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Sintoma e Fenômeno Psicossomático

Psicologia em Revista

Sintomas que se apresentam ao psicanalista na atualidade, em particular aqueles que têm o corpo como via expressiva, constituem-se como estímulo à discussão teórica e metodológica de sua prática. O presente artigo propõe-se a discutir os fenômenos psicossomáticos como uma possível solução para a economia libidinal do sujeito. Para isto, discorre sobre o sintoma para além da histeria, sua relação com a produção de sentido, ou sua falta, articulando com o conceito lacaniano de real. O que permitiu concluir que, mesmo escapando a um sentido, o fenômeno psicossomático tem uma função para o sujeito, com sua genética vinculada à constituição pulsional do corpo, como solução congelada, mas não se tratando de puro efeito de um suposto deficit orgânico e, portanto, sujeito aos efeitos do método psicanalítico.

SINTOMA E FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO: RELAÇÕES POSSÍVEIS PARA A PSICANÁLISE? SYMPTOM AND PSYCHOSOMATIC PHENOMENON: POSSIBLE RELATIONSHIPS FOR PSYCHOANALYSIS? SÍNTOMA Y FENÓMENO PSICOSOMÁTICO: ¿POSIBLES RELACIONES PARA EL PSICOANÁLISIS? Daniel Ribeiro Branco* 1 Regina Perez Christofolli Abeche ** 2 Débora Patrícia Nemer Pinheiro*** 3 RESUMO Sintomas que se apresentam ao psicanalista na atualidade, em particular aqueles que têm o corpo como via expressiva, constituem-se como estímulo à discussão teórica e metodológica de sua prática. Este artigo propõe-se a discutir os fenômenos psicossomáticos como uma possível solução para a economia libidinal do sujeito. Para isso, discorre sobre o sintoma para além da histeria, sua relação com a produção de sentido, ou sua falta, articulando com o conceito lacaniano de real. O que permitiu concluir que, mesmo escapando a um sentido, o fenômeno psicossomático tem uma função para o sujeito, com sua genética vinculada à constituição pulsional do corpo, como solução congelada, mas não se tratando de puro efeito de um suposto déficit orgânico e, portanto, sujeito aos efeitos do método psicanalítico. Palavras-chave: Sintoma. Corpo em psicanálise. Psicossomática. Fenômeno psicossomático. ABSTRACT Symptoms that are presented to the psychoanalysis today, in particular those that have the body as route of expression, constitute as a stimulus to Texto recebido em 18 de fevereiro de 2020 e aprovado para publicação em 13 de julho de 2020. * Doutorando em Gestão Ambiental no Programa de Pós-Graduação em Gestão Ambiental, Universidade Positivo (Pgamb/ UP), mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (PPI/UEM), especialista em Psicanálise de Freud a Lacan, psicólogo, atua na área clínica e docência. Filiação institucional: Bolsista CAPES no Pgamb/UP. Endereço: Rua Santa Catarina, 65, sala 519b – Água Verde, Curitiba–PR, Brasil. CEP: 80620-100. E-mail: [email protected] ** Doutora em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, graduada em Psicologia pela UEM, professora supervisora da área clínica e professora no programa de pós-graduação na área de concentração Epistemologia e Práxis em Psicologia, do Departamento de Psicologia da UEM; coordenadora do projeto de pesquisa Os sintomas na clínica atual: uma leitura em Freud. Filiação Institucional: Universidade Estadual de Maringá. Endereço Postal: Avenida Doutor Gastão Vidigal, 310, casa 37 - Condomínio Residencial Everest, Zona 08, Maringá-PR, Brasil. CEP 87050-440. E-mail: [email protected] ***Doutora em Psicologia Clínica - Método Psicanalítico pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), mestra em Psicologia da Infância e Adolescência pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), responsável técnica do Centro de Psicologia Aplicada da UFPR, psicanalista atuante, membro do Comitê de Ética do Hospital de Clínicas (HC/UFPR), preceptora do Programa de Residência Multiprofissional do HC/UFPR (2015-2018), atendimento clínico no HC/UFPR (1994 a 2016), atuação profissional nos seguintes temas: clínica psicanalítica, psicanálise e cultura, epistemologia psicanalítica. E-mail: [email protected] 1 2 3 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, pp. 386-403, ago. 2021 386 SINTOMA E FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO: RELAÇÕES POSSÍVEIS PARA A PSICANÁLISE? the theoretical and methodological discussion of its practice. This article proposes to discuss psychosomatic phenomena as a possible solution for the subject’s libidinal economy. For this, it discusses about the symptom beyond hysteria, its relation with the origination of the meaning, or the lack of it, articulating with the Lacanian concept of real. It allowed that, even running off of a meaning, the psychosomatic phenomenon has a function for the subject, with its genetics linked to the pulsional constitution of the body, a frozen solution, but not being a pure effect of a supposed organic deficit and, therefore, subject to the effects of the psychoanalytic method. Keywords: Symptom. Body Psychosomatic phenomena. in Psychoanalysis. Psychosomatics. RESUMEN Síntomas que se presentan hoy al psicoanalista, en particular los que tienen el cuerpo como una ruta expresiva, constituyen un estímulo para la discusión teórica y metodológica de la práctica psicoanalítica. Este artículo propone discutir los fenómenos psicosomáticos como una posible solución para la economía libidinal del sujeto. Para esto, discute el síntoma más allá de la histeria, su relación con la producción de significado, o su falta, articulándose con el concepto lacaniano de lo real. Lo que nos permitió concluir que, incluso escapando a un sentido, el fenómeno psicosomático tiene una función para el sujeto, con su genética vinculada a la constitución pulsional del cuerpo, como una solución congelada, pero no es un efecto puro de un supuesto deficit orgánico y, por lo tanto, sujeto a los efectos del método psicoanalítico. Palabras clave: Síntoma. Cuerpo en psicoanálisis. Psicosomática. Fenómeno psicosomático. 1. INTRODUÇÃO F enômenos que têm o corpo como via de expressão sintomática provocam à reflexão o saber psicanalítico por, aparentemente, apresentarem-se refratários à associação livre, sua técnica central. O sofrimento causado, particularmente pelo sintoma histérico, seria para Freud o catalisador do rompimento com a visão de homem preponderante do saber médico de sua época1. As pacientes histéricas desafiavam a medicina ao romper com a lógica material da anatomia e 4 4 1 Concepções dualistas já constavam em produções filosóficas anteriores ao século XVII, por exemplo, com Aristóteles, mas é com Descartes que a divisão dualista, corpo e mente, conquista a importância epistêmica ainda hoje reconhecida (Volich, 2010, p. 48). Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, pp. 386-403, ago. 2021 387 Daniel Ribeiro Branco, Regina Perez Christofolli Abeche, Débora Patrícia Nemer Pinheiro fisiologia, às quais não se redimiam, demandando novas formas de pensar e, por consequência, de tratar do adoecer. Questionamentos em relação ao sintoma não fazem menção apenas aos conflitos que Freud enfrentaria em sua carreira médica, no final do século XIX, mas também a questões atuais que, novamente, levantam dúvidas relativas à visão de homem nas disciplinas que compõem a área da saúde. Birman (2003), indica que mudanças históricas e sociológicas referentes à transformação da ordem familiar e das figuras idealizadas, seja no enredo familiar ou filosófico/religioso, influenciam a forma de vivenciar o sofrer. Além dos distintos vínculos intersubjetivos, o recrudescimento do saber sobre o mundo e sobre si mesmo, o acesso ao conhecimento científico e à fragmentação do saber disperso em gigantescas bases de dados, que podem ser lidas e interpretadas livremente sem qualquer rigor, ao mesmo tempo em que permitem a sensação de liberdade do sujeito, também colaboram para que existam diferenças na forma como esse sujeito sofre com seu corpo. Há mudança em relação ao saber, como afirmam Besset et al. (2010), ao saber do mundo e de si, e que são refletidas nas relações do sujeito com o corpo. Os autores descrevem, à vista disso, que em um grupo de pesquisa2 relacionado à prática clínica e às demandas de um serviço do Estado, as queixas que envolvem o corpo prevalecem entre aqueles que se dirigem ao tratamento (Besset et al., 2010). Tais queixas podem envolver dores crônicas, para as quais a medicina moderna não logra levantar hipóteses além da fisiológica, como no caso da fibromialgia (Slompo & Bernardino, 2006), ou mesmo a angústia em manifestações que oferecem à psiquiatria inúmeras possibilidades de classificação, mas que consideram apenas a espetacularização do fenômeno e sua bioquímica, excluindo a fala (Tizio, 2007). 5 Ou seja, diante de tantas mudanças, seria uma operação lógica e atraente concluir que existem novos sintomas com os quais a psicanálise teria de se reformular para poder atuar. Esta constatação, porém, não se sustenta por exigir que se qualifique um novo sujeito e, consequentemente, uma nova economia libidinal. Uma possibilidade de leitura em relação ao que se observa em vista disso, na clínica da atualidade, é a de que as mudanças práticas são novas apenas na forma como os sintomas se apresentam. Cabas (2009), faz uma analogia entre a afirmação de uma nova subjetividade com a seguinte ilustração: seria como constatar, ao observar a mudança nas roupas que vestem os manequins das vitrines, que são consequência de mudanças na estrutura do manequim, e não das tendências culturais. 5 2 Realizado no âmbito do Núcleo de Pesquisa Psicanalítica (Clinp) – UFRJ/CNPQ, sob o título Corpo e fala na clínica psicanalítica: discurso em enlaçamentos possíveis. 388 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, pp. 386-403, ago. 2021 SINTOMA E FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO: RELAÇÕES POSSÍVEIS PARA A PSICANÁLISE? Cabe, portanto, o esforço para que a prática clínica avance em função das particularidades de cada época e das demandas que se apresentam sob a nova roupagem das adições, dores crônicas, obesidade, pânico, depressões e fenômenos psicossomáticos (Besset et al., 2010). A psicanálise possibilita, por esse motivo, a leitura de tais fenômenos a partir da escuta da posição discursiva do sujeito, abrindo território que possibilite pensar, sob o paradigma lacaniano, em uma direção do tratamento pela fala, mesmo frente ao desafio destas novas apresentações do sofrimento (Castro & Rinaldi, 2017). Sem constituir, entretanto, uma espécie de recaída no dualismo que suporia a dominação da mente sobre o corpo, o que, por conseguinte, estabeleceria o pretenso nexo causal entre sofrimento mental e lesão no corpo (Santos & Peixoto Junior, 2018) que, a nosso ver, se desviaria do escopo da psicanálise. Para viabilizar esses desenvolvimentos, questionamos a exclusão do fenômeno psicossomático da categoria de sintoma, promovida por algumas escolas de psicossomática3, por entenderem que aquele não é um substituto degradado da pulsão – definição clássica do sintoma formulada por Freud (1925/2003b, p. 2838) – não podendo, portanto, ser interpretado ou demonstrar alguma resposta no a posteriori da interpretação (Coppedê & Dunker, 2011). Levada à radicalidade, essa perspectiva possibilitaria supor que é sintoma apenas aquilo que pode ser decomposto em um sentido inconsciente, contrastando tanto com a leitura feita por Freud em relação às neuroses atuais, com a teoria lacaniana de modo geral, quanto com as indicações da literatura atual, que corroboram o resultado da interpretação psicanalítica em casos clínicos que se acercam dos fenômenos psicossomáticos (Besset et al., 2010; Ramirez, 2011; Lanius, 2020). 6 Neste sentido, além do aspecto pulsional, entendemos que a formação de um sintoma é uma operação carregada de função para o sujeito. Concepção que não é, necessariamente, uma novidade, pois já em tempos de sua primeira tópica, Freud definiu o sintoma como satisfação substitutiva, indicando esta função de estabilização. Assim, prossegue Freud em Tipos de Adoecimento Neurótico: Esse conflito se resolve por formação de sintomas e termina em adoecimento manifesto. O fato de todo o processo se originar da frustração real se espelha no resultado de que os sintomas com que o solo da realidade é novamente alcançado representam satisfações substitutivas (Freud, 1912/2010b, p. 232). Portanto, o sintoma dito clássico, apenas por espelhar as contribuições iniciais e mais difundidas teoricamente, apresenta para a psicanálise o estatuto de um acontecimento carregado de função, seja ele conversivo, ou não. Porém, se em um primeiro momento, esta função estaria atrelada à resolução de um conflito 6 3 Em trabalho de levantamento teórico, Dunker (2006) descreve pelo menos seis diferentes vertentes teóricas que se ocuparam da psicossomática, constituindo-se em torno de pontos de convergência que pretendem uma unidade conceitual, sem, contudo, poder afirmar que isto se confirma. Dentre elas, destacam-se a escola de Chicago e a escola francesa de Pierre Marty. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, pp. 386-403, ago. 2021 389 Daniel Ribeiro Branco, Regina Perez Christofolli Abeche, Débora Patrícia Nemer Pinheiro inconsciente e, portanto, carregada de sentido, sob outro aspecto o sintoma pode manter este estatuto de função mesmo que escape a esta lógica, como proposto em relação às neuroses atuais e sua relação com o somático: “o grão de areia no centro da pérola” (Freud, 1912/2010a, pp. 246-247). Para poder retomar, porém, o tema da função, partiremos do pressuposto de que há produção de libido que não escoa pelas vias que levariam à formação de um sintoma psíquico. Neste caso, recorreremos à interpretação lacaniana do que poderia ocorrer, ou do que deixa de ocorrer, para que seja necessária uma operação em forma de sintoma que venha a compensar, apoiar algo que claudica. Será abordada, desta forma, a constituição do sujeito segundo Lacan, em particular a relação com os três registros apresentados inicialmente por ele em 1953 (1953/1998a) – Real, Simbólico e Imaginário – em particular as relações entre articulação e não articulação simbólica, entendendo que a apresentação clínica do sintoma, assim como a direção de seu tratamento, está implicitamente relacionadas a isso. A dificuldade de articulação significante possibilita, nesta perspectiva, um paralelo com o conceito de real desenvolvido por Lacan, assim como com os escritos finais de sua produção em relação ao Sinthoma. Estes temas possibilitam alinhavar a conclusão de que há uma condensação localizada que, em algumas situações, tem a função de uma solução para a economia libidinal do sujeito, e esta condensação pode ser pensada em relação ao Sinthoma descrito por Lacan. Para tanto, não se opta por uma visão específica da psicossomática, mas por desbravar o tema mediante suas múltiplas produções, assim como se reconhece a impossibilidade de uma verdade que explicaria esses fenômenos como um todo, optando-se pela tentativa de uma hipótese explicativa a partir de um núcleo comum, mas que não engessa a forma como essas manifestações se apresentam. Isto posto, este artigo tem como objetivo discutir a questão do sintoma, em particular os corporais, ou que assim se expressam, como uma possível solução para a economia libidinal do sujeito, a partir da perspectiva da Psicanálise. Mas, antes de podermos abordar diretamente essas afirmações, algumas considerações sobre os sintomas, e a possibilidade de sua expressão diretamente no corpo, são necessárias. 2. OS FENÔMENOS PSICOSSOMÁTICOS E AS CONSTITUIÇÕES DO SUJEITO EM LACAN: DO ARTICULADO AO REAL Como se observa em seu Seminário de 1964, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan aponta que as características clínicas dos pacientes com 390 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, pp. 386-403, ago. 2021 SINTOMA E FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO: RELAÇÕES POSSÍVEIS PARA A PSICANÁLISE? lesões psicossomáticas indicam tratar-se de algo da ordem da psicose, além de coincidir também com algumas características estruturais da debilidade (Lacan, 1964/2008). Porém, entendemos que Lacan faz uma correlação entre essa forma de funcionamento, que se encontra nos pacientes com lesões psicossomáticas, com a psicose e a debilidade, o que não significa que se trate da mesma ordem, mas são exemplos de casos nos quais o que acontece seria a não separação entre o sujeito e o Outro, ou seja, pontos em que o sujeito continuaria apassivado como objeto de satisfação do Outro. Tal afirmação se deve à hipótese de que haveria algo com os significantes fundamentais, na constituição do sujeito, que impediria que estes se separassem, ou seja, em vez de acontecer a expulsão de um significante para possibilitar a geração de uma cadeia estável, haveria uma espécie de junção entre eles, formando uma estrutura de holofraseamento (formação de holófrase) entre os significantes, semelhante ao que aconteceria nos casos de psicose e debilidade (Lacan, 1964/2008). Sanches (2011), ressalta que tal afirmação não indicaria uma única possibilidade de diagnóstico clínico, podendo ser relida a partir das elaborações da década seguinte, quando houve uma modificação no ensino de Lacan, possibilitando questionar se ele estaria fazendo uma indicação direcionada à forma, e não à estrutura. O termo holófrase foi criado por Lacan a partir de Mannoni (1985, p. 49), quando esta elaborou a tese de que nos casos de debilidade haveria uma fusão de corpos entre a criança e a mãe. Esta elaboração de Mannoni despertou o interesse de Lacan, que iria adiante para passar da fusão de corpos, para a fusão de significantes, ou seja, a formação de uma holófrase entre os significantes primordiais – que deveriam permanecer separados (S1-S2) de modo a constituir uma cadeia estável – causando no Sujeito a incapacidade de usar a linguagem em nome próprio, permanecendo alienado sob o domínio do Outro (Lacan, 1964/2008, pp. 199-210). Portanto, embora exista uma tendência a criar categorias em torno de um fenômeno, para facilitar o manejo clínico, ou unificar um conceito para apreciação teórica, fica implícito que uma unidade em relação ao conceito de corpo em psicanálise, assim como de suas produções sintomáticas, não é tão simples e talvez pouco desejada, já que se corre o risco de recair no paradigma da nosografia psiquiátrica, ou da psicologia dos perfis, distanciando-se do que pode ser o núcleo da psicanálise, que estima a pluralidade das produções do sujeito. Durante os diferentes momentos de sua produção, Lacan se ocupou da constituição do sujeito em relação aos três registros que estruturaram sua realidade, a saber: o Real, o Simbólico e o Imaginário. Embora o foco possa ter mudado Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, pp. 386-403, ago. 2021 391 Daniel Ribeiro Branco, Regina Perez Christofolli Abeche, Débora Patrícia Nemer Pinheiro de um para outro registro em suas elaborações teóricas, os três permanecem entrelaçados, sendo, portanto, impossível excluir um desses registros para poder abordar o sintoma em sua corporalidade sob uma única perspectiva. Torna-se necessário enfatizar alguns pontos em relação a esses registros para poder entender que estruturação seria possível quando se trata de uma formação sintomática aparentemente sem sentido. Inicialmente, com o registro Imaginário, desenvolvido aproximadamente entre 1936 e 1953, quando, influenciado pela filosofia de Hegel, Lacan questiona a gênese do eu e constrói assim sua teoria do estádio do espelho, ao entender que o eu é constituído primeiramente a partir do outro, dando ênfase na imagem do semelhante. Em um segundo momento – de 1953 a 1976 – Lacan teria se ocupado do registro Simbólico, para somente mais tarde, entre 1976 e 1980, passar a focar mais diretamente o registro do Real em seus estudos (Cukiert & Priszkulnik, 2002). Embora o foco sobre a forma de enodamento entre os três registros tenha ocorrido com maior intensidade nesse terceiro momento de Lacan, esses registros foram sempre teorizados em sua relação intrínseca, mudando apenas o foco durante os períodos de sua produção teórica (Cukiert & Priszkulnik, 2002). Ao tratar de processos que constituem o sujeito, Lacan, em seu Seminário, livro 4: as relações de objeto, discute que o estádio do espelho é uma conjuntura na qual está ilustrado o caráter conflitivo entre uma relação dual, pois há uma distância que separa o eu proprioceptivo, da imagem que a criança começa a perceber e construir em sua relação com o mundo externo, e com seus semelhantes. Essa distância pode ser comparada analogamente com a diferença que há entre o princípio do prazer e o da realidade, assim como a dialética entre sujeito e objeto (Lacan, 1957/1995). O estádio do espelho ilustra também a tensão interna gerada pelo caráter conflitivo desses encontros, assim como a forma pela qual tal tensão, resultado da hiância4 entre a propriocepção e a identificação que faz com a imagem recém-observada, contribuirá para o desenvolvimento da criança (Lacan, 1957/1995). 7 Em outras palavras, fica o indicativo de que há uma relação entre a imagem e a libido, pois a imagem como representante é criada como resultado, como meio, para que a libido circule. É esta diferença, entre o eu como corpo fragmentado e a imagem unificada, que a criança observa. É essa distância entre o que é e o que pode vir a ser que possibilita o investimento libidinal. “Tudo que a criança aprende nesta cativação por sua própria imagem é, precisamente, a distância que há de suas tensões internas, aquelas mesmas que são evocadas nessa relação, à identificação com essa imagem” (Lacan, 1957/1995, pp. 15-16). 7 4 Adjetivo utilizado na tradução portuguesa, derivado de hiante: fenda, separação ou abertura. 392 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, pp. 386-403, ago. 2021 SINTOMA E FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO: RELAÇÕES POSSÍVEIS PARA A PSICANÁLISE? Esta operação demarca a visão de sujeito para Lacan, pois o que está em questão em sua gênese vai além do puro organismo, necessitando deste investimento, que pode ser entendido como uma ocupação de um território pela libido, para então constituir um corpo pulsional. Lacan ilustra o início desta operação descrevendo uma “parte de si mesmo que o indivíduo perde ao nascer, e que pode vir a simbolizar o mais profundo objeto perdido” (Lacan, 1964/2008, p. 193). Assim, a produção de energia não é o único resultado da falta proveniente da hiância, pois há um objeto que cai desta operação, instituindo uma marca de satisfação pulsional. Fazendo referência ao “Projeto de Freud” em relação às primeiras experiências de satisfação da criança e às subsequentes insatisfações geradas pela falta do objeto de prazer, Lacan define objeto como aquele que falta, mas não uma falta que gera um déficit no desenvolvimento do sujeito, pelo contrário, pois é esta falta, e o objeto resultante, que possibilitam a atribuição de um princípio de realidade (Lacan, 1957/1995, p. 16). Referindo-se novamente ao “Projeto de Freud”, este princípio de realidade é que fará o barramento das alucinações desiderativas que visam suprir a falta do objeto de desejo perdido (Freud, 1895/2003c, p. 200). Desta forma, Lacan faz um paralelo entre as experiências de falta, primordiais na história do sujeito, com a falta gerada por experiências mais tardias, mas, considerando ambas importantes na criação de uma realidade, em alguma medida, estável. Por outro lado, não é apenas em relação à imagem que Lacan aposta quando procura entender o que atua nestes quesitos decisivos para a constituição do psíquico, pois há o simbólico e as estruturações desse sistema permeadas pela relação com o Outro. Sobre os primeiros processos de constituição do sujeito, Lacan define dois momentos essenciais que operam em relação ao Outro: um primeiro momento de alienação, no qual o ser permanece sob o domínio significante do Outro, e um segundo momento, o de separação. Para representar a alienação na reunião com o Outro, Lacan usa a matemática para indicar que em dois conjuntos (ser e sentido), sempre que houver um elemento no conjunto do sentido, haverá um elemento equivalente que se perde no conjunto ser (Lacan, 1964/2008). Assim, toda produção de sentido operará com um elemento equivalente no ser que fica de fora, escolhendo, por exemplo, o sentido que opera no campo do Outro, o qual subsistirá na ausência do ser, que permanece qualitativamente inconsciente, que evanesce a cada tentativa de acrescer sentido (Lacan, 1964/2008). Logo, haveria um movimento duplo: ao mesmo tempo em que surge o sentido para que exista uma ideia de unidade, há um fading, um desaparecimento de seu equivalente simbólico, permanecendo, portanto, inconsciente. A isto, que Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, pp. 386-403, ago. 2021 393 Daniel Ribeiro Branco, Regina Perez Christofolli Abeche, Débora Patrícia Nemer Pinheiro Lacan chama afânise, é atribuído também um elemento da constituição do sujeito, pois é uma divisão fundamental para que a dialética do sujeito exista e, por consequência, exista um sujeito (Lacan, 1964/2008). Este conteúdo, que desaparece dos registros acessíveis, estaria no terceiro registro, o Real. De difícil definição pela sua própria natureza, o Real é um conceito trabalhado por Lacan que expressa aspectos que resistem à simbolização, que não têm palavra nem nome, ou seja, que escapam da inscrição no Simbólico. O Real não é uma essência última que está por trás das coisas, mas aquilo que permanece necessariamente negado para que as coisas se apresentem como tal, isto é, para que o mundo possa ser apreendido como uma totalidade aceitavelmente organizada para o sujeito (Roudinesco & Plon, 1998). Real e realidade, embora facilmente confundidos, não são iguais. A realidade faz uma conexão entre o eu, a imagem e todas as modificações que surgirão desde os primeiros contatos da criança com a imagem na fase do espelho, implicando as identificações que se sucederão durante sua vida. Entretanto, o autor não deixa de notar que para que exista esta realidade, e para que ela seja estável com toda essa armadura de imagens e significantes, é necessário um ponto de ancoragem externa aos dois registros diretamente implicados (respectivamente, Imaginário e Simbólico) e este ponto só pode ser localizado nesta externalidade do Real (Nasio, 2012). Assim, Miller (2010) elucida que é difícil falar do Simbólico e do Imaginário sem deixar um ou outro de fora, mesmo que não estejam totalmente disjuntos. Exatamente nesse aspecto que Lacan introduz o Real, na fronteira do simbólico e do imaginário. O Real lacaniano é tanto aquilo que faz laço entre esses dois outros registros, quanto aquilo que rateia, ficando fora do laço, fora de lugar (Miller, 2010). Esta ex-sistência,5 que acontece nas relações entre o significante e o objeto, geralmente cria um sistema de sucessão consistente quando um significante remete a outro significante (a clássica fórmula S-S) onde há a queda do objeto para a ascensão da representação que faz suporte, articulando-se no simbólico (Lacan, 1975/2007). 8 Há, portanto, uma primeira expulsão que deixa o real como externo ao sujeito para, em um segundo momento, ser instaurada a discriminação da realidade, ou seja, aquilo que é instaurado no segundo tempo é a realidade como objeto, a partir da reprodução imaginária da percepção primária (representação). É nesse momento que essa operação pode escapar ao princípio do prazer, mas não escapa ao Real que, como já foi suprimido da simbolização primordial, já está 8 5 Notação usada por Lacan para marcar que só há a existência no simbólico porque algo está externo a este, no Real. 394 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, pp. 386-403, ago. 2021 SINTOMA E FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO: RELAÇÕES POSSÍVEIS PARA A PSICANÁLISE? fora (Lacan, 1966/1998b). Ou seja, pode escapar ao princípio regulatório da economia psíquica e escapar à estrutura significante, mas não escapa ao Real, gerando fenômenos como a alucinação ou a lesão. Portanto, entendendo haver um ponto externo às cadeias significantes que fica fora do domínio passível de simbolização, e que o Real é também assim constituído, Lacan assinala que aquilo que fica subtraído dos limites da fala só pode aparecer no Real: “O que não veio à luz do simbólico aparece no Real” (Lacan, 1966/1998b, p. 390). Isto é, aquilo que não surge pelo simbólico, como no caso do retorno do recalcado, indica que algo está foracluído,6 algo que não tem a possibilidade de representação simbólica e que tem como única alternativa o retorno que incide diretamente sobre o Real. É a partir disso que Miller (2010) conclui que a simbolização é condição para que haja existência (em relação ao sujeito), ou seja, para que aquele conteúdo venha a ser para o sujeito. 9 Isto indica que em alguns momentos essa articulação falha, seja por situações críticas da estrutura, ou em momentos críticos da economia libidinal do sujeito, impossibilitando uma estruturação estável das cadeias significantes. Nesses casos, os significantes não se remetem mais uns aos outros, não há mais significação, não há hiância, não há afânise, não há equívoco que coloque o sujeito em questão, ou seja, não há articulação. Levando isso em conta, para que de alguma forma exista um sujeito, é necessária uma solução que, no caso dos fenômenos psicossomáticos, pode encontrar no real uma solução. 3. UMA SOLUÇÃO INSCRITA NO CORPO Seguindo a indicação de Lacan, de que alguns fenômenos comuns em estruturas psicóticas poderiam dar uma direção em relação ao que acontece quando uma saída é necessária para salvaguardar a economia psíquica, sem a possibilidade da articulação simbólica, vislumbram-se algumas pistas do que também aconteceria em situação similar quando o sintoma atinge o corpo. Assim, Lacan, em Resposta ao Comentário de Jean Hyppolite sobre a “Verneinung” em Freud (1966/1998b), aborda o fenômeno da alucinação revisitando o caso de Freud conhecido como “O Homem dos Lobos” para analisar a diferença entre recalque e foraclusão. O autor indica, mais especificamente, o relato do paciente de Freud sobre a alucinação de ter decepado o dedo debaixo de uma árvore, entendendo que, no caso citado, o paciente nada queria saber sobre sua castração 9 6 Foraclusão, ou forclusão. Termo de cunho lacaniano tratando-se de rejeição de um significante para fora do universo simbólico do sujeito (Laplanche & Pontalis, 2008, p. 194). Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, pp. 386-403, ago. 2021 395 Daniel Ribeiro Branco, Regina Perez Christofolli Abeche, Débora Patrícia Nemer Pinheiro no sentido de um recalque, restando apenas uma abolição simbólica do registro da castração (1966/1998b). Pensando nessa estruturação, Lacan defende que no caso relatado o que importa, mais do que o fenômeno alucinatório em si, é a impossibilidade que se impõe ao paciente de falar do episódio naquele momento (1966/1998b). Lacan não está interessado em fazer um diagnóstico estrutural do paciente de Freud, ele parte do fenômeno descrito para procurar compreender quais as soluções possíveis que o psiquismo pode lançar mão quando há uma falta de articulação simbólica. Como salienta Miller, ao descrever que Lacan busca neste estudo saber se a alucinação é “um funcionamento que se diferencie radicalmente do mecanismo da articulação” (2010, p. 33). Para ilustrar, de tal modo, o que seria uma resposta na qual o objeto não é expulso do sistema significante, Nasio utiliza o delírio como paradigma, para contrastar com a relação entre significantes baseada no deslocamento, como seria no caso de uma formação sintomática clássica (2012). O delírio não deixa de ser uma constituição de realidade local, mas é uma resposta que, segundo o autor (Nasio, 2012), não remete a mais nada (uma resposta congelada). Nestes casos, os autores remetem à alucinação ou ao delírio, mas alguns autores, como Nasio e Miller, igualmente a exemplo de Lacan, fazem uma correlação com os fenômenos psicossomáticos que também escapam à fala e surgem no real, mas no real do corpo. Neste mesmo sentido, Nasio (2012) defende que o sintoma expresso no corpo não é um déficit, ou um defeito, mas sim um engendramento. Ou seja, é do viés do positivo, de uma produção. Assim, para o autor, o sintoma psicossomático constituiria a criação de uma realidade nova e estritamente local, apontando a necessidade de que um novo limite seja instituído, uma nova borda para que o sujeito possa dar conta, criar uma realidade em torno dessa lesão concentrada no corpo, uma realidade “que se fecha com um nó” (Nasio, 2012, p. 16). Embora Nasio não se referisse ao nó Borromeu (estrutura utilizada por Lacan que indica o entrelaçamento entre os registros do Real, Simbólico e Imaginário), as indicações do Seminário 23 dão testemunho de que esta solução criada para estabilizar o sujeito diante de uma situação crítica estaria ligada a esse nó. Solução que, para Lacan, ganha a característica de um quarto componente do nó borromeano, portanto completando, ou estabilizando o nó (Lacan, 1975/2007). Esse quarto laço teria seu foco na particularidade da relação do sujeito com seu corpo pulsional, não mais tanto no domínio do Outro, mas no domínio do mais particular (Lacan, 1975/2007). 396 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, pp. 386-403, ago. 2021 SINTOMA E FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO: RELAÇÕES POSSÍVEIS PARA A PSICANÁLISE? Lacan se referia ao Sinthoma, que se diferencia do sintoma clássico não apenas na grafia, mas sim porque indica uma formação particular do sujeito com seu corpo, construções erigidas para que o possua, como seu, suas marcas. Porquanto, mesmo o sintoma histérico tem em sua fonte mais profunda o pulsional que, também, escapa do sentido, considerando que Freud afirma que o sintoma psiconeurótico tem sua fonte emprestada da neurose atual, sendo o grão de areia que constituirá a pérola (Freud, 1912/2010b). Lacan faz uma afirmação semelhante ao analisar uma peça de teatro na qual o sintoma histérico seria aquilo que fica endereçado ao público, mas que é o material do fundo, aquele que se passa por detrás das cortinas, que remete ao sintoma como tal, e ali ele é separado do sentido (1975/2007). Contemporaneamente às elaborações sobre o Sinthoma, em uma conferência proferida em Genebra no ano de 1975, Lacan retoma como objeto os fenômenos psicossomáticos, mas, desta vez, o foco de discussão se distancia das estruturas clínicas para concluir que nestes casos “tudo se passa como se algo estivesse escrito no corpo, alguma coisa que nos é dado como enigma” (Lacan, 1975, p. 129). O que isto indica é que, de forma distinta ao sintoma clássico, este enigma seria resultado de uma inscrição psíquica que não teria a capacidade de representação de um significante. Contudo, ainda assim seria capaz de gerar efeitos sobre o sujeito: uma marca, ou um escrito, mas da ordem de uma assinatura, ou seja, uma inscrição que não se dá a ler (Lacan, 1975). Ainda no domínio do simbólico, e tentando desbravar o tema, Lacan compara novamente este tipo de inscrição a um traço, algo que não tem a flexibilidade de sentidos de um significante, se aproximando mais de um número, do que de uma palavra (Lacan, 1975). Assim como o Sinthoma, o fenômeno psicossomático tem algo de profundamente particular, o que leva o autor a comparar a base do fenômeno psicossomático com algo invariável, como uma assinatura, um número, ou um simples traço que representaria apenas o detrito de uma palavra, dando a possibilidade de entender que o gozo encontrado ao se defrontar com um paciente que sofre por meio de um fenômeno psicossomático seria um gozo fixado, congelado. Esta analogia faz eco com os escritos de Lacan da década anterior, quando indica que a base deste tipo de formação sintomática teria uma fixação entre os significantes fundamentais (a respeito da holófrase), impossibilitando a articulação significante descrita anteriormente. Nesta mesma direção, fazendo alusão à comparação de Lacan com a assinatura, Miller (2010) comenta que o Sinthoma, como o mais singular, é indecifrável, escapando ao sentido, esta característica faz sua ligação com o Real, com aquilo Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, pp. 386-403, ago. 2021 397 Daniel Ribeiro Branco, Regina Perez Christofolli Abeche, Débora Patrícia Nemer Pinheiro que escapa ao simbólico. Ou, como descreve Lacan, diferentemente do retorno do recalcado, o retorno do fenômeno sob a função de um Sinthoma não é na história, mas no Real (Lacan, 1975/2007), tendo o corpo como possibilidade. Assim, na falta de um enodamento simbólico do pulsional, seja por falta estrutural (psicose), ou por uma situação específica, o Sinthoma pode ser o instrumento para resolver o gozo, neste caso, com a função de dar suporte a uma falta simbólica (Lacan, 1975/2007). Como aponta Machado (2005), “essa argumentação está na filiação do Sinthoma como elemento articulador, enodando os registros do real, do simbólico e do imaginário. Articulando os elementos dispersos, o Sinthoma daria corpo ao sujeito desbussolado ao conectálo com seu próprio gozo”. É importante diferenciar que há sempre uma via de descarga. O sintoma clássico engloba uma cadeia de representações, mas nos casos em que esta possibilidade está impedida, a via de derivação pulsional será as marcas disponíveis. No caso de esta via ser o somático, a lesão pode ter a função de fazer laço para o sujeito, de estabilizar uma estrutura que está em perigo, seja por condições de sua formação permanente, ou por uma situação específica. Nesses casos, que Lacan denomina no final de sua obra como Sinthoma, pode-se recorrer ao corpo como uma medida de exceção que resolve o problema do excesso, criando, com a lesão, a estabilização necessária. É como se o sintoma gerasse em todo o seu processo a ativação de representações (S), desde o seu gatilho, até o deslocamento necessário para a sua constituição: ele engana o eu para poder dar via à pulsão. Mas, nos fenômenos psicossomáticos, mesmo que exista uma representação no seu início, a cadeia consequente não acontece, colocando o próprio eu em risco: a lesão salva o eu de se fragmentar por manter uma âncora, mesmo que não passe por todas as elucubrações do simbólico. Como indica Lacan, o Sinthoma teria como similaridade à angústia a característica de permanecer como aquilo que não cessa de girar, de se inscrever, uma conexão que transporta sentido no Real (Miller, 2010). Porém, essa falta de articulação simbólica pode não ser total, mas sim um acontecimento do corpo que tem que dar conta do Real, do pulsional, mas sem contar com a articulação significante que permanece, neste caso, congelada. O corpo como agenciamento do real, do simbólico e do imaginário, apresenta-se em torno de um ou dois furos, e se mantém sozinho. Assim, pode-se pensar o sintoma como um acontecimento de corpo, nesse caso, distinto do sintoma histérico (Laurent, 2012). Segundo Laurent (2012): “Passa-se do sintoma falante ao Sinthoma como escrita”. 398 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, pp. 386-403, ago. 2021 SINTOMA E FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO: RELAÇÕES POSSÍVEIS PARA A PSICANÁLISE? Dessa forma, os fenômenos psicossomáticos não são descartados, mas considerados como um modo de resposta similar à postulada por Freud em relação às pulsões, ou seja, como medida de exigência de trabalho imposta ao psíquico (Merlet, 2003), mas que, nesse caso, encontra uma saída que escapa à historicização e ao sentido do sintoma histérico. “Psicossomática não mais como uma doença, mas como um modo de responder” (Merlet, 2003, p. 17). Pode existir uma reação psicossomática como modo de responder a uma situação definida que exija um trabalho de simbolização, por exemplo, luto ou separação. Por outro lado, certos indivíduos não têm outra maneira de viver senão apresentando um modo de resposta permanente ou surtos do tipo psicossomático (Merlet, 2003, p. 19). Se esse fenômeno pode ser defendido como uma função para o sujeito, uma força de enodamento, mesmo que não se articule de um a outro significante, sua caracterização como forma de letra não o torna um “beco sem saída”. Alves et al. (2019) destacam que, mesmo a escrita, a letra, é para ser lida como uma carta endereçada à releitura, a um destinatário, pois mesmo não garantida, há a possibilidade de que a letra abra vias de significação tendo em vista ser litoral entre simbólico e real, entre saber e gozo. Porém, segundo as autoras, o fenômeno psicossomático impõe desafios ao analista por mostrar-se fixado ao gozo e menos propenso a movimentar-se na cadeia significante (Alves et al., 2019). Um desafio ao analista deve ser encarado como uma aposta viável quando há alguma possibilidade, em transferência, de fala, de endereçamento a um suposto saber, pois, se em um primeiro momento da obra freudiana, a clínica psicanalítica investia no desvelamento de memórias inconscientes, o criador da psicanálise expandiu, em um segundo momento, as possibilidades técnicas para que, com Lacan, novas releituras e direções de tratamento fossem elaboradas, entendendo que o analista deve estar apto a “alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época” (Lacan, 1953/1998a, p. 322). Portanto, mesmo que o desafio se apresente como um sintoma resistente ao saber, fixo no gozo, é necessário apostar que se há um endereçamento da fala, é trabalho do analista fazer ressoar, no caso a caso, algo desta letra investida pelo sujeito para que exista alguma chance de articulação, pois “é preciso que haja alguma coisa no significante que ressoe” de modo a não ignorar que “as pulsões são, no corpo, o eco de que há um dizer” (Lacan, 1975/2007, p. 18). 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Concluir que existe uma função envolvida, mesmo quando o corpo está em jogo, não é uma mera constatação teórica, pois influencia tanto a avaliação, quanto a direção do tratamento psicanalítico. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, pp. 386-403, ago. 2021 399 Daniel Ribeiro Branco, Regina Perez Christofolli Abeche, Débora Patrícia Nemer Pinheiro De forma mais radical, esta interpretação considera que, sendo a psicanálise interpretada como um saber que escapa às construções empiristas, menos propensa, portanto, a construir respostas aos moldes aristotélicos, e mais apta a fazer surgir furos no saber científico (Lacan, 1971/2009, pp. 26-27) e, considerando que a formulação de Lacan de que não há metalinguagem, implica a possibilidade de manter em paralelo tanto sua teoria, como sua práxis (Lacan, 1971/2009, p. 10), então podemos entender que seu discurso enquanto saber, e seu modo de operar na clínica, são semelhantes. Mesmo que o discurso do sujeito tenha tendência a encher-se de sentido, ou que este fique impedido por conta do gozo petrificado do fenômeno Psicossomático, cabe ao analista, na peculiaridade de cada caso, sondar a função estabelecida àquele sintoma para a economia libidinal do ser falante que a ele endereça sua fala. 400 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, pp. 386-403, ago. 2021 SINTOMA E FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO: RELAÇÕES POSSÍVEIS PARA A PSICANÁLISE? REFERÊNCIAS Alves, R. B., Amparo, D. M., & Chatelard, D. S. (2019). Psicossomática: um fenômeno entre o saber e o gozo. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 71(1), 174183. Besset, V., Gaspard, J.-L., Doucet, C., Veras M. A. S., & Cohen. R. H. (2010). Um nome para a dor: fibromialgia. Revista mal-estar e subjetividade, 10(4), 1245-1270. Birman, J. (2003). Soberania, crueldade e servidão: mal-estar, subjetividade e projetos identitários na modernidade. In T. Pinheiro (Org.). 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