SINTOMA E FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO: RELAÇÕES
POSSÍVEIS PARA A PSICANÁLISE?
SYMPTOM AND PSYCHOSOMATIC PHENOMENON: POSSIBLE RELATIONSHIPS FOR
PSYCHOANALYSIS?
SÍNTOMA Y FENÓMENO PSICOSOMÁTICO: ¿POSIBLES RELACIONES PARA EL PSICOANÁLISIS?
Daniel Ribeiro Branco*
1
Regina Perez Christofolli Abeche
**
2
Débora Patrícia Nemer Pinheiro***
3
RESUMO
Sintomas que se apresentam ao psicanalista na atualidade, em particular
aqueles que têm o corpo como via expressiva, constituem-se como estímulo
à discussão teórica e metodológica de sua prática. Este artigo propõe-se a
discutir os fenômenos psicossomáticos como uma possível solução para a
economia libidinal do sujeito. Para isso, discorre sobre o sintoma para além
da histeria, sua relação com a produção de sentido, ou sua falta, articulando
com o conceito lacaniano de real. O que permitiu concluir que, mesmo
escapando a um sentido, o fenômeno psicossomático tem uma função para
o sujeito, com sua genética vinculada à constituição pulsional do corpo,
como solução congelada, mas não se tratando de puro efeito de um suposto
déficit orgânico e, portanto, sujeito aos efeitos do método psicanalítico.
Palavras-chave: Sintoma. Corpo em psicanálise. Psicossomática. Fenômeno
psicossomático.
ABSTRACT
Symptoms that are presented to the psychoanalysis today, in particular
those that have the body as route of expression, constitute as a stimulus to
Texto recebido em 18 de fevereiro de 2020 e aprovado para publicação em 13 de julho de 2020.
* Doutorando em Gestão Ambiental no Programa de Pós-Graduação em Gestão Ambiental, Universidade Positivo (Pgamb/
UP), mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (PPI/UEM), especialista em Psicanálise de Freud a Lacan,
psicólogo, atua na área clínica e docência. Filiação institucional: Bolsista CAPES no Pgamb/UP. Endereço: Rua Santa Catarina,
65, sala 519b – Água Verde, Curitiba–PR, Brasil. CEP: 80620-100. E-mail:
[email protected]
** Doutora em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, graduada em Psicologia pela UEM, professora
supervisora da área clínica e professora no programa de pós-graduação na área de concentração Epistemologia e Práxis em
Psicologia, do Departamento de Psicologia da UEM; coordenadora do projeto de pesquisa Os sintomas na clínica atual: uma
leitura em Freud. Filiação Institucional: Universidade Estadual de Maringá. Endereço Postal: Avenida Doutor Gastão Vidigal,
310, casa 37 - Condomínio Residencial Everest, Zona 08, Maringá-PR, Brasil. CEP 87050-440. E-mail:
[email protected]
***Doutora em Psicologia Clínica - Método Psicanalítico pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), mestra
em Psicologia da Infância e Adolescência pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), graduada em Psicologia pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), responsável técnica do Centro de Psicologia Aplicada da UFPR, psicanalista atuante,
membro do Comitê de Ética do Hospital de Clínicas (HC/UFPR), preceptora do Programa de Residência Multiprofissional do
HC/UFPR (2015-2018), atendimento clínico no HC/UFPR (1994 a 2016), atuação profissional nos seguintes temas: clínica
psicanalítica, psicanálise e cultura, epistemologia psicanalítica. E-mail:
[email protected]
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the theoretical and methodological discussion of its practice. This article
proposes to discuss psychosomatic phenomena as a possible solution for the
subject’s libidinal economy. For this, it discusses about the symptom beyond
hysteria, its relation with the origination of the meaning, or the lack of it,
articulating with the Lacanian concept of real. It allowed that, even running
off of a meaning, the psychosomatic phenomenon has a function for the
subject, with its genetics linked to the pulsional constitution of the body,
a frozen solution, but not being a pure effect of a supposed organic deficit
and, therefore, subject to the effects of the psychoanalytic method.
Keywords: Symptom. Body
Psychosomatic phenomena.
in
Psychoanalysis.
Psychosomatics.
RESUMEN
Síntomas que se presentan hoy al psicoanalista, en particular los que
tienen el cuerpo como una ruta expresiva, constituyen un estímulo para la
discusión teórica y metodológica de la práctica psicoanalítica. Este artículo
propone discutir los fenómenos psicosomáticos como una posible solución
para la economía libidinal del sujeto. Para esto, discute el síntoma más
allá de la histeria, su relación con la producción de significado, o su falta,
articulándose con el concepto lacaniano de lo real. Lo que nos permitió
concluir que, incluso escapando a un sentido, el fenómeno psicosomático
tiene una función para el sujeto, con su genética vinculada a la constitución
pulsional del cuerpo, como una solución congelada, pero no es un efecto
puro de un supuesto deficit orgánico y, por lo tanto, sujeto a los efectos del
método psicoanalítico.
Palabras clave: Síntoma. Cuerpo en psicoanálisis. Psicosomática. Fenómeno
psicosomático.
1. INTRODUÇÃO
F
enômenos que têm o corpo como via de expressão sintomática provocam à
reflexão o saber psicanalítico por, aparentemente, apresentarem-se refratários
à associação livre, sua técnica central. O sofrimento causado, particularmente
pelo sintoma histérico, seria para Freud o catalisador do rompimento com a
visão de homem preponderante do saber médico de sua época1. As pacientes
histéricas desafiavam a medicina ao romper com a lógica material da anatomia e
4
4
1 Concepções dualistas já constavam em produções filosóficas anteriores ao século XVII, por exemplo, com Aristóteles, mas é com
Descartes que a divisão dualista, corpo e mente, conquista a importância epistêmica ainda hoje reconhecida (Volich, 2010, p.
48).
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fisiologia, às quais não se redimiam, demandando novas formas de pensar e, por
consequência, de tratar do adoecer.
Questionamentos em relação ao sintoma não fazem menção apenas aos
conflitos que Freud enfrentaria em sua carreira médica, no final do século XIX,
mas também a questões atuais que, novamente, levantam dúvidas relativas à
visão de homem nas disciplinas que compõem a área da saúde.
Birman (2003), indica que mudanças históricas e sociológicas referentes à
transformação da ordem familiar e das figuras idealizadas, seja no enredo familiar
ou filosófico/religioso, influenciam a forma de vivenciar o sofrer. Além dos
distintos vínculos intersubjetivos, o recrudescimento do saber sobre o mundo e
sobre si mesmo, o acesso ao conhecimento científico e à fragmentação do saber
disperso em gigantescas bases de dados, que podem ser lidas e interpretadas
livremente sem qualquer rigor, ao mesmo tempo em que permitem a sensação de
liberdade do sujeito, também colaboram para que existam diferenças na forma
como esse sujeito sofre com seu corpo.
Há mudança em relação ao saber, como afirmam Besset et al. (2010),
ao saber do mundo e de si, e que são refletidas nas relações do sujeito com
o corpo. Os autores descrevem, à vista disso, que em um grupo de pesquisa2
relacionado à prática clínica e às demandas de um serviço do Estado, as queixas
que envolvem o corpo prevalecem entre aqueles que se dirigem ao tratamento
(Besset et al., 2010). Tais queixas podem envolver dores crônicas, para as quais
a medicina moderna não logra levantar hipóteses além da fisiológica, como no
caso da fibromialgia (Slompo & Bernardino, 2006), ou mesmo a angústia em
manifestações que oferecem à psiquiatria inúmeras possibilidades de classificação,
mas que consideram apenas a espetacularização do fenômeno e sua bioquímica,
excluindo a fala (Tizio, 2007).
5
Ou seja, diante de tantas mudanças, seria uma operação lógica e atraente
concluir que existem novos sintomas com os quais a psicanálise teria de se
reformular para poder atuar. Esta constatação, porém, não se sustenta por exigir
que se qualifique um novo sujeito e, consequentemente, uma nova economia
libidinal. Uma possibilidade de leitura em relação ao que se observa em vista
disso, na clínica da atualidade, é a de que as mudanças práticas são novas apenas
na forma como os sintomas se apresentam. Cabas (2009), faz uma analogia
entre a afirmação de uma nova subjetividade com a seguinte ilustração: seria
como constatar, ao observar a mudança nas roupas que vestem os manequins das
vitrines, que são consequência de mudanças na estrutura do manequim, e não
das tendências culturais.
5
2 Realizado no âmbito do Núcleo de Pesquisa Psicanalítica (Clinp) – UFRJ/CNPQ, sob o título Corpo e fala na clínica psicanalítica:
discurso em enlaçamentos possíveis.
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Cabe, portanto, o esforço para que a prática clínica avance em função das
particularidades de cada época e das demandas que se apresentam sob a nova
roupagem das adições, dores crônicas, obesidade, pânico, depressões e fenômenos
psicossomáticos (Besset et al., 2010). A psicanálise possibilita, por esse motivo, a
leitura de tais fenômenos a partir da escuta da posição discursiva do sujeito, abrindo
território que possibilite pensar, sob o paradigma lacaniano, em uma direção do
tratamento pela fala, mesmo frente ao desafio destas novas apresentações do
sofrimento (Castro & Rinaldi, 2017). Sem constituir, entretanto, uma espécie
de recaída no dualismo que suporia a dominação da mente sobre o corpo, o que,
por conseguinte, estabeleceria o pretenso nexo causal entre sofrimento mental e
lesão no corpo (Santos & Peixoto Junior, 2018) que, a nosso ver, se desviaria do
escopo da psicanálise.
Para viabilizar esses desenvolvimentos, questionamos a exclusão do fenômeno
psicossomático da categoria de sintoma, promovida por algumas escolas de
psicossomática3, por entenderem que aquele não é um substituto degradado
da pulsão – definição clássica do sintoma formulada por Freud (1925/2003b,
p. 2838) – não podendo, portanto, ser interpretado ou demonstrar alguma
resposta no a posteriori da interpretação (Coppedê & Dunker, 2011). Levada à
radicalidade, essa perspectiva possibilitaria supor que é sintoma apenas aquilo
que pode ser decomposto em um sentido inconsciente, contrastando tanto com
a leitura feita por Freud em relação às neuroses atuais, com a teoria lacaniana
de modo geral, quanto com as indicações da literatura atual, que corroboram
o resultado da interpretação psicanalítica em casos clínicos que se acercam dos
fenômenos psicossomáticos (Besset et al., 2010; Ramirez, 2011; Lanius, 2020).
6
Neste sentido, além do aspecto pulsional, entendemos que a formação de um
sintoma é uma operação carregada de função para o sujeito. Concepção que não
é, necessariamente, uma novidade, pois já em tempos de sua primeira tópica,
Freud definiu o sintoma como satisfação substitutiva, indicando esta função de
estabilização. Assim, prossegue Freud em Tipos de Adoecimento Neurótico:
Esse conflito se resolve por formação de sintomas e termina em adoecimento manifesto.
O fato de todo o processo se originar da frustração real se espelha no resultado de que
os sintomas com que o solo da realidade é novamente alcançado representam satisfações
substitutivas (Freud, 1912/2010b, p. 232).
Portanto, o sintoma dito clássico, apenas por espelhar as contribuições iniciais
e mais difundidas teoricamente, apresenta para a psicanálise o estatuto de um
acontecimento carregado de função, seja ele conversivo, ou não. Porém, se em
um primeiro momento, esta função estaria atrelada à resolução de um conflito
6
3 Em trabalho de levantamento teórico, Dunker (2006) descreve pelo menos seis diferentes vertentes teóricas que se ocuparam da
psicossomática, constituindo-se em torno de pontos de convergência que pretendem uma unidade conceitual, sem, contudo,
poder afirmar que isto se confirma. Dentre elas, destacam-se a escola de Chicago e a escola francesa de Pierre Marty.
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inconsciente e, portanto, carregada de sentido, sob outro aspecto o sintoma pode
manter este estatuto de função mesmo que escape a esta lógica, como proposto
em relação às neuroses atuais e sua relação com o somático: “o grão de areia no
centro da pérola” (Freud, 1912/2010a, pp. 246-247).
Para poder retomar, porém, o tema da função, partiremos do pressuposto
de que há produção de libido que não escoa pelas vias que levariam à formação
de um sintoma psíquico. Neste caso, recorreremos à interpretação lacaniana
do que poderia ocorrer, ou do que deixa de ocorrer, para que seja necessária
uma operação em forma de sintoma que venha a compensar, apoiar algo que
claudica. Será abordada, desta forma, a constituição do sujeito segundo Lacan,
em particular a relação com os três registros apresentados inicialmente por ele em
1953 (1953/1998a) – Real, Simbólico e Imaginário – em particular as relações
entre articulação e não articulação simbólica, entendendo que a apresentação
clínica do sintoma, assim como a direção de seu tratamento, está implicitamente
relacionadas a isso.
A dificuldade de articulação significante possibilita, nesta perspectiva, um
paralelo com o conceito de real desenvolvido por Lacan, assim como com os
escritos finais de sua produção em relação ao Sinthoma. Estes temas possibilitam
alinhavar a conclusão de que há uma condensação localizada que, em algumas
situações, tem a função de uma solução para a economia libidinal do sujeito, e
esta condensação pode ser pensada em relação ao Sinthoma descrito por Lacan.
Para tanto, não se opta por uma visão específica da psicossomática, mas por
desbravar o tema mediante suas múltiplas produções, assim como se reconhece a
impossibilidade de uma verdade que explicaria esses fenômenos como um todo,
optando-se pela tentativa de uma hipótese explicativa a partir de um núcleo
comum, mas que não engessa a forma como essas manifestações se apresentam.
Isto posto, este artigo tem como objetivo discutir a questão do sintoma, em
particular os corporais, ou que assim se expressam, como uma possível solução
para a economia libidinal do sujeito, a partir da perspectiva da Psicanálise. Mas,
antes de podermos abordar diretamente essas afirmações, algumas considerações
sobre os sintomas, e a possibilidade de sua expressão diretamente no corpo, são
necessárias.
2. OS FENÔMENOS PSICOSSOMÁTICOS E AS CONSTITUIÇÕES
DO SUJEITO EM LACAN: DO ARTICULADO AO REAL
Como se observa em seu Seminário de 1964, Os quatro conceitos fundamentais
da psicanálise, Lacan aponta que as características clínicas dos pacientes com
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lesões psicossomáticas indicam tratar-se de algo da ordem da psicose, além de
coincidir também com algumas características estruturais da debilidade (Lacan,
1964/2008). Porém, entendemos que Lacan faz uma correlação entre essa forma
de funcionamento, que se encontra nos pacientes com lesões psicossomáticas,
com a psicose e a debilidade, o que não significa que se trate da mesma ordem,
mas são exemplos de casos nos quais o que acontece seria a não separação entre o
sujeito e o Outro, ou seja, pontos em que o sujeito continuaria apassivado como
objeto de satisfação do Outro.
Tal afirmação se deve à hipótese de que haveria algo com os significantes
fundamentais, na constituição do sujeito, que impediria que estes se separassem,
ou seja, em vez de acontecer a expulsão de um significante para possibilitar
a geração de uma cadeia estável, haveria uma espécie de junção entre eles,
formando uma estrutura de holofraseamento (formação de holófrase) entre os
significantes, semelhante ao que aconteceria nos casos de psicose e debilidade
(Lacan, 1964/2008). Sanches (2011), ressalta que tal afirmação não indicaria
uma única possibilidade de diagnóstico clínico, podendo ser relida a partir das
elaborações da década seguinte, quando houve uma modificação no ensino de
Lacan, possibilitando questionar se ele estaria fazendo uma indicação direcionada
à forma, e não à estrutura.
O termo holófrase foi criado por Lacan a partir de Mannoni (1985, p. 49),
quando esta elaborou a tese de que nos casos de debilidade haveria uma fusão
de corpos entre a criança e a mãe. Esta elaboração de Mannoni despertou o
interesse de Lacan, que iria adiante para passar da fusão de corpos, para a fusão
de significantes, ou seja, a formação de uma holófrase entre os significantes
primordiais – que deveriam permanecer separados (S1-S2) de modo a constituir
uma cadeia estável – causando no Sujeito a incapacidade de usar a linguagem
em nome próprio, permanecendo alienado sob o domínio do Outro (Lacan,
1964/2008, pp. 199-210).
Portanto, embora exista uma tendência a criar categorias em torno de
um fenômeno, para facilitar o manejo clínico, ou unificar um conceito para
apreciação teórica, fica implícito que uma unidade em relação ao conceito de
corpo em psicanálise, assim como de suas produções sintomáticas, não é tão
simples e talvez pouco desejada, já que se corre o risco de recair no paradigma da
nosografia psiquiátrica, ou da psicologia dos perfis, distanciando-se do que pode
ser o núcleo da psicanálise, que estima a pluralidade das produções do sujeito.
Durante os diferentes momentos de sua produção, Lacan se ocupou da
constituição do sujeito em relação aos três registros que estruturaram sua realidade,
a saber: o Real, o Simbólico e o Imaginário. Embora o foco possa ter mudado
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de um para outro registro em suas elaborações teóricas, os três permanecem
entrelaçados, sendo, portanto, impossível excluir um desses registros para poder
abordar o sintoma em sua corporalidade sob uma única perspectiva. Torna-se
necessário enfatizar alguns pontos em relação a esses registros para poder entender
que estruturação seria possível quando se trata de uma formação sintomática
aparentemente sem sentido.
Inicialmente, com o registro Imaginário, desenvolvido aproximadamente
entre 1936 e 1953, quando, influenciado pela filosofia de Hegel, Lacan questiona
a gênese do eu e constrói assim sua teoria do estádio do espelho, ao entender que
o eu é constituído primeiramente a partir do outro, dando ênfase na imagem
do semelhante. Em um segundo momento – de 1953 a 1976 – Lacan teria se
ocupado do registro Simbólico, para somente mais tarde, entre 1976 e 1980,
passar a focar mais diretamente o registro do Real em seus estudos (Cukiert
& Priszkulnik, 2002). Embora o foco sobre a forma de enodamento entre os
três registros tenha ocorrido com maior intensidade nesse terceiro momento
de Lacan, esses registros foram sempre teorizados em sua relação intrínseca,
mudando apenas o foco durante os períodos de sua produção teórica (Cukiert
& Priszkulnik, 2002).
Ao tratar de processos que constituem o sujeito, Lacan, em seu Seminário, livro
4: as relações de objeto, discute que o estádio do espelho é uma conjuntura na qual
está ilustrado o caráter conflitivo entre uma relação dual, pois há uma distância
que separa o eu proprioceptivo, da imagem que a criança começa a perceber e
construir em sua relação com o mundo externo, e com seus semelhantes. Essa
distância pode ser comparada analogamente com a diferença que há entre o
princípio do prazer e o da realidade, assim como a dialética entre sujeito e objeto
(Lacan, 1957/1995). O estádio do espelho ilustra também a tensão interna
gerada pelo caráter conflitivo desses encontros, assim como a forma pela qual
tal tensão, resultado da hiância4 entre a propriocepção e a identificação que faz
com a imagem recém-observada, contribuirá para o desenvolvimento da criança
(Lacan, 1957/1995).
7
Em outras palavras, fica o indicativo de que há uma relação entre a imagem e a
libido, pois a imagem como representante é criada como resultado, como meio,
para que a libido circule. É esta diferença, entre o eu como corpo fragmentado
e a imagem unificada, que a criança observa. É essa distância entre o que é e o
que pode vir a ser que possibilita o investimento libidinal. “Tudo que a criança
aprende nesta cativação por sua própria imagem é, precisamente, a distância que
há de suas tensões internas, aquelas mesmas que são evocadas nessa relação, à
identificação com essa imagem” (Lacan, 1957/1995, pp. 15-16).
7
4 Adjetivo utilizado na tradução portuguesa, derivado de hiante: fenda, separação ou abertura.
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Esta operação demarca a visão de sujeito para Lacan, pois o que está em questão
em sua gênese vai além do puro organismo, necessitando deste investimento, que
pode ser entendido como uma ocupação de um território pela libido, para então
constituir um corpo pulsional. Lacan ilustra o início desta operação descrevendo
uma “parte de si mesmo que o indivíduo perde ao nascer, e que pode vir a
simbolizar o mais profundo objeto perdido” (Lacan, 1964/2008, p. 193). Assim,
a produção de energia não é o único resultado da falta proveniente da hiância,
pois há um objeto que cai desta operação, instituindo uma marca de satisfação
pulsional.
Fazendo referência ao “Projeto de Freud” em relação às primeiras experiências
de satisfação da criança e às subsequentes insatisfações geradas pela falta do objeto
de prazer, Lacan define objeto como aquele que falta, mas não uma falta que gera
um déficit no desenvolvimento do sujeito, pelo contrário, pois é esta falta, e o
objeto resultante, que possibilitam a atribuição de um princípio de realidade
(Lacan, 1957/1995, p. 16). Referindo-se novamente ao “Projeto de Freud”, este
princípio de realidade é que fará o barramento das alucinações desiderativas que
visam suprir a falta do objeto de desejo perdido (Freud, 1895/2003c, p. 200).
Desta forma, Lacan faz um paralelo entre as experiências de falta, primordiais
na história do sujeito, com a falta gerada por experiências mais tardias, mas,
considerando ambas importantes na criação de uma realidade, em alguma
medida, estável. Por outro lado, não é apenas em relação à imagem que Lacan
aposta quando procura entender o que atua nestes quesitos decisivos para a
constituição do psíquico, pois há o simbólico e as estruturações desse sistema
permeadas pela relação com o Outro.
Sobre os primeiros processos de constituição do sujeito, Lacan define dois
momentos essenciais que operam em relação ao Outro: um primeiro momento
de alienação, no qual o ser permanece sob o domínio significante do Outro, e
um segundo momento, o de separação. Para representar a alienação na reunião
com o Outro, Lacan usa a matemática para indicar que em dois conjuntos (ser
e sentido), sempre que houver um elemento no conjunto do sentido, haverá um
elemento equivalente que se perde no conjunto ser (Lacan, 1964/2008). Assim,
toda produção de sentido operará com um elemento equivalente no ser que fica
de fora, escolhendo, por exemplo, o sentido que opera no campo do Outro, o
qual subsistirá na ausência do ser, que permanece qualitativamente inconsciente,
que evanesce a cada tentativa de acrescer sentido (Lacan, 1964/2008).
Logo, haveria um movimento duplo: ao mesmo tempo em que surge o sentido
para que exista uma ideia de unidade, há um fading, um desaparecimento de
seu equivalente simbólico, permanecendo, portanto, inconsciente. A isto, que
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Lacan chama afânise, é atribuído também um elemento da constituição do
sujeito, pois é uma divisão fundamental para que a dialética do sujeito exista e,
por consequência, exista um sujeito (Lacan, 1964/2008). Este conteúdo, que
desaparece dos registros acessíveis, estaria no terceiro registro, o Real.
De difícil definição pela sua própria natureza, o Real é um conceito trabalhado
por Lacan que expressa aspectos que resistem à simbolização, que não têm
palavra nem nome, ou seja, que escapam da inscrição no Simbólico. O Real não
é uma essência última que está por trás das coisas, mas aquilo que permanece
necessariamente negado para que as coisas se apresentem como tal, isto é,
para que o mundo possa ser apreendido como uma totalidade aceitavelmente
organizada para o sujeito (Roudinesco & Plon, 1998).
Real e realidade, embora facilmente confundidos, não são iguais. A realidade
faz uma conexão entre o eu, a imagem e todas as modificações que surgirão desde
os primeiros contatos da criança com a imagem na fase do espelho, implicando
as identificações que se sucederão durante sua vida. Entretanto, o autor não
deixa de notar que para que exista esta realidade, e para que ela seja estável
com toda essa armadura de imagens e significantes, é necessário um ponto de
ancoragem externa aos dois registros diretamente implicados (respectivamente,
Imaginário e Simbólico) e este ponto só pode ser localizado nesta externalidade
do Real (Nasio, 2012).
Assim, Miller (2010) elucida que é difícil falar do Simbólico e do Imaginário
sem deixar um ou outro de fora, mesmo que não estejam totalmente disjuntos.
Exatamente nesse aspecto que Lacan introduz o Real, na fronteira do simbólico
e do imaginário. O Real lacaniano é tanto aquilo que faz laço entre esses dois
outros registros, quanto aquilo que rateia, ficando fora do laço, fora de lugar
(Miller, 2010).
Esta ex-sistência,5 que acontece nas relações entre o significante e o objeto,
geralmente cria um sistema de sucessão consistente quando um significante
remete a outro significante (a clássica fórmula S-S) onde há a queda do objeto
para a ascensão da representação que faz suporte, articulando-se no simbólico
(Lacan, 1975/2007).
8
Há, portanto, uma primeira expulsão que deixa o real como externo ao sujeito
para, em um segundo momento, ser instaurada a discriminação da realidade,
ou seja, aquilo que é instaurado no segundo tempo é a realidade como objeto,
a partir da reprodução imaginária da percepção primária (representação). É
nesse momento que essa operação pode escapar ao princípio do prazer, mas não
escapa ao Real que, como já foi suprimido da simbolização primordial, já está
8
5 Notação usada por Lacan para marcar que só há a existência no simbólico porque algo está externo a este, no Real.
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fora (Lacan, 1966/1998b). Ou seja, pode escapar ao princípio regulatório da
economia psíquica e escapar à estrutura significante, mas não escapa ao Real,
gerando fenômenos como a alucinação ou a lesão.
Portanto, entendendo haver um ponto externo às cadeias significantes que
fica fora do domínio passível de simbolização, e que o Real é também assim
constituído, Lacan assinala que aquilo que fica subtraído dos limites da fala só
pode aparecer no Real: “O que não veio à luz do simbólico aparece no Real”
(Lacan, 1966/1998b, p. 390).
Isto é, aquilo que não surge pelo simbólico, como no caso do retorno do
recalcado, indica que algo está foracluído,6 algo que não tem a possibilidade
de representação simbólica e que tem como única alternativa o retorno que
incide diretamente sobre o Real. É a partir disso que Miller (2010) conclui que a
simbolização é condição para que haja existência (em relação ao sujeito), ou seja,
para que aquele conteúdo venha a ser para o sujeito.
9
Isto indica que em alguns momentos essa articulação falha, seja por situações
críticas da estrutura, ou em momentos críticos da economia libidinal do sujeito,
impossibilitando uma estruturação estável das cadeias significantes. Nesses casos,
os significantes não se remetem mais uns aos outros, não há mais significação, não
há hiância, não há afânise, não há equívoco que coloque o sujeito em questão,
ou seja, não há articulação.
Levando isso em conta, para que de alguma forma exista um sujeito, é
necessária uma solução que, no caso dos fenômenos psicossomáticos, pode
encontrar no real uma solução.
3. UMA SOLUÇÃO INSCRITA NO CORPO
Seguindo a indicação de Lacan, de que alguns fenômenos comuns em estruturas
psicóticas poderiam dar uma direção em relação ao que acontece quando uma
saída é necessária para salvaguardar a economia psíquica, sem a possibilidade da
articulação simbólica, vislumbram-se algumas pistas do que também aconteceria
em situação similar quando o sintoma atinge o corpo.
Assim, Lacan, em Resposta ao Comentário de Jean Hyppolite sobre a “Verneinung”
em Freud (1966/1998b), aborda o fenômeno da alucinação revisitando o caso de
Freud conhecido como “O Homem dos Lobos” para analisar a diferença entre
recalque e foraclusão. O autor indica, mais especificamente, o relato do paciente
de Freud sobre a alucinação de ter decepado o dedo debaixo de uma árvore,
entendendo que, no caso citado, o paciente nada queria saber sobre sua castração
9
6 Foraclusão, ou forclusão. Termo de cunho lacaniano tratando-se de rejeição de um significante para fora do universo simbólico
do sujeito (Laplanche & Pontalis, 2008, p. 194).
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no sentido de um recalque, restando apenas uma abolição simbólica do registro
da castração (1966/1998b). Pensando nessa estruturação, Lacan defende que no
caso relatado o que importa, mais do que o fenômeno alucinatório em si, é a
impossibilidade que se impõe ao paciente de falar do episódio naquele momento
(1966/1998b).
Lacan não está interessado em fazer um diagnóstico estrutural do paciente
de Freud, ele parte do fenômeno descrito para procurar compreender quais as
soluções possíveis que o psiquismo pode lançar mão quando há uma falta de
articulação simbólica. Como salienta Miller, ao descrever que Lacan busca neste
estudo saber se a alucinação é “um funcionamento que se diferencie radicalmente
do mecanismo da articulação” (2010, p. 33).
Para ilustrar, de tal modo, o que seria uma resposta na qual o objeto não é
expulso do sistema significante, Nasio utiliza o delírio como paradigma, para
contrastar com a relação entre significantes baseada no deslocamento, como seria
no caso de uma formação sintomática clássica (2012). O delírio não deixa de ser
uma constituição de realidade local, mas é uma resposta que, segundo o autor
(Nasio, 2012), não remete a mais nada (uma resposta congelada).
Nestes casos, os autores remetem à alucinação ou ao delírio, mas alguns
autores, como Nasio e Miller, igualmente a exemplo de Lacan, fazem uma
correlação com os fenômenos psicossomáticos que também escapam à fala e
surgem no real, mas no real do corpo.
Neste mesmo sentido, Nasio (2012) defende que o sintoma expresso no corpo
não é um déficit, ou um defeito, mas sim um engendramento. Ou seja, é do viés
do positivo, de uma produção. Assim, para o autor, o sintoma psicossomático
constituiria a criação de uma realidade nova e estritamente local, apontando a
necessidade de que um novo limite seja instituído, uma nova borda para que o
sujeito possa dar conta, criar uma realidade em torno dessa lesão concentrada no
corpo, uma realidade “que se fecha com um nó” (Nasio, 2012, p. 16).
Embora Nasio não se referisse ao nó Borromeu (estrutura utilizada por Lacan
que indica o entrelaçamento entre os registros do Real, Simbólico e Imaginário),
as indicações do Seminário 23 dão testemunho de que esta solução criada para
estabilizar o sujeito diante de uma situação crítica estaria ligada a esse nó.
Solução que, para Lacan, ganha a característica de um quarto componente do nó
borromeano, portanto completando, ou estabilizando o nó (Lacan, 1975/2007).
Esse quarto laço teria seu foco na particularidade da relação do sujeito com seu
corpo pulsional, não mais tanto no domínio do Outro, mas no domínio do mais
particular (Lacan, 1975/2007).
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Lacan se referia ao Sinthoma, que se diferencia do sintoma clássico não
apenas na grafia, mas sim porque indica uma formação particular do sujeito
com seu corpo, construções erigidas para que o possua, como seu, suas marcas.
Porquanto, mesmo o sintoma histérico tem em sua fonte mais profunda o
pulsional que, também, escapa do sentido, considerando que Freud afirma que o
sintoma psiconeurótico tem sua fonte emprestada da neurose atual, sendo o grão
de areia que constituirá a pérola (Freud, 1912/2010b). Lacan faz uma afirmação
semelhante ao analisar uma peça de teatro na qual o sintoma histérico seria
aquilo que fica endereçado ao público, mas que é o material do fundo, aquele
que se passa por detrás das cortinas, que remete ao sintoma como tal, e ali ele é
separado do sentido (1975/2007).
Contemporaneamente às elaborações sobre o Sinthoma, em uma conferência
proferida em Genebra no ano de 1975, Lacan retoma como objeto os fenômenos
psicossomáticos, mas, desta vez, o foco de discussão se distancia das estruturas
clínicas para concluir que nestes casos “tudo se passa como se algo estivesse escrito
no corpo, alguma coisa que nos é dado como enigma” (Lacan, 1975, p. 129).
O que isto indica é que, de forma distinta ao sintoma clássico, este enigma seria
resultado de uma inscrição psíquica que não teria a capacidade de representação
de um significante. Contudo, ainda assim seria capaz de gerar efeitos sobre o
sujeito: uma marca, ou um escrito, mas da ordem de uma assinatura, ou seja,
uma inscrição que não se dá a ler (Lacan, 1975).
Ainda no domínio do simbólico, e tentando desbravar o tema, Lacan compara
novamente este tipo de inscrição a um traço, algo que não tem a flexibilidade
de sentidos de um significante, se aproximando mais de um número, do que de
uma palavra (Lacan, 1975).
Assim como o Sinthoma, o fenômeno psicossomático tem algo de
profundamente particular, o que leva o autor a comparar a base do fenômeno
psicossomático com algo invariável, como uma assinatura, um número, ou
um simples traço que representaria apenas o detrito de uma palavra, dando a
possibilidade de entender que o gozo encontrado ao se defrontar com um paciente
que sofre por meio de um fenômeno psicossomático seria um gozo fixado,
congelado. Esta analogia faz eco com os escritos de Lacan da década anterior,
quando indica que a base deste tipo de formação sintomática teria uma fixação
entre os significantes fundamentais (a respeito da holófrase), impossibilitando a
articulação significante descrita anteriormente.
Nesta mesma direção, fazendo alusão à comparação de Lacan com a assinatura,
Miller (2010) comenta que o Sinthoma, como o mais singular, é indecifrável,
escapando ao sentido, esta característica faz sua ligação com o Real, com aquilo
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que escapa ao simbólico. Ou, como descreve Lacan, diferentemente do retorno
do recalcado, o retorno do fenômeno sob a função de um Sinthoma não é na
história, mas no Real (Lacan, 1975/2007), tendo o corpo como possibilidade.
Assim, na falta de um enodamento simbólico do pulsional, seja por falta
estrutural (psicose), ou por uma situação específica, o Sinthoma pode ser o
instrumento para resolver o gozo, neste caso, com a função de dar suporte a
uma falta simbólica (Lacan, 1975/2007). Como aponta Machado (2005),
“essa argumentação está na filiação do Sinthoma como elemento articulador,
enodando os registros do real, do simbólico e do imaginário. Articulando os
elementos dispersos, o Sinthoma daria corpo ao sujeito desbussolado ao conectálo com seu próprio gozo”.
É importante diferenciar que há sempre uma via de descarga. O sintoma clássico
engloba uma cadeia de representações, mas nos casos em que esta possibilidade
está impedida, a via de derivação pulsional será as marcas disponíveis. No caso
de esta via ser o somático, a lesão pode ter a função de fazer laço para o sujeito,
de estabilizar uma estrutura que está em perigo, seja por condições de sua
formação permanente, ou por uma situação específica. Nesses casos, que Lacan
denomina no final de sua obra como Sinthoma, pode-se recorrer ao corpo como
uma medida de exceção que resolve o problema do excesso, criando, com a lesão,
a estabilização necessária.
É como se o sintoma gerasse em todo o seu processo a ativação de representações
(S), desde o seu gatilho, até o deslocamento necessário para a sua constituição: ele
engana o eu para poder dar via à pulsão. Mas, nos fenômenos psicossomáticos,
mesmo que exista uma representação no seu início, a cadeia consequente não
acontece, colocando o próprio eu em risco: a lesão salva o eu de se fragmentar
por manter uma âncora, mesmo que não passe por todas as elucubrações do
simbólico. Como indica Lacan, o Sinthoma teria como similaridade à angústia a
característica de permanecer como aquilo que não cessa de girar, de se inscrever,
uma conexão que transporta sentido no Real (Miller, 2010).
Porém, essa falta de articulação simbólica pode não ser total, mas sim um
acontecimento do corpo que tem que dar conta do Real, do pulsional, mas sem
contar com a articulação significante que permanece, neste caso, congelada. O
corpo como agenciamento do real, do simbólico e do imaginário, apresenta-se
em torno de um ou dois furos, e se mantém sozinho. Assim, pode-se pensar
o sintoma como um acontecimento de corpo, nesse caso, distinto do sintoma
histérico (Laurent, 2012). Segundo Laurent (2012): “Passa-se do sintoma falante
ao Sinthoma como escrita”.
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Dessa forma, os fenômenos psicossomáticos não são descartados, mas
considerados como um modo de resposta similar à postulada por Freud em
relação às pulsões, ou seja, como medida de exigência de trabalho imposta ao
psíquico (Merlet, 2003), mas que, nesse caso, encontra uma saída que escapa à
historicização e ao sentido do sintoma histérico. “Psicossomática não mais como
uma doença, mas como um modo de responder” (Merlet, 2003, p. 17).
Pode existir uma reação psicossomática como modo de responder a uma situação definida
que exija um trabalho de simbolização, por exemplo, luto ou separação. Por outro lado,
certos indivíduos não têm outra maneira de viver senão apresentando um modo de resposta
permanente ou surtos do tipo psicossomático (Merlet, 2003, p. 19).
Se esse fenômeno pode ser defendido como uma função para o sujeito, uma
força de enodamento, mesmo que não se articule de um a outro significante,
sua caracterização como forma de letra não o torna um “beco sem saída”. Alves
et al. (2019) destacam que, mesmo a escrita, a letra, é para ser lida como uma
carta endereçada à releitura, a um destinatário, pois mesmo não garantida, há
a possibilidade de que a letra abra vias de significação tendo em vista ser litoral
entre simbólico e real, entre saber e gozo. Porém, segundo as autoras, o fenômeno
psicossomático impõe desafios ao analista por mostrar-se fixado ao gozo e menos
propenso a movimentar-se na cadeia significante (Alves et al., 2019).
Um desafio ao analista deve ser encarado como uma aposta viável quando há
alguma possibilidade, em transferência, de fala, de endereçamento a um suposto
saber, pois, se em um primeiro momento da obra freudiana, a clínica psicanalítica
investia no desvelamento de memórias inconscientes, o criador da psicanálise
expandiu, em um segundo momento, as possibilidades técnicas para que, com
Lacan, novas releituras e direções de tratamento fossem elaboradas, entendendo
que o analista deve estar apto a “alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua
época” (Lacan, 1953/1998a, p. 322).
Portanto, mesmo que o desafio se apresente como um sintoma resistente ao
saber, fixo no gozo, é necessário apostar que se há um endereçamento da fala, é
trabalho do analista fazer ressoar, no caso a caso, algo desta letra investida pelo
sujeito para que exista alguma chance de articulação, pois “é preciso que haja
alguma coisa no significante que ressoe” de modo a não ignorar que “as pulsões
são, no corpo, o eco de que há um dizer” (Lacan, 1975/2007, p. 18).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concluir que existe uma função envolvida, mesmo quando o corpo está em
jogo, não é uma mera constatação teórica, pois influencia tanto a avaliação,
quanto a direção do tratamento psicanalítico.
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De forma mais radical, esta interpretação considera que, sendo a psicanálise
interpretada como um saber que escapa às construções empiristas, menos
propensa, portanto, a construir respostas aos moldes aristotélicos, e mais
apta a fazer surgir furos no saber científico (Lacan, 1971/2009, pp. 26-27) e,
considerando que a formulação de Lacan de que não há metalinguagem, implica
a possibilidade de manter em paralelo tanto sua teoria, como sua práxis (Lacan,
1971/2009, p. 10), então podemos entender que seu discurso enquanto saber, e
seu modo de operar na clínica, são semelhantes.
Mesmo que o discurso do sujeito tenha tendência a encher-se de sentido,
ou que este fique impedido por conta do gozo petrificado do fenômeno
Psicossomático, cabe ao analista, na peculiaridade de cada caso, sondar a função
estabelecida àquele sintoma para a economia libidinal do ser falante que a ele
endereça sua fala.
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