a ser considerada como uma instituição capaz de influenciar a construção da subjetividade, pois se apresenta como um espaço em que se aprende e compartilha não apenas conteúdos e saberes escolares, mas também valores, crenças, hábitos e preconceitos raciais, de gênero, de classe e de idade” (GOMES, 2002, p. 40). Assim, ao mesmo tempo em que se reconhece que a escola por vezes reproduz o preconceito racial, por outro ela vem sendo comumente reconhecida com uma dessas apostas no combate às desigualdades. Mudanças estruturais desse campo demonstra e reitera sua preocupação e compromisso para com a formação da cidadania e de uma sociedade que cultua valores direcionados à justiça social (SILVA et al, 2022). A Lei nº. 11.645, de 10 de março de 2008, por exemplo, estabelece e orienta as diretrizes e bases da Educação no Brasil e determina que seja incluído obrigatoriamente no currículo oficial da Rede de Ensino a temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena (BRASIL, 2008). A lei se apresenta como um instrumento legal de implantação para uma educação inclusiva, que atenda a todas as faixas etárias, visto que o racismo é percebido e vivenciado desde a primeira infância, cuja cor passa a compor as experiências de crianças na construção de suas respectivas culturas infantis. As culturas infantis são definidas por Sarmento e Pinto (1997) como um conjunto de crenças e representações, organizados em sistemas estruturados e 194 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO produzidos pelas próprias crianças, que são nessa perspectiva, reconhecidas pela capacidade de produção simbólica. Por esse ângulo, Santos (2014) argumenta que a criança não é mais vista como sujeito passivo na construção da realidade social e no processo de socialização, pelo contrário, ela participa ativamente de todo o processo de produção de sentido, se legitima como um ator social de pleno direito e contribuir na reconstrução cultural. Nesse exercício de produção, devem ser consideradas as condições sociais, as interações e os sentidos que as crianças dão ao que fazem. Assim, a pluralidade de contextos, somado aos diferentes sistemas de crenças, valores e representações sociais apontam para a existência de um sistema simbólico múltiplo e diverso, que não permite conceber uma única cultura infantil, mas culturas infantis (SARMENTO; PINTO, 1997). Para Barbosa (2014), às culturas infantis acontecem não apenas no campo das relações, em que ocorre o contato das crianças com os diversos grupos sociais, religiosos, étnicos e de gênero. O campo material, com seus elementos simbólicos também são igualmente importantes, pois propiciam a interação por meio de brincadeiras, livros, objetos da casa, animais ou mídias, que estão em constante transformação e com isso, permitem a recriação de contextos e de mundos. Do ponto vista do senso comum, esses entendimentos podem parecer distantes ou fantasiosos. Ao ler a realidade, sobretudo a realidade brasileira, não é difícil se deparar com a máxima social de que “criança não sabe de nada”, ou quando o próprio termo criança é substituído pelo termo “inocente”, o que sugere uma forma condensada dessa suposta incapacidade do sujeito infantil. Essas construções discursivas operam cada vez mais como instrumentos que deslegitimam a capacidade das crianças em construir seus universos e desresponsabilizam os adultos para com suas funções nesse processo. De acordo com Sarmento e Pinto (1997), as culturas infantis não são sistemas simbólicos fechados e/ou exclusivos do universo infantil e sim o oposto, caracterizam-se como sistemas permeáveis, em que as culturas dos adultos incidem efeitos nas culturas infantis. Segundo Delgado (2013), a produção das culturas se dá por meio da interação entre crianças, seus pares e os adultos, de forma peculiar à infância, mas ainda assim, conectadas com as manifestações culturais representadas e simbolizadas no mundo. Logo, se crianças nascem, crescem e se desenvolvem imersos em uma cultura racialmente hierarquizada, guiada por uma ideologia racista, que produz diferentes modos de tratamento para indivíduos, baseado em sua cor de pele, traços ou textura do cabelo, fica-se o questionamento: o que a sociedade ensina e o que a criança aprende? 195 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) Estas indagações nos fornecem caminhos para se pensar como as culturas infantis são permeadas pela lógica racial e quais os efeitos disso na vida das crianças, sobretudo, as crianças pretas. Torna-se importante refletir essas questões, pois comumente, as crianças pretas são associadas a elementos culturais negativos e com isso, a construção de sua subjetividade é invadida por estereótipos que a colocam em posições de inferioridade e torna o significado da raça um agravante para o seu desenvolvimento (BLANCHARD et al., 2018). De forma a concordar com tais proposições, Abramowicz, Levcovitz e Rodrigues (2009) afirmam que processos de exclusão contra crianças negras e pobres são frequentemente relatados no cotidiano escolar. Segundo as autoras, que reconhecem a escola como um importante agente de socialização, esses espaços são permeados por discursos de inclusão que, na verdade, excluem, dada sua forma diferenciada de lidar com as crianças. Para ilustrar essa realidade de exclusão, toma-se como objeto de comparação, os indicadores de desempenho escolar. As crianças negras, por exemplo, possuem mais reprovações e desempenhos escolares inferiores, quando comparadas às crianças brancas. Este cenário assinala como a instituição escolar pode operar como uma maquinaria racista de produção de uma hegemonia, que determina não somente modos de operar, como calar, sentar e copiar, mas também modos de brincar, pensar e ser (ABRAMOWICZ; LEVCOVITZ; RODRIGUES, 2009). Toda essa lógica pode ser traduzida a partir da vivência de meninos e meninas negras na sua relação com seu corpo. Depois da cor da pele, outro traço fenotípico que demarca o negro na sociedade é o cabelo. Para meninos, é prescrito desde muito cedo que cabelo crespo deve ser raspado. Já para meninas, esse mesmo cabelo precisa ser preso ou alisado, pois para ambos, é imposta a ideia de que seus cabelos são “feios” e “ruins”. Dessa forma, percebe-se a violação de corpos em função de um padrão hegemônico, que é especificamente, eurocêntrico. No que diz respeito a esses modelos hegemônicos, essa constatação não se restringe a raça ou etnia. Conforme aponta Kramer (2000), embora se perceba um avanço no desenvolvimento das sociedades, a origem da maioria dos crimes, genocídios e negligências cometidas contra a humanidade reside na explícita dificuldade em aceitar a pluralidade que constitui e ao mesmo tempo diferencia os sujeitos humanos. Para Sarmento e Pinto (1997), as crianças precisam ser compreendidas a partir da variabilidade de condições e contextos sociais que estão inseridas. Embora se reconheça e preserve suas individualidades, pensar a infância enquanto uma categoria social é considerar que as mesmas se diferenciam na estrutura social de acordo com classe, gênero, etnia e cultura, que juntos, compõem 196 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO fatores de heterogeneidade. Ao usar o recorte étnico, pode-se verificar que a vivência de crianças passa por infâncias distintas, que produz experiências diferentes para crianças brancas e negras. O racismo estrutural que assola a sociedade, têm dado indícios de sua presença nos mais diversos espaços de socialização, inclusive em espaços compostos por crianças, como escolas e dentro da própria família. Essa presença, além de gerar efeitos nas relações estabelecidas, pode deixar marcas não só nas crianças, como também nos pais e professores. Em um estudo realizado nos Estados Unidos com 76 mães negras, sobre a crença do papel da raça na escolaridade de seus filhos, prestes a ingressar no jardim de infância, 67% das participantes demonstraram alguma preocupação com a discriminação racial que seus filhos enfrentarão no contexto escolar (WILLIAMS et al., 2017). Esses resultados reiteram a necessidade de racializar ainda mais os debates no campo da Educação. Comumente, o campo educacional tem participado como uma importante frente no combate a formas de opressão presentes na sociedade, cujo objetivo reside em oferecer ambientes que promovam a emancipação política dos sujeitos e uma educação pautada na diversidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme apresentado, verifica-se que a história do povo negro, caminha, lado a lado com tentativas constantes de apagamento e distorções. Mostra-se, historicamente, uma narrativa contada pelo colonizador, que para além de capturar os corpos negros, tenta incessantemente aprisionar suas subjetividades e culturas em conceitos de baixo valor e posições de inferioridade. Esta é uma manobra de dominação, fundamentada em práticas e discursos sociais nutridos por concepções equivocadas de raça, que afetam sujeitos desde a infância. Ao usar o recorte étnico, pode-se verificar que a vivência de crianças passa por infâncias distintas, que produz experiências diferentes para crianças brancas e negras. O racismo estrutural que assola a sociedade, têm dado indícios de sua presença nos mais diversos espaços de socialização, sejam eles a família ou instituições como a escola, por exemplo. Essa presença, além de gerar efeitos nas relações estabelecidas, pode deixar marcas não só no campo objetivo, mas principalmente no subjetivo. Dessa forma, a articulação entre Infância, Racismo e Educação, fornece caminhos para se pensar e discutir a experiência das crianças frente à diversidade étnico-racial e a produção das culturas infantis. Tal articulação, além de produzir discussões importantes sobre como as questões raciais atravessam o cotidiano e a vivência das crianças, sobretudo as crianças negras, também podem ser 197 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) utilizados como aparato para a criação de intervenções políticas e pedagógicas contextualizadas, que leve em consideração não uma suposição adultocêntrica sobre as crianças, mas suas próprias vozes, que desde muito cedo, já conseguem falar por si mesmas, resistir e lutar. Essas explanações reiteram a necessidade de racializar ainda mais os debates, nos diferentes campos sociais. Comumente, o campo educacional, aliado a movimentos sociais, como o Movimento Negro, tem participado como importantes frentes de resistência e luta no combate a formas de opressão presentes na sociedade, motivados a construir ambientes que promovam a emancipação política dos sujeitos, em que suas singularidades sejam reconhecidas e suas diferenças celebradas, guiadas para uma sociedade edificada em valores de liberdade, dignidade, diversidade e respeito. REFERÊNCIAS ABRAMOWICZ, Anete; LEVCOVITZ, Diana; RODRIGUES, Tatiane Cosentino. Infâncias em Educação Infantil. Pro-Posições, Campinas, v. 20, n. 3, n. 60, p. 179-197, set.-dez. 2009. ABRAMOWICZ, Anete; RODRIGUES, Tatiane Cosentino; CRUZ, Ana Cristina Juvenal. A diversidade e a diferença na educação. Contemporânea, São Carlos, n. 2, p. 85-97, jul.-dez. 2011. AGUIAR, Márcio Mucedula. A construção das hierarquias sociais: classe, raça, gênero e etnicidade. Cadernos de Pesquisa do CDHIS, Uberlândia, n. 36, p. 83-88, 2007. 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Especialista em Ensino de Língua Portuguesa e Matemática em uma perspetiva Transdisciplinar pelo Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), Especialista em Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa e Língua Inglesa pela Faculdade Futura, Especialista em Educação Inclusiva e Neuropsicopedagogia Institucional e Clínica pela Faculdade Venda Nova do Imigrante (FAVENI), Especialista em Docência e Gestão na Educação à Distância pela Faculdade Venda Nova do Imigrante (FAVENI). Licenciado em Letras Língua Portuguesa e Língua Inglesa pela Universidade de Pernambuco e Licenciado em Pedagogia pelo Centro Universitário Venda Nova do Imigrante (UNIFAVENI). Professor concursado da rede estadual de Pernambuco na área de Língua Portuguesa. [email protected]. 2 Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Especialização em Neuropsicopedagogia pela Faculdade Campos Elíseos e Mestranda em Educação pela Universidade de Pernambuco. E-mail: [email protected]. 3 Formado em Letras (UPE), Gestão de turismo (IFPE), especialista em Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa (UPE), Gestão e Produção Cultural (FAFIRE). Mestre em educação pela (UPE). Atualmente é mestrando pelo PROGEL Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (UFRPE) e doutorando em Ensino na Renoen (UFRPE). E-mail: [email protected]. 4 Licenciatura Plena em Química (UFRPE), especialista em mídias na educação pela UFRPE, mestra em Educação pela Universidade de Pernambuco (UPE) e atualmente é doutoranda no (RENOEN/UFRPE). E-mail: [email protected]. 5 Graduação em Licenciatura em Pedagogia (FALUB). Especialização em Educação Especial (JOAQUIM NABUCO) e em Educação em Direitos Humanos. (UFPE) 201 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) como uma ferramenta sofisticada da modernidade do capitalismo global para arquitetar a sociedade numa perspectiva eurocêntrica. Nesse contexto do imperialismo cultural, a literatura e os saberes desses povos foram excluídos dos cânones formados pelas instituições do poder, que controlam aquilo que a sociedade deveria ou poderia saber, trazendo efeitos irreversíveis para a formação cognitiva da nossa cultura, moldada na perspectiva do colonizador. Contudo, na literatura contemporânea, observamos produções artísticas que estabelecem uma verdadeira desobediência epistêmica (MIGNOLO, 2007) e reivindicam a condição de humanidade desses povos. Esse é o caso da escritora indígena Auritha Tabajara, que é poeta, cordelista e contadora de histórias. Considerando a necessidade de descolonizar nossas mentes e que a escola e a literatura possuem um importante papel nesse processo, desenvolvemos esse roteiro de aula buscando caminhos para emancipar sujeitos e educá-los numa perspectiva crítica, mediante o debate e a reflexão de gênero, raça, etnia e sexualidade que a obra de Auritha Tabajara pode motivar nesse contexto. Portanto, temos como principal objetivo propor, por um viés comparativo, uma experiência de leitura literária que articule o letramento étnico-racial no Ensino Médio e ressignifique na percepção dos alunos a memória, a identidade e a história fragmentada desses povos originários. AURITHA TABAJARA NA SALA AULA: DECOLONIZANDO PERSPECTIVAS DE GÊNERO, RAÇA, ETNIA E SEXUALIDADE Segundo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), “ao componente Língua Portuguesa cabe, então, proporcionar aos estudantes experiências que contribuam para a ampliação dos letramentos’’ (BRASIL, 2018, p. 65). Nessa perspectiva, apontamos o Cordel de Auritha Tabajara como uma alternativa de trabalho nas aulas de língua materna, especificamente no eixo de ensino de literatura, capaz de ampliar letramentos e o senso crítico dos estudantes. Enquanto proposta para descolonizar pensamentos, a literatura indígena apresenta resistências e resgata uma série de discussões em pauta na contemporaneidade. Assim, por esse viés, discutiremos questões étnico-raciais, de gênero e sexualidade presentes na produção de Auritha Tabajara, estabelecendo uma relação com o ensino de literatura e com uma proposta pedagógica e crítica na sala de aula quanto à produção indígena. Nesse sentido, observamos no cordel: [...] num distante interior, Tangido por vento norte, Do balanço de uma rede, Ou como sopro de sorte, Nasceu uma indiazinha, Chorando bem alto e forte. 202 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO Criou-se desde infante, No berço de sua gente, Ouvindo belas histórias, De sentido inteligente. [...] (TABAJARA, 2018, p. 7) O texto apresenta a menina como uma jovem indígena e coloca essa garota como alguém vai em busca de conhecer outros lugares. O texto é explícito quando determina a qual grupo étnico-racial pertence a protagonista. Além disso, observamos no trecho lido que a personagem viveu boa parte de sua vida, compreendendo infância e adolescência, na aldeia com seus iguais. A relevância de entendermos que a história aponta para uma mulher indígena, com vivência em um contexto sociocultural de resistência e reafirmação identitária, aponta para discussões contemporâneas sobre a ausência de pessoas com as origens da personagem nos espaços de poder e nos cânones literários trabalhados na educação básica. A partir disso, entendemos que o ensino crítico relaciona-se com a forma como se ensina em sala de aula, seus objetivos, seu papel na sociedade e a habilidade de agir reflexivamente. Nessa perspectiva, precisamos perceber como o texto de Auritha Tabajara colabora com a ampliação da criticidade e quais as discussões sociais ele constrói. Nesse direcionamento, observamos que a primeira discussão colocada no cordel é a identidade. Auritha, sistematicamente, tem sua identidade fragilizada, tanto pela forma como as pessoas a veem na sociedade, como nos processos formais exemplificado a partir do registro do seu nome: Uma menina saudável, Com nome a definir, Vovó chamou Auritha, Um ancestral lhe contou ‘’Aryrei’’ está a vir. Mas, para registrar, Seguiu a modernidade Com nome de Francisca, Pois, para a sociedade, Fêmea tem nome de santa Padroeira da cidade. (TABAJARA, 2018, p. 9) A partir dos versos do cordel, observamos como a identidade da personagem é desfigurada em prol do poder mandonista do homem branco e da cultura do colonizador. A partir desse olhar, observamos que além dessa denúncia, o 203 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) eu-lírico centraliza suas expressões a partir das experiências vividas. Isso significa que a brasilidade se manifesta na representação do modo de viver da personagem, cuja exposição discursiva da atmosfera pós-colonial impõe a desorganização da mentalidade mandonista dos proprietários da terra, pois ao decidir sair da aldeia e enfrentar o mundo lá fora, o eu-lírico elabora um nacionalismo às avessas, por tender a valorizar a representação do indígena e da mulher, deslocando o poder dos senhores patriarcais, através de recursos próprios da criação literária. Nessa perspectiva, segundo Cosson (2006, p. 15): ‘’o nosso corpo é a soma de vários outros corpos. Ao corpo físico, soma-se um corpo linguagem, um corpo sentimento, um corpo imaginário, um corpo profissional e assim por diante”. Assim, observamos que a literatura cumpre a função social de sensibilizar os leitores para a vida em sociedade. A partir dessa experiência, observamos no cordel o crescimento e amadurecimento da personagem com perspectivas e anseios humanos: ‘’A menina foi crescendo Aprendeu a caminhar. Com nove meses de vida Tudo sabia falar. Dizia: ‘’Quando eu crescer, Quero aprender a curar.’’ (TABAJARA, 2018, p. 10) Segundo Pinheiro (2018, p. 17), ‘’para o poeta, a função essencial da poesia está em que “possamos nos assegurar de que essa poesia nos dê prazer’’. Dessa forma, a emoção e a sensibilidade causadas pela história da personagem nos comove ao mesmo tempo em que nos emancipa a partir de reflexões críticas. Diante disso, a poesia na sala de aula tem o poder de desconstruir nossas mentes ao mesmo tempo que nos causa desejo de justiça diante de enredos como o do cordel analisado, em que observamos o desnude de diversos tipos de opressões e violências que circundam o eu-lírico, conforme ilustra os trechos abaixo: Um cabra meio de longe, Desde cedo a observava. Veio se achegando aos poucos, Fez que uma fruta comprava, E, como um lobo faminto, Para a mocinha olhava. Disse: ‘’Oh, moça bonita Qual a lua no nascente, 204 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO Seu sorriso me alegrou, És para mim um presente. Vejo em ti serenidade, Além de linda, atraente’’. [...] Vamos comigo, menina, Eu sou um homem do bem. Em cara terás de tudo, Até uma mãe também’’. Mas, Auritha respondeu: ‘’Não quero ir com Ninguém’’ Eram aqueles olhares Bem em sua direção, E voltados ao seu corpo, Que lhe davam aflição. Pois era mesmo bonita De acelerar o coração. (TABAJARA, 2018, p. 17, 20) Observamos que Auritha se depara com uma experiência talvez inexistente na aldeia em que vivia. A objetificação do corpo das mulheres é uma herança do colonizador que construiu sociedades a partir da cultura do estupro e do sexismo. Além disso, mesmo depois de ser mãe e ter relacionamentos heterossexuais, o seu entendimento como LGBT irá influir na construção subjetiva da sua identidade: [...] Auritha tinha um segredo Que não podia contar. Somente pra sua avó Se encorajou a falar. Não gostava de meninos, E não sabia lidar. (TABAJARA, 2018, p. 14) É nesse contexto que a percebemos como o cordel aponta para a sua construção identitária, mostrando os diversos eixos interseccionais que atravessam o eu-lírico e implicam nas suas relações consigo mesmo e com a sociedade. É por essa perspectiva que acreditamos na relevância desse texto na sala de aula, tendo em vista a riqueza de questões sociais abordadas. Auritha luta pela sua liberdade assim como seus ancestrais lutaram para impedir que o colonizador os dominasse. 205 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) UM ROTEIRO POSSÍVEL DE ABORDAGEM NA SALA DE AULA Conhecendo o horizonte de expectativas: a cultura e a representação das identidades dos povos indígenas na perspectiva do outro Momento 1: Para iniciar a abordagem desse roteiro na sala de aula, começamos com a ambientalização dos alunos em relação à temática. Esse primeiro passo tem como objetivo avaliar o conhecimento e o imaginário dos alunos acerca da identidade indígena. Solicita-se, a princípio, que os participantes da aula formem grupos, discutam entre si e desenhem em uma cartolina em branco como como eles concebem tais imagens/representações em suas mentes acerca do povo indígena. Após discutir em grupos separados, o professor solicita a esses grupos que socializem suas considerações e apresentem os desenhos feitos toda a turma. Em seguida, após essa socialização, o professor inicia um debate com o grupo mediado pelas seguintes perguntas: a) Por que vocês idealizam a cultura e a identidade indígena dessa forma? b) A maneira como vocês observam esses sujeitos nas mídias sociais influenciam nessa construção imagética? c) Vocês conhecem textos literários que narram acerca da identidade indígena? Se sim, quais? Momento 2: O objetivo desse momento é possibilitar que os alunos observem na arte como a identidade e a cultura indígena é representada na visão do outro, e se essa representação corrobora com aquilo que eles colocaram em exposição na atividade anterior. Portanto, iniciamos esse momento com a leitura da Carta de Pero Vaz de Caminha: Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram [...] A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de roque de xadrez. E trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põe estorvo no falar, nem no comer e beber (CAMINHA, 2019). A princípio, o professor solicita que a leitura do trecho seja feita de forma individualizada, solicitando que o aluno descreva em uma folha de papel como os alunos observam esse indígena descrito no texto. Em seguida, o professor 206 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO exibe o clipe “Brincar de Indío”, da cantora Xuxa Meneghel (figura 1). Figura 1: Performance “Brincar de índio”, de Xuxa Meneghel Fonte: Cyntia Xuxario Oficial, 2016. Após a exibição do vídeo, o professor abre espaço para o debate e reflexões, a partir de alguns questionamentos, podendo retornar ao vídeo em alguns momentos: A imagem do povo indígena representada no trecho da carta de Pero Vaz de Caminha, possui alguma relação com a imagem do povo indígena retratada no clipe e pensada por vocês nos desenhos da aula anterior? b) Vamos pensar acerca dos sujeitos que idealizaram tais imagens do povo indígena. Qual o lugar deles na sociedade? Que espaços habitam? c) Pela reação dos indígenas que aparecem no clipe, vocês acham que eles se sentem realmente representados por essas imagens feitas sobre a cultura e a identidade deles? d) Vocês já viram alguma música, texto literário ou filme que narram as identidades e as culturas indígenas por eles mesmos? (nesse momento, o professor pede que os alunos peguem o livro didático de língua portuguesa, e tentem encontrar algum texto ou expressão artística feita por algum indígena, para levantar o debate e a reflexão acerca do que os alunos pensam sobre escassez ou até na inexistência da voz desses povos no material didático deles). Ampliando e rompendo o horizonte de expectativas: identidade e cultura indígena escrevividas em cordel por Auritha Tabajara Considerando que vivenciar a poesia constitui um modo de viver o mundo a partir do ver, sentir, experimentar e projetar entendemos que como arte, ela pode direcionar nossa visão social e fazer com que observemos culturas e 207 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) identidades por outras lentes, a partir da reflexão e da experiência estética propiciada pela interação entre texto e leitor. Portanto, os momentos a seguir figuram uma mediação de experiências de leitura que entram em contraponto com a construção da imagem idealizada da cultura e da identidade indígena apontada pelo texto e vídeo analisados nos momentos anteriores. Isso se justifica, pois, a escrita de Auritha Tabajara configura-se como uma escrita de um eu-mulher-indígena-LGBT que expõe sua vivência identitária como forma de emancipar e reescrever uma narrativa contada a partir de um único ponto de vista: um ponto de vista branco, ocidental e colonizador. Momento 3: Esse momento constitui da apresentação da autora e da obra. Dessa forma, o iniciamos a partir da exibição do vídeo Conheça o trabalho da cearense Auritha Tabajara (figura 02): Figura 2: Conheça o trabalho da cearense Auritha Tabajara Fonte: Diário do Nordeste, 2021. Em seguida, o professor fala sucintamente acerca da autora e da obra, identificando juntamente com os alunos elementos textuais e imagéticos contidos na capa, nas orelhas e no prefácio do livro, que falam sobre o percurso de Auritha como uma escritora. Além disso, é importante que o professor justifique a escolha da obra e da autora para aquele momento, como forma de “crítica do presente, como ativismo, militância e politização” (DANNER; DORRICO; DANNER, 2018, p. 149). Em sequência, passamos para o próximo momento. Momento 4: Esse é o momento de leitura compartilhada do texto literário. Considerando que no processo de mediação da literatura de cordel na sala de aula deve ser sempre treinada antes de vir a público dividimos a sala em três 208 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO grupos e dividimos o cordel conforme três momentos distintos identificados no texto. Isso se justifica, pois muitos alunos e alunas podem ter pouca familiarização com o ritmo e as peculiaridades do ato de oralizar um texto poético. A seguir, encontra-se a divisão temática estabelecida e que deve ser dividida em três grupos: 1) O início, em que a voz indígena retrata a questão identitária como mulher indígena (págs. 6-15); 2) O meio da narrativa poética, em que a voz indígena apresenta a sua jornada nas grandes cidades e a busca pelo reconhecimento como mulher (págs. 16-25); 3) E o fim, que traz a luta da voz indígena contra a violência e o seu entendimento como LGBT (págs. 27-40); Após treinarem a leitura em três grupos distintos, o professor organiza a sala em uma grande roda e os alunos irão oralizar o cordel conforme a divisão estabelecida. Após a leitura, todos os grandes grupos iniciam um debate, de acordo com sua percepção do texto poético. O professor mediará a discussão conforme as inquietações e destaques feitos pelos alunos acerca das imagens que o cordel possibilitou. O professor também deverá questionar nesse momento quais reflexões o cordel de Auritha Tabajara possibilitou em contraponto com a imagem da identidade e da cultura indígena observadas no bloco anterior. Momento 5: Oficina de isogravura e de escrita de depoimento Esse momento configura-se como a etapa de reescrita do imaginário e de expressão criativa. Na primeira aula, os alunos tinham colocado em um cartaz e exposto para a turma a percepção deles acerca da identidade e da cultura indígena. Agora, os mesmos grupos que tinham se dividido para ensaiar a leitura do cordel, escreverão em conjunto um depoimento de experiências relatando as mudanças de percepção acerca da identidade e da cultura indígena após o contato com a obra de Auritha Tabajara. Após a escrita, uma pessoa de cada grupo lê o relato para turma. Posteriormente, após a socialização do relato, os alunos irão produzir uma imagem que simbolize a sua experiência com a literatura indígena. Como forma mais acessível de produzir algo semelhante a xilogravura, o professor indica uma técnica conhecida como Isogravura que utiliza materiais recicláveis como forma alternativa de produzir o desenho, conforme explica o vídeo exposto no formato da figura 03: 209 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) Figura 03 – Xilogravura alternativa Fonte: Gobert, 2019. Após a conclusão da isogravura, os alunos irão expor suas obras artísticas nos corredores da escola. No fim, o professor reúne a turma para escutar as experiências dos alunos em relação à literatura indígena, as mudanças que essa experiência trouxe para seus aprendizados e para as práticas culturais no cotidiano. CONCLUSÃO A literatura indígena se estabelece como um marco de reescrita de um eu e de um nós-político subjugado e impedido historicamente de contar suas próprias narrativas. Especificamente neste trabalho, a literatura de Auritha Tabajara constitui-se como a autoafirmação de um eu-mulher-LGBT-indígena que utiliza elementos estéticos próprios do texto literário para emancipar a figura do grupo étnico-racial ao qual ela está inserida. Portanto, a partir da experiência de leitura aqui construída, observamos que o contato e a experiência estética com os cordéis da autora podem provocar a transgressão de imaginários e mudar a percepção da realidade do leitor, justamente pela obra evocar um pensamento interseccional e ser constituída pela escrita de um eu que vivencia experiências até então contadas na história pelo ponto de vista do outro. Nesse sentido, do ponto de vista da construção da abordagem didática acreditamos no desenvolvimento de reflexões críticas sobre o processo de inserção dessa literatura na educação básica como forma de garantir o acesso de jovens do Ensino Médio à verdadeira histórica da formação sócio-histórica brasileira e portanto garantindo a execução da Lei nº. 10.639 que tornou obrigatório o ensino das cultura africanas e indígenas na escola básica como forma 210 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO de combater o racismo estrutural e o apagamento dessas culturas. Além disso, adotamos como critérios para a escola da obra de Tabajara o engajamento social da autora em questões como a identidade, o empoderamento feminino e o explícito posicionamento em favor das populações originárias que foram perseguidas, escravizadas e apagadas da história social do país. Logo, entendemos que a possibilidade de contato com o texto de Tabajara possibilitou a ampliação de nossos conhecimentos docentes sobre os povos originários, nos aproximou da realidade ancestral dessas populações e da luta diária que é travada pelo reconhecimento e espaço de fala em uma sociedade repleta de racismos e eurocentrismos. Por fim, apontamos para a necessária contribuição e sensibilização de leitores/as críticos de literatura indígena e de cultura indígena a partir da produção das xilogravuras e da leitura e discussão em sala do cordel proposto em nossa oficina didática. REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF, 2018. CAMINHA, Pero Vaz. A carta de Pero Vaz de Caminha. Editora Vozes, 2019. COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006. CYNTIA XUXARIO OFICIAL. Xuxa canta “Brincar de índio” em vários momentos. Youtube, 11 jan. 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=sfdL4bRIwng. Acesso em: 27 nov. 2021. DANNER, Leno Francisco; DORRICO, Julie; DANNER, Fernando. A estilística da literatura indígena brasileira: a alteridade como crítica do presente – sobre a noção de eu-nós lírico-político. Revista Letras, [S.l.], v. 97, jul. 2018. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/letras/article/view/56721. Acesso em: 27 nov. 2021. DIÁRIO DO NORDESTE. Cordel indígena: Conheça o trabalho da cearense Auritha Tabajara. Youtube, 23 mar. 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nKGlD053bWI&t=91s. Acesso em: 27 nov. 2021. GOBERT, Sandra. Sandra Gobert - Pensarte e artesanato. Xilogravura alternativa (isogravura) - 2019. Youtube, 21 mai. 2019. Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=sfdL4bRIwng. Acesso em: 28 nov. 2021. LUGONES, María. Colonialidade e gênero. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org,). Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020, p. 120-139. MIGNOLO, Walter D. Histórias locais, projetos globais: coloniedade, saberes 211 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. 1. ed. rev. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. PINHEIRO, Helder. Poesia na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2018. TABAJARA, Auritha. Coração na aldeia, pés no mundo. Lorena: UK’A Editorial, 2018. 212 DEBATES EDUCACIONAIS NO MOVIMENTO NEGRO DOS ESTADOS UNIDOS NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX: A PERSPECTIVA DA AFRICAN BLOOD BROTHERHOOD (1919-1924) Luan Kemieski da Rocha1 INTRODUÇÃO: QUE ESTADOS UNIDOS É ESSE? Na virada do século XIX para o início do XX, os Estados Unidos estavam vivendo as consequências da Guerra Civil. Entre elas, uma das principais eram as dinâmicas raciais que transformavam-se ativamente. A falta de perspectiva e decepção com a realidade que enfrentavam, no momento em que parecia que conseguiriam se integrar a sociedade estadunidense2, gerou uma série de 1 Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em História pela Universidade Federal do Paraná. Professor de História na rede estadual do Paraná. E-mail: [email protected] 2 Entre os anos de 1861 e 1865, os Estados Unidos atravessaram uma violenta guerra civil que envolveu como partes beligerantes de projetos capitalistas, de um lado, os interesses capitalistas do Norte, e os capitalistas latifundiários do Sul. Estes latifundiários, que controlavam os governos dos estados do Sul, levaram a cabo um processo de secessão em relação ao restante do país, sob o receio de que o desenvolvimento capitalista penetrasse nessa região e terminasse por abolir a escravidão e realizar uma reforma agrária, como ocorria no Norte e no Oeste dos Estados Unidos. Assim, contra os movimentos de secessão, os republicanos do Norte invadiram o Sul como forma de manter a unificação do país e concluir sua penetração e estabilidade do desenvolvimento capitalista que vinha sendo realizado. Em 1865, o general Robert E. Lee depunha suas armas, o Sul rendia-se e a escravidão era abolida. Com o fim da Guerra Civil, o país encontrou-se totalmente dividido e, portanto, seu desafio agora era a unidade. Contudo, isso era uma solução extremamente complexa que teria que lidar com os problemas econômicos que o Sul enfrentava e, principalmente, com o lugar que a população negra liberta ficaria perante a sociedade em geral. Começava o período da Reconstrução (1865-1877). Uma série de tensões inundou o país sobre quais medidas era necessárias por acontecer, alguns acreditavam que os donos de escravos não recebessem nenhum tipo de indenização e que a população negra se beneficiasse dos direitos básicos da cidadania estadunidense, outros já acreditavam que essa população de libertos tivessem nada mais que sua liberdade. Durante esse período de anseios o presidente Abraham Lincoln é assassinado e levado ao patamar dos pais fundadores. No ano de 1876, foram realizadas eleições presidenciais nas quais concorreram Rutherford B. Hayes e Samuel J. Tilden. Recebendo a maioria dos votos, seria Tilden quem ascenderia à presidência dos EUA. Contudo, mediantes manobras legislativas e judiciais, o republicano Hayes seriam quem subiria ao cargo de presidente. As consequências dessas disputas políticas pelo projeto da nação terminariam no famoso Compromisso Hayes-Tilden em 1877, na qual em troca do cargo de presidente, o republicano Hayes retirou as tropas federais do Sul e entregou o controle político e econômico da região, mais uma vez, aos sulistas brancos escravistas. Desta maneira, devido à manobra eleitoreira de Hayes e dos republicanos, a consolidação do projeto do Norte estadunidense 213 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) dilemas que a população negra enfrentaria. Após o período de 1877, os capitalistas do Norte haviam se desenvolvido com uma grande concentração de poder econômico e político em suas mãos. Posteriormente ao tratado Hayes-Tilden, a economia do Sul, sua agricultura, indústria, mineração e transportes, foram sujeitos ao desenvolvimento acelerado do capital do Norte. As décadas de 1880 e 1890 trouxeram uma nova etapa para o capitalismo nos EUA. Como resultado da concentração crescente e constante da riqueza da nação e recursos econômicos as mãos de um círculo de grandes capitalistas. Alguns já ricos, ficaram riquíssimos após a Guerra Civil. E durante a primeira década do século XX, o capital financeiro logrou monopolizar pontos chaves da indústria, transporte e comércio no país, bem como suas fontes de matérias-primas. Houve a união entre banqueiros e empresários para a obtenção de grandes lucros e, consequentemente, a ampliação de seus negócios. As grandes companhias, na época geralmente controladas por famílias, adquiriram tamanhos descomunais. Não surpreendentemente, expandiram-se e monopolizavam a produção, comprando e tirando os negócios das mãos de concorrentes ou levando-os à falência (JUNQUEIRA, 2018, p. 135). Era o período dos Rockfeller, na distribuição e controle de petróleo; dos Carnegie e Frick no aço; dos Morgan nos bancos; dos Swift na indústria bovina; dos Vanderbilt, dos Harriman e Hill nas ferrovias. Ficaram super ricos com o poder de decidir preços para fornecedores, controlar a matéria-prima, o transporte e regular o comércio. Período em que a ideologia do self-made men ascendeu, pois essas famílias eram tidas como exemplos daqueles que surgiram do nada e, com esforço e inteligência, souberam crescer com as oportunidades que o país lhe dava. Influenciando a população, incluindo a comunidade negra com essas ideias. Dentro de tal conjuntura, uma urbanização crescente começava a aparecer no Norte dos EUA já na década de 1890. Nesse meio urbano, formava-se uma crescente classe média que refletia uma nova sociabilidade. Essa nova forma de viver, das grandes cidades, tinha um caráter dúbio para os valores tradicionais norte-americanos: ao mesmo tempo que se louvavam as promessas materiais de uma economia industrial madura, temiam-se as desigualdades profundas geradas pelo monopólio. Competiam, a profunda crença nos direitos da propriedade, que se aliava aos influentes interesses da indústria, e a também acabou por não ter sido concluída nos estados do Sul. Aqui, não foi realizada a reforma agrária, e as sobrevivências da escravidão e do feudalismo não somente foram mantidas como até mesmo fortalecidas. A população negra, que tinha conseguido direitos civis importantes entre o período de 1865-1877, foram novamente relegados a condição de “casta inferior” e tiveram quase todos os seus direitos políticos suprimidos, incluindo o direito ao voto. 214 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO enorme crença na livre concorrência e nas oportunidades da “Terra da liberdade” (FERNANDES; MORAIS, 2018, p. 155-156). O imenso crescimento econômico dos Estados Unidos dependia de uma mão-de-obra massiva, uma das soluções encontradas foi a imigração. A partir de 1880, os EUA instalaram agências de turismo na Europa para atrair imigrantes, com o objetivo de induzi-los ao trabalho nas fábricas. Conglomerados de pessoas, vindos de diversas regiões do globo, chegaram ao “país da oportunidade” por diversos motivos, um deles é a crise que assolava os seus países de origem e as promessas de uma vida melhor representada na propaganda estadunidense com a industrialização. O governo dos EUA encorajava a imigração e permitia que as grandes companhias contratassem estrangeiros. Entre 1880 a 1920, cerca de 22 milhões de imigrantes desembarcaram nos diversos portos pelo país. Chineses, filipinos, russos, italianos, judeus, húngaros, poloneses, gregos etc., foram alguns desses (JUNQUEIRA, 2018, p. 145). Chegando no novo país, estabeleceram-se nessas grandes cidades ao redor de suas indústrias e que tinham suas demandas. Desorientados por essa mudança, recebendo salários irrisórios e condições trabalhistas pífias, assim como alojamentos com condições miseráveis, essa população decidiu optar pela proximidade com seus conterrâneos, evitando também o tratamento preconceituoso da população estadunidense. Assim, surgiam bairros famosos como Chinatown, Japantown, Little Italy e Littley Hungary. Foi por meio das dominações dos pontos chaves do Sul, que a riqueza desta região foi drenada ao benefício de Wall Street, e a industrialização junto a ascensão das grandes metrópoles foram possíveis. A comunidade de interesses entre os industriais-financistas do Norte em conjunto aos latifundiários do Sul nesse período foi ainda mais fortalecida. Os resultados para a população negra foram uma tremenda opressão. Du Bois (2014, p. 48, tradução nossa) descreveu o efeito do capital financeiro sobre o povo negro no seio da nação: “O eco do imperialismo industrial nos Estados Unidos foi a expulsão do homem negro da democracia americana, sua sujeição ao controle de casta e à escravidão assalariada. Esta ideologia foi triunfante em 1910”. Durante a década de 1890, os estados do Sul começaram a decretar uma série de leis repressoras destinadas a suprimir totalmente os direitos civis da população negra nessa região, como por exemplo o voto. Entre 1895 e 1909, o Sul inteiro suprimiu o direto ao voto dos negros por restrições injustas e ilegais, e decretou uma série de leis ‘Jim Crow’ que transformaram o cidadão negro em uma casta subordinada (DU BOIS, 2014). Os anos também testemunharam o ressurgimento do chamado Código Negro3, do terror racial com a Ku 3 Uma ferramenta jurídica utilizada na forma da lei para manter a população negra em 215 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) Klux Klan e grupos supremacistas brancos. Nesse período, os chamados “Novos Negros” compunham os intelectuais que debatiam as várias estratégias de resolução para o “problema da raça”, desde a integração social dessas pessoas, até formas de combate aos linchamentos, a violência policial e ao fim do racismo estrutural4 que assolava o país mesmo após o fim da escravidão. Dentro desses, estavam militantes do partido socialista da época, imigrantes caribenhos que se instalaram nos EUA, afro-americanos que fizeram parte do fenômeno da Grande Migração5, veteranos da Primeira Guerra Mundial, nacionalistas, Pan-Africanistas etc. Alguns dos nomes desses intelectuais são Booker T. Washington, W.E.B. Du Bois, Hubert Harrison, Marcus Garvey, Cyril Briggs, entre outros. O propósito deste capítulo é o de apresentar esses debates que estavam acontecendo no período, principalmente, com o pano de fundo da educação. Durante a virada do século XIX até a Primeira Guerra Mundial, o movimento negro organizado estava ligado a um pequeno segmento da classe média intelectualizada e que foi expressa na figura de Booker T. Washington e seus projetos educacionais. A visão política de Washington estava relacionada à utilização da educação como um forma de integração da população negra na sociedade estadunidense e de ascensão social. Este, teve embates críticos com a comunidade negra e recebeu diversas advertências de outros intelectuais como Du Bois, que valorizava a educação em uma perspectiva de formação pessoal e intelectual do sujeito, distanciando-se da interpretação de Washington que estava muito mais ligada ao mercado de trabalho. Durante essa conjuntura, tivemos também a figura de Garvey que, influenciado por Washington, remodelava os moldes de uma educação que fizesse sentido para o povo negro, ligado ao orgulho racial, empreendedorismo e pan-africana. Nesse contexto de pluralidade, procuramos demonstrar a perspectiva da organização chamada African Blood Brotherhood (ABB). Esta, foi uma organização secreta e radical, de libertação do povo negro, fundada em 1919 pelo jornalista imigrante caribenho Cyril Valentine Briggs em Nova York. O historiador Minkah Makalani caracteriza-a como a primeira organização radical dos EUA desde a pós-emancipação (MAKALANI, 2004). Ela foi liderada por intelectuais-ativistas afro-caribenhos no Harlem, os quais baseiam suas experiências condições semelhantes a da escravidão. 4 Racismo estrutural aqui, quer dizer, que o racismo decorre e molda as relações políticas, econômicas, jurídicas e familiares da estrutura social, estando ligada às peculiaridades históricas da formação social (ALMEIDA, 2019, p. 33-37). 5 Foi o movimento em que milhares de indivíduos negros se redirecionaram para as cidades nortenhas dos EUA, devido às más condições de vida e segregação racial que prevaleciam no Sul, lembrando que isso não caracteriza que no Norte essas relações não eram visíveis, e ao boom industrial da Primeira Guerra Mundial. 216 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO coletivas em formações socialistas e nacionalistas negras para articular uma tendência política distinta daquela então conjuntural. Dentro da organização, os seus integrantes traziam no programa e nas ações a ideia de raça e classe através da combinação de elementos do marxismo com a ideologia da primazia racial enquanto categoria de análise da situação dos negros (MATTOS, 2018, p. 146). Para eles, a questão racial e a luta de classes eram vistas como complementares. Valorizando um radicalismo racial enquanto um “natural” e valioso passo ao radicalismo de classe. A entidade recorria a elementos de primazia e orgulho racial em suas ações e em seu programa, junto a fundamentos marxistas para materializar as condições dos negros e negras no mundo. Dentre essas noções de orgulho racial estava a disseminação de uma história negra e o confronto da chamada “educação alienante” que exaltava o homem branco e apagava os feitos da população preta (BRIGGS, 1987a). Já com o marxismo, eles associavam os dilemas e problemas dos afrodescendentes com a exploração capitalista/imperialista. Dessa forma, seria necessário o fim desse sistema e a sua substituição por outro que não fosse fundado na exploração de humanos uns pelos outros. A partir disso, a ABB buscou a realização de grupos de estudos que vissem a construção da história negra e confrontassem a sua realidade racista. Seus estudos se davam na chamada PEF (People’s Educational Forum), localizada no Harlem. Nossa fonte para tal artigo é a revista The Crusader, principal meio de propaganda da organização e onde eles expõem também suas interpretações educacionais no contexto dos Estados Unidos do início do século XX. QUEM ELES CRITICAVAM E O PORQUÊ? “O Negro nos Estados Unidos está tentando o impossível? Ou pode reverter as lições da História?” (BRIGGS, 1987b, p. 1043, tradução nossa). Através dessa passagem podemos começar imaginando o papel que a ABB trazia para si na conjuntura do movimento negro. Este, é um artigo de Franklin Peters, contido no The Crusader, intitulado “Martelando em Gibraltar”, que debatia, segundo eles, um fenômeno que estava acontecendo dentro do movimento negro dos EUA, a incansável procura de soluções para o “problema do negro” que não davam resultados efetivos para a população. Nesse texto, criticava-se duas linhas políticas e ideológicas dentro desse chamado movimento negro, uma perspectiva mais assimilacionistas, que buscava a luta através do sistema de justiça dos EUA; e outra que partia de uma ala que buscava um nacionalismo negro mais exacerbado, fechando-se para uma solidariedade com outras pessoas. Esse texto fazia alusão ao estreito de Gibraltar e ao mar mediterrânico e atlântico que se chocava com o rochedo massivo, porém, não produzia avanços territoriais, 217 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) limitando-se à rocha. “As concepções errôneas e falaciosas sobre nossas pautas nunca podem trazer a solução. O Negro na América está martelando Gibraltar, e ele pode continuar martelando até que cada martelo se estilhasse em pedaços” (BRIGGS, 1987b, p. 1043, tradução nossa). Entretanto, A ABB não se via como um desses movimentos que seguiam martelando um propósito impossível. A identificação deles com a rocha de Gibraltar vinha com um outro significado. Seguia o sentido da liderança que representava a construção de uma cultura negra para a população negra. Mais adiante, na edição de maio de 1921, conseguimos visualizar um artigo de Theo Burrell intitulado Cultura Negra para Negros, que tinha como objetivo argumentar justamente as ideias que o título trazia. Parte disso, estava ligada a construção e retomada da História Negra “perdida”. Esse texto desenvolve-se para debates de grandes feitos que a população negra realizou, até que o estreito de Gibraltar é mencionado como uma localidade guia para astrônomos visualizarem as estrelas. Um farol que poderia liderar os indivíduos em uma densa névoa do desconhecido representado no céu. Através desta interpretação, a ABB vai apoderar-se e se auto intitular o guia da população negra. Em seu programa, isso ficou representado na analogia de um mar tempestuoso, na qual a organização seria os lemes do navio que libertaria a raça. A raça sem um programa é como um barco no mar sem um leme. Está absolutamente a mercê das intempéries. É golpeada aqui e ali e em uma tempestade está fadado a tropeçar. É em uma situação difícil como essa que a raça Negra tem estado pelos últimos cinquenta anos e mais que se passaram. Raramente sabe-se o que está procurando e nunca se formula um plano inteligente e viável de encontrar o que se procura. Até mesmo em instâncias raras quando se sabe o que quer. É por se encontrar em uma condição infortuna como está e para fornecer um leme ao navio Negro do Estado - uma força de direção definitiva - que o programa a seguir adaptado pela African Blood Brotherhood está aqui para oferecer uma consideração para outras organizações negras e de raça no geral (BRIGGS, 1987c, p. 1249, tradução nossa). Partindo dessas considerações, é necessário salientar a imaginação histórica e o pensamento político que a população negra estava envolvida na época, isto é, a do Movimento do Novo Negro. Este é um fenômeno da virada do século XIX para o XX, que surge a partir de diversos processos que ocorreram na história, nesse caso, dos Estados Unidos, e vão desembocar na ascensão de uma nova geração de ativistas e lideranças na luta contra o racismo. O professor de Harvard, Henry Louis Gates (1988), caracteriza essa corrente como uma figura de linguagem que combina os anseios do negro nas dinâmicas de história, tempo, passado e patrimônio, junto a uma ressignificação da classificação racial “negro”. Isso se deu na forma da “autonegação” de um 218 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO chamado “Velho Negro”, esse, representado por uma memória ligada a escravidão, aos linchamentos, a um ser sem história, pacífico e que não conseguiu acabar com os males do escravismo, a segregação e suas consequências. Dessa forma, deveria surgir um chamado “Novo Negro”, aquele que viria para lidar com essa contradição do “Velho Negro” e acabar definitivamente com as feridas do racismo. O movimento do novo negro teria o aglomerado das mais diversas vertentes e ideologias políticas que abraçavam as ideias do “Novo Negro”. Portanto, desde nacionalistas, liberais, até integracionistas, socialistas, conservadores, separatistas etc., com táticas das mais diversas que iam das artes, cultura, até mesmo a utilização do trabalho como ascensão social, a educação, entre outros. O historiador Chad L. Williams (2007) nos relembra que o movimento do novo negro estava respondendo as convulsões locais e globais ocasionadas pela Primeira Guerra Mundial e suas consequências, a migração negra do sul dos Estados Unidos para o norte junto a imigração afro-caribenha, os movimentos revolucionários internacionais com destaque para os ocorridos na Rússia e na Irlanda, o crescimento da imprensa negra radical, a emergência de uma série de novas organizações militantes radicais. Combinando, esses fatores inspiraram a diversidade política ideológica e movimentos culturais caracterizados pela auto-organização racial, consciência diaspórica e internacional, identificação social com as massas negras, e um compromisso com a autodefesa contra a violência racial branca. Interpretação essa de que os líderes e métodos das lutas anteriores estariam desatualizados no contexto do pós-guerra. A principal figura de disputa da ABB com relação ao ramo educacional estava relacionada ao que eles chamavam de uma “educação alienante”. Quer dizer, uma educação pautada na exaltação do homem branco que apagava os feitos da população negra” (BRIGGS, 1987a, p. 18). Para eles, ainda mais prejudicial do que o linchamento, estava um “perverso” e “malicioso” sistema de educação em voga nas escolas dos EUA, onde a raça branca era exaltada e a Negra depreciada. As mentes jovens, segundo eles, eram ensinadas que o progresso, cultura e facilidades, para se autogovernar, são inerentes da raça caucasiana, a pele branca e a religião Cristã. O negro era referido com base na escravidão. As crianças eram ensinadas das glórias de Roma, Grécia, mas nada da Ethiopia, Egito e Meroé. Ademais, esse sistema educacional do homem branco não só apagava as glórias antigas da raça negra, mas também as conquistas modernas (BRIGGS, 1987a). Nesse sentido, o The Crusader propunha uma remodelação historiográfica que atendesse uma história verdadeiramente global, ou ao menos, que não apagasse os feitos negros. O editorial “Race Cathecism” complementa essa linha, no formato de perguntas e respostas, apresenta a seguinte visão sobre a raça negra: 219 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) Como você se considera em relação a sua raça? Sentimento de unidade. O que é isso? O sentimento que a raça negra de todas as raças é a mais favorecida de Musas, Poesia e Arte, mais possessa de qualidade como honra, coragem e inteligência. Quais são os deveres da raça? Amar a raça acima de si mesmo e colocar os interesses em comum acima dos individuais. Como você pode atingir tais objetivos? Espalhando o Patriotismo Racial, combatendo a educação alienante, escolhendo industrias racializadas como negras ao invés de outras; Por você tem orgulho de sua raça? Porque nas veias da humanidade não existe sangue mais generoso do que o nosso (BRIGGS, 1987a, p. 13). Dilemas esses que o periódico buscava materializar em sua própria construção, portanto, não apenas seria necessário a mudança na concepção historiográfica e educacional, como também apresentava essas histórias da população negra, exibia figuras negras importantes desde antigamente, até sua contemporaneidade. As capas da revista são uma amostra dessa relação, conforme figura 01: Figura 1 - Capa da edição comemorativa do dia de ação de graças com Grace Fowler Fonte: Biblioteca Pública de Nova York, 2022. 220 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO Retomando as críticas que a ABB fazia as linhas políticas dentro do movimento negro. Eles acabaram por entrar em embates também com perspectivas educacionais que alimentavam uma ascensão social dentro das estruturas capitalistas. A ABB estava no meio da conjuntura de reorganização da raça e nos embates de qual o melhor caminho a seguir para a libertação negra. Na medida que eles acreditavam que essa luta necessitava de planejamento através de uma estrutura democrática, para que se fizesse oposição a práticas pequeno burguesas de outras organizações do movimento do Novo Negro. Mesmo com críticas a essas outras sociedades, eles não viam problema na construção de uma frente única que ignorasse esses interesses de classes opostos. Para Makalani (2004, p. 198), o erro da ABB foi visualizar essa conjuntura como um meio de unidade racial que apagasse os conflitos da comunidade negra em prol de uma sociedade baseada na agenda da classe trabalhadora. A existência de organizações da classe trabalhadora negra no norte urbano não negava a histórica classe média negra que estava ligada mais a ideologia do “velho negro”. Com o movimento do novo negro novas condições surgiram e tornaram as diferenças de classe como algo crítico na maneira de formar um movimento social. Por volta de 1921 em diante, a ABB começava a se estabelecer como uma força no Harlem. Seus membros começaram a pautar debates e enquadrar questões críticas que confrontavam a comunidade negra, aprofundando-se no próprio corpo social e proporcionando uma maior influência entre essa comunhão. Entretanto, mesmo com um maior estabelecimento, a ABB continha problemas de organização. Tal contexto movimentava diversas disputas por ideias que iam desde o papel do ensino para a população negra ingressar no mercado de trabalho, a criação de um método educacional para a consciência crítica da realidade, a função do Estado e do nacionalismo como forma de combate ao colonialismo, até as discussões em torno do que deveria ser tomado como forma primária, a raça ou a classe como forma de análise das condições da sociedade e de sua transformação. A African Blood Brotherhood, nesse contexto, segundo Clifton Hawkins (2000, p. 336-337, p. tradução nossa) “propôs uma ideologia abrangente e coerente que unisse tanto as filosofias da ‘primazia racial’ e da ‘primazia classista’”. Seu projeto educacional tinha essas bases. O FÓRUM EDUCACIONAL DA ABB Com a influência do contexto da época, a ABB uniu a ideologia da primazia racial com uma perspectiva anticapitalista e socialista, pois entenderam que a dinâmica da estrutura de classes estava ligada à raça. O orgulho racial que ela 221 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) busca produzir encontrava-se encadeada ao antirracismo e a autodeterminação dos povos. Por exemplo, no primeiro editorial da revista The Crusader chamada “Africa for the Africans”, contrapõe-se a ideia racista e imperialista de governos que reivindicavam a noção de que certos povos, nesse caso os das colônias, não conseguiriam governar a si próprios. No artigo, remete-se a história de países como Egito, Etiópia, Benin e outros estados africanos anciões para opor-se a essa ideia. Sendo um texto de crítica ao imperialismo e colonialismo, junto ao aporte ideológico construído pela modernidade capitalista de maneira binária, tal qual na época, de “superioridade” e “inferioridade” entre povos, a revista postula um pensamento de trocas entre povos: “nenhum governo pode negar a autodeterminação dos povos sob o pretexto de que existem populações ‘superiores’ e ‘inferiores’ [...] e a principal desculpa da Europa para sua invasão na África é a de que eles estão levando a civilização para os africanos”. Ora, se eles estão levando a civilização, porque a educação é negligenciada - quando não negada, suas ações não têm validade para levantar o nível econômico e moral dos negros. Não há escolas governamentais nem uma única instituição administrada pelo governo que busque a formação dos nativos nas artes ou na indústria. Não, o grande promotor da civilização não é a conquista ou a subjugação dos povos como fez Roma, na qual os imperialistas modernos reclamam para si. Não é a conquista militar ou conquista por qualquer meio de força. O grande promotor da civilização é a troca” (BRIGGS, 1987a, p. 4-5). Partindo dessa perspectiva, eles retomam a história do Egito, Fenícia e Grécia, como amostras de civilizações que construíram suas sociedades através das trocas, “não era esse o caso dos tempos antigos? Os egípcios, fenícios, e gregos não espalharam e reuniram o melhor de cada civilização diferente através da troca? (BRIGGS, 1987a, p. 5, tradução nossa). Tal perspectiva, inclusive, seria apropriada por filósofos, intelectuais como o próprio Samir Amin e Cheik Antah Diop, para explicar a história dessas civilizações, ou até mesmo historiadores mais recentes que ao estudarem e debaterem a chamada “História Antiga”, buscam caracterizá-la num processo de integração com o mediterrâneo como objeto central. O The Crusader foi criado com o objetivo de dar suporte a uma História Negra e desafiar uma educação que exaltasse o homem branco, trazendo um orgulho racial para a população negra. Artigos como Alien Education, The Truth About Africa, Race Cathecism, The African origins of the Grecian Civilization; poemas quais, “Why I am proud” e “The Call”; e outros textos como provérbios africanos, principalmente, nas primeiras edições da revista, são exemplos da interiorização do orgulho racial como uma medida necessária para se combater o racismo nos EUA, como também no globo. 222 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO Através dessas perspectivas, os membros da ABB buscaram um novo passo e decidiram seu próprio programa para tratar a opressão racial e a exploração de classe em conjunto. Isso materializou-se na People’s Educational Forum (PEF) em 1917, um grupo de estudos público que ocorria nos domingos e que debatia as particularidades de sua conjuntura através da chave de análise da raça junto ao marxismo. Liam as obras clássicas de Marx e Engels, patrocinavam encontros, debates e leituras de textos. A PEF foi utilizada para discutir a utilidade do socialismo para a comunidade negra e desafiar o histórico da SPA. Dentro dessas análises, que são pioneiras no que viria a ser a ABB futuramente, estava a necessidade de levar o debate organizacional para lugares fora do eixo norte e industrial, dando foco em trabalhadores agrícolas; deveria se condenar explicitamente a injustiça racial e os linchamentos; dar aos negros maior visibilidade em suas publicações; encorajá-los a entrar em organizações socialistas e lutar para admitir trabalhadores negros em sindicatos; explicar como os negros se beneficiariam do socialismo; a necessidade de dar suporte a atividades independentes de radicais negros como a PEF; assim como afirmar a libertação negra. Esses grupos de estudo aconteciam geralmente no Harlem Lafayette Hall, com convidados importantes para a época, como W.E.B. Du Bois, o antropólogo Franz Boas, ativistas políticos nacionalistas, líderes sindicais e socialistas, como Elizabeth Gurley Flynn e Algernon Lee, caracterizando uma ferramenta organizacional que transformava os trabalhos intelectuais em uma organização prática. Vendo-se como um território democrático de apresentação de ideias, os encontros aconteciam através de uma troca aberta entre o palestrante e o público, com a plateia também ostentando o apelido de intelectual. Para muitos, o Fórum era um “campo de batalha intelectual” onde era preciso “lutar por suas ideias”. Sua estrutura desafiava o elitismo da liderança negra da classe média e as estruturas organizativas autocráticas que procuravam ditar um programa aos liderados, o que muitas vezes agravava alguns de seus convidados. Quando Du Bois participou como palestrante no local e sugeriu que os afro-americanos tomassem um meio termo entre o capital e o trabalho organizado, ele foi criticado como equivocado. O que levou ao sociólogo as seguintes palavras, “eu não vim aqui para fazer esse tipo de troca. Eu pensei que vocês queriam aprender algo, porém vocês já sabem de tudo.” (MAKALANI, 2004, p. 45, tradução nossa). Na primavera de 1920, o Fórum organizou uma série de conversas sobre socialismo, religião e as noções de um império negro, articuladas por Marcus Garvey. Convidados como Chandler Owen, o reverendo Egbert Ethelred Brown, e socialistas como Elizabeth Gurley Flynn e David Berenberg estavam entre os 223 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) presentes, trazendo a discussão da utilidade do socialismo para a comunidade negra. Por meados de 1921, com os acontecimentos de Tulsa6 e o reconhecimento nacional da ABB, a PEF foi reatualizada e remodelada, no que viria a se chamar de HEF (Harlem Educational Fórum). Embora o Fórum tivesse como propósito servir a múltiplos objetivos, era visto primordialmente como uma ferramenta organizacional, e assim como a PEF, convidaram palestrantes a garantiram lugares públicos como espaços políticos. Propuseram a vinda de A. Phillip Randolph e o presidente da NAACP, na época, Walter Francis White. Lá, eles conseguiram angariar apoio para os refugiados de Tulsa. Através dessas atividades, a ABB conseguiu formar laços de solidariedade profundos no Harlem. Começavam assim a introduzir um novo debate nas relações educacionais do movimento negro dos EUA. CONSIDERAÇÕES FINAIS A história African Blood Brotherhood foi central para o entendimento e o desenvolvimento da tradição radical negra nos Estados Unidos e na Diáspora. Apesar de ter sido um grupo pequeno, em comparação a alguns de seus contemporâneos, a sua importância histórica transcende a sua existência formal como uma organização. Esse estudo tentou perceber suas atividades intelectuais e políticas, sua forma organizativa e ideológica, junto ao movimento social e contexto histórico do qual faziam parte, esforçando-se para entender como eles contribuíram para os desdobramentos e políticas alternativas, dentro dos Estados Unidos, do movimento negro e do próprio radicalismo no início do século XX. Frutos da Diáspora Africana, seus membros, da parte central da organização, imigraram para uma nação que trazia complexidades novas para suas vidas. A partir desse estabelecimento, criaram novas sociabilidades e entraram no fluxo do Movimento do Novo Negro. Quando chegaram aos Estados Unidos, entraram nos debates contemporâneos e visualizaram que as organizações coexistentes como a SPA, NAACP, UNIA, unidos aos seus programas políticos, apresentavam-se como inadequados para a luta pela Libertação Negra. Entraram nos debates de orgulho racial, nacionalismo e marxismo. Através desses contatos, obtiveram inspirações para produzir seu projeto político de maneira única. Compreenderam dinâmicas novas de se entender a opressão racial e as complexidades de se lutar contra esses processos. 6 Ano em que ocorreu o evento histórico do massacre de Tulsa, onde supremacistas brancos atacaram o distrito negro de Greenwood. A ABB estava localizada nesse conflito, ajudando aqueles que sofreram com o ataque na angariação de dinheiro e relocação de recursos. 224 EDUCAÇÃO E ABORDAGENS ÉTNICO-RACIAIS I NTERDISCIPLINARIDADES EM D IÁLOGO A ABB, fazendo parte de um processo histórico maior, realizou trabalhos que desenterravam o passado pré-americano da população negra, ao juntar novamente fragmentos da linha histórica negra e a contribuição feita por essa população através do mundo e do tempo. Eles confrontaram estereótipos racistas que retratavam o negro como um homem sem passado, sem história e, portanto, indigno de um lugar em condições de igualdade na mesa da civilização. O mito do passado negro apenas como um escravo é agora destruído. E na destruição deste mito, o negro vê a si mesmo emergindo como herdeiro de uma rica tradição histórica com antecedentes que remontam ao nascimento da civilização. Esta literatura trouxe para a consciência dos afro-estadunidenses e para um número cada vez maior de brancos as páginas perdidas da história africana e americana, a grande contribuição feita pelo negro para a democracia e civilização. REFERÊNCIAS: ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro/ Polén, 2019. BIBLIOTECA PÚBLICA DE NOVA YORK. The Crusader; Onward for Democracy; Upward with Race. Thanksgiving Crusader Magazine; Onward for Democracy; Upward with Race. [Cover page]. In: The New York Publica Library Digital Collections: The Crusader. [S. l.], 2022. Disponível em: https:// digitalcollections.nypl.org/items/510d47df-a13d-a3d9-e040-e00a18064a99 . Acesso em: 28 mar. 2023. BRIGGS, Cyril. Race Cathecism. In: HILL, Robert A; BRIGGS, Cyril (orgs). The Crusader: a fascimile of the periodical. v. 1. New York: Garland Publishing, 1987a. BRIGGS, Cyril. The Crusader: a fascimile of the periodical. v. 2. New York: Garland Publishing, 1987b. BRIGGS, Cyril. The Crusader: a fascimile of the periodical. v. 3-6. New York: Garland Publishing, 1987c. DU BOIS, W. E .B. Dusk of Dawn: An Essay Toward an Autobiography of a Race Concept. Nova York: Oxford University Press, 2014. FERNANDES, Luiz Estevam; MORAIS Marcus Vinicius. Os EUA no século XIX. In: KARNAL, Leandro et al. História dos Estados Unidos: Das Origens ao Século XXI. 3 ed. São Paulo: Contexto, 2018. GATES, Henry Louis. The Trope of a New Negro and the Reconstruction of the Image of the Black. Representations, n. 24, p. 129-155, out. 1988. HAWKINS, Clifton. Race First versus Class first: An Intellectual History of Afro-American Radicalism, 1911-1928. 2000. 675f. Tese (Doutorado em Filosofia da História) – Universidade da Califórnia, 2000. 225 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) JUNQUEIRA, Mary Anne. Estados Unidos: Estado Nacional e Narrativa da Nação (1776-1900). São Paulo: Edusp, 2018. MAKALANI, Minkah. For the liberation of black people everyw here: the African Blood Brotherhood, black radicalism, and pan-african liberation in the new negro movement, 1917-1936. 2004. 320f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade de Illinois, 2004. MATTOS, Pablo de Oliveira de. The Silent Hero: George Padmore, Diáspora e Pan-Africanismo. 2018. 372f. Tese (Doutorado em História Social) – Departamento de História. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2018. WILLIAMS, Chad L. Vanguards of the New Negro: African American Veterans and Post-World War I Racial Militancy. The Journal of African American History, v. 92, n. 3, p. 347-370, 2007. 226 POSFÁCIO Escrevo esse texto em 2023. Parece que o Brasil voltou a ter certa “normalidade” depois de alguns anos de “loucura”. E então, podemos voltar a conversar e discutir assuntos que haviam sido deixados de escanteio, uma vez que absurdos eram proferidos e cometidos diariamente e as atenções eram voltadas para esse “universo paralelo da loucura”. Quando entramos nesse “mar de absurdos”, ainda havia assuntos mal resolvidos na sociedade brasileira. Educação e abordagens étnico-raciais estão entre eles, uma vez que ainda não rompemos alguns paradigmas de educação elitista e eurocêntrica. Os textos que esta coletânea apresenta foram produzidos (grande maioria) nesse contexto de absurdos que vivenciamos nos últimos anos. Ainda que o Governo Federal e parte significativa da população civil se negassem a discutir as questões étnico-raciais brasileiras, estudantes e docentes do país continuaram seus trabalhos e avançaram nessas discussões, pois elas ganharam fôlego nas últimas décadas, pois sabemos que o avanço alcançado é pequeno diante do abismo de séculos de negação do assunto. A mudança de paradigma da educação eurocêntrica para uma mais abrangente, que englobe a história de negros, pardos e indígenas brasileiros, que coloquem as mulheres desses grupos em destaque, ainda é um desafio, uma luta diária nas salas de aula e instituições de ensino do país. Os autores dos textos dessa coletânea contribuem para que mudanças cada vez mais profundas aconteçam na educação brasileira. Essa coletânea traz como tema a interdisciplinaridade, tão discutida nos planos pedagógicos, mas nem sempre colocada em prática nas escolas. Nas questões étnico-raciais, a interdisciplinaridade é de suma importância, visto que os paradigmas que envolvem esse assunto, precisam ser enfrentados de todas as formas. Nesse “universo paralelo” que o Brasil mergulhou nos últimos anos, vimos que temas como racismo, história da África e Afro-brasileira, história Indígena, cotas raciais, educação quilombola e indígena, religiões de matriz africana, dentre outros temas, passaram a ser “demonizados”. Ainda assim, os autores presentes nessa coletânea desenvolveram trabalhos que iam contra essa perspectiva eurocêntrica. E agora que esse período passou, espera-se que novos rumos e grandes avanços sejam alcançados. A criação dos ministérios da Igualdade Racial e dos Povos Indígenas são indicativos de que avanços podem ser esperados para o futuro. Mas o trabalho diário em salas de aula e instituições de ensino, que nunca 227 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) parou apesar das resistências, é fundamental para que esses avanços se consolidem na cultura da sociedade. E os trabalhos desses autores são fonte de inspiração para novos trabalhos. A educação étnico-racial continuará pauta de inúmeras discussões, mesmo se o país estiver de ponta a cabeça, pois é necessário avançar em muitas questões. Ser sensível a esse problema já nos coloca a frente de muitos outros que, sequer, o enxergam. Desenvolver ações para que mudanças reais aconteçam, é um avanço ainda maior e mais significativo. O que não se pode é parar ou normalizar os absurdos. Parafraseando Renato Russo, “sempre em frente, não temos tempo a perder”. A educação étnico-racial já perdeu em muitos momentos da história, não pode perder mais. É preciso seguir em frente, sempre! Laryssa da Silva Machado Doutoranda em História pela UFES, historiadora, professora de história da rede municipal de Marataízes-ES, especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional e em Educação Profissional e do Trabalho pelo IFES, mestre em História pela UFES, bolsista da Fapes, membro do Laboratório História, Poder e Linguagens e do Instituto Histórico e Geográfico de Itapemirim e Marataízes. 228 SOBRE OS ORGANIZADORES Manuel Alves de Sousa Junior Doutorando em educação na UNISC e Mestre em Bioenergia pela UniFTC Salvador (2011), Possui graduação em Licenciatura em Ciências Biológicas pela Universidade Católica do Salvador (2002), graduação tecnológica em Segurança do Trabalho pela UNIASSELVI (2016), Graduação em Licenciatura em História pela UNIJORGE (2020), MBA em História da Arte pela Estácio (2020), Especialização em Confluências Africanas e Afro-brasileiras e as relações étnico-raciais na educação (2022) e Especialização em Análises Clínicas pela UCSal (2004). Atualmente é servidor público federal efetivo como professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA) campus Lauro de Freitas/BA. Possui experiência na docência do ensino superior no IFBA, e em diversas Instituições de Ensino Superior privadas, tendo atuado também na docência em de cursos técnicos e outras modalidades, sobretudo no IFBA, além de cursos de Formação Inicial e Continuada e cursos de extensão. No IFBA tem plena atuação em ensino, pesquisa, extensão e gestão. Possui capítulos de livros, artigos publicados em periódicos e também diversas publicações em eventos. Organizador principal dos Livros “Questões raciais: educação, perspectivas, diálogos e desafios”, “Relações étnico-raciais: reflexões, temas de emergência e educação” e “Foucault, arte e educação: ensaios possíveis”. Membro do Grupo de Pesquisa Identidade e Diferença na Educação CNPq/UNISC e do Observatório de Educação e Biopolítica - OEBIO. Editor assistente da Revista Ensaios ISSN 2175-0564. Membro do NEABI - IFCE campus Umirim. E-mail - [email protected]. Tauã Lima Verdan Rangel Estudos Pós-Doutorais desenvolvidos no Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Sociologia Política da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), em 2019-2020 e 2020-2021. Doutor (2015-2018) e Mestre (2013-2015) em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Especialista Lato Sensu em Direito, nas seguintes 229 M ANUEL A LvES DE S OUSA J UNIOR | T AUà L IMA v ERDAN R ANGEL (O RGANIzADORES ) áreas: Direito Constitucional (2019-2020); Direito do Consumidor (2019-2020); Direito da Infância, da Juventude e do Idoso (2019-2020); Direito Administrativo (2016-2018); Direito Ambiental (2016-2018); Direito de Família (2016-2018); e Práticas Processuais, Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro (2014-2015). Especialista Lato Sensu em Docência e Gestão do Ensino a Distância (2019-2020) e Gestão Educacional e Práticas Pedagógicas (2017-2018). Bacharel em Direito (2007-2011). Integrante do Grupo de Pesquisa Direitos Fundamentais e Vice-Líder do Grupo de Pesquisa em Pessoas com Deficiência e Inclusão Social/UFF e do Grupo de Pesquisa em Política Criminal/UFF. Coordenador do Grupo de Pesquisa Faces e Interfaces do Direito: Sociedade, Cultura e Interdisciplinaridade no Direito, vinculado à Faculdade Metropolitana São Carlos/campus de Bom Jesus do Itabapoana-RJ. Autor dos livros: Escritos Jurídicos em tempos de Pandemia (Editora Iole, 2022); Escritos Jurídicos sobre Vulnerabilidade (Editora Iole, 2022); Direito em Emergência (volume 2) (Editora Pimenta Cultural, 2021); Escritos Jurídicos sobre Sexualidade (Editora Iole, 2021); Escritos Jurídicos sobre Direitos Humanos (Editora Iole, 2021); Escritos Jurídicos sobre Meio Ambiente (Editora Iole, 2021); Escritos Jurídicos sobre Segurança Alimentar (Editora Iole, 2021); Escritos Jurídicos em Tempos de Covid-19 (Editora Iole, 2020); Direito em Emergência (Editora Pimenta Cultural, 2020); Segurança Alimentar e Nutricional na Região Sudeste (Editora Bonecker, 2019); e Fome: Segurança Alimentar e Nutricional em pauta (Editora Appris, 2018). Coordenador da coleção “Novos Temas de Direitos Humanos Fundamentais” (volumes 1, 2 e 3), lançados pela Editora Clássica (2022). Coordenador da coleção “Direitos Humanos Fundamentais em Pauta” (volumes 1, 2, 3, 4 e 5), lançados pela Editora Edições e Publicações (2021). Organizador, do livro Debates sobre Direitos Humanos Fundamentais (volume 03), lançado pela Editora Gramma, em 2017. 230